Obscurity

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Obscurity



CaPItulo 1

_______________________________________ Kathleen

Bombas são lançadas dos céus e explodem. Na terra, os Soldados marcham. Eu estou trancada no sótão da minha casa, agarrada à minha mãe. Minha irmã Lisa, de quatro anos, está chorando. As luzes estão apagadas, mas eu juro que posso ver alguns fios dourados de cabelo em sua boca, enquanto ela tenta limpar as lágrimas. Meu pai está lá em cima. Não na sala de estar, mas com Eles, com os Soldados, lutando. De vez em quando o chão treme. Sinto que as paredes irão cair a qualquer momento, mas elas não caem. São firmes e feitas para aguentar tudo; qualquer impacto. Mamãe disse que ficaremos bem, que logo tudo voltará aos seus eixos. É preciso acreditar no impossível quando se está à beira do abismo. Então faço a única coisa que posso: agarro-me a este fio de esperança e faço dele a única coisa completa em


minha vida. Se o fio se romper, eu estarei rompida também. Bombas explodem. Mais forte. Mais próximas. *** Acordo. Um cheiro forte de fumaça aloja-se em minhas narinas. Ouço botas batendo contra o piso e as paredes tremem mais uma vez. Tiros ressoam acima. A casa foi invadida. Mamãe envolve todo o rosto de Lisa, tapando levemente os seus ouvidos. - Está tudo bem – ela repete. Sua voz está trêmula, frágil. Abro os olhos apenas o suficiente para vê-las. Minha mãe e os seus cabelos ruivos, Lisa e os seus cabelos dourados. Uma é como rubi, a outra, como o ouro. Os olhos da minha mãe são castanho-claros, quase vinho, já os de Lisa são verdes salpicados de um leve amarelo. Ambas lindas. Ambas minhas. Ambas quase mortas. *** O alçapão que leva ao sótão está sendo violado. Mãos tentam puxá-lo a todo custo, mas os quatro cadeados


de titânio estão surtindo algum efeito, afinal. Sei que não durarão muito, mas cada segundo é precioso, cada milésimo a mais de vida uma benção. Mamãe aperta a minha mão e me dá um beijo no rosto. Seus lábios são ásperos e secos, e murmuram alguma coisa, mas eu não consigo entender. Não pergunto o que é. Ela afaga levemente uma mecha do meu cabelo cor de carvão e volta a embalar Lisa. Enquanto a acaricia, entoa uma cantiga antiga. Soa familiar, mas não me lembro dela. Então vem a luz. É uma luz forte e branca, clínica. Ela invade todo porão e toma conta de tudo, me deixando cega. Quando meus olhos voltam a enxergar corretamente, por um momento, acho que a poeira que paira no ar ganha uma coloração prateada. E então, em um único instante, cada partícula de sujeira resplandece como flocos de neve prateados. E por fim vira trevas novamente. Assisto a tudo atônita. Os Expurgadores entram no sótão aos berros. Minha mãe não diz nada. Lisa não diz nada. Eu não digo nada. Não estou enxergando direito, mas posso ver os seus vultos contrastando no brilho intenso. São negros como a meia-noite, musculosos e invencíveis. Eles nos veem e correm até nós. Tomam Lisa dos braços de mamãe.


Lisa grita, um gritinho agudo que penetra nos meus ouvidos e me deixa mal, me enjoa. Junto os meus joelhos e circundo-os com as mãos. Minha mãe não se move nenhum pouco. Está sentada, sem poder fazer nada. Ela sabe que, se gritar, será morta. Mas eles não vão matar Lisa. Lisa é só uma criança. Eles não seriam capazes de mata-la. Não. Ouço mais um grito e sinto apenas um leve impacto. Ergo a cabeça um pouco e... Lisa foi jogada ao chão. Ela está sangrando. Levanto-me num ímpeto de salvála e grito também. Porém, um Expurgador já está em cima dela. Naqueles dois segundos que precedem o tiro, o olhar de Lisa encontra o meu. Olhos douradas que pedem por ajuda. E então fim. A última vez que Lisa sustenta meu olhar, a última vez que nos olhamos de verdade, tudo que ela sentia era dor. O tiro perfurara o seu coração. Minha mãe se levanta e corre até Lisa, agacha-se diante dela e pega sua cabeça, pondo-a no colo. Sangue escorre pela roupa de minha irmã, tingindo-a de um vermelho intenso. Um Expurgador tenta afastar da menina morta no chão – não é Lisa, não pode ser Lisa -, mas ela não se deixa levar.


Puxam o seu cabelo, arrancam tufos e gritos dela e, no entanto, ela não se afasta da filha. Eles se cansam e atiram na cabeça dela. Eu grito. Sou abordada por trás e um Expurgador prende as minhas mãos. - Se você continuar gritando – ele diz – será morta. O que eu não digo para ele é que eu já estou morta. *** A viagem já dura quatro dias. Caminhamos a pé por lugares de paisagens mórbidas. Cidades destruídas. Corpos largados e amontoados no chão. Só há cinza, escombros e morte espalhados pelos asfaltos. Para onde quer que nos dirijamos, somente ruínas. Durante o percurso, o frio do inverno é a minha única companhia. Não conto a caravana de 500 civis maltrapilhos e acorrentados que me seguem, porque nenhum dos indivíduos ali presentes está devidamente preocupado comigo; se eu estou bem, se eu estou precisando de alguma coisa. Sou só uma garota suja num aglomerado de gente suja. Minhas pernas estão incrivelmente doloridas e os meus pés repletos de bolhas e calos. Pela primeira vez em toda a minha vida dou valor aos meus antigos e confortáveis tênis de corrida com massageador


embutido: aqueles sob os quais eu poderia andar horas sem sentir nenhuma dor ou desconforto. Os Expurgadores nos acompanham ao lado, montados em jipes e com chicotes elétricos nas mãos. Se sairmos da trilha demarcada, eles nos açoitam até que voltemos ao caminho certo. Somos uma boiada e eles são os boiadeiros. No primeiro dia de viagem um garoto tentou sair da caravana. De soslaio, o vi se esgueirar por detrás de um carro virado no acostamento da estrada. Ele tentou correr para além do carro quando achou que não o tivessem vendo. Havia uma espécie de bosque ali, árvores sem folhas que poderiam fornecer um abrigo pouco seguro. Ele começou a correr, mas tropeçou em uma raiz seca e caiu com a cara no chão, deixando escapar um grito grave. Quando os Expurgadores perceberam-no fora do grupo, foram até ele empunhando chicotes. Dois dos Expurgadores o prenderam em um poste às margens da estrada e chicotearam as costas dele até que filetes de sangue escorressem e marcassem a neve no chão de um vermelho vivo. - Que isso sirva de exemplo – ralhou um dos Expurgadores. No dia seguinte uma senhora, com cerca de 74 anos, passou mal. Ela vomitou sangue no meio da estrada e escorregou no próprio vômito. Fraturou o fêmur. Seus


olhos estavam negros e a pele extremamente pálida. Ela pediu ajuda para um dos Expurgadores, mas, ao invés disso, ele pegou um machado e decepou sua cabeça. A neve ficou inundada de sangue. Ele jogou a cabeça da senhora para o meio da caravana. Ela pousou aos meus pés. Os cabelos brancos dela estavam manchados de sangue; os olhos fechados. *** Até o quarto dia de viagem pelo menos 40 pessoas já tinham morrido – seja de frio ou de alguma outra doença, ou por intermédio dos próprios Expurgadores. Seus corpos foram jogados nas margens da estrada para servir de alimento aos corvos e aos fungos. A única forma que tínhamos de nos aquecer era andando o mais próximos que podíamos. O calor corporal que irradiava de cada um de nós era a nossa única fonte de aquecimento – se não fosse por isso, talvez eu não tivesse aguentado tanto. Fazíamos apenas quatro paradas para descanso. Às vezes menos. Dormíamos em média 4 a 5 horas por dia, no chão duro e gelado. Depois disso, tínhamos direito a apenas 30 minutos de pausa. Eles nos davam água três vezes. Um copo de água na manhã, um copo de água à tarde, um copo de água à noite.


A neve era uma faca de dois gumes; uma benção e uma maldição. Ela nos matava de frio, mas os flocos que derretiam em nossas línguas estiradas, saciavam a sede intensa. Forneciam-nos uma ração de gosto ruim, pesada, apenas para enganar o cérebro; mas isso não surtia efeito em mim, porque meu corpo próprio já se alimentava dele mesmo. Eu passo boa parte do meu dia observando-os. Antes, eu nunca tinha estado tão próxima de um Expurgador. Sussurravam sobre eles, é claro, e um ou outro havia sido executado em público, pego espiando os arredores da Cercania. Mas, até então, as Fronteiras estavam bem resguardadas; nossos Soldados conseguiam nos prover segurança, conseguiam nos defender. Tudo mudou repentinamente. De algum modo os Expurgadores haviam conseguido ultrapassar as Fronteiras, e eu não imaginava alguma forma eficaz para tanto. Não se dizia que eram invencíveis? Que não permitiriam a passagem d’Eles, mesmo que tentassem arduamente? Ainda que os Expurgadores tivessem desenvolvido alguma tecnologia especial para deteriorar de vez a Cercania, haveria tempo de sobra para a retaliação. Os Soldados estavam preparados. Em uma guerra, os números estavam ao nosso favor – então, o que deu errado?


A resposta vem à minha mente em um insight. Traição. As Fronteiras não poderiam ter sido violadas de fora. Primeiro alguém deveria nos trair de dentro. Meu coração bate mais rápido. A raiva infla-se dentro de mim como um balão de ar quente. A verdade é como uma adaga afiada trespassando minha carne. Uma risada azeda surge do meu âmago, e eu a libero. Rio, porque chorar não adianta nada. Mesmo que eu esteja atraindo atenção indesejada, mesmo que os outros civis se afastem de mim, eu não me importo. Minha mãe e minha irmã foram mortas por Expurgadores não porque havíamos sido derrotados. Mas porque fomos traídos. Durante todo esse tempo nosso principal inimigo esteve entre nós e não o vimos. Um Expurgador me olha desconfiado, a boca coberta com um pano enegrecido. Somente seus olhos verdes – verdes como jade – estão visíveis. Por um momento, penso reconhece-lo. Sustento seu olhar, mas ele desvia. Outro Expurgador aproxima-se dele e sussurra algo em seu ouvido. Ele se volta rapidamente para mim, nossos olhos se encontrando uma segunda vez, e então se vira. Começa a andar para frente, e desvia-se de um carro destruído virado na estrada. Vejo-o entrar em


uma cabana verde-musgo armada e então desaparece do meu campo de visão. De onde eu o conheço? E por que eu deveria conhecer um Expurgador?


Capitulo 2

_______________________________________ Jason

Jason entra na cabana. O interior tem um cheiro amargo de lixo. Seu estômago embrulha inesperadamente e ele tem ânsia de vômito. Jason ainda consegue sentir os olhos de Kate sobre o seus, medindo-o, tentando reconhece-lo. Mas, para a sorte dele – e dela -, não conseguira. A cabana é maior que ele podia imaginar de fora. Uma lamparina é sustentada no teto por um fio de bronze e a vela em seu interior lança uma luz vacilante que conflui dentro da cabana como uma língua. O Coronel está sentado em uma mesa, os olhos debruçados sobre um mapa enorme. Ele parece estudalo atenciosa e minunciosamente, as sobrancelhas franzidas em dúvida. Por um momento, Jason o acha até um pouco vulnerável.


Mas o Coronel ergue os olhos negros como lascas de ônix para Jason, o sorriso debochado se infiltrando nos lábios, e tudo o que ele não é, é vulnerável. - Coronel – Jason diz, com falto respeito camuflado. O homem o mede, como um Coronel geralmente faz com seu soldado. Jason engole em seco, desconfortável, e o Coronel finalmente volta a apreciar seu mapa. - Soldado – cumprimenta sem olhá-lo. – Perdoeme por tê-lo chamado em seu momento de descanso, mas temo que precise confessar-lhe algumas coisas. Jason fica tenso. Confessar-lhe algumas coisas? O Coronel nunca havia dito mais que o básico antes. Alguma coisa mudara. Mas o quê? - Hoje recebi uma carta – fala. – Estância superior à minha. Ordens que devem ser prontamente cumpridas. Faz ideia do que há escrito, Slayer? – pergunta. Jason continua imóvel. É possível que o tenham descoberto? Não, ele pensa. Se o tivessem descoberto ele já não estaria mais aqui. Já teriam dado cabo nele. Os Expurgadores são bem rápidos. - Não, Senhor – responde com sinceridade. Os olhos do Coronel brilham. - Era o que eu esperava – diz, os olhos se erguendo do mapa para fitar os de Jason. – Veja bem, Jason Slayer, não gosto de receber ordens. Não gosto de me sentir subordinado a ninguém, mas estou sujeito uma


hierarquia e, quer eu queira ou não, devo segui-la à risca. Seus olhos se estreitam. - O que eu quero dizer, Slayer, é que me senti um tanto quanto encurralado com as ordens desta carta – conta, apontando para um envelope pardo que Jason não notara antes. – Gosto de ter controle sobre minhas decisões. E não acho que você mereça muita atenção, meu rapaz, porque não fez nada de surpreendente nesse Batalhão dentro e fora das Cercanias, contudo, não é o que pensam meus superiores. Jason não consegue deixar de captar o escárnio na voz do Coronel. Os olhos do homem crepitam, seus punhos cerrados sobre a mesa. O Coronel se levanta num átimo, e sua altura surpreende Jason outra vez. O homem tem quase 2 metros, corpo corpulento e musculoso, cabelos que são tão negros quanto os olhos. A expressão do seu rosto é invasiva, com um sorriso desafiador que impera nos lábios rachados. - Eu não sei como você conseguiu isso, Soldado, ou quem está intercedendo por você na Cúpula, mas – ele para, e Jason sente a raiva que o Coronel destila em cada palavra que profere – parabéns. Você é o segundo homem no comando agora, Tenente. O Coronel se adianta até Jason, uma mão estendida para apertar a do rapaz. Ele levanta a mão e pressiona-a


na do Coronel, que aperta com força em resposta. Por um momento, os dois ficam se medindo, os olhos de um sobre o do outro. Então o Coronel ri e solta a mão de Jason. - Quero deixar claro que essa não é uma escolha minha, e eu não acho que você mereça esse privilégio, Slayer, mas quem sou eu para discordar das escolhas da Cúpula? Jason continua calado. Ele ainda é um subalterno do Coronel, mesmo que tenha subido um nível na hierarquia. O Coronel anda até a parte de trás de sua mesa e acena para Jason, pedindo que o acompanhe. O rapaz consente e caminha até ficar próximo ao homem. - Vê essa parte do mapa? – questiona o Coronel, dirigindo-se para uma pequena área negra quarenta quilômetros depois da parte norte da Cercania. Jason recorda de menções ao lugar, e seu sangue gela. O que quer que o Coronel venha a falar agora, com certeza não é coisa boa. Jason assente para o Coronel. - Suponho que você já tenha ouvido falar sobre a Floresta de Sangue.


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