CAPÍTULO UM
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ecém-nascido #485GA18M, morto em 30 de junho de 2076, às 6h07 da manhã. Tinha três dias de vida. O tempo médio de sobrevivência de uma criança, no período pós-Break, era de cinquenta e seis horas. Elas sequer recebiam nomes. Kira Walker assistia impotente ao Dr. Skousen examinar o pequeno corpo. As enfermeiras – metade das quais igualmente grávidas – anotavam os detalhes da vida e da morte do bebê, anônimas nos macacões e máscaras de gás. A mãe lamentava desesperadamente no corredor, o som abafado pelo vidro. Ariel McAdams, mal acabara de completar dezoito anos. A mãe de um cadáver. – Temperatura corporal interna 37,2 graus ao nascer – disse a enfermeira, conferindo os dados no termômetro. Sua voz saía fraca através da máscara; Kira não sabia seu nome. Outra enfermeira transcrevia cuidadosamente os números numa folha de papel amarelo. – No segundo dia, 36,7 graus – prosseguiu a enfermeira. – Às quatro da manhã de hoje, 37,2. Ao morrer, 43,1. – Moviam-se vagarosamente pelo quarto, pálidas sombras verdes na terra dos mortos. – Só quero segurar meu bebê – gritou Ariel. A voz áspera e embargada. – Só quero segurar meu bebê. 9
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As enfermeiras a ignoravam. Era o terceiro nascimento da semana, e a terceira morte. Era mais importante documentar a morte, para aprender com ela – e assim prevenir, se não a próxima, ao menos a que viria em seguida, pela centésima ou milionésima vez. Encontrar um meio, seja qual for, de ajudar uma criança a sobreviver. – Batimento cardíaco? – perguntou outra voz. Não posso mais fazer isto, pensou Kira. Estou aqui para ser uma enfermeira, não um agente funerário… – Batimento cardíaco – perguntou novamente a enfermeira Hardy, chefe da maternidade. Kira recobrou a atenção; monitorar o coração era função dela. – Batimento cardíaco estável até às quatro da manhã de hoje, saltando de 107 para 133. Batimento cardíaco às cinco da manhã era de 149. Batimento cardíaco às seis, 154. Batimento cardíaco às 6h06… 72. Ariel gritou de novo. – Meus dados confirmam – disse outra enfermeira. A enfermeira Hardy anotou os números, fechando a cara para Kira. – Você precisa permanecer focada – disse, ríspida. – Há muitos residentes de medicina que dariam o olho direito para estar no seu lugar. Kira assentiu com a cabeça. – Sim, senhora. Dr. Skousen, no centro da sala, entregou o bebê morto à enfermeira e tirou a máscara de gás. Seus olhos pareciam tão mortos quanto a criança. – É tudo que podemos aprender, por agora. Limpem tudo isso e façam uma análise completa do sangue. – Ele saiu da sala e, em volta de Kira, as enfermeiras continuaram o frenesi das atividades, enrolando o bebê para o enterro, esfregando o equipamento, colhendo sangue. A mãe chorava, esquecida e sozinha – Ariel fora inseminada artificialmente; não havia nem marido nem namorado para confortá-la. Kira, obediente, recolheu os relatórios para 10
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serem analisados e arquivados, mas não conseguia tirar os olhos da menina que soluçava do outro lado do vidro. – Mantenha a cabeça no jogo, estagiária – disse a enfermeira Hardy. Ela também tirou a máscara, o cabelo empastado de suor na testa. Kira olhou-a em silêncio. A enfermeira Hardy a encarou de volta, então levantou a sobrancelha. – O que o aumento drástico na temperatura nos informa? – Que o vírus passou do ponto de saturação – respondeu Kira, recitando de memória. – Ele replicou-se o suficiente para saturar o sistema respiratório da criança, o coração ficou sobrecarregado tentando compensar a deficiência pulmonar. A enfermeira Hardy balançou a cabeça, e, pela primeira vez, Kira notou os olhos vermelhos e irritados da chefe. – Um dia os pesquisadores encontrarão um padrão nestes dados e descobrirão a cura. Mas só vão conseguir isso se nós…? Pausou, esperando, e Kira completou a frase. – Rastrearmos o curso da doença em cada criança, o melhor possível, e aprendermos com os nossos erros. – A descoberta da cura depende dos dados que estão nas suas mãos. – A enfermeira Hardy apontou para os papéis que Kira segurava. – Fracasse em documentar isso e esta criança terá morrido em vão. Kira balançou a cabeça outra vez, arrumando, com indiferença, os papéis na pasta suspensa. A enfermeira-chefe virou-se de costas e Kira tocou-lhe o ombro; quando ficou de frente, Kira não ousou olhar em seus olhos. – Perdão, senhora, mas se o médico já examinou o corpo, Ariel não poderia segurá-lo? Só um minutinho? A enfermeira Hardy suspirou, o cansaço alquebrando sua rígida fachada profissional. 11
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– Olhe, Kira – disse –, sei como você progrediu rápido no programa de estágio. Está claro que possui aptidão para a virologia e a análise RM, mas a habilidade técnica é apenas metade do trabalho. Precisa estar preparada, emocionalmente, ou a maternidade vai te engolir. Você está conosco há três semanas, esta é sua décima criança morta. É a minha criança número 982. Eu me lembro de cada uma delas. – Ficou quieta, seu silêncio se arrastando por mais tempo que o esperado por Kira. – Precisa aprender a seguir em frente. Kira olhou na direção de Ariel, chorando e batendo na janela de vidro espesso. – Sei que você perdeu muitas delas, senhora. – Kira engoliu. – Mas esta é a primeira de Ariel. A enfermeira Hardy olhou-a fixamente por um longo período, uma sombra distante em seus olhos. Finalmente, virou-se. – Sandy? Outra jovem enfermeira, que carregava o pequeno corpo, levantou o olhar. – Desembrulhe a bebê – disse a enfermeira Hardy. – A mãe vai segurá-la. Kira terminou os relatórios cerca de uma hora depois, bem a tempo de comparecer à assembleia no Senado. Marcus a recebeu no saguão de entrada com um beijo, e ela tentou deixar para trás a tensão da noite anterior. Marcus sorriu e ela devolveu-lhe um sorriso delicado. A vida era sempre mais fácil com ele por perto. Deixaram o hospital e Kira piscou ao receber a explosão de luz natural em seus olhos. O hospital era como um bastião tecnológico no centro da cidade, tão diferente das casas em ruínas e ruas com o mato alto, que até poderia ser confundido com uma nave espacial. Claro que a pior parte de toda aquela sujeira já havia sido limpa, mas os sinais do Break ainda estavam em todo lugar, mesmo onze anos depois: carros abandonados tornaram-se barracas de peixe e vegetais; os gramados dianteiros foram transformados 12
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em hortas e galinheiros. Um mundo outrora civilizado – o mundo antigo, o mundo antes do Break – era agora uma ruína emprestada de uma cultura apenas um degrau acima da Idade da Pedra. Os painéis solares que alimentavam o hospital eram um luxo que a maior parte da população de East Meadow apenas sonhava possuir. Kira chutou uma pedra na rua. – Acho que não consigo fazer isso. – Você quer um jinriquixá1? – perguntou Marcus. – Não estamos longe do coliseu. – Não quis dizer caminhar – respondeu Kira. – Quis dizer o hospital, os bebês. Minha vida. – Lembrou-se dos olhos das enfermeiras, sem vida, avermelhados e cansados, tão exageradamente cansados. – Você sabe quantos bebês vi morrer? – perguntou mansamente. – Bem ali na minha frente? Marcus segurou sua mão. – A culpa não é sua. – Faz alguma diferença de quem é a culpa? – perguntou Kira. – Eles continuarão mortos do mesmo jeito. – Ninguém salvou uma criança desde o Break – disse Marcus –, ninguém. Você está estagiando no hospital há três semanas. Não pode ficar se punindo por não fazer algo que nem mesmo os médicos e pesquisadores têm sido capazes de fazer. Kira parou, encarando-o; ele não poderia estar falando sério. – Está tentando me fazer sentir melhor? – perguntou. – Dizer que é impossível salvar a vida de uma criança é realmente uma tentativa muito estúpida de me confortar. – Você sabe que não é isso que quero dizer – disse Marcus. – Só estou dizendo que não é você, pessoalmente. Foi o vírus RM que matou aquelas crianças, não Kira Walker. Espécie de carroça de duas rodas, com capacidade para duas pessoas, puxada por um homem a pé. (N.E.)
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Kira lançou o olhar ao longo da via expressa que se alargava à frente deles. – É uma forma de encarar a situação. A multidão aumentava à medida que se aproximavam do coliseu; talvez o local ficaria cheio, o que não acontecia há meses. A população não lotava o coliseu desde que o Senado aprovara a última emenda à Lei da Esperança, derrubando a idade de gravidez para dezoito anos. Kira sentiu um inesperado nó no estômago e fez uma careta. – Sobre o que você acha que é esta “reunião de emergência”? – Conhecendo o Senado, alguma coisa entediante. Vamos pegar um lugar próximo à porta, assim podemos escapar se Kessler começar com outra diatribe. – Você não acha que será importante? – perguntou Kira. – Será, no mínimo, autoimportante – disse Marcus. – Sempre se pode confiar no Senado quanto a isso. – Ele sorriu para ela, viu o quanto estava séria, e franziu o cenho. – Se quer um palpite, diria que vão falar sobre a Voz. Pela manhã, o assunto no laboratório era que atacaram outra fazenda esta semana. Kira olhou para a calçada, propositalmente evitando seus olhos. – Você acha que vão baixar a idade de gravidez de novo? – Tão rápido? – perguntou Marcus. – Nem se passaram nove meses ainda. Não acredito que abaixem a idade mais uma vez antes que as garotas de dezoito deem a luz. – Abaixariam – disse Kira, ainda cabisbaixa. – Fariam isso porque a Lei da Esperança é a única medida que conhecem para lidar com o problema. Acreditam que se tivermos bebês o bastante, um deles estará destinado a ser resistente; mas não está funcionando, e não funciona há onze anos. Engravidar um bando de adolescentes não vai mudar nada. – Ela soltou a mão de Marcus. – É a mesma coisa no hospital: eles cuidam das mães, mantém tudo esterilizado, recolhem todos os dados, e os bebês continu14
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am morrendo. Sabemos exatamente como morrem. Sabemos tanto sobre como eles estão morrendo que só de pensar nisso fico doente. Mas não sabemos absolutamente nada sobre como salvá-los. Engravidamos um monte de jovens garotas e tudo que vamos conseguir são mais bebês mortos e mais cadernos cheios da mesma estatística exata de como morreram. – Ela sentiu a face ruborizar e as lágrimas brotando em seus olhos. Algumas pessoas olhavam para ela enquanto passavam pela via expressa; muitas das mulheres estavam grávidas, e Kira sabia que algumas delas ouviram seu desabafo. Ela engoliu em seco e deu um abraço apertado em si mesma, sentindo raiva e vergonha ao mesmo tempo. Marcus aproximou-se e colocou o braço em volta dos ombros de Kira. – Você está certa – murmurou. – Você está absolutamente certa. Ela o abraçou. – Obrigada. Alguém gritou do meio da multidão. – Kira! Kira levantou o olhar, secando os olhos com as costas da mão. Madison estava acenando animadamente do meio da multidão. Kira não conseguiu segurar o sorriso. Madison era dois anos mais velha, mas haviam crescido juntas, praticamente irmãs na família temporária que as acolhera após o Break. Kira levantou a mão e retribuiu o aceno. – Mads! Madison os alcançou e abraçou Kira calorosamente. Seu novo marido, Haru, vinha alguns passos atrás. Kira não o conhecia muito bem: ele estava na Rede de Defesa quando ela e Madison se conheceram, e só foi transferido para um cargo civil quando eles se casaram alguns meses atrás. Ele apertou a mão de Kira e inclinou solenemente a cabeça para Marcus. Kira perguntou-se mais uma vez como Madison havia se apaixonado por alguém tão sério, mas imaginou que todo mundo era sério quando comparado com Marcus. – Que bom ver você – disse Haru. 15
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– Você pode me ver? – perguntou Marcus, apalpando a si mesmo, em súbito choque. – O efeito do elixir deve ter vencido! Esta é a última vez que troco o almoço com um grilo falante. Madison riu, e Haru levantou a sobrancelha, confuso. Kira o observava, esperando, até a falta de humor dele ser tão engraçada que ela não aguentaria e também explodiria numa risada. – Como vão vocês? – perguntou Madison. – Sobrevivendo – disse Kira. – Ou quase isso. Madison fez uma careta. – Noite difícil na maternidade? – Ariel teve o filho. Madison ficou pálida e seus olhos mergulharam em genuína tristeza. Kira podia ver o quanto aquilo era doloroso para a amiga, agora que ela já tinha quase dezoito. Madison ainda não estava grávida, mas era apenas uma questão de tempo. – Sinto muito. Vou voltar com você depois da assembleia para dizer um “oi” a ela e ver se tem algo que eu possa fazer. – É uma boa ideia – concordou Kira –, mas terá que fazer isso sem a minha presença, temos uma missão de resgate hoje. – Você passou a noite toda acordada! – protestou Madison. – Não podem forçá-la a participar de uma missão. – Vou tirar um cochilo antes de sair – disse Kira. – Preciso ir. O trabalho tem sido muito desgastante e posso me beneficiar com a mudança de ritmo. Além disso, preciso provar a Skousen que sou capaz. Se a Rede de Defesa quer uma médica na sua equipe de resgate, então serei a melhor médica que eles já tiveram, pode apostar. – Eles têm sorte de contar com você – disse Madison, abraçando-a outra vez. – O Jayden vai? Kira fez que sim com a cabeça. – É o sargento no comando. 16
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Madison sorriu. – Dê um abraço nele por mim. Jayden e Madison eram irmãos – irmãos de sangue, não adotivos –, os únicos parentes diretos que sobraram no mundo. Diziam que eles eram o indício de que a imunidade ao RM poderia ser hereditária, o que tornava ainda mais frustrante o fato de que nenhum recém-nascido, até o momento, fosse imune ao vírus. Na opinião de Kira, era mais provável que o caso de Madison e Jayden fosse uma anomalia que talvez jamais se repetisse. Jayden era também um dos humanos mais atraentes deixados no planeta, como Kira quase sempre comentava com Madison. Kira lançou a Marcus um olhar travesso. – Só um abraço? Eu poderia transmitir a ele um beijo ou dois. Marcus olhou meio sem jeito para Haru. – Então, alguma ideia sobre o que vai ser a reunião? Kira e Madison riram, e ela suspirou de alegria. Madison sempre a fazia sentir-se melhor. – Estão fechando a escola – disse Haru. – Os garotos mais novos da ilha estão completando catorze anos, e agora praticamente há mais professores que alunos. Acho que todos vão se formar, mais cedo, em cursos profissionalizantes, e vão enviar os professores para algum lugar onde sejam mais úteis. – Você acha? – perguntou Kira. Haru deu de ombros. – É o que eu faria. – Provavelmente vão ficar tagarelando sobre os Partials, de novo – disse Madison. – Os senadores não conseguem permanecer de boca calada quando o assunto é esse. – E você pode culpá-los? – perguntou Haru. – Os Partials mataram todos sobre a face da Terra. – Com exceção deste que vos fala – disse Marcus. 17
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– Não estou dizendo que eles não eram perigosos – disse Madison –, mas já se passaram onze anos desde que foram vistos pela última vez. A vida continua. Além disso, está claro que agora temos problemas maiores para enfrentar. Acho que vão falar sobre a Voz. – Vamos descobrir muito em breve, acredito – disse Kira, apontando a cabeça na direção norte; o coliseu era visível logo além das árvores. O Senado tinha seu próprio prédio, sem dúvida, numa prefeitura de verdade, mas assembleias como esta, quando a cidade inteira era convocada a comparecer, eram realizadas no coliseu. O local raramente recebia pessoas o suficiente para lotar suas dependências, mas os mais velhos contavam que ele costumava ficar cheio, nos velhos tempos, quando era usado para esportes. Antes do Break. Kira tinha apenas cinco anos no Break; a maioria das coisas sobre o velho mundo ela sequer se lembrava, e não confiava em metade do que lembrava. Recordava-se do pai, o rosto escuro e os cabelos negros desalinhados, a armação grossa dos óculos empurrada até a base do nariz. Viviam numa casa de dois níveis – ela estava quase certa de que era amarela – e quando fez três anos, ganhou uma festa de aniversário. Não tinha nenhum amigo da sua idade, por isso não havia crianças na festa, mas a maioria dos amigos do seu pai estava lá. Recordou-se da caixa de brinquedos cheia de animais de pelúcia, e que queria mostrá-los para todos. Então ofegou e fez força, empurrando a caixa pelo corredor. Na sua cabeça, parecia ter se passado meia hora ou mais, mas ela sabia que não poderia ter levado tanto tempo assim. Quando finalmente alcançou a sala de estar, gritou para todos olharem, seu pai riu e a repreendeu, levando tudo de volta para o quarto. Todo seu esforço virou pó, em segundos. A lembrança não a incomodava; jamais pensou no pai como um homem mau ou injusto. Era apenas uma lembrança, uma das poucos que ela tinha da sua vida no velho mundo. A multidão estava agora maior, as pessoas se espremiam ao passarem pelas árvores ao redor do coliseu. Kira segurava firme em Marcus com uma 18
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mão e em Madison com a outra. Haru os seguia como o final de uma corrente humana. Eles abriram caminho através da massa de pessoas e encontraram uma fileira de lugares vazios – perto da porta, como Marcus queria. Kira sabia que ele tinha razão: se o senador Kessler embarcasse em mais um discurso bombástico, ou se o senador Lefou começasse a falar sobre o horário dos carregamentos ou qualquer outro assunto enfadonho em que ele estivesse envolvido naquele mês, eles precisariam de um meio fácil para dar o fora. Comparecimento compulsivo era uma coisa, mas depois que o assunto importante estivesse terminado, eles não seriam os únicos a ir embora cedo. Enquanto os senadores lotavam o tablado no centro do coliseu, Kira mexia-se desconfortavelmente no seu lugar, ponderando se Haru estaria certo. Havia um total de vinte senadores e Kira reconhecia cada um deles, embora não soubesse seus nomes. Um dos homens, entretanto, era novo: alto, escuro, robusto. Estava parado como um oficial do exército, mas seu terno era simples e de um civil. Ele cochichou algo para o Dr. Skousen, o senador representante do hospital; então misturou-se à multidão. – Bom dia. A voz ressoou pelo imponente estádio, ecoando através dos alto-falantes e escapando pelo teto. O centro do coliseu iluminou-se com uma gigantesca imagem holográfica do senador Hobb. Havia vinte senadores, mas eles sempre deixavam Hobb assumir a liderança nas assembleias fazendo os comentários iniciais e transmitindo a maioria dos avisos. Ele definitivamente era o mais encantador. – A assembleia está aberta – continuou o senador Hobb. – Estamos todos muito contentes de vê-los aqui; é importante que vocês participem do governo, e estas reuniões abertas são a melhor maneira de cada um se manter conectado. Neste momento, gostaríamos de fazer um agradecimento especial à Rede de Defesa de Long Island, particularmente ao sargento Stewart e sua equipe, por girarem manualmente as manivelas dos geradores à noite toda aqui no coliseu. Como havíamos prometido, estas reuniões nunca reti19
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ram e nunca irão retirar energia da comunidade. Houve poucos aplausos e Hobb sorriu gentilmente enquanto esperava o som das palmas desaparecer. – Bem, vamos começar com nossa primeira ordem do dia. Srta. Rimas, poderia se juntar a mim na tribuna? – São as escolas – disse Kira. – Eu disse – falou Haru. A Srta. Rimas era a chefe do sistema escolar de East Meadow, que foi minguando com o tempo, até sobrar uma única escola na qual agora atuava como diretora. Kira ouvia com a mão sobre a boca enquanto a senhora falava orgulhosamente do trabalho que suas professoras realizavam, o sucesso que o sistema demonstrara ao longo dos anos e as grandes conquistas dos alunos formados. Era uma despedida, um olhar retrospectivo triunfante sobre o trabalho árduo e a dedicação das professoras, mas Kira não conseguia evitar o enjoo. Não importava como a história era contada, o quanto tentavam enfatizar o lado positivo, a verdade nua e crua era simplesmente que não havia mais crianças. Estavam fechando a escola porque ficaram sem crianças. As professoras tinham feito seu trabalho, mas os médicos não. O ser humano mais novo no planeta, até onde todos sabiam, completaria quatorze anos em um mês. Era possível a existência de sobreviventes em outros continentes, mas ninguém conseguira fazer contato com eles. Com o passar do tempo os refugiados em Long Island acabaram por acreditar que estavam sozinhos e que o mais novo deles era o mais novo do mundo. Seu nome era Saladin. Quando o trouxeram para o palco, Kira não conseguiu conter as lágrimas. Marcus a enlaçou e juntos ouviram os discursos e as congratulações. Os alunos mais novos estavam sendo levados precocemente para os cursos profissionalizantes, como Haru havia previsto. Dez deles haviam sido aceitos no programa pré-médico que Kira acabara de concluir; em um ano ou dois começariam a estagiar no hospital, assim como ela. Alguma coisa seria diferente, então? Os bebês continuariam morrendo? As enfermeiras continuariam 20
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assistindo-os morrer e documentando as estatísticas e os embrulhando para o enterro? Quando tudo isso terminaria? Enquanto cada professor ficava em pé para dizer adeus e desejar aos alunos seus melhores votos, o coliseu permaneceu silencioso, quase reverente. Kira sabia que as outras pessoas estavam pensando o mesmo que ela. O fechamento das escolas era como o encerramento do passado, a consciência final de que o mundo estava acabando. Quarenta mil pessoas deixadas no planeta e nenhuma criança. E nenhuma perspectiva de que algum dia elas ressurgiriam. A última professora falou calmamente, despedindo-se de seus alunos, entre lágrimas. As professoras também estavam entrando para as escolas profissionalizantes, mudando de emprego e de vida. Esta última professora irá juntar-se a Saladin na Comissão de Animais, treinando cavalos, cachorros e águias. Kira sorriu ao ouvir aquilo. Se era preciso que Saladin crescesse, pelo menos poderia continuar brincando com um cachorro. A última professora sentou-se e o senador Hobb caminhou até o microfone, mantendo-se calmo sob a luz do holofote. Sua imagem tomou todo o coliseu, solene e perturbado. Manteve-se imóvel por um momento, recolhendo os pensamentos, então olhou para o público com olhos azuis cristalinos. – As coisas não precisavam ser assim. A multidão murmurou, um barulho correu o estádio como uma onda, enquanto as pessoas sussurravam e se entreolhavam. Kira percebeu que Marcus olhava para ela, segurou firme a mão dele e manteve os olhos grudados no senador Hobb. – A escola não precisa fechar – disse calmamente. – Mal temos vinte crianças em idade escolar em East Meadow, mas na ilha inteira existem mais. Muito mais. Uma fazenda em Jamesport tem dez crianças, quase tão jovens quanto Saladin, eu mesmo as vi. Segurei suas mãos. Implorei para que viessem para cá, onde é seguro, onde a Rede de Defesa pode protegê-las, mas 21
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não vieram. As pessoas que estão com elas, seus pais adotivos, não permitiram. E apenas uma semana depois da minha partida, apenas dois dias atrás, a Voz, a suposta voz do povo, atacou a fazenda. – O senador fez uma pausa para se recompor. – Enviamos soldados para recuperar o que for possível, mas temo pelo pior. O holograma do senador Hobb observou atentamente o coliseu, atravessando as pessoas com seu olhar intenso. – Onze anos atrás, os Partials tentaram nos destruir, e eles fizeram um trabalho dos diabos. Nós os construímos para serem mais fortes que nós, mais rápidos que nós, para lutar por nós na guerra de isolamento. Eles não tiveram a menor dificuldade em ganhar aquela guerra, e quando se voltaram contra nós, cinco anos mais tarde, não precisaram de muito tempo para nos varrer da face do planeta, especialmente depois de lançarem o vírus RM. Aqueles que sobreviveram vieram para esta ilha, sem nada: quebrados, fragmentados, mergulhados no desespero. Mas sobrevivemos. Reconstruímos. Estabelecemos um perímetro defensivo. Encontramos comida e abrigo, criamos energia e estabelecemos um governo e uma civilização. Quando descobrimos que o RM não pararia de matar nossas crianças, aprovamos a Lei da Esperança para maximizar nossas chances de dar à luz uma nova geração de humanos resistentes ao vírus. Graças a essa lei e a nossa incansável força médica, estamos cada dia mais perto de realizar esse sonho. O senador Hodd acenou com a cabeça para o Dr. Skousen, sentando ao lado dele na tribuna, então levantou novamente o olhar. Seus olhos estavam sombrios e solenes. – Mas, no meio do caminho, algo aconteceu. Alguns decidiram se separar de nós. Alguns se esqueceram do inimigo que continua à espreita no continente, observando-nos e aguardando, e se esqueceram do inimigo que impregna o ar que nos rodeia, impregna nosso próprio sangue, matando nossas crianças, como matou tantos dos nossos familiares e amigos. Agora, alguns decidiram que a civilização que construímos para nos proteger é, de 22
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alguma forma, nosso inimigo. Há algum tempo a nossa batalha ainda era pelo que é nosso, agora enfrentamos uns aos outros. Desde a aprovação da Lei da Esperança, há dois anos, a Voz, esses gângsteres, esses criminosos armados, sob o disfarce zombeteiro de revolucionários, têm incendiado nossas fazendas, saqueado nossas lojas, assassinado seus próprios irmãos e irmãs, mães e pais e, Deus nos ajude, suas próprias crianças. Porque é isto que somos: somos uma família. Não podemos pagar o preço de brigarmos entre nós. E seja qual for a motivação que os alimenta, qual a bandeira que levantem, a Voz, vamos chamá-los do que realmente são: bárbaros. Eles estão apenas terminando o trabalho que os Partials começaram. E não vamos permitir que façam isso. – Sua voz era dura, a força da pura determinação. – Somos uma única nação, um único povo, uma só vontade. – Houve uma pausa. – Ou deveríamos ser. Gostaria de transmitir notícias mais animadoras, mas a Rede de Defesa encontrou uma equipe de ataque da Voz saqueando um depósito de mantimentos, ontem à noite. Querem saber onde? Conseguem adivinhar? Algumas pessoas na multidão gritaram, a maior parte apostando nas fazendas das cercanias e nas vilas de pescadores, mas a gigantesca imagem holográfica balançou a cabeça, tristemente. Kira olhou para o homem de carne e osso, lá embaixo, uma figura minúscula metida num terno marrom surrado, que sob a luz do holofote era quase branco. Ele virou-se lentamente, balançando a cabeça, enquanto a multidão gritava o nome de localidades de todas as partes da ilha. O senador, imóvel, apontou para o chão. – Aqui mesmo – disse. – Na verdade, logo ali, ao sul da via expressa, na antiga escola Kellenberg. Foi um ataque de pequenas proporções, mas, mesmo assim, eles estavam bem ali. Quantos de vocês vivem próximo dali? – Ele levantou a mão, assentindo com a cabeça para os outros na multidão que igualmente levantavam a deles. – Sim – disse –, vocês moram bem ali. Eu moro ali, é o coração da nossa comunidade. A Voz já não está mais na floresta, está bem aqui, em East Meadow, em nossa própria vizinhança. Eles querem nos separar de dentro para fora, mas não vamos permitir que consigam! 23
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– A Voz se opõe à Lei da Esperança – prosseguiu o senador. –Chamam isso de tirania, chamam isso de fascismo, chamam isso de controle. Nós a chamamos de nossa única chance. Queremos oferecer um futuro à humanidade; eles querem viver no presente, fazer tudo o que querem e matar qualquer um que tente impedi-los. Isso é liberdade? Se aprendemos alguma coisa nesses últimos onze anos, meus amigos, é que a liberdade é uma responsabilidade a ser merecida, não uma licença para a imprudência e a anarquia. Se algum dia finalmente sucumbirmos, apesar de nossos ferrenhos esforços e de nossa mais profunda determinação, que seja porque nossos inimigos, por fim, nos derrotaram e não porque nós mesmos nos derrotamos. Kira ouvia em silêncio, envolvida na gravidade do discurso. Ela não se deleitava com a ideia de engravidar tão rapidamente – em menos de dois anos atingiria a idade –, mas sabia que o Senado estava certo. O futuro era a coisa mais importante, certamente mais importante do que a hesitação de uma garota diante do próximo passo. A voz do senador Hobb era macia, inflexível e resoluta. – A Voz discorda da Lei da Esperança e decidiu expressar seu descontentamento usando o assassinato, o roubo e o terrorismo. Eles têm o direito de discordar; o problema são os métodos que empregam. Havia outro grupo que empregava os mesmos métodos – um grupo que não estava satisfeito com a situação e decidiram rebelar-se. Eles se chamavam Partials. A diferença é que os Partials não pensavam, não sentiam, eram assassinos não humanos. Matavam porque nós os construímos para isso. Os membros da Voz são humanos e, de certa forma, isso os torna ainda mais perigosos. A multidão murmurou. O senador Hobb baixou o olhar, limpou a garganta e continuou. – Existem coisas mais importantes que nós mesmos, mais importantes que os limites do presente e os caprichos do agora. Há um futuro a ser construído e protegido. E caso queiramos tornar esse futuro uma realidade, precisamos parar de brigar entre nós. Temos que dar um basta nas divergên24
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cias, onde elas estiverem. É necessário voltarmos a confiar no outro. O que estamos tratando aqui não diz respeito ao Senado ou à cidade, não é sobre a cidade e as fazendas, nem sobre um pequeno grupo ou facção. Somos nós. Toda a raça humana, unida numa só. Há pessoas lá fora que querem nos reduzir a migalhas, mas não vamos permitir que isso aconteça! A multidão clamou de novo, e desta vez Kira uniu-se a eles. Ainda que gritasse com os outros, não conseguia se livrar de uma inesperada sensação de medo, como dedos gelados apertando sua garganta.
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