Charcutaria ed 26 dez 2014

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GASTRONOMIA

A carne é forte

Pedro Wolff Fotos: Cacciatore / Divulgação

A expressão “enchendo linguiça” no vocabulário brasileiro é cruel. Afinal, o que nos vem à cabeça sobre o que contém aquele “saquinho animal”? Talvez melhor nem pensar nisso, mas importa saber que a linguiça deve ser feita de maneira a servir a alta gastronomia

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paradoxo nessa história foi que devido à desvalorização da linguiça na cozinha começou a sua valorização. É o que explica André Batista, 33 anos. Ele, que tem uma casa de charcutaria especializada, diz que as pessoas foram instigadas a fazer linguiças com os melhores cortes dos animais a partir do momento em que as indústrias foram autorizadas a preenchê-las com leite em pó, farinha de soja ou Carne Mecanicamente Separada (CMS, ou simplesmente os miúdos).

“Também não é inserida gordura de qualidade no alimento”, prossegue. Ele diz estar em busca de um fornecedor de um “porco mais sustentável”, um que seja criado solto e não confinado. Sobre isso, afirma escolher os suínos pelo tipo de gordura a partir de sua idade. No ritmo das coisas atuais, os porcos hoje atingem cem quilos com apenas seis meses. “Os porcos que eu escolho são no máximo de 40 quilos, que dá melhor qualidade à carne e menos gordura”.

Para se ter uma ideia, segundo os cálculos de André, um quilo de farinha absorve quatro litros de água, que vira massa para fazer um produto mais barato. “O quilo do porco vivo sai na média de R$ 5,40, enquanto no mercado você pode pagar até 7 reais pelo mesmo peso”, pontua. André informa que há linguiças com apenas 10% de carne suína na sua composição e que o consumidor não é avisado sobre os acréscimos em sua composição.

A parte do abate animal fica por conta da frigorífica, mas em sua fábrica começa o processo de fatiar a carne e inserir temperos para então deixar a massa descansar por 12h. Após isso, ele ensaca e espera mais um dia para que perca líquido. Devidamente embalado, ele leva para bares, restaurantes e pontos de venda. Super fresca, a validade é de 14 dias na geladeira e seis meses no congelador.

Desse espírito empreendedor nasceu em 2014 sua marca, a Cacciatore, “caçador” em italiano, que revela seu desejo de trabalhar com carne de caças. Devido a sua formação e atuação como chef de cozinha, André diz que, além das partes nobres do animal, começou a implementar combinações de temperos que jura que está dando o que falar. Entre várias outras, as especiarias utilizadas em suas composições vão de nirá, cebolinha japonesa, óleo de gergelim e curry vermelho a pequi. Passando uma variedade de qualidades de pimentas e vinhos, cebola com caramelização à francesa, chimichurri e segue lista. Para a reportagem, prometeu em breve a criação de um sabor de carne de javali, alfavaca e pimenta de bode. O especialista em charcutaria, ou seja, técnico em conservar qualquer carne em sal, diz que suas linguiças são versáteis para servir como petisco de bar ou à alta gastronomia. No comércio, você pode encontrá-las servidas com trufas negras ou acompanhadas de risoto de abacaxi e chip de bacon. Ou mesmo sendo vendidas dentro de sanduíches em calçadas.

E a patrulha ideológica? “Os únicos que não comeram meus produtos foram os vegetarianos”, diverte-se. Ele diz que seu argumento contra os mais radicais é que o porco não é tão gordo como antigamente e que trabalha com 15% a menos de gordura, e consideravelmente menos aditivos químicos. E que não esconde de ninguém que não é um alimento leve e, como tudo na vida, tem que saber dosar na sua dieta. “Assim como todo embutido, não é aconselhável comer todo dia”. E que está na Terra para servir ao prazer de contemplar o paladar, engordar e ser feliz. E avança: por mais que as pessoas “encham o saco” por conta de gordura, sem ela a carne fica seca e sem sabor. E diz que, para quem aprecia, é uma tentação ao paladar uma pancetta, receita italiana onde a barriga do suíno curada é amarrada com barbante por 60 dias em temperatura de 16ºC e 80% de umidade. Sua argumentação vai também para quem defende uma vida mais natural, “pois ninguém morria dessas coisas antigamente”. Sua bisavó faleceu com 86 anos e sua avó com 90. Nas fazendas onde elas moravam, que hoje virou água para a construção da Barragem de Corumbá IV, elas enchiam as linguiças com temperos do pomar e ficavam defumando em cima do fogão a lenha. “E adquiria aquela coloração marrom, resultado da oxidação que as tornava maravilhosas”, encerra.

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