REVISTA PENALUX
N. 3 | JULHO | 2019
ENTREVISTA
Maria Valéria Rezende e o livro de contos A face serena
PROSA&VERSO
Trecho do livro Mar de Rosas, de Raquel Naveira Poema do novo livro de José Eduardo Degrazia
RESENHAS
Variações do exílio, de Fiori Esaú Ferrari Aquele mês de abril, de Goimar Dantas O Sal do Leviatã, de Alexandre Guarnieri A depressão tem sete andares e um elevador, de Isabela Sancho A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, de W. J. Solha
E MAIS
Vitrine de lançamentos, clique de leitores e a nova seção Lux Press 1
revista penalux | julho 2019
REVISTA PENALUX
N. 3 | JULHO | 2019
expediente EDIÇÃO Wilson Gorj | Tonho França CONTEÚDO VISUAL, CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO Equipe Penalux: Yanara de Oliveira | Rayane Paz | Dáblio Jotta | Carlos Saldanha Mancur REVISÃO Marcos Vinícius Almeida PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Rafael Voigt CAPA
Imagem obtida em <br.depositphotos.com>
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Alexandra Vieira de Almeida Anderson Borges Costas José Fontenele Marcelo Frota Paulo Rodrigues Rodrigo Caldas
revista penalux | julho 2019
Rua Marechal Floriano, 39 - Centro Guaratinguetá, SP | CEP: 125000-260 penalux@editorapenalux.com.br www.editorapenalux.com.br
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editorial
Caros amigos, Por precipitado que seja (afinal, este é ainda o terceiro número), podemos já nos orgulhar do sucesso da nossa revista. São milhares de visualizações, centenas de downloads. Além disso, vários autores têm nos procurado com o intuito de participar das próximas edições. Nesse sentido, embora tal procura nos lisonjeie, vale reforçar o propósito da revista, que é de trazer um conteúdo exclusivamente formado em torno das publicações da editora Penalux; ou seja, o propósito continua sendo o de manter uma revista-catálogo, com a finalidade de apresentar nossos títulos sob diversos aspectos. Mas o fato de o material apresentado ser pertinente apenas aos autores do nosso catálogo não impede que a revista seja também atraente para além dos leitores que já nos acompanham. Nesta nova edição, trazemos mais conteúdo textual, um prato cheio para quem ama ler. Este terceiro número da Revista Penalux vem aumentado de resenhas e textos apresentando os livros recém-lançados. Tem ainda uma deliciosa entrevista com a escritora Maria Valéria Rezende, que em 2017 publicou pela Penalux a obra A face serena, livro de contos que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2018. Isso e muito mais esperam você, leitor, nas páginas que sucedem a esta. Vamos à leitura! Os editores
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cartas à redação Que formidável surpresa! Estava lendo a revista aqui. Ficou excelente, diagramação, layout, matérias selecionadas, tudo de primeira. Um belíssimo trabalho dos editores. E não digo isso em razão de ter meu nome e obra lembrados nesta edição caprichada [nº 2/ maio]. É porque a revista está realmente show! A Editora Penalux sempre inovando e cada vez se consolidando no mercado editorial. Tenho uma satisfação enorme por fazer parte desse time. Obrigado. Parabéns! Neurivan Sousa, poeta
Uma beleza esse trabalho editorial da Revista Penalux. As duas edições estão impecáveis. Os autores devem se orgulhar de compor um catálogo tão rico e variado. Li todo o material e posso dizer: vocês são profissionais altamente qualificados e sérios. Não parem. A literatura nacional precisa de gente assim. Broca Jr., historiador e revisor
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entrevista
Maria Valéria Rezende Autora do volume de contos A face serena, livro finalista do Prêmio Jabuti 2018, é prolífica e multipremiada escritora
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foto: el país (reprodução)
Sempre escrevi contos. Especialmente desde 2004, quando criamos em João Pessoa o Clube do Conto da Paraíba. Era um conto por semana, sobre tema previamente combinado entre todos, para ser lido e criticado nos encontros dos sábados.
Maria Valéria, você acaba de lançar um novo romance: Carta à Rainha Louca (Alfaguara). O livro é fruto de uma longa pesquisa e imersão no século 18, que resultou nesse romance epistolar protagonizado pela personagem Isabel das Santas Virgens, situado em uma época em que no mundo despontam as raízes do que viria a ser o feminismo, por exemplo, com trabalhos como o de Olympe de Gouges e sua Declaração dos Direitos da Mulher (1892). Como foi o processo de escrita de Carta à Rainha Louca? No princípio dos anos 70, a pedido da Ação Católica Operária, eu me pus a pesquisar para escrever uma História da Classe Operária no Brasil, que não existia nem numa escrita acadêmica. Para responder a essa demanda dos trabalhadores, meti-me a historiadora e fiquei conhecida pelos próximos como “aquela que sabe escrever em linguagem popular”. Veio logo outra revista penalux | julho 2019
demanda: uma versão popular da história da Igreja no Brasil, período colonial, do ponto de vista dos pobres e oprimidos, surgindo então meu livro Não se pode servir a dois senhores (1980). Por isso, acabei indo para o México em 1980, fazer uma pós-graduação em História da América Latina, especialmente da Igreja. Como projeto de pesquisa escolhi estudar a mulher na Igreja Latino-americana. Nos arquivos consultados nessa época, quase não achava nada dito por mulheres em primeira pessoa, senão textos das freiras, que eram bem alfabetizadas e tinham a liberdade para escrever. Lendo esses documentos, percebi uma nova leitura possível do conjunto da sociedade colonial, e continuei pesquisando, mais por interesse pessoal no assunto. Numa dessas pesquisas, encontrei no AHU uma carta de próprio punho de uma mulher do século XVIII, da região das Minas Novas, defendendo-se da acusação de tentar criar um 6
Ainda sobre A face serena, como surgiram as narrativas desse livro? Foram preparadas para esse projeto ou resultam de um acúmulo, de textos que foram surgindo quase que de forma paralela a outros livros lançados? Por causa do meu engajamento no Clube do Conto, durante anos escrevi quase cinquenta contos por ano... conforme o grupo crescia, os contos tiveram de ser mais curtos, para que houvesse tempo de ler e comentar os trabalhos de todos. Eu ia guardando minha produção num “baú”... alguns tornaram-se o primeiro ou o décimo capítulo de um romance... até que resolvi revê-los todos e escolher e organizar livros. Percebi que uma série deles lidava, de alguma forma, com vida e morte ao longo da existência, como se desenvolvessem os versos de Vinícius de Moraes, “a gente mal nasce, começa a morrer”. Assim compus “A face serena”.
convento clandestino na região das Minas, o que era proibido pela Coroa. Não havia, junto à carta, mais nenhuma informação. Fiquei com essa mulher na cabeça, por anos, imaginando o que teria sido a história dela e desejando dar-lhe voz, que a ouvissem. Quando comecei a publicar ficção, veio-me a ideia de que um romance seria a melhor maneira de fazer isso... e em forma de carta, já que uma carta tinha sido a faísca inicial. Então me pus, há mais de 10 anos, a escrevê-la. Informações sobre o contexto e seus fatos eu tinha bastante, mas como me dei o desafio de escrever numa linguagem plausível para uma mulher instruída, no século XVIII, mas ao mesmo tempo legível no século XXI, foi um trabalho enorme, que eu não teria conseguido terminar em fevereiro de 2018 se não tivesse tido o apoio do Itaú Rumos, e me dedicado inteiramente ao livro, deixando por um tempo de fazer traduções que ajudam a pagar as contas...
Os contos de A face serena são acessíveis a um público amplo. Na sua trajetória, você também produziu livros para o público infanto-juvenil. Tanto nesta parte de sua produção quanto naquela voltada para o público adulto, pode-se observar alguma relação com sua atuação no campo da educação popular? Para você, qual o lugar da literatura no processo educacional? Certamente, sim! Ser Educadora Popular na linha impulsionada por Paulo Freire é, em grande parte, ouvir e contar ou recontar histórias. Escrevo quase sempre com a ilusão de que meus personagens, quase todos pobres e invisíveis, se as lerem, vão compreendê-las e reconhecer a realidade de que falo. É para eles que eu escrevo. E por isso mesmo sempre me engajei quanto pude na formação de leitores, lá onde os livros não costumam chegar, mas as histórias sim, pela fala rica e espontânea do povo. A literatura o que faz é ampliar muito mais essa possibilidade de trocar histórias entre nós, humanos, que, me parece, é o que nos constrói como tal, além de que nos cura de muitos males
Pela editora Penalux, você lançou o volume de contos A face serena (2017), finalista do Prêmio Jabuti. Como é transitar entre diferentes gêneros ficcionais? Você tem preferência por algum? Sempre escrevi contos. Especialmente desde 2004, quando criamos aqui em João Pessoa o Clube do Conto da Paraíba. Era um conto por semana, sobre tema previamente combinado entre todos, para ser lido e criticado nos encontros dos sábados. Um enorme estímulo para escrever, e a liberdade de experimentar como quiséssemos, num processo que hoje sabemos que é uma oficina de escrita sem mestre. Aliás, acho que meus romances contém dentro de si vários contos, e ultimamente percebo que talvez contenham também poemas. Desde criança me interessei e brinquei de fazer haicais, já que me criei na Baixada Santista, cuja cultura integrou também uma grande contribuição japonesa. Então, não me causa dificuldade a questão dos gêneros. Passa-me uma faísca pela cabeça, começo a escrever e vejo no que dá! 7
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livros são fotogênicos cliques de leitores
livro: O grande deus Pã, romance, Arthur Machen (2017) foto: @oleitor_compulsivo
livro: Corações ruidosos em queda livre, contos, Alex Sens (2017) foto: @jonathantavaresbr
livro: Domingo é dia de morrer, contos, José Valdemar de Oliveira (2017) foto: @rapha.prestes
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livro: Avesso reverso (2018), poesia, Lorena Brites. foto: @whatimreadingbells
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vitrine Anna Mariano. Apenas por nós choramos poesia | 14x21 | 100 p. | 2019
Apenas Por Nós Choramos é um lembrete sobre a dor que colocamos para debaixo do tapete, a fim de esquecermos de lidar com ela. A autora Anna Mariano evoca as grandes e pequenas dores do cotidiano, e, dentro das dores mundiais, das grandes tragédias, também nos lembra das angústias pequenas e individuais que ali se encontram. As palavras serenas, mas de profunda dureza, emanam como uma antiga cantiga, cantada por vozes ancestrais, deusas anciãs. Marianno traz para os leitores não uma ode à tristeza, mas um pequeno aviso de que as sombras existem e elas o moldam, mesmo que você as ignore. Há de se fazer tempo para as lágrimas rolarem: não há quem chore por nós além de nós. editorapenalux.com.br/loja/apenas-por-nos-choramos
Caio César. Manual para deixar de ser trouxa prosa | 14x21 | 134 p. | 2019
Do que se trata este livro? São textos que nos fazem refletir sobre o sentido de tudo que ocorre ao nosso redor – e pensar em alguns questionamentos. Mais do que deixar de ser trouxa, estas páginas são um convite a respeitar o seu próprio eu, e perceber que tudo tem seu tempo para acontecer; deixar coisas novas fluírem faz parte do ciclo da vida. É preciso compreender que todo mundo já foi trouxa (ou ainda o é) e que, portanto, acontecimentos assim nos transbordam e ensinam cada vez mais como devemos pensar em nosso futuro, sem que precise de pessoas que sejam a nossa “metade da laranja”. editorapenalux.com.br/loja/manual-para-deixar-de-ser-trouxa
Elizeu Cardoso. Memórias do tempo romance | 14x21 | 116 p. | 2019
Os tempos são outros! Costumam dizer os mais antigos. Sou daqueles que vive e valoriza o presente. Não o futuro. O futuro serve apenas para projetarmos os nossos sonhos e persegui-los. Memórias do tempo reforça esse meu pensamento. Elizeu Cardoso saiu de Pinheiro. Mas Pinheiro não saiu dele... Do baú de suas memórias, emergem palavras bem-postas e dispostas de tal forma que o leitor não sente o tempo passar, como se fossem as águas mansas do Pericumã rumo ao mar distante. Deixe-se levar nesta agradável leitura. Embarque na carroça do tempo em que Pinheiro era aquele pacato lugarejo livre de zoada e se deleite ao ouvir a sonoridade das palavras há muito esquecidas. [por José Jorge Leite Soares] editorapenalux.com.br/loja/memorias-do-tempo
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resenha Paralelo 17: transcendência e indignação na poética de Luís Augusto Cassas não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade, e verdade. Tolstói
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ranscender é um verbo que joga a palavra para o céu. Busca a asa do colibri e sustentase no alto, com um bater quase mágico, ou melhor, divino. Tão rápido que nos cega. Perito na arte como um monge budista, sabe elevarse. Retrata muito bem o último livro de Luís Augusto Cassas, lançado pela Penalux, em 2018. Recebi a obra completa do Cassas pelos Correios. Fiquei entusiasmado com a qualidade deste consagrado poeta contemporâneo, dono de uma vasta produção. Premiado e detentor de uma fortuna crítica musculosa, capaz de apontar caminhos seguros para a literatura brasileira. Não resisti. Comecei a lê-lo pelo Paralelo 17. Coletânea dividida em seções didaticamente pensadas: "os meridianos de fogo", "o caminho das pedras azuis", "a face cinza da aurora, onde o vento faz a curva", "viagem ao DNA ancestral", "nuvens & pétalas" e "o vale da lua crescente". Todos os pontos importantes da poesia deste “poeta inédito” estão espalhados aí, numa cama de plumas. Álvaro Alves de Faria afirma na segunda página da apresentação: “o poeta está do lado dos que são honestos com a poesia, com o poema, consigo mesmo. Um poeta que simplesmente é poeta”. Estas conclusões ampliam o estudo do (círculo 17). Em "As purificações", o eu lírico experimenta a levitação pela palavra:
a palavra. o resto: purificações.
Há uma fuga da imanência, provocada pela voz poética, com o jogo de alteração real da vida, feito pelo elástico da metáfora. “A palavra é a única curva verdadeira”. Uma afirmação com a carnadura de premissa filosófica que nos ajuda a penetrar nas belezas transcendentes do Cassas. Por outro lado, a purgação, o desfazer-se das impurezas proposto já no título do poema, elevam a construção espiritual do poema. É um autor, portanto, desenhado na espiritualidade universal. Nesta mesma perspectiva, o texto "A necessidade é a mãe da liberdade" inaugura um olhar humano para o injustiçado no sistema capitalista, que representa uma parcela enorme do desejo de “apenas almoçar”: casaco cinza surrado sobre camiseta branca barbante nas calças o mendigo-iogue em greve de fome sentado em padmásana à porta do metrô latinha vazia ao lado c/ a inscrição: preciso almoçar, obrigado.
A constatação da inscrição é escatológica. Cassas leva a dureza da vida para a cena do
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poema, de maneira que, nos toca profundamente e nos sacode. Precisamos ferir os olhos. Eles precisam enxergar e transcender para um outro humano, mais coletivo/solidário. Em seguida, ele forma uma imagem coetânea. Há uma nítida inversão de valores em "A estranha arte do cuidado":
mente na realidade cósmica primordial, torna-se rival do pragmatismo neoliberal, por isso faz denúncias mesmo sem percebê-las, em muitos casos. Na imaginação de Cassas é possível inverter a lógica da exploração como observamos nos versos de "Avenida paulista (a profecia)":
os bichos os bichos estão bem cuidados os homens os homens é que comem lixo.
A palavra de Luís Augusto Cassas acende o fogo, nos sentidos de quem não sentia mais. Posso inclusive, apontar o diálogo entre o poema acima e "O Bicho" de Manuel Bandeira. Ambos são cartazes de denúncias. Não suportam mais a coisificação do homem. Há um sentimento de revolta na repetição de “os homens os homens”. Uma repulsa do quadro social injusto. Toda obra poética que mergulha profunda-
quando se cumprir a profecia de Isaias. e os lobos confraternizarem com os cordeiros. serão os mendigos servidos pelos banqueiros. e soarão trombetas de júbilo no universo inteiro.
O sonho, a esperança, a harmonia convivem com o poeta. Cassas alimenta o mistério da profecia como um cristão, apesar de ser estudioso Taoísta. A criatividade dele nos mostra um mundo novo e idealizado como o de Platão. A realidade cruel, talvez não atenda aos oráculos do poeta, no entanto, sua escrita é reflexiva, consciente, ao ponto de transcender. Finalizo com uma citação de Sophia de Mello Breyner Andresen, que parece ler os versos do Cassas: “a fidelidade à transcendência está ligada à imanência. A essência da palavra de Cristo está no Evangelho, na revelação. Mas essa revelação só pode ser entendida se o homem quiser ver bem o mundo à sua volta”. Paulo Rodrigues, professor de Literatura, poeta, escritor e autor dos livros O Abrigo de Orfeu (Penalux, 2017) e Escombros de Ninguém (idem, 2018). Membro efetivo da Academia Poética Brasileira.
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prosa&verso Quando entro em minha casa, prendo os cabelos e coloco óculos, assumo minha verdadeira identidade. É aí que posso circular livremente entre meus livros, buscar papéis nas estantes, observar com calma os ponteiros dos relógios. Fui uma criança míope, angustiada, até que comecei a usar óculos e enxerguei com alegria e perfeição o que estava escrito no quadro-negro, tão confuso para mim. Os óculos representaram um grande alívio, uma libertação. Mais tarde, lendo a novela “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa, uma narrativa profundamente lírica, que recria a vida captada pela perspectiva de uma criança, identifiqueime com o momento mágico em que Migulim descobre um universo novo e lindo, depois que um senhor vindo de fora lhe emprestou os óculos. O menino nem podia acreditar! Tudo era diferente: as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas, as formiguinhas passeando no chão. Chegou a ter tontura. Olhou para todos com força. Olhou os matos escuros de cima do morro, a casa, a cerca de feijão-bravo, o céu, o curral, o quintal. Olhou o gado, o verde dos buritis. Agora ele sabia como era bonito o Mutum, lugar em que vivia. Por ser míope, nunca me interessei por corridas, praia, carros, esportes ou pelo mundo exterior. Para mim o mundo sempre foi feito de sombras. Sentia-me bem lendo, fazendo tarefas, enfeitando meu caderno com cromos e canetas coloridas. Confortável era o meu interior. Belos os meus devaneios e sonhos.
Trecho da crônica "Óculos", do livro Mar de rosas, de Raquel Naveira (Penalux, 2018)
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DO OUTRO LADO Todo o centro da vida vai se fazendo aos poucos, aos rogos e fogos um jogo de dados um jogo de fados, ora se está de um lado, ora se está do outro. Mas a vida nunca é fardo, enquanto estamos aqui é melhor ser feliz. Do outro lado ninguém sabe, talvez nem nos cabe a vida para sempre, eterna. Aqui e agora é o nosso ser, depois, não tenho nada a dizer.
Poema do livro Parábola para unicórnios, de José Eduardo Degrazia (Penalux, 2019).
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resenha O lugar do imaginário em Variações do exílio
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m Variações do exílio (Penalux, 2018), do poeta Fiori Esaú Ferrari, encontramos a busca de um espaço imaginário habitado pela linguagem, um exílio em meio às trevas do mundo. Na epígrafe do livro, temos o primeiro momento do exílio, seu pai num campo de concentração. Os primeiros poemas são dedicados à figura paterna. É intensa a carga emotiva desta obra excepcional em nos alertar sobre as viagens de dentro, introspectivas e, as de fora, nos mais longínquos espaços do mundo. No poema que abre o livro, temos: “Fiquei pensando nas flores/ do jardim fazendo a manhã// Fui lá./ Reguei de carmim/a melancolia futura”. São densos os jogos metafóricos deste belíssimo livro que utiliza imagens inusitadas para se falar de experiências pessoais do eulírico com seus familiares e com o mundo. Há um embate tenso entre o local do mítico e o local da realidade. O controle do sofrimento em meio ao caos é trazido pelo imaginário, o poder de metaforizar o real transfigura sua imagem de dor em alegria e delicadeza. Dandolhe uma imagem, uma representação, o real se configura a partir do constructo místico em imagens ricas e originais utilizadas por Ferrari, que transfere a crueldade do mundo e estanca o sangramento da realidade que é puro tremor. Além dos espaços de dentro, o eu-lírico percorre sua cidade natal cheia de beleza,
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lembranças e saudades com as imagens cortantes das guerras ao redor do mundo, como nas crianças em Gaza, os refugiados em outros pontos do globo, revelando seu conhecimento histórico em meio à suavidade do mito. As imagens da memória da infância são constantes, o exílio no tempo também é outro lugar de sua imaginação, pois muito além dos espaços, há o tempo a corroer tudo com suas garras de destruição. Ferrai reconfigura o mito pela simbologia linguística, por seus intensos jogos imagéticos que fazem sangrar o real. O tom renovado de sua linguagem traz à tona o dom de renomear o mundo, e transfigurá-lo pela presença do ficcional: “O menino só precisava do vento, do sol e do quintal...” Reconfigurar estes espaços a partir da rememoração é sua chave secreta. O contato com a luz do sol pelo eu lírico é trazer para o sol da memória o passado vivo de suas lembranças. No poema “A flor”, temos: “Fiz uma pétala/ do papel vermelho/ sangue/ e lancei da janela/ do apartamento.// A cor apagou o sol,/ esparramou o horizonte,/ pontilhou de estrelas,/ lágrimas aceleradas,/ a noite na cidade.// Em neon/na esquina/ na garoa/ a pétala/ pulsava/ como um órgão/sem perfume.” Além dessa presença enigmática do sol, temos recortes abruptos em seus poemas. Após falar da delicadeza do menino, do filho numa linguagem bela e lírica, há um corte sangrento nas bordas do imaginário familiar 14
com a figuração histórica da crueldade. O eulírico busca o pacífico espaço do conforto, uma utopia em meio ao nada: “Eu me persignava,/a paz entre nações/do meu continente íntimo”. Assim, várias vozes formam o corpo de seu livro. A figuração da viagem serve como extravasamento do eu, um expandir-se do centro para os espaços do mundo. Da sua terra ao espaço estrangeiro, a viagem é de dentro e de fora. No interior do ser e no exterior das coisas. Portanto, a obra de Fiori Esaú Ferrari não é um canto
apenas triste das mazelas do mundo. Há a esperança de um lugar imaginário permeado pela linguagem dos símbolos. Com uma poesia de intensa carga emotiva, imagética e plural, Fiori Ferrari é realmente um artista de peso, com uma poesia madura e experiencial, que trará influências para novos autores ávidos por apreciar a verdadeira poesia. Alexandra Vieira de Almeida, escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ).
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resenha Aquele mês, aquela cidade, aquela tela
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gestação é o estado resultante da fecundação de um óvulo pelo espermatozoide, envolvendo também o subsequente desenvolvimento, no útero, do feto que foi gerado pela fecundação, encerrando-se na expulsão, chamada de "parto" ou "nascimento". Nos seres humanos, a gestação ocorre no período de nove meses. A barriga que carrega o feto cresce e adquire uma forma circular. O romance de estreia da autora potiguar Goimar Dantas, Aquele Mês de Abril, é uma gestação que se dá em apenas um mês e dialoga com triângulos pintados em quadros que nascem através de uma narrativa circular. Embora seja a primeira investida de Goimar Dantas no gênero romance, os leitores que a conhecem de outros livros e gêneros irão reconhecer, nesta gestação, o DNA da poeta criadora de imagens, da pesquisadora e da jornalista, que faz nascer a história de um triângulo amoroso composto por quatro personagens, vértices de uma trama que mistura lirismo com alguns tons de tragédia. O parto narrado em Aquele Mês de Abril é fermentado em uma barriga-livro que abriga quatro fetos em cinco pinturas separados por quase dois séculos. O pano de fundo do triângulo de quatro vértices (poder-se-ia chamá-lo de um retângulo) são cinco telas do pintor José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), ícone das artes plásticas do século 19, e tema de pesquisa de uma das personagens no romance. São as telas de Almeida Júnior que pautam os cinco capítulos em que o livro é dividido, e elas pintam as páginas que narram os encontros e revista penalux | julho 2019
desencontros entre a professora de artes Ana, casada com o cirurgião Pedro, a jornalista Helena e seu marido, o artista plástico Theo. Goimar, em constante intertextualidade entre literatura e artes plásticas, pinta as palavras em cinco capítulos, tendo em mãos uma aquarela que pincela dramas em uma tela que é a cidade de São Paulo. O enredo tecido em Aquele Mês de Abril carrega o leitor por formas que vão se deformando no decorrer da narrativa. Trata-se de um romance geométrico, talvez trigonométrico, com ângulos retos e tortos. A forma predominante é o triângulo. Mas os triângulos todos do enredo estão inseridos na forma matriz da sua narrativa, que é o círculo: afinal, a história começa redonda e termina redonda, em uma barriga escrita com palavras grávidas, que iniciam e terminam, no mesmo ponto, a história, fechando um ciclo. Um exemplo desta narrativa que se forma deformando formas é o capítulo 3, “O Importuno”, título também de um dos quadros de Almeida Júnior. Nele, vê-se uma pintura com imagens simétricas, cheias de duplos (dois tapetes, duas cadeiras, duas telas, duas pessoas), mas que são, na verdade, trios. Vale observar que uma tela retangular é composta de dois triângulos simétricos que se encaixam. Há, no quadro “O Importuno”, a presença de um homem e de uma mulher que percebem a chegada de uma terceira pessoa (o tal “importuno” que dá título à pintura), que não aparece no quadro, mas é o tema da tela. O terceiro elemento é, portanto, uma presença sutil, um três escondido em uma face 16
de dois lados. Goimar conduz sua narrativa com pinceladas que levam o leitor a enxergar dois lados em uma situação que esconde uma terceira possibilidade. Embora o romance de Goimar seja construído com elementos que surpreendem o leitor, em alguns momentos, a narrativa se contradiz, justamente ao encarcerar o leitor por ser pintada com um certo excesso de didatismo. Nem tudo precisa ser explicado, o leitor pode ser deixado só, mergulhado na história, com algum ar para respirar por conta própria. Por exemplo, ao mencionar o Doutor House, personagem de um seriado, a narradora entrega para o leitor um desnecessário aposto, explicando a referência ao seriado de televisão. Em um romance que é construído justamente naquilo que está escondido, no sutil terceiro vértice de um triângulo que aparenta ter apenas dois lados, o leitor poderia lucrar com algumas pinceladas menos carregadas de informações óbvias. Estes
pequenos deslizes, no entanto, não comprometem as rasteiras, tecidas na tela do livro, que o leitor menos atento pode levar com uma escrita que colore as páginas através de personagens com densidade psicológica. Aquele Mês de Abril é um romance gestado no mês que marca o início da primavera no hemisfério norte, ou seja, o início de um florido ciclo. No entanto, a narrativa se passa em São Paulo, no seco, poluído e pouco confiável clima que só a capital paulista é capaz de conferir. Portanto, o leitor que se aventurar pelas páginas de Aquele Mês de Abril não deve se esquecer de usar uma máscara, pois a tinta da tela pode ser fatal. Anderson Borges Costa é professor de Português, Inglês e Literatura. Também é crítico literário e autor dos romances Rua Direita (2013) e Avenida Paulista, 22 (2019) e do livro de contos O Livro que não Escrevi (2016), entre outros.
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vitrine Celso de Alencar. O Primeiro Inferno poesia | 14x21 | 80 p. | 2019
Na literatura alemã e na russa, o diabo é o maior personagem e o mais importante. Sem a negação não há filosofia, nem pensamento, nem poesia, nem afirmação. Para o pensador Hegel, o princípio da negação é fundamental para que o pensamento se coloque em movimento, pois sem ela está tudo parado, sem a sua malignidade não existe movimento. No bem tudo está parado, no mal tudo é movimento caótico. Celso de Alencar faz como os grandes Xamãs e os faquires e os cantores de blues e maracatus em geral, que transformam magicamente através da arte a dor em prazer a profunda melancolia em embriagante alegria, isto é: consegue metamorfosear os terremotos das paixões humanas de coisas tenebrosas em coisas maravilhosas. editorapenalux.com.br/loja/o-primeiro-inferno-e-outros-poemas
Edson Brandão. A fome dos órfãos contos | 14x21 | 108 p. | 2019
Contos assustadores de uma gente que passeia invisível pelos nossos olhos letrados e lustrosos. Pessoas cheias de dobras, silêncios, segredos e taras, bastante complexas na aparente simplicidade. Meninos bandidos, mulheres traídas, alcoólatras, gente doente, maníaca. O universo de Edhson poderia ser assustador, não fosse a delicadeza, a humanidade e o humor sorrateiro que está sempre presente nas suas histórias. A linguagem é experimental nas horas vagas, sem nunca se distanciar da mais fina tradição literária. [Por Ivana Arruda Leite] editorapenalux.com.br/loja/a-fome-dos-orfaos
Fernanda Rodrigues. A intermitência das coisas poesia | 14x21 | 60 p. | 2019
A ansiedade dos tempos de hoje, toda essa rapidez de acontecimentos, a velocidade inalcançável dos sentimentos, nos fazem esquecer das intermitências – as pausas que a vida dá para que possamos prosseguir. Fernanda me lembrou com sua escrita que algumas pessoas foram minha bússola e eu só pude perceber quando o intervalo me despertou. Porque eram direções que não me pertenciam, que eu não queria. Respirei. Respiramos. Nós, mulheres, aprendemos jeitos de oxigenar tudo e sobreviver com menos danos. “O caminho é sempre em frente”, Fernanda escreveu, mas nesta obra eu a vi voltar e resgatar partes; não se segue sem mãos cheias, sem coisas que tentamos salvar nas épocas de parada, nos momentos em que a pausa puxa a gente para dentro de nós mesmas. [Por Dani Costa Russo] editorapenalux.com.br/loja/a-intermitencia-das-coisas
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livros são fotogênicos cliques de leitores
livro: Em branco silêncio, poesia, Wilson Guanais (2017). foto: : @belasleituras
livro: A História do meu pai, romance, Dino Polari (2018) foto: @bibliovicio.da.jess
livro: Cores de Indochina, romance, Marcos Torres (2017) foto: @tomoliterario
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resenha O mar é criador de mitos: o verso é nossa âncora
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Sal do Leviatã, da editora Penalux, é o novo livro de poemas do experiente Alexandre Guarnieri. O poeta tem outros cinco livros publicados, participação em diversas antologias e renomados sites literários, e foi o vencedor do Prêmio Jabuti pelo livro Corpo de Festim, em 2015. Depois de ganhar a maior condecoração literária do país, você, leitor, poderia achar que as ambições do poeta minguaram. Aí o nosso erro – o propósito do poeta é a própria Poesia; mergulhar mais profundo no universo da palavra a fim de conquistar uma nova dimensão real, apesar de fictícia, acima dele mesmo. E em seu novo livro é isso que encontramos: uma nova profundidade para a palavra.
sinais gráficos para simular o vaivém das ondas, o poeta resgata um conhecimento mitológico e científico que devolve ao mar o berço da Humanidade. E não apenas berço, as águas são um dínamo aos terrestres. As metáforas de mar como também máquina invisível do mundo intensificam sensivelmente os versos de forma que podemos ouvir as ondas ao redor – há uma catarse que resgata memórias de oceano. Na segunda parte, Guarnieri resgata o fantástico sobre o mar, os locais mitológicos rodeados por ondas, as grandes descobertas além-mar, os grandes perigos, os monstros que lá vivem, e o próprio enigma marinho: o desconhecido. Aqui os poemas assumem um tom mais descritivo, não encontramos as formas obtusas, e os versos nos sustentam pela fabulação e análise dos acontecimentos líquidos. Ainda encontramos assonâncias e aliterações, todas dentro de uma lógica interna afiadíssima com o vocabulário náutico e marinho. O verso é a nossa âncora.
O fundo do mar é misterioso. Entre o universo e as profundezas abissais que nos cercam, conhecemos mais o céu que o oceano. Não por acaso, desde os sumérios (a primeira civilização da História, erguida entre os rios Tigre e Eufrates), o mar é criador de mitos – e o livro de Guarnieri nos brinda com isso. Divido em duas partes, Maré Alta e Mare Nostrum, o poeta se dispõe a versificar cada aspecto real ou fictício dessa imensidão líquida que nos rodeia. Uma tarefa ousada e ambiciosa que encontra forma tanto na versificação quanto na linguagem diversa empregada para ilustrar as sinuosidades marinhas.
Quero ressaltar que o trabalho do autor em simular o caótico movimento marinho alcançou o seu objetivo. Sobretudo na primeira parte, todos os versos são malevolentes, carregam sal à própria palavra e parecem nos transpor à praia. (Mesmo eu que não sei nadar, passo a ter uma boa memória do oceano.) Vários versos são excelentes composições poéticas e, especialmente, “dínamo marino”, é para emoldurar na sala. O Sal do Leviatã é o resultado de muito trabalho sobre a palavra. Há um refinamento na composição poética que intensifica o objetivo do livro e o faz um dos
Na primeira parte, os poemas se movimentam tal qual marés e carregam uma importante ressignificação: o mar menstrua. O mar é uma lavoura com safras colhidas pelos que sobrevivem à superfície. Com versos sem forma fixa e muitas assonâncias e aliterações, bem como revista penalux | julho 2019
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melhores de poesia publicados no ano. Grande dica de leitura e tenha as meias limpas, porque você vai se molhar.
José Fontenele é jornalista de formação, escritor e organizador cultural. Autor dos livros “O ralo da consciência” (2014) e “Natureza Morta” (2019).
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resenha Da sutil tristeza ao profundo desespero em A Depressão Tem Sete Andares e um Elevador Depressão é talvez uma das palavras que mais assuste quem a ouve, e ainda hoje, devido ao preconceito e a ignorância de muitos quanto ao tema, envergonhe quem a pronuncia. É o mal do século, como alardeado por diversos meios de comunicação, como em reportagens e programas dedicados ao tema. Enfermidade silenciosa, que chega aos poucos, muitas vezes se confundindo com outras mazelas do corpo. Sorrateira e destruidora, não escolhe idade ou classe social e trás consigo um sentimento de profunda tristeza, assim como desencanto, baixa autoestima, falta de esperança, alterações no humor, no sono e nos hábitos alimentares, entre outros sintomas. A depressão tem sete andares e um elevador (Penalux, 2019), novo livro da poetisa Isabela Sancho tem a depressão como tema e explora a mesma, de forma inovadora, não como diagnóstico, como mencionado na introdução de Anne M. A. Capelo, mas como geografia e emoção, estendendo os sintomas para fora do corpo e os colocando no meio físico. Isabela Sancho propõe uma jornada por sete andares metafóricos em um prédio subterrâneo, andares esses conectados por um elevador sem botões, desgovernado, impreciso e ainda assim, no comando dos sentimentos e das emoções daquele que conduz. Indo contra a tendência atual de poesias curtas, A depressão tem sete andares e um elevador é um único poema, de quase 120 páginas, dividido em sete andares. Cada andar aprofunda mais os sintomas da enfermidade trazendo a tona os sentimentos contrastantes, a culpa, a raiva, o desespero de estar preso nos revista penalux | julho 2019
“andares do corpo”, de ser vítima impotente do meio, refém involuntário da própria mente. E embora longo, em nenhum momento o poema perde o folego e sua leitura se desenrola em uma espécie de fluxo incontrolável, literalmente impelindo o leitor a virar a próxima página, a explorar o próximo subsolo. Antes dos subsolos, em uma espécie de introdução informal, a autora declara: “A depressão tem sete andares e um elevador. / Cabem dez de mim na plataforma. / Doze, / se nos espremermos, / mas não é preciso. / Aqui há / apenas uma. / As demais desertaram.” Isabela nos conduz aqui ao começo do desespero, ao principio da desesperança, das centenas de conflitos e dos milhares de “eus” em uma única pessoa, que se multiplicam em meio ao caos mental, porém nos lembrando, no final, que os múltiplos se resumem a um. A essência do desespero está expressa nesses versos, assim como a fragilidade da mente, em descompasso com a “realidade” que a cerca. A jornada pelos subsolos se torna mais densa à medida que o elevador vai subindo os andares e revelando as camadas do desespero, a melancolia das horas e a percepção nas pequenas coisas, que se evidencia no quinto subsolo: “E curioso estar viva / Conto às piscadelas de um cão / que é todo ouvidos / às minhas histórias.” Ao se indagar a respeito do sentido da vida, a autora, de forma onírica, retrata em poucos versos a beleza da simplicidade, do lugar comum de um cão que pisca os olhos ao ouvir seu dono, e trás a tona também a fragilidade do ser humano ao confidenciar sua vida, a um ser que não pode responder, e que por isso mesmo, 22
pode ser o melhor ouvinte, simplesmente por não julgar, comentar ou aconselhar. Termino por destacar, os versos que mais me tocaram, e entristeceram, por resumir a impotência do homem ante o horror da depressão: “Urna fraudada, / caixa-preta, / cofre-forte. / Sua democracia fingida / decide por mim / sem mim.” Nada é mais cruel que a impotência ante a vida, e Isabela Sancho e sua jornada por sete
subsolos nos faz lembrar, que apesar da dor, do sofrimento e do horror, é possível ter esperança. Essa palavra tão em voga e tão piegas e que, no final das contas, melhor nos define como seres humanos.
Marcelo Frota é professor e tradutor. Transita entre as críticas literária e cinematográfica.
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resenha A arqueologia da palavra em W. J. Solha
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m um cenário social despedaçado, o discurso literário brasileiro há décadas se desintegra. A perda do sentido do discurso literário como “o grande discurso” onde a experiência social relevante é processada, reflete-se na esquizofrenia dos escritores incapazes de estabelecer um diálogo comum, cada vez mais presos ao seu mundo pessoal de impressões e alegorias artificiais. Nesse cenário decadente de moinhos de livros que pouco dizem (embora não faltem obras publicadas no mercado do livro), W. J. Solha vem, como um Dom Quixote das letras, travando uma luta silenciosa em um mundo árido e melancólico como “La Mancha” cervantina. Michel Foucault, em A arqueologia do saber, diz que o enunciado não é uma estrutura, é uma função de existência que pertence exclusivamente aos signos, não se devendo espantar a ausência de critérios estruturais de unidade. Assim, o enunciado, segundo Foucault, não é uma unidade, mas uma função que cruza o domínio das estruturas e unidades possíveis, fazendo com que essas estruturas e unidades apareçam com conteúdos concretos no tempo e no espaço. Para o filósofo da arqueologia do saber o “arquivo” é o “sistema geral da formação e da transformação dos enunciados”. Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o “corpus” que passivamente recolhe as palavras efetivamente pronunciadas, o arquivo emerge entre a tradição e o esquecimento, permitindo a prática de formação e transformação dos enunciados. A arqueologia da palavra, no corpus literário revista penalux | julho 2019
solhiano, revela um escritor consciente do peso histórico da palavra sem sucumbir a ela. Desde Israel Rêmora até A Engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018) , o corpus das palavras efetivamente ditas por W. J. Solha compõem um mosaico que passa por A Canga, um registro literário de sua experiência no sertão paraibano; ou o embate crítico com o pai da literatura nordestina, José Américo, em Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia. O corpus literário solhiano é vasto e merece atenção pela riqueza de temas e abordagens, obras como História Universal da Angústia ou Arkáditch merecem uma arqueologia da palavra à parte. Em A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, W. J. Solha desvela as camadas do discurso literário, como um arqueólogo da palavra, faz emergir as camadas mais profundas do “modernismo nordestino” (rotulado pela crítica sulista de regionalismo nordestino) e do movimento armorial, seu eco mais moderno. W. J. Solha, através de um poema longo com formatação de peça de teatro, identifica, em sua arqueologia da palavra, os elementos da estética barroca espanhola na raiz do movimento armorial. Quixote, Quaderna e Trancoso são a personificação do mito salvacionista ibérico, o Quixote cervantino é o cavaleiro de triste figura que finca o mito salvacionista no imaginário literário; Quaderna é sua reelaboração nordestina, sob a lente de Ariano Suassuna; Trancoso o herói picaresco da mais recente obra de W. J. Solha. O salvacionismo é o mito fundador moderno da península ibérica que, destronada de sua hegemonia 24
inicial no processo de globalização, passou a se alimentar do “mito da salvação” em face de um ambiente pessimista e desolador. Assim foi com Cervantes no sec. XVII, cuja biografia dá testemunho do século de ouro espanhol, seja no que ele teve de genial ou trágico. Curiosamente a obra que Miguel de Cervantes reputava ser sua maior criação passou in albis, Os trabalhos de Persiles e Sigismunda, guardando, no título, uma ligação remota com A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso. O mito salvacionista em Portugal ganha o rótulo do sebastianismo, o rei desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Em períodos de desolação e anomia, o mito sebastianista é reinterpretado pela literatura, Fernando Pessoa no poema longo Mensagem e José Saramago em A Jangada de Pedra dão testemunho disso. O mesmo ocorre no ambiente ibérico/caboclo nordestino, seja no Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, herdeiro intelectual da Revolução de 30 que marcou a história da Paraíba e brasileira,
seja no terreno confuso dos tempos líquidos entre o final do sec. XX e o começo do sec. XXI, registrado na estética do verbo do W. J. Solha. A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso enuncia, entre a tradição e o esquecimento, o testemunho do seu tempo, um tempo consciente de sua tradição histórica, de suas raízes transatlânticas e universais mas também atento às novas mídias e relações do nascente sec. XXI. Parafraseando um teórico italiano, Dulcineia e Trancoso é uma obra aberta que convida o leitor a uma cooperação interpretativa. Ao ler a engenhosa tragédia do corpus literário solhiano, o leitor descobre que para além de enunciados e arquivos, a linguagem, em Solha, revela-se como um campo de força, um centro gravitacional de signos que une aqueles que já viveram e aqueles que irão morrer. Rodrigo Caldas, advogado, mestre em Direito e colunista do jornal A União.
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livros são fotogênicos cliques de leitores
livro: O vendedor de chuva, romance, Fred Vidal (2016). foto: @garotagirassol_
livro: : Combustão, romance, Cefas Carvalho e Jeanne Araújo (2018) foto: @niccardeal
livro: O Porta-Retrato, contos, Letícia Palmeira (2017) foto: @souleticiapalmeira
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vitrine Érico Hammarström. Medula conto | 14x21 | 104 p. | 2019
Os contos, ora longos, ora curtos, em um crescer de complexidade, nos permitem adentrar no sagrado das personagens, e, dessa forma, refletidos nelas, somos sugados pelas histórias e percebemos o quanto o cotidiano, a monotonia da vida, as constantes bifurcações do caminho, nossas obsessões e a fragmentação dos nossos sentimentos nos impactam e nos definem. Sentimos com as personagens, com o tom arrebatador da narração, com a constante busca de si no outro. Somos levados a perguntar sobre nós mesmos, sobre o que compõe a nossa medula, a nossa busca pelo sentido da vida, sobre quem queremos ser. O tema da escrita percorre sete dos nove contos e se mostra como a busca da sanidade, como o ancoradouro do real em meio à loucura humana. O fazer do escritor como a única saída para encontrar-se, entender-se e sobreviver na selva de pedra do cotidiano urbano. editorapenalux.com.br/loja/medula
Bruno Gaudêncio. Torturas de amor contos | 14x21 | 130 p. | 2019
Torturas de Amor: contos de autores nordestinos baseados em clássicos da música brega é uma coletânea de narrativas curtas dedicadas a um estilo musical que até hoje é sinônimo de mau gosto. E são justamente as algumas canções chamadas de bregas que inspiraram alguns dos principais contistas nordestinos dos últimos tempos, no arranjo desta coletânea inédita de contos. Mas, o que seria realmente uma música brega? O nome, na verdade, carrega em si um rótulo de preconceitos, não só sociais como também estéticos. Puxando mais para a música, seriam canções consideradas menores e risíveis, sem valor cultural. Procuramos vencer tais preconceitos, em uma linha de contato com recentes estudos que evidenciaram os valores e os significados destes artistas e canções, esta obra nos oferece o diálogo entre dois universos esnobados por setores da “alta” hierarquia cultural e chama à discussão sobre a estrada a ser trilhada. editorapenalux.com.br/loja/torturas-de-amor
Antônio Ailton. Cerzir poesia | 14x21 | 156 p. | 2019
Em comemoração aos seus 50 anos, o premiado poeta Antônio Aílton presenteia seus leitores este livro, o qual contempla tanto poemas já publicados em livros anteriores quanto inéditos. O poeta maranhense, sempre meticuloso, costura o passado com o presente; os versos de Aílton não negam a dureza persistente da vida, e todos os percalços entre o nascimento e a morte, mas oferece-nos uma fuga de tanta escuridão: a luz das pequenas-grandes belezas, as alegrias escondidas dos olhares cansados, os quais precisam urgentemente de novas perspectivas. O poeta, contudo, não age fora de seu tempo: não nega as realidades modernas e tecnológicas, e problemas intrínsecos à atualidade, mostrando que a linguagem poética está sempre em movimento, como qualquer processo cultural. Cezir é mais do que uma síntese do trabalho de Antônio Aílton: é seu amadurecimento traduzido em versos. editorapenalux.com.br/loja/cerzir 27
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Um romance sobre desigualdade Com uma prosa dinâmica e contundente, Eduardo Sens apresenta um dos clássicos dilemas da humanidade. Por Carlos Saldanha Mancur, jornalista
Um promotor tem diante de si mais um caso criminal, em que seu papel é o da acusação. Seria mais um caso em sua carreira, não fosse este fato conflitante: o réu à sua frente é um amigo de infância, acusado pelo assassinato de um pai de família. A partir desse reencontro inusitado, uma profusão de pensamentos e lembranças leva o protagonista a se ver também no papel de réu. No tribunal da memória, resurge um doloroso episódio que o marcou na infância, pelo qual ele se sente responsável. Revisitando o passado, o promotor busca, por sua vez, provar a si mesmo a própria inocência. Com este mote, Eduardo Sens desenvolve a trama do seu novo romance, De quando éramos iguais, que acaba de ser lançado pela Editora Penalux. O autor dá mais detalhes sobre o enredo: “O livro narra um júri na visão de um promotor de justiça de meia idade. Ele é conservador, possui prêmios honorários. Então surge esse réu, que foi seu amigo de infância. Os dois brincavam quando crianças, mas desde então, ou seja, há mais de trinta anos, não se viam. À época, o pequeno amigo morava numa favela próxima à sua casa, num bairro de classe média”. Para Sens, a ideia principal é debater a questão da meritocracia. “Como, com começos tão diferentes, as pessoas querem igualar as vidas? Um criminoso e um promotor. Que revista penalux | julho 2019
bifurcações as vidas desses dois personagens tomaram para estarem agora em lados tão opostos?”, propõe. Além dessas questões, o livro também discute o preconceito racial e a importância da posição social para que se tenha um julgamento justo. Nas palavras do autor “é um retrato de um país de desigualdades complexas”. Dinâmica, com capítulos curtos, a trama já conquistou leitores antes mesmo de sua publicação. “Não se trata apenas de um romance jurídico”, diz o poeta e editor Marcelo Labes, um dos primeiros leitores a ler a história. “Não há na narrativa de Eduardo Sens intenção de comover o leitor com palavras escolhidas de antemão, mas uma honestidade doída no contar dos fatos. Terminei de ler com lágrimas nos olhos e um arrepio que demorou a passar”. Outros comentários de quem já leu a obra: “Tive a oportunidade de ler esse romance enquanto ele ainda era um manuscrito. Eduardo Sens investe na construção de personagens consistentes, repletos de qualidades contrastantes que os tornam críveis e humanos, além de conduzir com mão firme os constantes retrocessos e avanços temporais que não apenas tornam a história mais dinâmica como trazem tudo aquilo que é fundamental para compreender tais personagens”. (André 28
Timm, escritor finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2017) * “Fiquei me perguntando se aconteceu mesmo aquilo na escola. Foi surpreendente. Soube como prender a atenção. Você se pega imaginando o cenário. O narrador volta no tempo intercalando com o presente, não deixando que o leitor se perca na história. Desfecho surpreendente.” (Bruna Rauber) * “Não passou um dia que chegou e já foi devorado! Muito bom mesmo. Os cortes
entre o presente e o passado, a inocência e o peso da vida adulta, a igualdade da infância e as desigualdades de oportunidades no desenvolvimento, a seletividade das memórias, a crítica ao condicionamento... tudo muito bem entrelaçado. E para mim tem um peso especial as metáforas... adoro! E há varias muito bem elaboraras e criando as imagens perfeitas para representar os sentimentos, sensações, experiências. Nota 11. Parabéns!” (Theo Boabaid)
TRECHO
“Em algum momento — hoje olhando para trás percebo —, nossas vidas, as dos meus amigos de infância, dos meus colegas, essas vidas que até ali seguiam o que parecia ser uma fila indiana, acabaram escorregando por bifurcações distintas. Não dá para chamar de opção, coisa que exige um mínimo de reflexão. Pareciam decretos, cominações, um selo carimbado na hora do nascimento. É injusto batizar de sorte, destino, sina, desses nomes que roubam das palavras a culpa que carregam. Nem deixa de ser normal: é improvável que estivéssemos hoje aqui, do mesmo lado. Essa seleção antinatural vai construindo pontes para uns e cavando oceanos para outros.”
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lux press UMA CELEBRAÇÃO À LITERATURA E AO AMOR PELA LEITURA Em seu novo romance, Eliezer Moreira traz personagem fascinado por Machado de Assis Por Carlos Saldanha Mancur, jornalista
Olhos bruxos é o novo romance do escritor Eliezer Moreira. O título é uma referência a Machado de Assis, especificamente, aos olhos do escritor, tomando como símbolo o pincenê que se tornou um ícone associado à sua figura. “Bruxos” remete ao epíteto pelo qual Machado de Assis ficou conhecido entre seus apreciadores e estudiosos: “Bruxo do Cosme Velho”, o bairro carioca onde o escritor viveu seus últimos anos. A história tem como fio condutor o fascínio do protagonista pela obra do grande mestre e também pela antiga cidade do Rio de Janeiro, onde se passa a ação de livros como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás de Cubas, entre outros. Emiliano Moreira, o personagem central do romance, é um livreiro, bibliófilo e escritor obscuro que um dia, em cumplicidade com um amigo, concebe a ideia de furtar o pincenê de Machado de Assis, que se acha em exposição permanente numa urna na Academia Brasileira de Letras.
“O desejo obsessivo de se apossar da relíquia”, revela o autor, “surge de uma premissa delirante desse personagem: ele imagina que, conseguindo usar os óculos do mais célebre escritor do país, poderá enxergar o mundo e escrever com o mesmo talento do genial criador de Capitu e Quincas Borba”. Como a premissa absurda não se verifica, ele resolve devolver a relíquia à Academia. Para Eliezer Moreira, o enfoque fundamental de seu romance é a celebração da própria literatura de ficção e da prática da leitura como exercícios de liberdade da imaginação. Sobre a forma do romance, ele adianta: “Olhos bruxos se desenvolve em dois planos narrativos distintos – cada um com linguagem própria, tendo, portanto, dois supostos narradores, um deles de escrita mais simples, mais chã e ‘atual’, e o outro com uma escrita mais sofisticada e ‘arcaica’. Um dos planos tem algo do gênero detetivesco e seu narrador é um jornalista que se interessa pelo caso e passa a investigar o roubo do pincenê. No outro plano narrativo, que pretende ser um pastiche da prosa de Machado de Assis, o protagonista Emiliano Moreira, em sucessivas cartas à Academia Brasileira de Letras, enviadas anonimamente, procura se justificar e apresentar as razões pelas quais furtou a relíquia e por que decidiu devolvêla. Essas cartas têm um tom de voluntarismo não menos delirante do que a ideia inicial do furto, e, por meio delas, o missivista-narrador acredita poder se redimir e obter o perdão
Machado de Assis (1839-1908)
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pelo ato ignóbil (enfim, o crime) que praticou”, finaliza. * De fato, a narrativa de Olhos bruxos, em grande parte, se assume como pastiche da prosa de Machado de Assis, trabalhando assim a ideia de simulacro, de imitação, embora não servil. E mais: pode ser vista, ainda, como a leitura de uma obra romanesca que redunda em outra obra romanesca, recurso que torna a narrativa essencialmente ambígua, oscilando entre o falso e o verdadeiro, entre a originalidade e a imitação, entre o real e o ficcional. A orelha do livro traz um texto do escritor e crítico André Seffrin. “Nesse ir e vir fervente de personagens”, escreve o ensaísta, “somos orquestradamente levados a ambíguos e confusos sentimentos ora por meio do humor do romancista ora pela ação dos próprios personagens que atravessam páginas como quem transpõe portas em direção a imponderáveis desvios de rota. Tudo somado a veredas que se multiplicam com essa ‘gente impalpável, improvável, todavia mais viva do
que eu e do que vós, essa gente de verdade que encontramos nos romances’. [...] Eliezer Moreira dá velocidade de correio eletrônico a uma narrativa aberta e detetivesca. E isso sem perder a densidade e a envergadura que fazem do romancista o que ele de fato é – um demônio de imaginação, um demiurgo que erige fábula e alegoria em meio a tumultos de amor e dúvidas intestinas”. EM EVIDÊNCIA Olhos bruxos, assim como outros títulos ficcionais recentes inspirados em Machado de Assis, chega ao mercado num momento em que o escritor está mais em evidência do que nunca, na imprensa como nas redes sociais. Nelas, o autor tem sido redescoberto e apresentado como “um novo Machado de Assis”, em discussões polêmicas envolvendo o preconceito racial e o “embranquecimento” do escritor negro pelas elites intelectuais do país. Como se não bastasse, neste ano é celebrado o 180º aniversário do seu nascimento, com simpósios e homenagens Brasil afora. TRECHO “Não, o larápio não furtou para vender, sabe que nada no mundo paga algo tão valioso. Furtou para ter consigo a preciosidade, tê-la secretamente, um fetiche, talvez. Não furtou o pincenê, mas aquilo que este propiciou ao escritor... Pode não ser maluco, mas deve ser alguém fascinado até à loucura pela obra de Machado de Assis, pela maneira como o escritor enxergou o mundo. E essa maneira de enxergar está toda lá, eternizada (permitam a palavra solene) nas páginas obsedantes que escreveu o Bruxo do Cosme Velho... Não, meus amigos, o interesse, o alvo do ladrão não eram os óculos, mas os olhos. Aqueles olhos que souberam enxergar a vida e as dores humanas de forma tão penetrante é que se tornaram o objeto da cobiça desvairada do ladrão, os olhos bruxos de Machado de Assis é que foram levados pelo misterioso larápio.” 31
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lux press UM ROMANCE QUE TRANSITA ENTRE O HUMOR E TEMAS CONTROVERSOS Livro propõe exercício de escrita ao trocar o papel biológico de homens e mulheres. Por Carlos Saldanha Mancur, jornalista
Dado que o protagonista tem um sonho de se dedicar à pintura, o livro também dialoga intensamente com a obra de Monet. Para tanto, o projeto gráfico apresenta nas páginas finais uma galeria com quinze telas coloridas do pintor – que se integram e são citadas na trama. Temas como aborto, religião, intolerância, prostituição, arte, violência, drogas e ciência também se apresentam nessa história divertida e, ao mesmo tempo, provocativa. “É um livro que trata de diferentes tipos de família, desafiando o conceito tradicional”, diz o escritor. “Acho essa uma discussão necessária à realidade do nosso país, que hoje passa por um momento tão difícil na questão dos costumes”, finaliza.
O escritor Leandro Franz acaba de publicar pela Penalux seu mais recente livro, o romance No útero de Paulo, o embrião não nascerá, cujo enredo busca conectar, de forma bemhumorada, reflexões existenciais e crítica social. O eixo-narrativo gira em torno da história de amor de Paulo e Carla em um instigante mundo onde são os homens que engravidam, não as mulheres. O pano de fundo que conecta toda a obra é o dilema sobre ter filhos ou não, bastante inspirado nas reações da família e de amigos vivenciadas pelo próprio autor. Leandro Franz localiza seu romance numa zona híbrida entre Ficção-científica e Realismo fantástico. “Trata-se de um mundo inusitado”, explica Franz. “O protagonista descobre-se grávido já na primeira página e precisa decidir se faz um aborto antes da esposa descobrir”.
* Daniel Zanella, editor do Jornal RelevO, apresenta a obra da seguinte maneira: “Este é um livro, no mínimo, transgressor. O autor estabelece, a partir do humor corrosivo, um percurso de inversão de valores que coloca em xeque as perspectivas sociais habituais. Há, em Franz, um aspecto cômico que também desestabiliza outras categorias, quase num tom de ensaio sobre o mundo e suas bases de comando. São brincadeiras com a religião, com a ciência, com as artes: ‘Tudo só começou com um big bang, pois antes não havia tempo e sem tempo nada tem início, até porque se você está sem tempo é porque está fazendo outras coisas e não tem tempo de começar nada’. Eis um
Oscar-Claude Monet (1840-1926) revista penalux | julho 2019
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exemplo das provocações recorrentes no livro, flertando entre o absurdo e o trágico existencial. Indo pela via do humor, Leandro Franz promove com seu romance uma demonstração do absurdo da vida e de suas normas. É um livro, sem dúvida, com virtudes narrativas para desenvolver quebras de expectativas e novos paradigmas”. Na orelha do livro, Rodrigo Casarin, jornalista da UOL e responsável pelo blog Página Cinco, comenta sobre essa questão controversa, que é quando um casal opta por não ter filhos, um dos pontos centrais da trama. “O que mais temos por aí são pessoas que acreditam piamente naquele papo que ouvimos de alguma professora ali pela quinta ou sexta
série: a vida é dividida em quatro fases: nasce, cresce, reproduz e morre”, escreve Casarin. E continua, irônico: “Bem, não há muito o que possamos fazer com relação ao nascer, crescer e morrer, ao menos por enquanto, mas para uma espécie que se orgulha justamente de se distanciar do restante da natureza, impelir a todos esse ‘reproduzir’ é uma rendição aos instintos primitivos. Felizmente há quem vá na contramão da manada. É o caso do escritor Leandro Franz, que neste No útero de Paulo, o embrião não nascerá inverte papéis biológicos – e, por extensão e fatalmente, sociais – para colocar a questão da maternidade e da paternidade na berlinda, numa provocação que só poderia mesmo vir da arte”.
TRECHO "Hoje, Paulo acordou grávido. Não que não tivesse acordado assim também um dia antes, nem nas quatro ou seis semanas anteriores. É que só hoje resolvera fazer o teste. Descobriu-se grávido depois de devorar ovos mexidos com rim frito, pois Carla saíra para trabalhar cedo e já deixara o café da manhã pronto (mas esquecera de trocar a ração do gato e limpar a caixa de areia e hoje era a vez dela!, e ela sempre esquecia, paciência, mas o rim ficara uma delícia, então estava perdoada), e também após esperar aquele minuto necessário para o azul aparecer no santo marcador trazendo a notícia do apocalipse inesperado. Foi só ali que parte do rim seco revirou seu estômago. Estava grávido."
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