A organização dos macacos-prego

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Pesquisa FAPESP junho de 2012

junho de 2012   www.revistapesquisa.fapesp.br

Comissão da verdade

Por que só agora o Brasil investiga o destino dos desaparecidos políticos Estrela gêmea

Astro a 200 anos-luz da Terra é cópia quase perfeita do Sol EXTERMÍNIO DE SAPOS

Tráfico de animais espalha fungo letal entre anfíbios Entrevista LUIZ TRAVASSOS

As vitórias do “Doutor calouro”

n.196

A organização dos macacos-prego Nova classificação amplia número de espécies de primatas das Américas Central e do Sul, hábeis no uso de ferramentas



caroline fukushina / Instituto Butantan / zootaxa

fotolab

Ned DeLoach / zootaxa

As misses da natureza Duas espécies identificadas por biólogos brasileiros entraram no Top 10 New Species, lista anual com os 10 animais mais interessantes ou belos do mundo elaborada pela Universidade do Estado do Arizona, Estados Unidos. A primeira do Brasil a entrar na lista (a número 10) é a aranha-caranguejeira-azul, Pterinopelma sazimai. Encontrada em campos rupestres e descrita por Rogério Bertani, Roberto Nagahama e Caroline Fukushima, do Instituto Butantan, homenageia o biólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ivan Sazima, o primeiro a coletar o animal. A número 2 é a água-viva Tamoya ohboya, coletada no Caribe por Antonio Marques e André Morandini, da Universidade de São Paulo e do programa Biota-FAPESP.

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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junho 2012

n.

18

196

18 CAPA Divergência em macacos-prego, tão antiga quanto a de seres humanos e chimpanzés, se reflete em ecologia e comportamento Foto da capa  Macaco-prego do Parque Ecológico do Tietê crédito  tiago falótico / ip-USP

Política científica e tecnológica 30 Gênero

Mulheres ampliam espaço na ciência e enfrentam o desafio de equiparar-se aos homens no topo da carreira

32 Reconhecimento

Professor da UFMG recebe prêmio internacional por contribuição em nanociência

entrevista

ciÊncia

24 Luiz Travassos Bioquímico identificou bactérias causadoras de infecções hospitalares e desenvolveu novos medicamentos contra câncer

34 Estrela gêmea

Astro da constelação do Dragão é cópia quase perfeita do objeto celeste que ilumina a Terra

38 Vida marinha

Costa do Espírito Santo e da Bahia abriga o maior banco de algas calcárias do mundo

42 Cretáceo seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 On-line 9 Wiki 10 Dados e projetos 11 Boas práticas 12 Estratégias 14 Tecnociência 86 Memória 88 Resenhas 90 Arte 92 Conto 94 Classificados 4 | junho DE 2012

Estudo identifica microrganismos fossilizados na crista de réptil voador que viveu há 115 milhões de anos na chapada do Araripe

44 Parasitas emergentes

Tráfico pode espalhar microrganismo letal para anfíbios

47 Obituário

Luiz Edmundo de Magalhães participou da consolidação da genética no país

48 Efeitos colaterais

Composto usado para tratar câncer danifica células do coração

tecnologia 50 Pesquisa empresarial Suzano investe em energia e produtos para substituir derivados de petróleo

56 Produção de próteses

Semente de açaí é matéria-prima para reparar tecidos ósseos no crânio

58 Glicerina

Subproduto do biodiesel pode ser usado para suprimir poeira de vagões de minério

64 Indústria automobilística Motores flex devem reduzir o gasto de etanol

humanidades 66 Justiça de transição

Criação tardia de uma Comissão da Verdade mostra como o Brasil enfrenta de modo peculiar o legado de violações dos direitos humanos

74 Protecionismo

Cinema argentino optou pela indústria comercial, ao contrário do Brasil, que se ligou ao Estado e ainda vive na dependência de ajuda oficial

78 Dilema pragmático

Debate sobre matemática positivista abriu espaço para a ciência pura no Brasil

82 Livros

Análise de obras censuradas do século XVIII sugere que autores se pautavam mais pela razão do que pela devassidão


astronomia

biodiversidade

34 biologia

bioquímica

30 Ciência Política

cienciometria

38

cinema

comportamento

Direito

Ecologia

50 energia

engenharia

física

44 58

Genética

história

história da ciência

inovação

literatura

82

matemática

medicina

nanotecnologia

oceanografia

66

paleontologia

química

Relações Internacionais

zoologia

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cartas

cartas@fapesp.br

Antártida

Surpresa e espanto ao ver a foto da estação brasileira Comandante Ferraz em chamas na reportagem “Corrida sobre o gelo” (edição 194). As labaredas eram muito altas e escuras. Havia muito material de fácil combustão queimando. No módulo gerador de energia é compreensível, em termos, nos demais, não. Explicamos. Sabemos que o gradiente de temperaturas entre o ambiente interno do módulo e o externo, podendo atingir 40°C ou mais negativos, exige um ou mais tipos de isolantes térmicos de alto desempenho. Ou seja, resistência térmica elevada, em camada espessa. Para resolver o problema, o exemplo mais comum é especificar espumas plásticas expandidas de poros fechados como as de poliuretano ou polistireno de alta resistência térmica. Essas espumas têm o inconveniente de serem combustíveis e algumas produzem, na queima, gases tóxicos de morte instantânea. Se especificados em camadas espessas, essas espumas irão representar um grande volume de materiais altamente combustíveis. Existem isolantes térmicos incombustíveis que atendem os critérios de segurança contra incêndio e, especificados e aplicados adequadamente, podem substituir as espumas plásticas. Além disso, todos os materiais construtivos dos módulos, bem como os outros internos, devem ser submetidos a um rigoroso critério de segurança contra incêndio. A decisão já tomada de afastar o modelo gerador de energia dos demais está correta. Nossa sugestão é que para a realização do estudo das especificações técnicas, construção e montagem da nova estação antártica brasileira, além de todos os especialistas necessários, sejam consultados engenheiros de segurança e de isolamentos térmicos. Dalmo de Oliveira Malta Engenheiro São Paulo, SP

Alberto Dines

Foi uma delícia a leitura da entrevista com Alberto Dines (edição 194), mos6 | junho DE 2012

trando que os acontecimentos devem e podem ter o distanciamento necessário para serem avaliados não apenas naquilo que são, mas também como são vistos e entendidos. A experiência de Dines também nos dá o alerta para a distinção entre opinião pública e opinião publicada. Parabéns!

Empresa que apoia a ciência brasileira

Adilson Roberto Gonçalves Escola de Engenharia de Lorena/USP Lorena, SP

Formigas no micro-ondas

As respostas à pergunta sobre por que a formiga sobrevive no forno de micro-ondas são incompletas (seção Wiki, edição 195). O fator mais importante é o tamanho da formiga em comparação com o comprimento de onda da radiação de micro-ondas. Um objeto com dimensões muito menores que o comprimento de onda absorve muito pouca radiação, e isto é o caso da formiga que tem dimensões da ordem de alguns milímetros (mm), enquanto o comprimento de onda da radiação usada no forno de micro-ondas doméstico é em torno de 120 mm. Em algumas situações é vantajoso ser pequeno. Barclay Robert Clemesha Inpe São José dos Campos, SP

sendo que as gotas únicas mal tiveram suas temperaturas alteradas. Pode-se rapidamente perceber que o fato de as formigas saírem ilesas deste tipo de forno nada tem a ver com tolerância térmica. Tem a ver com o tamanho dos animais. O comprimento de onda desses fornos é da ordem de centímetros e, assim, os diminutos seres não ficam expostos às ondas eletromagnéticas do aparelho. Pelo mesmo motivo, não se pode contar com este tipo de aparelho para esterilizações a seco contra microrganismos. Assim, a resposta correta para o fenômeno das formigas escaparem vivas está na própria pergunta: elas, literalmente, escapam das micro-ondas. Na natureza, tamanho é documento. José Guilherme Chaui-Berlinck e

Propomos que o leitor faça o seguinte experimento: coloque, diretamente no prato de um forno de micro-ondas, com auxílio de um conta-gotas com água em temperatura ambiente, uma série de pequenas gotas em locais aleatórios (ou ordenadas em sentido radial, tanto faz); depois uma série de três gotas juntas; e por fim uma série de seis gotas juntas. O importante é que cada volume de gota esteja contemplado a certa distância do centro, de modo que a distância não tenha que ser considerada. Ligue o micro-ondas por certo tempo, uns 30 segundos, por exemplo. Em seguida, com cuidado, toque com a ponta do dedo cada um dos diferentes volumes de gotas. Para surpresa de alguns, irá se constatar que os volumes maiores estão bem mais quentes que os menores,

José Eduardo Pereira Wilken Bicudo Instituto de Biociências/USP São Paulo, SP

Aviões

É envolvente o trabalho realizado pela FAPESP, Boeing e Embraer visando ao desenvolvimento de biocombustíveis para aviões (edição 195), tornando nossas viagens mais confortáveis (edição 194) e ecologicamente mais corretas. Vinicius Marques Rollim Poços de Caldas, MG

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, José Tadeu Jorge, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano

Verdades (sempre) provisórias, verdades (ainda) escamoteadas

Conselho Técnico-Administrativo

Mariluce Moura

José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico

Diretora de Redação

Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli

Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores executivos Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editores assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (Edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura Daviña ARTE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de imagens), Bel Falleiros, Daniel Bueno, Drüm, Evanildo da Silveira, Fernando Costa Mattos, Júnior Suci, Larissa Ribeiro, Amisha Gadani, Salvador Nogueira, Ronaldo Brito Roque, Veridiana Scarpelli, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br Tiragem 44.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

U

ma revolução vem revirando nos últimos 10 anos a classificação dos macacos-prego e caiararas, graciosos primatas que se espalham pelas Américas Central e do Sul, incluindo aí Amazônia, cerrado, caatinga e mata atlântica, até alcançar a Argentina. Na bela reportagem que mereceu a capa desta edição, Maria Guimarães, a editora da Pesquisa FAPESP on-line, relata que até recentemente os especialistas, lidando com uma taxonomia que ainda seguia o trabalho dos naturalistas, classificavam no mesmo gênero Cebus tanto uns quanto outros. E mais: juntavam todos os macacos-prego dentro da espécie Cebus apella. Mas novas abordagens tecnocientíficas, especialmente a tecnologia molecular, deram partida e permitiram aos poucos a reorganização desses primatas que variam enormemente em forma, cor, tamanho, preferências alimentares e comportamento. Desde fevereiro passado eles já estão, por exemplo, ordenados formalmente em dois gêneros propostos por um pesquisador brasileiro, o Sapajus, que agrupa as espécies mais robustas, e o Cebus, que reúne os mais esguios, ainda que persistam divergências de especialistas a tal divisão. E as espécies vão se multiplicando. Diga-se desde logo que esses nossos interessantes primos, construtores de um sistema social complexo, são capazes de usar ferramentas, uma habilidade nada desprezível. Mas vale a pena conferir muitos outros dados dessa história a partir da página 18. O destaque seguinte desta edição cabe a uma reportagem de nossa seção de humanidades, elaborada pelo editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, e apresentada pelo inspirado título “O parto da memória”. Ela

trata de uma série de estudos por meio dos quais se busca entender por que o Brasil tardou tanto em criar mecanismos legais para apurar as violações aos direitos humanos, inclusive as mortes e desaparecimentos de militantes de esquerda nos anos de 1964 a 1985. Só agora, em maio de 2012, portanto 27 anos depois de findo o ciclo dos militares no comando político do país, o Estado brasileiro instituiu uma Comissão da Verdade – muito mais tardiamente do que seus vizinhos sul-americanos, por exemplo, igualmente reféns de ditaduras no período. Devo dizer que, como jornalista, sempre tive uma quase intransponível dificuldade para tratar desse tema, que me afeta pessoalmente, de forma profunda e indelével. Por isso mesmo foi-me confortável ter a pauta desta reportagem proposta pelo presidente do comitê científico da revista, o professor de filosofia Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador adjunto da diretoria científica da FAPESP para a área de Humanas, e bem orientada pela diretora da área de Humanas da Fundação, a cientista política Glenda Mezarobba, que em sua pesquisa de doutorado havia tratado do tema. Mais adiante, foi gratificante constatar a densidade, a sobriedade e a serenidade com que Fabrício lidou com assunto tão delicado e tão fundamental à construção do conhecimento deste país que fazemos. Vale observar que ele é um veterano nesse mister, e eu lembro bem do rigor e sensibilidade com que narrava os passos da política oficial e tristes histórias pessoais, no Jornal do Brasil, quando o governo Fernando Henrique instituíra a comissão da anistia e a comissão dos mortos e desaparecidos nos idos de 1995. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 196 | 7


Nas redes

www . re v istapes q uisa . fapesp . br

@Rubia Gomes Morato Na iniciação a @PesquisaFapesp despertou minha paixão pela ciência.

Rádio

Pesquisa Brasil vai ao ar toda sexta-feira, às 13 horas, na Rádio USP

Muito obrigada e parabéns pelos 50 anos! @Jairo Carlos Vejam que linda a simetria dessa imagem! Elétrons mapeados dentro de moléculas na

Bruno Costa-Silva e David Lyden / Weill Cornell Medical College

on-line

Suíça (Imagens da carga elétrica) iarabauer_ A Fapesp está de parabéns pelos seus vídeos de excelente qualidade. Tanto as imagens quanto o conteúdo comunicam, com beleza e didatismo, descobertas interessantes

Exossomos (verdes) incorporados por células de vasos sanguíneos de pulmão (núcleos em azul)

e pesquisas geniais. Obrigada, Fapesp! Vida longa a esta iniciativa dos vídeos! (Mata atlântica

Exclusivo no site

do Espírito Santo tem resquícios de floresta amazônica) Ali eles recrutam células e as “educam” para participar do

Linauria Do Carmo_ História

processo de metástase. Essas células

de vida do Alpha Crucis é muito

“educadas” migram para um órgão

interessante, na verdade

específico do corpo e o preparam

emocionante, ver brasileiros

para receber as células tumorais

se dedicando e se empenhando

que formarão a metástase.

é lindo! (A saga do Alpha Crucis)

No atual trabalho, os pesquisadores conseguiram identificar proteínas

Christian Fausto_ Fapesp, o sonho

presentes em exossomos provenientes

de consumo de todo pesquisador

de células de melanoma, o mais

não paulista... Parabéns a todos

grave entre os tipos de câncer

pela seriedade e excelência!

que atingem a pele. Essas

(Consolidação e renovação marcam

proteínas participam do processo

50 anos da FAPESP)

metastático do melanoma.

Vídeo do mês Ciclo de greves nos anos 1980 e 1990 foi parte do processo de construção da democracia brasileira http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP

8 | junho DE 2012

Assista ao vídeo:

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

} Um estudo internacional publicado na revista Nature Medicine, com a participação de pesquisadores brasileiros do Hospital A.C. Camargo, poderá ajudar a descobrir biomarcadores para detectar a disseminação de câncer, a metástase, em estágio ainda inicial ou a elaboração de drogas que impeçam o desenvolvimento da doença. A chave para essas futuras aplicações está nos exossomos – pequenas vesículas liberadas pelas células do corpo, inclusive pelas tumorais – que seguem até a medula óssea.


WiKi

o que é, o que é? Bactérias magnéticas

Pergunte aos pesquisadores A produção dos biocombustíveis altera o preço dos alimentos? Priscila Amorim [via e-mail]

foto Karen Tavares Silva  Ilustracão  daniel bueno

José Roberto Mendonça de Barros Economista da MB Associados Isso acontece nos

do biocombustível.

Estados Unidos, onde

No caso brasileiro,

o etanol é feito a partir

o etanol é feito a partir

do milho. Entre 2008 e

da cana-de-açúcar, mais

2009, a produção do

produtiva que o milho –

etanol cresceu muito,

um hectare pode

consumindo uma parte

produzir 10 toneladas

grande da safra, o

de milho, enquanto

que aumentou o preço

gera 90 toneladas

do milho. O efeito é

de cana-de-açúcar.

importante porque nesse

Portanto, aqui se utiliza

país o milho faz parte da

uma área menor para a

base da alimentação, é

produção do etanol.

usado para a produção

Se a demanda aumentar,

de ração de frangos e de

seriam possivelmente

suínos, para a fabricação

necessários mais

de óleos de cozinha,

5 milhões de hectares,

e pode, inclusive, ser

o que não é muito no

utilizado para produzir

amplo território brasileiro.

açúcar. Em 2009, cerca

Apenas de áreas de

25 kg de milho custavam

pasto subutilizadas,

US$ 4. Atualmente, o

quase 100 milhões

preço está em torno de

de hectares estão

US$ 6, mais caro em parte

disponíveis para plantio

devido à produção do

de cana-de-açúcar. Além

etanol. Hoje, um pouco

disso, o preço real dos

mais de 100 milhões de

alimentos, em São Paulo,

toneladas, quase um

diminuiu de 1975 até 2011

terço da safra total, são

devido, principalmente,

destinados à produção

à maior produtividade.

Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

Bactérias magnéticas (há dois exemplares na imagem) criam ímãs com formato de prisma e enfileirados, algo incomum na magnetita

As bactérias magnéticas são seres unicelulares ou pluricelulares que usam o campo magnético da Terra para se orientar. Isso porque elas produzem e mantêm dentro de si cristais nanométricos chamados magnetossomos que funcionam como ímãs comuns, do mineral magnetita. Elas se movimentam usando flagelos – estruturas que funcionam como nadadeiras – e, geralmente, nadam na direção do fundo do local onde vivem. Essas bactérias não crescem em ambientes com muito oxigênio e consomem carbono e nitrogênio. Apesar de pouco conhecidas, são encontradas em ambientes aquáticos do mundo todo, como, por exemplo, Cananeia (litoral de São Paulo), lagoa Rodrigo de Freitas (Rio de Janeiro), mar Mediterrâneo e também na China. Elas preferem águas calmas, encontradas em baías, lagos ou lagoas. Até hoje não há indícios de que causem danos à saúde. Esses microrganismos têm despertado interesse de pesquisadores, principalmente da área da computação e da biomedicina. Há tentativas de aplicá-los na criação de superfície magnética para computadores ou em meios de contraste usados em exames médicos. Essas propriedades, porém, ainda não são exploradas comercialmente. Outra curiosidade, com interesse para a indústria, é que esse ímã é permanente, ou seja, não se desmagnetiza. No genoma das bactérias existe a informação para a produção de proteínas que interferem na sintetização dos magnetossomos. Ulysses Lins, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre abril e maio de 2012

temáticos x Mecanismo de sinalização celular de Trypanosoma em resposta a alterações nutricionais e agentes genotóxicos Pesquisador responsável: Sergio Schenkman Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2011/51973-3 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016

x Sepse – Integrando a pesquisa básica e a investigação clínica II Pesquisador responsável: Reinaldo Salomão Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2011/20401-4 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016 x Mecanismos neurais de regulação do equilíbrio hidroeletrolítico e controle cardiorrespiratório. (FAPESP-MCT/ CNPq-Pronex-2011) Pesquisador responsável: José Vanderlei Menani Instituição: FO Araraquara/Unesp Processo: 2011/50770-1 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016

x Uso terapêutico do ultrassom na doença arterial coronária aguda e crônica. Subprojeto 1: uso terapêutico de ultrassom e microbolhas na recanalização de infarto agudo do miocárdio. Subprojeto 2: segurança Pesquisador responsável: Wilson Mathias Junior Instituição: InCor/USP Processo: 2010/52114-1 Vigência: 01/02/2012 a 31/01/2017 x Ações de grupos, teoria de subvariedades e análise global em geometria riemanniana e pseudor-riemanniana Pesquisador responsável: Paolo Piccione Instituição: IME/USP Processo: 2011/21362-2 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2017

Jovem pesquisador x Desenvolvimento de um novo modelo de hiperalgesia muscular

e estudo do envolvimento dos receptores p2x3 e p2x2/3 na hiperalgesia muscular Pesquisadora responsável: Maria Claudia Gonçalves de Oliveira Fusaro Instituição: FCA/Unicamp Processo: 2011/11064-4 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2014

x Alterações nucleares e na cromatina ao longo do ciclo celular e senescência de células de mamíferos Pesquisadora responsável: Julia Pinheiro Chagas da Cunha Instituição: Instituto Butantan Processo: 2011/22619-7 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016 x Avaliação do papel biológico de peroxirredoxinas na diferenciação celular eritroide e em doenças genéticas eritrocitárias Pesquisador responsável: Anderson Ferreira da Cunha Instituição: CCBS/UFSCar

Processo: 2011/50358-3 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016

x Narrativas evolutivas em museus de história natural Pesquisadora responsável: Maria Isabel Pinto Ferreira Landim Instituição: MZ/USP Processo: 2011/51754-0 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016 x Solos do Pantanal da Nhecolândia: caracterização, gênese e mineralogia Pesquisadora responsável: Sheila Aparecida Correia Furquim Instituição: ICAQF/Unifesp Processo: 2011/22491-0 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 x Intermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang-ke Pesquisadora responsável: Cecilia Antakly de Mello Instituição: EFLCH/Unifesp Processo: 2011/20692-9 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2015

Os periódicos mais citados As cinco revistas com maior fator de impacto (FI) de alguns países FI

Estados Unidos

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz

2,1

CA-A Cancer Journal for Clinicians

94,3

Revista Brasileira de Psiquiatria

1,6

New England Journal of Medicine

53,5

Clinics

1,4

Reviews of Modern Physics

51,7

International Braz J Urol

1,4

Annual Review of Immunology

49,3

Journal of the Brazilian Chemical Society

1,3

Nature Genetics

36,4

China

FI

Índia

BRASIL

FI

FI

Journal of Molecular Cell Biology

13,4

Bulletin of the Astronomical Society of India

2,6

Cell Research

9,4

Journal of Biosciences

1,9

Nano Research

5,1

Indian Journal of Medical Research

1,8

Fungal Diversity

5,1

Journal of Postgraduate Medicine

1,6

Molecular Plant

4,3

Journal of Genetics

1,3

Espanha Aids Reviews

FI 4,8

América Latina (exceto Brasil)

FI

Revista Mexicana de Astronomía y Astrofísica

2,5 1,9

Emergencias

3,1

Annals of Hepatology, MX

International Journal of Developmental Biology

2,9

Revista Mexicana de Ciencias Geológicas

1,1

Drug News & Perspectives

2,6

Revista Geológica de Chile

1,1

Histology and Histopathology

2,5

Andean Geology, CHI

1,1

Fonte: Thomson Reuters no sistema JCR

10 | junho DE 2012


Boas práticas Para entender o alcance das más condutas científicas, Ferric Fang, o editor-chefe da revista Infection and Immunity, e Arturo Casadevall, da Escola de Medicina Albert Einstein, de Nova York, examinaram a taxa de retratação em 17 revistas científicas de 2001 a 2010 e a compararam com o fator de impacto, que mede o alcance da publicação. Quanto maior o fator de impacto, eles concluíram, maior é a taxa de retratação. A publicação com o maior índice de retratação foi o New England Journal of Medicine, uma das revistas médicas mais importantes do mundo, que questionou a metodologia adotada nesse estudo. Recentemente, a própria Infection and Immunity teve de publicar várias retratações para os trabalhos de uma única pesquisadora da área de câncer, Naoki Mori. Ela assinou 30 artigos que receberam retratações, mas negou ter feito qualquer coisa errada e argumentou que os colegas é que foram descuidados na preparação dos textos (New York Times, 16 de abril). Seus artigos tiveram de ser retificados porque usaram imagens de trabalhos antigos em vez de apresentarem as dos estudos que estavam sendo descritos. Mori disse acreditar que essa reutilização não é má conduta científica. Fang, da Infection and Immunity, discordou e lamentou que ela continuasse a alegar inocência. “Infelizmente, as pessoas consideradas culpadas de conduta científica fraudulenta ou negligente parecem cair em padrões típicos de comportamento”, ele comentou

em uma entrevista ao New York Times. Segundo o jornal, Eric Poehlman, pesquisador da Universidade de Vermont, foi uma exceção. Em 2006, condenado a um ano de prisão por mentir em uma solicitação de financiamento ao governo e ter inventado dados em artigos sobre obesidade, menopausa e envelhecimento, ele se desculpou publicamente e ofereceu uma explicação: “Eu tinha me colocado em uma posição acadêmica em que, com toda honestidade, a quantidade de dinheiro que você conseguia é que determinava seu valor pessoal”. Poehlman argumentou que teria de reduzir sua equipe e deixar de pagar suas contas se não conseguisse os recursos – e então começou a fabricar os dados para seus artigos. “Eu estava em um redemoinho e não conseguia sair.” Carl Zimmer, o autor da

daniel bueno

Revistas com impacto maior têm mais retratações

reportagem publicada no New York Times, lembrou que os cientistas, para sobreviver, precisavam publicar o maior número possível de papers, de preferência em revistas com o maior número possível de leitores, e às vezes encurtam o caminho, simplificam procedimentos ou abdicam da ética para conseguir isso.

Europa contra fraudes A definição e a adoção de mecanismos mais rigorosos de proteção contra pesquisas potencialmente fraudulentas não estão acompanhando a ampliação do orçamento de pesquisa científica e tecnológica da União Europeia, que deve passar de € 57 bilhões de 2007 a 2012 para € 80 bilhões de 2012 a 2020. Em um artigo na revista Lancet de 5 de maio, porém, Xavier Bosch, médico da Universidade de Barcelona, Espanha, alertou para a necessidade de uma regulação urgente sobre definições de má conduta científica e dos

procedimentos que poderiam ser adotados para evitá-la. Uma possibilidade, ele argumentou, é que, como nos Estados Unidos, a má conduta seja definida como a fabricação, falsificação ou plágio de dados científicos. Bosch sugere que a escrita anônima – o ghostwriting – nos artigos científicos da área médica também seja considerada má conduta. Ele propõe a expansão e valorização do Código de Conduta Ética já adotado nos contratos de financiamento a pesquisas financiados pela União Europeia. PESQUISA FAPESP 196 | 11


Estratégias Reconhecimento em Stuttgart

1

A chegada do Alpha Crucis

O navio oceanográfico no porto de Santos: benefício para pesquisadores de várias instituições

O engenheiro químico

mais de 50 trabalhos

Hamilton Varela,

em revistas indexadas,

professor do Instituto

incluindo-se um

de Química da

recente artigo de capa

Universidade de

da revista PCCP, da

São Paulo em

Royal Chemistry

São Carlos (IQSC-USP),

Society, do Reino Unido.

recebe no final deste

O Centro Ertl foi

mês o Prêmio Ertl,

fundado e é dirigido

do Centro Ertl de

por Gerhard Ertl,

Eletroquímica e

vencedor do Prêmio

Catálise, localizado

Nobel de Química de

na cidade de Gwangju,

2007. Ertl foi diretor

na Coreia do Sul.

do departamento

Em sua primeira edição,

de físico-química do

o prêmio busca

Instituto Fritz Haber,

reconhecer grandes

da Sociedade Max

contribuições realizadas

Planck, em Berlim,

O navio oceanográfico

científico, Carlos Henrique

Alpha Crucis foi

de Brito Cruz, o diretor

inaugurado no dia 30

administrativo, Joaquim

na instituição. Único

durante o período em

de maio, em cerimônia

José de Camargo Engler,

brasileiro entre os

que Hamilton Varela

realizada no porto

e o diretor do IO-USP,

membros fundadores

realizava seu doutorado.

de Santos (SP). A

Michel Mahiques. A

do centro, Hamilton

“Além de ser um dos

embarcação, adquirida

expectativa é que o navio

Varela atua, desde

grandes nomes da área

pela FAPESP para o

propicie um salto na

2010, como responsável

de ciência de superfície

Instituto Oceanográfico

pesquisa em temas como

pela área de cinética

e cinética complexa,

(IO) da Universidade

mudanças climáticas,

complexa, com ênfase

Ertl é um exemplo de

de São Paulo (USP),

biodiversidade e pré-sal

no estudo de reações

gestor e liderança

substituirá o navio

(ver Pesquisa FAPESP

eletroquímicas de

científica. Trabalhar sob

Professor W. Besnard.

nº 195). Lafer destacou

interesse em sistemas

sua direção foi muito

A aquisição do Alpha

que o navio, cuja gestão

de conversão de energia

importante na minha

Crucis faz parte de um

será de responsabilidade

(ver Pesquisa FAPESP

carreira e ganhar um

projeto de incremento

do IO-USP, poderá ser

nº 165). Já publicou

prêmio que leva o seu

da capacidade de

usado por cientistas de

nome é muito especial”,

pesquisa submetido à

outras instituições. “Este

afirma o pesquisador

FAPESP pelo IO-USP.

é um grande dia para a

Varela. Entre 2005 e

O descerramento da

oceanografia brasileira”,

2007, ele foi apoiado

placa inaugural foi feito

disse. Rodas enfatizou

pela FAPESP por meio

pelo governador Geraldo

o alcance da aquisição.

do programa Jovens

Alckmin e pelo reitor

“Pesquisadores das

Pesquisadores em

da USP, João Grandino

universidades estaduais

Centros Emergentes.

Rodas. Participaram da

paulistas e de outras

O prêmio será

cerimônia o presidente

instituições brasileiras

entregue durante o

da FAPESP, Celso Lafer,

que tiverem projetos

o vice-presidente,

de pesquisa importantes

Eduardo Moacyr Krieger,

serão beneficiados. Na

o diretor presidente da

luta para adquirir o novo

Fundação , José Arana

navio, todos nós saímos

Varela, o diretor

vencedores”, afirmou.

12 | junho DE 2012

Ertl Symposium on Varela: destaque no estudo de reações eletroquímicas para conversão de energia

Surface and Interface Chemistry, que acontece entre 24 e 27 de junho em Stuttgart, 2

na Alemanha.


fotos 1 e 3 eduardo cesar 2 arquivo pessoal  4 Antônio CruzA / br  ilustraçãO  daniel bueno

A influência de Conceição

FHC recebe Prêmio Kluge

A economista Maria

Aloísio Teixeira,

A Biblioteca do

das relações raciais

da Conceição Tavares

Luciano Coutinho, Luís

Congresso dos Estados

no Brasil estabeleceram

foi agraciada com o

Gonzaga Beluzzo,

Unidos anunciou que o

a base intelectual

Prêmio Almirante Álvaro

João Manuel Cardoso

ex-presidente Fernando

para sua liderança

Alberto para Ciência

de Melo e a presidente

Henrique Cardoso

como presidente na

e Tecnologia 2011.

Dilma Rousseff. O

receberá o Prêmio

transformação do Brasil

Professora da

prêmio, organizado

John W. Kluge. A

de uma ditadura militar

Universidade Estadual

pelo Conselho Nacional

distinção, que inclui

com alta inflação em uma

de Campinas (Unicamp)

de Desenvolvimento

o montante de US$ 1

democracia vibrante e

e da Federal do Rio

Científico e Tecnológico

milhão, será entregue

mais inclusiva com forte

de Janeiro (UFRJ),

(CNPq) em parceria

em Washington no dia 10

crescimento econômico”,

exerceu influência

com a Fundação

de julho. O Prêmio Kluge

destacou o comunicado

sobre o pensamento

Conrado Wessel e

distingue acadêmicos

da Biblioteca do

econômico brasileiro,

a Marinha, voltou-se

das áreas de ciências

Congresso. O ex-­

com uma obra que trata

neste ano às áreas de

humanas e sociais.

-presidente é autor

do desenvolvimento

ciências humanas e

Lançado em 2003,

ou coautor de mais

de países da periferia do

sociais. Na entrega do

o Kluge não tem

de 23 livros acadêmicos

capitalismo. Escreveu

prêmio, a economista

periodicidade. Foi

e de 116 artigos científicos.

centenas de artigos e

disse ser “feliz por ser

entregue pela última vez

“Cardoso tornou-se

vários livros, entre os

brasileira e infeliz no

em 2008. Entre os sete

conhecido pela análise

quais Auge e declínio do

meu lado europeu”.

ganhadores anteriores

inovadora desenvolvida

processo de substituição

Nascida em Portugal,

estão os filósofos

com o chileno Enzo

de importações no

afirmou que a crise

Paul Ricoeur e Leszek

Faletto no debate das

Brasil – Da substituição

econômica na Europa

Kolakowski e os

melhores alternativas para

de importações ao

“será longa”.

historiadores John Hope

o desenvolvimento”, diz o

capitalismo financeiro, de

Franklin e Yu Ying-shih.

comunicado, referindo-se

1972. O texto foi escrito

“Sua análise acadêmica

ao livro Dependência

quando ela chefiava o

das estruturas sociais do

e desenvolvimento na

escritório da Comissão

governo, da economia e

América Latina, de 1969.

3

O ex-presidente: reconhecimento à trajetória acadêmica e política

Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil. Ao longo de 60 anos, ajudou a formar economistas e líderes políticos brasileiros, como José Serra, Carlos Lessa, Edward Amadeo,

4

Maria da Conceição Tavares: influência sobre líderes e economistas

Estímulo à inovação nas empresas A FAPESP anunciou novidades para estimular a pesquisa para inovação em empresas paulistas. Duas chamadas lançadas em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) somam recursos de R$ 45 milhões. A primeira busca apoiar o desenvolvimento de produtos, processos e serviços inovadores

por empresas paulistas de acordo com as regras do Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), em todas as fases do programa. A segunda apoiará empresas na Fase 3 do Pipe, na qual a empresa realiza o desenvolvimento industrial e comercial dos produtos. A FAPESP também terá

este ano outros dois ciclos para apresentação de propostas ao Pipe, com recursos de R$ 20 milhões para cada período – os períodos anuais para apresentar propostas passam de três para quatro. O limite de financiamento por projeto selecionado no programa aumentou de R$ 625 mil para R$ 1,2 milhão.

PESQUISA FAPESP 196 | 13


Tecnociência Não basta reduzir estômago

1

Seleção transgênica

Nova técnica nacional de inserção de genes vai combater doenças como a broca-do-café

A cirurgia de redução do

Essas mulheres ingeriam

estômago, procedimento

cerca de 20% menos

adotado em casos de

energia do que o

obesidade mórbida,

organismo normalmente

não resolve sozinha o

necessita. As outras 22

problema de excesso de

mulheres, cuja operação

peso. Se não houver uma

não produziu resultados

mudança rigorosa nos

tão animadores,

hábitos alimentares, a

consumiam apenas 10%

operação pode pouco

menos calorias do que

valer, de acordo com

o necessário. Outra

estudo de pesquisadores

diferença importante:

da Universidade Estadual

a dieta das que

Paulista (Unesp).

emagreceram menos

O grupo coordenado

continha mais gorduras

pela nutricionista Maria

e menos nutrientes

Rita Marques de Oliveira

essenciais (folato,

Para aprimorar o

depositada em abril.

desenvolvimento de

Atualmente, para

analisou o padrão de

vitaminas C e E) do que

plantas transgênicas

desenvolverem uma

consumo de alimentos

a das que perderam mais

no Brasil, pesquisadores

planta transgênica, os

relatado por 141

peso (Nutrition Research,

de duas unidades da

pesquisadores utilizam

mulheres que haviam

maio de 2012).

Empresa Brasileira de

promotores constitutivos,

passado por uma cirurgia

Segundo o estudo,

Pesquisa Agropecuária

o que significa que o

de redução do estômago

a carência de nutrientes

(Embrapa) – Recursos

gene inserido vai se

entre dois anos e sete

observada nas pessoas

Genéticos e Biotecnologia

manifestar em todas as

anos antes da pesquisa.

submetidas à cirurgia

e Café, ambas sediadas

partes da planta e em

Dos 141 casos estudados,

parece depender tanto

em Brasília – criaram

todas as etapas do seu

119 foram considerados

da qualidade dos

uma técnica que consiste

desenvolvimento. O novo

bem-sucedidos, com

alimentos como

em selecionar partes

método permite que o

perda de mais da metade

da redução do trato

específicas do gene,

gene inserido se expresse

do peso excedente.

digestivo, uma vez que

denominadas promotores.

apenas no endosperma

as mulheres que

Eles são responsáveis

(tecido nutritivo presente

emagreceram mais

por definir onde, quando

nas sementes) do fruto da

ingeriam um nível mais

e em que condições as

planta transformada.

adequado de nutrientes.

características desejadas

No combate a doenças

irão se manifestar nas

como a broca-do-café, por

plantas. A intenção dos

exemplo, causada por um

pesquisadores,

besouro que se instala

coordenados por Juliana

no grão do fruto para se

Dantas de Almeida,

reproduzir, o ataque seria

da Embrapa Recursos

diretamente no ponto

Genéticos e Biotecnologia,

de origem do problema.

é selecionar os promotores

O gene de resistência

de interesse e colocá-los

à broca seria comandado

em um catálogo para as

por um promotor

instituições de pesquisa.

específico que combateria

A patente da técnica

apenas o besouro, e não

de modificação de

outros insetos que se

genes de interesse foi

alimentam de folhas.

14 | junho DE 2012


Mapa da vulnerabilidade climática no Brasil Quase todo o Nordeste, o noroeste de Minas Gerais e as regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Brasília e Manaus são as áreas do Brasil mais suscetíveis aos efeitos das mudanças climáticas que podem ocorrer até o final deste século. Os estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e boa parte da Amazônia e do Centro-Oeste apresentam

um baixo risco de serem afetados de forma significativa por eventuais alterações do clima nas próximas décadas. As conclusões são de um estudo feito por pesquisadores do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espacias (CCST-Inpe) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, que criaram um índice misto Índice SCVI aponta áreas mais suscetíveis às alterações do clima (vermelho)

O volume das jarras redondas

fotos 1 eduardo cesar  2 CCST-Inpe / Unesp  3 Universidade de Tel-Aviv  ilustraçãO  daniel bueno

para medir a vulnerabilidade socioclimática de uma região (SCVI), ou seja, a chance de uma área de ser atingida por mudanças ambientais e sua capacidade de adaptação ao novo cenário (Climatic Change, 3 de maio).

Os antigos egípcios

perceberam que muitas

provavelmente sabiam

das jarras apresentavam

medir com exatidão,

circunferências similares

e não de forma apenas

e chegaram numa

2

aproximada como

fórmula do que acreditam

2

sempre se pensou,

ser uma unidade de

o volume contido em

volume criada pelos

jarras arredondadas

antigos habitantes

usadas na armazenagem

do Nilo e posteriormente

e transporte de óleo,

disseminada na região

vinho, cerveja e outros

pelos assírios: o hekat,

mantimentos – e esse

equivalente a modernos

Uma equipe do

o princípio da

conhecimento foi

4,8 litros. Uma ânfora

Instituto de Química da

simplicidade e da

adotado por outros

com 52 centímetros

Universidade Estadual de

parcimônia”, afirma

povos do Oriente Médio

de circunferência,

Campinas (IQ-Unicamp)

o químico Marcos

que se dedicaram

um tamanho bastante

desenvolveu uma

Eberlin, fundador

ao comércio desses

comum, tem exatamente

fonte de ionização

e coordenador do

produtos entre 1500

meio hekat.

extremamente simples

Laboratório ThoMSon

e 700 a.C.. A conclusão

e versátil para uso em

de Espectrometria

é de um estudo feito por

espectrômetros de

de Massas do IQ, onde

uma equipe de geógrafos

massa convencionais

o invento foi concebido.

e matemáticos da

e portáteis. Concebida

O projeto da fonte

Universidade de Tel-Aviv,

a partir de um simples

minimalista, que pode

que analisaram as

cateter cirúrgico,

ser usada na análise

medidas de centenas

uma agulha de injeção,

de amostras sólidas

de ânforas do sítio

uma lata de ar

e líquidas, foi patenteado

arqueológico de Tel

comprimido e capilares

pela universidade

Meggido, cidade-Estado

de sílica, a fonte tem

paulista, com apoio

cananita situada

custo irrisório e dispensa

da FAPESP. O artigo

numa parte do atual

o uso de eletricidade,

que descreve o novo

norte de Israel,

lasers, bombas, cilindros

aparelho ganhou a capa

ou acessórios de grande

da edição de 7 de junho

porte, podendo ser

deste ano da revista

usada na análise

científica Analyst,

de amostras sólidas

da Royal Society of

e líquidas.“Seguimos

Chemistry, da Inglaterra.

Ionização portátil

e construíram modelos em três dimensões dos recipientes (Plos One, 4 de junho de 2012). Os pesquisadores

3

Jarra de Tel Meggido: um hekat, medida dos antigos egípcios, equivaleria a 4,8 litros

PESQUISA FAPESP 196 | 15


O “peixe” amigo da poluição

1

O teste da Ekó House

Desenho da casa solar brasileira: 47 metros quadrados movidos pela luz da estrela

Tem forma, barbatana

de comprimento

e rabo de peixe, mas não

e pode nadar a uma

é peixe. É um robô com

velocidade máxima de

inteligência artificial que

um metro por segundo

imita o corpo do animal

tanto na superfície como

aquático para detectar

debaixo da água. Suas

e identificar poluentes no

baterias precisam ser

mar, como a presença de

reabastecidas depois de

cobre ou chumbo, e envia

oito horas. Mas, para isso,

as informações em

não é preciso resgatar

tempo real para um

o dispositivo das águas.

laboratório na costa.

Quando a energia

O peixe-robô tem

está baixa, ele retorna

pequenos sensores

automaticamente à

para detectar as fontes

base de recarregamento.

e o nível de poluição

O projeto do peixe-robô,

e pode se comunicar

que leva o nome de

Uma moradia de 47

que gerencia o projeto

metros quadrados que

em parceria com a

por ultrassom com seus

Shoal, conta também

funciona exclusivamente

Universidade Federal de

congêneres e por meio

com a participação

com o auxílio de painéis

Santa Catarina (UFSC).

de um sistema wi-fi

do Instituto Nacional

fotovoltaicos capazes

Iniciado em 2010, o

com a central no porto.

Tyndall, da Irlanda,

de converter a luz solar

desenvolvimento do

O sentinela biônico

e da Universidade de

em energia elétrica foi

protótipo faz parte

das águas foi concebido

Strathclyde, da Escócia,

projetada por

de um convênio entre

pela equipe do professor

além da Agência

pesquisadores brasileiros

a USP e a Eletrobrás,

Huosheng Hu, da

Portuária de Gijon,

para participar do

coordenado pelo

Universidade de Essex,

na Espanha, onde

Solar Decathlon Europe

professor Adnei Melges

na Inglaterra, e seu

os primeiros exemplares

2012, competição

de Andrade. “O projeto

projeto de pesquisa e

do dispositivo foram

internacional que reunirá

busca desenvolver

inovação é coordenado

testados. O custo

em setembro 20 equipes

tecnologias que resultem

pelo britânico BMT

de cada equipamento

internacionais em

em menor impacto

Group. Segundo a

está estimado em

Madri, na Espanha.

ambiental”, diz Andrade.

empresa, o robô tem

US$ 32 mil. No futuro,

Denominada Ekó House

No Solar Decathlon,

a capacidade de

o peixe-robô poderá

(na língua tupi-guarani

as propostas são

navegar de forma

ser usado também

ekó significa maneira

avaliadas por meio

autônoma e mapear

em operações de

de viver), a casa

de 10 provas que

toda a área percorrida.

resgate a embarcações

brasileira é composta

representam diferentes

Mede 1,5 metro

e a mergulhadores.

por cozinha, salas,

áreas, como arquitetura,

banheiro, quarto e

engenharia, eficiência

varanda. Estudantes

energética, conforto,

e professores de

comunicação, inovação

diversas áreas, como

e sustentabilidade

arquitetura e urbanismo,

(ver mais sobre o assunto

engenharias civil,

na edição 167 de

mecânica, elétrica,

Pesquisa FAPESP).

sanitária e ambiental,

As equipes participantes

fazem parte do Team

desenvolvem suas

Brasil, que reúne os

casas durante os 20

envolvidos na iniciativa.

meses que antecedem

Um protótipo da

a competição. Cerca

casa está em fase de

de 150 plantas são

montagem no Instituto

produzidas, com

de Eletrotécnica e

detalhes da construção

Energia da Universidade

e dos sistemas usados

de São Paulo (USP),

nas residências.

16 | junho DE 2012

Projeto Shoal: robô aquático identifica chumbo e cobre no mar

2


A gota e o cristal líquido

Menos mortes por Chagas

Moléculas de cristal líquido confinadas dentro de gotas nanométricas podem estimular um rearranjo da arquitetura interna e, assim, possibilitar a criação de materiais com novas propriedades (Nature, 3 de maio). A ideia é defendida por uma equipe internacional de pesquisadores coordenada por Juan de Pablo, da Universidade de Wisconsin-Madison, Estados Unidos, que simulou num modelo computacional a interação entre as moléculas de cristal líquido, material empregado atualmente em telas de computador e de TVs e em termômetros de alta precisão, e os chamados surfactantes, compostos que diminuem a tensão superficial de um líquido ou alteram as propriedades de sua superfície de contato. Os cientistas constatam que, ao resfriar o sistema, as gotas assumiam a

A proporção de mortes em consequência da doença de Chagas vem diminuindo, ainda que lentamente, no Brasil. Na última década, baixou de quase 4 em cada grupo de 100 mil por ano 3

forma de uma nanoestrutura ordenada. Quando a temperatura subia, o arranjo era desfeito. O efeito só se mostrava presente quando havia moléculas de cristal líquido interagindo com os surfactantes do sistema. Na ausência delas, o reordenamento não ocorria. “Esse comportamento não era conhecido”, diz De Pablo. Os pesquisadores acreditam que a abordagem pode ser usada para desenvolver dispositivos à base de cristal líquido capazes de detectar toxinas, moléculas biológicas ou vírus.

para menos de 3 o índice de mortes por causa da doença – estima-se que de 2 a 3 milhões de pessoas estejam infectadas com o

Modelo computacional mostra arranjo de nanoesferas de cristal líquido dentro de gota

protozoário causador da doença no Brasil. A única região em que a taxa aumentou foi a Nordeste (PLoS Neglected Tropical Diseases, fevereiro de 2012). O grupo de Alberto Ramos Júnior e Jorg Heukelbach, ambos da Universidade Federal do Ceará, avaliou 9 milhões de certidões de óbito registradas entre 1999 e 2007. Segundo o trabalho, o padrão de transmissão da doença

Vírus elétrico na sola do sapato

mudou, com a erradicação do principal vetor, o

fotos 1 Ekó House  2 BMT Group 3 Juan de Pablo  ilustraçãO  daniel bueno

inseto Triatoma infestans. Vírus quase nunca

Imobilizados em filmes

Nessas situações,

Para baixar mais

são bem-vindos, mas

finos e cobertos de

a energia viria, por

os índices, é preciso

uma forma desses

proteínas específicas,

exemplo, de vírus M13

investir contra os

microrganismos pode ser

os microrganismos

envoltos em filmes finos

vetores secundários

empregada para gerar

produzem eletricidade

instalados na sola dos

e a transmissão por

eletricidade e ser a base

por causa de

sapatos. Num

alimentos contaminados.

de novos equipamentos

suas propriedades

experimento no LBL,

eletrônicos. Trata-se do

piezoelétricas.

os pesquisadores

M13, um vírus que infecta

Quando os filmes são

liderados pelo professor

apenas bactérias e não

pressionados, os vírus

Seung-Wuk Lee

traz danos para humanos.

produzem elétrons para

produziram uma corrente

Com ele, pesquisadores

o sistema ao qual estão

elétrica suficiente para

do Laboratório Nacional

conectados. A ideia é

fazer aparecer o número 1

Lawrence Berkeley (LBL),

que esses equipamentos

em uma tela de cristal

do Departamento de

viróticos possam

líquido. Como os vírus

Energia dos Estados

recarregar um celular

se replicam facilmente,

Unidos e da Universidade

enquanto o dono do

o abastecimento de

da Califórnia em Berkeley

telefone móvel caminha,

energia seria seguro

criaram um equipamento

sobe escadas ou mesmo

e permanente

ainda rudimentar que

levanta para fechar uma

(Nature Nanotechnology,

gera energia elétrica.

porta ou pegar um café.

13 de maio). PESQUISA FAPESP 196 | 17


capa

Ramificações ancestrais Divergência de macacos-prego, tão antiga quanto a de seres humanos e chimpanzés, se reflete em ecologia e comportamento Maria Guimarães

18 | junho DE 2012


O

sobre esses macacos num congresso em 2010 no Japão. Reunindo os pesquisadores que mais estavam trazendo novidades ao conhecimento sobre esses primatas, o encontro deu origem a um volume especial da revista American Journal of Primatology, publicado em abril deste ano. Quando estudava o comportamento desses macacos em Caratinga, Minas Gerais, Jessica via diferenças entre eles e os de outros lugares, mas não tinha contexto evolutivo para avaliar de onde elas vinham. “Não sabíamos há quanto tempo os grupos estavam separados ou qual o parentesco entre eles”, conta. Agora o animal que ela estudava se chama Sapajus nigritus, diferente de como era conhecido tanto em gênero como espécie. O pontapé inicial da mudança foi sugerido por José de Sousa e Silva Júnior em seu doutorado, concluído em 2001 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele propôs dois subgêneros: Cebus para os caiararas, mais esguios, distribuídos da Amazônia para o norte, e Sapajus para os macacos-prego, mais robustos e muitas vezes caracterizados por um topete na cabeça, espalhados da Amazônia para o sul. “Ele foi corajoso em propor a divisão”, avalia Boubli, “mas agora podemos ir além”.

comportamento

Ecologia

Genética

fotos  Eduardo cesar

s macacos-prego e caiararas existem na América Central, na Amazônia inteira, no cerrado, na caatinga e em toda a mata atlântica, chegando até a Argentina. Nessa extensão variam muito em forma, cor, tamanho, preferências alimentares e comportamento. São primatas marcantes, com um sistema social complexo e capazes de usar ferramentas, uma habilidade rara. Mesmo diante da grande variação entre espécies, até recentemente os especialistas classificavam macacos-prego e caiararas no mesmo gênero, Cebus, e boa parte deles respondia nos registros científicos pelo nome Cebus apella. Nos últimos 10 anos, a classificação desses primatas vem passando por uma revolução, com base no trabalho de pesquisadores brasileiros e de fora. “A taxonomia deles ainda seguia o trabalho dos naturalistas”, diz o primatólogo brasileiro Jean-Philippe Boubli. “A era da tecnologia molecular está permitindo toda uma reorganização.” Junto com a colega norte-americana Jessica Lynch Alfaro, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, ele – à época pesquisador na Wildlife Conservation Society – organizou um simpósio

Desaparecidos por séculos, os macacos-prego-galegos foram redescobertos há poucos anos

zoologia

PESQUISA FAPESP 196 | 19


2

Só agora, uma década depois, a subdivisão se ampliou em trabalho de Jessica, Boubli e colaboradores publicado em fevereiro na revista Journal of Biogeography. Por meio de amplas análises genéticas, feitas sobretudo no laboratório de Jessica mas também no de Izeni Farias, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ficou demonstrado que Cebus e Sapajus são diferentes a ponto de serem considerados gêneros distintos embora de tamanho parecido, ambos com pouco mais de 2 quilogramas. Mais especificamente, o estudo mostra que as duas linhagens se separaram há mais de 6 milhões de anos – mesmo tempo que separa o surgimento de chimpanzés e de seres humanos a partir de um ancestral comum. A mudança foi aceita pela maior parte dos primatólogos e está na Lista anotada dos mamíferos do Brasil publicada em abril pela Conservation International. Mas não é unanimidade, como é costume no meio científico. Em comentário recém-publicado no site da American Journal of Primatology, Alfred Rosenberger, do Brooklyn College, em Nova York, defende que a divisão dos macacos-prego e caiararas foi apressada e até certo ponto desnecessária. Embora não critique os fundamentos genéticos, ele argumenta que uma repartição exagerada pode criar espécies raras que angariam mais recursos para conservação, mesmo que não se justifique do ponto de vista científico. A discussão envereda mais para o campo filosófico, com base na fluidez do conceito de espécie, que não tem fronteiras definidas. Jessica está convicta de suas conclusões. Por meio de sequenciamento genético e de técnicas que permitem estimar quando aconteceram as ramificações na árvore genealógica desses prima20 | junho DE 2012

tas, tudo isso relacionado à geografia de sua distribuição atual, o grupo liderado por ela chegou a uma proposta sobre a trajetória desses animais ao longo da evolução. A formação do rio Amazonas foi responsável por criar uma separação norte-sul que isolou os primatas que ali viviam, gerando a ramificação na genealogia que deu origem a Cebus e a Sapajus. Depois disso, por cerca de 4 milhões de anos não se sabe bem o que aconteceu. Só por volta de 2 milhões de anos atrás o grupo que deu origem aos macacos mais robustos se espalhou pela mata atlântica sem deixar descendentes na Amazônia. A ocupação de toda a costa brasileira foi rápida e se deu em conjunto com uma grande diversificação de espécies. Há cerca de 700 mil anos a expansão ao sul chegou até a Argentina, próximo às cataratas do Iguaçu, e rumou para o norte ocupando o cerrado, na região central do Brasil. Em seguida, por volta de 400 mil anos atrás, eles chegaram de volta à Amazônia, onde tornaram a se encontrar com seus parentes mais delicados, que se tinham espalhado pela região norte, em torno dos Andes, e chegado até a Costa Rica, na América Central.

2 Os esguios Cebus capucinus, habitantes da América Central

foto 1 Tiago falótico / ip-usp  2 michael alfaro / ucla

1

Dados genéticos mostram que macacos-prego e caiararas são diferentes a ponto de serem considerados gêneros distintos

1 Sapajus libidinosus escala paredão na serra da Capivara


Andanças evolutivas Recursos de análises genéticas permitiram retraçar a trajetória dos Cebus e Sapajus ao longo dos milhões de anos (esquerda) e entender como surgiu a diversidade que agora começa a ser revelada. À direita, a distribuição dos gêneros agora propostos, com sobreposição na Amazônia

2 O ramo que deu origem aos Cebus se espalhou pela Amazônia e em torno da ponta norte dos Andes, até a América Central

Macaco Cebus

2

3

Macaco Sapajus 4 1

infográfico laura daviña  ilustração macacos Amisha Gadani

1

1 O primata que deu origem aos macacos-prego e caiararas vivia no oeste da Amazônia há mais de 6 milhões de anos

6.1 Ma 2

4

3 5

2.1 Ma 8

6

7

Sapajus

1.1 Ma

1 Sapajus macrocephalus 2 Sapajus apella

Cebus Sapajus

6,1

2,1

1,1

0,5

Milhões de anos atrás

6,2 milhões de anos é o tempo que Cebus e Sapajus evoluíram em separado

0,125

3 Os Sapajus tiveram origem num ancestral que chegou à mata atlântica, onde se diversificaram antes de reinvadir a Amazônia

Essa reinvasão relativamente recente da Amazônia pelos macacos-prego explica sua baixa diversidade por ali em número de espécies, e também a competição que se estabelece entre os dois gêneros que ficaram separados por milhões de anos. “Os Sapajus conseguem usar uma variedade maior de recursos, como quebrar frutos mais duros”, explica Jessica. Isso faz com que, quando eles coexistem com seus primos do norte – como é comum no oeste da Amazônia entre C. albifrons e S. macrocephalus –, a densidade dos mais esguios fique reduzida. Boubli analisou mais a fundo a diversidade genética dos Cebus, em artigo publicado na edição especial da American Journal of Primatology, e mostrou que esses animais pouco estudados abrigam uma enorme diversidade. Para Izeni Farias, responsável pelas análises genéticas, não foi surpresa. “A distribuição é muito ampla, era de se esperar uma grande variação”, afirmou a geneticista, coordenadora de um projeto do Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota) que busca amostrar a diversidade genética dos vertebrados amazônicos. Experiente em andanças pela selva amazônica, Boubli vê o estudo genético como um ponto de partida que indica a necessidade de novos estudos. “Os interflúvios de rios como o Jaú, o

0.5 Ma

3 Sapajus libidinosus 4 Sapajus flavius Cebus

1 Cebus albifrons

5 Sapajus xanthosternos

2 Cebus capucinus

6 Sapajus robustus

3 Cebus olivaceus

7 Sapajus nigritus

4 Cebus kaapori

8 Sapajus cay

0.125 Ma

Purus e outros separam populações que podem ficar isoladas tempo suficiente para se tornarem espécies”, explica o primatólogo. Um exemplo observado por ele são macacos das duas margens do rio Negro que estão separados há 1 milhão de anos, segundo dados genéticos. “Olhando, eles parecem iguais. Será que são espécies diferentes?” A olho nu

Na amplitude tridimensional da Amazônia, coletar material para estudos genéticos já é bastante difícil. Estudos de ecologia e comportamento são muito mais complicados, daí a quase total ignorância sobre os animais que vivem por lá. A maior parte dos estudos que envolvem observação acontece em áreas de fácil acesso, onde os macacos já estão habituados à presença humana. No Brasil, isso torna os Sapajus muito mais estudados do que os Cebus. E há bastante variação de uma espécie a outra. Essa variação depende em parte do ambiente, como mostra um grupo liderado por Patrícia Izar, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), em artigo na American Journal of Primatology. A equipe comparou S. nigritus do Parque Estadual Carlos Botelho, no interior de São Paulo, e S. libidinosus da Fazenda Boa Vista, PESQUISA FAPESP 196 | 21


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raízes e de aranhas que vivem em ninhos subterrâneos. Além disso, são também exímios na confecção e no uso de varetas para tirar mel de colmeias e desentocar mamangavas e outros insetos de ocos em troncos de árvores. Eles também usam varas compridas para expulsar lagartos de frestas nos paredões de pedra avermelhados que se erguem até 50 metros acima do solo. “A diferença de comportamento entre grupos da mesma espécie em ambiente similar indica que eles podem ter tradições transmitidas por aprendizagem social”, explica Falótico. Outro uso curioso de ferramentas está no repertório das fêmeas de apenas um grupo da serra da Capivara: elas atiram pedras nos machos para chamar atenção durante os poucos dias de duração do cio. Outro adepto do uso de ferramentas é o macaco-prego-galego (S. flavius), estudado no Rio Grande do Norte por Ricardo Emidio e Renata Ferreira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poucos estudos foram feitos sobre essa espécie, até recentemente conhecida apenas por uma pintura do século XVIII que ninguém sabia se representava um animal existente.

1 Filhotes aprendem com observação de perto 2 Macho usa vareta para coletar mel de fresta em árvore

Habilidades alternativas

Mesmo não usando ferramentas no dia a dia, os macacos-prego de florestas também têm habilidades manuais. É o que mostrou a equipe do primatólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), por meio de experimentos com Sapajus nigritus em que posicionou bananas dentro de caixas de acrílico em plataformas numa propriedade privada em Porto Alegre. Criado pelo antropólogo Paul Garber, da Universidade de Illinois e coautor do artigo, o experimento teve resultados semelhantes aos obtidos pelo norte-

fotos tiago falótico / ip-usp

no município de Gilbués, Piauí. As diferenças ecológicas são marcantes: uma espécie de mata atlântica, que passa a maior parte do tempo no alto das árvores, e outra de caatinga, usando mais o chão em meio à vegetação menos generosa. Talvez por causa do ambiente mais aberto, os macacos nordestinos demonstravam mais incômodo com a presença dos pesquisadores, que por vezes acusavam em gritos de alarme como se fossem predadores. Essa maior percepção do risco do entorno pode estar por trás dos grupos sociais mais coesos ali do que na floresta paulista. A disponibilidade de alimento, surpreendentemente menor na mata mais exuberante, também afeta a estrutura do grupo, que em Carlos Botelho muitas vezes se dispersa em busca de uma boa refeição. As palmeiras da caatinga produzem cocos de vários tipos, ricos em nutrientes e que exigem perícia de quem deseja consumi-los: o uso de ferramentas, comportamento comum em Sapajus mas nunca observado em Cebus. “São raríssimos os registros de uso de ferramentas em macacos arbóreos”, conta Tiago Falótico, do IP-USP. Ele mostrou, em seu trabalho de doutorado terminado em 2011 sob orientação de Eduardo Ottoni, que além do aspecto ecológico esse comportamento também é influenciado pela cultura dos grupos. “Os macacos do Parque Nacional da Serra da Capivara têm um instrumental muito mais variado que os de Gilbués”, conta, sobre dois locais no Piauí. Em Gilbués, os cocos da piaçava, do catulé e do catuli chegam a ser bastante grandes e difíceis de quebrar. Nada que desanime os Sapajus libidinosus, o macaco-prego-amarelo: eles usam pedras de até 3 quilogramas (praticamente o próprio peso), que erguem e abatem sobre o coco apoiado numa pedra plana. “As fêmeas às vezes precisam saltar com a pedra e usar a força da queda para conseguir quebrar os cocos”, diz o pesquisador. Mas a criatividade para por aí em Gilbués, enquanto os grupos da serra da Capivara, que não têm cocos para quebrar (mas abrem castanhas de caju a pedradas), usam o mesmo tipo de ferramenta para cavar o solo arenoso em busca de


-americano com Cebus capucinus na Costa Rica. Numa primeira versão do desafio, os macacos precisavam puxar uma vareta para derrubar a banana e “A diferença de deixá-la ao alcance das mãos. Os dois comportamento machos do grupo aprenderam o truque com facilidade. Mas quando o exentre grupos perimento mudou, e a vareta passou a precisar ser empurrada, o sucesso não indica que eles se repetiu. Não por falta de capacidade na solução de problemas, na opinião do podem ter pesquisador gaúcho. “A associação foi tradições muito fácil, mas eles parecem precisar de mais tempo para extinguir o aprentransmitidas por dizado”, explica. Numa próxima oportunidade, ele pretende começar o teste aprendizagem”, pela segunda versão, para comprovar sua hipótese. diz Falótico Outro tipo de ferramenta, muito diferente, é o hábito de esfregar produtos diversos, como frutos ou insetos, na pelagem. Até recentemente esse costume tinha sido observado muito mais em Cebus do que em Sapajus. “Como é um comportamento observado esporadicamente em Sapajus, quase ninguém tinha dados suficientes para publicar”, conta Jessica Lynch Alfaro, que reuniu as informações recolhidas por diversos pesquisadores em uma revisão. De maneira geral, o trabalho mostrou que os Cebus têm uma tendência maior do que seus primos a esfregar no pelo quase tudo que encontram, com uma preferência por material vegetal, como frutos cítricos e folhas. O comportamento é mais raro em Sapajus, que, sobretudo na mata atlântica, restringem o uso a insetos. A escolha de material para besuntar-se não deixa de ter uma Na caatinga do Piauí, pedras tão influência ecológica – o que estiver disponível pesadas quanto –, mas uma diferença intrínseca entre os dois os macacos gêneros é decisiva. “No Parque Nacional Manu, servem para

no Peru, os Sapajus não se esfregam e os Cebus sim”, exemplifica Jessica. Os macacos-prego da mata atlântica têm uma preferência marcada por formigas, como mostraram Tiago Falótico e sua colega Michele Verderane em estudo feito no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, e publicado em 2007. Principalmente na estação seca, quando há mais carrapatos, os primatas pegam punhados de formigas e esfregam meticulosamente pelo corpo. “Elas liberam ácido fórmico, que tem ação repelente para carrapatos”, conta o pesquisador da USP. Ele e Michele comprovaram o efeito passando a substância no dedo e inserindo num frasco de carrapatos, num experimento em que contavam quanto tempo os parasitas caminhavam sobre o dedo e que distância percorriam. Falótico viu o mesmo comportamento no Piauí, onde os macacos também esfregam piolhos-de-cobra, fonte de benzoquinona, um repelente contra pernilongos. Outras observações recolhidas por Jessica permitiram mapear a esfregação por macacos-prego e mostrar que o procedimento não se limita a uma preferência cosmética e tem uso prático e até medicinal. Um caso curioso é o dos Cebus albifrons que vivem no meio de um vilarejo da Amazônia equatoriana e costumam roubar o sabão de lavar roupa, que usam para tomar banho. Há muito de novo no reino dos macacos-prego, mas os especialistas estão longe de satisfeitos. Para Jessica e Boubli, eles apenas revelaram a ponta do iceberg, uma indicação do quanto ainda há por descobrir. Na Amazônia, onde o comportamento e a ecologia são praticamente desconhecidos, as informações genéticas são uma pista de que talvez haja espécies às quais ninguém dá importância. “Espero que as novas populações e espécies descobertas ajudem a tomar decisões de conservação”, diz Jessica. n

quebrar cocos

Artigos científicos LYNCH ALFARO, J.W. et al. Explosive Pleistocene range expansion leads to widespread Amazonian sympatry between robust and gracile capuchin monkeys. Journal of Biogeography. v. 39, n. 2, p. 272-88. fev. 2012. BOUBLI, J.P. et al. Cebus phylogenetic relationships: a preliminary reassessment of the diversity of the untufted capuchin monkeys. American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 381-93. abr. 2012. IZAR, P. et al. Flexible and conservative features of social systems in tufted capuchin monkeys: comparing the socioecology of Sapajus libidinosus and Sapajus nigritus. American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 315-31. abr. 2012. GARBER, P.A. et al. Experimental field study of problemsolving using tools in free-ranging capuchins (Sapajus nigritus, formerly Cebus nigritus). American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 344-58. abr. 2012. LYNCH ALFARO, J.W. et al. Anointing variation across wild capuchin populations: a review of material preferences, bout frequency and anointing sociality in Cebus and Sapajus. American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 299-314. abr. 2012. PESQUISA FAPESP 196 | 23


entrevista  Luiz Rodolpho Raja Gabaglia Travassos

As vitórias do “Doutor calouro” Bioquímico identificou bactérias causadoras de infecções hospitalares e desenvolveu novos medicamentos contra câncer

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á muito tempo, lá por 1960, os colegas o chamavam de “Doutor calouro”, por causa de seu avanço rápido. Quando os estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil – hoje Federal do Rio de Janeiro, UFRJ – ainda procuravam se ambientar ao curso, Luiz Rodolpho Travassos já estava em um laboratório aprendendo a lidar com microrganismos. A vocação para a ciência e a dedicação o levaram a isolar e caracterizar pela primeira vez no Brasil bactérias hoje classificadas como Acinetobacter, causadoras de infecções hospitalares, e a publicar seu primeiro artigo quando ainda estava no terceiro ano da graduação. Travassos cresceu envolvido pelo mundo da ciência. Seu pai foi Joaquim Travassos da Rosa, bacteriologista e virologista que trabalhou no Instituto Butantan e no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro. “Cresci cercado pelos melhores cientistas do país e nunca tive dúvidas do que queria fazer”, contou Travassos em sua sala da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), rodeado de livros e de retratos dos filhos 24 | junho DE 2012

– um músico e uma atriz. Ambos passaram parte da infância em Nova York enquanto ele suava a camisa como pesquisador em início de carreira, o que não o impede de, ainda hoje, sentir saudade daqueles tempos. “Tudo o que eu gosto na vida está em Nova York: música sinfônica de qualidade, ópera, teatro. Acho o frio ótimo.” Travassos trabalhou nos anos 1970 em Nova York, na Universidade de Columbia e no Memorial Sloan Kettering Cancer Center. Ele foi um dos primeiros especialistas em oncologia experimental no Brasil e deu contribuições para o estudo da doença de Chagas e da paracoccidioidomicose, uma das principais micoses sistêmicas do país. Também ajudou na criação do sistema de pós-graduação de 1967 a 1971, quando era da diretoria do então Conselho Nacional de Pesquisas, hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CPNq), e foi um dos responsáveis pela estruturação e organização dos cursos na área de biologia e ciências médicas. Hoje aposentado, aos 74 anos, com dois filhos e três netos, continua orientando alunos da Unifesp e publicando artigos. A seguir, os principais trechos da entrevista.

léo ramos

Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin


PESQUISA FAPESP 196 | 25


No primeiro ano da graduação o senhor já trabalhava em um laboratório da universidade, enquanto cursava medicina no Rio. Por que tão rápido? Meu caso não é comum. Meu pai, Joaquim Travassos da Rosa, era um cientista renomado, que trabalhou 27 anos no Instituto Butantan. Desde cedo tive essa influência muito forte. Ele era de Belém do Pará. Nasci no Rio de Janeiro porque uma parte da família dele migrou para o estado do Rio. Depois do Butantan meu pai voltou para o Rio e trabalhou no IOC, que chegou a dirigir. Ele conhecia o meio científico daquela época e foi praticamente um orientador do Paulo de Góes, que era diretor do Instituto de Microbiologia. Góes fez concurso para a faculdade de farmácia e depois para a faculdade de medicina. Ele reuniu as duas cátedras e criou o Instituto de Microbiologia. Enquanto eu fazia o curso de medicina ele era catedrático da medicina. Tive essa porta aberta e, desde o primeiro ano de medicina, eu estava no laboratório.

ter baumannii, uma bactéria altamente resistente a antibióticos e responsável por muita infecção hospitalar. Na época já sabiam o que ela provoca? Tínhamos isolado a bactéria de casos de piodermite [infecções purulentas da pele] e meningite e sabíamos de seu alto poder patogênico e de um metabolismo próprio, bem oxidativo, diferente do tipo fermentativo dos bacilos Gram-negativos. Com isso publiquei meu primeiro trabalho, no terceiro ou quarto ano da faculdade. O senhor publicou sozinho, sem o chefe do laboratório? Fiz o trabalho sozinho e o escrevi inteiro. Solé-Vernin trabalhava mais com cocos patogênicos, Gram-positivos. Aquela no-

rio dele havia trabalhos com nutrição de microrganismos e métodos de dosagem microbiológica. Por meio do Cury conheci uma pessoa que foi um pai científico para mim, o Seymour H. Hutner, de Nova York. Ele estava num laboratório particular criado por Caryl Parker Haskins, que também era cientista, autor e inventor. Os Haskins Laboratories eram de altíssimo nível e funcionavam em três andares de um prédio no centro de Nova York. Por ideia do próprio Haskins, eles tinham que desenvolver pesquisas originais sobre microrganismos raros e aplicações, as quais nas mãos de Hutner derivaram em dosagens microbiológicas de vitaminas e testes de drogas anticâncer. Cury soube do trabalho deles em nutrição de microrganismos, ficou um período trabalhando lá com Seymour Hutner e aprendeu a fazer meios de cultura sintéticos, às vezes com até 40 substâncias, cuidadosamente avaliadas em termos de composição, balanço quantitativo e qualitativo etc. E depois trouxe todo esse conhecimento para o seu laboratório, que era onde estavam as novidades. Tinha equipamentos novos, um Warburg que aprendemos a calibrar com mercúrio! Aprendi muito ali, além da nutrição de microrganismos, e comecei a testar drogas usando os microrganismos como instrumentos de análise.

Nos anos 1960, quem fizesse oncologia experimental no Brasil era visto, no mínimo, como vigarista

Já estava claro que esse era o caminho que o senhor queria seguir? Sim, muito claro. Fui para a faculdade de medicina não por uma vocação clínica. Minha vocação é biomédico-científica, seguindo mais ou menos a linha do meu pai. No primeiro ano fui para um laboratório mais de bacteriologia, do Carlos Solé-Vernin. Era um laboratório de estudo de cocos [um grupo de bactérias] patogênicos, em que eu podia conhecer as técnicas básicas de bacteriologia. Depois de um ano no laboratório virei monitor dos alunos do segundo ano para ensinar a parte prática. Passaram a me chamar de “Doutor calouro”. Isso porque raspavam a cabeça e eu usava uma boina verde de calouro. A gente isolava bactérias de casos clínicos, alguma dermatite purulenta, meningite, coisas desse tipo. Desses casos, isolei uma bactéria que parecia morfologicamente a Neisseria, um gênero de bactérias Gram-negativas. Acabei descobrindo que aquela bactéria tinha sido descrita com o nome de Mima polymorpha, porque mimetizava a Neisseria. Hoje é conhecida por Acinetobac26 | junho DE 2012

va bactéria também era novidade para ele, que não achou que deveria assinar o artigo. Eu poderia ter publicado numa revista internacional, mas acabou saindo nos Anais de Microbiologia, porque o Paulo de Góes criou uma revista institucional no instituto, que naquela época parecia ser uma boa coisa, mas que acabou até prejudicando em parte a minha carreira, desviando de uma publicação internacional. Eu publiquei uns 10 trabalhos nela. Por que depois o senhor mudou de laboratório? Fui para o laboratório do Amadeu Cury porque era mais voltado para a bioquímica, que é minha vocação. No laborató-

Quais drogas? Por exemplo, uretana etílica, uma droga anticâncer, no começo dos anos 1960. A etionina foi um caso interessante, porque ela é um análogo da metionina, um aminoácido doador de metila. A etionina, ao contrário, pode transferir um radical etila para o DNA, o que aumenta o grau de mutação do DNA. É um aminoácido perigoso, porque a “etilação” do DNA pode resultar no aparecimento de um tumor. Comecei a estudar a etionina. Naquela época não se usava célula tumoral ou de mamífero, era tudo microrganismo. Em vez de usar a célula eucariótica de mamífero, usávamos uma série de leveduras, por exemplo, porque quando dávamos etionina, a célula morria. Ao usar leveduras chegávamos à conclusão de como


a droga agia. Já o Hutner usava algas e outros microrganismos, como o Ochromonas malhamensis, um protozoário. Ele sempre trabalhava com protozoários para inferir como aquilo funcionaria em uma célula de mamífero. Foi o Hutner quem trouxe a ideia de a gente ter uma levedura para outras finalidades além do interesse micológico do fungo em si. Onde mais havia pesquisa de câncer no Brasil? Em quase lugar nenhum. Estava tudo começando e existiam alguns tabus na pesquisa daquela época. Um deles era a radioatividade. Medir e usar radioatividade em bioquímica era considerado uma técnica altamente sofisticada e acima da capacidade normal. Quando se falava em radioatividade diziam, “Isso não está ao alcance das pessoas”. Não tinha nem aparelho para medir radioatividade, nada. O Carlos Chagas Filho, no Instituto de Biofísica, acabou com esse tabu. Junto com o Eduardo Pena Franca começou a trazer aparelhos para medir radioatividade e a técnica passou a ser algo acessível. Com o câncer acontecia algo parecido. Se um jovem optasse por trabalhar com oncologia experimental, iam dizer que ele era, no mínimo, vigarista.

Como foi sua passagem pelo CNPq? Depois da graduação fui fazer o doutorado com o Amadeu Cury, em 1963. Ele era amigo de um círculo de pessoas importantes na ciência brasileira. Um deles era Aristides Leão, que foi presidente da Academia Brasileira de Ciências durante muitos anos. Tinha o Lauro Solero, da farmacologia, o Antonio Moreira Couceiro, que foi presidente do CNPq. Aos sábados, eles se reuniam para bater papo e tomar uísque. Eu ia nessas reuniões e conversava com eles. Desse tipo de contato nasceu o convite do Couceiro para eu dirigir o setor de biologia e ciências médicas do CNPq, em 1967. Foi uma experiência fantástica. O senhor tinha de avaliar projetos?

ou não, formalmente, os cursos de pós-graduação. Como entre minhas funções estava aprovar o centro de excelência e a pós-graduação era uma condição sine qua non do centro, eu avaliava o curso também. Isso tudo ajudou a construir os cursos de pós-graduação no Brasil. Foi dessa época que vieram os atuais critérios? Desse período. Tinha gente que vinha me procurar querendo fazer pós-gradua­ ção nessa ou naquela área, pedia minha opinião sobre como montar cursos. Às vezes, a gente fazia boas combinações. Por exemplo, tinha um professor de bioquímica em Pernambuco que cobria um número de áreas, mas tínhamos de reforçar com outro professor do Ceará. Fazíamos uma composição entre os dois para conseguir montar o curso. Quando quiseram criar o curso de pós de microbiologia na Escola Paulista de Medicina [atual Unifesp], antes de eu vir para cá, peguei todos os critérios para elaboração de teses e dissertações do curso de que eu tinha escrito o regimento no Rio e passei para adaptarem aqui.

Depois da passagem por Nova York foi absolutamente traumático trabalhar na Ilha do Fundão

Mesmo assim, o senhor escolheu trabalhar com câncer. É... Cultura de células era uma coisa completamente fora de cogitação e quem introduziu isso aqui foram a alemã Hertha Meyer – que já estava no Brasil – e a italiana Rita Levi-Montalcini. As duas trabalharam com o Chagas Filho no Instituto de Biofísica. Rita pesquisava fatores de crescimento de células neuronais [ela ganharia o Prêmio Nobel de Medicina de 1986 por esse trabalho] e ficou um período, em 1953, no Rio. Antes do trabalho das duas, mal se falava em cultura de tecidos e células tumorais por aqui. Eu tinha uma noção de que fazia algo que poderia ser importante, mas estava completamente fora de qualquer universo que estivesse estudando câncer no Brasil. Estamos falando de 1960, quase 1970.

Pilhas de projetos. E não só isso. Devia promover e criar programas, chamar pessoas, fazer trabalho de administração do setor de biologia e ciências médicas. Foi muito interessante porque conheci os outros diretores de física, química, agronomia, matemática. Nos reuníamos para fazer relatórios, ver se sobrou dinheiro, quem ia gastar. Eu era o mais novo do grupo, com uns 30 anos. Fiquei lá seis anos e aquela fase coincidiu com o seguinte: o CNPq tinha que credenciar os chamados centros de excelência, que eram locais com produção científica muito boa que estavam montando suas pós-graduações no novo sistema stricto sensu. Depois, é claro, o Conselho Federal de Educação deveria avaliar para ver se aprovava

Quando decidiu ir para Nova York? Fui para o laboratório da mulher do Seymour Hutner em 1971, com uma bolsa da Fundação Guggenheim por um ano. No segundo ano fiquei pelo CNPq. Ele era casado com a Margarita Silva-Hutner, de Porto Rico, Ph.D. em micologia pela Universidade Harvard. Como eu trabalhava com leveduras termófilas, fui para o laboratório de micologia da Universidade de Columbia, chefiado pela Margarita. Era um laboratório tradicional, onde a Elizabeth Hazen tinha descoberto quimioterápicos importantes como a nistatina contra fungos. Levei um assunto meu – um método de dosagem microbiológica de carnitina, um transportador essencial de ácidos graxos no coração – e me deram um laboratório para eu continuar trabalhando. Fiquei sozinho, o que não era o ideal para mim, porque não estava aprendendo nada de novo. No laboratório ao lado do meu estava trabalhando KenPESQUISA FAPESP 196 | 27


neth O. Lloyd, que era do País de Gales e fazia bioquímica de fungos. Mudei para lá porque era o que eu queria aprender. Fiquei dois anos e meio, de 1971 a 1974. E o que aconteceu? Lloyd tinha sido orientado por Elvin Kabat, uma figura importante da imunoquímica, que, junto com o Baruj Benacerraf, Nobel de Medicina de 1980, foi aluno do Michael Heidelberger, um dos pais da moderna imunologia. Lloyd e Kabat trabalhavam muito com a imunoquímica de carboidratos e polissacarídeos. Com o Lloyd aprendi química de carboidratos e dei uma contribuição porque na época o estudo de heteropolissacarídeos era delimitado do ponto de vista da química básica. Nesse meio tempo o Lloyd começou uma colaboração com Philip Gorin, inglês que foi para o Canadá e estava desenvolvendo análise de polissacarídeos com ressonância nuclear magnética. Isso levou a um salto enorme na identificação da estrutura de carboidratos e polissacarídeos. Por meio do Lloyd comecei a interagir com Gorin, o que teve consequências importantes porque, além de aprender química básica de estrutura de polissacarídeos, quando voltei ao Brasil instalei um serviço de glicobiologia [estudo das estruturas e funções de moléculas ligadas a carboidratos encontradas nas células] no Instituto de Microbiologia da UFRJ em 1974. Consegui trazer o Gorin para a UFRJ enquanto eu instalava o serviço e ele ficou um ano no meu laboratório, pesquisando e ensinando.

sição, mas elas eram sempre temporárias. É uma situação instável para quem tem família e um emprego garantido para o resto da vida no Brasil. Em 1976 fiz concurso para professor titular na UFRJ. Foi traumático, primeiro, trabalhar na Ilha do Fundão do Rio, onde fica o campus. Antes estávamos na Praia Vermelha. As histórias que eu tenho do Fundão ninguém acredita. Por exemplo? O mato tinha dois metros de altura. Achávamos cobra nos corredores. Havia muitos ratos roendo a fiação toda. Era um local inóspito, um aterro onde foi construída uma estrutura que parecia de presídio. Tinha uma estrutura de cimento, com lajes, e se alguém no

to de morfologia. Era possível interagir, apesar daquela estrutura estranha. Conseguimos criar um bom ambiente. Longe do ideal, claro. Fiz o concurso para titular em 1976, mas eu estava com Nova York na cabeça. Nesse momento aconteceu algo muito interessante. Kenneth Lloyd perdeu o emprego na Columbia, porque entrou outro chefe de departamento da dermatologia que decidiu fazer um trabalho mais clínico com aplicação radiológica em vez de pesquisa. Como Lloyd fazia bioquímica de fungos, perdeu o emprego e foi trabalhar na Universidade do Texas em Lubbock, uma cidade ao lado do deserto. Ele sobrevivia, mas estava infeliz. Por sorte Lloyd J. Old, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, um dos maiores centros de câncer do mundo, conseguiu levar o Ken Lloyd de volta para Nova York. Como eu continuava a colaborar com o Lloyd, quando ele foi para lá avisei, “também quero ir”. Em 1978 fui para o Sloan Kettering. Foi outra época sensacional em Nova York.

Meu trabalho sobre o anticorpo R24 teve mais de 500 citações e gerou uma droga contra câncer

Por que o senhor voltou para Nova York? A volta para o Brasil depois da minha primeira passagem foi traumática. Tudo o que eu gosto na vida está em Nova York: música sinfônica de qualidade, ópera, teatro. Gosto da vida cultural, dos parques. Acho o frio ótimo. Meus dois filhos, Marta e Alexandre, se deram maravilhosamente bem, fizeram amizades, minha produtividade científica foi excelente. Eu já era professor adjunto na UFRJ, mas a bolsa acabou e não havia como me sustentar lá. Procurei uma po28 | junho DE 2012

laboratório de cima resolvesse lavar o chão, vazava no andar de baixo. Naquela época a favela da Maré era ali do lado. Abríamos a janela e vinha cheiro de esgoto. Foi um contraste violento com o que eu havia vivido antes. Tanto é que fiquei pouco tempo. Mesmo assim o senhor conseguiu instalar o laboratório? Consegui. Sempre havia estudantes de talento fazendo doutorado e conseguimos certas interações. Por exemplo, tinha a Microbiologia e ao lado ficava o Centro Brasileiro de Produtos Naturais, onde estudavam química; depois tinha o Instituto de Biofísica, onde ficava o Carlos Chagas, e perto também o departamen-

Nessa segunda vez o senhor trabalhou só com câncer? Agora exclusivamente com câncer. Nós buscávamos antígenos específicos de células de melanoma maligno para tentar uma imunoterapia. Lloyd Old, o chefe do laboratório, começou a identificar e classificar essas moléculas porque não se sabia qual era a natureza delas. Ele identificava antígenos por reações sorológicas, mas somente depois foram reconhecidos os antígenos cancer-testis, antígenos fetais mantidos em células não diferenciadas e antígenos individuais do próprio paciente. Comecei a trabalhar nisso e talvez o auge desse trabalho tenha sido quando conseguimos identificar um glicolipídeo – o gangliosídeo GD3 – como sendo um antígeno hiperexpresso no melanoma. Esse glicolipídeo era reconhecido pelo anticorpo monoclonal, o R24, que foi patenteado para tratamento de melanoma, o qual reconhece especificamente esse gangliosídeo. Virou medicamento. Quantas patentes o senhor tem? No Sloan Kettering foram duas patentes sobre gangliosídeos GD2 e GD3. Você


assina como inventor, mas é de propriedade do hospital. Meu trabalho, que tem mais de 500 citações na literatura, é sobre o R24 reconhecendo o GD3 e isso levou à patente. Tenho uma patente nos Estados Unidos sobre um método de diagnóstico de doença de Chagas e mais duas depositadas. Em paracoccidioides e peptídeo 10 tenho três depósitos de patentes e mais uma sobre um adjuvante com a Fundação Butantan. E a segunda volta para o Rio? Foi traumática de novo. Estavam construindo o metrô na cidade, em 1979-80. Eu morava no Flamengo. Da praça José de Alencar até o largo do Machado era uma cratera só. A qualidade de vida ia ser tão ruim que eu, lá de Nova York, já estava fazendo todos os contatos para vir para a Escola Paulista de Medicina. Mudar da UFRJ para a EPM, que também era federal, foi uma coisa mais ou menos fácil. Fui bem recebido. Qual a linha de pesquisa adotada na EPM? Não dava para continuar trabalhando com imunoquímica do câncer aqui porque não havia quase nada. Havia dois temas sobre os quais era possível trabalhar naquele momento: paracoccidioidomicose, a principal micose sistêmica do Brasil, e a doença de Chagas. Escolhi a doença de Chagas e consegui bons avanços. Um estudante que trabalhava comigo, Igor de Almeida, identificou alguns anticorpos importantes que combatem o Trypanosoma cruzi. Essa pesquisa tem evoluído de modo muito favorável para se constituir em uma futura vacina contra Chagas. Foi um belo trabalho dele, que hoje está na Universidade do Texas. Gerou também uma patente internacional.

sibilidade. Se conseguirmos uma vacina seria para quem vive ou viaja para região endêmica ou, talvez, para combinar com quimioterápico. Como é o trabalho contra a paracoccidioidomicose? Esse foi outro breakthrough. Primeiro, durante anos, não se sabia qual era o antígeno principal do fungo Paracoccidioides brasiliensis. Há alguns anos, outra estudante de talento, Rosana Puccia, isolou e caracterizou esse antígeno, que é uma glicoproteína chamada GP43. Foi importante porque ninguém sabia qual era o antígeno principal do P. brasiliensis. Depois recebi outro estudante, hoje professor da USP, Carlos Taborda, e sugeri identificar na GP43 qual é o peptídeo ou

provoca menos toxicidade diminuindo a resposta inflamatória. Realizamos testes muito positivos com animais com proteção completa após períodos longos de infecção. Como é o seu trabalho em oncologia experimental hoje? Está focado na ação de peptídeos com atividade antitumoral. Peptídeos derivados de imunoglobulinas, em colaboração com um grupo da Universidade de Parma na Itália, e de outras proteínas de sinalização. Além disso, a convite de José Fernando Perez, trabalho também para a Recepta Biopharma, o que representa um passo adiante da atividade acadêmica, a única possibilidade de converter em aplicação prática, ou seja, clínica, os achados na pesquisa de laboratório. Vamos falar um pouco de Joaquim Travassos Rosa, seu pai. Ele saiu do IOC por motivos políticos? Quando ele era diretor do IOC houve várias trocas de ministro da Saúde. No meio do mandato ele foi secretário de Estado da Saúde do regime parlamentarista, para voltar à direção do IOC, já depois do golpe militar de 1964. Ocorre que o último ministro da Saúde que entrou, Raymundo de Britto, aumentou a pressão com inquéritos e questionários infames que atingiam vários pesquisadores do IOC acusados de subversão. Enquanto meu pai estava lá não permitiu que houvesse nenhum tipo de perseguição. No final pediu exoneração duas vezes; e na segunda foi substituído por Francisco Rocha Lagoa. Na época diziam que Rocha Lagoa tinha sido escolhido porque era “um mau cientista, um mau administrador, mas um bom anticomunista”. Seguiu-se o que se conhece até hoje como massacre de Manguinhos, com laboratórios lacrados como o do Walter Oswaldo Cruz, interrogatórios e punições. No dia em que o Rocha Lagoa tomou posse havia um monte de gente que cumprimentava meu pai e saía de lado, evitando cumprimentar o novo diretor. Tudo desandou por lá naquele período. Foi terrível. n

Nos anos 1960, quando meu pai dirigia o Instituto Oswaldo Cruz, não havia perseguição política

O senhor acredita numa vacina contra Chagas? É algo discutível. Qual seria a função de uma vacina numa pessoa que já está cronicamente infectada? O conceito de cura é sempre uma questão complicada, embora acreditemos ter um método de diagnóstico da doença ativa de alta sen-

epítopo da proteína responsável por uma resposta imune celular. Na tese de doutorado dele mapeamos todos os peptídeos que constituem a proteína inteira e chegamos a um peptídeo de 15 aminoácidos responsável pela reação imune celular mediada por linfócitos T-CD4. Começamos uma série de estudos para proteger os animais com o peptídeo. Inoculávamos o peptídeo com adjuvante e ele desencadeava uma resposta imunológica contra o fungo. No último trabalho, que publicamos na Plos Neglected Tropical Diseases recentemente, fizemos terapia gênica com um minigene que codifica o peptídeo. Em vez de injetar o peptídeo, injeta-se o DNA, que tem de entrar numa célula e a célula produz o peptídeo. Isso

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 política c&T _ Gênero

Limites da diferença Mulheres ampliam espaço na ciência e enfrentam o desafio de equiparar-se aos homens no topo da carreira texto

Fabrício Marques

ilustração Veridiana Scarpelli

D

ois estudos recentes realizados na Europa sugerem que a diferença entre o desempenho de homens e mulheres na carreira científica declinou a ponto de ficar imperceptível em algumas disciplinas e estratos – e que essa tendência aponta para um equilíbrio até mesmo no topo da profissão, onde o fosso ainda é sensível. Um dos estudos, liderado pela pesquisadora Hildrun Kretschmer, da Universidade Humboldt, em Berlim, analisou o impacto e a produtividade científica de homens e mulheres que fazem pesquisa em instituições médicas da Alemanha. A conclusão principal é que, no grupo dos pesquisadores mais produtivos, ainda há uma vantagem para o grupo masculino. Mas, em todos os estratos abaixo, nota-se um equilíbrio, até mesmo com ligeira vantagem para as mulheres. “Em estudos anteriores já havíamos observado que a qualidade dos artigos científicos não é substancialmente diferente quando se comparam os gêneros”, escreveram os autores. O segundo trabalho analisou o desempenho de 852 pesquisadores dos campos da psicologia e da economia na Holanda. Na geração mais jovem há equilíbrio entre os gêneros na média de publicações (1,7 para homens e 1,5 para mulheres) e no impacto, medido em citações de artigos – no estrato dos 10% do grupo com maior número de citações há um pouco mais de mulheres do que de homens. Já no grupo de pesquisadores de carreira consolidada os homens publicam quase três vezes mais do que as mulheres, ainda que a diferença em número de citações seja muito pequena. A performance geral das mulheres supera 30   junho DE 2012

a dos homens entre os pesquisadores da área de psicologia, mas fica aquém na economia. “As diferenças tendem a desaparecer com o tempo. Já há inclusive mulheres superando o desempenho dos homens”, diz Pleun van Arensbergen, pesquisadora do Instituto Hathenau, em Haia, na Holanda, autora principal do estudo. Não há nenhuma dúvida de que as mulheres ampliam rapidamente seu espaço na carreira científica, ainda que o avanço seja mais notável em alguns países – o Brasil é um exemplo – do que em outros, mesmo os de ciência mais consolidada, como o Japão. Dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostram que, em 2010, as mulheres já eram maioria entre estudantes de doutorado no Brasil, com 55,7% do total (em 2000 eram 49,1%). Em número de pesquisadores, respondem exatamente pela metade do contingente brasileiro. Mas, no rol dos líderes dos grupos de pesquisa, ainda são minoria. Elas são 45% do total de líderes, ante 39% no ano 2000. Um estudo feito pela FAPESP no ano passado também evidencia esse avanço no estado de São Paulo. Em 2010, a Fundação recebeu 19.678 solicitações de apoio de pesquisadores – 42% de mulheres. Em 1990, a fração era de 30%. A qualidade das propostas não distingue gênero. A taxa de sucesso, que é a razão entre a quantidade de propostas aprovadas e a de propostas apresentadas, foi de 61% para as mulheres e 60% para os homens. Mas a conquista de espaço não significa que será fácil para elas alcançar o topo da carreira.


cienciometria

Jacqueline Leta, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, enxerga um horizonte árduo para as mulheres pesquisadoras. “Eu não arriscaria afirmar que esse cenário vá mudar rapidamente. O desempenho e a presença feminina variam muito de acordo com as áreas do conhecimento. Estudos feitos nas chamadas ciências duras talvez mostrassem um panorama diferente do apresentado nesses recortes da Alemanha e da Holanda”, afirma. O estudo feito pela FAPESP mostra que as mulheres apresentaram mais solicitações de apoio do que os homens em áreas como ciências da saúde (54% do total) e ciências humanas (52%), mas são minoria nas engenharias (22%), nas ciências exatas e da Terra (26%) ou nas ciências sociais aplicadas (39%). Políticas afirmativas

Segundo Jacqueline, a estrutura acadêmica ainda é pensada e formulada dentro de um consolidado padrão masculino. “É natural que jovens pesquisadores de ambos os sexos, submetidos à mesma pressão para publicar, tenham desempenho equivalente. Mas isso não garante que as mulheres irão obter ascensão na carreira. Países como Alemanha e França têm políticas afirmativas para promover as mulheres na carreira científica, mas as mulheres não ascendem. Creio que será necessário dar tempo para que a ciência incorpore novas práticas e comportamentos mais democráticos”, afirma. Em 2010, Jacqueline e Pablo Diniz Batista, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, publicaram um trabalho comparando o desempenho por gênero dos pesquisadores

brasileiros. A pesquisa comparou dados sobre publicações científicas contidos em dois bancos de dados: a Plataforma Lattes, que agrega os currículos e a produção dos pesquisadores brasileiros, e a Web of Science, que indexa mais de 12 mil publicações científicas de 45 países. Foi possível cruzar informações desses bancos sobre um grupo de quase 19 mil pesquisadores brasileiros. A conclusão principal é que as chances de participar da lista dos pesquisadores mais produtivos é muito maior para homens do que para mulheres – no grupo dos 100 pesquisadores de ambos os sexos com maior produção, há 86 homens e 14 mulheres. Enquanto os 100 homens mais produtivos publicaram 15.900 artigos, as 100 mulheres mais produtivas publicaram pouco mais de 8 mil. Mas, para 90% da amostra, formada pelos pesquisadores que tiveram 50 publicações ou menos, não há diferenças entre os grupos. Para Maria Conceição da Costa, professora da Unicamp e diretora do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, o modelo competitivo vigente na carreira científica segue como um obstáculo para as mulheres. “Jovens profissionais hoje adiam a decisão de casar e ter filhos, jogam isso para a frente, o que facilita a progressão no início de carreira. Mas mais tarde, quando submetidas às mesmas regras dos homens, ficam em desvantagem”, afirma. “Algumas não conseguem competir enquanto outras não têm interesse em trabalhar num esquema ultracompetitivo. Elas conseguem destacar-se em disciplinas menos competitivas, mas não obtêm o mesmo desempenho dos homens nas demais áreas”, afirma. n pESQUISA FAPESP 196    31


_ reconhecimento {

Laser sobre os nanotubos Professor da UFMG recebe prêmio internacional por contribuição em nanociência

O

físico Ado Jório de Vasconcelos, de 39 anos, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi agraciado em abril com o Prêmio ICTP 2011, que distingue contribuições originais em física e matemática feitas por cientistas com menos de 40 anos de idade de países em desenvolvimento. O prêmio é concedido desde 1982 pelo The Abdus Salam International Centre for Theoretical Physics (ICPT), com sede em Trieste, na Itália, uma tradicional instituição de pesquisa em física teórica e matemática mantida pelo governo italiano, a Agência Internacional de Energia Nuclear (Aiea) e a Unesco. O ICTP reconheceu o trabalho do pesquisador mineiro com a aplicação de uma técnica conhecida como espectroscopia Raman na identificação das propriedades de nanotubos de carbono. Os nanotubos de carbono são cilindros ocos extremamente fortes e finos – seu diâmetro é 100 mil vezes menor do que um fio de cabelo. Bons condutores térmicos, podem se comportar como metais ou semicondutores, propriedades que os tornam ingredientes importantes na fabricação de dispositivos eletrônicos e materiais leves. Ao aplicar a espectroscopia Raman para caracterizar os nanotubos de carbono, Jório ajudou a identificar novas aplicações para eles. “Os nanotubos são produzidos em escala de bilhões e suas pro-

32    junho DE 2012

priedades são variáveis. Eles variam em diâmetro e na helicidade de suas ligações. Meu trabalho teve impacto porque permitiu isolá-los um a um e descobrir um mundo de propriedades”, explica o pesquisador mineiro. “O trabalho de Jório é um exemplo para muitos de seu continente e fora dele”, disse Erio Tosatti, cientista do ICTP, ao justificar a premiação. “É pouco comum encontrar trabalhos experimentais de alto nível em países em desenvolvimento, pela dificuldade de trabalhar num ambiente de poucos recursos.” Ele vai receber € 3 mil, uma escultura e um certificado. É a quarta vez que um brasileiro ganha o Prêmio ICTP. Em 1992 foi concedido para Elcio Abdalla e, em 1984, a Ricardo Osório Galvão, ambos do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, e, em 1988, entregue a José Nelson Onuchic, ex-professor do Instituto de Física de São Carlos, da USP, e atualmente pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego. Ado Jório trabalha com nanotubos de carbono desde que fez pós-doutorado, em 2000, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), e desde então se tornou referência internacional no assunto. “Como as aplicações dos nanotubos interessam a vários campos do conhecimento, como a química, a física, a biologia, as ciências dos materiais, a medicina e a engenharia, os 152


léo ramos

artigos repercutiram a ponto de serem citados em 52 outros trabalhos. O índice H varia muito entre os campos do conhecimento, pois o impacto de um artigo depende do tamanho da comunidade de pesquisadores. Seu criador, o físico J.E. Hirsch, da Universidade da Califórnia em San Diego, calculou que, na média, os vencedores do Nobel têm índice H 30. A repercussão de seus artigos, observa Jório, catalisou uma centena de colaborações internacionais e já o levou a fazer cerca de 50 palestras em congressos internacionais. frequência de vibração

Ado Jório em seu laboratório: pesquisa de ponta num assunto que interessa a várias disciplinas

artigos de que sou autor ou coautor já alcançaram mais de 10 mil citações, um número muito expressivo”, diz. Na lista dos 26 artigos científicos brasileiros publicados entre 2001 e 2005 que receberam mais de 200 citações, compilada na base Web of Science pelo pró-reitor de Pesquisa da USP, Marco Antonio Zago, dois trabalhos têm Jório como um dos autores – ambos tratam da caracterização de nanotubos de carbono usando a espectroscopia Raman. Num deles, publicado no New Journal of Physics, o pesquisador é o autor principal. No outro, publicado na Physical Review Letters, ele é coautor, juntamente com Marcos Assunção Pimenta, seu orientador de doutorado, também professor da UFMG e um dos precursores no estudo dos nanotubos de carbono no país (ver Pesquisa FAPESP nº 187). Ado Jório apresenta um índice H 52 – o índice H é uma medida que relaciona a quantidade e o impacto da produção de um pesquisador. Um índice H 52 significa que pelo menos 52 de seus

A espectroscopia Raman é uma técnica descoberta há 90 anos que analisa as frequências da luz que incide em uma substância e a luz reemitida por ela. A diferença de energia entre a radiação incidente e a espalhada corresponde à energia com que átomos presentes na área estudada estão vibrando. Essa frequência de vibração permite descobrir como os átomos estão ligados, ter informação sobre a geometria molecular, sobre como as espécies químicas presentes interagem entre si e com o ambiente, entre outras – o que ajuda a mensurar suas propriedades mecânicas, elásticas, térmicas e eletrônicas. O fenômeno foi identificado em 1928 pelo indiano Chandrasekhara Venkata Raman, que ganharia o Nobel de Física dois anos mais tarde. A técnica tem sido útil, por exemplo, na identificação de materiais de obras de arte. Ganhou espaço nos anos 1960 após o advento dos raios laser e é muito usado para caracterizar materiais de carbono. O uso da técnica em escala microscópica permite o estudo de áreas de até 1 µm (10-6 m) de diâmetro. Daí sua utilidade no estudo de nanotubos, que tiveram um boom a partir dos anos 1990. Entre 2007 e 2009, Ado Jório trabalhou no Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), ajudando a desenvolver metodologias para medidas e análises das propriedades de nanoestruturas de carbono. “Além do avanço no conhecimento, sempre me preocupei em desenvolver utilidades sólidas para a pesquisa. Me dediquei à questão da metrologia dessa técnica com o Inmetro”, diz o pesquisador, que também tem interesse na gestão da inovação dentro das universidades. Desde 2009, ele dirige a Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica da UFMG, núcleo de inovação tecnológica responsável pela gestão da propriedade intelectual, transferência de tecnologia e formação de empresas dentro da instituição. Nascido em Belo Horizonte, Jório se graduou e se doutorou na UFMG, fez especialização no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), França, e pós-doutorado no MIT. Casado, é pai de duas filhas. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 196    33


 ciência _ E strela gêmea

SOL Massa  1,99 x 1030 kg raio  696.000 km temperatura na superfície   5.504 ºC brilho real  3,839 x 1026 watts idade  4,57 bilhões de anos

Um segundo sol Astro da constelação do Dragão é cópia quase perfeita do objeto celeste que ilumina a Terra texto  Marcos Pivetta ilustração  Drüm

34   nonononono DE 2012

A

estrela mais parecida com o Sol acaba de passar por uma bateria de exames refinados. O espectrômetro de alta resolução do Observatório Keck, no Havaí, decompôs a luz do astro em suas cores constituintes e essas formas de emissão eletromagnética foram, uma a uma, comparadas com as do Sol. Os resultados confirmaram as suspeitas do primeiro diagnóstico da estrela, realizado há cinco anos pelo astrofísico peruano Jorge Meléndez, então na Universidade Nacional da Austrália e hoje no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade São Paulo (IAG-USP). A HIP 56948 é realmente a melhor gêmea solar que se conhece. A massa, a temperatura superficial, o raio, o brilho, a composição química, enfim, os principais parâmetros da estrela são praticamente idênticos aos do Sol. “As diferenças nas medidas entre as duas estrelas estão dentro de margens de erro bastante aceitáveis”, diz Meléndez, que estuda o astro com apoio de um projeto financiado pela FAPESP. “Perto da HIP 56948, as outras gêmeas são apenas primas distantes do Sol.” A gêmea solar está localizada no hemisfério celestial norte, na constelação do Dragão, a meio


astronomia

HIP 56948 Massa  2,03 x 1030 kg raio  687.000 km temperatura na superfície   5.521 ºC brilho real  3,785 x 1026 watts idade  3,52 bilhões de anos

A proporção de elementos voláteis (carbono, oxigênio, zinco e enxofre) é apenas 2% maior do que a do Sol. Somadas, as quantidades de ferro, silício, cálcio, titânio, alumínio e níquel são 4% superiores às de nossa estrela

física

caminho entre as estrelas Alpha Ursa Majoris e a Polar, esta última famosa por ser usada desde a Antiguidade como guia para os navegantes. A HIP 56948, às vezes chamada de HD 101364, se encontra a 200 anos-luz, algo como 12,6 milhões de vezes mais distante da Terra do que o Sol. Antes do primeiro estudo comparativo entre a HIP 56948 e o Sol realizado em 2007, a melhor candidata a clone de nossa estrela-mãe era a 18 Scorpii, situada na constelação boreal de Escorpião. Distante 45 anos-luz da Terra, essa estrela foi descrita como gêmea solar em 1997 pelo astrofísico Gustavo Porto de Mello, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Estamos construindo uma pequena tradição no Brasil de estudar gêmeas”, afirma Porto de Mello, que não participou do trabalho sobre a estrela da constelação do Dragão. Além das semelhanças físicas e químicas com o Sol, os testes com a HIP 56948 revelaram outra característica interessante de seus arredores. As condições em torno do astro parecem ser compatíveis com a existência de um conjunto de planetas com arquitetura similar à do sistema solar, onde pequenos mundos rochosos se situam mais perto da estrela e grandes planetas gasosos ocupam a zona mais periférica. Esse aparente ponto

em comum com o Sol torna, em tese, a HIP 56948 uma boa candidata a abrigar em sua vizinhança planetas como a Terra, apesar de ainda não ter sido descoberto nenhum mundo extrassolar em seu entorno. As conclusões fazem parte de um estudo coordenado pelo astrofísico da USP e aceito para publicação na revista científica Astronomy & Astrophysics. Não há uma definição completa do que seja uma gêmea solar. Até que ponto uma estrela precisa ser igual ou muito semelhante ao Sol para receber essa designação é uma questão em aberto. Algumas estrelas são parecidas com o Sol quando se analisam certos parâmetros, mas distintas sob outros aspectos. À medida que os astrofísicos obtêm dados mais detalhados sobre as estrelas, as similaridades e distinções ficam mais evidentes. Por questão de praticidade e devido a limitações da instrumentação atualmente disponível, a procura por gêmeas solares se concentra numa área do céu situada a no máximo 300 anos-luz da Terra, onde, de acordo com projeções dos astrofísicos, deve haver algumas dezenas de gêmeas solares. Essa zona equivale a uma parte ínfima do Universo. Mas é preciso começar a busca pelo que está mais à mão. pESQUISA FAPESP 1xx    35


No caso da HIP 56948 e do Sol, os pontos em comum entre os dois astros são impressionantes. A comparação de uma série de parâmetros importantes provoca uma espécie de empate técnico entre as estrelas. A massa da HIP 56948 é, por exemplo, apenas 2% maior do que a do Sol, dentro da margem de erro da medição feita por Meléndez e seus colaboradores, também de 2%. Seu raio atinge 687 mil quilômetros, 1,3% menor do que o do Sol. A temperatura média na superfície das estrelas – em sua camada mais externa, que lhes dá o tom amarelado – é quase a mesma. Difere em 0,3%. A da gêmea solar é 5.521 °C, 17 °C superior à da Sol. Para efeito de comparação, a temperatura da 18 Scorpii, a segunda gêmea mais parecida com o Sol, é 54 °C maior que de nossa estrela-mãe. A diferença de brilho real da HIP e do Sol é quase imperceptível. A gêmea é 1,4% menos luminosa. Apesar de todos esses traços quase idênticos, as duas estrelas apresentam uma diferença de idade significativa, de aproximadamente 1 bilhão de anos segundo os cálculos mais recentes dos pesquisadores. É como se fossem gêmeas, só que de gerações distintas. O Sol tem 4,57 bilhões de anos. A HIP 56948, 3,52 bilhões. “Isso não é ruim de forma alguma”, diz o astrofísico Ivan Ramirez, da Universidade do Texas, outro autor do artigo. “Dessa forma, podemos estudar como era a evolução do Sol há 1 bilhão de anos.” Há um problema extra no que diz respeito a esse parâmetro. “Determinar a idade de uma estrela é algo notoriamente difícil”, pondera Martin Asplund, da Universidade Nacional da Austrália, outro astrofísico que assinou o trabalho na A&A. “Pode ser que a HIP 56948 tenha quase a mesma idade do Sol.” Ou seja até mais velha do que nossa estrela-mãe, ideia defendida em outros estudos científicos, inclusive num paper mais antigo de Meléndez que, no entanto, se baseava em dados de qualidade inferior. A margem de erro para esse parâmetro é bem maior do que para outras propriedades estelares.

A

HIP 56948 exibe uma assinatura química similar em grande medida à peculiar composição do Sol, menos rico em certos metais quando comparado a outros tipos de estrelas. A gêmea solar também possui uma deficiência de certos elementos, como níquel e ferro, embora num grau entre 2% e 3% menos acentuado do que o de nossa estrela. Uma corrente de astrofísicos, entre eles o pesquisador da USP, acredita que o déficit de alguns metais na composição do Sol possa estar ligado ao processo de formação dos planetas ao seu redor. Para os adeptos dessa interpretação, uma parcela do material presente na nuvem primordial de gás que deu origem ao Sol condensou-se na forma de poei­ra e pos-

36   junho DE 2012

O brilho do Escorpião Identificada como uma gêmea solar em 1997 por astrofísicos brasileiros, a 18 Scorpii perdeu a condição de estrela mais parecida com o Sol para a HIP 56948 18 Scorpii

CAU DA DA SE RPE N T E Li b r a

s ag i t á r i o

E s co r pi ã o

LOBO

teriormente originou as estruturas maiores que formaram os planetas, sobretudo os rochosos (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte). Dessa forma, segundo essa linha de raciocínio, nossa estrela “perdeu” uma fração de sua matéria-prima para dar origem aos planetas do seu entorno. Por isso acabou com uma quantidade menor de alguns metais em relação ao padrão usual de ocorrência desses elementos em estrelas. Se essa hipótese estiver correta, a melhor gêmea solar conhecida pode ser a casa de um sistema planetário análogo ao nosso. “Especulamos que talvez a HIP 56948 tenha um sistema planetário gêmeo ao do Sol”, afirma Meléndez. Por ora, os pesquisadores não encontraram nenhum mundo gigante e gasoso, do tipo Júpiter, nas órbitas mais próximas ou na chamada zona habitável ao redor da estrela, a região em que, devido às condições locais de temperatura, poderia, em tese, florescer formas de vida nos moldes da existente na Terra. Na busca por novos mundos em torno da estrela, foram usados dados dos observatórios americanos Keck, no Havaí, e McDonald, no Texas. A notícia parece ruim, mas é boa. Se houvesse um enorme planeta gasoso nas proximidades da HIP 56948, a chance de existir por ali um pe-

Estrelas parecidas com o Sol talvez possam abrigar sistemas planetários similares ao nosso

O Projeto Influência da formação de planetas na composição química de estrelas do tipo solar modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor Jorge Meléndez - IAG-USP investimento R$ 184.263,76 (FAPESP)


queno mundo rochoso, como a Terra, seria quase nula. Devido ao jogo das interações gravitacionais, planetas de porte avantajado, quando situados nos arredores de sua estrela, tendem a provocar a destruição dos mundos menores, que são empurrados para fora do sistema ou para o escaldante interior do astro luminoso. Portanto, não terem encontrado um Júpiter quente, como são chamados os mundos gasosos situados nas zonas cálidas próximas das estrelas, foi motivo de alívio para os pesquisadores.

A casa da gêmea solar Hoje considerada a estrela mais parecida com o Sol, a HIP 56948 fica na constelação do Dragão, entre a Ursa Maior e a Menor, a 200 anos-luz da Terra

u r s a m en o r

O

método usado para procurar planetas nos arredores da gêmea solar foi o da velocidade radial, a mais tradicional técnica usada para esse fim desde meados dos anos 1990, quando se descobriu o primeiro mundo extrassolar. Desde então, a maioria dos quase 700 exoplanetas conhecidos foi identificada por meio desse recurso. A velocidade radial mede o efeito gravitacional exercido periodicamente por um planeta ao passar muito perto de sua estrela. Grosso modo, a presença do planeta faz a estrela sofrer oscilações ou perturbações em sua órbita. Quanto maior o mundo ao seu redor, maior o chacoalhão sentido pela estrela. “Com a instrumentação atual, só conseguiríamos detectar um planeta 10 vezes maior do que a Terra”, comenta Meléndez, que recentemente obteve o direito de usar por 88 noites as instalações do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, para observar gêmeas solares. As novas medições ratificaram o status da HIP 56948 como o astro conhecido mais parecido com o Sol. Num quesito, no entanto, a 18 Scorpii, a estrela que fora destronada cinco anos atrás pela HIP 56948 da condição de melhor gêmea solar, se mostra mais semelhante ao Sol. “Não há uma estrela que seja um clone perfeito do Sol. Em função dos parâmetros que adotamos como referência, uma ou outra estrela pode ser mais similar ao Sol”, afirma o astrofísico José Dias do Nascimento Jr, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro especialista em gêmeas solares. “Se, por exemplo, levarmos em conta basicamente as características do campo magnético, a 18 Scorpii é mais parecida com o Sol do que a HIP 56948.” Nossa estrela tem um ciclo magnético mais ou menos regular. A cada 11 anos, o Sol entra num período de máxima atividade, marcado pelo aparecimento de um número maior de manchas em sua superfície, vistosas ejeções de matéria de sua corona (o equivalente à sua “atmosfera”) e explosões variadas. Os picos de atividade solar são tão fortes que mexem com a vida na Terra. O clima pode se alterar e as comunicações por satélite e as redes de transmissão de eletricidade podem sofrer interrupções. O

D r agã o

HIP 56948

ursa maior

ciclo magnético da 18 Scorpii, cuja idade estimada de 4,2 bilhões de anos é bastante próxima à do Sol, é da ordem de sete anos. “Ela ainda é uma gêmea solar notável”, diz Gustavo Porto de Mello, da UFRJ. Ainda não se sabe qual é o padrão de atividade energética da HIP 56948, cujos estudos começaram há menos tempo. É possível que seu ciclo magnético tenha uma periodicidade de cinco a 10 anos. “Se a atividade magnética na HIP 56948 for extremamente intensa, a chance de haver planetas com boas condições de vida em torno da estrela são menores”, afirma Nascimento Jr. No entanto, segundo Meléndez, dados preliminares sugerem que esse parâmetro da HIP 56948 é similar ao do Sol. “No fundo, estamos tentando descobrir se estrelas muito parecidas com o Sol tendem a produzir sistemas planetários como o nosso. Se essa relação realmente existir, encontrar gêmeas solares pode ser uma forma de descobrir planetas similares à Terra”, diz Porto de Mello. n

A temperatura na superfície da HIP 56948 é apenas 17 °C maior do que a do Sol. O brilho real das duas estrelas é quase o mesmo

Artigo científico Meléndez, J. et al. The remarkable solar twin HIP 56948: a prime target in the quest for other Earths. Astronomy & Astrophysics. No prelo, 2012. pESQUISA FAPESP 196    37


_ vida marinha

Costa do Espírito Santo e da Bahia abriga o maior banco de algas calcárias do mundo Evanildo da Silveira

Banco de rodolitos de Abrolhos produz por ano 5% do calcário mundial

Bahia

Abrolhos

espírito santo

exemplar de 10 cm de diâmetro 38

_ junho DE 2012

A

s águas mornas que banham a região de Abrolhos, no sul da Bahia, guardam o maior banco de algas calcárias do mundo. Em uma área de quase 21 mil quilômetros quadrados, semelhante à do estado de Alagoas, o fundo do oceano é rochoso. Está coberto por esferas duras de tamanhos variados – as maiores têm o diâmetro de uma bola de futebol de salão – e cores que vão do castanho ao rosa. Essas esferas são nódulos de calcário depositado por algas vermelhas de milímetros de comprimento que vivem em sua superfície. Também conhecidas como rodolitos, essas estruturas criam um ambiente com reentrâncias e saliências que servem de abrigo para peixes, crustáceos e invertebrados. Mapeado agora por pesquisadores brasileiros, o banco de rodolitos de Abrolhos se estende do norte do Espírito Santo ao sul da Bahia e produz 25 milhões de toneladas de calcário por ano ou 5% da produção global desse mineral, usado na agricultura, na indústria de cosméticos e até na medicina. “Os rodolitos são chamados vulgarmente de rochas vivas por causa das algas que formam seu exterior”, conta Gilberto Menezes Amado Filho, biólogo do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um dos autores do mapeamento publicado em abril na PLoS ONE. Junto com o calcário produzido por corais e moluscos com concha, eles contribuem para a formação do fundo do oceano. “Parte da plataforma continental brasileira é resultado de crescimento calcário ocorrido nos últimos 18 mil anos”, explica. Com a aparência de seixos, que ganham ao rolarem arrastados por correntes marinhas, os rodolitos se formam pela aglomeração de pequenas algas que crescem umas sobre as outras ou incrustadas em fragmentos de concha ou grãos de areia. Eles aumentam de tamanho à medida que seu esqueleto, rico em carbonato de cálcio (CaCO3), mineraliza. Os rodolitos de Abrolhos têm em média 5,9 centímetros de diâmetro – os maiores chegam a 14 centímetros – e crescem pouco mais de um milímetro por ano. Foram encontrados a profundidades que variavam de 20 metros a 110 metros, com cerca de metade da superfície coberta por algas de uma ou mais espécies – em Abrolhos foram identificadas seis. Nesse trecho da costa, os rodolitos ocupam 70% do fundo marinho (o resto é sedimento) e, segundo as datações, os mais antigos têm por volta de 8 mil anos.

Gilberto m. amado filho / ipjbrj

As rochas vivas de Abrolhos


fotos  1 e 2 Rodrigo leão de moura / UFRJ

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1 Rodolito coletado em Abrolhos 2 Mergulho de reconhecimento do banco de rodolitos

Sabia-se dos rodolitos do litoral brasileiro desde os anos 1970, mas não se imaginava que ocupassem tal extensão. Em projetos coordenados pelo Instituto Ocea­ nográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), pela Conservação Internacional do Brasil e pela Universidade Federal do Espírito Santo, pesquisadores mapeavam o fundo do mar naquela região entre 2007 e 2011 quando perceberam estar diante de algo importante. “Na medida em que nos demos conta de estar diante de um grande banco de rodolitos, passamos a direcionar esforços para compreender a diversidade associada a eles e o papel funcional desse ecossistema”, conta Amado Filho. Após o mapeamento por sonar, os pesquisadores usaram dois robôs submarinos para avaliar a distribuição, extensão, composição e estrutura do banco. “Usamos os robôs para analisar as áreas mais profundas e detalhar os pontos relevantes”, conta Paulo Sumida, do IO-USP. Numa terceira etapa foram realizados mergulhos para a coleta de exemplares e a realização de experimentos para estimar a produção de carbonato de cálcio. Há bancos de rodolitos em todos os oceanos. Os mais extensos estão, além do Brasil, na costa do México e da Austrália. Eles são importantes para a vida de outros organismos por servir de abrigo e proporcionar um ambiente mais rico biologicamente do que um fundo de areia.

2

“Eles funcionam como corredores entre recifes de corais, facilitando a migração de lagostas e peixes”, diz Amado Filho. Do ponto de vista ambiental, os rodolitos têm ainda outra função importante: ajudam a retirar carbono da atmosfera, influenciando a regulação do clima do planeta. Eles absorvem o gás carbônico (CO2) diluído na água e o transformam em calcário, mas estão ameaçados pelas atividades humanas. A maior ameaça é o aumento da acidez do mar, consequência da elevação dos níveis de CO2 na atmosfera – em boa parte por queima de combustíveis fósseis. “Um terço do carbono emitido por atividades humanas e adicionado à atmosfera é absorvido pelos oceanos”, diz Amado Filho. “Estima-se que até o fim do século, o pH da água do mar diminua 0,4 unidade, tornando-a mais ácida. Estruturas carbonáticas de recifes, atóis e bancos de rodolitos serão dissolvidas.” Essa mudança também deve reduzir a calcificação dos organismos marinhos em 40%. “Em geral os recifes de corais concentram as atenções, mas agora se sabe que o Brasil tem essas outras fábricas de carbonato de cálcio de vital importância para a biodiversidade marinha”, comenta o biólogo Jason Hall-Spencer, da Universidade de Plymouth, Inglaterra. “Essas algas coralinas estão entre os organismos calcificantes que parecem mais sensíveis à acidificação dos oceanos.” Outra ameaça aos rodolitos de Abrolhos é a exploração econômica do calcário. Como são fáceis de coletar, há empresas que os usam como fonte do mineral. Além de calcário, eles contêm quantidades variáveis de outros elementos químicos (ferro,

manganês, bromo, níquel, cobre, zinco e molibdênio) usados na agricultura, nas indústrias dietética e de cosméticos, na nutrição animal e no tratamento da água. “Os rodolitos estão em águas rasas, com 20 a 110 metros de profundidade, e têm um formato que facilita a extração em grande escala”, diz Rodrigo Leão de Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participou do levantamento. “Além disso, são sensíveis à qualidade da água do mar, que vem sendo afetada pelo mau estado de conservação das bacias hidrográficas”, acrescenta. Embora tenham uma parte viva, os rodolitos não são recursos renováveis. “São necessários milhares de anos para os rodolitos se formarem e criarem um banco expressivo como o recém-descoberto”, explica Moura. Ante essas ameaças, os pesquisadores afirmam que é preciso aumentar a proteção com a criação de áreas protegidas, a recuperação das margens dos rios e o controle de efluentes. “Dos 46 mil quilômetros quadrados do banco de Abrolhos”, alerta Sumida, “só 2% estão protegidos por unidades de conservação”. n

Artigo científico AMADO-FILHO, G.M.; MOURA, L. R. et al. Rhodolith beds are major CaCO3 bio-factories in the tropical south west Atlantic. PLoS ONE. v. 7(4). abr. 2012. pESQUISA FAPESP 196

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_ cretáceo

As bactérias que comiam pterossauros Fósseis de microrganismos foram encontrados na crista de réptil voador que viveu há 115 milhões de anos Salvador Nogueira

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tupandactylus imperator

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O fóssil, que responde pelo código CPCA 3590 no acervo do Centro de Pesquisas Paleontológicas da Chapada do Araripe, se destaca pela enorme crista, que se manteve parcialmente fossilizada. Felipe Pinheiro, pesquisador da equipe de Cesar Schultz no Setor de Paleovertebrados da UFRGS, descreveu o fóssil no ano passado na Acta Palaeontologica Polonica. “Na época, não fazíamos ideia da presença das bactérias”, conta Pinheiro. Foi somente quando Paula Sucerquia, da USP, fez as primeiras micrografias do fóssil que os pesquisadores notaram a presença de pequenas estruturas em forma de bastonetes na superfície do tecido mole fossilizado. A equipe então passou a investigar a hipótese de que se tratava mesmo de bactérias. Há registros de fossilização bacteriana espalhados pelo mundo, mas até então nenhum provinha da Formação Crato. Anos atrás houve até quem interpretasse formas semelhantes, observadas em outros fósseis da região, como vestígios de microrganismos, mas investigações posteriores indicaram que poderia haver um engano – em vez de bactérias, o que se via nos outros fósseis seriam possivelmente melanossomos, organelas celulares contendo o pigmento melanina, que, por alguma razão, são extremamente resistentes à decomposição. Não é o caso das pequenas estruturas encontradas no CPCA 3590. Com base na morfologia, elas

Imperador dos ares: crista formada por osso e material fibroso

ilustrações  1 e 2 voltaire paes  imagens  3, 4 e 5 felipe pinheiro e bruno horn / ufrgs

U

ma das coisas mais empolgantes no estudo de fósseis é encontrar preservados os chamados tecidos moles – basicamente tudo o que não é osso no corpo do animal. Sua investigação permite descobertas mais concretas sobre como eram e viveram esses bichos extintos e, nesse sentido, a Formação Crato – na bacia do Araripe, no interior de Pernambuco, Piauí e Ceará – é prolífica. Um novo estudo ajuda a explicar por quê. Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade de São Paulo (USP) e do Centro de Pesquisas Paleontológicas da Chapada do Araripe encontraram traços de bactérias fossilizadas na crista de um pterossauro que viveu há cerca de 115 milhões de anos. O que aconteceu a esses microrganismos, acreditam, pode ajudar a compreender como tecidos moles foram tão bem preservados em pelo menos alguns dos fósseis achados na região. O exemplar em questão pertence a uma espécie descrita em 1997 pelos paleontólogos Alexander Kellner e Diógenes de Almeida Campos, batizada de Tupandactylus imperator. Foi encontrado por trabalhadores da Mina Triunfo, próximo à cidade de Nova Olinda, no Ceará, e, apesar de ter sido danificado no momento da coleta, trata-se do melhor exemplar da espécie já encontrado.


Armadilha química Minerais preservaram bactérias que degradavam a crista do pterossauro

2

4

BIOFILME reconstituição

Micróbios em forma de bastão viviam em

do crânio

colônias densas nos tecidos da crista

3

SINAIS DO TEMPO Fóssil encontrado em Nova

Ceará Piauí

Bacia do Araripe

Olinda, no Ceará, com a mandíbula (em amarelo) deslocada da posição original

Pernambuco

foram identificadas como bactérias que estariam decompondo o tecido mole do pterossauro no fundo do então lago Araripe, logo após a morte do réptil voador mais de uma centena de milhões de anos atrás. Se a análise estiver correta, essa é a primeira evidência sólida de fossilização bacteriana proveniente daquela região. MORTE E PRESERVAÇão

A propósito, segundo os pesquisadores, a presença desses microrganismos pode ter permitido a preservação dos tecidos moles no fóssil. Há dois caminhos para que isso aconteça. Num deles, as bactérias que decompõem os animais produzem reações químicas que levam à mineralização dos tecidos. “Na maior parte dos casos, o tecido morto serve como sítio de deposição de fosfato e não é incomum a preservação de estruturas subcelulares, como fibras musculares e até núcleos celulares, com um grau elevado de fidelidade”, explica Pinheiro. O caso do pterossauro, contudo, é outro. “As próprias bactérias caem em uma armadilha”, conta o pesquisador. “O fosfato que estava diluído se deposita na parede celular desses microrganismos. Isso causa a morte das bactérias, mas permite que elas sejam preservadas como fósseis”, explica o pesquisador, primeiro autor do novo artigo, publicado na revista Lethaia – International Journal

5

REPLICAÇÃO Bactérias unidas duas a duas sugerem

Local de extração da amostra

que estivessem se reproduzindo

of Paleonthology and Stratigraphy. Esse processo, chamado de autolitificação bacteriana, já não é tão gentil com os tecidos moles do animal em processo de fossilização. Como as bactérias formam uma espécie de molde fossilizado, é impossível estudar em detalhes microscópicos o que havia por baixo. Esse trabalho, somado a outros recentes, ajuda a derrubar um mito da paleontologia: o de que a boa preservação do fóssil está necessariamente associada à ausência de decomposição bacteriana. Uma característica interessante das estruturas granulares – os fósseis das antigas bactérias – encontradas pelos pesquisadores é que algumas parecem se encontrar unidas duas a duas, como se estivessem em meio a um processo de replicação quando fossilizaram. Embora os próprios pesquisadores admitam que essa evidência ainda é pouco conclusiva, ela é importante por sugerir que a fossilização talvez ocorra muito rapidamente – em horas ou dias após a morte do animal. Quase como uma gentileza da natureza, que permitiria a seres há muito extintos serem descobertos milhões de anos mais tarde. n

paleontologia

Artigo científico pinheiro, F. L. et al. Fossilized bacteria in a Cretaceous pterosaur headcrest. Lethaia. 2012. pESQUISA FAPESP 196

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_ PARASITAS EMERGENTES

O exterminador de anfíbios Tráfico pode espalhar fungo letal para sapos, rãs e pererecas Carlos Fioravanti

U

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As setas indicam o fungo na pele de um sapo: animais infectados não dão sinais de estarem doentes

Catia Dejuste de Paula e Luiz Catão-Dias / USP

m inesperado desvio de rota evidenciou quão maléfico pode ser o fungo Batrachochytrium dendrobatidis – ou Bd – para os anfíbios brasileiros. Em junho de 2006, Cátia Dejuste de Paula procurava parasitas e microrganismos em anfíbios para sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP) quando chegou um pedido para que examinasse a possível causa de morte de 50 anfíbios de duas espécies diferentes em um zoológico particular do interior paulista. Depois de pesar todas as outras possibilidades, a conclusão a que ela, José Luiz Catão Dias, coordenador associado do Laboratório de Patologia Comparada de Animais Selvagens (Lapcom) da USP, e colaboradores dos Estados Unidos chegaram é que o Bd é que deve ter sido o responsável pela morte de boa parte dos animais examinados. É uma indicação direta, talvez a primeira, da letalidade desse fungo no país. Há anos o Bd tem sido associado com a redução – às vezes eliminação – de populações de sapos, rãs e pererecas mundo afora; as espécies brasileiras pareciam imunes a esse microrganismo. Esse episódio é uma evidência – do mesmo modo, talvez a primeira – de que o tráfico de animais pode favorecer a disseminação de fungos em anfíbios mantidos em cativeiro, já que os sapos haviam sido apreendidos antes de serem enviados, com autorização de órgãos do governo federal, para um zoológico particular. Detalhado na revista Diseases of Aquatic Organisms, o estudo sugere a possibilidade de contágio entre animais mantidos em cativeiro, reforçando a necessidade de medidas preventivas como a quarentena e banhos com substâncias antifúngicas. É também uma clara indicação de que algumas espécies são sensíveis ao fungo, enquanto outras parecem resistentes. Cátia detectou o fungo, em vários estágios de desenvolvimen-


foto 1 Fabio Colombini  2 Luiz Felipe Toledo

1

O Dendrobates tinctorius, colorido e sensível (acima) e o Adelphobates galactonotus, indiferente ao avassalador fungo Bd

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O Projeto Patologia comparada de infecções selecionadas de anfíbios anuros de vida livre do bioma da mata atlântica: estudo prospectivo e retrospectivo nº 2009/52638-3 modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor José Luiz Catão Dias – FMVZ/USP investimento R$ 47.371,09

to, na pele em 20 dos 30 Dendrobates tinctorius, ou sapo-garimpeiro, bicho colorido, com a pele malhada de preto com manchas verdes ou azuis, embora venenoso. Mas não havia sinais do fungo em nenhum dos 20 animais da outra espécie, Adelphobates galactonotus, também venenosa e colorida, que devem ter morrido por outra razão. Já se sabia que algumas espécies podem ser resistentes ao fungo, mas essa capacidade ainda não havia sido verificada de modo tão direto como com os Adelphobates galactonotus. As encorpadas rãs-touro-gigantes (Lithobates catesbianus), que podem atingir 20 centímetros de comprimento e um peso de 1,5 quilograma, geralmente verdes ou bronzeadas, representam a espécie mais citada como exemplo de convivência pacífica com o microrganismo e agora considerada como possível transmissora para outras espécies, alertam os pesquisadores.

Importada desde a década de 1930 dos Estados Unidos para ser criada comercialmente, mas abandonada depois de a venda de pele e carne não ter atraído muitos interessados, a rã-touro se espalhou pelo país, já que se multiplica com facilidade e se adapta a ambientes úmidos ou secos. Mas não é o único transportador involuntário de fungos. Em dezembro de 2011, na Diseases of Aquatic Organisms, pesquisadores da Universidade McGill, no Canadá, alertaram para o fato de lagartos e cobras serem vetores desse microrganismo, assim contribuindo para sua disseminação. “Embora possa parasitar animais, o Bd não precisa deles como hospedeiros, porque consegue viver à custa de matéria orgânica em ambientes aquáticos, como outros fungos que sobrevivem no solo, em cascas de árvores ou folhas em decomposição”, comenta Selene Dall’Acqua Coutinho, professora da Universidade Paulista (Unip) que trabalha com fungos há 30 anos e fez as análises de biologia molecular que complementaram os exames de Cátia e Catão. “Provavelmente, o Bd está bastante disseminado no ambiente.” Foi o que Cátia, atualmente pesquisadora da Wildlife Conservation Society no Brasil, observou: “Onde se procura o fungo, se acha”. No doutorado, concluído em 2011, ela procurou microrganismos e parasitas em 120 animais de 33 espécies diferentes de sapos e rãs coletados na estação biológica de Boraceia, uma área de floresta úmida de 100 hectares pertencente à USP no município de Salesópolis. Ela encontrou parasitas – principalmente no intestino – em quase metade (55) dos animais pESQUISA FAPESP 196

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2

Em campo: biólogos vão atrás de anfíbios nas matas de Boraceia; ao lado, uma das espécies capturadas

examinados. O microrganismo mais comum, encontrado em 22 sapos (19,1% do total), foi o Bd, identificado por meio de exames microscópicos e de DNA, a partir de uma amostra cedida por Alan Pessier, do zoológico de San Diego, Califórnia. Menos sapos nas matas

“Vimos o fungo, mas os animais aparentemente estavam saudáveis, sem lesões ou alterações na pele”, diz Cátia. Nem ela nem outros pesquisadores encontraram anfíbios doentes em Boraceia ou em outros lugares, mas observaram que a diversidade de espécies e a quantidade de anfíbios estão menores que há alguns anos. O Bd se aloja na pele fina e úmida dos anfíbios e, como pesquisadores dos Estados Unidos e da Austrália indicaram em 2009, altera o equilíbrio de eletrólitos (íons) dos músculos, fazendo algumas espécies de animais morrerem repentinamente de colapso cardíaco. O biólogo e professor da USP Miguel Urbano Trefaut Rodrigues conta que anos atrás sapos dos gêneros Hylodes eram comuns no parque nacional de Caparaó, na divisa dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. No ano passado ele andou por lá e notou que haviam desaparecido: “Fiquei chocado”. Os sapos do gênero Allobates também escassearam nas matas do Espírito Santo e Rio de Janeiro. “Um dendrobatídeo, o Anomaloglossus, era abundante na serra de Tepequém, em Roraima, víamos 10, 20 nas beiras das cachoeiras. Agora, nenhum.” 46

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Em 2005 Ana Carnaval, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Rodrigues, seus alunos e biólogos da Universidade de Costa Rica e do Rio de Janeiro, depois de examinarem 96 sapos de 25 espécies colhidas em 10 pontos diferentes da mata atlântica, ampliaram bastante a área geográfica de alcance do fungo, que, eles concluíram, pode viver em altitudes que variam de 100 a 2.400 metros. Em janeiro deste ano, uma equipe norte-americana da Universidade Cornell, em colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indicou que o fungo pode viver em ambientes variados e também em baixas altitudes da mata atlântica. Tudo o que podem fazer por enquanto é seguir os rastros do fungo, já que ainda é difícil cultivar esse organismo em laboratório para estudar em detalhes o seu comportamento. “As espécies de anfíbios que estão desaparecendo vivem em áreas preservadas do Brasil, da América Central e da Oceania, onde não existem córregos sujos ou poluentes que poderiam ser fatais”, diz Catão. O Brasil é um dos países com uma das maiores diversidades de anfíbios, com quase 900 espécies já identificadas, das quais 16 são consideradas ameaçadas de extinção e uma já extinta. A redução das populações de anfíbios poderia significar um aumento das populações de insetos transmissores de doenças como dengue, malária,

febre amarela, “considerando apenas uma visão antropocêntrica”, diz Catão. Em termos mais amplos, pode dificultar a sobrevivência de outros animais, como aves e répteis, que se alimentam de sapos, rãs e pererecas. Para ele, o fungo é uma das causas de uma extinção em massa de anfíbios, equivalente a outras já ocorridas na história da Terra, embora não seja o único responsável: “Temos de ter a cabeça aberta para outras possíveis causas”. As principais são a perda ou redução de hábitats e a proliferação de outros parasitas, como os ranavírus, um grupo de vírus letal para os girinos, normalmente resistentes ao fungo. “Fungos são oportunistas e avançam mais facilmente quando os hospedeiros estão sob estresse ou algum tipo de pressão ambiental”, comenta Selene, oferecendo um exemplo próximo dos humanos: a candidíase, que se manifesta quando as defesas do organismo estão debilitadas. Ela acredita que o Bd não seja ainda tão adaptado a ambientes diferentes quanto os fungos dermatófitos, que causam micoses em animais e em pessoas e se espalham por ambientes domésticos. No ano passado, uma estudante de veterinária da Unip, Sândara Pimentel Sguario, isolou colônias de fungos de outra espécie, Mycroscoporum canis, em um gato que o namorado dela havia lhe deixado e ela mantinha no quarto. Selene sugeriu e ela colheu amostras de material não só do gato, mas também do tapete, da cama, da cadeira do computador – por todo o quarto – e verificaram que se tratava do mesmo fungo que parasitava o gato. “Ainda não li nem vi nada que indique que o Bd possa infectar as pessoas ou outros mamíferos”, diz Selene. “Em uma perspectiva evolucionária, talvez demore para atingir ou nunca atinja as pessoas.” n Artigos científicos DE PAULA, C.D. et al. Batrachochytrium dendrobatidis in illegal wildlife trade confiscated amphibians used in ex situ breeding program in Brazil. Diseases of Aquatic Organisms. v. 98, n.2, p. 171-75. 2012. GRÜNDLER, M.C. et al. Interaction between breeding habitat and elevation affects prevalence but not infection intensity of Batrachochytrium dendrobatidis in Brazilian anuran assemblages. Diseases of Aquatic Organisms. v. 97, n. 3, p. 173-84. 2012. CARNAVAL, A.C.O.Q. et al. Amphibian chytrid fungus broadly distributed in the Brazilian atlantic rain forest. EcoHealth. v. 3, n. 1, p. 41-48. 2006.

fotos  1 Marco Aurélio de Sena  2 Angélica Sanchez

1


_  obituário

Entre pioneiros Luiz Edmundo de Magalhães participou da consolidação da genética no país

fotos 1 acervo comissão memória IB-USP  2 arquivo de família

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uitas vezes, no final da década de 1940, enquanto estudava história natural na Universidade de São Paulo (USP), Luiz Edmundo de Magalhães ouviu Theodosius Dobzhansky, biólogo russo naturalizado norte-americano que trabalhou no Brasil nessa época, chamar o biólogo Crodowaldo Pavan de “Pavanzinho”, em sinal de informalidade e amizade que não aplacavam o rigor com que trabalhavam. Dobzhansky, depois de se destacar mundialmente por ter ajudado a unificar os princípios da teoria da evolução com os da genética mendeliana, implantava os primeiros grupos de pesquisa em genética no país – e Pavan logo despontou como um dos jovens de talento. Magalhães ouvia com atenção as longas conversas dos dois desbravadores da genética nacional e os acompanhava quando entravam em matas em busca de drosófilas, as minúsculas moscas adotadas como animais modelo para estudos de variabilidade genética. Ele próprio se fez doutor, em 1958 – o primeiro que Pavan orientou –, com um estudo sobre as variações no tamanho das populações de Drosophila do subgrupo willistoni, encontradas nas ilhas de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Filho de um comerciante e de uma costureira, nascido em Guaxupé, Minas Gerais, morreu no dia 23 de maio, aos 84 anos, depois de ter deixado suas próprias marcas. Como professor no Instituto de Biociências (IB) da USP, identificou espécies novas de drosófilas e orientou biólogos que hoje lecionam em universidades de São Paulo e outros estados. “Edmundo sempre ajudava, nunca atrapalhou ninguém, era muito honesto”, conta, aos 72 anos, André Perondini, professor do IB. “Conversávamos muito no laboratório. Ainda havia tempo para pensar, tomar um café, tomar um chope, não era essa correria de hoje.” Magalhães não se limitou à vida de laboratório e, como disse seu filho Carlos em um depoimento à Folha de S. Paulo, sonhava com uma estrutura

1

científica forte para o país. Ele foi reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) de 1975 a 1979, ajudando a ampliar de seis para 19 o total de cursos, e diretor do Instituto de Biociências, de 1985 a 1988; Perondini era o vice. Sua ação se nota em várias universidades. No final do Currículo Lattes, Magalhães conta que foi assessor científico da FAPESP “desde a sua criação”. E, a pedido do então diretor científico Rui Carlos Camargo Vieira, esteve à frente de uma comissão que elaborou um plano de melhoria dos biotérios paulistas na década de 1980 e resultou na ampliação de biotérios da USP, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Magalhães foi conselheiro e secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de 1969 a 1991. Poucos dias antes de morrer, ele estava no hospital quando entregou a Helena Nader, presidente da SBPC, os originais do livro Humanistas e cientistas do Brasil, que ele organizou. Ele era casado com Nícia Wendel de Magalhães, professora de biologia e ambientalista (conheceram-se quando estudavam juntos na USP). Tiveram seis filhos, que lhes deram 11 netos e uma bisneta. n

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Magalhães (de camisa branca) em pesquisa de campo em Mongaguá, nos anos 1950, e em 2005

pESQUISA FAPESP 196

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_ Efeitos colaterais

Composto usado para tratar câncer danifica células do coração Evanildo da Silveira

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P

esquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) realizaram duas descobertas importantes em um mesmo estudo. Primeiro, eles identificaram a provável causa dos problemas cardíacos que afetam as pessoas tratadas com doxorrubicina, antibiótico naturalmente produzido por bactérias e amplamente usado para combater alguns dos tipos mais comuns de câncer. Em experimentos com ratos, eles verificaram que esse composto destrói a distrofina, proteína que mantém a forma e permite a contração das células cardíacas. No mesmo trabalho, a pesquisadora Érica Carolina Campos, da equipe do patologista Marcos Rossi, encontrou uma forma promissora de reduzir os danos da doxorrubicina no coração. A doxorrubicina é um composto derivado das antraciclinas, isoladas na década de 1960 a partir da bactéria Streptomyces peucetius. Desde então tem sido usada como quimioterápico por causa de seu amplo espectro de atividade. “As antraciclinas causam danos irreversíveis às células tumorais

fotos 1 SCIENCE PHOTO LIBRARY  2 e 3 marcos rossi e Érica carolina campos / USP-rp

Remédio e veneno

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Coração fragmentado: estrutura formada pela proteína distrofina (em verde), danificada pela doxorrubicina na imagem à direita

O Projeto Distrofina e suas proteínas associadas na patogênese da cardiomiopatia induzida por doxorrubicina nº 2010/13199-1 modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor Marcos Antonio Rossi – FMRP/USP investimento R$ 263.235,82 (FAPESP)

por se intercalarem no DNA, inibirem a síntese de proteínas e produzirem espécies reativas de oxigênio, causando a morte celular”, explica Rossi. “Por isso, elas sempre foram consideradas um dos medicamentos mais eficazes no tratamento de tumores humanos.” Com o tempo, no entanto, verificou-se que a doxorrubicina produz efeitos colaterais que se tornam cada vez mais intensos. O principal deles é a dilatação do coração, que causa insuficiência cardíaca e pode levar à morte. A insuficiência pode ser aguda, observada logo após a administração da primeira dose ao paciente e facilmente tratada, ou crônica, que se manifesta ao longo de meses de tratamento. Atualmente a estratégia para tentar reduzir os danos cardíacos é limitar a dosagem da medicação a algo entre 500 e 550 miligramas por metro quadrado (mg/m2) de superfície corporal – uma pessoa de 1,80 m e 80 quilos tem cerca de 2 m2 de superfície corporal e pode receber uma dose cumulativa máxima de 1.000 a 1.100 mg. Mesmo assim, não se consegue evitar completamente os efeitos tóxicos. “Estima-se que 5% a 35% dos pacientes que recebem dose superior a 400 mg/m2 de antraciclinas apresentam queda nos índices de função cardíaca ou até insuficiência cardíaca”, diz Rossi. Algumas hipóteses tentavam explicar a origem dos danos que a doxorrubicina causa às células do coração (cardiomiócitos). A mais estudada delas é o estresse oxidativo. De acordo com os defensores dessa ideia, as antraciclinas geram radicais livres, moléculas altamente reativas que causariam lesões na membrana e em outros componentes das células. “Mas esse mecanismo tem sido cada vez mais questionado”, comenta Rossi. “Isso aumentou nosso interesse em estudar a causa da lesão cardíaca e permitiu propor que ela seja consequência de danos a proteínas estruturais dos cardiomiócitos, principalmente a distrofina.” Para testar essa hipótese, Érica tratou durante duas semanas três grupos de ratos com doses diferentes de doxorrubicina e analisou o que acontecia com o coração dos roedores. “Avaliamos a

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expressão das proteínas nas células do coração e também a função cardíaca 7 dias e 14 dias após a última dose administrada”, conta Érica. Ela verificou uma perda significativa da distrofina nas células cardíacas. Quanto maior a dose do medicamento, menos distrofina havia no coração e maior a taxa de mortalidade entre os animais, relataram os pequisadores em artigo no European Journal of Pharmacology. Exames de imagem, como a ecocardiografia, revelaram também que a perda de distrofina prejudicou a capacidade de bombeamento de sangue. “A perda de distrofina foi considerada a causa estrutural responsável pela perda da função cardíaca”, afirma Érica. Mas confirmar o efeito nocivo não bastava. Os pesquisadores também queriam saber como a distrofina é destruída pela medicação. “Descobrimos que os danos na membrana dos cardiomiócitos permitem a entrada de mais íons de cálcio”, explica Rossi. “Isso, por sua vez, ativa as proteases (enzimas) que lesam as células.” De posse desse conhecimento, os pesquisadores passaram a buscar formas de reduzir os danos cardíacos causados pelas antraciclinas. Um dos compostos que testaram foi o relaxante muscular dantrolene, que reduz a contração das células ao bloquear a entrada de cálcio. Administrado com a doxorrubicina, o relaxante muscular reduziu a perda de distrofina e os focos de lesão. “Os ratos tratados com dantrolene e doxorrubicina mantiveram função cardíaca semelhante à dos animais controles [que haviam recebido placebo em vez do quimioterápico]”, conta Rossi. “Nossos achados entusiasmam porque abrem a possibilidade de que, no futuro, talvez possam reorientar a prática clínica.” n

Artigo científico CAMPOS, E. C. et al. Calpain-mediated dystrophin disruption may be a potential structural culprit behind chronic doxorubicin-induced cardiomyopathy. European Journal of Pharmacology. v. 670(2-3), p. 541-53. 30 nov. 2011. pESQUISA FAPESP 196

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 tecnologia _ Pesquisa empresarial

Florestas imbatíveis Suzano investe em energia e produtos para substituir derivados de petróleo texto Dinorah Ereno fotos Léo Ramos

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empresa Suzano, pioneira na fabricação de papel e celulose a partir do eucalipto, investe em várias frentes de pesquisa simultaneamente na busca de inovações. “Em parceria com uma universidade europeia, desenvolvemos um polímero à base de lignina para diversas aplicações no mercado”, diz o engenheiro químico Fábio Carucci Figliolino, de 52 anos, gerente executivo da área de pesquisa industrial da Suzano, que resguarda todos os detalhes da novidade. A lignina é um polímero orgânico responsável pela rigidez da parede celular das plantas. Com a Universidade de Nova Lisboa, de Portugal, e a Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, a empresa fez um transistor de papel para uso em embalagens. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é parceira em vários projetos, entre os quais o desenvolvimento de um novo filme para embalagens à base de um polímero natural que promove barreira à gordura. Em colaboração com a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, e instituições internacionais, a Suzano está à frente do projeto Lignodeco (abreviatura de Lignocellulose Deconstruction), que tem como objetivo

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desenvolver tecnologias para o pré-tratamento da biomassa proveniente da madeira do eucalipto e suas potenciais aplicações, como biocombustíveis e produtos químicos de origem orgânica. O projeto foi escolhido entre 263 trabalhos apresentados por pesquisadores do mundo todo no 7º Programa Quadro (FP7 – Framework Program), principal instrumento de financiamento utilizado pela União Europeia para apoiar atividades de pesquisa e desenvolvimento. Com recursos de € 5 milhões, o projeto é desenvolvido desde 2010 em colaboração entre o Laboratório de Celulose e Papel da UFV, a Suzano, o Centro de Investigações Biológicas (CIB) de Madri, o Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia de Sevilha (Irnas), o Centro de Pesquisas Técnicas da Finlândia (VTT), a empresa dinamarquesa Novozymes, maior produtora de enzimas do mundo, e o Centro Técnico do Papel (CTP), na França. “São mais de 20 pesquisadores envolvidos no projeto, todos com mestrado ou doutorado”, diz o engenheiro florestal Augusto Fernandes Milanez, de 62 anos, consultor de projetos na área de pesquisa industrial da Suzano e coordenador do Lignodeco. A área de pesquisa, desenvolvimento e inovação da empresa, segunda maior produtora mundial de


celulose de eucalipto com sede na cidade de São Paulo, se ramifica em duas: pesquisa industrial e florestal. São 99 pesquisadores internos com formações diversas, entre biólogos, engenheiros florestais, agrônomos, químicos, engenheiros de materiais, dos quais 50 são graduados, 8 têm mestrado e 5 têm doutorado, além dos técnicos químicos. Em 2011, a empresa produziu 1,8 milhão de toneladas de celulose e 1,3 milhão de toneladas de papel. A receita líquida foi de R$ 4,8 bilhões, crescimento de 7,4% em relação a 2010. “O orçamento em P&D da pesquisa industrial e florestal é de R$ 30 milhões por ano, sem contar os investimentos”, diz Carucci. Entre esses investimentos está, por exemplo, a compra da empresa de biotecnologia israelense Futura Gene em 2011. “A transformação genética do eucalipto fará com que ele precise de menos terra e água para produzir celulose e um menor custo.” A empresa tem laboratórios de pesquisa em Israel, Brasil e China e está presente nos Estados Unidos. Além de ser um grande mercado consumidor de celulose, a China se insere na política da Suzano de produção de árvores específicas para clientes de vários lugares do mundo. No Brasil, a empresa de biotecnologia tem sede

Fábio Carucci Figliolino (à direita) e sua equipe da área de pesquisa industrial

inovação

química

pESQUISA FAPESP 196    51


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Produtos extraídos da lignina poderão substituir compósitos para o asfalto e petroquímicos

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1 e 3 Equipamento para testar papel na Suzano 2 Licor negro usado para extração de lignina 4 Químico Sérgio Saraiva faz pesquisas em laboratório de P&D da empresa

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em Itapetininga, no interior paulista, local onde existia um centro de pesquisa florestal e melhoramento genético da Suzano. “A Futura Gene faz modificações genéticas nas nossas variedades de eucalipto”, relata Milanez. Plantas geneticamente modificadas estão sendo avaliadas em experimentos controlados. O investimento em biotecnologia faz parte de um plano de crescimento da empresa – arquitetado para um horizonte de 10 a 15 anos e apoiado em projetos inovadores e na atuação em novas frentes que incluem biorrefinarias e energia renovável, além de papel e celulose. Um projeto piloto de biorrefinaria de extração de lignina a partir do licor negro – resultante do processo de cozimento da madeira – está em operação em Limeira, no interior paulista, com capacidade de produção de uma tonelada por dia. Presente em cerca de 25% da madeira de eucalipto, a lignina

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pode ser usada tanto para geração de energia utilizada nos processos de fabricação de celulose e papel como na produção de insumos químicos em substituição aos derivados de petróleo. “Buscamos a sua utilização em vários produtos, para substituir desde compósitos para o asfalto até petroquímicos em geral”, relata Milanez. “Nos testes feitos, identificamos na lignina do eucalipto 18 mil substâncias químicas que também são encontradas no petróleo.” O petróleo tem cerca de 32 mil compostos químicos. Os desafios tecnológicos para a operação da biorrefinaria em escala industrial ainda estão em fase de ajustes, mas as pesquisas conduzidas mostram potencial uso dos produtos extraídos da lignina principalmente na construção civil como componente do concreto e do cimento. “Da mesma forma que a refinaria de petróleo separa as suas frações e vai agregando valor a cada uma delas, a biorrefinaria transforma a biomassa em produtos de maior valor agregado”, diz Milanez, que há 35 anos, desde que terminou o mestrado em ciências florestais na UFV, trabalha na área de papel e celulose. Começou sua carreira em outras empresas do setor e desde 1994 está na Suzano. A ideia do projeto de extração da lignina nasceu em 2007, durante uma visita feita pelo consultor a uma biorrefinaria na Suécia, quando participava de um congresso sobre o tema. “A planta-piloto tem tecnologia nossa, mas fornecedores nacionais nos ajudaram nesse processo”, diz Vinicius Lobosco, de 39 anos, engenheiro químico formado pela Escola Politécnica da USP e responsável pelo projeto de extração da lignina. Após terminar a graduação, Lobosco fez mestrado e doutorado no Instituto Real de Tecnologia em Estocolmo, na Suécia. “Era contratado do Inn-


ventia, renomado instituto de pesquisa em papel e celulose, e fazia o doutorado na universidade”, diz. Após 12 anos, decidiu voltar para o Brasil. Trabalhou em outra empresa do setor durante um ano e meio, mas se encantou com as possibilidades oferecidas pela Suzano em pesquisa, inovação e, principalmente, empreendedorismo. O pesquisador Sérgio Saraiva, de 33 anos e há dois na empresa, trabalha com novas aplicações da lignina e faz a interface do projeto da biorrefinaria com universidades e institutos de pesquisas nacionais e internacionais. Saraiva formou-se em química na USP, fez mestrado em química orgânica na Unicamp, onde faz atualmente também o doutorado que tem como tema um dos projetos da biorrefinaria da Suzano. O investimento para instalação da planta-piloto foi de R$ 1 milhão, obtido da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A previsão é que entre 2013 e 2014 a biorrefinaria esteja instalada, mas a escolha do local ainda está em estudos.

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pesquisa desenvolvida durante a iniciação científica de Mariana Domingues Mendonça, de 25 anos, facilitou o seu acesso à Suzano, onde trabalha como pesquisadora há dois anos e meio. “Estudava o desenvolvimento de embalagens em papel-cartão à base de polímeros naturais”, relata Mariana, que fez engenharia química na Unicamp. No laboratório, ela analisava as propriedades de barreira à água e ganho de propriedade física para o papel. Num curso de inovação na universidade a orientadora de Mariana, Telma Teixeira Franco, conheceu Fábio Carucci, que se interessou pelo projeto, mas o foco da pesquisa mudou para um papel com barreira à gordura. Após seis meses de estágio na Suzano, na área de papel e papel-cartão, ela foi contratada. Na outra frente de atuação, foi criada em 2010 a empresa Suzano Energia Renovável para produzir pellets de madeira – partículas desidratadas e prensadas com alto poder calorífico –, que podem ser usados como combustível para caldeiras residenciais, industriais e usinas termelétricas. Para a produção de energia, foi feita uma seleção de clones de eucalipto que permite o plantio de maior número de árvores por hectare e com ciclo reduzido de colheita, entre dois e três anos. O ciclo do eucalipto plantado para papel e celulose é de cerca de sete anos. A produção em escala industrial, que será destinada ao mercado externo, está prevista para ter início em 2014, com capacidade de produção de 3 milhões de toneladas ao ano de pellets. A Suzano tem investido fortemente em inovação aberta (open innovation) e trabalhado em conjunto com diversas empresas, universidades e institutos de pesquisa. Entre os parceiros mais constantes estão Unicamp, USP São Carlos, Uni-

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As equipes se dividem em áreas de pesquisa com uma visão de mercado, e não por tecnologia

versidade Federal de São Carlos (UFSCar), UFV, além da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, o Centro Técnico do Papel, na França, o Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia de Sevilha, na Espanha, o Centro de Pesquisas Técnicas da Finlândia e a Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. “Temos hoje em contrato 51 parcerias externas”, relata a engenheira florestal Elenice Pereira Maia, responsável pela prospecção de novos projetos da área de pesquisa industrial. Em março de 2008 a Suzano colocou em prática a sua nova estratégia de pesquisa e negócios. “Fizemos uma revisão dos nossos processos e começamos uma mudança importante, que é nos ver mais como uma empresa de base florestal”, diz Carucci, formado em engenharia química na Universidade Mogi das Cruzes (UMC), com MBA em gestão empresarial na Faculdade Getúlio Vargas (FGV), especialização em impressão gráfica na USP e em gestão estratégica da inovação tecnológica na Unicamp. “A Suzano sempre investiu em P&D, mas percebemos que poderíamos ser ainda melhores se tivéssemos claro um processo de inovação dentro da companhia.” Uma consultoria foi contratada para ajudar no processo de mudança, que levou 15 meses para ser construído e implementado. “A estratégia era tão forte e a velocidade de implementação tão grande que 90% dos projetos que estavam em andamento

R$ 30 milhões é o orçamento anual da pesquisa industrial e florestal

pESQUISA FAPESP 196    53


foram suspensos”, relata Carucci, que está há 28 anos na empresa. “Recomeçamos praticamente do zero.” Entre as várias linhas de pesquisa que passaram a fazer parte do portfólio de projetos estão biotecnologia, melhorias de clones de eucalipto, redução de custos, aumento de produtividade, novas aplicações para celulose, novos produtos químicos em substituição ao petróleo a partir da madeira, nanotecnologia e biorrefinaria.

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construção do processo começou com uma pergunta feita para a diretoria da Suzano: “Para onde a empresa quer ir nos próximos 10 a 15 anos?”. Externamente, foram feitas 51 entrevistas, com a questão: “Onde você vê o segmento de papel e celulose no futuro e quais seriam as suas apostas tecnológicas para esse setor nos próximos 10 anos?”. Entre os entrevistados estavam integrantes da cadeia de valor da empresa (fornecedores, produtores, distribuidores), centros de pesquisa no mundo inteiro, outras empresas, setores regulatórios e do governo. “Internamente queríamos saber a direção a ser tomada e externamente como chegar lá”, diz Carucci. “Foi um processo riquíssimo, porque no final tínhamos metas claras para papel, celulose, floresta e, com isso, construímos uma estratégia de crescimento acelerado para os próximos 10 a 15 anos.” Cerca de 30% dos projetos da carteira atual são os chamados radicais – energia renovável, química a partir da madeira, biorrefinaria. Eles são a aposta da empresa para que ocorra lá na frente um substancial salto no crescimento. O restante é composto por projetos incrementais, que tratam de pequenas mudanças nos produtos e processos produtivos e serão responsáveis pelo crescimento contínuo na primeira fase. Cada uma das duas áreas de pesquisa – industrial e florestal – conta com um gerente executivo, um consultor para avaliação de projetos e um assistente de P&D, responsável pelo orçamento

Um dos laboratórios de pesquisa da Suzano

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Fábio Carucci Figliolino, engenheiro químico, gerente executivo de pesquisa industrial

UMC – graduação FGV – MBA USP e Unicamp – especialização

Augusto Fernandes Milanez, engenheiro florestal, consultor de projetos na área de pesquisa industrial

UFV – graduação e mestrado

Vinicius Lobosco, engenheiro químico, responsável pelo projeto de extração da lignina

USP – graduação Instituto Real de Tecnologia, na Suécia – mestrado e doutorado

Elenice Pereira Maia, engenheira florestal, responsável pela prospecção de novos projetos da área de pesquisa industrial

UFV – graduação, mestrado e doutorado

Sérgio Saraiva, químico, pesquisador

USP – graduação Unicamp – mestrado e doutorado

Mariana Domingues Mendonça, engenheira química, pesquisadora 54   junho DE 2012

Unicamp – graduação

e pela prospecção de novos projetos. As equipes se dividem em áreas de pesquisa com uma visão de mercado, e não por tecnologia, como costuma ocorrer no meio empresarial. “Temos uma equipe dedicada a celulose e novos negócios, outra para papel e papel-cartão para embalagens, uma terceira que desenvolve novos insumos e uma equipe que cuida da prospecção de projetos e inovação”, diz Carucci. Não há divisão entre técnicos e pesquisadores, porque o trabalho é feito em conjunto. Eles se organizam de acordo com os projetos, por conta própria, já que não existe um chefe de laboratório. O processo de inovação se dá por meio de prospecção tecnológica, que identifica e seleciona as parcerias. “O mapeamento de oportunidades é feito com ferramentas específicas”, diz Elenice Maia, com mestrado e doutorado em celulose pela UFV. Uma delas, por exemplo, é a compra de serviços de prospecção que dão acesso a uma rede mundial de pesquisadores em universidades e institutos de pesquisa. A primeira vez que o serviço foi utilizado a Suzano recebeu em seis semanas 62 propostas de pesquisadores como resposta a um desafio tecnológico. Dessas foram escolhidas cinco, que resultaram em novos projetos para a empresa. “A competitividade do Brasil em celulose está fundamentada na nossa competência em fazer florestas de eucalipto bastante produtivas”, diz Carucci. Os plantios brasileiros de eucalipto produzem uma quantidade de biomassa maior do que no resto do mundo por uma série de razões, que envolvem desde clima, disponibilidade de terra, além da competência florestal das empresas do setor, baseada na habilidade de escolher as matrizes mais adequadas para cada região de plantio. O país produz, em média, 41 metros cúbicos de celulose (m³) por hectare. “Temos eucaliptos plantados hoje que produzem 50 m3 por hectare e clones com valores de 100 m3”, relata Milanez. n


Uma parceria pela geração de trabalho e renda no país.

A Fundação Banco do Brasil e o BNDES se uniram para promover o desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas que vivem em situação de vulnerabilidade econômica, por meio de programas e tecnologias sociais voltados à geração de trabalho e renda. Em três anos, já foram investidos R$ 110 milhões, envolvendo mais de 113 mil famílias no processo de transformação social.

www.fbb.org.br/bndes-fbb


_ produção de próteses

Plástico de açaí Semente de fruta tropical é matéria-prima para substituir ossos do crânio Evanildo da Silveira

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fotos 1 fabio colombini  2, 3 e 4 eduardo cesar

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preciado em sucos, cremes ou sorvetes, o açaí, fruto da palmeira Euterpe oleracea, poderá ser usado na produção de um plástico natural e renovável para compor próteses ósseas, principalmente na região da cabeça. Para isso, serão utilizadas apenas as sementes do fruto. A novidade partiu de uma equipe de pesquisadores liderada pelo engenheiro químico Rubens Maciel Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Muito comum na região Norte do país, o plástico de açaí demonstrou ter as mesmas características do poliuretano feito a partir do petróleo. Os testes in vitro indicam que o material é biocompatível e apresenta excelentes propriedades mecânicas e biológicas. “De acordo com pesquisas recentes, esse fruto tem propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias e analgésicas, entre outras com interesse em bioaplicações”, explica Maciel, coordenador do Instituto de Biofabricação (Biofabris), um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), sediado na Faculdade de Engenharia Química (FEQ), na Unicamp. As pesquisas começaram em 2009 e o novo polímero, que gerou um pedido de patente, é resultado do trabalho de mestrado e depois de doutorado da pesquisadora Laís Gabriel, ambos sob a orientação de Maciel. O engenheiro mecânico André Jardini, pesquisador do Biofabris, diz que o poliuretano é um material muito usado na fabricação de próteses ortopédicas, porque tem compatibilidade com os tecidos vivos. “Além disso, não libera substâncias tóxicas quando implantado”, diz. “Se for de origem vegetal, tem outra vantagem, que é o baixo custo da matéria-prima. A comparação pode ser feita com uma prótese craniana de biocerâmica que custa, em média, R$ 120 mil. Nossa expectativa é de produção de uma similar de açaí com custo cinco vezes menor aproximadamente.” O processo de produção do novo material começa com a retirada da polpa do fruto numa máquina apropriada para isso. O consumo do açaí na cidade de Belém gera 350 toneladas por dia de despolpados (sementes e bagaço). “E sobra uma biomassa úmida, caroços recobertos de fibras e partículas não solúveis”, explica a professora Carmen Gilda Tavares Dias, do Laboratório de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Pará (UFPA), que forneceu as amostras de despolpados, usadas pelos pesquisadores do Bio-


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Prótese rígida e na forma de treliça, produzidas com sementes do fruto do açaizeiro (à esquerda)

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O Projeto Biofabris – Instituto de Biofabricação nº 2008/57860-3 modalidade Projeto Temático – INCT Co­or­de­na­dor Rubens Maciel Filho – Unicamp investimento R$ 427.794,75 e US$ 766.420,83 (FAPESP)

fabris. “Essa biomassa é colocada numa máquina de secagem para retirada das sementes secas.” A partir dessa fase começa a produção propriamente dita do poliuretano, feito a partir de uma substância chamada poliol, retirada das sementes. A ela adiciona-se um composto químico com isocianato (um líquido viscoso) e gás hidrogênio dentro de um reator. O passo seguinte é acrescentar nanopartículas de hidroxiapatita, uma substância formada principalmente por fosfato de cálcio, o principal constituinte dos ossos, que é absorvível pelo organismo. O produto final é o polímero de açaí, uma espuma rígida e porosa, que facilita o crescimento ósseo. De acordo com os pesquisadores, ele é mais indicado para implantes e próteses em regiões do corpo que não exigem grande esforço mecânico, como o crânio e a face. “No caso de uma prótese para a cabeça do fêmur, por exemplo, há outros materiais mais resistentes, como o titânio”, diz Jardini. Se for aprovado nos testes clínicos, pelos quais ainda está passando, o biopoliuretano, desenvolvido no Biofabris com financiamento da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), poderá ser uma alternativa precisa e rápida de criar uma prótese ou implante ósseo. O tratamento poderá ser personalizado, de acordo com as necessidades de cada paciente. A partir de uma imagem tomográfica da região lesionada, processada pelo software InVesalius (ver em Pesquisa FAPESP nº 148), desenvolvido pelo Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), de Campinas, será possível produzir uma prótese sob medida. Jardini explica que o primeiro passo para essa personalização é fazer a segmentação, separando tecido mole (pele, músculos, artérias) do tecido duro (osso). “O passo seguinte é gerar uma imagem tridimensional do tecido

duro, mostrando a parte faltante. Em seguida, por espelhamento, nós ‘desenhamos’ a prótese. O último passo é enviar essa informação para um equipamento de prototipagem rápida, que fará uma réplica anatômica fiel, camada por camada, do osso inexistente.” A área de biomateriais e biofabricação é um campo em que as pesquisas vêm crescendo em todo o mundo. “A área dos biopolímeros ou biomateriais poliméricos é bastante extensa, devido a ampla variedade de plásticos que podem ser utilizados, como, por exemplo, acrílico, polietileno, polipropileno e PVC”, diz Luís Alberto dos Santos, professor do Laboratório de Biomateriais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “As pesquisas têm se focado em dois tipos de polímeros: os de alta resistência mecânica, para uso em locais de alta solicitação (coluna, placas, parafusos) e os absorvíveis, que não necessitam de cirurgia para retirada e podem ser utilizados para liberação de drogas e antibióticos.” Para Santos o termo biopolímero possui dois amplos significados. “Ele pode ser um biomaterial para uso biomédico ou um polímero obtido a partir de materiais biológicos que não necessariamente é usado em humanos”, explica. Em relação às suas próprias pesquisas, Santos diz que desenvolve um plástico derivado do ácido lático, encontrado, por exemplo, na carne ou no leite, utilizado em fios de suturas e em implantes absorvíveis. “Outro biopolímero com que trabalhamos é o alginato de sódio, derivado de algas”, conta. “O material é um hidrogel, que absorve grande quantidade de água, podendo ser utilizado para cobrir feridas de queimados e de diabéticos, em fraldas e absorventes, além de também poder ser empregado como suporte para cultura de células.” Ambos os trabalhos geraram pedido de patente. n pESQUISA FAPESP 196

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_ glicerina

Resíduos bem-vindos Subproduto do biodiesel pode ser usado para suprimir poeira de vagões de minério texto

C

Yuri Vasconcelos

ilustração Drüm

aminhões e ônibus no Brasil rodam desde 2008 com uma porcentagem de biodiesel feito com óleos­ ­­vegetais ou gordura animal adicionado ao tradicional diesel de petróleo. No início eram 2% e a partir de 2010 a presença do combustível renovável e menos poluidor subiu para 5%. Mas a produção cresce e com ela aparece um problema. O que fazer com o glicerol que sobra na proporção de 100 quilos em cada mil quilos de biodiesel produzidos? A saída, como mostram várias pesquisas desenvolvidas no país, é transformá-lo num produto com valor agregado conforme um estudo premiado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que resultou num supressor de poeira feito de glicerol. Trata-se de um líquido para ser pulverizado sobre vagões carregados de minério de ferro no trajeto entre as minas e as unidades de processamento ou aos portos para exportação. Esse cuidado evita que partículas do material possam ser liberadas na atmosfera pela ação do vento ou da chuva, causando perdas econômicas, danos ambientais e prejuízos para a saúde dos moradores do entorno da ferrovia. “O supressor criado pelo nosso grupo, batizado de Fragdust, é mais eficiente do que os disponíveis comercialmente produzidos com derivados de petróleo, porque forma uma camada maleável e resistente sobre o minério, mesmo em baixíssimas concentrações, o que não ocorre com outros supressores. Além disso, custa cerca de 60% do valor dos similares à venda no mercado”, diz o químico Miguel Araújo

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energia

química

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eduardo cesar

Mil e uma utilidades da glicerina USOS TRADICIONAIS

Alimentos Mantém a umidade de vários produtos Cosméticos Evita o ressecamento de cremes, loções e sabonetes Tecidos Amacia e flexibiliza as fibras Papel Usada como plastificante para elevar a resistência e a maleabilidade

Amostra de biodiesel, em amarelo-claro, e o glicerol, mais denso, na parte inferior

Medeiros, professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). A inovação, desenvolvida em conjunto com o Grupo de Tecnologias Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pelo professor Rochel Lago, foi licenciada para a empresa Verti Ecotecnologias, de Belo Horizonte, que está estudando a produção do material em escala industrial. O Fragdust rendeu aos pesquisadores brasileiros prêmios internacionais importantes, como os primeiros lugares no Global Startup Workshop 2012, promovido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em Istambul, na Turquia, e no Idea to Product Global 2011, realizado em Estocolmo, na Suécia – duas competições focadas em novas tecnologias e empreendedorismo. Com o avanço do programa nacional do biodiesel – no ano passado foram fabricados 2,6 bilhões de litros do biocombustível e a produção estimada para 2020 é de 14,3 bilhões de litros –, o volume gerado de glicerol é enorme e muito acima da demanda. No ano passado atingiu cerca de 260 mil toneladas apenas como subproduto do biodiesel, volume quase oito vezes superior à demanda, estimada em cerca de 40 mil toneladas. Os mercados tradicionais da substância, popularmente conhecida como glicerina – termo usado para referir-se ao produto na forma comercial, com pureza acima de 95% –, são as indústrias de cosméticos, de medicamentos, de alimentos e química. 60

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Explosivos Faz parte da nitroglicerina utilizada na fabricação de dinamite Tabaco Torna as fibras mais resistentes e evita o ressecamento das folhas Lubrificantes Na lubrificação de máquinas e equipamentos industriais Tintas Também presente na composição de vernizes e detergentes

Até 1949, todo o glicerol produzido no mundo vinha da indústria do sabão, também como um subproduto. Depois surgiu a glicerina sintética obtida do petróleo. A partir de meados da década passada, quando o biodiesel começou a ser produzido em grandes volumes por vários países, houve uma explosão na produção e oferta de glicerol. Hoje estima-se que 1,5 milhão de toneladas da substância são provenientes apenas das usinas de biodiesel instaladas no planeta. A Argentina, com 3,3 bilhões de litros, tornou-se em 2011 o maior produtor mundial de biodiesel, superando os Estados Unidos (3,1 bilhões de litros), o Brasil e a Alemanha (2,4 bilhões de litros), segundo informações da Associação dos Produtores de Biodiesel do Brasil (Aprobio), entidade que detém entre 60% e 70% da capacidade instalada de biodiesel no país. Boa parte da glicerina gerada nas plantas de biodiesel no Brasil é queimada em fornos e caldeiras para geração de energia calorífica em unidades industriais, como na produção do mesmo biocombustível, além de olarias, siderúrgicas etc. “Essa é uma atividade ambientalmente correta, porque o glicerol substitui a lenha e combustíveis fósseis, como óleo combustível e carvão”, afirma Expedito José de Sá Parente Júnior, membro do comitê técnico da Aprobio. Segundo ele, grandes produtores de biodiesel, como a Oleoplan, do Rio Grande do Sul, também exportam seus excedentes de glicerina para outros países, onde a substância é usada como matéria-prima nos mercados tradicionais. “Queima do produto para gerar calor e exportação para a China são os dois principais destinos do glicerol do biodiesel”, diz

10% é a proporção de glicerol que sobra da produção total de biodiesel

ilustrações drüm

Medicamentos Na composição de embalagens e de fármacos


Propeno verde

A transformação do glicerol no supressor de poeira é apenas um dos esforços para dar uma destinação adequada ao resíduo. Algumas iniciativas são fruto da parceria entre universidade e NOVAS APLICAÇÕES iniciativa privada. É o caso de um projeto que envolveu a Quattor, petroquímica comprada há Alimentação animal Bioaditivos Na composição de Na produção de aditivos dois anos pela Braskem, e a Universidade Federal rações para porcos, anticongelantes e antioxidantes do Rio de Janeiro (UFRJ). “Em 2006, a empresa frangos e bovinos para gasolina e biodiesel nos procurou interessada na conversão do glicerol em propeno”, recorda-se o professor Cláudio Supressor de poeira Etilenoglicol Convertida em pó, é Na composição do etilenoglicol Mota, do Instituto de Química da UFRJ. O propulverizada sobre vagões empregado como anticongelante peno, uma resina obtida a partir de derivados de de minério de ferro nos radiadores automotivos petróleo, é uma das principais matérias-primas da indústria petroquímica. Ele é empregado na Eletricidade Propanodiol Usada como combustível Convertida em propanodiol fabricação de polipropileno, um plástico amplaem caldeiras para geração na formulação de vários mente usado em peças automotivas, eletrodomésde energia elétrica e calor produtos industriais ticos e embalagens para alimentos e produtos de limpeza. Segundo Mota, embora não houvesse Etanol plástico Por processos Transformada em propeno naquela época referências na literatura cientíbiotecnológicos, é para uso na fabricação fica da transformação do glicerol em propeno, transformada em de embalagens, fraldas e seu grupo conseguiu desenvolver um catalisador combustível automotivo peças automotivas e um processo eficiente, que acabaram gerando uma patente para a universidade e a Quattor. Os resultados foram animadores e a empresa chegou a planejar a construParente Júnior. Sem conhecer mais detalhes, ele ção de uma fábrica-piloto para prodiz que o glicerol produzido na Argentina e na cessamento do glicerol. “Infelizmente, Alemanha também segue para a China, onde o depois que a Quattor foi adquirida peuso é grande e não se produz biodiesel. Matéria-prima la Braskem, o projeto não teve seguiParente defende que a alta produção da subsmento porque a empresa detectou protância deve ser encarada como uma oportunidapara produzir blemas logísticos com o transporte da de, e não um problema. “É preciso que surjam tecnologias para agregar valor ao produto”, diz plásticos por via matéria-prima, porque a fábrica seria instalada em São Paulo e os principais ele. “Há um consenso de que a glicerina é uma fabricantes de biodiesel ficam na região matéria-prima abundante e de baixo custo e que biotecnológica Centro-Oeste. Além disso, a Braskem tem um potencial químico para o desenvolvimencom o uso de já tinha outras rotas para fabricação de to de novos produtos e processos com maior valor propeno a partir de materiais renováagregado. Mas não adianta criar alternativas que microrganismos veis”, afirma Mota. “Continuamos com não tenham uma grande demanda, equivalente nossas pesquisas e estamos procurando à oferta de glicerina, porque sem aplicações em um novo parceiro.” larga escala iremos continuar queimando e exportando o glicerol.” A Braskem também está envolvida em um trabalho, em parceria com professores do departamento de engenharia química da Projeções* produção de biodiesel nos últimos anos Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em metros cúbicos 2,672.760 Biodiesel (USP), que pretende converter o glicerol nos comGlicerol 14,3 postos químicos 3-hidroxipropionaldeído (3-HPA) 2.386.399 *em bilhões e 1,3 propanodiol (1,3 PD), substâncias químicas de litros com alto valor agregado. Eles são usados na conservação de alimentos e na produção de polímeros, 1.608.448 além de serem precursores de compostos químicos 5,5 importantes para a cadeia petroquímica. Apoiado 1.167.128 pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria 1,4 para Inovação Tecnológica (Pite) e pelo Progra0,5 ma FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), 2014 2020 o projeto tem o objetivo de fazer a conversão do 736 69.002 404.329 glicerol pela via biotecnológica, utilizando microrganismos geneticamente modificados, entre eles 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 a bactéria Caulobacter crescentus. pESQUISA FAPESP 196

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foto  eduardo cesar

Usina de biodiesel em Taubaté (SP). Glicerol produzido é queimado em fornos para gerar calor em atividades industriais

Durante o estudo, iniciado em 2010, os pesquisadores conseguiram estabelecer a rota biotecnológica, mas se depararam com o alto custo do meio de cultura dos microrganismos, o que encarecia o processo. Esse obstáculo foi superado há quatro meses, quando a equipe substituiu o meio de cultura tradicional por vinhaça, um subproduto da indústria do açúcar e álcool. “Essa descoberta vai viabilizar economicamente o processo biotecnológico que nós desenvolvemos”, diz o professor Cláudio Oller, um dos responsáveis pelo projeto, coordenado pelo professor Carlos Frederico Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Etanol e hidrogênio

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um grupo de cientistas desenvolve uma linha de pesquisa parecida à da USP. Além do 1,3 propanodiol, eles querem produzir, também por vias biotecnológicas, etanol e hidrogênio a partir do glicerol do biodiesel. “Nossa pesquisa está dividida em diversos estágios. O primeiro, já completado, foi a identificação dos agentes biológicos capazes de metabolizarem o glicerol residual. O segundo estágio, em bancada, está em andamento e prevê o esgotamento do estudo da fisiologia 62

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50% da energia gerada nas usinas com glicerol poderia ser repassada para concessionárias de eletricidade das bactérias do gênero Klebsiella pneumoniae. A etapa seguinte é o trabalho de otimização e operação de biorreatores com o cultivo dos microrganismos. Protótipos de biorreatores projetados e construídos por nós já estão submetidos a testes preliminares”, conta o engenheiro químico Marco Antônio Ayub, professor do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UFRGS. O pesquisador ressalta que o processo revelou-se tecnicamente viável, com as cepas convertendo bem o glicerol sem nenhum tratamento prévio para retirada de impurezas e com bons índices de produção. “Isso indica que o processo é economicamente viável. Mas essa questão ainda não foi aprofundada pelo nosso grupo. Precisamos fazer os cálculos de custos”, diz Ayub. Segundo ele, já existe interesse expresso de pelo menos três empresas. “Uma delas quer fabricar equipamentos associados à tecnologia e as demais

O Projeto Desenvolvimento de estratégias para transformação do glicerol via rotas biotecnológicas e química – nº 2008/03620-1 modalidade Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) Co­or­de­na­dor Carlos Frederico Martins Menck – USP investimento R$ 255.050,11 e US$ 211.297,51 (FAPESP)


estão interessadas em produzir etanol por esse processo. Por razões de sigilo, não posso revelar o nome dos interessados”, diz. A pesquisa conta com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). Geração de eletricidade

Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a engenheira química Juliana Albarelli é autora de um estudo que verificou a viabilidade do uso do glicerol como combustível para produção de eletricidade e de vapor em um sistema de cogeração. A ideia da pesquisadora é empregar a energia gerada na produção de biodiesel, reduzindo o custo de fabricação, e trazer benefício financeiro para a empresa. “Utilizamos softwares para programação, análise energética e econômica, e verificamos que apenas 50% da eletricidade gerada seria necessária para suprir o processo de produção de biodiesel. Os 50% excedentes poderiam ser vendidos para a comunidade local ou para a concessionária da região, gerando mais uma fonte de renda para a empresa”, diz Juliana. Os resultados do trabalho mostraram que o investimento inicial na unidade de cogeração seria pago em quatro anos. Vários obstáculos, no entanto, ainda precisam ser superados. O primeiro deles é o desenvolvimento de um sistema que faça essa conversão. “Não tenho conhecimento de nenhuma tecnologia em nível industrial sendo desenvolvida”, afirma Juliana. O grupo do professor Carlos Mota, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalha na produção de bioaditivos a partir

Na usina, biodiesel depois do processo de filtragem

composição do biodiesel Porcentagens de óleos vegetais e gorduras usados como matéria-prima

0,52%

1,29%

0,19%

1,67%

0,02% 7,25%

17,95%

Artigos científicos Óleo de soja Gordura bovina Óleo de algodão

71,10%

do glicerol. “Um dos aditivos que desenvolvemos serve para melhorar a fluidez do biodiesel, principalmente do que é produzido a partir de sebo bovino. Esse tipo de biodiesel começa a congelar quando submetido a temperaturas abaixo de 15 graus Celsius, comuns em muitas cidades do Sul do país”, diz Mota. Sua equipe também desenvolveu um bioaditivo com propriedades antioxidantes com potencial para ser usado em diversas aplicações industriais. “Ele pode ser usado na conservação de alimentos ou misturado ao biodiesel feito de soja, que necessita de um antioxidante para não sofrer degradação química quando em contato com o ar”, explica o pesquisador da UFRJ. Muitos desses oxidantes são importados e caros. Conseguir produzi-lo a partir de uma fonte renovável, como o glicerol do biodiesel, representa não apenas uma vantagem ambiental, mas também um ganho econômico importante para o país. n

Óleo de palma Óleo de fritura usado Gordura de porco Gordura de frango Outros materiais

Rossi D.M et al. Bioconversion of residual glycerol from biodiesel synthesis into 1,3-propanediol and ethanol by isolated bacteria from environmental consortia. Renewable Energy. v. 39, n. 1, p. 223-27. mar. 2012. Medeiros, Miguel A. et. al.Use of glycerol by-product of biodiesel to produce an efficient dust suppressant. Chemical Engineering Journal. v. 180, p. 364-69. jan. 2012. Albarelli, J. Q. et. al. Energetic and economic evaluation of waste glycerol cogeneration in Brazil. Brazilian Journal of Chemical Engineering. v. 28, n. 4, p. 691-98. 2011. pESQUISA FAPESP 196

_ 63


_ Indústria automobilística{

Economia de álcool Motores flex devem reduzir o gasto de etanol Marcos de Oliveira

Q

uem dirigia carros a álcool na década de 1980 certamente se lembra do afogador, um botão ou alavanca que precisava ser puxado para injetar mais combustível no motor no momento da partida para que ele esquentasse e funcionasse de modo satisfatório. A evolução tecnológica tornou o afogador automático e impulsionou o sistema flex no início dos anos 2000 em que gasolina e etanol convivem no mesmo motor em qualquer porcentagem de um ou de outro. Essa configuração se transformou em um sucesso de vendas, mas ainda requer avanços principalmente em relação ao consumo do álcool, maior em 30% ao da gasolina. Uma desvantagem que começa a ser mais bem estudada em várias parcerias entre instituições de pesquisa e as indústrias automobilísticas e de autopeças. “O conhecimento sobre a queima do etanol dentro do motor ainda é escasso”, diz o engenheiro Jayr de Amorim Filho, pesquisador do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), instalado na cidade de Campinas, em São Paulo. “Desde 2009 fazemos estudos fundamentais no plasma que se forma entre a centelha emitida pela vela e a combustão do etanol dentro do motor”, diz. “Já conseguimos propor algumas técnicas novas para entender melhor o que acontece no momento da descarga quando a queima do etanol se propaga no espaço, provoca reações químicas e libera energia para impulsionar o veículo.” Os pesquisadores desenvolveram e conseguiram visualizar o que acontece dentro do motor por meio de uma fibra óptica acoplada à vela e que entra nas entranhas do motor. “É como um endoscópio”, diz Amorim. A fibra captura a luz

64    junho DE 2012

emitida pela centelha. Depois ela é analisada para a detecção dos gases que se formam antes, durante e após a combustão. “Em nosso estudo, a vela emite centelhas a cada 10 milissegundos ou 100 pulsos por segundo e a luz nos traz informações sobre os gases que se formam na explosão dentro desses intervalos. Com isso, pretendemos, além de contribuir para a diminuição do consumo de etanol, diminuir a emissão de gases nocivos ao ambiente que já é menor em relação aos motores a gasolina.” O trabalho da equipe de Amorim foi financiado por meio de um convênio entre a FAPESP e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) em um projeto vinculado ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e conta com pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e do Departamento de Física do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde o pesquisador do CTBE começou os estudos com motores a álcool. Desde o início da pesquisa, a Bosch, fabricante de velas e sistemas automotivos para combustíveis – pioneira no desenvolvimento do sistema flex –, contribuiu com o fornecimento de material e agora está estudando uma parceria para a montagem de um laboratório no CTBE para estudos da queima do etanol. O grupo tem também parceria na área de combustão com a empresa Mahle, fabricante de peças para motores, com sede em Jundiaí (SP). O melhor entendimento dos motores que funcionam a etanol também requer melhor entendimento do desgaste e atrito das peças que o compõem. “Embora já bem evoluídos, as motores flex que utilizam etanol apresentam maior desgaste de peças porque o álcool tem menor capacidade de lubrificação que a gasolina”, diz o professor

Os Projetos 1 Etanol – Utilização do etanol como combustível: ignição a plasma de motores veiculares nº 2008/58195-3 2 Desafios tribológicos em motores flex-fuel nº 2009/54891-8 3 Estudo experimental e computacional de sprays turbulentos de etanol para aplicações em motores de combustão interna nº 2010/51310-1

modalidade 1 e 3 Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) 2 Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite)

Co­or­de­na­dores 1 Jayr de Amorim Filho – CTBE 2 Amilton Sinatora – USP 3 Guenther Carlos Krieger Filho – USP

investimento 1 R$ 174.962,34 e US$ 149.501,85 (FAPESP) 2 R$ 975.435,65 e US$ 690.091,30 (FAPESP) 3 R$ 123.551,15 e US$ 293.241,32 (FAPESP) e R$ 285.274,15 e US$ 293.241,32 (Vale)


fotos  eduardo cesar

1

1 No CTBE, equipamento para teste de velas de ignição e estudo da queima de etanol em motores 2 Simulação de centelha de plasma em motor automotivo

2

Amilton Sinatora, professor da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). “Há alguns anos começamos a estudar o problema em trabalhos acadêmicos. O que nos incentivou foram relatos, em revistas como a 4 Rodas, de problemas de desgaste em válvulas e anéis dos motores, por exemplo”, diz Sinatora. A partir daí, ele começou a estruturar um projeto com o centro tecnológico da Mahle. Gotas da explosão

Em gestação desde 2009, o projeto foi aprovado pela FAPESP em 2011 com outros parceiros: Fiat, Volkswagen, Renault e a Petrobras, que contribuirá nos estudos para levar a novos óleos lubrificantes para combater de forma mais específica o efeito do uso simultâneo de lubrificantes distintos nos motores flex. “A tendência nos últimos anos é a produção de motores mais leves, menores, mais potentes e que emitem menos poluentes. Agora procuramos motores que apresentem menos desgastes ao longo do tempo com o etanol.” A importância desses estudos reside também no fato de que não existem ainda estudos prolongados de motores flex com etanol fora do Brasil. “Esses estudos no exterior começaram há três anos”, diz. Ele coordena o projeto com a colaboração de equipes nas empresas e em mais duas universidades, a Universidade Federal do ABC, com o professor Humberto Yoshimura, e na Unicamp, com o professor Francisco Marques. Medir o tamanho das gotas do spray em chamas de etanol com técnicas que utilizam laser faz parte do início de outro projeto relacionado a motores a álcool que pretende analisar novas possibilidades de combustão do biocombustível. “É uma pesquisa básica para o estudo da combustão do etanol”, diz o professor Guenther Carlos

Krieger Filho, da Poli-USP. O projeto coordenado por ele faz parte do Bioen e tem origem no acordo de cooperação para desenvolvimento tecnológico entre a FAPESP, a Vale S.A, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (Fapespa) e a Fapemig. O projeto deve terminar em 2015. “Esses estudos são muito importantes porque o motor flex está no meio do caminho entre o motor a gasolina e o a álcool em termos de regulagem”, diz o engenheiro Waldemar Christofoletti, do comitê de veículos leves da SAE Brasil, entidade que reúne engenheiros automotivos e aeroespaciais. Para ele, o sistema flex é muito bom, mas está longe de ser um motor eficiente a álcool. “Acredito que a relação pode sair dos 30% de diferença no consumo para 15% no máximo, mas para isso é preciso incluir também software e hardware, ou componentes físicos e eletrônicos que formam o sistema de injeção de combustível”, diz Christofoletti. Outro fator que tem alimentado o interesse das empresas em avanços para os motores a álcool é o programa do governo federal lançado em abril deste ano chamado de Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto). Ele vai conceder descontos no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a partir de janeiro de 2013, para fabricantes de veículos e de autopeças que comprovarem investimento em desenvolvimento tecnológico e eficiência energética. n pESQUISA FAPESP 196    65


 humanidades _ Justiça de transição 1

O parto da memória Criação tardia de uma Comissão da Verdade mostra como o Brasil enfrenta de modo peculiar o legado de violações dos direitos humanos Fabrício Marques

66   junho DE 2012


2

Ciência Política

Direito

fotos 1 ANTONIO LÚCIO / ae  2 Daniel GARCIA / afp

Manifestação pela anistia em São Paulo, em 1979 (à esq.), e passeata das mães da praça de Maio em Buenos Aires, em 1985: os militares do Brasil articularam o esquecimento, mas os da Argentina não resistiram aos pedidos de justiça

O

Brasil tem uma trajetória singular no enfrentamento do legado de violações de direitos humanos nos governos militares entre 1964 e 1985. Apenas agora, 27 anos após o retorno do poder aos civis, está sendo criada a Comissão Nacional da Verdade, que nos próximos dois anos colherá depoimentos de vítimas da repressão política e de agentes do Estado acusados de crimes e, ao cabo do trabalho, publicará um relatório narrando oficialmente as circunstâncias das violações e propondo ações para que não voltem a acontecer. A experiência brasileira é singular sob duas perspectivas. De um lado, trata-se da mais tardia das comissões criadas por cerca de 40 países nas últimas décadas para apurar crimes praticados durante ditaduras. De outro, o Brasil é um exemplo incomum de país que tomou diversas iniciativas para reparar crimes, como as indenizações a famílias de mortos pela ditadura e a perseguidos políticos, mas deixou a apuração dos fatos para mais tarde. Por que o Brasil optou primeiro pelo caminho de reparações financeiras? Esta pergunta norteou a pesquisa de doutorado da cientista política Glenda Mezarobba, defendida na USP em 2008 com bolsa da FAPESP. Uma das conclusões principais de sua pesquisa, fertilizada por uma temporada de seis meses num centro de estudos em Nova York, foi que a Lei da Anistia de 1979 exerceu uma influência muito forte sobre o

Relações Internacionais

pESQUISA FAPESP 196    67


Julgamento de criminosos nazistas em Nuremberg, em 1946: o desafio de julgar e de punir crimes que mataram milhões

68   junho DE 2012

comportamento tanto dos agentes quanto das vítimas da repressão. Na Argentina, por exemplo, os militares se autoanistiaram pouco antes de entregarem o poder aos civis, em 1983, mas o perdão foi instantaneamente revogado pelo presidente civil, Raúl Alfonsín, pressionado por amplos setores da população que queriam justiça. A trajetória da apuração e das punições na Argentina teria altos e baixos. Houve quarteladas militares e leis, mais tarde revogadas, que determinaram o encerramento dos processos, mas a Justiça seguiu seu curso – hoje, os ex-ditadores Jorge Videla e Reynaldo Bignone cumprem prisão perpétua. Mesmo no Chile, onde a transição foi mediada pelo ex-ditador Augusto Pinochet, aboletado numa cadeira de senador vitalício, acordou-se a convocação de uma Comissão da Verdade e, mais tarde, os crimes acabaram sendo investigados sob pressão internacional. O próprio Pinochet foi mantido em prisão domiciliar em Londres, em 1998, acusado pela Justiça da Espanha de crimes cometidos contra cidadãos do país. Já no Brasil, observa Glenda, a Lei da Anistia serviu de antídoto para neutralizar ânimos mais exigentes. “A anistia era reivindicada desde mea­ dos dos anos 1960, se tornou palavra de ordem durante a ditadura e a mobilização que desencadeou no final da década de 1970, com a criação de comitês pela anistia no Brasil e na Europa, é

apontada como precursora dos atuais movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil”, diz Glenda, que atualmente é pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), e diretora da área de Humanas da FAPESP. “A Lei da Anistia foi discutida num Congresso cerceado pelos militares e sancionada pelo governo, mas o movimento pela anistia sentiu-se vitorioso. Foi uma lógica muito diferente da observada na Argentina ou no Chile. Lá não havia Congresso ou Parlamento aberto para legitimar a anistia. E ninguém queria perdão, mas justiça”, afirma. Salvo raras exceções, os beneficiados pela Lei da Anistia no Brasil não buscaram a Justiça para identificar e punir seus torturadores. “Num país em que há ‘leis que pegam’ e ‘leis que não pegam’, causa espanto a forma como a Lei da Anistia tem sido interpretada desde a ditadura. É certo que existe margem para a Justiça reinterpretar a Lei da Anistia, que, aliás, não faz menção ao crime de tortura, por exemplo, mas foram pouquíssimas as tentativas de testá-la nos tribunais. Os próprios anistiados têm dificuldade em se enxergar como vítimas e em perceber o Judiciário como a esfera de realização da Justiça”, diz a pesquisadora. O campo de pesquisa a que Glenda Mezarobba se dedica é o da justiça de transição, que trata de iniciativas e mecanismos judiciais e extraju-

fotos 1 USHMM  2 afp photo

1


diciais adotados por países para enfrentar legados de violações em massa de direitos humanos e referendados por instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Diante da impossibilidade material ou política de levar à Justiça um conjunto muito extenso de crimes, construíram-se estratégias para evitar a impunidade. As punições se concentram em crimes contra a humanidade ou genocídios, a exemplo dos julgamentos de criminosos nazistas após a Segunda Guerra Mundial. No cerne da justiça de transição está a noção de que os Estados têm ao menos quatro deveres perante a sociedade – o da justiça, o da verdade, o da reparação e o das reformas – e que tais deveres podem ser cumpridos por intermédio de anistias para crimes menores, indenizações, pedidos públicos de desculpas, abertura de arquivos, construção de museus e memoriais, entre outros.

E

, naturalmente, há o recurso das comissões da verdade, que buscam dar voz às vítimas, resgatar a memória do período de exceção e ajudar a construir o ambiente democrático – sem ter, contudo, poder de punir. “Em determinadas situações, a justiça de transição enfatiza a necessidade de se concentrar a atenção mais explicitamente na restauração do relacionamento entre as vítimas, os perpetradores e a sociedade, em vez da punição”, diz Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, que no ano passado concluiu um pós-doutorado com bolsa da FAPESP. Essas comissões buscam administrar conflitos que não se encerraram com a passagem de um período de violações em massa de direitos humanos para um governo democrático. A Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul foi criada em 1993, num período em que confrontos raciais ainda eram frequentes, e buscava transformar a violência em diálogo. Foi fruto de uma longa negociação e procurava reconstruir a memória do período de violência, abrindo-se para depoimentos de vítimas, familiares e agentes repressores. Como o que se procurava era a reconciliação, havia um inédito mecanismo pelo qual os algozes que confessassem seus crimes seriam anis2 tiados. “A maior inovação

dos sul-africanos é aquela ligada a um princípio, o da anistia individual e condicional, em oposição às anistias gerais concedidas na América Latina sob pressão dos militares”, diz Luci Buff, autora de uma tese de Na África do Sul doutorado em filosofia, defendida pós-apartheid, em 2007 na PUC de São Paulo, sobre os horizontes do perdão, na qual o objetivo da aborda o exemplo sul-africano. “O objetivo não era o de apagar, encocomissão era brir crimes, mas revelar. Os antigos criminosos tiveram a oportunidade transformar a de participar da reescritura da históviolência em ria nacional para serem perdoados”, afirmou. O artifício teve eficiência diálogo e criar parcial. Houve confissões e anistia para apenas 17% dos crimes apuraas bases para dos pela comissão. Há, é certo, poucas semelhanças a democracia entre a experiência sul-africana e a brasileira, como observa Edson Teles, professor de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos, e autor de uma tese de doutorado, com bolsa da FAPESP, sobre a trajetória das políticas de justiça e reparação no Brasil pós-ciclo militar e na África do Sul pós-apartheid. “O Brasil se encontra em momento muito diferente. A ditadura acabou há muito tempo, mas há heranças que precisam ser revistas. A comissão aqui busca a apuração histórica e a reconstrução da memória para obter a transformação política do presente”, afirma Teles, que pertence a uma família de Apoiadores da Comissão da Verdade presos políticos no Araguaia. “A nossa Comise Reconciliação da são da Verdade igualmente não busca a punição África do Sul, em de culpados, mas tem diferenças fundamentais. 1995: anistia para quem confessava

pESQUISA FAPESP 196    69


Enquanto a sul-africana é autônoma, a nossa é vinculada à Casa Civil da Presidência da República. É uma diferença relevante porque o que vai ser discutido são crimes de Estado e ainda há dentro do Estado herdeiros do legado de governos anteriores, como se vê nas manifestações das Forças Armadas. Há uma forte pressão, por isso a questão da autonomia é importante.”

M

Refugiados do genocídio em Ruanda, que matou 800 mil em 1994: crimes contra humanidade testam os limites da justiça de transição

as a Comissão da Verdade brasileira pode desempenhar um papel histórico, observa Teles, como na construção de uma memória coletiva sobre o período. “A publicidade dos traumas e dos ressentimentos por meio das narrativas pode contribuir para a consumação do luto e para o aprimoramento dos elos sociais”, afirma. “A oposição entre a razão política pacificadora do Estado e as memórias doloridas sobre a ditadura militar brasileira obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções privadas.” Outra contribuição importante pode ser colhida no campo do aprimoramento das instituições democráticas. Teles lembra que o Brasil ainda mantém leis e legados na estrutura do Estado dos tempos da ditadura e afirma que, na experiência de outros países, comissões da verdade sugeriram reformas nessas estruturas e ajudaram a montar o Estado democrático. “A tortura segue como uma prática corriqueira no aparelho policial brasileiro. Um dos benefícios

que a Comissão da Verdade pode trazer é propor reformas das instituições. Isso, se ela tiver êxito em identificar tanto os responsáveis pelos atos criminosos quanto a estrutura que permitiu que esses atos acontecessem.” Os estudos no campo da justiça de transição são recentes no Brasil. Para fazer sua tese de doutorado, a cientista política Glenda Mezarobba teve de passar seis meses em Nova York, fazendo pesquisa numa entidade que é referência nessa área, o International Center for Transitional Justice. “Havia pouca pesquisa no Brasil naquela época sobre esse tema e sentia falta de interlocutores, que encontrei nos Estados Unidos”, afirma. Na época em que esteve lá, o presidente do centro era o argentino Juan Méndez, que foi advogado de presos políticos na década de 1970, razão pela qual foi ele também preso e torturado, sendo expulso para os Estados Unidos em 1977, quando a organização Anistia Internacional adotou-o como prisioneiro de consciência. Atualmente é o relator especial das Nações Unidas para crimes de tortura. “Eu perguntava a ele sobre a anistia decretada ao final do governo militar na Argentina e ele não via sentido na minha pergunta. Foi aí que eu constatei que no Brasil, ao contrário da Argentina e do Chile, por exemplo, a água tem movimentado mais os moinhos do esquecimento”, afirma. Em Nova York, encontrou vasta bibliografia sobre o assunto, inclusive escrita no

1

70   junho DE 2012


O ex-ditador chileno Augusto Pinochet, detido numa clínica em Londres em 1998: pressão da justiça internacional forçou tribunais chilenos a investigarem crimes

Uma das observações mais agudas da pesquisa de Glenda Mezarobba sugere que a ditadura brasileira foi mais habilidosa em ‘capturar corações e mentes’ de seus cidadãos Observadores do que as congêneres da América internacionais Latina. “Isso talvez ajude a entender por que a ditadura do Brasil foi visitavam a ‘menos sangrenta’ do que a da Argentina e a do Chile. Ela não preciArgentina e sou ser mais sangrenta do que foi”, afirma. A apropriação da bandeira o Chile para da anistia, transformando-a num denunciar dínamo do esquecimento, seria um exemplo dessa habilidade. Glenda violações, mas também cita a eficiência da ditadura em impedir a entrada no país de não conseguiam observadores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Na entrar no Brasil Argentina e no Chile o relato dos observadores teve papel fundamental 2 na denúncia de violações de direitos humanos. No Brasil, nossa diplomaBrasil, mas não mais disponível aqui. “Sem ir a cia foi ‘eficiente’ ao barrar essas iniciativas”, diz. Nova York não teria feito a tese”, afirma a pes- Da mesma forma, o Brasil foi pouco acionado por quisadora. Glenda é autora dos quatro verbetes tribunais de outros países por crimes cometidos sobre o Brasil que fazem parte da 1ª enciclopédia contra seus cidadãos, ao contrário do que acontede justiça de transição, que a Cambridge Univer- ceu com Argentina e Chile. “Só houve uma ação, movida na Itália”, afirma Glenda. sity Press lança em dezembro. Quando, ainda no governo Lula, foi criado um grupo de trabalho para discutir o anteprojeto de urante a ditadura no Brasil a luta por anislei que criaria a Comissão da Verdade, Glenda tia foi acompanhada pela defesa e promofoi convidada a assessorar um dos membros do ção aos direitos humanos, pela volta da grupo, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, democracia e pela punição dos torturadores. Tal professor da USP e fundador do Núcleo de Es- bandeira foi levantada por grupos de defesa dos tudos sobre a Violência. “O empenho do então direitos humanos e familiares de mortos e deministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, saparecidos, mas não conseguiu reverberar na foi fundamental para a criação desse grupo e fi- sociedade. E a resistência dos militares contra a zemos, na época, um esforço para aproximar a apuração dos fatos, escorados na Lei da Anistia, academia do debate sobre a Comissão da Verda- prevaleceu. Isso não significa que o Estado brade”, diz Glenda. Antes disso, mas com o mesmo sileiro nada tenha feito no sentido de cumprir, objetivo, ela coordenou, junto com Paulo Sérgio ainda que parcialmente, suas obrigações desde Pinheiro, em outubro de 2009, a Conferência então. Todos os presidentes civis que precederam Internacional sobre o Direito à Verdade, em São Dilma Rousseff contribuíram de alguma forma Paulo. O evento de dois dias reuniu pesquisadores para enfrentar o legado de violações em massa de campos como o direito, a ciência política e as dos direitos humanos. José Sarney assinou os relações internacionais, além de autoridades e Pactos Internacionais das Nações Unidas sobre ativistas dos direitos humanos, vindos do Brasil Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a e do exterior, com apoio da FAPESP. Para Paulo Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Sérgio Pinheiro, nomeado membro da Comissão Desumanos ou Degradantes. Também durante o da Verdade, a experiência das comissões de ou- governo Sarney – mas sem participação oficial – tros países e o engajamento da academia podem foi divulgado o projeto Brasil: Nunca Mais (ver ajudar no trabalho da comissão brasileira. “O Bra- box). Trata-se da mais importante iniciativa já sil vai beneficiar-se da experiência de diferentes feita até agora para revelar os fatos ligados à viola‘comissões da verdade’ criadas no mundo desde ção dos direitos humanos pela repressão política os anos 80. Podemos aprender com comissões entre 1961 e 1979, por meio da sistematização de recentes, como a do Paraguai; ou do Uruguai, que informações de processos do Superior Tribunal teve uma grande participação das universidades; Militar. No governo Fernando Collor iniciou-se a ou do Peru”, afirmou à agência BBC. abertura de alguns arquivos de órgãos estaduais

fotos 1 wikimedia  2 afp photo

D

pESQUISA FAPESP 196    71


de repressão que estavam sob a guarda da Polícia Federal. Sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, foi sancionada a Lei dos Mortos e Desaparecidos, que reconhece a responsabilidade do Estado sobre 136 desaparecidos, e criou-se a Comissão de Anistia, que abriu caminho para a reparação financeira de perseguidos políticos que sofreram perdas econômicas em decorrência de atos de repressão política. O governo Lula seguiu pagando reparações e contribuiu com a divulgação de documentos públicos, por meio do portal Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, e com a criação do grupo de trabalho que propôs o anteprojeto da lei que criou a Comissão da Verdade.

A

Comissão da Anistia criada no governo Fernando Henrique para garantir reparações financeiras a vítimas da ditadura não foi constituída com propósitos investigativos. “Em nenhum momento a lei que criou a comissão fala em vítimas, mas em ‘anistiados’ ou ‘beneficiados pela anistia’”, diz Glenda. Para garantir a

reparação financeira, basta provar a responsabilidade do Estado pela morte de um militante ou pelo prejuízo causado ao perseguido político – assim que isso acontecia, a investigação cessava, sem preocupação de apontar circunstâncias e personagens. “Caso típico de anistia em branco, o modelo de transição brasileiro negligenciou a demanda por esclarecimento dos crimes passados e, duas décadas depois, acolheu um princípio de responsabilidade difusa, legada indistintamente ao Estado, sem identificação de operadores individuais”, escreveram as pesquisadoras Cristina Buarque de Holanda, Vanessa Oliveira Batista e Luciana Boiteux, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo publicado em 2010. Os mecanismos para garantir reparação financeira geraram distorções. “A reparação é necessariamente simbólica, uma vez que não é possível dimensionar materialmente a perda de uma vida ou o sofrimento numa sala de torturas”, observa Glenda Mezarobba. Seguindo exemplos internacionais, a indenização a familiares de

Brasil: Nunca Mais on-line Estão sendo digitalizados os documentos

1

2

Dom Paulo Evaristo Arns (alto) e Jaime Wright: à revelia do governo, operação para reunir a mais importante documentação sobre repressão política 72   junho DE 2012

Os documentos foram obtidos

do projeto Brasil: Nunca Mais, iniciativa

de forma quase clandestina por um

liderada pelo cardeal católico dom Paulo

grupo de 30 ativistas dos direitos

Evaristo Arns e o pastor presbiteriano

humanos. Alguns deles optaram pelo

Jaime Wright que gerou a mais

anonimato. Entre 1979 e 1985, essa

importante documentação sobre

equipe consultou e gerou cópias de

a repressão política no Brasil entre 1961

processos no STM que continham, por

e 1979. No horizonte de um ano,

exemplo, as denúncias de torturas

os documentos estarão disponíveis

apresentadas pelos presos políticos nos

para consulta na internet. A digitalização

tribunais. “Sua publicação precedeu a

está sendo feita pelo Arquivo Público

divulgação de uma lista com o nome

do Estado de São Paulo, a partir de

de 444 torturadores, mas nem o

microfilmes guardados nos Estados

livro nem a identificação dos agentes

Unidos. O Arquivo Edgard Leuenrouth

despertaram reação em grande escala

(AEL), da Unicamp, que abriga a coleção

pelo fim da impunidade aos acusados de

de documentos, está conferindo a versão

violar direitos humanos”, diz a cientista

digitalizada e sanando eventuais falhas,

política Glenda Mezarobba. Tornou-se

fornecendo processos que não foram

uma espécie de versão oficial dos fatos,

microfilmados. Nessa fase do processo,

embora tenha sido feito à revelia

o AEL utiliza equipamentos adquiridos

do governo. Segundo Alvaro Bianchi,

por meio do Programa de Infraestrutura

o Brasil: Nunca Mais é uma das coleções

da FAPESP, que viabilizou investimentos

mais consultadas do AEL. Serviu de

de cerca de R$ 590 mil no Arquivo.

base para muitos estudos e teses sobre

“Estamos em fase de conferência

a história da esquerda, a resistência

e de tratamento de imagens”, diz Alvaro

ao governo militar e o movimento

Bianchi, diretor do AEL e professor

estudantil, mas foi pouco aproveitado

de ciência política da Unicamp. Desde

para estudos sobre direitos humanos.

1987, a Unicamp abriga a coleção de

“O interesse principal dos pesquisadores

documentos, que reúne mais de 1 milhão

tem sido os documentos apreendidos

de páginas contidas em 707 processos

que foram anexados aos processos. Eles

do Superior Tribunal Militar (STM) e seus

constituem uma fonte de informações

10 mil anexos.

de difícil obtenção”, afirma.


fotos 1 e 2 folhapress  3 antonio cruz/agência brasil

3

Cerimônia de instalação da Comissão da Verdade, em Brasília: 27 anos depois, a decisão de investigar as violações do ciclo militar

mortos e desaparecidos foi arbitrada em cerca de US$ 150 mil. Mas nos processos dos perseguidos políticos, em que se avaliava o prejuízo financeiro causado por demissões ou por exílio, o montante pode chegar à casa dos milhões. “A lei 10.559 foi construída de forma equivocada”, diz a pesquisadora, que entrevistou o ex-presidente Fernando Henrique sobre o assunto para sua tese. “Perguntei por que o Brasil seguiu o caminho das reparações. Ele atribuiu à nossa herança patrimonialista”, diz, referindo-se àquela característica de um Estado que não esboça distinção entre os limites do público e do privado.

O

advento da Comissão da Verdade brasileira também pode ser visto como uma resposta à recente pressão internacional contra a resistência do Brasil em apurar os crimes do período militar – em 2010, por exemplo, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na Guerrilha do Araguaia. O tribunal concluiu que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974, e determinou que sejam feitos todos os esforços para localizar os corpos. “A postura negacionista do Brasil chocou-se com a guinada do direito internacional acerca das violências cometidas por Estados”, diz Lucia Bastos, que é autora de uma tese de doutorado sobre as leis de anistia em face do direito internacional. Em 2005, a ONU aprovou um conjunto de princípios sobre o direito das vítimas de violações dos direitos humanos, que estabeleceu diretrizes para reparações. “Sentenças

e documentos de instâncias como a Corte Interamericana dos Direitos Advento da Humanos passaram a apontar enComissão faticamente no sentido de considerar ilegais as anistias em branco e de da Verdade é chancelar mecanismos extrajudiciais capazes de combater a impunidade e resposta à reconciliar a sociedade. Eles formam os pilares da justiça de transição e focondenação do ram erguidos não apenas a partir da Brasil pelas teoria, mas também das experiências concretas”, afirma a pesquisadora. mortes na Lucia observa que a adoção de mecanismos de justiça de transição vem Guerrilha do se consolidando desde o fim da Guerra Fria. “Em duas décadas, comissões Araguaia da verdade se multiplicaram, houve um desenvolvimento sem precedentes no que diz respeito à justiça internacional penal e nunca existiram antes tantos pedidos de desculpa e concessão de reparações a vítimas de violações de direitos humanos”, diz Lucia. “Mas a justiça de transição deparou-se com fatos contraditórios, divididos entre momentos de esperança e tragédia, que aqueceram o debate a respeito de qual seria a melhor forma de se alcançar a reconciliação, se uma política de perdão ou de punição”, afirma. Do lado da esperança, houve o colapso das ditaduras comunistas, o fim do apartheid na África do Sul e a consolidação das democracias na América Latina. Do lado trágico, houve o genocídio em Ruanda e a limpeza étnica na ex-Iugoslávia. “Atualmente, a justiça internacional trabalha com ambas as proposições, tanto os mecanismos extrajudiciais para a reconstrução da sociedade como as punições.” n pESQUISA FAPESP 196    73


_ protecionismo

Uma indústria a media luz Cinema argentino optou pela via comercial, ao contrário do Brasil, que se ligou ao Estado e ainda vive na dependência de ajuda oficial Carlos Haag

E

Acima, Alô, alô carnaval, com Aurora Miranda (1936), e, abaixo, Gilda de Abreu em Bonequinha de seda (1936) 74

_ junho DE 2012

m Pneumotórax, Manuel Bandeira, após se descobrir doente e lamentar “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”, ouve do médico a sentença: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Talvez, hoje, o cinema nacional não chorasse “o que podia ter sido” se tivesse, como os portenhos, nos anos 1930, apostado menos nas benesses do Estado e mais num similar local do “tango argentino”. “Entre 1933 e 1942, o cinema argentino, com seus musicais populares baseados no tango e no melodrama, viveu la epoca de oro, não apenas subsistindo no seu próprio mercado, enfrentando e se diferenciando da concorrência de Hollywood, como avançou sem a interferência do Estado. A mesma década, no Brasil, como escreveu o crítico Alex Viany, foi simplesmente ‘ingrata’, apesar, ou por causa, do protecionismo estatal”, observa Arthur Autran, professor do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e autor da pesquisa Sonhos industriais: o cinema de estúdio no Brasil e na Argentina (1930-1955). De início, nos dois países, as oportunidades para a criação de uma indústria cinematográfica eram semelhantes, mas os resultados foram muito diferentes. “O Brasil tinha uma produção numericamente razoável que entrou rapidamente numa decadência que se manteve até o fim da Segunda Guerra Mundial. Já a Argentina teve um

aumento paulatino da sua produção e atingiu números expressivos: entre 1930 e 1940, o número de filmes de longa metragem passou de 2 para 56, recorde inigualável, numa indústria que reuniu 4 mil técnicos e atores em 30 estúdios”, diz Autran. Lá, como aqui, a chegada do cinema sonoro animou os produtores, que apostaram na existência de um público para o filme nacional. Afinal, os talkies americanos, que eram apresentados em inglês, demoraram dois anos para se adaptar ao mercado internacional com legendas e dublagens e atingir um público maior que, até então, não compreendia os filmes por não dominar a língua em que eram feitos. Além disso, a maioria dos exibidores não tinha capital para investir em equipamentos sonoros. “Era uma oportunidade única e os produtores brasileiros e argentinos, após as décadas do marasmo artesanal do cinema mudo, se movimentaram para criar uma indústria nacional, nos moldes de Hollywood, mas adaptada ao gosto local”, diz o pesquisador. Falava-se mesmo que era “dever pátrio” impedir a “desnacionalização” das culturas nacionais, ameaçadas pelos talkies ianques. No Brasil, a “cruzada” levou à criação da Cinédia, por Adhemar Gonzaga, da Sonofilms, por Alberto Byington, ambas em 1930, e da Brasil Vita Filmes, de Carmen Santos, em 1933. Na Argentina, propiciou a criação da Argentina Sono Film (1931), a Lumiton (1933) e a Rio de La Plata (1934).


cinema

fotos  arquivo cinemateca brasileira

história

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fotos  1 NOTIMEX / AFP 2 The Picture Desk / AFP 3 arquivo cinemateca brasileira

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A Revolução de 1930, em busca de “meios modernos” para implantar o programa de criação de uma identidade nacional, abriu os braços para o cinema, o que só aumentou as esperanças dos produtores brasileiros. Com razão: em 1932, o novo governo baixou o decreto 21.240, que reduzia as taxas de importação de filme virgem e obrigava os cinemas a exibir curtas nacionais antes dos longas estrangeiros. “Os produtores não se cabiam em si de felicidade. Mas a ação do Estado não só foi insuficiente, como provou, mais tarde, ser deletéria para a indústria, ao tirar do cinema a chance de se regular pelas leis do mercado e não perder a sua liberdade criativa”, explica Autran. A criação passou a ser regulada pelo Estado. O “favor” do governo exigia contrapartidas, entre as quais o poder de orientar a temática e a estética das produções de acordo com os projetos oficiais. Não havia como reclamar, pois se tratava de um pacto feito para atender demandas do meio profissional. Para os produtores, o patronato estatal seria a única forma de conviver com a concorrência estrangeira. Hollywood

Os argentinos, porém, provaram que havia outras vias. “Para se diferenciarem de Hollywood, que investia pesado nos musicais, e conquistar uma audiência local de massa, eles também produziram musicais. Mas tiveram a sabedoria de levar para as telas o ‘sabor portenho’, aproveitando-se da experiência bem-sucedida do ‘sainete’, peças teatrais com 76

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música e comédia, e da paixão nacional pelo tango, cultuado como a quintessência argentina”, observa o historiador americano Matthew Karush, autor do estudo The melodramatic nation (2007). Ao conseguir com que os filmes nacionais apelassem diretamente para a população, de uma maneira que os americanos nunca conseguiriam, conquistaram as massas operárias ao usar lugares familiares onde se desenrolavam temas que interessavam as plateias argentinas. O Brasil também investiu em produções embaladas por música popular, em especial o samba, mas de forma tímida e nem sempre bem-sucedida. O tango era efetivamente expressão nacional, com um poder de integração que atingia até mesmo os muitos imigrantes, que se sentiam, nas telas, assimilados à Argentina. O brasileiro, porém, não necessariamente se reconhecia no samba acabado o Carnaval. Afinal, fora o Estado que impusera o ritmo dos morros, convertido em símbolo de nacionalidade. “Aqui e lá, críticos e elite torciam o nariz para a presença do popular, o que levou alguns produtores a investir em películas ‘sofisticadas’ o bastante para atrair pagantes mais lucrativos”, diz Autran. Havia, porém, uma diferença crucial: a indústria argentina era comandada por produtores com experiência no comércio cinematográfico, em especial na distribuição, o termômetro mais eficiente das demandas do público. Os brasileiros não só careciam dessa expertise, como tinham preconceitos contra a “intromissão” do teatro e da música populares nas telas, apesar da prova em contrário do sucesso de Alô, alô carnaval (1936), Bonequinha de seda (1936) ou Favela dos meus amores

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1 Libertad Lamarque em Cita en la frontera (1940) 2 Gardel, ao centro, em Tango Bar (1935) 3 Jaime Costa em Favela dos meus amores (1935)

(1938). Os portenhos, mais sábios, logo voltaram a colocar em cena, para deleite do público, filmes com Gardel, comédias debochadas com Sandrini, malandro pobretão e digno, e os melodramas de Libertad Lamarque no papel da pobre e honesta mocinha num mundo de ricos abusados. “O público se identificava com esses personagens e fazia uma associação direta com a divisão de classes da sociedade argentina, uma visão que preconizava a superioridade moral dos menos favorecidos ante o escárnio dos ricos”, nota Karush. Apesar de conservadores pela sua temática conformista, os filmes argentinos eram socialmente ambíguos, exigindo, e conseguindo, uma consciência de classe dos espectadores. Afinal, era a massa trabalhadora que frequentava em peso os cinemas, para assistir a filmes em cujo enredo se entrevia a oposição entre os ricos, apresentados como hipócritas, elitistas e antinacionalistas, e os pobres, papel dado aos personagens nobres, generosos e nacionalistas. “Eram filmes que não disseminavam apenas imagens de uma identidade nacional, mas colocavam uma visível polarização social. Assistir a uma dessas produções permitia que se pudesse sonhar não ape-


nas com uma nação unida, mas capaz de rejeitar o egoísmo das elites modernas, celebrando a digna solidariedade dos pobres. Contando com a força do poder imagético do cinema, esse maniqueísmo populista se consolidou pela sociedade argentina e ganhou um apelo irresistível que, mais tarde, o peronismo canalizaria em seu favor”, analisa Karush. Populismo dos “A visão experienmelodramas te dos produtores argentinos criou uma argentinos produção cinematográfica que conseguiu deu material manter um contato estreito com o públi­co para imaginário interno. O que gerou peronista renda e possibilitou, com o crescimento ex­p onencial do número de filmes, chances de exportação para o mercado latino-americano, inclusive o brasileiro, onde os argentinos enxergavam um bom potencial”, conta Autran. ao governo cobrou, e ainda cobra, um Não sem razão, pois, no Brasil, a situação preço alto, marca da relação viciada enera a oposta, com produtores cheios de tre cinema e Estado que só piora com o dificuldades para sobreviver graças aos tempo”, fala Autran. As chances eram laços tênues que se estabeleceram entre iguais, mas por una cabeza os argentinos o público e o cinema nacional. Afinal, conseguiram cristalizar uma indústria cicomo vencer um mercado ainda domi- nematográfica. Só a ascensão do peronisnado pelos longas americanos contando mo imporá uma legislação protecionista apenas com produções nacionais, padro- ao cinema. “Ainda assim, a intervenção nizadas segundo os parâmetros “cultu- estatal se restringia aos documentários ralistas” do Estado? e noticiários, com propaganda política. Nos filmes de ficção não se falava em Perón. Devemos isso ao modelo de denação “O governo nunca se interessou pela senvolvimento adotado pelo cinema arindustrialização do cinema brasileiro, gentino nos anos 1930, que conseguiu mas apenas na sua utilização como ins- uma boa produção sem amargar a regutrumento de propaganda oficial para o lação do Estado”, avalia a historiadora programa de formação da nacionalida- argentina Clara Krieger, autora de Cine de”, lembra Autran. Cabia às produções y peronismo (2009). “Apenas em 1942 é nacionais apenas levar valores culturais que a indústria entra em crise, em espee unificar a nação. O entretenimento, cial por causa da neutralidade dúbia do que o governo desprezava, poderia ser peronismo com os fascistas, o que levou provido pelas produções estrangeiras. os americanos a cortar a exportação de “No Brasil, ao contrário da Argentina, película virgem para filmes, inviabilina hora de decidir entre o Estado e o zando a produção”, lembra. “Durante público, os produtores foram cooptados anos, o cine argentino levou a imagem dos setores populares às telas.” e se decidiram pelo primeiro.” Os argentinos souberam avaliar o poNuma total inversão do processo portencial do mercado e não se uniram ao tenho, os brasileiros, a partir dos anos Estado. “A opção brasileira de se alinhar 1950, investiram, enfim, com entusiasmo

3

nas chanchadas musicais, onde os brasileiros podiam se ver. Essa união de temas populares com artistas do rádio, do circo e das revistas teatrais, por tanto tempo estigmatizados pelos produtores, numa ironia do destino, foi um dos lucrativos períodos da indústria cinematográfica nacional. “Com a chanchada, as manifestações das classes populares passam a ser a base do repertório da indústria cultural, expressão de classe que canalizava sua insatisfação ante a estatização da vida festiva, da restrição da praça pública, da supressão do riso pela seriedade oficial”, nota Autran. O Brasil assumia o cambalache, ainda que tardio. O “pecado original”, porém, não tinha volta. “No mundo todo, à exceção dos EUA e da Índia, o Estado apoia o cinema, mas apenas no Brasil isso é feito de forma incondicional, sem a necessidade de qualquer retorno de mercado dos cineastas, permitindo que tenhamos produções caríssimas, sem qualquer justificativa, a não ser o lucro de uns poucos”, fala o pesquisador. Como antes, não há incentivo para o cinema andar com suas pernas, apenas continuar a “dançar” com o Estado. O que fazer se já passou da hora de “tocar um tango argentino”? n pESQUISA FAPESP 196

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_ dilema pragmático

Entre teoremas e estradas de ferro Debate sobre matemática positivista abriu espaço para a ciência pura no Brasil Ilustração Larissa Ribeiro

P

ara muitos historiadores, a fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, marcou, enfim, o início da ciência moderna no Brasil: “É uma revolução intelectual e científica que mudará as concepções econômicas e sociais dos brasileiros”, nas palavras de Sérgio Milliet. Até então, afirmam, o país amargara um “isolamento científico”, culpa do grupo “autoritário e anticientificista” que impôs “ordem e progresso” à bandeira e aos brasileiros. Assim, numa curiosa distorção, o positivismo, cujo credo era a fé na ciência como alavanca de progresso e civilização, acabou “demonizado” como o grande obstáculo ao desenvolvimento científico nacional. A acusação ganha contornos polêmicos ao recair, em especial, sobre a disciplina vista pelo francês Auguste Comte (1798-1857), criador do positivismo, como a base da educação: a matemática. “O positivismo à brasileira da Primeira República (1889-1930) foi, e ainda é, analisado de maneira simplista e generalizadora por causa da sua visão ‘cientificista’, que preconizava ciên­cia e matemática pragmáticas, instrumentos

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práticos para solucionar os problemas nacionais com progresso material e modernização social. Leituras apressadas e interessadas os acusam de supervalorizar a ciência aplicada, criando constrangimentos para o avanço científico, cujo motor seria a ciência pura e desinteressada”, explica o matemático Rogério Monteiro de Siqueira, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP), autor da pesquisa Modernismo, modernidade e modernização nas ciências matemáticas brasileiras, apoiada pela FAPESP. “Claro que antes dos anos 1930 não se fazia aqui uma matemática como a europeia. Mas não podemos simplificar e dizer que não tivemos qualquer tipo de desenvolvimento matemático antes da USP. Existiam, sim, indivíduos publicando trabalhos com regularidade e originalidade em revistas internacionais. Logo, dizer que os positivistas impediram que se tentasse fazer uma ciência pura, como querem seus detratores de ontem e de hoje, é um engano”, avisa. “Ainda assim muitos hoje insistem que só houve avanços nas ‘escapadas do positivismo’. Isso joga uma nuvem sobre o passa-

do, reduzindo o progresso matemático a um panteão restrito de antipositivistas ‘modernos’ como Otto de Alencar (1874-1912), Manuel de Amoroso Costa (1885-1928), Theodoro Ramos (1895-1935) e Lélio Gama (1892-1981)”, avisa Rogério. O embate entre ciência pura e aplicada é muito mais complexo e é pouco estudado, como o pesquisador descobriu ao analisar os artigos das revistas especializadas. “Havia matemáticos ‘positivistas’ que criticavam Comte. O Brasil não teve um positivismo único, radical, mas dividiu-se em várias facções com diferentes graus de ortodoxia”, diz. Basta ver que a figura de proa do movimento no país, Benjamin Constant de Magalhães (1833-1891), republicano de primeira grandeza e professor de matemática em escolas militares, objetava abertamente as leituras comtianas da matemática. “É preciso também conhecer a produção dos ‘modernos’ na sua totalidade. Hoje há apenas um retrato incompleto dos debates, dos quais se extraíram as variáveis políticas e os jogos de interesses. Pinçam-se apenas os artigos ‘modernos’ que escreveram, deixando de lado os muitos outros sobre questões aplicadas. ‘Esquece-

história da ciência

matemática

pESQUISA FAPESP 196

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meira República não durou muito tempo e a geração de 1870, a cúpula militar invadida pelos ideais reformistas sociais de Comte, foi alijada do poder pelas oligarquias”, explica Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da USP e autora do estudo Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (2002). O grupo queria a cisão entre civis e militares, com um notório desprezo pelos “bacharéis” e sua visão liberal e de conformismo romântico para o Brasil monárquico. Para essa contraelite de militares, engenheiros e médicos, todos com formação técnico-científica, o positivismo confirmou a consciência que tinham do fosso existente entre o país e a “civilização”. canhão

“Essa é uma particularidade dos positivistas brasileiros que, em vez de pensar a doutrina em termos religiosos, a usam para discutir questões políticas num terreno social. A ciência, então, emerge como a fonte de soluções”, observa. Adeptos da “ilustração brasileira”, defendiam a educação como panaceia e se viam como participantes de uma “missão”: conhecer a realidade social e a natureza brasileiras, superando obstáculos com ciência e soluções práticas, e revelar, assim, as potencialidades do território. “Não era valorizar a ciência aplicada em detrimento da ciência pura, mas praticar o conhecimento científico com uma destinação

social associada ao papel fundamental atribuído ao cientista no novo Brasil positivista”, explica Luiz Otávio Ferreira, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenador do estudo O ‘ethos’ positivista e a institucionalização da ciência no Brasil (2007). “Logo, não havia como abrir espaço para ‘matemática pura’ nesse desbravamento urgente dos territórios. Mas surgiram vozes divergentes, a partir da criação, em 1858, da Escola Central de Engenharia, que cindiu o ensino da engenharia entre civis e militares, grupo que vai abraçar, nas academias militares, o positivismo”, observa Ferreira. Os matemáticos “puros” alinharam-se aos engenheiros civis. O conflito abriu-se em 1896, quando Benjamin Constant de Magalhães, como ministro da Instrução Pública, encerrou os cursos de ciências físicas, matemáticas e naturais na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. “Mesmo que o encerramento possa ser atribuído ao fato de que desde 1874 apenas 67 alunos se matricularam, para alguns professores o que se pretendia era a imposição, pelos positivistas que dominavam a instituição, da visão utilitarista das ciências”, explica Ferreira. Para os “engenheiros cientificistas” era um golpe destinado a roubar-lhes espaço. Em 1898 veio a reação. Otto de Alencar, um ex-positivista, publicou o artigo “Alguns erros de mathematica na Synthese subjectiva de A. Comte”, o pri-

reprodução do livro Obrasil de Marc ferrz

-se’ também que os ditos ‘pioneiros da matemática pura’ eram ‘híbridos’, pois, além dos teoremas, também aceitaram cargos públicos e escreveram sobre a prática da engenharia, não se limitando à ‘ciência desinteressada’”, diz. Afinal, mesmo Amoroso Costa, que responsabilizava o positivismo pela situação precária das ciências exatas no Brasil, viu-se obrigado a reconhecer que “o nosso terreno é ainda impróprio ao cultivo dessa suprema flor de espírito que é a ciência pura, contemplativa e desinteressada”. “Essa briga era sintoma da readequação de forças políticas nas ciências nacionais, onde o grupo de engenheiros que investiu numa matemática alheia às suas aplicações, seguindo um padrão então em hegemonia na Europa, viu-se aos poucos desvalorizado e sem espaço. Ao mesmo tempo, isso ocorreu num ambiente em que a matemática, cada vez mais, era vista como instrumento de trabalho prático para o progresso do país”, analisa Rogério. Alijados, passam a defender a criação de um “lócus” institucional para a ciência “descompromissada”, a universidade, que dominariam. Efetivamente, um pequeno grupo radical de positivistas era contrário à criação desse espaço, cientes da queda de braço em curso, mas muitas outras facções não comungavam dessa “censura”, tendo uma postura não dogmática dos textos de Comte. “Também não se pode esquecer que a influência do positivismo na Pri-

fotos wikipédia

A matemática entre puros e aplicados Benjamin Constant

Auguste Comte

USP em 1934

1856

1870

1896

Publicação de

Chegada

Benjamin Constant

Synthese subjectiva,

do positivismo

de Magalhães

em que Auguste

no Brasil com

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1898

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“cientistas puros”

material comtiana

dos positivistas


Escola Militar, Urca, Rio de Janeiro, 1885, um no†ório reduto de positivistas

meiro “tiro” da “guerra” entre “puros” e “aplicados”. Era munição de pequeno calibre, mas serviu como bucha para o “canhão” acionado, em 1918, nas conferências de Amoroso Costa. “Há nos países novos um fanatismo pelo progresso material que ignora que exista um ideal científico superior ao homem que fabrica mil carros por dia ou opera um apêndice em 10 minutos. A opinião é unânime: a ciência é útil, porque os engenheiros, médicos e militares precisam dela. Não vale a pena fazê-la no Brasil: é mais cômodo e barato importar da Europa. Essa é a mentalidade que predomina entre os educadores e aqueles que nos governam”, atacou o matemático. Contemplativos

Uma década mais tarde, Lélio Gama, no Rio, e Theodoro Ramos, em São Paulo, foram à luta para “reaver” o espaço da ciência “desinteressada”, o que ajudou a criação da USP e da carioca Universidade do Brasil, em 1939. Mas havia espaço para as “ciências contemplativas” antes dos anos 1930? “Na Europa, matemática, física e engenharia logo foram separadas, ao contrário do Brasil. Isso foi possível por causa do processo acelerado de industrialização europeu no século XIX. Aqui

Foram os positivistas que deram o conteúdo ideológico para a formação da categoria cientista

não existia demanda de conhecimento técnico para todas as áreas do conhecimento, como houve, por exemplo, no caso da medicina”, observa Rogério. Tampouco as críticas antipositivistas eram “puras”. “As pechas de ‘imprecisão’ e ‘falta de rigor científico’ que jogavam sobre os positivistas são discutíveis. Os matemáticos italianos, por exemplo, eram chamados de ‘poetas’ por uma suposta imprecisão e não se culpou o positivismo por isso. O ‘rigor’ reclamado não era exercido nos escritos dos ‘modernos’ brasileiros, muito aquém de como se trabalhava na Europa”, fala o pesquisador. “O que se al-

mejava era criar uma ‘diferenciação’: a tese de Theodoro Ramos, por exemplo, usava teoria dos conjuntos menos em prol da ‘matemática pura’ do que como estratégia de luta”, diz Rogério. Mas quais seriam as motivações dos “puros”? “Eles tinham uma sensação de descompasso, de ‘ideias fora do lugar’. Muitos haviam viajado ao exterior e voltaram com os novos conceitos científicos praticados na Europa”, avalia Rogério. Para o pesquisador, não se pode negar a presença constante de um componente político, de luta entre grupos que se excluíam e queriam seu lugar ao sol. “Isso se evidencia a partir da ligação de Ramos com a Revolução de 1930. Não foi por acaso que ele trouxe matemáticos italianos, muitos deles fascistas, para a USP, para agradar Vargas, um admirador do Duce. A ação igualmente atendeu às demandas da grande comunidade italiana paulista”, fala. Na divisão, alemães e italianos ficaram com as exatas e os franceses com as humanas. A primeira geração de matemáticos dos anos 1950 é “herdeira” dessa escolha, incluindo-se nisso um desprezo pela didática, incutido por mestres italianos como Luigi Fantappié. A matemática nacional, cuja projeção no exterior se iniciou nos anos 1960, formou-se a partir de um “imbróglio intelectual”. “Os adeptos das ‘ciências puras’ se apropriavam de artigos que vinham do exterior sem, no entanto, conhecer o contexto e o debate em que estes estavam inseridos. Eram apropriados de forma direta e, assim, criou-se uma mistura que gerou um tipo ‘nacional’ de matemática”, nota Rogério. Assim, a “demonização” do positivismo merece uma revisão. “As críticas das ideias científicas positivistas não foi apenas uma empreitada de jovens matemáticos inovadores que queriam romper o ciclo do arcaico conservadorismo científico brasileiro. Essa interpretação ignora que as fronteiras entre o arcaico e o moderno resultam de processos de construção social”, observa Ferreira. O positivismo foi a base para o desenvolvimento de uma classe de cientistas que era sua adversária. “Foram os positivistas que propiciaram os conteúdos ideológicos necessários à formação da categoria ‘cientista’. O modelo de intelectual positivista, objetivo e preciso, reformador social ou não, fez escola entre os que queriam ser vistos como cientistas.” n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 196

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_  livros {

Nem só de sexo viviam os libertinos Análise de obras censuradas do século XVIII sugere que autores se pautavam mais pela razão do que pela devassidão texto  Gustavo Fioratti

O

ilustração  Bel Falleiros

libertino não é, necessariamente ou tão simplesmente, alguém que, como costuma pensar o senso comum, leva uma “vida voltada para os prazeres do sexo”, ou aquela figura do sujeito “devasso; dissoluto; libidinoso”, ou ainda do homem “que não cumpre com deveres e obrigações”. A última definição do Dicionário Houaiss para o termo (as citações acima provêm da mesma fonte) é a que mais se aproxima do valor semântico abordado por Luiz Carlos Villalta em seu estudo Livros libertinos e libertinagens em Portugal e no Brasil no ocaso do Antigo Regime. Na pesquisa de pós-doutorado realizada pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse sujeito também pode ser aquele que, ao exercer a liberdade de reflexão, “desconsidera regras e dogmas religiosos”. Ou seja, a devassidão tem um lado político forte. Em uma edição do século XIX do Diccionario da Língua Portugueza, libertino é ainda “o que sacudio o jugo da Revelação, e presume, que a razão só póde guiar com certeza no que respeita a Deus, á vida futura, &c.fig. o que é licencioso na vida; neste sentido é moderno”. A existência de Deus, aqui, passa a ser analisada por meio da razão e não pelo prisma dogmático.

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Outras definições para a palavra, adaptadas de acordo com o período histórico, contexto cultural ou idioma, recriam, no fim das contas, a figura do homem da época moderna, que, sacudido pelas ideias iluministas, estabeleceu a razão como ferramenta essencial para reconfigurar um mundo até então calcificado em torno de duas fortes presenças: a da Igreja e a da Monarquia. É essa figura que se desdobra pelos livros e documentos que deram base ao estudo, supervisionado por Roger Chartier, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e por Rogério Fernandes, da Universidade de Lisboa. O texto de Villalta pretende rediscutir a licenciosidade registrada em romances do século XVIII, em registros da censura portuguesa da mesma época, em denúncias feitas à Inquisição contra o comportamento imoral e heresias, assim como a racionalidade presente em textos escritos para combater ideias libertinas. Muitos dos documentos utilizados estão hoje guardados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Mas há também fartura de livros publicados e ainda hoje editados, como as obras do português Manuel Maria du Bocage (1765-1805) e do francês Marquês de Sade (17401814), para citar dois dos principais nomes relacionados ao gênero.


ilustrações  colagem de bel falleiros com reproduções do livro teresa filósofa, do marquês dárgens

Villalta é um estudioso da história do livro desde a década de 1980. Seu doutorado foi sobre censura, também sobre bibliotecas e as práticas de leitura em Portugal e no Brasil. Em suas investigações anteriores, ele tangenciou, por mais de uma vez, menções a autores denominados libertinos, inclusive em confissão atribuída a um integrante da Inconfidência Mineira, Cláudio Manuel da Costa. O básico do ideal libertino, defende Villalta, reside no uso da razão como crivo para compreender o mundo. Por conta do primado da razão, o libertino assume a função de crítico por excelência, principalmente em relação às “verdades” estabelecidas pelas autoridades religiosas, muito embora – e agora sim as práticas sexuais podem definir um tópico dentro de um pensamento – seus princípios acabem contestando o comportamento moral cristão também na prática. A razão, no entanto, raramente se presta à contestação de um único item. Foi na segunda metade do século XVIII, segundo Villalta, que o termo ganhou um novo atributo entre autores europeus e luso-brasileiros. Passaram a ser libertinos também aqueles que se opunham à Monarquia absoluta. “Se usamos o primado da razão, temos a liberdade de criticar não só a religião, mas também a ordem política”, resume Villalta.

literatura

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Isso não significa que todo libertino se dedicava a observar ambos os sistemas político e religioso. Há casos de autores que se debruçam sobre um ou outro aspecto. E, como exemplo de dissociação de temas, pode ser citada a obra de Jean Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens (1704-1771), nobre francês a quem é atribuída a autoria do romance Teresa filósofa. Marquês d’Argens, diz Villalta, questiona os dogmas religiosos ao exercitar sua liberdade criando na literatura situações consideradas imorais pelas autoridades. Descreve-as com riqueza singular, algo a provocar inveja em qualquer roteirista do gênero erótico

Pulsão por sexualidade tornava libertinos vulneráveis aos ataque de seus inimigos de hoje. “Mas, em nenhum momento, se opõe à Monarquia absoluta”, aponta o pesquisador. Da mesma forma, havia autores da época retratada que se opunham ao sistema político e que, no entanto, continuavam fazendo o sinal da cruz. O comportamento libidinoso deriva, em parte, desse exercício de liberdade apregoado pelo primado da razão. “Uma vez que o libertino pensa, age e se comporta de maneira livre, muitos deles, frequentemente, não obedecem às regras morais instituídas pela religião. Aos olhos de autoridades, esse sujeito pode se comportar de uma maneira imoral. E esse traço da imoralidade foi usado muitas vezes para conspurcar a imagem dos libertinos”, conta Villalta. Para o pesquisador, as pulsões sexuais tornam os libertinos vulneráveis ao ataque de seus opositores. “São sujeitos que enfatizam o privilégio da razão e, ao mesmo tempo, cedem lugares importantes para os impulsos, as paixões”, resume, relacionando essas últimas qualidades às práticas sexuais. paixâo

Para exemplificar os desdobramentos desse conflito, Villalta cita Os Maias, de Eça de Queirós (1845-1900), muito embora o romance esteja situado em um 84    junho DE 2012

período posterior ao estudado. Afonso da Maia quer educar o filho e o neto de tal sorte que os dois submetam suas paixões aos ditames da razão. “E ele falha com os dois”, avalia Villalta. “Essa relação é bem focalizada pela literatura, pela filosofia. O Marquês d’Argens diz que o homem não é livre porque ele está sujeito à paixão.” Marquês de Sade, por sua vez, defende, como liberdade, a entrega total às paixões – palavra que, aqui, ainda não tem a significação romântica, do amor idealizado. A filosofia na alcova é um de seus romances mais conhecidos, protagonizado por três libertinos que educam uma jovem moça, induzindo-a a práticas sexuais que hoje, no século XXI, poderiam motivar constrangimentos em muitas pessoas menos liberais. Obviamente, o que é retratado na literatura não pode ser lido como relato do que acontecia na vida real, embora haja sim um paralelo. Marquês d’Argens, por exemplo, achava que tudo era permitido no sexo, desde que não houvesse prejuízo ao outro, conta Villalta. “Se o ato envolvia um homem e uma mulher, o homem não deveria engravidá-la, porque a gravidez gerava desonra; e se ela fosse virgem, o homem poderia fazer tudo, menos a penetração vaginal.”

Pecado? Bem, pela moral cristã, preliminares não eram permitidas... Já no Brasil Colônia, a moral dos fiéis estabelecia que a “fornicaç ão simples” – termo usado por teólogos e também pela Inquisição – não era pecado. Mas daí surge o problema de definir o que pode ser considerado fornicação simples. Por exclusão: “Simples é a fornicação que não é complexa”, ironiza Villalta. Ou, na linguagem da época, é a fornicação “que não é qualificada”. Em outras palavras, da relação genital entre homem e mulher solteiros, não sendo a mulher virgem. Se for anal, a relação se torna “qualificada”, o que se dá também se um dos parceiros for casado, clérigo ou se a mulher for virgem. Homossexualismo ganha um capítulo à parte. Não é um assunto tão presente e, quando surge, muitas vezes, ainda vem acompanhado de alguma carga moralista. Em Teresa filósofa, as relações homossexuais, por exemplo, aparecem de maneira “um pouco negativas”, diz Villalta. Em muitos romances há sexo entre homens, e o lugar reservado a essas práticas são os conventos e os mosteiros. “Nos romances libertinos, esses não são lugares de virtude, mas são escolas do vício, do pecado. E são ali que as relações homossexuais têm muito espaço”, pondera o pesquisador.


Em Saturnino, porteiro dos cartuxos – versão brasileira, publicada em 1842, de um romance supostamente escrito por Jean-Charles Gervaise de Latouche e que teve sua primeira edição na França, no final de 1740 ou no princípio de 1741 – o protagonista, em uma de suas peripécias eróticas, numa piscina do convento, identifica uma moça pela qual sente desejo. Ela lhe é concedida depois que ele aceita sujeitar-se a uma relação homossexual passiva com o padre Casemiro. Editores

Conta a professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Márcia Abreu, Saturnino, porteiro dos cartuxos faz um frontal ataque ao comportamento dos eclesiásticos, por meio de cenas, instruções e descrições de natureza sexual.

O livro “mobilizou, de um lado, livreiros, editores e leitores capazes das mais extravagantes peripécias para ter acesso a ele e, de outro, censores, inquisidores e agentes policiais empenhados em impedir a circulação da obra”. Ainda segundo a pesquisadora, que também estuda romances libertinos, muita gente foi perseguida e presa em Paris assim que o livro começou a circular. O escritor e jornalista Pascal Pia (19031979) reconstituiu, a partir dos registros que restaram na Bastilha, os primeiros esforços da polícia para tentar identificar e deter o autor, os ilustradores, editores, vendedores e até leitores da obra. A documentação reunida por Villalta dá base à hipótese de que o retrato literário de práticas homossexuais dentro da Igreja Católica não era fruto exclusivo da imaginação. O autor encontrou, em um

mosteiro em Portugal, uma denúncia datada do fim do século XVIII em que um jovem frade faz relato sobre outros dois companheiros que o teriam assediado sexualmente. “Ele os denunciou e ninguém tomou providência. Por isso, o fradezinho começou a sofrer tentativas de assassinato; e isso não é ficção”, atesta Villalta. “Foram mais ou menos três tentativas.” Outros documentos da época, diz o pesquisador, assinalam a estreita relação entre os clérigos e as práticas homoeróticas, adjetivadas então como “vícios de clérigos”. Detalhe significativo, sublinha o autor: há registros de que os dois frades, antes ou depois de suas relações homoeróticas, em uma ocasião ao menos, leram um poema de Bocage chamado Epístola a Marília. O texto apresenta a religião e a imagem do inferno como elementos de opressão política e moral. Documentação impressa e manuscrita, utilizada nos órgãos de censura, são grandes aliadas do pesquisador. Ele conta que, para sua sorte, censores liam os romances publicados à época, discutiam e davam pareceres sobre o que poderia ou não ser publicado. “Essas análises viravam editais que proibiam os livros libertinos. Alguns eram proibidos em segredo, pois a própria censura reconhecia que editais poderiam estimular leitores a procurar por essas obras”, conta Villalta. As tentativas de combate aos ideais libertinos, muitas vezes, faziam efeito contrário, portanto. Perseguido na época do Marquês de Pombal (1699-1782) por se opor à subordinação da Igreja aos interesses da coroa, o padre Teodoro de Almeida, nos 10 volumes de sua Recreação filosófica, obra publicada entre 1751 e 1800, pondera sobre os possíveis efeitos da publicação de críticas aos livros libertinos. “Poderia ser um tiro pela culatra”, resume Villalta. “Quando você critica, você divulga. Na medida em que se publicam em português as obras que discutem as ideias libertinas, publicadas em livros editados no exterior e em outros idiomas, as tornamos acessíveis para um público que não conhece línguas estrangeiras.” Verdade seja dita: a Igreja, neste caso, acabou dando uma força. Pela riqueza de documentos disponíveis e pelos volumes e exemplares guardados nas gavetas da própria Inquisição, a história dos libertinos pode enfim agora ser recontada. n pESQUISA FAPESP 196    85


memória

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Um zoo na Amazônia Primeiro zoológico do país foi aberto há 117 anos em Belém, no Museu Goeldi Neldson Marcolin

Lago das vitórias-régias e, eventualmente, dos peixes-boi: formato igual ao do mar Negro, na Rússia 86 | junho DE 2012

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nde poderia existir um museu com parque de plantas e animais silvestres em cativeiro que recebesse anualmente quase o mesmo número de visitantes que o de habitantes da cidade onde está localizado? No final do século XIX e começo do XX, Belém foi palco dessa experiência. O Parque Zoobotânico do Museu Paraense recebeu 48 mil pessoas em 1896, quando a população do município era cerca de 50 mil. A capital do Pará se encantou com o primeiro zoológico brasileiro, criado anexo ao museu em 1895 pelo zoólogo suíço Emílio Goeldi. Nele não havia elefantes, girafas ou rinocerontes como nos zoos das cidades europeias. Os frequentadores se divertiam ao ver animais típicos da Amazônia, como antas, jacarés, peixes-boi, onças e garças, exatamente como havia sido planejado por Goeldi. Construir um zoológico já estava nos planos do governador paraense Lauro Sodré quando contratou Goeldi em 1894 para dirigir a instituição. O hoje chamado Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) fora fundado em 1866 e precisava ser reorganizado. Na época, o zoólogo morava no


fotos  Arquivo Guilherme de La Penha / MPEG / MCTI

Rio com a família, havia trabalhado alguns anos no Museu Nacional e tinha bom trânsito com cientistas do exterior. “Em Belém, ele percebeu que seria inútil competir com os museus cosmopolitas e decidiu fazer uma instituição regionalizada, especializada na Amazônia, também como uma forma de garantir espaço para sua instituição no movimento científico internacional”, conta Nelson Sanjad, pesquisador de história da ciência do Museu Goeldi e editor do Boletim do MPEG, Ciências Humanas ( janeiro-abril de 2012), em que há um artigo sobre o Parque Zoobotânico. Com apoio do governo estadual, o cientista suíço concentrou-se em uma série de obras que duraram oito anos, necessárias para transformar o museu em um centro de pesquisas sobre fauna e flora da região – o parque foi apenas uma delas. Goeldi desenhou os recintos dos animais com a ajuda dos dois responsáveis pela gestão do zoo e do horto. Num primeiro

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O parque recebia grande número de pessoas, de todas as classes sociais, no começo do século XX (foto s/d)

Em 1902 foi criado um dia especial de visitação para famílias e pessoas bem trajadas: segregação

momento, o zoólogo alemão Hermann Meerwarth; depois o zoólogo suíço Gottfried Hagmann. Os estudos e o acervo concentrados na Amazônia não impediram a europeização do espaço do museu. “Os animais e plantas eram daqui. Mas o traçado, os elementos arquitetônicos, viveiros e recantos remetiam às paisagens e aos monumentos europeus”, conta Sanjad. “Embora pareça paradoxal, foi uma atitude coerente com a mentalidade da elite da época.” As residências e laboratórios do museu, por exemplo, tinham o feitio de chalés e o lago para as aves aquáticas a mesma forma do lago Maggiore, na Itália, com a cobertura de arame feita em Paris. O lago para as vitórias-régias foi construído com o formato do mar Negro, na Rússia meridional. Um zoológico – único no Brasil – e horto gratuitos, construídos com zelo, viraram o passeio principal de um público urbano e de imigrantes que já tinham pouco contato com os animais. Os filhotes de onça, as aves formando ninhos, um peixe pulmonado nadando (espécie difícil de

manter em cativeiro) e até o florescimento da vitória-régia, cultivada em ambiente público na Amazônia pela primeira vez, encantavam o público. Tal sucesso trouxe pelo menos um problema. A elite econômica da cidade começou a se queixar dos maus modos da massa que frequentava o museu aos domingos e feriados. Pressionado, Goeldi reagiu criando, em 1902, o “dia de famílias”. O parque passou a ser aberto um dia a mais na semana, às terças-feiras, apenas para pessoas acompanhadas das respectivas famílias e convenientemente vestidas. “Na prática houve uma segregação do público de acordo com a classe social”, diz Sanjad. O parque manteve sua primazia até a década de 1940, quando começaram a ser criados outros zoos pelo país. Belém tem hoje 2 milhões de habitantes e o Zoobotânico recebe de 200 mil a 250 mil pessoas por ano. Não é o mesmo sucesso de 117 anos atrás, mas se mantém dentro dos 10% da população da cidade, que é o padrão internacional. PESQUISA FAPESP 196 | 87


resenhas

Uma leitora de Nietzsche no Brasil Fernando Costa Mattos

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certamente oportuna a publique ela buscou o diálogo com pescação de um Festschrift paquisadores estrangeiros devido à ra Scarlett Marton. Uma das “ausência de trabalhos de mesma principais estudiosas de Nietzsche natureza sobre Nietzsche no Brano Brasil, Marton teve papel decisil” (p. 11); e assim por diante. sivo no estabelecimento e consoliAfirmando ser “contra as igrejas dação de uma pesquisa acadêmica interpretativas” (p. 13), Silva Jusistemática sobre a obra do filósofo nior prossegue, no entanto, afiralemão entre nós. E isto não apenas mando que, em geral, os trabacom seus escritos, a começar pela lhos sobre Nietzsche realizados decisiva tese Nietzsche: das forças no Brasil “não articulam todos os cósmicas aos valores humanos (Ed. aspectos da obra, esgotando-se UFMG, 2010), mas também com em si mesmos e, em geral, muitos seu trabalho de formação e divul- Filosofia e cultura no trilho de comentários já exisgação científica – aspectos devida- Ivo da Silva Junior (org.) tentes na Nietzsche-Forschung Barcarola, UFMG mente sublinhados pelo organiza- Editora internacional” (p. 11). O leitor se 604 páginas dor do volume, Ivo da Silva Junior, R$ 46,00 perguntará então se, a exemplo de em seu texto de apresentação. ninguém menos que Gérard LeO livro está dividido em três blocos de textos. brun (explicitamente citado para ilustrar esse No primeiro, há artigos de renomados autores estado de coisas!), seria também esse o caso de estrangeiros sobre Nietzsche (Blondel, Cam- outros autores com importantes publicações pioni, Cragnolini, Marques, Meléndez, Santiago sobre Nietzsche no Brasil, como Oswaldo GiaGuervós, Stegmaier e Wotling). No segundo, en- coia Junior, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, contramos textos de quatro filósofos brasileiros Roberto Machado ou o próprio Gilvan Fogel, que marcaram a formação de Scarlett Marton: que figura entre os colaboradores do Festschrift. Paulo Arantes (que, vale notar, contribui com um Quer parecer-nos que a acusação seria injusta ensaio antigo, mas inédito, de mais de 100 pági- nos quatro casos (para não falar de outros), e nas), Marilena Chauí, Oswaldo Porchat e Ernildo que a importância e a qualidade do trabalho de Stein. O terceiro, por fim, traz as contribuições Scarlett Marton poderiam ser enaltecidas sem de outros intelectuais brasileiros, da geração de que se precisasse reduzir o mérito dos demais Marton, com quem ela manteve frutífero diálo- trabalhos, cuja variedade, diga-se de passagem, go ao longo de sua trajetória (Jorge Coli, Gilvan parece perfeitamente condizente com o espírito Fogel, Renato Janine Ribeiro, Franklin Leopoldo perspectivista da filosofia nietzschiana. e Silva, Olgária Matos, Renato Mezan, Ricardo De certo modo, aliás, é justamente isso o que FiMusse e Ismail Xavier). losofia e cultura acaba por fazer, à revelia talvez de Face, porém, a essa diversidade de temas e pers- sua apresentação: traz-nos não apenas diferentes pectivas, chama a atenção que o organizador pre- leituras e estilos de ler Nietzsche (consideremcise insistir tanto, em sua “apresentação”, na supe- -se, por exemplo, as diferenças entre Campioni e rioridade da obra de Scarlett Marton em relação Marques), mas também diferentes modos de fazer a seus pares nietzschianos brasileiros, como se filosofia no Brasil (considere-se a distância, quanisto fosse necessário para legitimá-la. Na primeira to a isso, entre Arantes e Porchat) e ainda uma parte de seu breve texto, Silva Junior faz uma sé- incrível diversidade temática (no último bloco rie de afirmações salientando repetidamente tal de textos) cujo fio de ligação seria, como aponta superioridade: diz que Marton “aguardou, e ainda o organizador, a relação entre filosofia e cultura. aguarda, o surgimento de outros [trabalhos] de linhagem brasileira para poder dialogar” (p. 10); Costa Mattos é professor de filosofia na Universidade assevera que o comentário de Marton “encontra Fernando Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Centro Brasileiro de similares apenas fora do Brasil” (p. 11); afirma Análise e Planejamento (Cebrap).

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Entre Deus e os homens

Renovação da vida em foco

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envergadura excepcional desse homem de ação, de imaginação e de expressão exige constantes releituras. Novos perfis aparecem por trás da fisionomia que tínhamos a presunção de conhecer”, escreve Alfredo Bosi no artigo “Antônio Vieira, profeta e missionário”, parte da coletânea de 17 artigos que compõem o livro Estudos sobre Vieira. É a melhor resposta quando se sabe da publicação de mais um livro sobre o autor dos Sermões e realmente cumpre a promessa ao colocar figuras como Cleonice Berardinelli, Thomas Cohen e Isabel Almeida, entre outros, para analisar aspectos polêmicos ou pouco estudados. O livro é uma chance de conhecer os trabalhos apresentados pelos autores no Encontro Internacional pelo Quarto Centenário de Nascimento do Padre Antônio Vieira, evento realizado em 2008 em São Paulo. A apresentação, feita por João Adolfo Hansen, um dos organizadores da coletânea, é um primor à parte, prova recorrente de sua capacidade de inserir Vieira em meio ao mundo “engenhoso” e “agudo” barroco dos séculos XVI e XVII, uma das maneiras mais eficientes de compreender não apenas a concepção retórica do padre, mas, acima de tudo, a sua visão de história, curiosa mistura fruto de um homem que adorava reunir a política terrena da corte lusitana com elevadas concepções místicas de um Quinto Império e da Segunda Vinda de Cristo. Daí, a maior presença de artigos que discutem a atuação de Vieira na escravidão, as missões jesuíticas, a aproximação das minorias raciais e étnicas pela Companhia de Jesus e o amálgama que fazia entre Destino, Profecia e História. Em seus 90 anos, o pregador defendeu duas grandes causas: a legitimação do reinado de dom João IV e a defesa dos cristãos-novos, em parte para contar com o suporte financeiro dos judeus. Na escravidão, Vieira condenava o cativeiro dos índios (pelos quais não nutria nenhuma simpatia) e defendia o dos negros que, escravos, se aproximariam da luz cristã. Uma boa mostra dos muitos aspectos de Vieira, terreno e divino. Carlos Haag

Estudos sobre Vieira João Adolfo Hansen, Hélder Garmes, Adma Muhana (orgs.) Ateliê Editorial 352 páginas R$ 43,00

Biodiversidade em questão Henrique Lins de Barros Editoras Claro Enigma e Fiocruz 96 páginas R$ 24,00

os aquários que mantém junto à janela de sua sala de trabalho, Henrique Lins de Barros observa a sucessão da vida em amostras de água de lagoas costeiras do Rio de Janeiro. “Ali vemos como a vida se adapta a condições extremas e como as populações de microrganismos vão se alterando”, conta o biofísico, que de vez em quando vê surgir minúsculos camarões visíveis a olho nu. Esses ecossistemas em miniatura são, para ele, um exemplo cotidiano do mote que percorre Biodiversidade em questão: a vida não se dá por vencida. Mesmo diante de erupções vulcânicas, mudanças drásticas no clima e altos níveis de poluição como detecta nos corpos d’água que estuda, ela renasce e se diversifica. E é exatamente essa vida, que surgiu há 4 bilhões de anos e se tornou cada vez mais complexa, que garante uma certa estabilidade climática num planeta com a água líquida e o oxigênio necessários à diversificação e perpetuação da própria vida. Estabilidade que foi abalada algumas vezes nesses últimos bilhões de anos, sempre causando ondas dramáticas de extinção seguidas por explosões de diversidade. O que caracteriza a grande extinção da era presente, porém, é ser a primeira causada por um organismo: o ser humano. O autor, pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, contribui com seu mais recente livro, de texto saboroso e envolvente, para que o espanto diante da biodiversidade – que levou europeus a destruírem o que podiam durante as grandes descobertas, na tentativa de domar o desconhecido – agora ajude a salvá-la. Neste momento de Rio+20, repassar a história e entender a biologia pode contribuir para direcionar estratégias econômicas. Que não visem o lucro imediato, mas a permanência dos recursos naturais de que o próprio Homo sapiens depende. Biodiversidade em questão é uma publicação das editoras Fiocruz, da Fundação Oswaldo Cruz, e Claro Enigma, o selo de livros paradidáticos da Companhia das Letras. Maria Guimarães PESQUISA FAPESP 196 | 89


Arte

Uma narrativa que flui como um rio Jean-Claude Bernardet e Cao Hamburger destrincham o que torna Xingu inovador no cinema brasileiro Maria Guimarães

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Xingu é terra de rios. Eles são as estradas que cortam a imensidão amazônica. No filme de Cao Hamburger, o rio é a distância que os irmãos Villas-Bôas precisam atravessar para estabelecer o primeiro contato amistoso com uma tribo indígena. Não é à toa que a água corre pelas letras nos créditos de Xingu, mas para o crítico Jean-Claude Bernardet a fluidez do filme vai muito além dos cursos d’água. Segundo ele, ela vem de uma harmonia entre os vários níveis da confecção do filme: roteiro, decupagem, filmagem e montagem. “O movimento constante da câmera dá uma leveza à narrativa que raramente se vê no cinema brasileiro”, comenta, incluindo nessa percepção o contraste com trabalhos anteriores de Hamburger, como O ano em que meus pais saíram de férias. “Xingu traz uma contribuição que merece ser tema de reflexão entre os cineastas.” A temática do filme é forte, descrevendo a busca pelo governo brasileiro por ocupar o oeste e o norte do país. Uma terra remota que, logo fica claro, já estava muito bem ocupada. Na definição de Chris Riera, que colaborou com a equipe de roteiristas, Xingu mostra a invasão da Amazônia pela mancha branca. Cabe aos irmãos Villas-Bôas assegurar que essa invasão seja feita da forma mais pacífica possível. Bernardet lamenta que a crítica feita sobre o filme tem se limitado a essa história. Para ele não basta: “Não há significado sem significante”. É justamente a construção desse significante que interessa a esse pesquisador da linguagem cinematográfica e que o levou a procurar Cao Hamburger para uma conversa. “Eu queria uma câmera que pudesse chegar mais perto dos atores e que fosse mais estável”, explica o diretor. Por isso escolheu um equipamento diferente da câmera apoiada no ombro que 90 | junho DE 2012

usou em outros trabalhos, que gera certo sacolejo na imagem e dá um toque mais de documentário. Desta vez ele optou por uma steadicam, que fica presa ao operador por uma estrutura como um colete com um sistema estabilizador para a câmera. É isso que dá a impressão de que a câmera flutua pela cena, observando os acontecimentos como se a ação não estivesse se desenrolando justamente para ela. Um olhar muito diferente, talvez até consequência, em parte, de trabalhar num ambiente tão diferente do costumeiro. “Nunca tinha filmado sem porta, janela, cadeira, carro, copo...”, conta Hamburger, que em busca de entender a experiência da falta desses pontos de referência urbanos passou férias em lugares ermos e viu todos os filmes com cenas externas que conseguiu encontrar. Também contribui para a sensação de fluidez a forma como o diretor constrói as cenas. A partir do roteiro, e da percepção do filme que só existe impregnado em seu pensamento, ele faz ensaios logo antes da filmagem, em que decide junto com a equipe como será o posicionamento de cada um. Essa dinâmica cria um trabalho coletivo, em que atores, operador de câmera e todos os envolvidos participam da criação e contribuem com suas percepções, ideias e emoções. Mais importante, as cenas são atuadas por inteiro – mesmo as partes que não são filmadas. Um exemplo importante dessa filmagem que não se baseia em planos está logo no começo do filme, em que Cláudio e Leonardo Villas-Bôas se alistam para participar da expedição de desbravamento das zonas remotas do Brasil. É uma longa fila, em que cada um anuncia seu nome, nível de instrução e qualificação a um fiscal que anota, sentado atrás de uma mesa. “O ator que faz o fiscal só aparece numa tomada muito curta, quando encara Cláudio, mas ele fez a cena completa”, conta o diretor.


fotos beatriz lefèvre

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A cena continua a acontecer, como indicam os nomes enunciados, enquanto os irmãos se afastam festejando a conquista, acompanhados pela câmera – um recurso que interliga os momentos e os espaços da ação, conduzindo o espectador como se navegasse o Xingu numa canoa. “Mesmo o que não é filmado faz parte da cena, e muitas vezes algo fora do campo de filmagem fica mais legal do que o que está dentro”, reflete Hamburger, surpreso com a observação que ninguém tinha feito antes de Bernardet sobre as consequências para a narrativa dessa forma de filmar. Chama a atenção do crítico de cinema o fato de a fluência se manter mesmo com grandes elipses, em que nem tudo é explicado. Muito diferente de uma narrativa mais conservadora, em que para explicar que um personagem foi de um lugar a outro é preciso mostrá-lo chamando um táxi, entrando nele, fechando a porta e chegando ao destino. “Gosto de deixar espaço para o espectador pensar, sentir e criar suas próprias conclusões ou passagens”, diz Hamburger. Além disso, o filme representava um desafio especial: precisava percorrer uma extensão muito ampla de tempo e de espaço, e por isso a narrativa necessariamente precisaria dar saltos. “Optei por deixar pequenas lacu-

1 Os irmãos Villas-Bôas fazem o primeiro contato com os índios 2 Cláudio e Leonardo se alistam para a expedição

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nas em vários momentos, para que o espectador entrasse no ritmo de elipses que possibilitaria os grandes saltos”, explica. Para Bernardet a construção é tão benfeita que essas elipses não geram um desinteresse ou uma desorientação por parte de quem vê o filme. Elas não são lacunas. “Essa narrativa por alusão a cenas é uma contribuição ao cinema brasileiro”, afirma. Uma sutil narração em off e a trilha sonora que acompanha a narrativa e reforça as emoções são outros elementos, pensados e adicionados ao retomar o roteiro durante a montagem, que mantêm a fluência e dão informações ao espectador de maneira econômica e leve. Apesar de tudo isso, Xingu não foi um grande sucesso de bilheteria. Bernardet

se pergunta se justamente a sutileza e a elegância da narrativa não satisfazem uma parcela do público. O diretor admite que talvez um filme de grande público precisasse ser mais explícito. Mas ele acha, no entanto, que muitos outros empecilhos no caminho entre o espectador e o cinema tiveram um papel mais decisivo. “O brasileiro realmente detesta índio”, comenta. Para tentar desfazer essa barreira, ele não mostra os índios como vítimas e não se detém em lamúrias, mesmo nos momentos em que o encontro com os brancos é destrutivo. Para testar a influência da linguagem narrativa no sucesso de público, seria preciso fazer um filme completamente diferente. E aí seria outro filme. n PESQUISA FAPESP 196 | 91


conto

Controle remoto Ronaldo Brito Roque

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uando o controle remoto se popularizou, no final dos anos setenta, Macaulay não se interessou pelo produto. Achava que levantar para mudar de canal era no mínimo um bom exercício, e não valia a pena pagar o dobro numa televisão, só para ter o prazer de comandá-la a distância. Mas, com o tempo, o preço caiu bastante, e o número de canais só aumentou. Mac, como o chamava sua mulher, acabou cedendo, e aderiu à moda sem maiores dificuldades. Desde então, seu entusiasmo pela tecnologia não parou de crescer. Quando o microcomputador surgiu, nos anos oitenta, ele foi um dos primeiros compradores. Também foi pioneiro quando os telefones celulares começaram a tocar nos restaurantes e cinemas, no final dos noventa. Em 2004 fez um curso de webdesign e, quando se aposentou, em 2009, trabalhava criando aplicativos para smartphones. Na velhice, havia se tornado um entusiasta de novas tecnologias, e assinava revistas especializadas, que tratavam desde livros digitais até viagens intergalácticas. Foi por meio delas que descobriu o que era criogenia e, para desespero de Zelda, nunca mais conseguiu pensar em outra coisa. Com toda sua empolgação, entretanto, não convenceu sua mulher. Depois de inúmeras discussões ficou decidido que os dois não falariam mais no assunto, para evitar aborrecimentos. Afeita a seitas esotéricas e ideias orientais, que Macaulay via como mera superstição, Zelda defendia decididamente seu direito a morrer em paz. Argumentava que ou haveria vida após a morte – e essa seria um pouco melhor – ou haveria o descanso eterno, sem nenhum espaço para saudade. As duas opções seriam melhores que acordar num mundo assombrado por androides e infestado de aparelhinhos irritantes. Macaulay respeitou o direito da mulher e Zelda também respeitou a decisão do marido, e guardou com cuidado o telefone da equipe de criogenização. Um dia Mac sentiu uma palpitação e lembrou à esposa: 92 | junho DE 2012

— Quando minha hora chegar, não vá esquecer de chamá-los, hem! Depois tomou seu comprimido para pressão, e ficou estranhamente taciturno. Sua mulher logo se preocupou: — O que foi, querido? Por que esse silêncio todo? Mac resmungou um pouco, depois desabafou: — Zelda, você vai casar de novo? — O quê?! — Quando eu for criogenizado, você vai arrumar outro marido? A mulher ficou até lisonjeada. — Ora, o que é isso, Mac! Eu tenho sessenta e quatro anos, você acha que eu ainda penso nessas coisas! — Sei lá, de repente você encontra um velho que nem você, que goste dessas bobagens orientais. — Ora, Mac, não seja bobo! No dia seguinte Macaulay estava vendo televisão, e de repente o controle remoto parou de funcionar. As pilhas se esgotaram, e ele teve que se levantar para mudar de canal. Mas seu coração, muito desgastado, não suportou o pequeno trajeto. A dor no peito foi até fraca, se comparada às outras que vieram após a queda. O maior transtorno, contudo, foi a perda da fala. Nos momentos finais, Zelda parecia bem mais consternada que ele havia esperado, e Macaulay temeu que ela tivesse perdido o telefone da equipe. Mas seu medo não duraria muito. Logo ele mergulharia numa calma profunda, sem sonoridade, sem luz, sem nada que pudesse deixar uma lembrança. Quando acordou, a primeira coisa que viu foi um teto branco. Depois foi notando que ele não era branco, seus olhos é que estavam se acostumando à iluminação. Percebeu que estava num hospital, e lamentou que tivesse apenas passado por mais um infarto. Uma voz de mulher o saudou: — Bom dia, senhor Smithson. Em breve uma de nossas enfermeiras falará com o senhor.


Júnior suci sem título, 2010

Ele ficou mais aliviado. Pelo menos era um hospital moderno, com dispositivos eletrônicos que sabiam que ele tinha acordado. A enfermeira era linda, e Macaulay quase não entendeu o que ela dizia, de tanto que ficou vidrado no movimento suave e ritmado dos seus lábios. Quando ela parou de falar, ele arriscou um comentário engraçadinho. — Ah, minha querida, se eu tivesse apenas uns dez anos a menos, não saía daqui sem o seu telefone. A resposta da garota acelerou seu batimento cardíaco, que ele podia acompanhar num pequeno monitor ao lado da cama. — Senhor, devo avisá-lo que sou uma androide. Neste panfleto o senhor encontrará informações sobre minha companhia. Caso tenha interesse, poderemos fabricar uma androide com noventa e nove por cento de semelhança com a senhora Smithson, inclusive no sotaque e nos hábitos mentais. Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou: — Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia, que poderá reconstruí-los, caso algum deles venha a se desfazer. Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou: — Quando ela morreu?

— O senhor se refere à senhora Smithson? — Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando? — Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 23 de outubro de 2239. Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram da sua boca. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um laptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão. Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo, no fim das contas, continuava o mesmo. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados smartglasses – substituíram a televisão, os jornais e quase tudo relacionado à informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho logo descobriu que precisaria voltar a trabalhar. Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualida-

de numa fábrica de petbots (eram robôs que acompanhavam as pessoas, filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era esquecer o passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz. A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador. Não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de solidão e vazio. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, no final de contas, ela podia até ter razão. Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida? Daí para a tentativa de suicídio foi apenas um passo. Se Macaulay ainda está vivo é porque ressuscitar uma pessoa agora é tão banal quanto acender um fósforo. Depois de muita terapia e alguns órgãos substituídos, ele acabou consentindo em tentar de novo. O psicanalista lhe explicou que ele tinha uma forte tendência a idealizar o passado como um estado paradisíaco, sem conflitos e contrariedades. Parece que Macaulay fazia agora com o passado o que, no passado, fizera com o futuro. Foi também durante a terapia que ele descobriu uma forma criativa de lidar com essa tendência. Começou a escrever romances de época, que logo cativaram a todos pela riqueza de detalhes históricos. No futuro, familiarizados com os comandos por movimento de íris, todos adoram ouvir uma boa história sobre controles remotos. O próprio exemplar de Macaulay valeria uma fortuna, se ele quisesse vendê-lo. Mas o velho garante que nunca se desfará do objeto. Depois de duas ressurreições, ele começou a acreditar que certas coisas têm, para além de sua função imediata, um imensurável valor sentimental. Ronaldo Brito Roque cursou as faculdades de arquitetura e letras, sem concluir nenhuma. Trabalha atualmente como tradutor e professor de inglês. Publicou, em 2011, seu primeiro livro de contos, Meias palavras (Editora Torre).

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