A arte na Pré-história do Brasil

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REVISTAS CIENTÍFICAS TIRAM AAMÉRICA tATINA DA SOMBRA


AIMAGEM DO MÊS

ELES ENÓS O Homo floresiensis tinha apenas l metro de altura e habitou a Ilha das Flores, na Indonésia, há cerca de 15 mil anos, época em que o Homo sapiens já havia colonizado todo o planeta. A descoberta do fóssil numa caverna acrescentou mais um ramo na árvore genealógica da humanidade. Na foto, a comparação do crânio do hominídeo anão, que tinha o cérebro do tamanho do de um chimpanzé, com o do homem moderno.

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Peierecnologiaii8 l'APESP

www.revistapesq uisa.fapesp .br

80

CAPA

Livros mostram a diversidade da arte rupestre nacional e resgatam a vida na Pré-história

12

ENTREVISTA

REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

26

PUBLICAÇÕES

32

BIOSSEGURANÇA

Senado autoriza pesquisas com células-tronco e devolve poderes à CTN Bio

33

BOLSAS

Programa vai apoiar estágios de longa duração no exterior para pós-doutores

34

INOVAÇÃO

Rede Sei ELO reúne 200 revistas ibero-americanas e consolida modelo de acesso livre a artigos Pesquisador, reitor, governador da Bahia, Roberto Santos fala de uma vida como observador engajado e ator da política nacional de C& T 4 · NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

30

DIVULGAÇÃO

Mais de 1.800 eventos em 252 cidades agitaram a I Semana Nacional de Ciência e Tecnologia

Pequenas empresas terão ajuda da Finep para consolidar seus negócios


/ REPORTAGENS

35

TECNOLOGIA

HOMENAGEM

O engajamento de Carolina Bori (1924-2004) em bandeiras da psicologia e da universidade

68

FARMACOLOGIA

HUMANIDADES

86

LITERATURA

CIÊNCIA

42

FÍSICA

Pariparoba mostra ação antioxidante e começa a ser usada em produtos que protegem a pele contra a ação do sol

72 Experimento redefine o conhecimento sobre a interação de núcleos atômicos

46

BIOQUÍMICA

Dois equipamentos põem o país na linha de frente do estudo da estrutura e da ação das proteínas

50

METALURGIA

Empresa transforma sucata em matéria-prima usada na produção de ligas de alumínio

76

90

COMUNICAÇÃO

Estudo propõe que o texto jornalístico é a principal narrativa contemporânea

AGRICULTURA

Embrapa desenvolve para a Região Nordeste amendoim de pele clara e resistente à seca

78

Livro discute as razões para se aventurar no inesgotável território dos romances brasileiros

SEÇÕES A IMAGEM DO MÊS .............. 3 CARTAS ....................... 6

QUÍMICA

GENÉTICA

CARTA DO EDITOR ............... 9 MEMÓRIA ................... . 10

Quase 40% dos brasileiros têm mutações que desestimulam o tabagismo

ESTRATÉGIAS ................. 20

52

SCIELO NOTÍCIAS .............. 62

LABORATÓRIO ................. 38

BIOLOGIA

LINHA DE PRODUÇÃO ........... 64

Estudo registra 2.122 espécies de peixes de água doce no país, mas a maioria tem baixo valor comercial

56

RESENHA ..................... 94 LIVROS ....................... 95 FICÇÃO ....................... 96

USP 70

Como a pesquisa da Faculdade de Educação da USP contribuiu para um ensino público e para todos

Faber-Castell, em parceria com a UFSCar, cria grafite de lápis mais resistente

Capa: Hélio de Almeida Foto da Capa: Reprodução do livro Imagens da Pré·história Tratamento de imagem: José Roberto Medda

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CARTAS cartas@fapesp.br

Revista Foi com prazer que folheei Pesquisa FAPESP, assim que a recebi. É uma ótima revista, bem escrita e bem paginada. É uma grande contribuição às ciências no Brasil e às vocações científicas. Parabéns. R OBERTO D UA IL!BI

DPZ São Paulo, SP

Dizer que a revista Pesquisa FAPESP é fantástica é pouco. Todos os artigos publicados são uma fonte de saber e cultura para todo tipo de leitor, do estudante ao cientista. Quero agradecer aos belos artigos com temas portugueses. Como português que sou, fiquei muito feliz com os textos "Uma missão portuguesa com certeza" (edição no 95), "A mulher que amamos odiar" (no 96), "Em se plantando, dinheiro dá" e "Uma prova de qualidade" (no 102). Com respeito a esse último, adorei saber que o Brasil é o único país latinoamericano a fazer parte do ranking das nações que mais fazem pesquisa relevante. A NTON IO ARMAN DO AMARO

São Paulo, SP

Gilberto De Nucci A entrevista "O radical dos fármacos" (edição no 103) apresenta aspectos contraditórios entre a atividade acadêmica e a indústria farmacêutica. Quando o entrevistado aborda os efeitos do placebo e dos remédios, afirma: "As porcentagens de pacientes que se beneficiam com os remédios é de 2% ou 3%': Quando discute os procedimentos clínicos do médico e a conversa com o paciente, diz: "Bobagem, medicamento é que realmente faz a diferença". Quando 6 • NOV EMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

aborda as cirurgias, considera que "eventualmente podem ser abandonadas, hoje se trata tumor de próstata com medicamentos': Enfim, essas contradições pessoais e com o próprio conhecimento farmacológico acumulado em algumas décadas confundem o leitor. É de conhecimento que, embora farmacologicamente inativo, o placebo possui poderosa ação terapêutica, chegando a

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

tico é hoje um dos maiores problemas de reinternações hospitalares. Portanto, o poder aquisitivo da população é sim problema também do médico. Outro ponto questionável da entrevista refere-se à questão dos royalties e da universidade, quando o professor afirma: ''A universidade ficou com zero%". É importante lembrar que a Universidade de São Paulo (USP) é financiada com dinheiro público e toda a estrutura física e pessoal que o professor utiliza para desenvolver seus serviços tem um alto custo. Portanto, sem entrar no mérito dessa sua dupla atividade, nada mais justo que a USP receba parte dos lucros gerados por ela. M OACYR LUIZ AI ZENSTEIN

lJ)

ICB/USP São Paulo, SP

NOVARTIS Trop1Net.org

produzir com freqüência melhora em até 30% dos pacientes tratados, todavia isto não significa que os medicamentos atualmente no mercado não produzam benefícios. É sabido que em razão das variáveis biológicas muitos pacientes não respondem ao tratamento farmacológico, e até que muitas vezes o mesmo paciente responde de forma diferente ao mesmo medicamento, mas afirmar que "para 90% da população os remédios não produzem efeito nenhum" é ignorar o estado atual da arte. Em outro momento da entrevista o professor De Nucci refere que "função do médico é fazer diagnóstico e prescrever remédio ... se o paciente pode ou não comprar o medicamento nunca foi problema médico': Nesse caso, o entrevistado esquece que a falta de adesão ao tratamento farmacoterapêu-

Os aspectos técnicos colocados pelo prof. Gilberto De Nucci (edição no 103 ) sobre a eficácia de medicamentos são muito interessantes e merecem reflexão, mas seu posicionamento ético é muito precário. Isso é, para mim, tão preocupante quanto a evidência de que apenas 10% das pessoas que fazem uso de remédios realmente se beneficiam com eles. }ANA INA B ULHOES MIRANDA

São Paulo, SP

Idiomas Li o artigo "O avesso de Narciso" (edição n° 103). Gostaria de dizer que a ilustração da página 37 deveria ter como título "Un dimanche apresmidi à l'ile de la Grande Jatte': Na revista o título da obra está escrito em inglês. O inglês está a cada momento tendo mais influência, sem que nada possa justificá-lo. Ainda lembro que no artigo sobre os detectores de partículas instalados no pé dos Andes, se


falava de "chairman" do projeto, em lugar de presidente, por exemplo. Cidadão francês, estou bastante envergonhado de saber que a Académie des Sciences do meu país aconselha aos autores escreverem em inglês, como foi relatado num número anterior de Pesquisa FAPESP. No entanto acho que a revista deveria incentivar o uso do português e dar um espaço adequado para os demais idiomas. YVES MANIETTE

Instituto de Química/Universidade Estadual Paulista Araraquara, SP

Falta psicologia A seriedade, qualidade e apresentação de Pesquisa FAPESP são indiscutíveis. No entanto venho notando a ausência de temas relacionados às pesquisas e modalidades de aplicação da área de psicologia. G ABRI EL Z AIA LESCOVAR

São Paulo, SP

Enchentes Excelente a reportagem sobre as enchentes (edição no 103), demonstrando que métodos e técnicas simples e de baixo custo podem amenizar os problemas das chuvas, evitando assim que a população de baixa renda fique ainda mais pobre.

química, gostaríamos de mencionar algumas atividades que, a nosso ver, merecem destaque. O Departamento de Engenharia Química da EPUSP sedia o Centro de Excelência em Automação de Processos da Petrobras, único centro de excelência no tema no Brasil e o único localizado em uma universidade. Tal condição é o resultado dos trabalhos de alto nível desenvolvidos pela equipe de pesquisa nos últimos dez anos, que resultaram em contribuições importantes para o setor da indústria de petróleo e petroquímica. A equipe, envolvida nas atividades de modelagem, simulação e otimização de processos, é uma das lideranças mundiais no tema. O Centro de Capacitação e Pesquisas em Meio Ambiente está sendo construído em Cubatão, a partir de um acordo de compensação ambiental entre Petrobras, Cetesb e Ministério Público. Esse centro de estudos multidisciplinares, que será doado à USP, teve sua concepção, projeto e implementação elaborados e coordenados por nosso grupo do Departamento de Engenharia Química. Há ainda o Centro de Engenharia de Sistemas Químicos e o fato de sermos . o laboratório principal no projeto Tidia-KyaTera na área de aplicações deWebLab. R O BERTO G UA RDANI, CLAU DIO

A. ÜLLER

DO N ASCIMENTO, REI NA LDO GJUDICJ

Professores titulares da Escola Politécnica da USP São Paulo, SP

SILVIA E LENA V ENTO RI NI

Rio Claro, SP

Engenharia química

Correção

Foi com satisfação que pudemos ler, na edição no 100 de Pesquisa FAPESP, a reportagem sobre a Escola Politécnica da USP (EP-USP), na série "USP 70 anos", com destaque para pesquisas desenvolvidas em algumas áreas (engenharia elétrica, engenharia civil, engenharia mecânica e materiais). No entanto, como a reportagem não incluiu a área de engenharia

Na reportagem "O corpo como ficção" (edição no 104), o endereço correto do si te Opus Corpus é http:/ I opuscorpus.incubadora.fapesp.br

Car tas para esta rev ista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (l l) 3838-41 81 ou para a ru a Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05 4 68-~0l. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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~

natura bem estar bem

Natura Ekos. Viva sua Natureza. Na linha Natura Ekos, tudo leva ao bem estar bem. A começar pelo uso de ativos da biodiversidade brasileira, que a Natura procura extrair de forma sustentável. Com benefícios que resgatam a experiência que índios, caboclos e sertanejos acumularam ao longo de séculos de convivência com as florestas. Feche os olhos, estimule os sentidos. Utilize os recursos naturais de forma que todos tenham acesso a eles. Hoje e sempre. www.natura.net


CARTA DO EDITOR

Pesquisa CARLOSVOGT PRESIDENTE

Visões do nosso passado

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI,VAHAN AGOPYAN, YOSHIAK1 NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO) JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. OE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA 1Z1QUEIP0ÜTICAC4T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-UNE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOIOOIA) EDITORES ESPECIAIS FABRlClO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS D1AGRAMAÇÃ0 JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA LIMA, 8RAZ, CAROL LEFÈVRE, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, JOSÉ CASTELLO, LAURABEATRIZ, LEDA BALBINO, MARCELO HONÔRIO (ON-LINE), MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, NELSON DE OLIVEIRA, RUTH HELENA BELLINGHINI, SYLVIA LE1TE.THIAGO ROMERO (ON-LINE), TIAGO CP DOS REIS MIRANDA E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: íapesp@tele(arget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MlDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIAD1S) PRÊ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO Á PESQUISA 00 ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A reportagem de capa desta edição /\ de Pesquisa FAPESP parece-me 1 \_ especialmente agradável, leve, fácil de ler. Faz parte do trabalho da equipe que a cada mês prepara esta revista, é claro, mostrar em textos jornalísticos claros, inteligíveis para especialistas e leigos, alguns dos melhores projetos de pesquisas científicas e tecnológicas desenvolvidas neste país. Muitas vezes, contudo, essa é uma missão árdua, dada a complexidade, a dureza mesmo, das explicações e dos textos científicos, não raro atravessados por fórmulas, equações e conceitos muito específicos e sofisticados. Não neste mês, decerto, em que, na seção de Humanidades, conseguimos juntar ciência com arte na bela reportagem do editor especial Marcos Pivetta sobre a arte rupestre nacional, a partir da página 80. Só recentemente, pouco mais de 20 anos para cá, começou-se a dar mais atenção às imagens pré-históricas pintadas em cavernas ou fora delas e gravadas em pedras no território brasileiro. Antes disso, a atenção estava quase sempre mais voltada para outras formas de vestígio arqueológico. Uma injustiça, como o demonstram dois livros lançados recentemente e que exploram com linguagem simples esse mundo gráfico construído por nossos antepassados e mostram a diversidade de técnicas, formas e temas que o integra na Amazônia e no Nordeste. Nesse mundo, pinturas e gravações na pedra, feitas há milhares de anos, espalhadas por todas as regiões do Brasil, representam pessoas interagindo entre si e com animais, em cenas de caça, dança e sexo. Em Política Científica e Tecnológica vale destacar uma reportagem que mostra efeitos, para muito além do esperado, de uma divulgação científica feita com alta competência e critério. A partir da página 26, a editora Claudia Izique relata como o sistema de publicação eletrônica de revistas científicas iberoamericanas de acesso aberto, a Rede SciELO, chegou à marca de 200 títulos no mês. No Brasil, são 131 revistas na base SciELO, que registra cerca de 1 milhão de acessos por mês. A rede começou a funcionar com publicações brasileiras, mas evoluiu para incorpor-

rar revistas de outros países ibero-americanos. Hoje, Brasil, Chile, Cuba e Espanha são cobertos pela rede, mas Argentina, Colômbia, México, Peru e Venezuela participarão dela em breve. Presentes nas melhores revistas científicas do país e do exterior, os estudos sobre análise de proteínas já mobilizam mais de 200 grupos de pesquisa nessa área, batizada de proteômica. Agora se quer identificar a estrutura, a função e os modos de interação dessas moléculas, codificadas pelos genes. Em outubro, começaram a funcionar dois novos equipamentos do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas, que permitem identificar a seqüência de aminoácidos {página 46). Isso coloca o país entre aqueles com tecnologia para analisar em detalhes a estrutura das proteínas. Grupos de qualquer parte do país, relatam o editor assistente de Ciência Ricardo Zorzetto e a repórter Ruth Bellinghini, poderão trabalhar com os dois espectrômetros de massa - financiados pela FAPESP num total de US$ 1,3 milhão -, desde que as propostas sejam aprovadas pelo laboratório. A perspectiva é que esses estudos ajudem a encontrar soluções na área de saúde e agricultura. Em Tecnologia, as plantas mais uma vez merecem destaque nas páginas de Pesquisa FAPESP (página 68). Um arbusto originário da Mata Atlântica, a pariparoba, relata a editora assistente Dinorah Ereno, mostrou ter atividade protetora contra os raios ultravioleta do tipo UVB, os mais lesivos para a pele. A descoberta, feita por equipe da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, já levou a um pedido de patente e interessou a uma empresa nacional, que venceu a licitação de concessão de licença para utilização do extrato da raiz no desenvolvimento de produtos de uso cosmético. Um exemplo de bom casamento entre universidade, empresa e pesquisadores. Por fim, não deixe de ler o conto do escritor Nelson de Oliveira (página 96), uma imaginativa história sobre o nascimento e morte de descobertas e conceitos científicos. Tudo discutido numa longa e demorada fila do correio. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PES0UISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 • 9


Asas de borboleta desenhadas pelo naturalista: estudo detalhado sobre mimetismo

Um sábio na selva Há um século e meio, Fritz Müller, um dos grandes naturalistas do mundo, chegava ao Brasil-paraficar NELDSON MARCOLIN

10 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 105

Delirante, já perto da morte, o naturalista Fritz Müller só pensava em bromélias. Em frases soltas, desfiava as espécies já nomeadas e outras por estudar. Ele não falava dos crustáceos que ajudaram a firmar a teoria da evolução e encantaram Charles Darwin, nem das borboletas que imitam umas às outras para se livrar de predadores ou das orquídeas, todos objetos de intensa observação. Aos 75 anos, Müller tinha delírios febris com bromélias, donas de uma beleza selvagem que o levara a cultivá-las às dezenas em seu grande jardim à beira-rio, em Blumenau. Na Europa só era possível ver essa planta da família Bromeliaceae em herbários por ser exclusiva do continente americano (das mais

Müller: à vontade na floresta


Água-viva e crustáceo em desenho meticuloso de Müller: contribuição à teoria darwinista

mmè

de 3 mil espécies, somente uma delas habita a África). O final da vida desse excepcional naturalista é narrado por Moacir Werneck de Castro na biografia O sábio e a floresta - A extraordinária aventura do alemão Fritz Müller no trópico brasileiro (editora Rocco, 1992, esgotado). Castro mostra que o cientista realizou seu desejo de juventude de conhecer e desbravar uma terra nova com todo o tipo de espécies animais e vegetais, boa parte delas ainda ignorada pelos especialistas. Johann Friedrich Theodor Müller, o nome completo de Fritz Müller, era natural da região central da atual Alemanha, Turíngia. Chegou em Santa Catarina em 1852 com a mulher, Karoline, a filha Johanna e um dos irmãos, August, também casado. A imaginação do jovem Müller sempre fora excitada

pelos relatos dos naturalistas e artistas expedicionários que ajudaram a mostrar o Brasil dos séculos 18 e 19 para o mundo, como Alexander von Humboldt (que Müller conheceu na Alemanha), Wilhelm Ludwig von Eschwege, Carl von Martius, Johann Spix, Georg Heinrich von LangsdorfF, Hermann Burmeister, Peter Wilhelm Lund, Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence, entre outros. E, claro, Charles Darwin, que detestou a escravidão então reinante

no país, mas maravilhou-se com as florestas brasileiras. Para alguém como Müller, formado em farmácia e medicina, com enorme vocação para o naturalismo, ir para o novo mundo era só uma questão de tempo. Uma vez instalado na colônia criada no Brasil pelo velho amigo Hermann Blumenau, o cientista alemão trabalhou duro com a mulher e o irmão para construir sua casa e plantar a própria comida. Ao mesmo tempo, tinha de educar pessoalmente as filhas (teve nove mulheres e um menino, que viveu

poucas horas), precaver-se contra os ataques de onças e índios e, ainda assim, observar bichos e plantas, coletar espécies para estudo e escrever relatórios, artigos e cartas para periódicos no exterior e no Brasil. "Ele teve 248 trabalhos publicados, entre memórias e monografias, em inúmeros periódicos científicos do mundo", diz Paulo Labiak, professor da Universidade Federal do Paraná e presidente da Mülleriana: Sociedade Fritz Müller de Ciências Naturais, de Curitiba. "Mesmo para os padrões de hoje, mais de um século depois, com todos os recursos gráficos e eletrônicos disponíveis, essa produção é impressionante." O naturalista alemão publicou apenas um livro, Fatos e argumentos a favor de Darwin, primeiro na Alemanha (para onde nunca voltou), em seguida na Inglaterra - só apareceu no Brasil depois de anos. A idéia era dar mais elementos que fortalecessem a teoria sobre evolução. O alemão usou os crustáceos como ponto de partida e comparou os tipos superiores com os inferiores - mostrou que ambos tinham passado pela mesma forma embrionária. O livro levou Müller a uma prolífica correspondência científica com o inglês e outros cientistas europeus. Impressionado com a qualidade do trabalho do alemão, Darwin passou a chamá-lo de "príncipe dos observadores".

PESOUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 11


ENTREVISTA: ROBERTO SANTOS

Observações de um

espectador eggaja MARILUCE MOURA

O professor Roberto Figueira Santos, 78 anos, foi nas décadas de 1970 e 1980 um dos mais destacados políticos baianos, mesmo caminhando, de certa maneira, na contramão da corrente hegemônica do poder local, liderada pelo hoje senador Antônio Carlos Magalhães. Governador do estado de 1975 a 1979, ele inclui em sua biografia política stricto sensu também um mandato de deputado federal (1996/1999), além dos cargos de presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (1985/1986) e de ministro da Saúde (1986/1987), ambos exercidos durante o governo José Sarney, o primeiro do Brasil pós-ditadura militar. Tomado o termo política em sentido lato, essa biografia abarca numerosos outros cargos, a começar pelo de reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de 1967 a 1971. E inclina-se, sem sombra de dúvida, para os campos da educação superior e da ciência e tecnologia. Aliás, no momento ele é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, com mandato até o próximo ano. Pesquisador e docente da área médica em sua origem profissional, Roberto Santos é, em outras palavras, quando não ator nesta cena, pelo menos um observador privüegiado da política científica e tecnológica do país desde os longínquos anos 1950. E seu olhar para o país, crítico, animado por vividas memórias, parte de uma área nem central nem a mais periférica na produção contemporânea de conhecimento científico nacional - a Bahia ocupa o nono lugar no ranking da produção brasileira por estado, empatada com o Ceará, segundo dados de 2004 do Institute for Scientific Information (ISI)/Web of Science, baseados na publicação de artigos científicos em periódicos indexados no período de 1998 a 2002. Filho do professor Edgard Rego dos Santos, o líder da organização da UFBA em 1946 e o grande responsável pela inclusão de unidades autônomas e prestigiadas de dança, de teatro e de música na estrutura da universidade, casado há 41 anos com Maria Amélia, pai de seis filhos e avô de seis 12 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105


_«eiw^S^SffW PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 13


netos, Roberto Santos falou longamente à Pesquisa FAPESP em agosto passado. Dessa agradável conversa em sua bela casa na Quinta do Candeal, em Salvador, seguem abaixo os principais trechos. ■ Eu gostaria de começar nossa conversa pelo começo de sua vida profissional, ou seja, por sua atividade de pesquisador e professor da área médica. — Eu realmente tive uma vida com atividades muito variadas, algumas delas até imprevistas, mas comecei com dedicação total ao ensino e à pesquisa em medicina. Fiz meu curso de médico aqui na Universidade Federal da Bahia, e daí fui para o exterior. Levei quase três anos lá e quando voltei passei a trabalhar no Hospital das Clínicas da universidade, cujo nome oficial é Hospital Universitário Professor Edgard Santos, que estava começando com condições de trabalho realmente excepcionais, e fiquei totalmente dedicado às atividades acadêmicas. Tanto que quando uns 17 anos depois fui encaminhado para uma atividade que obrigava à militância política, foi uma surpresa geral, porque eu não dava sinais de que tivesse essa inclinação. ■ Seu período no exterior, logo após se formar, inclui um tempo na Universidade de Cornell. — Eu estive em três universidades de tendências diferentes, em três cidades muito diferentes. Viajei recém-formado - me formei em dezembro de 1949 e fui para o exterior em julho de 1950 -, numa época em que o Brasil tinha se afastado muito dos países mais avançados por causa da guerra, e estávamos então com um tipo de formação bastante fora do tempo. A guerra acabara cinco anos antes, os Estados Unidos estavam então muito voltados para o Plano Marshal, de apoio à reconstrução da Europa, e com isso o apoio a outras regiões do mundo, inclusive a América Latina, foi muito reduzido. Eu fui dos primeiros bolsistas com oportunidade de seguir para centros que eram dos mais avançados naquele momento, e com isso aprendi muita coisa que ainda não estava circulando por aqui, vamos dizer assim. Bem, sobre as universidades, fui primeiro para Cornell, em Nova York, onde fiz um curso que era uma espécie de atualização para as condições da medicina americana, que nos eram estranhas, porque mesmo quando o Brasil 14 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

tinha contato com os países mais avançados era sobretudo com os da Europa — a França, sobretudo, alguma coisa com a Alemanha e a Inglaterra. Mas justamente naquele período os Estados Unidos é que estavam despontando para uma nova concepção de atividade clínica, que era o meu rumo, e para a ênfase de suas bases científicas. ■ Quanto tempo o senhor ficou em Nova York? — Fiquei nesse curso de adaptação apenas por pouco mais de seis meses. Ali foi o meu primeiro contato com uma cidade do porte de Nova York. Bem, e além da medicina que eu aprendi, tive que reaprender muita coisa básica. Explicando melhor: nós vínhamos de uma concepção da atividade médico-clínica muito ao estilo europeu, e sobretudo francês de antigamente, que dava ênfase à descrição das doenças, como elas se apresentam à observação do clínico. Os fundamentos da bioquímica, da fisiologia, da biofísica, eram muito reduzidos - a anatomia patológica era mais avançada - e não tinham a ênfase que passaram a ter depois, numa reviravolta que ocorreu da guerra para diante. E então, além do que aprendi em relação a clínica no sentido tradicional, da observação médica, tive que reaprender, digamos, todos esses fundamentos que estavam ainda engatinhando. E aí entravam novas coisas como, por exemplo, a genética, a imunologia, que tiveram um grande impulso depois da guerra. Tudo isso deu uma firmeza à atividade clínica que antes era mais instintiva, com a base da anatomia patológica. ■ Para um jovem recém-formado era todo um mundo novo que se abria. — Sim. Quando saí de Nova York fui para a Universidade de Michigan, em Ann Harbour - cidade pequena de 40 mil habitantes, dos quais 20 mil eram estudantes. Eles tinham uma excelente faculdade de medicina para o preparo clínico, mas a pesquisa, embora tivesse importância, não era a ênfase principal. E aí fui residente no hospital da universidade, mas com as vistas voltadas para mais uma etapa que eu iria cumprir, como cumpri, em Boston, na Universidade Harvard, no Massachusetts General Hospital, onde trabalhei exclusivamente em metabolismo hidromineral.

■ Que seria depois o tema da sua tese? — O tema da minha tese e da atividade de pesquisa que tive na Bahia quando voltei, que foi justamente o metabolismo de sódio, potássio, pH, hidrogênio, oxidose, alcalose, enfim, metabolismo hidromineral. Pude trabalhar, por exemplo, em estudos de regulação renal e extra-renal do metabolismo de potássio em nosso hospital universitário, que estava muito bem montado, muito bem organizado, de modo que tivemos ocasião de fazer pesquisas com animais dentro do próprio hospital. mE podia-se colocar animal no hospital?! — Sim, como aliás ocorre em vários hospitais fora daqui. O andar de cima do hospital era completamente isolado de qualquer atividade clínica, laboratorial. Trabalhei, por exemplo, com a verificação da depressão sódica como um fator essencial para o aumento da excreção de amônia, trabalho que em parte era de fisiologia e em parte era de fisiopatologia, quer dizer, de alterações do metabolismo da água e dos eletrólitos em função de doenças. Tenho uma outra tese de livre-docência baseada num trabalho com cirróticos portadores de esquistossomose. Examino como a excreção de água está sujeita a fatores ligados ao metabolismo do hormônio antidiurético fabricado pela hipófise. Nessa época tinha sido lançado no mercado o fotômetro de chama, aliás, os primeiros fotômetros de chama foram testados no laboratório onde eu trabalhava no Massachusetts General Hospital. Esse equipamento deu um impulso grande ao estudo clínico do metabolismo dos eletrólitos porque uma dosagem que do ponto de vista químico até então muito complicada entrou para a rotina. Esses trabalhos foram divulgados, aceitos por revistas de circulação mundial como a American Journal Phisiology. ■ Em paralelo às atividades de pesquisa, o senhor logo começou a ter uma influência forte no ensino da Faculdade de Medicina da UFBA, não? — Sim, eu comecei já também com uma atividade intensa na área de ensino, e em 1956 instituí o programa de residência, que, na época, só dois hospitais no Brasil tinham: o Hospital das Clínicas de São Paulo, o pioneiro, e o dos Servidores do Estado no Rio de Janeiro, um excelente hospital que depois teve dificul-


dades imensas. A residência modificou completamente os padrões de assistência em todo o Norte e Nordeste. ■ O senhor voltou aos Estados Unidos na década de 1960, não? — Sim, em 1961,1962, fui de novo para o hospital de Massachusetts, e lá montei uma técnica para dosar hormônio diurético na circulação sangüínea. Agora era uma dosagem direta, quando antes eu tinha trabalhado com resultados indiretos da ação de hormônios diuréticos nos cirróticos, como falei. ■ O nome do professor Edgar Santos já apareceu, mas não falamos dele. Além de primeiro reitor, ele foi o grande organizador da UFBA, e com uma sensibilidade muito forte para o espaço das artes dentro da universidade. Como o senhor o vê a distância? — Ele é um líder na organização da universidade, e a sensação que a gente tem é exatamente que, embora fosse formado em medicina, ele tinha uma sensibilidade toda especial para a cultura, para a área das artes. Essa sensibilidade é que teria permitido à Universidade Federal da Bahia ter, por exemplo, a primeira escola superior de dança contemporânea, ter uma escola superior de teatro. Ter uma escola de música, por exemplo, que começou como seminários livres de música, numa reação ao estilo de conservatório daquela época, com muito menos formalismo, com a oportunidade de grandes músicos e professores de música do exterior e do Brasil virem para cá, a princípio durante os meses de julho, por alguns anos, em atividades que não eram permanentes, e depois em trabalho regular. Enfim, sua sensibilidade ajudou a UFBA a ter todo um lado cultural mais sólido do

que outras universidades federais, já de cara. E isso mais um pendor próprio do baiano para as artes fez com que em poucos anos se desenvolvessem aqui vocações, que terminaram buscando mercados maiores e se firmando. Acho que isto é um dado importante quando confrontamos com o desenvolvimento da ciência, em que o pendor do baiano não me parece tão forte. ■ Dá para o senhor falar um pouco sobre como essa visão do professor Edgar Santos influencia sua formação? — Eu vou acrescentar só o seguinte: embora seu nome tenha se tornado muito conhecido em função da ênfase que ele deu às escolas de arte de nível superior, acho que o trabalho de meu pai em relação à saúde foi tão ou mais importante pelo fato de ele ter, com dificuldades enormes, implantado um hospital universitário que representa a medicina moderna, e que levou 11 anos para ser construído. A construção começou em 1937, ele foi inaugurado em novembro de 1948 e entrou em funcionamento em 1949. ■ Ele tem alguma semelhança como Hospital das Clínicas de São Paulo, não? — Sim, porque Ernesto Souza Campos, professor de microbiologia na medicina de São Paulo, que depois foi ministro da Educação, teve muita influência no projeto de São Paulo e, anos mais tarde, no daqui. Assim, a planta com a forma de H, em que as enfermarias ficam nas alas laterais e os serviços gerais no traço do H, é muito semelhante à de São Paulo. Tudo em tamanho menor.

Souza Campos foi um dos brasileiros que fez um famoso curso de saúde pública na Universidade John Hopkins no fim da década de 1920 e década de 1930, que teve influência praticamente no mundo todo, e muita influência no Brasil. Muitos dos sanitaristas destacados do Brasil fizeram este curso a título de pós-graduação. Assim, Souza Campos trouxe duas influências muito importantes para a área médica: a administração hospitalar, que praticamente não existia na época, e a enfermagem, como profissão de nível superior e atividade importantíssima no processo da saúde. ■ Vamos dar um salto no tempo: como é que o senhor transitou das funções de pesquisador e professor para a área da política da universidade? — Eu vou fazer uma digressão para mostrar essa transição. Além dessa atividade de pesquisa, nos meus primeiros anos como professor catedrático (equivalente ao titular dos dias atuais) me dediquei muito a modernizar o ensino da medicina. No padrão tradicional era muito freqüente, quase regra, a especialização precoce. O estudante de medicina começava a trabalhar desde os primeiros anos da sua formação num serviço e ali, por questão de amizade, às vezes de parentesco, ele ia criando responsabilidades crescentes e ia se aperfeiçoando em algumas práticas daquela especialidade e acabava exercendo a profissão dessa maneira, sem visão de conjunto. Alguns que pretendiam ir para o interior, por conta própria, sem PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 15


responsabilidade da escola, freqüentavam dois, três serviços, para poder depois, no exercício profissional, dar cobertura a tudo que era carência. A idéia então foi oferecer um programa que se estendesse à totalidade dos estudantes e que fizesse com que o estudante, mesmo dentro do formalismo de um currículo, criasse aquela idéia geral da medicina. O que é muito importante em outras carreiras, mas é particularmente importante em medicina, porque você lida com o ser humano, você não lida com um fígado ou com um coração. Esse esforço de modernização se estendeu a outras escolas e resultou na criação da Associação Brasileira de Escolas de Medicina, entidade que teve uma influência muito grande tanto neste aspecto de estabelecer currículos, normas pedagógicas e organização hospitalar ajustada ao ensino, quanto no de inserir no ensino da medicina uma noção da medicina coletiva, da saúde pública, que antes era extremamente precária. ■ E depois desse esforço para a modernização do ensino? — Quando eu estava empolgado com esse programa de reforma do ensino médico, houve uma eleição de reitor aqui. Em 1967 estava havendo uma certa competição entre alguns dos professores do conselho universitário para a substituição de Miguel Calmon. Aí Miguel morreu subitamente nas vésperas da eleição. ■ Mas nesse momento o senhor era secretário da Saúde do Estado. — Exatamente. É que quando eu estava no programa de reforma do ensino médico, um dos meus empenhos era criar também fora do hospital universitário oportunidade para os estudantes freqüentarem serviços nos postos de saúde, que eram precaríssimos. Nesse momento o novo governador, Luiz Viana Filho, me convidou para ser secretário de Educação. Eu disse a ele que aceitaria ser secretário de Saúde e assumi em 7 de abril. Em junho houve eleição para reitoria e o nome natural era Orlando Gomes, jurista, professor da Faculdade de Direito, vice-reitor de quase todo o mandato de meu pai, de 1946 a 1961. Mas havia muita disputa e nesse clima o governo federal foi contaminado por uma resistência ao nome de Orlando, porque ele fora do Partido Socialista, na 16 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

década de 1930. E o governo militar recusou Orlando. Nas vizinhanças da eleição eu entrara como o nome mais votado no segundo escrutínio. Em determinada altura o ministro da Educação, Tarso Dutra, mandou me chamar, e numa conversa juntamente com Adriano Ponde, o então reitor em exercício, disse que havia resistência com o primeiro nome da lista e, como eu era o segundo, estavam cogitando meu nome para reitor. Eu disse que não poderia aceitar, considerando inclusive a amizade de minha família com Orlando Gomes, e ele disse que então teria que devolver a lista para a universidade, pedir que organizasse outra, enfim, uma crise. Naquele tempo em que se temiam muito as retaliações políticas, pedimos tempo para consultar por telefone (estávamos no Rio com o ministro) o conselho universitário e o próprio Orlando Gomes, que foi taxativo no sentido de que eu aceitasse para evitar crise na universidade. Bom, o resultado é que eu, que tinha tido no começo do governo de Luiz Viana um trabalho enorme para me preparar para ser secretário, com menos de três meses estava saindo para a reitoria. mEna reitoria o senhor teve que encarar a questão da reforma universitária. — No final do governo Castelo Branco, Luiz Viana, então chefe da Casa Civil de Castelo e que também era professor de direito da universidade, embora ficasse na política quase que o tempo todo, conseguiu convencer o presidente de que tinha que haver uma reforma das uni-

versidades. E Castelo baixou um decretolei em 1966. Não existia então nenhuma comissão MEC-Usaid (Usaid é a agência norte-americana para o desenvolvimento internacional), que só aconteceu quando Muniz de Aragão era ministro, uns dois ou três anos mais tarde. Ao contrário do que o movimento estudantil difundiu, aqui se cuidava só da reestruturação da universidade, e numa concepção desenvolvida por educadores brasileiros. O mais importante dessa reforma é que os setores básicos do conhecimento, que tinham pouco relevo na organização original das universidades, passavam a ter uma importância muito maior - algo que eminentes educadores brasileiros defendiam desde a década de 1930 e que só a Universidade de São Paulo experimentara, na Faculdade de Medicina e na Faculdade de Filosofia, e depois a Universidade de Brasília, em 1960. Pois bem, o decreto-lei que generalizou este princípio foi de 1966 e não teve nada que ver com o acordo MEC-Usaid. As coisas se confundem por causa dos complementos à reestruturação feitos para enfrentar o movimento estudantil, e que pegam particularmente na questão da representação


estudantil. O diretório acadêmico ficou impossibilitado de funcionar nos moldes que funcionou até 1967 e o diretório central dos estudantes, mais as uniões estaduais, tudo foi cancelado, enfim... Tanto na representação estudantil como no governo da universidade as coisas foram muito alteradas e a isso é que chamam de reforma universitária. Mas o que nos importa, do ponto de vista do desenvolvimento científico da universidade, é que a reestruturação de que falo implantou o ensino das ciências na generalidade das universidades. O que a reestruturação gerou, portanto, foi a possibilidade da pesquisa científica dentro das universidades. ■ Então, para o senhor, a pesquisa de ciências nas universidades brasileiras tem uma certidão de nascimento com data precisa? — Sim. Em fevereiro de 1966 veio o primeiro decreto que traçou realmente a linha, a diretriz essencial, diretrizes racionais, intelectuais e tal, mas que as universidades acharam que era um pouco vago do ponto de vista da implementação. Então no ano seguinte houve um segundo decreto, tudo elaborado por educadores brasileiros dentro do Conselho Federal de Educação. Sei que essa verdade não será restabelecida, tenho falado disso em mil oportunidades e outros companheiros também, mas a conotação política que cerca essa questão é muito forte. ■ Para o senhor, somos ainda muito jovens em pesquisa científica? — Sim, tivemos alguma pesquisa desde o século 19 e começo do século 20 com os laboratórios soroterápicos, Manguinhos, o Instituto Biológico de São Paulo, o Instituto Agronômico de Campinas etc. Entre a agricultura e a saúde pública houve pesquisas no Brasil. Aqui tivemos a Escola Tropicalista Baiana, mas tudo fora das faculdades. ■ Bem, por que o senhor defende aquela reestruturação da universidade como absolutamente necessária? — É o seguinte: até a Universidade de Brasília, todas as universidades resultavam da aglomeração de faculdades isoladas. Com isso os setores básicos do conhecimento, como matemática, física, química, biologia básica, ciências humanas também, existiam dentro das faculdades profissionais como uma fase

preliminar, preparatória. E por isso os setores básicos do conhecimento eram fragmentados dentro das universidades. Existia uma matemática na Politécnica, uma matemática na Arquitetura, e por aí afora, mas não existia a matemática como uma unidade mais abrangente que cultivasse todos os aspectos de ensino e de pesquisa e com uma concentração dos recursos humanos, materiais e financeiros. Estava tudo pulverizado. Isso se aplica à física, à química, à biologia básica, às ciências humanas, e a motivação maior da reetruturação foi justamente pegar esses bocadinhos e concentrar numa grande unidade de matemática, ou de física, ou de química. Isso é que foi fundamental, passou a existir uma matemática, uma física, uma química com a concentração dos meios de pesquisa que estavam pulverizados. E eu estou certo de que foi por causa disso e mais da dedicação exclusiva que a pesquisa veio a florescer. ■ Mas o senhor mesmo diz que na Bahia a pesquisa não floresceu como o senhor sonhava. — Acho que houve uma certa timidez do pessoal dos setores básicos do conhecimento e as faculdades tradicionais continuaram dominando o governo das universidades. O pessoal não se sentiu com poder, não se sentiu apoiado nem internamente, na instituição, nem na comunidade em geral para enfrentar o prestígio dos setores tradicionais. Setores que não tinham dedicação exclusiva, que é uma coisa que veio bem mais recentemente, e por isso produziam pouco do ponto de vista científico. Na verdade eles eram médicos que ensinavam fisiologia, bioquímica etc. e ao mesmo tempo dispunham de horas do dia para exercer a profissão médica, como profissionais generalistas ou especialistas. Mas importa que a universidade brasileira foi adiante apesar de todas as dificuldades, toda a falta de dinheiro e tudo o mais. O que a universidade tem hoje de mestrandos e doutorandos, de produção de teses e transformação desses trabalhos em artigos de revistas e periódicos bem aceitos, e assim por diante é impressionante. E não resta dúvida que a formação e a qualidade dos professores melhoraram muito. uBem, se o sistema brasileiro de pós-graduação, hoje, forma 7 mil doutores por ano, só pode ter efeitos nesse sentido.

— Pois é, isso não existia antes. O modo como a pessoa chegava ao topo da carreira era muito na base das relações pessoais, aquela coisa de mestre e aprendiz, sem o caráter formal, sem nenhum critério de aceitação, nada. Havia o concurso, mas o concurso é um momento na vida do cidadão e a forma como as provas eram feitas antigamente favorecia mais quem decorava e repetia as coisas. Hoje há avaliação da capacidade de criação e realização de trabalhos. A questão de que também em parte por causa disso a nossa pesquisa é pouco inovadora, então daí vem aquele ranso que vem do tempo da educação jesuística, da herança escolástica, esta história que vem de muito longe que os portugueses nos trouxeram. Então a gente sabe que até poucas décadas a história era mais na base de decorar. E não de transmitir os conceitos da ciência como uma coisa que está sempre sob cautela, sob reexame. ■ Vamos dar novo salto e ver como o senhor tratou ciência e tecnologia quando se tornou governador da Bahia, em 1975. — Há pouco falávamos de cultura científica e quero lembrar que uma das coisas que fiz com maior carinho no governo, embora não tivesse maior porte do ponto de vista material e financeiro, foi um museu de ciência e tecnologia em Pituaçu para promover os conceitos científicos junto às gerações mais novas. Havia uma oportunidade especial para isso, porque a Bahia estava se industrializando rapidamente, primeiro com o Centro Industrial de Aratu e, mais adiante, com o Pólo Petroquímico de Camaçari, que representou um investimento de US$ 4 bilhões em um intervalo de quatro anos. Era uma coisa nova e pensamos em preparar o museu para apresentar as coisas às crianças de forma dinâmica e viva. Inauguramos o museu no final de 1978 e em março de 1979 eu deixei o governo. Resultado: o museu de ciência e tecnologia sumiu. Era um projeto que envolveu inclusive uma participação inglesa - os ingleses são bons em fazer essas coisas com pouco dinheiro -, a cooperação da Petrobras, com modelos de torres de petróleo, modelos tridimensionais de moléculas de produtos petroquímicos, e por aí afora. Criamos uma operação museu-escola, que envolvia ônibus para pegar alunos da escola pública priPESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 17


mária e levá-los aos museus, inclusive o de ciência e tecnologia. Então os professores iam antes ao museu para saber o que era aquilo, preparavam sua classe, e é impressionante como isso tudo morreu. ■ Mas, para não sermos injustos, é preciso lembrar que em algumas áreas existe uma tradição respeitável de pesquisa na Bahia. Eu me refiro, por exemplo, às pesquisas na área de medicina tropical. O senhor poderia comentar um pouco por que essa área tem sucesso enquanto física, mesmo bioquímica etc. permanecem atrasadas? — A medicina, a saúde, teve realmente um passado que foi sustentado pela presença da faculdade de medicina no ambiente baiano. No entanto, a faculdade de medicina não foi o fator fundamental para as pesquisas que foram realizadas na segunda metade do século 19, por exemplo. Os pesquisadores mais expressivos não se entendiam com a faculdade. Já no século 20, com o Hospital das Clínicas, a Bahia continuou sendo um ambiente muito valorizado pelos pesquisadores porque continuava com uma pobreza intensa, rica para a pesquisa, e ao mesmo tempo passava a ter uma nova condição tanto laboratorial como clínica. Então, além de alguns baianos mesmo, vieram muitos pesquisadores de fora nessa área das doenças infecto-contagiosas, doenças transmissíveis. Mesmo na década de 1930 e um pouco depois, Otavinho Mangabeira, que era pesquisador de Manguinhos, entomologista, aproveitou alguns talentos locais e depois trouxe, entre outras pessoas, Samuel Pessoa, professor de parasitologia da USP, para realizar trabalhos bastante importantes e formar bastante gente. Tudo isso num instituto que se chamava Oswaldo Cruz, depois passou a Fundação Gonçalo Muniz e, depois, já nos anos 1990, tornou-se outra vez um centro da Fundação Oswaldo Cruz, com um grupo de pesquisadores da melhor categoria, entre eles Bernardo Galvão, excelente pesquisador. Ele é baiano, ficou muitos anos no Rio, e nos anos 1980 passou a estudar bastante a AIDS. Quando eu estava no Ministério da Saúde ele estava lá, estavam montando um laboratório de biologia bastante especializado. ■ Existe algum campo específico onde as coisas agora estão andando bem, alguma 18 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

doença específica mais bem pesquisada em Salvador do que em outras cidades brasileiras? — Além de Chagas e esquistossomose, que são, digamos, as coisas tradicionais, tem a leptospirose, tem a AIDS e sobretudo doenças virais menos divulgadas, menos conhecidas, que eles estão estudando e com bastante resultados bons, e com a aceitação na literatura médica que seleciona essas coisas. ■ Como o senhor percebe o conjunto do país hoje em matéria de pesquisa? — Bem, São Paulo é um caso à parte. No país em geral acho que com a pósgraduação as oportunidades de fixação de pessoal em programas regulares nas universidades e o regime de dedicação exclusiva, houve uma evolução muito grande da produção científica, demonstrada inclusive pelo número de publicações de artigos nas revistas internacionais que estão em bases indexadas. Há um despertar, uma mudança muito rápida, ainda que muito mais na área científica do que na tecnológica. Quem manteve acesa a chama da pesquisa científica e tecnológica com perspectiva, embora reduzida, de inovação, foram as universidades. As empresas foram muito mais lentas em despertar para isso, e estão despertando ultimamente muito em função da necessidade de exportar. ■ Nessa questão do suporte para um ambiente propício ao desenvolvimento tanto científico quanto tecnológico, há um problema curioso na Bahia que é a longa resistência oficial à implantação de uma fundação estadual de amparo à pesquisa. Quando o senhor governou o estado, não havia clima para criar essa fundação? — Em meu período de governo o esforço de investimento de recursos se concentrou no Ceped, Centro de Pesquisas e Desenvolvimento, que foi fundado no governo de Luiz Viana. O Ceped desenvolveu muito trabalho na área de petroquímica, em aperfeiçoamento de processos petroquímicos, porque o pólo petroquímico estava começando. Fez muito trabalho em agronegócios, em agroindústria. Em metalurgia, como o cobre estava começando a ser produzido aqui, houve necessidade de o Ceped se dedicar à metalurgia de não-ferrosos. Portanto, o Ceped teve um papel muito importante durante muitos anos. E morreu. Acabou.

mMaspor que não se criou logo uma fundação de amparo à pesquisa? — Na ocasião das constituintes estaduais, em 1989, muitos estados criaram fundações de amparo, inclusive a Bahia, pelo menos na lei. Mas, depois de algum tempo, um ou dois anos, a fundação deixou de existir. Ela era dirigida por um conselho que tinha participação de outros órgãos da comunidade, e se transformou num conselho com mecanismo de nomeação muito mais vinculado ao próprio governo do estado. ■ O senhor acha então que está pronto o arcabouço formal para que se apoie efetivamente a pesquisa? — Sim, ele já existe. Seguramente, depois de um atraso, de uma redução muito grande de impulso em relação ao que tinha começado, mas no momento está existindo. ■ Quando o senhor ocupou a presidência do CNPq, tentou de alguma maneira mobilizar os sistemas de pesquisa nos estados fora da Região Sudeste? — Eu fiquei somente um ano no CNPq. Mas, se eu já tinha uma inclinação para esse tipo de atividade, a partir daí realmente me empolguei e desde então muito do que eu tenho exercido, ou escrito ou falado se relaciona a essa questão da ciência e tecnologia como um fator absolutamente decisivo, inadiável e irrecusável do desenvolvimento do país. No CNPq havia, quando eu assumi, uma desconfiança muito grande da comunidade científica em relação às instituições de governo. Era uma comunidade que tinha feito uma grande resistência ao governo militar e na transição ainda havia muito do que se chamou "entulho autoritário". Então eu tive de enfrentar e atravessar isso. Mas do ponto de vista do trabalho propriamente, em primeiro lugar, tive muita preocupação com a pulverização dos recursos do CNPq. Eu fazia uma conta na época que se você tomasse, numa contabilidade meio portuguesa, o total de recursos captados pelo CNPq pelo número de projetos que ele financiava, na média daria entre US$ 5 mil e US$ 10 mil por projeto. Ou seja, quase nada. O que você faz com US$ 5 mil? Isso não existe. Ao mesmo tempo havia uma praxe que era: quem entrou para ser financiado não sai mais. Havia também o que se pode chamar de bom-mocismo,


quer dizer, não recusar o projeto veio do pesquisador. O resultado foi essa pulverização. Bem, é claro que o argumento era que o problema é que o dinheiro é pouco, sem dúvida era e continua sendo pouco e será sempre pouco, mas isso era também um pretexto para não contrariar, não enfrentar a comunidade científica. Eu procurei encaminhar as coisas para reduzir isso, mas como o tempo foi curto... Bom, a outra coisa é que, apesar de todo o meu empenho pelo desenvolvimento das ciências básicas, que foi muito bem demonstrado na prática da minha vida, o pessoal das ciências básicas tinha uma desconfiança muito grande em relação à divisão de recursos com a parte tecnológica. Mas o conselho é de desenvolvimento científico e tecnológico... Houve um momento em que se imaginou separar um pouco isso, na idéia de que se o CNPq fosse só da ciência seria melhor. Isso é ilusório. Não se pode dividir e terminar deixando a tecnologia sem nada. Bem, e por fim havia a famosa questão da distribuição regional. Mas, na verdade, era preciso reconhecer que este problema de distribuição regional também decorria muito da falta de iniciativa de muitas das unidades dessas regiões mais pobres. ■ O senhor não está comprando uma briga com a comunidade científica com essa avaliação? — Sabemos que a predominância de pessoas do Leste, do Sul, nos órgãos de decisão também teve importância para a má distribuição. Havia um certo menosprezo pela qualidade do que vinha do Nordeste, do Norte, isso é verdade. Mas de outro lado havia também muita falta de iniciativa. Eu digo daqui da minha terra. Eu procurei estimular a apresentação de propostas, sobretudo em certas áreas de cuja importância eu tinha convicção, como a área agronômica, mas o pessoal andava devagar.

■ E no Ministério da Saúde? — A saúde praticamente só cuidava de prevenção de doenças transmissíveis. As doenças da pobreza, as doenças infecto-contagiosas. E era um ministério muito pequeno. E a população em geral tinha assistência na área de infectocontagiosas, mas fora daí não tinha assistência, a saúde não tinha o que fazer, não tinha dinheiro, não tinha pessoal suficiente, enquanto o Ministério da Previdência naquela época nadava em dinheiro. Bom, houve um movimento dos chamados sanitaristas, que é uma expressão até imprópria, para juntar a parte de saúde que estava no Ministério da Previdência burocraticamente, com a saúde propriamente dita. Aí, o Ministério da Saúde, que era uma coisinha de nada, ficou enorme, com um dinheiro que era da Previdência. Isso gerou uns problemas iniciais, houve até um momento em que as coisas pioraram, mas depois ficaram mais racionais. ■ Mas não tinha muito como o Ministério da Saúde se articular com a área de pesquisa voltada para saúde? Não existia mecanismo possível para isso? — Já existia na estrutura a Fiocruz, tra-

dicionalmente ligada ao Ministério da Saúde. A força da pesquisa do Ministério da Saúde estava e continua na Fiocruz, apoiamos muito isso. Bem, sempre restritos naquele momento às doenças infecto-contagiosas, houve naquele momento uma explosão de malária, na região amazônica. O que foi uma questão interessante. Porque durante a Segunda Guerra haviam surgido uns inseticidas muito potentes para acabar com o mosquito, e surgiu o "aralem", a cloroquina, o primeiro dos antimaláricos mais eficazes. Antes mesmo disso, a Sucam, Superintendência das Campanhas de Saúde Pública, foi constituída e fez um excelente trabalho que acabou com a malária nesta metade do Brasil leste. Mas na Amazônia as mesmas coisas e as mesmas pessoas falharam. A Amazônia tem uma coisa que eu acho que ainda está para ser descoberta, algo que alimenta o mosquito. Naquela época em que eu cheguei ao ministério estava havendo uma grande migração, sobretudo de agricultores do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Paraná etc. para a Amazônia. Essa gente chegava sem nenhuma defesa imunológica, virgens, prontos para ser atacados pelos mosquitos. Então, era uma devastação. Aí trabalhamos muito com essa questão de malária, trabalhamos muito também nas febres maculosas, em Chagas, em esquistossomose, enfim, havia problemas, grandes, nessa área de transmissíveis, sobretudo nas regiões pobres e havia também instrumentos, embora um pouco antiquados, que eram a Sucam e a Fundação Cesp, que eram parte do Ministério da Saúde. •

■ Eles não mandavam os projetos? — Com exceção de algumas poucas unidades que já tinham tradição, de um modo geral os pedidos eram mais fracos. Procurávamos equilibrar, acomodar, estimular o que vinha das regiões mais pobres, mas sabendo que a grita de que são perseguidos, não são devidamente valorizados etc. não é exatamente verdadeira. PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 19


I POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO

A safra 2004 do Nobel Sete norte-americanos, dois israelenses, uma queniana, uma austríaca e um norueguês foram contemplados nas seis categorias do Nobel 2004. Pela primeira vez o Prêmio da Paz coube a uma militante da causa ecológica. As descobertas de mecanismos do olfato, da força que une os átomos e de um controle de qualidades das células levaram os prêmios científicos.

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A escritora Elfriede Jeiinek: contra clichês

■ Fluxo de vozes e contravozes Elfriede Jeiinek, austríaca de 58 anos, ingressou no clube de escritores quase desconhecidos que conquistaram fama planetária ao arrebatar o Nobel de Literatura. Autora de romances, livros de poesia e peças teatrais, foi agraciada graças ao "fluxo musical de vozes e contravozes em seus romances que revelam o absurdo dos clichês da sociedade e seu poder dominador", como informou a Academia Sueca. Um de seus romances foi levado às telas em 2001, com o título A professora ãe piano. A história autobiográfica narra o envolvimento de uma professora com um jovem aluno. •

■ A sagração da "mulher-árvore" A queniana Wangari Maathai, de 64 anos, tornou-se a primeira mulher africana a ganhar o Nobel da Paz. Doutora em biologia pela Universidade de Pittsburg (feito raríssi-

■ A cola que une os átomos

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Wangari Maathai: Nobel da Paz para a causa ecológica

mo para uma mulher nascida no meio rural africano), Maathai é vice-ministra do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais do Quênia. Há 27 anos, fundou o Movimento Cinturão Verde (Greenbelt Movement), que trabalha para preservar as selvas do continente, evitar a desertificação e manter atividades extrativistas que dão sustento à população rural. Conhecida em seu país como a "mulher-árvore", também ajudou a fundar o Partido Verde local. O

20 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

Hershko, e o norte-americano Irwin Rose descreveram um dos mecanismos-chave por meio dos quais as células destroem proteínas descartáveis e preservam outras, numa faxina seletiva. Graças ao trabalho dos três laureados, é possível entender como a célula controla vários processos centrais, decompondo determinadas proteínas, e não outras. Quando esse mecanismo falha, pode abrir caminho para a eclosão de doenças como câncer e fibrose cística. A compreensão desse mecanismo pode ajudar a criar remédios contra moléstias degenerativas. •

Movimento Cinturão Verde é responsável pelo plantio de mais de 30 milhões de árvores no continente. É a primeira vez que o prêmio é concedido à causa ecológica. •

■ Proteínas marcadas para morrer Um trio de pesquisadores que desvendou um mecanismo de "controle de qualidade" das células conquistou o Prêmio Nobel de Química. Os israelenses Aaron Ciechanover e Avram

Os norte-americanos David J. Gross, H. David Politzer e Frank Wilczeck foram laureados com o Nobel de Física, por suas contribuições na descoberta e na compreensão da força nuclear forte, que mantém as partículas unidas no núcleo dos átomos. Dois artigos publicados em 1973, um pela dupla Gross e Wilczek, outro por Politzer, propunham que a força a unir os tijolos construtores de prótons e nêutrons aumentava com a distância, em vez de diminuir, como indicava o senso comum. A descoberta da cola atômica serviu de base à cromodinâmica quântica, teoria que descreve o comportamento das partículas que compõem prótons e nêutrons, os quarks. •


Quando a ciência faz rir ■ A memória dos aromas A descoberta de uma família de cerca de mil genes que formam proteínas relacionadas ao sentido do olfato rendeu aos norte-americanos Richard Axel e Linda B. Buck o Nobel de Fisiologia e Medicina de 2004. Axel, do Howard Hughes Medicai Institúte, em Nova York, e Buck, da Fred Hutchinson Câncer Research Center, em Seatlle, constataram que tais proteínas, produzidas pelos genes dos receptores olfativos, estão presentes em células do nariz capazes de se comunicar com o cérebro. O mecanismo ajuda a explicar como o sistema olfativo humano é capaz de reconhecer 10 mil odores diferentes - e recordar-se deles até mesmo anos depois do último contato. "Há muita coisa ainda por descobrir. Embora nós estejamos trabalhando nesse problema há 16 anos, mal tocamos a superfície", disse Buck. O trabalho da dupla que descreve os genes data de 1991. •

■ Independência ou estagnação Agraciados com o Nobel de Economia, o norueguês Finn Kydland e o norte- americano Edward Prescott inspiraram uma profícua produção acadêmica sobre a importância da independência dos bancos centrais e do estabelecimento de metas para a inflação. Um artigo publicado pela dupla em 1977 propôs que políticas monetá-

Pesquisadores às vezes deparam com achados tão inúteis quanto engraçados. Para compartilhar as risadas com o público, a revista Annah oflmprobable Research criou o Prêmio Ig Nobel, o Nobel da ciência excêntrica. A 14a edição do prêmio, entregue em 30 de setembro na Universidade Harvard, manteve a verve galhofara. O troféu na categoria Medicina foi concedido a dois norte-americanos, Steven Stack e James Gundlach, que estabeleceram um vínculo entre a incidência de suicídios e o gosto pela depressiva música country. O de Biologia foi dividido por cientistas da Suécia, Estados Unidos, Dinamarca e Canadá, que, em pesquisas paralelas, chegaram a uma mesma conclusão: misteriosos sons

rias duradouras fortalecem as economias e que governos que mudam as regras do jogo para obter ganhos imediatos produzem prejuízos tanto a empresas como a consumidores. Em outro artigo que deu lastro à premiação, publicado em 1982, a dupla propôs que transformações tecnológicas e oscilações repentinas no preço do petróleo têm mais influência nos ciclos de crescimento ou estagnação do que as demandas dos consumidores e a capacidade das empresas de produzir. Kydland, de 60 anos, é professor da Universidade Carnegie Mellon. Prescott, de 63 anos, dá aulas na Universidade Estadual do Arizona. •

Um pensador decaído é o símbolo do prêmio

captados no mar são provocados pela flatulência dos arenques, cujos cardumes comunicam-se por meio da exótica sinfonia submarina. Daniel Symons e Christopher Chabris levaram o troféu de Psicologia. Mostraram que pessoas concentradas assistindo a um jogo de basquete raramen-

■ Estímulo à ética na pesquisa A Unesco, braço das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, prepara o lançamento do Observatório Global de Ética, uma coleção de bancos de dados on-line voltada para estimular a ética na pesquisa. O serviço dará acesso a especialistas e instituições, assim como a informações sobre programas de ensino de ética, legislações e normas ligadas ao tema. "Será uma referência sobretudo para os países em desenvolvimento", diz Henk ten Have, diretor da Divisão de Ética da Ciência e Tecnologia da Unesco. A base do observatório, com informações em inglês e francês, ficará em Paris, mas centros

te percebem a entrada de um homem vestido de gorila na quadra, batendo no peito. O Ig Nobel da Paz coube ao japonês Daisuke Inoue, inventor do karaokê, "ao estabelecer uma forma original de ensinar as pessoas a tolerar as outras", segundo os organizadores do concurso. •

regionais estão sendo instalados no Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (com informações em português e espanhol) e em Vilna, na Lituânia (dados em russo). Uma iniciativa semelhante está surgindo no mundo árabe. Trata-se do Grupo Árabe de Ética na Ciência e Tecnologia. Ao anunciar o lançamento do grupo, Ismail Serageldin, diretor da Biblioteca Alexandrina do Egito, explicou que a iniciativa busca estabelecer padrões e construção de competências acerca de aspectos éticos da ciência e da tecnologia em todo mundo árabe. O grupo vai articular-se com o observatório da Unesco. (SciDev.Net, 20 de outubro) •

PES0UISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 21


ESTRATéGIAS O homem que viu a dupla hélice

Richard Wilkins: o DNA no raio X Um dos pais da genética moderna, o neozelandês Maurice Wilkins, morreu no dia 5 de outubro, aos 88 anos. Foi ele quem mostrou a James Watson, em 1950, uma imagem de raio X em que se via a forma de dupla hélice do DNA. A imagem inspirou Francis Crick e Watson a montar o modelo definitivo do código da vida que, em fevereiro de 1953, estabeleceu as bases da biologia molecular. Os nomes de Crick e Watson ficaram vinculados à descoberta do DNA, mas a dupla dividiu com Wilkins o Nobel de Medicina de 1962. A imagem do DNA fora obtida por Wilkins e pela biofísica Rosalind Franklin, que morreu em 1958. Durante a Segunda Guerra Mundial, Wilkins participou do Projeto Manhattan, o programa norte-americano para a fabricação da bomba atômica. Depois tornou-se um crítico das armas nucleares. Trocou os Estados Unidos pela Universidade de Saint Andrews, na Escócia, e passou a ensinar na King's College, onde trabalhou até sua morte. •

MUNDO ■ 0 mensageiro da desconstrução Jacques Derrida, influente filósofo francês, morreu em Paris no dia 11 de agosto, aos 74 anos, vítima de câncer no pâncreas. Último representante da geração de pensadores de 1968 (ao lado de Louis Althusser, Jacques Lacan, Michel Foucault, Roland Barthes e Gilles Deleuze), tornou-se célebre como o pai da "desconstrução", método emprestado a toda gama de ciências sociais e à teoria artística, incluindo a lingüística, a antropologia, a ciência política e a arquitetura. Nascido em El Biar, na Argélia, lecionou na Escola Normal Superior de Paris, ocupando o cargo de diretor de estudos. Professor em universidades como a Sorbonne e a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França, e a de Yale, nos Estados Unidos, Jacques Derrida foi um escritor prolífico, com mais de 80 livros traduzidos para diversos idiomas, entre os quais Gramatologia, A escrita e a diferença, Margens da filosofia, Espectros de Marx e Resistências da psicanálise. •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

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0 site, organizado pelo neurocientista alemão Michael Bach, oferece uma coleção de 46 imagens com ilusões ópticas - e explica o mistério de cada uma.

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http://nightskylive.net/

Jacques Derrida: escritor prolífico

22 • NOVEMBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 105

Imagens do Armamento são captadas em tempo real por dez câmeras espalhadas pelo mundo. 0 projeto é organizado pela Universidade Tecnológica de Michigan.


Comitê anuncia os candidatos

■ Participação da sociedade O envolvimento e a visão crítica da sociedade em processos decisórios no campo da Ciência e da Tecnologia são o foco do "Seminário internacional ciência, tecnologia e sociedade: novos modelos de governança" que será realizado em Brasília entre 9 e 11 de dezembro. A promoção é do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) - associação privada sem fins lucrativos vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia - em conjunto com a FAPESP, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Universidade Federal de Santa Catarina. "Queremos discutir uma participação mais crítica da sociedade em assuntos como a gestão de investimentos, por exemplo", diz Márcio de Miranda Santos, diretor do CGEE. No seminário serão discutidas também possíveis estratégias para as instituições divulgarem suas informações sobre riscos e benefícios das novas tecnologias. "São mecanismos para fortalecer a divulgação do conhecimento com método e ética", comentou Carlos Vogt, o presidente da FAPESP.

O Conselho Superior da FAPESP recebeu, no dia 20 de outubro, as listas dos candidatos aos cargos de diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) e de diretor científico, encaminhadas pelo Comitê de Busca e Seleção constituído especialmente para o processo seletivo. São 10 candidatos a diretor-presidente do CTA cargo desempenhado interinamente pelo diretor administrativo Joaquim J. de Camargo Engler desde a morte de Francisco Romeu Landi, em abril - e 11 ao de diretor científico, para o lugar de José Fernando Perez, que vai atuar na iniciativa privada. Agora o Conselho Superior irá analisar os documentos reunidos pelo comitê - os currículos de cada candidato, textos descrevendo a visão de futuro para a FAPESP e o resumo de cada projeto de gestão e, em reunião no dia de 10 de novembro, constituir as listas tríplices que serão enviadas ao governador Geraldo Alckmin, a quem cabe indicar os diretores. No dia 10 de novembro as listas serão divulgadas nos sites da FAPESP (www.fapesp.br), da Agência Fapesp (www.agencia.fapesp. br) e da revista Pesquisa FAPESP (www. revistapesquisa.fapesp.br). ■ Os candidatos ao cargo de diretor-presidente do Conselho

FAPESP: processo de escolha de dois diretores quisas Energéticas e Nucleares (Ipen); Marco Antônio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); Oswaldo Massambani, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP; Paulo Eduardo de Abreu Machado, diretor científico do Hemocentro de Botucatu (Unesp); Regina Pekelmann Markus,

Carlos Alfredo Joly, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp e membro do Conselho Superior da FAPESP; Ederio Dino Bidoia, do Instituto de Biociências de

Rio Claro

(Unesp); Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Fede-

do Departamento de Fisio-

ral de São Carlos (UFSCar); Glaucius Oliva, do

logia do Instituto de Biociências (USP); Ricardo Renzo Brentani, diretor do

Instituto de Física de São Carlos (USP); Hernan Chaimovich Guralnik, do Institu-

Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, diretorpresidente do Hospital do

to de Química (USP); Hugo Aguirre Armelin, do Instituto de Química (USP); José Roberto Guedes de Oliveira,

Câncer A.C. Camargo e membro do Conselho Supe-

do Centro de Estudos de

rior da FAPESP; Ruy Laurenti, da Faculdade de Saú-

Economia Sindical e do Trabalho da Unicamp; Luiz Nu-

de Pública (USP); Umberto

nes de Oliveira, pró-reitor de pesquisa da USP e professor

G. Cordani, do Instituto de Geociências (USP); Walter Colli, do Instituto de Quími-

do Instituto de Física da USP em São Carlos; Pedro

ca (USP); e Willy Beçak, do Laboratório de Genética do

Manoel Galetti Júnior, do Centro de Ciências Biológi-

Instituto Butantan.

Técnico-Administrativo são: Cláudio Rodrigues, superin-

cas e da Saúde da UFSCar; e Willy Beçak, do Laborató-

■ Os candidatos ao cargo de

tendente do Instituto de Pes-

diretor científico são:

rio de Genética do Instituto Butantan. •

PESQUISA FAPESP 105 • NOVEMBRO DE 2004 • 23


ESTRATéGIAS

BRASIL Parceria na órbita do Equador

Os governos do Brasil e da Rússia deverão assinar acordos de cooperação no campo a tecnologia espacial, na viita que o presidente russo ladimir Putin fará ao Brasil neste mês. As parcerias devem incluir a fabricação conjunta de foguetes, o lançamento de satélites e o uso do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão. O Brasil já conta com assessoria de especialistas russos na preparação da nova tentativa de mandar ao espaço o Veículo Lançador de Satélites (VLS), depois da tragédia que matou 21 pessoas no CLA há um ano. Um dos principais interesles do Brasil são os satéli,,

■ 0 resgate de Adolpho Lutz A Editora Fiocruz acaba de lançar os quatro primeiros volumes da obra completa de Adolpho Lutz, com o legado do precursor de campanhas sanitárias e estudos epidemiológicos envolvendo moléstias como a cólera, a febre tifóide, a peste bubônica e a febre amarela. A série terá, ao todo, 21 volumes. O lançamento reúne os livros Primeiros trabalhos: Alemanha, Suíça e Brasil (1878-1885); Hanseníase; Dermatologia & micologia; e um suplemento com glossário, índices e resumos. O trabalho foi organizado pelo historiador Jaime Benchimol e pela bióloga e historiadora Magali Romero Sá, ambos da Fundação Oswaldo Cruz.

tes geoestacionários, cuja tecnologia de produção a Rússia detém. A órbita geoestacionária, que fica na linha do Equador a mais 35 mil quilômetros de altitude, é estratégica para diversas aplicações. Mais pesados que outros satélites, os geoestacionários ficam voltados para o mesmo ponto da su-

Eles se debruçaram sobre o arquivo pessoal do cientista, reunido, décadas atrás, pelos filhos Bertha e Gualter Lutz. Sob a guarda do Museu Nacional, o acervo de Adolpho Lutz é constituído por relatórios, protocolos de necrópsias, receitas, anotações e quase 4 mil cartas. A correspondência será reunida

24 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

perfície da Terra e são apropriados para fazer controle de vôos e de desmatamento, além de ter uso em telecomunicações. Há pelo menos três possibilidades na parceria: a compra de um satélite russo, o aluguel ou o desenvolvimento no país com transferência da tecnologia. Os russos pode-

em cinco volumes da série, com lançamento previsto para 2005. •

■ Intercâmbio trará norte-americanos A FAPESP e a Comissão para o Intercâmbio Educacional entre os Estados Unidos da América e o Brasil (Comissão

riam cooperar, ainda, n; produção de um foguete capaz de lançar o satélite os lançadores da Ucrânia, país com que o Brasil também tem celebrado parcerias, não comportariam esse tipo de satélite. As discussões preliminares ocorreram em outubro, em Moscou, na visita que o vice-presidente da República, José Alencar, fez ao primeiro-ministro da Federação Russa, Mikhail Fradkóv. Os açor dos dão prosseguimento dois outros que Brasil e Rússia firmaram em 1997, um sobre cooperação em ciência e tecnologia, outro sobre o uso do espaço para fins pacíficos. •

Fullbright) firmaram um memorando de entendimento sobre a participação de professores e pesquisadores norte-americanos em projetos temáticos e/ou nos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Os principais objetivos do programa são destacar a atuação do Brasil e do Estado de São Paulo na ciência e a tecnologia no meio de pesquisa norte-americano e estabelecer novas linhas de pesquisa. As duas organizações deverão selecionar, anualmente, em competição aberta, até oito professores ou pesquisadores norte-americanos de excelência para participar de investigações em projetos temáticos ou nos Cepid, por um período de dois a quatro meses. •


■ A redescoberta do rio Amazonas Em julho de 2005, um grupo de 52 pesquisadores do Brasil e outros nove países sul-americanos partirão da nascente da bacia do rio Amazonas, nos Andes peruanos, para cumprir, em quatro meses e meio, uma expedição até a foz, no oceano Atlântico. A viagem será feita por terra e pela água, com apoio de caminhões, um barco com balsa, caiaques, animais de carga e até um helicóptero. O objetivo é medir a extensão do rio - sistemas de georreferenciamento sugerem um tamanho maior do que o oficial. Também se buscará avaliar até que ponto as mudanças climáticas estão alterando as condições de degelo dos Andes e de chuva na bacia do Amazonas e, com isso, modificando o perfil de sedimentos lançados no curso d'água. A equipe contará com geólogos, geógrafos, biólogos e até um arqueólogo. A Expedição Andes-Amazonas é uma iniciativa da Organização Sócio-Ambiental e Expedições Científicas, com o apoio da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, que reúne oito países da região, e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa),

universidades federais do Amazonas e do Acre, entre outros. Os resultados da viagem serão convertidos em vídeos, livros e uma exposição. •

■ Hegemonia feminina As mulheres monopolizaram o 20° Prêmio Jovem Cientista, cujo tema foi a busca de soluções para a fome. Florencia Olivera, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, venceu a categoria Graduados. Ela desenvolveu uma forma de conservação da batata por meio de um bactericida. O segundo lugar foi de Cynthia Ditchfield, da Escola Politécnica da USP, com um projeto sobre produção de purê a partir de bananas rejeitadas

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para comercialização. O terceiro lugar coube a Priscila Rangel, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, com um estudo sobre uma promissora espécie de arroz. A hegemonia feminina se repetiu na categoria Estudantes. Venceram Marcela Chiumarelli, da Universidade Estadual de Cam-

pinas, Danielle Lima e Pollyanna Rangel, da Universidade Federal de Viçosa. Na categoria Cientista do Futuro, disputada por alunos do ensino médio, os destaques foram Magno Santos, de Montes Claros (MG), Danielle Pereira, de Recife (PE), e Ronaldo Brito, de Caucaia (CE). •

Muito além do caranguejo A Embrapa Meio-Norte, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária no Piauí, vai implementar um projeto para o desenvolvimento sustentável de uma das comunidades mais miseráveis do país: os catado-

res de caranguejo de Carnaubeiras, no delta do rio Parnaíba. O povoado pertence ao município de Araioses, no Maranhão, que ostenta o quinto pior índice de Desenvolvimento Humano do país. Em parceria com o Ibama, a Universidade Federal do Piauí e organizações nãogovernamentais, a Embrapa propõe, entre outras ações, a introdução de sistemas de fabricação de mel de abelhas nativas; de agricultura familiar e de beneficiamento do caranguejo. O objetivo é gerar renda, melhorar o estado nutricional de 553 famílias beneficiadas e criar atividades produtivas opcionais que tornem sustentável a pesca do caranguejo. •

PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 • 25


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA PUBLICAÇÕES

^ Vitrine da

ciência ibero-americana Rede Sei ELO atinge a marca de 200 títulos e consolida modelo de acesso livre a artigos on-line CLAUDIA IZIQUE

A Rede SciELO, um sistema de publicação eletrôI^L nica de revistas científicas ibero-americanas LJI de acesso aberto, comemorou a marca de i ^L 200 títulos num encontro em Mérida, no ■A. ^^^ México, em outubro. Representantes da rede em oito países atestaram o sucesso desse modelo, que ampliou a visibilidade da ciência e o número de citações de artigos de pesquisadores e ainda contribuiu para melhorar a qualidade das revistas. A meta agora é consolidar a rede por meio da incorporação de publicações de outros países e analisar a possibilidade de desenvolver projeto de uma revista científica com artigos de todas as áreas do conhecimento, nos moldes da norte-americana Science e da inglesa Nature. Criada no Brasil em 1996, por iniciativa da FAPESP e implantada em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) e instituições nacionais e internacionais ligadas à comunicação científica, o SciELO se consolidou como uma solução eficiente para a projeção da pesquisa dos países em desenvolvimento. Os artigos publicados nas 131 revistas brasileiras na base SciELO, por exemplo, registram mensalmente cerca de 1 milhão de acessos e os artigos publicados em 48 títulos chilenos, algo em torno de 500 mil consultas por mês. "O modelo de acesso aberto mostrou-se ideal para promover a produção científica nos países em desenvolvimento", avalia Abel Parker, diretor da Bireme. O número de acessos cresceu significativamente a partir deste ano, depois que o site de busca Google passou a indexar páginas do Scielo . A Rede SciELO iniciou sua operação com publicações brasileiras, mas evoluiu para incorporar revistas ibero-americanos graças à visão internacionalista de Parker, lembra José Fernando Perez, diretor científico da 26 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105



FAPESP. "O sucesso seria tanto maior quanto mais países pudessem ser envolvidos", argumenta. Hoje, além do Brasil e Chile, a Rede SciELO cobre Cuba, com 14 revistas, e Espanha, com 18, e ainda reúne coleções de revistas de saúde pública cujos artigos, em setembro, receberam mais de 172 mil consultas. Na reunião do México ficou claro o potencial de expansão da rede. Estiveram presentes ao encontro 52 editores de revistas científicas de países onde o sistema já chegou ou que deverá ser implantado: Argentina, Colômbia, México, Peru e Venezuela. "O trabalho de integração latino-americana ficou documentado no México", sublinhou Perez, que esteve presente no encontro. Na avaliação de Anna Maria Prat, assessora da presidência da Comissão Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (Conicyt), no Chile, o SciELO teve forte impacto nas políticas de ciência e tecnologia de países latino-americanos. O seu país, ela contou, já iniciou a transferência e a capacitação da metodologia SciELO para as universidades que desejarem publicar suas próprias revistas, criando assim uma rede nacional de informação científica. Os editores chilenos, acrescentou, estão entusiasmados com o início do sistema que lhes facilitará, num futuro próximo, a publicação de artigos tão logo eles sejam aceitos pelas revistas. Anna Maria comentou, ainda, que está em andamento um projeto em parceria com o Institut de Linformation Scientifique et Technique (Inist), da França, que prevê a criação de um sííe-espelho do SciELO naquele país. Hooman Momen, editor do Boletim da Organização Mundial da Saúde, de Genebra, na Suíça, afirmou que o SciELO é "um projeto vitorioso" e destacou a qualidade das revistas, que, na sua avaliação, apresentaram melhorias tanto nos aspectos formais como na visibilidade e acesso. Propôs, à guisa de promoção e marketing, que sejam difundidos tanto para os editores como para a mídia dos vários países os dados já existentes na Rede SciELO. Gladys Faba-Beaumont, diretora do Centro de Informações para Decisões de Saúde, do Instituto Nacional de Saú28 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

de Pública do México, comentou que começou a valorizar o SciELO na condição de usuária. Definiu a rede como um conceito editorial, já que as linhas editoriais do SciELO, se bem difundidas nos países, darão legitimidade à produção científica da região. Publicações indexadas - O vigor da atividade de pesquisa de um país é medido pelo número de artigos publicados em periódicos científicos internacionais indexados e pelo impacto das publicações avaliado pelo número de citações. Os indicadores do Institute for Scientific Information (ISI) são os mais prestigiados na comunidade científica internacional. Mas nos cerca de 8 mil periódicos indexados na base do ISI, no máximo 80 publicações são latino-americanas. A grande maioria dos títulos se refere a publicações dos Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Canadá e Holanda. No conjunto dos periódicos latino-americanos, o Brasil até que tem uma posição de destaque, com cerca de 20 revistas no ISI, todas elas igualmente indexadas na base SciELO, de acordo com Rogério Meneghini, coordenador do Núcleo de Estudos de Ciência e Tecnologia do

SciELO, que, junto com Abel Parker, idealizou a rede. A tímida participação da pesquisa latino-americana no ISI, ante o número de periódicos de qualidades indexadas na base SciELO, sugere, na avaliação de Meneghini, que existe, de fato, uma ciência escondida nos países em desenvolvimento. E é exatamente essa ciência que o SciELO pretende expor. "A nossa meta é dobrar o número de títulos latino-americanos na base ISI. Pretendemos fazer um dossiê demonstrando que na base SciELO existem revistas melhores do que as muitas que estão no ISI. Já estamos relacionando as mais interessantes." Acesso aberto - O sucesso do SciELO se deve, em grande parte, ao fato de oferecer acesso aberto às publicações indexadas em sua base. A rede é financiada pela FAPESP, executada pela Bireme e conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mas, na grande maioria dos países, a consulta é paga. "As empresas que publicam revistas científicas são um dos empreendimentos mais rentáveis do mundo",


na, Chile e México, responsáveis por 90% dos artigos publicados em 2001. A agência observou também que os pesquisadores desses países passaram a publicar mais em periódicos de prestígio como a Nature e Science. "Trata-se de uma tendência que indica que o antigo desejo de ter uma maior diversidade geográfica em relação à produção científica está finalmente sendo atingido", disse Arden Bement, diretor da NSF, em comunicado da instituição. Entre os países latino-americanos, o maior aumento ocorreu no Brasil, onde o número de artigos publicados por pesquisadores quadruplicou no período. Levando-se em conta a produção per capita, Argentina e Chile produzem mais que o conjunto de países, com uma média de 70 artigos por cada 1 milhão de habitantes de 1999 a 2001. No Brasil, a média per capita é de 39 artigos para 1 milhão de habitantes.

afirma Meneghini. Nos Estados Unidos, por exemplo, o autor do artigo paga o custo da inserção, assina o copyright e as editoras ainda cobram a assinatura do leitor e das bibliotecas. "Existe um clima de descontentamento na comunidade científica contra o acesso pago", conta Meneghini. No início de novembro, ele deve participar de uma reunião em Paris, na França, na condição de representante da Academia Brasileira de Ciências. O encontro, promovido pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, tem como pauta a forma de acesso às publicações eletrônicas. "A idéia é que se pague a inserção, cujo valor está previsto no financiamento da pesquisa. Quem acessa não paga. Também se considera a possibilidade de buscar patrocínio", ele adianta. Na maioria dos países, as agências de fomento bancam os gastos com a publicação. Mas será necessário encontrar solução para o caso em que os cientistas não contam com esse tipo de financiamento. "Esse tema será debatido em Paris. Existe a possibilidade de se fazer um fundo para patrocinar publicações em países onde o pesquisador não conta com esse apoio", diz.

Produção triplicada NSF registra aumento no número de publicações latino-americanas O número de artigos científicos publicados por pesquisadores de países latino-americanos saltou de 5,6 mü em 1988 para 16,3 mil em 2001, de acordo com estudo da National Science Foundation (NSF) divulgado em outubro, com base em tabulações especiais e informações do ISI; Science and Social Science Citation Indexes; CHI Research, Inc; além de dados do Banco Mundial. Esse crescimento, de 191%, é muito superior ao verificado em outras regiões e em países em desenvolvimento, como o Norte da África (86%), Ásia (133%) ou o Leste Europeu, Rússia e ex-repúblicas soviéticas (queda de 19%). A NSF constatou que o bom desempenho da América Latina se concentrou em quatro países: Brasil, Argenti-

A maior produção se conceni^L trou na área de engenharia L^^ e tecnologia, seguida por È W biologia e saúde em ge.^L. -A_ ral. As áreas de ciências sociais apresentaram taxa de crescimento abaixo da média. Junto com a produção científica, também cresceram as citações de artigos de autores latino-americanos. De 1988 a 2001, o número de citações para a literatura da região triplicou. No período, a América Latina saltou de 14% para 20% entre os blocos de países em desenvolvimento. "Esse aumento poderia se explicar por uma maior tendência dos autores em citar artigos de pesquisadores de seus próprios países. Mas os dados obtidos apontam que a maior parte do crescimento deriva de trabalhos produzidos em outras regiões que citam os artigos latino-americanos", analisa Derek Hill, da Divisão de Estatísticas Científicas da NSF e coordenador do estudo. A agência do governo norte-americano também constatou um aumento significativo no número de autores latino-americanos colaborando com pesquisadores de outras regiões. Em 1988 23% da produção da região era também assinada por cientistas estrangeiros. Já em 2001 esse total subiu para 43%. Os brasileiros colaboraram com colegas de 46 países, em 1998, e em 2001 essa parceria saltou para 103. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 29


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA DIVULGAÇÃO

Aventura

do conhecimento

Mais de 1.800 eventos marcam a Semana Nacional de Ciência eTecnologia

Na noite do dia 27 de outubro os brasileiros olharam para o céu para acompanhar o eclipse lunar. Esse experimento coletivo de observação astronômica encerrou a primeira Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. No Memorial Maria Aragão, no Maranhão, mais de 2 mil pessoas puderam ver a sombra da Terra projetada na Lua em oito pontos de observação implantados pela Associação dos Astrônomos Amadores do Maranhão. No Marco Zero, em Macapá, 4 mil pessoas assistiram ao fenômeno utilizando telescópio, binóculos e, com a ajuda do céu claro, até a olho nu. O experimento, conhecido como "O Brasil olha para o céu", repetiu-se no Planetário do Ibirapuera, em São Paulo; no Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro; na Universidade Federal do Espírito Santo; e até na aldeia guarani Piraquara, Curitiba. A semana foi um sucesso, na avaliação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), responsável pela organização. Foram mais de 1.800 eventos em 252 municípios brasileiros, entre os dias 18 e 22 de outubro. Pelo menos 300 universidades, laboratórios, institutos de pesquisa e museus abriram suas portas ao público. Cerca de 130 mil pessoas, nas contas do MCT, acompanharam palestras, participaram de oficinas e visitas monitoradas em que se fundiam ciência, cultura e arte. O evento, criado por decreto presidencial em junho, teve como objetivo divulgar e popularizar a ciência e deverá se repetir todos os anos, sempre no mês de outubro. "Vamos avaliar os erros, corrigir falhas e 30 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

ampliar o evento tendo como meta mobilizar mil cidades brasileiras no ano que vem", diz Ildeu de Camargo Moreira, diretor do Departamento de Popularização e Divulgação da Ciência, da Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social do MCT. Muitas dessas atividades foram realizadas em escolas e locais públicos. Pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e de Ciências do Estado do Rio de Janeiro, da Fundação Oswaldo Cruz, do Instituto Vital Brasil e do Museu de Astronomia e Ciências Afins, por exemplo, literalmente acamparam na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Crianças, jovens e adultos fizeram fila para aprender a extrair moléculas de DNA de um morango, ter lições de eletricidade e aprender um pouco sobre movimento e velocidade. No dia 23, centenas de pessoas fizeram uma viagem de trem entre a Central do Brasil e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, acompanhadas pelo astronauta brasileiro Marcos César Pontes. Enquanto isso, um grupo de estudantes percorria a Trilha Histórica no Instituto de Pesquisa Jardim Botânico, para conhecer desde os prédios históricos da época do Império até as coleções botânicas representativas dos ecossistemas brasileiros. Futebol de robôs - No Recife, em Pernambuco, centenas de pessoas foram atraídas ao Marco Zero para ver a réplica do foguete Sonda II, construído numa proporção três vezes menor que o original, e conhecer robôs inteligentes feitos a partir de carcaças de eletroeletrônicos, entre outras novidades. A mostra contou com o apoio de 41 ins-


Experimentos astronômicos e espetáculos teatrais foram o destaque da I Semana Nacional de Ciência e Tecnologia

tituições entre universidades e fundações. No Acre, um seminário mostrou como a Ciência e Tecnologia pode auxiliar o agronegócio, e no Tocantins a semana foi dedicada ao estudo da matemática. No Amazonas, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) mobilizou pesquisadores, professores e estudantes em atividades de educação indígena, por meio de seminários itinerantes em vários municípios ribeirinhos. Bauru, em São Paulo, realizou a segunda competição internacional de futebol de robô, promovida pelo Institu-

te of Electrical and Electronics Engineers, dos Estados Unidos. Participaram do evento 26 equipes de quatro países. A equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) venceu todas as partidas que disputou, tornando-se campeã invicta da competição. FAPESRIndica - A FAPESP participou da coordenação da primeira Semana de Ciência e Tecnologia em São Paulo. "Pudemos medir a importância do evento nos diferentes núcleos e centros de pesquisa", disse Carlos Vogt, presidente da Fundação.

Em paralelo às atividades promovidas pelos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), a FAPESP lançou, no dia 18 de outubro, o FAPESP. Indica, um site sem equivalente no Brasil que deverá ajudar pesquisadores, gestores e outros interessados na consulta de informações para a produção e análise de indicadores de ciência, tecnologia e inovação (CT&I). O site reúne sistemas de informação especializados nacionais e internacionais. O novo serviço abrange dezenas de países, divididos regionalmente ou em blocos, como a União Européia (UE) ou a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE)."Essa abrangência internacional representa um passo importante para a organização de um conjunto de informações relativas a outros países e cenários que permitirão uma visão mais crítica para o desenvolvimento do setor no Brasil", diz Vogt. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 31


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

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BIOSSEGURANÇA

Mais um mund Senado autoriza pesquisa com células-trancoe restabelece poderes da CTNBio

CLAUDIA IZIQUE

Depois de oito meses de discussão, um amplo acordo de lideranças garantiu a aprovação no Senado Federal, por 53 votos a 2, do projeto de lei de Biossegurança. O substitutivo do senador Ney Suassuna (PMDB-PB) modifica o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados e autoriza o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro - desde que inviáveis para implantação ou congelados há três anos ou mais -, mas mantém a proibição da clonagem terapêutica. As mudanças obrigam a que o projeto volte para a Câmara, para nova votação, antes de ser sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na Câmara, o texto não pode ser alterado. Os deputados poderão apenas acatar ou rejeitar integralmente o substitutivo de Suassuna. No caso de rejeição, voltaria a valer o polêmico projeto do deputado Renildo Calheiros (PCdoB/PE), aprovado em fevereiro. Os cientistas comemoraram a decisão do Senado. "Foi um grande avanço", disse Patrícia Pranke, especialista em células-tronco umbilicais das faculdades de Farmácia e de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 32 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

(UFRGS). Eles prefeririam que também tivessem obtido autorização para avançar nas investigações com a clonagem terapêutica. "Mas esse é um procedimento que ainda vai requerer muita pesquisa e enfrenta algumas limitações", conforma-se Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) mantidos pela FAPESP. As pesquisas com célulastronco, ao contrário, já estão bastante avançadas, garante Mayana. Os cientistas, ela afirmou, estão à disposição dos deputados para participar de audiência pública e, a exemplo de que fizeram no Senado antes da votação da lei, esclarecer eventuais dúvidas sobre as implicações e benefícios das pesquisas. Comissão técnica - O projeto aprovado pelo Senado também restabelece parte dos poderes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) retirados pelo projeto da Câmara. No novo texto, a CTNBio volta a ter poderes para aprovar não só as pesquisas como também o uso comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs). A Agência Nacional de Vigi-

lância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama) poderão contestar a decisão da comissão no que se refere à segurança alimentar ou aos impactos ao meio ambiente provocados pelo plantio comercial dos transgênicos e apresentar recursos ao Conselho Nacional de Biossegurança, composto por 11 ministros."Õ texto é melhor que a legislação atual, a lei 8.974, de 1995", compara Reginaldo Minare, advogado e especialista em biossegurança. Na avaliação de Minare, um dos principais avanços do projeto está no seu artigo 36, que modifica a Lei Ambiental (6.938/81), eliminando a afirmação, que ele considera "dogmática", de que qualquer introdução de espécie geneticamente modificada constitui atividade potencialmente poluidora, o que obrigava a realização de licenciamento ambiental e estudo de impacto ambiental antes da sua utilização comercial. O projeto regulamenta o plantio de transgênicos no Brasil. Mas a demora na aprovação da lei obrigou o governo a editar medida provisória liberando o plantio e a comercialização da safra de soja de 2005. O texto libera a venda da soja até 31 de janeiro de 2006. •


■ POLíTICA CIENTIFICA

E TECNOLóGICA

BOLSAS

Apoio reforçado Programa Novas Fronteiras ampliará estágios no exterior

Bolsas de pós-doutoramento concedidas pela FAPESP Ano

A FAPESP lançou o Programa i^L Novas Fronteiras para apoiar L^^ estágios de longa duração È ^ de pesquisadores em cen^L -^L. tros de excelência no exterior, em áreas de conhecimento ainda não consolidadas no Estado de São Paulo. Por essa via, a Fundação quer ampliar a política de pós-doutoramento, definida em 2001. Por meio do Novas Fronteiras, serão concedidas anualmente até 20 bolsas - por um período de 12 meses e no valor de US$ 25 mil anual - a pesquisadores que tenham obtido seu doutorado há até dez anos e tenham vínculo empregatício firme com instituições de pesquisa paulistas. Desde 2001, as bolsas de pesquisa no exterior tinham duração máxima de cinco meses. Essas novas bolsas não incluem benefícios suplementares para cônjuges e filhos, e poderão ser complementadas por outras modalidades de apoio eventualmente obtidas em agências e instituições estrangeiras. O custo anual do programa está orçado em US$ 500 mil. Critérios decisivos para a concessão de bolsas serão a qualidade do projeto de pesquisa, a relevância da implantação da área de investigação no estado, o grau de excelência do centro em que se realizará o estágio e o histórico científico

Número de bolsas vigentes

Total de desembolsos (R$)

2000

54

R$ 18.700.442,00

2001

7414

R$ 26.335.647,00

2002

86D2

R$ 28.298.992,00

2003

8415

R$ 28.882.025,00

2004 (até 30/09)

8034

e acadêmico do candidato. Serão analisadas apenas as solicitações de candidato cujas instituições se comprometerem, expressa e formalmente, a conceder afastamento com vencimento durante o período do estágio e a garantir a continuidade de sua linha de pesquisa. Núcleos de excelência - O Novas Fronteiras flexibiliza a política de apoio ao pós-doutoramento adotada pela FAPESP, em 2001, com o objetivo de propiciar aos pesquisadores formação e aperfeiçoamento de qualidade e multiplicar os núcleos de excelência em pesquisa no estado. A intenção era estimular a inserção dos recém-doutores nos grupos de pesquisa paulistas e incentivar a realização de estágios de aperfeiçoamento no exterior articulados com o desenvolvimento de projetos de pesquisa em São Paulo. Para tanto, a FAPESP aumentou o valor das bolsas de pós-doutoramento

no Brasil e estendeu o seu prazo de concessão de dois para três anos e, em alguns casos, até quatro anos. Foram priorizadas as bolsas vinculadas a projetos temáticos, aos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), a programas como Jovens Pesquisadores, Genoma e Biota. O resultado foi que o número de bolsas de pós-doutoramento saltou de 546, em 2000, para 845, em 2003, concentradas em grupos de excelência. Levando em conta a importância do intercâmbio dos jovens doutores com grupos de pesquisa no exterior, a FAPESP não deixou de financiar estágios de pesquisa no exterior, de curta e média duração. No entanto, a comunidade científica paulista passou a reivindicar o apoio a estágios no exterior de longa duração, nas áreas de fronteira ainda não bem implantadas no estado. Para atender a essa demanda foi criado o programa Novas Fronteiras. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 33


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

INOVAÇÃO

Às portas do mercado Empresas apoiadas pelo PI PE contarão com a Finep para consolidar negócios O Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), financiado pela FAPESP, inicia a sua fase III. Um acordo firmado entre a Fundação e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em abril, permitirá que pelo menos 40 empresas do PIPE tenham acesso aos recursos do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para iniciar o processo de comercialização de produtos desenvolvidos nas fases I e II. O valor máximo do orçamento de cada projeto será de R$ 500 mil. O prazo para inscrição de empresas no programa Pappe-Pipe III termina no dia 16 de novembro e a contratação de projetos será feita em dezembro de 2004. O Pappe, criado pelo governo federal no ano passado para apoiar a inovação em empresas de base tecnológica, inspirou-se no modelo do PIPE. Os recursos destinados ao programa federal são repassados pela Finep às Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) dos diversos estados para financiar a pesquisa e desenvolvimento (P&D) dentro das empresas. Na fase I, a exemplo do PIPE, o 34 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

pesquisador deve apresentar seu plano de trabalho e, na fase II, definir um plano de negócios e desenvolver a pesquisa. Em São Paulo, onde a FAPESP já financia as duas primeiras fases do processo de inovação empresarial, ficou acertado que a Finep apoiaria a terceira fase, ou seja, a engenharia do produto e a conquista do mercado. "A Finep aceitou a nossa proposta de utilizar os recursos do Pappe para financiar a fase III do PIPE. É preciso respeitar a especificidade de cada região do país, sem criar uma camisa-de-força com um modelo único. Não faria sentido replicar o mesmo programa em São Paulo", explica José Fernando Perez, diretor científico da Fundação. Os recursos da Finep, Perez reconhece, não serão suficientes para que as empresas se posicionem no mercado. Poderão, no entanto, funcionar como um capital inicial para o desenvolvimento do novo negócio. "Para ganhar o mercado, seriam necessários de R$ 3 milhões a R$ 5 milhões por empresa", diz, ressaltando que esse capital não pode ser obtido no âmbito do MCT, mas no do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), mais

precisamente, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). "Neste caso, os recursos não deveriam ter o caráter de empréstimos, mas ser investidos na forma de participação acionária", sugere. Por meio do programa Pappe-Pipe III, a FAPESP e a Finep apoiarão, por um período de dois anos, empresas do PIPE que já tenham encaminhado ou obtido aprovação do relatório final de conclusão do primeiro ano da fase II. Na avaliação das propostas serão considerados o estágio de desenvolvimento da inovação, o projeto de desenvolvimento do produto e o plano de negócio para comercialização da inovação. "Vamos lidar com critérios de mercado", observa Perez. A parceria com a Finep é a segunda realizada pela FAPESP no âmbito do PIPE. A primeira, o PIPE Empreendedor, firmada com o Instituto Empreender Endeavor e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP), oferece ferramentas para a promoção de um rápido desenvolvimento empresarial dos participantes do programa por meio de curso de capacitação em gestão. •


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

HOMENAGEM

Engajamento incansável Carolina Bori defendeu bandeiras essenciais para a psicologia e a democratização da ciência

A inquietação permag^L nente e o fôlego ^^^ na defesa das inú/% meras causas em ^L Jm> que acreditou foram traços da personalidade de Carolina Bori que deixaram marcas na profissão e na formação do psicólogo e moldaram os rumos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade que ela presidiu nos anos 1980. A professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), que morreu aos 80 anos no dia 5 de outubro, empenhou-se decisivamente na criação da Sociedade Brasileira de Psicologia, do Programa de Pósgraduação do Instituto de Psicologia e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. Ajudou a implantar os cursos da disciplina na Unesp de Rio Claro, na Universidade de Brasília e na Federal de São Carlos. Também liderou o movimento que culminou com a regulamentação da profissão de psicólogo - era seu o registro n° 1 do conselho da categoria. Filha de italianos, nascida na capital paulista, Carolina Bori graduou-se em pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, onde em seguida fez especialização em psicologia. O mestrado ela obteve na Graduate Faculty New School for Social Research, nos Estados Unidos, e o doutorado, na USP. Pioneira na pesquisa da psicologia experimental no Brasil, também trouxe ao país as idéias do americano Fred Keller, segundo as quais a análise experimen-

Carolina é homenageada na reunião da SBPC, em julho

tal do comportamento poderia fundamentar uma nova forma de ensinar. Surgiu a personalização do ensino, método baseado no planejamento rigoroso dos passos da aprendizagem, com o objetivo de calibrar o ritmo de trabalho às dificuldades e conquistas apresentadas pelo estudante. Método científico - Sua admissão como membro da SBPC, em 1969, foi o coroamento de uma luta para consolidar a psicologia no seio da universidade, nas suas palavras "uma psicologia baseada no método científico e na experimentação, como as demais ciências". Para chegar lá, enfrentou preconceitos. "Nos chamavam de positivistas", disse, em depoimento ao livro Cientistas do Brasil, de 1998. "Éramos rigorosas ao coletar os dados e mais rigoro-

sas ainda em analisá-los. A tendência, no entanto, era outra: muito mais especulativa e interpretativa. Essa é a imagem que ainda se passa da psicologia: o leigo não tem contato com o conhecimento científico, mas é bombardeado de idéias vagas, que acabam formando uma mixórdia sem sentido", afirmou. Na SBPC, ela ampliou seu espectro de preocupações, passando também a defender a ciência como geradora de desenvolvimento e como antídoto às disparidades sociais. Presidiu a entidade entre 1986 e 1989 e permaneceu como presidente de honra até o fim da vida. Incentivou iniciativas para a divulgação da ciência, como a realização de programas de rádio e de conferências, a criação do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), da Associação Interciência e da Estação Ciência, da USP. "É preciso melhorar a vida das pessoas, não apenas em termos de tornar os produtos gerados pela ciência disponíveis, mas também torná-las mais críticas em relação ao mundo em que vivem", disse. "O fato de uma parcela da população viver sem informação e distante do conhecimento científico é um absurdo, assim como é um absurdo o despreparo dos professores, que seriam os agentes para modificar essa situação." A professora deu lastro ao engajamento da comunidade científica em assuntos políticos no ocaso da ditadura militar. A defesa dos direitos humanos e a campanha contra o programa nuclear foram algumas dessas bandeiras. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 35


CIÊNCIA

LABORATóRIO

MUNDO

Agricultores chineses semeiam prejuízos Nos últimos dez anos, o governo chinês incentivou os gricultores a trocarem culturas tradicionais - em esecial de arroz - por legufrutas, que oferecem íor retorno financeiro. Os produtores converteram m centros de horticultura uma área de 13 milhões de hectares, equivalente à da nglaterra, mas as conseqüências agora preocupam: em cinco anos, o solo nas egiões produtoras de frutas e legumes foi tão alterado que está se tornando estéril: acidez aumentou, o nível e nitrogênio subiu quatro

=

■ 0 gel de um protozoário Pesquisadores europeus descobriram detalhes importantes a respeito do mecanismo de transmissão da leishmaniose cutânea, uma das formas de uma das mais sérias doenças tropicais do planeta. Em um estudo publicado na Nature e divulgado pelo London Press Service, uma equipe da Universidade de Liverpool, Inglaterra, em conjunto com a Universidade de Dundee, Escócia, e o Instituto Max Planck de Biologia, Alemanha, demonstrou que o protozoário Leishmania mexicana produz uma substância similar a um gel que o acompanha quando ele passa do inseto Lutzomyia longipalpis para os seres humanos e outros animais. O principal componente desse gel, o pro-

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Arrozal: substituído por legumes e frutas

vezes e o de fósforo, dez. As bactérias que ajudam no crescimento das plantas quase desapareceram do

teofosfoglicano filamentoso (fPPG), faz com que o inseto não seja capaz de se nutrir adequadamente do sangue de uma única vítima e procure outras, favorecendo assim a transmissão do parasita. Esse trabalho abre a perspectiva de conter a transmissão da leishmaniose por meio de medicamentos que bloqueiem a ação desse gel. •

Arte peruana: leishmaniose

38 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

solo e algumas plantas apresentam frutos deformados, de acordo com uma série de estudos publicados na

■ As táticas sexuais de homens e mulheres Os homens podem até contar vantagem sobre as conquistas amorosas, mas sem argumentos científicos. A equipe de Michael Hammer, da Universidade do Arizona, Estados Unidos, após analisar amostras de sangue de 73 indivíduos de três populações - da África, da Mongólia e da Oceania -, constatou que o DNA mitocondrial, transmitido pelas mães aos filhos de ambos os sexos, apresentava o dobro da variabilidade do material genético do cromossomo Y, que apenas os homens herdam de seus pais. É uma indicação de que as mulheres passam seus genes às gerações seguintes com o dobro da freqüência que os homens. De outro modo: um pequeno número de homens contribui

Environmental Geochemistry and Health. Houve também uma queda de 20% na produção de grãos como arroz e trigo, insuficiente para alimentar o 1,2 bilhão de chineses. Agrônomos ocidentais acreditam que a causa dos problemas do solo não seja a cultura de frutas e legumes, mas o uso excessivo de fertilizantes, que ameaça as escassas reservas de água doce do país {NewScientist). A produção agrícola chinesa eqüivale à norte-americana, mas o consumo de fertilizantes é duas vezes maior. •

com a maior parte dos cromossomos Y que asseguram a continuidade da linhagem masculina. Mas, segundo esse estudo, publicado em outubro na Molecular Biology and Evolution, o sucesso reprodutivo das mulheres não garante que seus genes cheguem tão longe quanto se pensava. Em outro trabalho, que saiu na Nature Genetics, Hammer verificou uma variabilidade bastante próxima no DNA mitocondrial e no cromossomo Y de 389 indivíduos de dez populações isoladas da África, da Europa, da Ásia e da Oceania. É um sinal de que em escalas geográficas regionais ou globais a contribuição genética masculina é muito próxima à feminina e a influência da migração das mulheres não é tão relevante. Estudos anteriores atribuíam às mulheres taxas de migração até oito vezes maio-


res, numa suposta decorrência de um costume comum a 70% das sociedades: a patrilocalidade, a prática de as esposas se mudarem com os maridos após o casamento. São poucos os homens que se reproduzem, mas eles chegam mais longe. •

■ Tumulto no interior da Terra Variam mais do que se pensava a densidade, a composição e a agitação da região mais interna do manto, a espessa camada de rochas entre a superfície e o núcleo da Terra. A base do manto, uma região de algumas centenas de quilômetros - a camada D" -, é provavelmente a parte mais exótica do interior da Terra, segundo o sismólogo Edward Garnero, da Universidade do Estado do Arizona (ASU). Garnero e outros geofísicos dos Estados Unidos e da Noruega exploraram a camada D" abaixo da América Central e do Caribe por meio das ondas sísmicas geradas por tremores de terra (Science, 8 de outubro). Os resultados revelam variações de até 20 graus na inclinação das ca-

madas do manto inferior, em distâncias relativamente curtas (centenas de quilômetros), que alteram a direção das vibrações das ondas sísmicas. Há sinais de impressionantes

mudanças de densidade em pontos relativamente próximos, indicando correntes e turbulências vigorosas causadas pelo calor vindo do núcleo, que misturam o material

mais frio que desce do manto e se acumula na camada D". Essa agitação ajuda a esfriar o planeta, cujo centro talvez seja tão quente quanto a superfície do Sol. •

A preocupante extinção de anfíbios Um dos mais antigos grupos de animais ainda existentes no planeta, os anfíbios estão desaparecendo a taxas jamais observadas, mesmo nas áreas destinadas à conservação. Um levantamento feito em cerca de 60 países e publicado na Science de 14 de outubro mostrou que quase um terço das 5.743 espécies conhecidas de anfíbios - sapos, rãs e salamandras encontra-se sob risco de extinção, situação bem mais grave que a das aves e mamíferos. O desaparecimento dos anfíbios está associado à poluição, à perda do hábitat ou à caça, mas falta uma causa evidente para o declínio de metade das espécies, encontradas sobre-

Atelopus varius: em declínio na Costa Rica e no Panamá

tudo na Austrália e nas regiões tropicais das Américas. Essa extinção acelerada afeta a sobrevivência dos répteis e das aves que se alimentam de anfíbios e gera um desequilíbrio ecológico, com o aumento de populações de insetos. "O fato de um terço dos anfí-

bios estar em queda acelerada nos diz que estamos caminhando rapidamente para uma potencial epidemia de extinções", disse ao jornal inglês The Independem Achim Steiner, diretor-geral da União Mundial para a Conserva (IUCN). -

PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 39


Continente gelado está mais quente Em quase 50 anos, a tempei eratura média na Antár-

■ Mais cães e gatos nas cidades Em toda campanha de vacinação contra a raiva é difícil saber com precisão quantos cães e gatos há nas cidades. Se o número de animais for subestimado, alguns não receberão vacina e aumentará o risco de infecção humana. O cálculo se baseia em dados da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Pasteur de São Paulo, que estimam haver um cão para cada 7 a 10 pessoas nas áreas urbanas. Em busca de dados mais precisos, veterinários da Universidade de São Paulo (USP) fizeram um levantamento em Taboão da Serra, na Região Metropolitana, e descobriram que essa proporção é um pouco maior. Inspecionaram 1.052 domicílios e viram que em Taboão há um cão para cinco habitantes e um gato para cada 30. "Essa metodologia ajudará a aproveitar melhor os recursos humanos e financeiros, tão escassos no serviço público municipal", afirma Ricardo Augusto Dias, da USP, um dos autores do estudo publicado na Revista de Saúde Pública. •

a subiu 1,1 °C. Pesquisadores da Universidade sad Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Laboratório de Ciências do Clima e do Ambiente da França nalisaram uma longa se% de registros mensais de ter temperatura, de 1947 a 1995, na ilha Rei George, onde fica a base brasileira. Nesse período, houve um aquecimento anual médio de 0,022 grau - o aumento maior ocorreu no inverno, que se tornou 1,9°C mais quente. É uma possível conseqüência do aumento da temperatura em todo o planeta, provocado pelo acúmulo de gás carbônico na atmosfera. Nessa região, a oeste do continente antártico, a temperatura do ar é regulada pela interação entre as correntes de ar quente vindas do norte e pelas placas de gelo marinho, que diminuíram de tamanho de centenas de metros a 1 quilômetro nesses 49 anos, segundo um estudo publicado na Pesquisa Antártica Brasileira. Essa elevação, porém, não parece suficiente para explicar o encolhimento entre 1956 e 2000 das geleiras situadas na ilha Rei George. A análise de 70 bacias de drenagem dessa região antártica indicou que houve maior redução das geleiras nas bacias do Almirantado, Rei George e Sherratt, de acordo com um estudo coordenado pelo glaciolo-

40 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

A Antártida e a estação Pólo Sul: viagem por terra ao extremo do planeta

gista Jefferson Cardia Simões, do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac) da UFRGS. No final de outubro, Simões iniciou sua 13a expedição à Antártida. Ele e o geógrafo Francisco Aquino, também do Nupac, acompanham 32 pesquisadores chilenos na primeira expedição por terra a atravessar todo o continente antártico até o Pólo Sul geográfico, o ponto extremo do hemisfério Sul. Em 1961, Rubens Vilella, da Universidade de

São Paulo, foi o primeiro brasileiro a chegar ao Pólo Sul, tendo feito parte do percurso de avião. Ao lado de 12 pesquisadores chilenos, Simões percorrerá 2.400 quilômetros de terrenos em que o ar é extremamente seco e as temperaturas chegam a 40°C negativos no verão. Ele pretende recolher amostras de gelo de dezenas de metros de profundidade, para analisar a alteração química da atmosfera nos últimos 300 anos. •


■ Saindo da terra com hora marcada Este ano as cigarras invadiram algumas cidades dos Estados Unidos. É um espetáculo que ocorre a cada 13 anos, no caso da Magicicada tredecim, e a cada 17 anos, no da Magicicada septendecim, duas espécies cujos ciclos de vida são os mais longos entre todos os insetos. A duração desses ciclos, 13 e 17 anos, são números primos, divisíveis apenas por um e por eles próprios. "Esse tipo de ciclo é uma conseqüência da evolução", diz o físico Paulo Campos, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Campos é o autor principal de um estudo publicado na Physical Review Letters que usou modelos matemáticos para investigar se haveria uma relação entre a evolução e o fato de a duração do ciclo ser um número primo. "Provavelmente por mutações, algumas espécies de cigarras desenvolveram períodos de incubação mais longos e assim escaparam da ação dos predadores", diz. Estudos anteriores supunham que o ciclo de vida coincidente com anos primos favoreceria às cigarras escaparem de seus predadores, com ciclos de reprodução distintos. Em parceria com físicos da Unicamp, Campos verificou que esse ciclo em anos primos prevalece mesmo que coincida com o de um predador que se alimente desses insetos. Segundo o estudo, talvez seja a abundância de cigarras que permita a sobrevivência dessas duas espécies. •

■ Corais nascidos em laboratório Biólogos do Museu Nacional e oceanógrafos da Universidade Federal de Pernambu-

Cigarras Magicicada septendecim: abundância a cada 17 anos favorece a sobrevivência

co estão comemorando. No início de outubro viram que deu certo a fecundação em laboratório de uma das espécies de coral-cérebro, exclusiva do litoral brasileiro, a Mussismilia harttii. É a primeira vez que se consegue reproduzir essa espécie de coral, que apresenta fecundação externa. O M. harttii libera suas células reprodutivas masculinas (espermatozóides) e femininas (ovócitos) na água. Só após chegarem à superfície os espermatozóides fecundam os ovócitos e geram os embriões, que nadam por dias e se transformam em larvas antes de se fixarem nas rochas. Integrantes do projeto Coral Vivo, que

planeja o repovoamento dos recifes de corais brasileiros, os pesquisadores do Museu Nacional já haviam conseguido reproduzir o coral-cérebro-pequeno (Favia grávida), de fecundação interna. •

■ Um risco para os artesãos Respirar pode ser perigoso para quem tem de polir, cortar e lapidar pedras contendo sílica, como são conhecidos os compostos de dióxido de silício (SÍO2). Em Petrópolis, Rio de Janeiro, 53,7% dos artesãos locais, que produzem peças principalmente para exportação, tomaram

0 início da reprodução do coral-cérebro: liberação do pacote de células reprodutivas femininas e masculinas (esfera amarela), que se separam antes da fecundação

consciência disso ao adquirir silicose, doença sem cura caracterizada pela formação de fibras nos pulmões. Seus sintomas, que aparecem nas fases mais avançadas da doença, são tosse e falta de ar. Também está associada à maior ocorrência de tuberculose. Pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, examinaram 42 escultores de pedra das 11 oficinas de artesanato da cidade, das quais 91% ultrapassaram os limites permitidos de concentração de poeira. "A prevalência é uma das mais altas já publicadas na literatura médica no Brasil", diz Vinícius Antão, um dos autores da pesquisa, detalhada no American Journal of Industrial Medicine. As causas desse problema seriam a pouca ventilação nas oficinas, a inalação de sílica após o corte de minerais e o não uso de equipamentos de proteção. "Como não existe tratamento para a silicose, a prevenção é fundamental", diz. Na época do estudo, entre janeiro de 2000 e junho de 2002, os pesquisadores da Uerj e do Incor aplicaram um programa educacional e 75% dos trabalhadores passaram a utilizar equipamento de proteção respiratória. •

PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 41


CIÊNCIA FÍSICA

Outra forma de ver a fusão

atômica Experimento redefine o conhecimento sobre a interação de núcleos, da qual resulta a energia do Sol

Com freqüência, a natureza se revela mais complexa do que os físicos gostariam e os obriga a repensar os modelos criados para explicá-la. Um experimento realizado na Bélgica com a participação de uma pesquisadora brasileira esclarece uma dúvida que inquietou os físicos nos últimos 20 anos: saber se um tipo especial de núcleo atômico - com partículas neutras (nêutrons) a mais e quase o dobro do tamanho normal - tornaria de dez a cem vezes mais fácil a fusão nuclear. Nesse fenômeno, os núcleos de dois átomos se unem e originam outro mais pesado, liberando quantidades elevadas de energia. Possivelmente o mais completo feito até agora, esse estudo revela que lançar um núcleo exótico a altíssimas velocidades contra o núcleo de outro átomo não aumenta a probabilidade de ambos se fundirem com o choque. Também não diminui. Essa supertrombada atômica gera outra forma de interação: o núcleo atômico comum recebe desse tipo de núcleo, chamado exótico, seus nêutrons excedentes, que provavelmente orbitavam ao seu redor formando uma espécie de nuvem, como informam os dados publicados em 14 de outubro na Nature.

Núcleo em expansão, óleo sobre tela de Iberê Camargo, 1965 42 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP105


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"Esse resultado não significa que retornamos à estaca zero, mas, ao contrário, saímos dela", afirma a física Alinka Lépine-Szily, da Universidade de São Paulo (USP), co-autora do estudo da Nature. "Os modelos teóricos que indicavam uma probabilidade maior de ocorrer fusão nuclear nesses casos terão de ser revistos, agora com base em informações detalhadas." Quem não se deixou apaixonar pela beleza da física pode até achar que essa descoberta não passa de detalhe. Mas não é. A fusão nuclear é a fonte de energia das estrelas como o Sol. No interior das estrelas, a fusão ocorre porque a força gravitacional exerce uma pressão que aproxima os núcleos uns dos outros. Parte da energia liberada escapa na forma de radiação e torna possível a vida na Terra. É também a fusão dos núcleos atômicos de elementos químicos mais leves e simples - como o hidrogênio, formado apenas por uma partícula de carga elétrica positiva (próton) - que origina os núcleos de átomos maiores e mais pesados, a exemplo do hélio, do lítio e do carbono. O interesse em compreender e dominar a fusão nuclear surgiu no início do século passado, quase 2.500 anos após o filósofo grego Leucipo postular que a matéria era constituída por átomos. No final da década de 1930, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o físico alemão Hans Bethe constatou que a fusão dos núcleos de dois átomos de hidrogênio liberava energia. Nessa fase de turbulência política e instabilidade econômica, esse fenômeno físico passou a ser visto como pos0 PROJETO Estudo dos núcleos exóticos com feixes radioativos produzidos no laboratório Pelletron-Linac MODALIDADE Projeto Temático e Pronex COORDENADORA ALINKA LéPINE-SZILY

- USP

INVESTIMENTO R$ 600.723, 48 (FAPESP e CNPq)

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sível fonte de energia alternativa aos combustíveis fósseis - em especial carvão e petróleo. A compreensão de como se comportam as partículas no núcleo dos átomos daria também ao ser humano um poder de destruição jamais visto, com o uso da fusão para a produção de poderosíssimas armas nucleares, como a bomba de hidrogênio ou bomba H —

Já usada em bombas de hidrogênio, a fusão nuclear pode se converter em uma possível aternativa aos combustíveis fósseis

já as bombas atômicas, como as lançadas sobre o Japão, são produzidas com base no fenômeno oposto, a fissão nuclear, em que o núcleo de átomos grandes se rompe, liberando energia. Na bomba H, a união dos núcleos de deutério - forma particular de hidrogênio cujo núcleo contém um próton e um nêutron - origina o elemento químico hélio, numa transformação semelhante à observada no interior do Sol. Ao se combinarem, esses núcleos perdem menos de 1% de sua massa, que se transforma em uma verdadeira montanha de energia, como prevê uma das mais conhecidas equações da física, desenvolvida por Albert Einstein, E — me2. Essa fórmula indica que a energia (E) produzida numa reação nuclear corresponde à massa (m) perdida multiplicada pela velocidade da luz (c) elevada ao quadrado - daí o valor ser tão elevado. Mas não é tão simples repetir por aqui o que se passa no coração das estrelas. No cerne desses corpos celestes a pressão gravitacional e as temperaturas são tão elevadas que núcleos atômicos distintos se aproximam a ponto de conseguir se unir, vencendo a força de re-

pulsão. Até é possível atingir de modo artificial temperaturas tão elevadas, mas o consumo de energia é tamanho que praticamente torna a fusão inviável do ponto de vista econômico - só para ter uma idéia, é necessário explodir uma bomba atômica para iniciar a fusão dos núcleos na bomba H. Em 1985, a equipe do físico Isao Tanihata, do Centro de Física Nuclear do Japão, notou que núcleos exóticos de lítio, chamados Lítio 11, contendo oito partículas neutras, eram mais volumosos do que seria de esperar. O motivo é que dois dos seus quatro nêutrons excedentes não permanecem coesos no núcleo, mas formam uma nuvem de nêutrons - na natureza, o núcleo do lítio contém apenas quatro nêutrons, além de três prótons. Nesses núcleos exóticos, que duram menos de um segundo depois de criados, algumas dessas partículas neutras permanecem mais afastadas, formando uma espécie de nuvem ou halo, como dizem os físicos. Logo se imaginou que, menos coesos, núcleos exóticos facilitariam a fusão. Além disso, por apresentarem uma massa maior, era de supor que a força de atração entre os núcleos passasse a atuar a distâncias maiores e, desse modo, compensasse a força que repele as partículas de mesma carga elétrica - positiva, no caso dos prótons dos núcleos atômicos, como os retratados pelo pintor gaúcho Iberê Camargo na obra da página anterior. 0 parodoxo do hélio 6 - Uma equipe internacional coordenada por Atsumasa Yoshida, do Japão, e Cosimo Signorini, da Itália, tentou comprovar a maior probabilidade da fusão de núcleos exóticos, em experimentos com Berílio 11 (com quatro prótons e sete nêutrons), mas os resultados foram negativos. Outro teste realizado por James Kolata, da Universidade Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos, revelou o oposto: a fusão nuclear ocorria mais facilmente com o hélio 6. Com esses resultados, era impossível chegar a uma conclusão. Na tentativa de desfazer a dúvida, Jean Luc Sida, da Comissão de Energia Atômica, na França, reuniu um grupo internacional - formado por físicos belgas, franceses, italianos, poloneses e brasileiros - para realizar um experimento mais completo e uma análise mais detalhada que as anteriores.


Utilizando o acelerador de partículas do Centro de Pesquisa de Cíclotron em Louvain-la-Neuve, os físicos lançaram núcleos de hélio 6 contra núcleos bem maiores, de urânio 238 - algo como sacar uma bola de tênis a velocidades próximas à da luz contra uma de futebol de campo. Se tudo desse certo e o hélio 6 facilitasse a fusão completa, deveriam surgir núcleos de um elemento químico ainda maior e mais pesado: o plutônio 244, com 94 pró tons e 150 nêutrons. Quase instantaneamente após a fusão, o plutônio sofreria fissão e se dividiria em dois outros elementos químicos, emitindo radiação. Ao mesmo tempo, como se verificou, haveria emissão de partículas alfa, formadas por dois prótons e dois nêutrons, idênticos ao núcleo de hélio 4, características das reações nucleares.

Representação de uma colisão atômica: nem sempre há fusão

Üsjsl

A análise inicial dos dados, fei/% ta por Riccardo Raabe, pri^^^ meiro autor do estudo da i m Nature, mostrou que real^L -^L. mente o hélio 6 havia provocado um número maior de fissões que o hélio 4. Mas essa era parte da informação. Faltava verificar o que havia se passado no início desse processo de transformações e disparado a fissão toda fusão nuclear é seguida de fissão, mas nem toda fissão é causada pela fusão de núcleos atômicos. Quando avaliou o caminho que as partículas alfa percorriam até os detectores e a energia com que ali chegavam, o grupo do qual participou Alinka constatou que elas resultavam da perda de dois nêutrons do hélio 6 - aqueles que formavam o halo - para o núcleo de urânio 238, que, em seguida, sofria fissão. Estava claro: em boa parte das colisões, em vez da fissão ocorria transferência de nêutrons. E o que aconteceu com o hélio 6? Na transferência, pode ter se rompido e liberado os dois nêutrons para o urânio, continuando a existir como hélio 4. Alinka pretende aprofundar na própria USP o estudo dessas reações que competem com a fusão. No início deste ano, começou a funcionar no Instituto de Física um equipamento que integra o projeto Ribras (sigla em inglês para feixes de íons radioativos) capaz de produzir feixes de núcleos exóticos (ver Pesquisa FAPESP n° 99, de maio de 2004). "Poderemos fazer aqui o que antes só era possível no exterior." • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 45


■ CIÊNCIA BIOQUÍMICA

Dois novos equipamentos põem o país na linha de frente do estudo da estrutura e da ação das proteínas

RICARDO ZORZETTO E RUTII HELENA BKI.

I ste ano o Prêmio Nobel de Química foi concedido a dois médicos e um bioquímico que descobriram como as células desmontam e reaproi veitam suas proteínas velhas ou defeituosas. Em 2002, um químico e um engenheiro dividiram outro Nobel de Química por terem aprimorado duas técnicas que permitiram a análise de proteínas, a espectrometria de massa, hoje essencial nessa área. Não é de estranhar que uma das mais altas honrarias da ciência no mundo tenha reconhecido recentemente, por duas vezes, o valor do estudo dessas moléculas abundantes em qualquer microorganismo, animal ou planta. Nos últimos cinco anos, após o seqüenciamento do genoma de quase 150 organismos, a identificação da estrutura, da função e dos modos de interação dessas moléculas, codificadas pelos genes, tornou-se uma prioridade mundial, por representar um caminho aparentemente seguro para entender com mais detalhes as reações químicas que mantêm os organismos vivos ou os fazem perecer. Desse conhecimento, espera-se obter formas mais eficazes de combater as doenças - uma simples gripe ou uma praga agrícola - ou mesmo de prolongar a vida. É um mundo imenso, cuja exploração mal começou. O Protein Data Bank, uma base de dados específica sobre proteínas, armazena informações acerca da estrutura de aproximadamente 25 mil dessas moléculas de plantas, animais e microorganismos. É pouco se comparado, por exemplo, ao número de proteínas humanas, estimadas de 100 mil a até 1 milhão. Hoje não passa uma semana sem que as proteínas sejam destaque em revistas científicas de primeira linha - em meados de setembro, por exemplo, 20 dos 51 estudos publicados nos Proceedings ofthe National Acaderny of Sciences abordavam de forma direta ou indireta essas moléculas. Mesmo sem um projeto unificado como o Genoma Humano, que reuniu dezenas de laboratórios no seqüenciamento do material genético de nossa espécie, o estudo \I0VEMBR0 DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105


Antibiótico à flor da pele: molécula extraída da perereca Hyla punctata

das proteínas avança rapidamente na Europa e nos Estados Unidos - e também no Brasil. Por aqui já existem cerca de 200 grupos de pesquisa nessa área, denominada proteômica, que ganharam impulso com a entrada em operação de dois noNacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. Com essas novas máquinas, que determinam a seqüência dos blocos constitutivos das proteínas, os aminoácidos, o Brasil passa a integrar o seleto time de países com tecnologia para analisar em detalhes a estrutura das proteínas. Instalados em julho de 2003, os novos aparelhos do LNLS - dois espectròmetros de massa adquiridos por USS 1,3 milhão, financiados pela FAFESP - foram liberados em setembro para grupos de pesquisa de qualquer estado do país, desde que as propostas de trabalho sejam aprovadas pelo LNLS e os resultados partilha-

Os selecionados - Do primeiro lote de 31 propostas de uso desses equipamentos, o LNLS selecionou 20, elaborados por grupos de pesquisa de quatro estados - São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. São projetos dedicados à análise de proteínas de microorganismos causadores de doenças em plantas, como a XyleÜa fastidiosa, que ataca os laranjais, ou em animais, caso

ilasma hyopneumoniae, uma das causadoras da pneumonia; da Lcptospira interrogans, o agente da leptospirose; e do protozoário TryChagas. As equipes selecionadas têm até dezembro para investigar também as proteínas associadas ao desenvolvimento de tumores e à ativação e desativação de genes {veja a lista cm www.revistapesquisa.fiipesp.br). Em janeiro, o LNLS lançará edital de seleção do segundo lote de propostas. "Evidentemente não nos encontramos no mesmo nível de países como Estados Unidos e Inglaterra, nos quais o uso dos espectròmetros de massa é bastante difundido, mas somos pioneiros na América Latina na pesquisa de proteínas", comenta o bioquímico Rogério Meneghini, que dirigiu o Centro de Biologia Estrutural do LNLS até fevereiro deste ano e hoje é o coordenador de projetos do laboratório. "Nosso objetivo é

consolidar ou formar grupos de excelência em proteômica, do mesmo modo que existem hoje equipes de primeira linha em genòmica no Brasil." Segundo ele, de todos os grupos dessa área no país, cerca de 40 devem, em alguns anos, estar em condições de competir internacionalmente com descobertas relevantes sobre a estrutura das proteínas, a vertente que explica como essas moléculas interagem entre si ou com outras. É um número similar ao de laboratórios hoje capacitados a fazer o seqüenciamento e a análise de genes. fácil entender por que os pesquisadores se sentem atraí. dos pelas proteínas, cuja importância vai bem além do senso comum - a de se■ rem os principais componentes de alimentos como a carne, a soja e o leite. São essas moléculas que formam e mantêm em funcionamento as células e os tecidos dos seres vivos, onde são encontradas em quantidades consideráveis, quando comparadas com outros tipos de moléculas: correspondem a cerca de 30% da massa dos músculos ou do fígado, por exemplo. Seus papéis variam de acordo com a situação e o lugar em que se encontrem. As proteínas podem atuar como transportadores e, como os carregadores de mala dos aeroportos, levar comPESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 47


postos de fora para dentro das células, envoltas por membranas constituídas de lipídios, açúcares e outros tipos de proteínas. Outras vezes elas funcionam como uma espécie de antena, captando informações enviadas por células vizinhas. Também participam das reações químicas que resultam na produção de energia, na formação da memória, enfim, do controle do organismo como um todo. São as operárias sempre alertas - dos seres vivos. Em uma situação de perigo, é uma proteína que funciona como hormônio, a adrenalina, que faz o coração disparar, abastecendo os músculos com mais sangue e deixando assim o corpo preparado para lutar ou fugir. Não foi agora que os pesquisadores brasileiros entraram nesse labirinto. Nos últimos cinco anos, laboratórios nacionais começaram a importar os primeiros espectrômetros de massa, que somam uma dezena no país. Eles se encontravam em laboratórios como o do biólogo Carlos Bloch Júnior, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Brasília, do químico Mario Sérgio Palma, da Universidade Estadual Paulista em Rio Claro, e de Lewis Greene, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Contavam ainda com esses equipamentos os bioquímicos Antônio Carlos de Camargo, do Instituto Butantan, e José Camillo Novello, da Universidade Estadual de Campinas. Na USP em São Paulo, o farmacologista Gilberto De Nucci e o parasitologista Igor de Almeida tinham espectrômetros de massa, também existentes nos laboratórios dos biofísicos Luiz Juliano Neto, da Universidade Federal de São Paulo, e Paulo Bisch, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Esses primeiros equipamentos são poderosos, mas a sensibilidade e a acurada dos espectrômetros de massa para o estudo de proteínas aumenta a cada dia", explica Meneghini. Segundo ele, os novos aparelhos do LNLS permitirão o 48 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 105

Próximos alvos: proteínas das bactérias Xylella fastidiosa (á esquerda) e Leptospira interrogam

estudo de proteínas maiores, com possibilidade de determinar a seqüência dos aminoácidos que as formam. Ação complementar - Para dar esse salto, porém, Meneghini e Bloch trabalharam durante cerca de um ano na escolha, compra e montagem dos espectrômetros. Eles adotaram três critérios básicos: os aparelhos deveriam ter grande sensibilidade para detectar proteínas em amostras com bilionésimos de grama de material biológico; apresentar resolução que possibilitasse a identificação de cada um dos aminoácidos, que têm massas muito próximas; e fornecer os resultados rapidamente um dos equipamentos analisa mil amostras por hora. "Ainda na fase de seleção", conta Bloch, "levamos amostras de proteínas da bactéria Xanthomonas citri para serem testadas pelos quatro fabricantes de espectrômetros que mantêm representantes no país, para compararmos a sensibilidade e a precisão dos equipamentos". É do próprio Bloch, aliás, o primeiro estudo científico utilizando os novos aparelhos: uma análise da proteína hylaseptina PI. Extraída da secreção da pele da Hyla punctata, uma perereca

verde-vivo encontrada na Amazônia, a hylaseptina age contra bactérias causadoras de infecções hospitalares, como a Staphylococcus aureus e a Pseudomonas aeruginosa, ou um fungo, o Cândida albicans, que se manifesta em pessoas imunodeprimidas, como mostra estudo publicado em março deste ano no Journal ofBiological Chemistry. Os dois equipamentos do LNLS são levemente diferentes - a vantagem é que um complementa a leitura do outro. Um deles aplica uma descarga elétrica nas proteínas e as fragmenta em partes eletricamente carregadas, que são então identificadas de acordo com sua massa. Essa é a técnica conhecida como Electrospray Q/TOF, empregada no estudo de moléculas solúveis em água, como a hemoglobina, a proteína que transporta o oxigênio e dá a cor vermelha ao sangue. O outro equipamento dispara um laser sobre as proteínas armazenadas em um cristal, que assim se tornam eletricamente carregadas. Por meio dessa técnica, chamada Maldi-TOF/TOF, podem-se avaliar as estruturas de proteínas encontradas nas membranas das células. "Conhecer a estrutura dessas moléculas é essencial para encontrar


O desafio intimida até os mais experientes, talvez por ser superior ao enfrentado até o momento no seqüenciamento de diversos genomas. Embora os genes contenham as receitas das proteínas, conhecer o conjunto de genes - o genoma - de um organismo não é suficiente para saber como elas são nem como agem. Além disso, cada gene pode originar mais de uma proteína. Estruturas distintas - São

Sensibilidade e alta resolução: espectrômetros do LNLS permitem identificar a seqüência dos aminoácidos

novas formas de combater diversas doenças, uma vez que a membrana de um parasita funciona como seu órgão sensorial e permite, por exemplo, que ele reconheça sua célula hospedeira", explica Bloch. A principal vantagem em relação I^k aos espectrômetros existen^^^ tes no país é que os equipa/M mentos recém-instalados ^L ^Lw em Campinas - sob os cuidados do químico Fábio César Gozzo, coordenador do Laboratório de Espectrometria de Massas do LNLS identificam cada um dos aminoácidos que compõem uma proteína e a seqüência em que se encaixam para formá-la. Desse modo, pode se tornar mais fácil, por exemplo, desenhar moléculas de medicamentos que se encaixem com precisão em uma determinada proteína e impeçam o surgimento de um câncer ou a ação de bactérias como a Xylella fastidiosa ou a Xanthomonas citri, hoje vistas como pragas dos laranjais. Será um avanço e tanto. "É como se até agora tentássemos montar um quebracabeça de olhos vendados, tateando no escuro para encaixar uma peça aqui, outra ali, e verificar se um fármaco fun-

ciona para combater uma determinada doença", compara Glaucius Oliva, coordenador do Instituto de Física da USP em São Carlos e diretor do Centro de Biologia Molecular Estrutural, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão financiados pela FAPESP. Com a estrutura das proteínas em mãos, os pesquisadores passam a trabalhar sem a venda nos olhos. Mas muitos relutam em mergulhar no mundo das proteínas. Não é à toa. "Por mais interessados que estejam, os biólogos consideram o tema complexo demais, enquanto os químicos acreditam que as proteínas são moléculas grandes demais", comenta Bloch. 0 PROJETO Proteomics Studies aí the São Paulo State MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR FáBIO CéSAR GOZZO

INVESTIMENTO

R$ 5.391.153,26

- LNLS

coisas bem diferentes. Os genes são trechos específicos da molécula de DNA ácido desoxirribonucléico, o material genético das células. Têm a forma de longas seqüências de quatro pequenas moléculas conhecidas pelas letras A, T, C e G (respectivamente, adenina, timina, citosina e guanina). Já as proteínas são moléculas bem mais complexas, compostas por longas seqüências de 20 diferentes tipos de aminoácidos, resultando em conjuntos de dezenas a milhares de unidades - a insulina, enzima que facilita a entrada de açúcar nas células, é formada por apenas 51 aminoácidos, enquanto a miosina, uma das principais proteínas dos músculos, agrega em sua estrutura cerca de 1.800 desses blocos. Outra distinção fundamental: enquanto a molécula de DNA assume sempre a forma de uma escada em espiral ou de dupla hélice, como descobriram James Watson e Francis Crick em 1953, as proteínas podem ter formas muito distintas - variando de um pequeno globo a um bumerangue, por exemplo. Há ainda um complicador: tão logo deixem o interior das células, onde são fabricadas, as proteínas podem se associar a açúcares e gorduras, formando complexos ainda maiores — a glicoproteína CD 44 funciona como uma espécie de cimento celular, mantendo as células próximas. No caso das proteínas, essa estrutura tridimensional faz toda a diferença, uma vez que a forma está diretamente ligada à função que ela é capaz de executar. • PES0.UISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 • 49


CIÊNCIA

GENÉTICA

Vantagem natural contra o cigarro Quase 40% dos brasileiras têm mutações que favorecem fumar menos

uatro de cada dez brasileiros carregam alterações em um gene, o CYP2A6, que podem representar uma vantagem biológica na luta contra o tabagismo. Pessoas com mutações nesse , gene, que atua no processo de eliminação (metabolização) da nicotina liberada pelo tabaco no sangue e cérebro dos fumantes, tendem a não fumar ou a ser menos viciadas em cigarro do que indivíduos com a versão normal (e predominante) do CYP2A6. Essa é a boa nova de um estudo feito por pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (Inca), do Rio de Janeiro, que mapearam a ocorrência das quatro principais mutações do CYP2A6 numa amostra de 342 indivíduos, composta por fumantes, ex-fumantes e indivíduos que nunca fumaram. O trabalho produziu uma informação importante, em especial para um país tão miscigenado como o Brasil: a mais comum dessas mutações que reduzem a dependência química do cigarro, chamada 1B, é bem menos freqüente em pessoas de origem negra ou em mulatos do que em brancos. "Esse dado é muito interessante e inédito na literatura científica", comenta o médico Guilherme Kurtz, do Inca, coordenador do estudo. "Os trabalhos internacionais sobre a incidência de mutações nesse gene haviam sido feitos apenas com populações caucasianas e asiáticas."


Sem levar em conta a sua etnia, 31% dos indivíduos que participaram do estudo do Inca apresentam pelo menos uma cópia (alelo) do gene CYP2A6 com a mutação 1B, índice dentro da média internacional encontrada em países com populações formadas majoritariamente por descendentes de caucasianos. Como se sabe, o ser humano possui duas cópias de seus genes, uma herdada do pai e outra da mãe - e cada uma delas pode ou não ser alvo de mutações. Os resultados do trabalho indicam que a presença dessa alteração genética é sete vezes maior em não-fumantes e duas vezes maior em ex-fumantes do que nos fumantes habituais. Quando se adota a cor da pele como um diferencial dos participantes da pesquisa, a ocorrência da principal mutação no CYP2A6 varia bastante. Pelo menos um alelo alterado está presente em 38% dos brancos, 30% dos mestiços e apenas 15% dos negros. "É interessante observar como varia a freqüência da mutação conforme a classificação dos indivíduos segundo a cor da pele", diz a bióloga Gisele Vasconcelos, do Inca, outra autora do estudo. A amostra analisada era composta por 147 indivíduos brancos, 141 mulatos e 54 negros, espelhando, grosso modo, o padrão de distribuição racial do país. A quantidade de homens e mulheres era mais ou menos a mesma - e o parâmetro sexo parece não ter relevância na incidência dessas alterações genéticas. Além da nada rara mutação 1B, a incidência de outros três tipos de alterações no gene CYP2A6 foi determinada nos laboratórios do Inca. A segunda mais freqüente delas é a denominada 9, encontrada em 6% dos participantes do trabalho. Depois aparece a mutação 2, presente em 2% dos indivíduos da amostra. Por fim, em último lugar, vem a 4, que incide em 0,6% dos brasileiros analisados (no Japão, essa mutação surge em um de cada cinco de seus habitantes). Somando a prevalência das quatro mutações (1B, 9,2 e 4), 39% da população nacional possui formas do gene CYP2A6 que pode diminuir o risco de dependência à nicotina - portanto, ao fumo - e aumentar as chances de parar de fumar.

Por que essas mutações parecem afastar as pessoas do cigarro? Em junho de 1998, pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, demonstraram que a ação do gene é um importante elemento da cadeia química que prende os fumantes ao tabaco. O gene comanda a produção no fígado de uma enzima homônima, também chamada CYP2A6, que, entre outras funções, tem o papel de regular a destruição da nicotina, presente no sangue e no cérebro do fumante. À medida que a nicotina é eliminada pela ação da enzima, o tabagista sente mais desejo de acender outro cigarro para repor os níveis dessa substância. Alguns cientistas acreditam que, uma vez estabelecida a dependência química em relação à nicotina, o fu-

A mais comum dessas alterações ocorre sete vezes mais em pessoas que não fumam do que em tabagistas habituais

mante procura sempre manter níveis elevados dessa substância em seu organismo. Daí a compulsão pelo consumo de tabaco. Atividade reduzida - Nesse contexto, indivíduos que apresentam alguma alteração no gene CYP2A6, as tais mutações citadas (e outras nove mais raras e não mencionadas), fabricam diferentes formas não-convencionais da enzima. Pessoas com as mutações 1B e 9, as mais prevalentes na população brasileira, produzem, por exemplo, variantes menos ativas dessa enzima. É como se elas carregassem naturalmente uma menor quantidade da enzima em seu organismo e, por isso, o processo de destruição da nicotina se dá de forma mais lenta. Como os níveis de nicotina

no sangue e no cérebro demoram mais para declinar, os portadores dessas modificações genéticas, se forem fumantes, conseguem saciar seu vício com apenas um ou poucos cigarros. Já indivíduos com a mutação 2 produzem uma forma inativa da enzima e os com a alteração 4 simplesmente não a fabricam. Em termos práticos, isso eqüivale a dizer que os cidadãos com essas mutações praticamente não produzem a enzima em questão - pelo menos não a produzem pela ação do gene CYP2A6. Pode até ser que algum outro gene fabrique alguma quantidade dessa enzima, mas não com a mesma eficiência de seu gene original, o CYP2A6. No exterior estão sendo testados medicamentos capazes de imitar o efeito das mutações e inibir ou ao menos retardar a ação da enzima, o que poderia ser um passo importante para diminuir a dependência em relação à nicotina. Benefício duplo - Além de tornar mais lenta a destruição da nicotina e, assim, diminuir o desejo de fumar, as mutações propiciam um segundo tipo de ganho aos seus portadores: reduzem a taxa de ativação de substâncias pré-cancerígenas presentes nos derivados de tabaco. Isso porque, no organismo, a forma normal da enzima CYP2A6 ativa as nitrosaminas, substâncias tóxicas encontradas no cigarro, e as transforma em elementos que predispõem ao câncer. Já as versões anormais da enzima, decorrentes das alterações genéticas, não fazem isso. "As mutações são duplamente benéficas", comenta Gisele. Logicamente, a carga genética não é o único fator que pode favorecer ou inibir o tabagismo. Aspectos culturais e socioeconômicos também contam. Nas nações mais ricas o consumo de cigarros cai há décadas. O mesmo não ocorre nas regiões mais pobres. Tanto que 80% do 1,3 bilhão de fumantes do mundo está em países em desenvolvimento. No Brasil, onde cerca de 200 mil pessoas morrem por ano em razão de problemas de saúde relacionados ao tabagismo, como infarto, enfisema, derrame e câncer, o consumo de cigarros per capita caiu 32% entre 1989 e 2002. Mas há duas vezes mais fumantes entre as camadas menos instruídas provavelmente mais pobres também do que nas parcelas mais abastadas da população. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 51


CIÊNCIA BIOLOGIA

Nos rios

do Brasil

Biólogos registram 2.122 espécies de peixes de água doce no país

movimento nas bancas de peixes no Mercado Municipal de São Paulo é pequeno no começo da tarde de uma quintafeira quente e ensolarada. Quem pára no boxe 33, rua B, em um dos últimos corredores da lateral esquerda do mercado, pode escolher entre corvinas, sardinhas, tainhas e salmões - Iodas espécies do mar, algumas às vezes com 1 metro de comprimento. O único peixe de água doce, o pintado, que chega a 2 metros, é uma estrela solitária nas prateleiras cheias de gelo picado. Mais adiante, outra banca, no boxe 29 da rua C, exibe cercados de sardinhas, garoupas, merluzas e outros exemplares do mar, mais apreciados pelos fregueses. Em um país cortado por milhares de rios, pode-se estranhar a escassez de

ção de quem estuda o assunto há mais de 20 anos. "A diversidade de peixes de $mzà tífica e ecológica, de baixo valor comercial", comenta Naercio Aquino Menezes, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). O Catálogo de peixes de água doce no Brasil que ele coordenou, apresenta 2.122 espécies encontradas nos rios do país - quase o dobro do que havia sido listado em 1948 pelo biólogo norte-americano Henry Fowler, em um levantamento pioneiro. NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

0 raro bagre Cetopsorhamdia sp.: de 5 a 7 centímetros SS&M


A piaba Moenkliausia sp.: em riachos, com 5 a 10 centímetros de comprimento

Tucunaré, de até 80 centímetros: entre pescadores, fama de brigador

Rivulus zygonectes. dos rios Tocantins, Araguaia e Xingu: fêmea morre após a desova e o macho depois da fecundação

De 10% a 15% das espécies eram ainda desconhecidas e estão sendo cientificamente descritas. É o caso de uma piabinha azulada de cerca de 4 centímetros, coletada no alto Xingu e alto Tapajós, em Mato Grosso, dotada de uma glândula na nadadeira anal que produz feromônio, substância que atrai as fêmeas durante a época de acasalamento. Ou do dmgonichtys, algo como dragão chinês, um bagre longo e roliço que ganhou esse apelido por causa dos bigodes compridos e do focinho protuberante - tem cerca de 15 centímetros e vive nos rios do Brasil Central entocado nas pedras das corredeiras. Mais que no mar - Para complementar os levantamentos anteriores e subsidiar a formulação de políticas públicas para a exploração pesqueira de forma sustentável, os especialistas que prepararam o Catálogo percorreram 20 estados, da Paraíba ao Rio Grande do Sul, durante cinco anos. Apesar do esforço, reconhecem: é provável que o trabalho não esteja completo. Podem existir pelo menos mais 2 mil espécies a serem descritas, acredita Ricardo Macedo Corrêa e Castro, coordenador do Laboratório de letiologia da USP de Ribeirão Preto e um dos autores do catálogo, do qual participaram também equipes do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Cirande do Sul (PUC-RS). Mesmo esse total já PESOUISA FAPESP 105 • NOVEMBRO DE 2004 ■ 53


supera o número de peixes marinhos: ao longo da costa brasileira vivem 1.297 espécies, apresentadas no ano passado no Catálogo das espécies de peixes marinhos do Brasil editado por essas mesmas equipes do Museu de Zoologia da USP e do Museu Nacional da UFRJ (veja Pesquisa FAPESP n° 94). Calcula-se que existam 25 mil espécies de peixes marinhos e fluviais em todo o planeta. De acordo com um levantamento publicado em 2003 pela PUC do Rio Grande do Sul, as Américas Central e do Sul abrigam cerca de 4.400 espécies de peixes de rios já identificadas, além de outras 1.600 que ainespécies do novo inventário, o Brasil responde por cerca de 30% dessa diversidade, em conseqüência da variedade de ambientes aquáticos - rios, riachos, igarapés, lagos e lagoas. "A evolução geomorfológica da América do Sul propiciou a formação de uma elevada diversidade de ecossistemas aquáticos que favoreceram o desenvolvimento de uma fauna de peixes que não encontra paralelo em outras partes do mundo", comenta Menezes. A região com maior variedade de peixes - quase mil - é, previsivelmente, a bacia amazônica, em decorrência, em primeiro lugar, de suas próprias dimensões: é a maior bacia hidrográfica do mundo, com uma drenagem de 5,8 milhões de quilômetros quadrados, equivalente a quase meia Europa, dos quais

3,9 milhões no Brasil. Em segundo lugar, a própria diversidade de ambientes: há rios de três categorias, de acordo com sua coloração - de águas brancas como o Amazonas, o Madeira e o Jamari, águas claras como o Tapajós e o Tocantins e águas pretas como os rios Negro e Uatumã. Além disso, o volume de água é gigantesco: dos 20 maiores rios do mundo, dez estão na Amazônia. O maior deles, o Amazonas, com 6,5 mil quilômetros e uma distância entre as margens que varia de 4 a 50 quilômetros, é responsável por 20% da água doce despejada anualmente nos oceanos. rês peixões simbolizam a Amazônia. O primeiro é o pirarucu {Arapatma gigas), um dos maiores peixes de h_ água doce do mundo, com até 3 metros de comprimento e 150 quilos, de aspecto primitivo, com uma cabeça longa e o corpo que se afina até chegar à cauda arredondada. O outro, que também faz parte da culinária da Região Norte, igualmente servido ensopado, é o tambaqui {Colossoina macropomum), frugívoro, com até 1 metro e 30 quilos. O terceiro é o tucunaré (Cichla ocellaris), carnívoro, com até 80 centímetros c 15 quilos, reconhecido pela mancha negra arredondada - o ocelo - na cauda. Servido geralmente grelhado ou cozido com vegetais, é o mais assíduo dos três no Mercado Municipal de São Paulo. Mesmo assim,

vende pouco. "Quando muito, uns dez por semana", observa Reginaldo Gomes de Souza, atendente da banca do boxe 29. "Só quem é do Norte conhece." Limão e coentro - A segunda região em diversidade de peixes, com quase 500 espécies, é a região cortada por três rios: o Paraná, de 4 mil quilômetros de extensão, o Paraguai, com 2.621 quilômetros, e o Uruguai, com 1.770. Pelo tamanho e, sejamos justos, pelo sabor, destaca-se o pintado (Pseudoplatystoiua corruscans), bastante apreciado quando servido na brasa, em cubinhos, temperado apenas com algumas gotas de limão. "O limão tira o gosto da carne", previne João Gualberto, funcionário da banca 29 do mercado paulista. Ele ensina: com o pintado pode-se fazer também uma moqueca, com leite de coco, salsinha, cebola e eis o segredo - uma boa pitada de coentro. É um peixe, como se diz no mercado, que tem saída: cerca de 50 são vendidos por semana. Nos rios dessa região também se encontra o dourado (Sahniuits maxillosus), predador voraz de até 25 quilos. Já na bacia do São Francisco existem cerca de 150 espécies, entre elas o curimatá (Prochibdus vimboides), de lábios carnosos, e a tabarana {Salniinus hilarii), conhecida pelo focinho pontiagudo e pelas nadadeiras avermelhadas da cauda. Todos esses são peixes explorados comercialmente. Em 2002, o Brasil pro-

Contrastes: o minúsculo Corydoras difluviatilis, que se alimenta de insetos enterrados na areia dos rios, e o pintado, de até 2 metros


duziu, por meio da pesca extrativista, 680 mil toneladas de peixes. Desse total, 455 mil toneladas (67%) vieram dos mares e 225 mil (33%) de rios. O Brasil, onde a atividade pesqueira gera cerca de 800 mil empregos diretos, ocupa a 27a posição no mercado mundial, com exportações crescentes: US$ 120 milhões em 1998 e US$ 330 milhões em 2002. ara os pesquisadores, no entanto, o cenário não é animador. "A pesca extrativista ultrapassou os limiM tes da sustentabilidade", lamenta Paulo Andreas Buckup, da UFRJ. Uma relação publicada pelo Ministério do Meio Ambiente no final de maio lisextinção - 135 são de água doce. A constatação reforça a necessidade de cuidados redobrados, em especial com as espécies pequenas e frágeis, classificadas como de relevância científica e ecológica, que em geral vivem em riachos. Como se alimentam de pequenos invertebrados, frutos e folhas que caem das árvores, tornam-se vítimas fáceis do desmatamento das beiras de rios, da poluição e das grandes obras, como as usinas hidrelétricas. A variedade de peixes dos riachos brasileiros, até agora muito pouco conhecidos talvez por causa do baixo valor comercial, só se tornou um pouco mais clara à medida que os pesquisadores

mBM

0S PROJETOS Conhecimento, conservação e utilização racional da diversidade da fauna de peixes do Brasil

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR NAéRCIO AQUINO MENEZES

Diversidade de peixes da bacia do alto rio Paraná

- Museu de

Zoologia/USP INVESTIMENTO R$ 1.051.000,00 - Pronex (CNPq)

puxavam a rede. Em rios como MogiGuaçu, Piracicaba e Tietê, na região do alto Paraná, o grupo da USP de Ribeirão Preto coletou 17 mil exemplares de peixes, com 15 espécies novas - uma delas é o minúsculo Corydoras difluviatilis, que se alimenta de insetos enterrados na areia do fundo dos rios Pardo e Mogi-Guaçu. Em um riacho da Mata Atlântica, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, a equipe do Museu de Zoologia reencontrou o Trichogenes longipinnis, de longa nadadeira caudal e um corpo castanho-claro com manchas escuras e outros traços relativamente primitivos em relação aos outros bagres - tendo, por essa razão, importância evolutiva. "O fato de ter uma distribuição restrita lativamente primitiva revela a importância dos ecossistemas aquáticos da região no contexto da história evoluti-

COORDENADOR USP de Ribeirão Preto INVESTIMENTO R$486.037,11 (FAPESP)

va dos peixes de água doce da América do Sul", comenta Menezes. A expedição ao Brasil Central, priorizada por conter afluentes importantes da bacia amazônica em regiões pouco exploradas, foi a única que reuniu as quatro equipes. Os 16 pesquisadores desembarcaram em Cuiabá, capital de Mato Grosso, no dia 15 de janeiro de 2002, sob um sol escaldante, prontos para enfrentar a época das chuvas. Quando voltaram para casa, 15 dias depois, tinham percorrido 5 mil quilômetros de estradas esburacadas e enlameadas. Haviam apanhado cerca de 50 mil peixes de cerca de cem espécies, incluindo sete novas da família dos loricariídeos, que incluem os cascudos - com menos de 5 centímetros, boca em forma de ventosa e o corpo revestido por uma couraça óssea, vivem escondidos sob folhas e troncos de árvores que ficam às margens dos rios.

PESQUISA FAPESP 105 • NOVEMBRO DE 2004 ■ 55


O mural de Carlos Magano, feito nos anos 1950 e recĂŠm-restaurado, ĂŠ um sĂ­mbolo da faculdade


PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 57


USPTU trajetória da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) pode ser narrada em três etapas, e todas elas são marcadas pelo compromisso com a construção de uma escola pública, leiga e acessível a todos. O embrião surgiu no início da década de 1930, na Escola Normal Secundária da Praça da República, no centro paulistano, onde hoje funciona a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (o prédio, por sinal, é um símbolo do ensino leigo: foi erguido nos primeiros anos da República com verba e terreno que o finado Império reservara à construção de uma catedral). Numa época em que quase a metade da população infantil estava fora da escola e a maioria dos professores primários levava na bagagem apenas quatro anos de instrução primária, um grupo de docentes da Escola Normal da Praça começou a articular a fundação de uma pioneira instituição de ensino superior de pedagogia. A idéia dos educadores Antônio Sampaio Dória, Manuel Lourenço Filho e Fernando de Azevedo também tinha um cunho nacionalista, uma vez que era gigantesco o fosso entre o grau educacional dos brasileiros nativos e o dos imigrantes europeus. Desse esforço surge, em 1933, o Instituto de Educação, centro de nível superior vinculado à Escola Normal. Teve vida efêmera como instituição independente. Em 1934 incorpora-se à nascente Universidade de São Paulo e, em 1938, transforma-se em Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), incumbido, principalmente, da tarefa de dar formação pedagógica a professores secundários de diversas disciplinas formados pela USP. Um segundo momento importante para a história da faculdade remonta ao ano de 1956, quando o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a USP assinam um convênio e montam, dentro da Cidade Universitária, o Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de São Paulo. Tratava-se de um braço de um órgão do MEC, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), voltado para pesquisas e treinamento de professores. Seu idealizador era o filósofo da educação Anísio Teixeira, cujas idéias nortearam uma notável renovação pedagógica em meados do século 20 e deram lastro ao início da ampliação do acesso à escola aos brasileiros mais pobres. O CRPE partilhava professores com a Seção de Pedagogia da FFCL, mas as instituições seguiam independentes. Cada uma delas tinha sua Escola de Aplicação: a do CRPE, apenas de ensino básico; a da USP, a Escola Fidelino de Figueiredo, de ensino ginasial e médio. O dia Io de janeiro de 1970 marca a terceira etapa da trajetória, com a fundação da Faculdade de Educação nos moldes em que ela funciona hoje. A unidade é criada, na esteira da reforma universitária de 1968, com a 58 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

emancipação da Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e sua fusão com o CRPE, que cede suas instalações e acaba extinto. Da FFCL, a Faculdade de Educação herdou professores formados sob a influência das missões estrangeiras que fizeram a USP e inspirados pela Campanha em Defesa da Escola Pública, liderada pelo sociólogo Florestan Fernandes no início dos anos 1960. Do CRPE, recebeu sua sede atual (parcialmente demolida e reconstruída, por problemas de movimentação de solo), educadores que formaram gerações de pesquisadores, como Roque Spencer Maciel e Laerte Ramos de Carvalho, além da Escola de Aplicação (aquela que pertencia à Faculdade de Filosofia, laboratório de experiências inovadoras, foi sumariamente fechada pela ditadura). "As preocupações dos criadores do Instituto de Educação e do CRPE ajudam a explicar a nossa tradição de pesquisa, historicamente voltada para a expansão e a melhoria do ensino público", diz Celso de Rui Beisiegel, professor de Sociologia da Educação, que começou a carreira como pesquisador do CRPE e ajudou a fundar a unidade nos anos 70. Com cerca de 800 alunos de pedagogia, 600 de pós-graduação, 8 mil matrículas na licenciatura e 107 docentes, a instituição segue como referência em pesquisas educacionais. Alguns exemplos de projetos apoiados pela FAPESP ilustram a diversidade temática e o espectro de preocupações que orientam os pesquisadores da faculdade. Um dessas linhas de investigação é a formação de professores e a análise de aprendizado das ciências. "Temos um grupo robusto, que também produz e avalia material didático", diz a professora Myriam Krasilchik, pesquisadora no campo do ensino da biologia, que foi diretora da Faculdade de Educação e vice-reitora da USP. Nos últimos tempos, Myriam envolveu-se num projeto de educação ambiental em duas cidades do interior paulista. A professora Anna Maria Pessoa de Carvalho trabalha com duas equipes de professores de colégios públicos em busca de experiências inovadoras no ensino da física tanto nas escolas fundamental e média. Um dos objetivos dos grupos é levantar os tipos de experiências que possibilitam o aprendizado do aluno. Foram produzidos 15 vídeos com imagens de sala de aula, capazes de sinalizar algumas experiências didáticas que ajudam o aluno a aprender. Outro resultado prático foi o guia para professores Termodinâmica - Um ensino por investigação, com práticas metodológicas desenvolvidas pelo grupo de professores do ensino médio. A grande conclusão é que o aprenCenas dos anos 1960: dizado de física depende de atiprofessoras estagiárias vidades em sala de aula capazes no prédio do CRPE de provocar argumentações e de (alto); mãe de aluno permitir aos alunos o levantaajudando em aula de mento e o teste de hipóteses. ciências no Colégio de Numa experiência sobre diAplicação (à esq.); latação, por exemplo, os profesprofessoras em sores colocam uma bexiga no treinamento e alunos bocal de um recipiente de vidro em aula de linguagem e aquecem sua base. A bexiga (à dir.)


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PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 • 59


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USP

infla - o que serve de ponto de partida para a discussão do fenômeno. "Os alunos debatem e algum deles acaba sugerindo que a bexiga inchou porque o ar quente, afinal, sobe. Em seguida, vira-se o recipiente de cabeça para baixo e a bexiga continua inflada. O professor conduz as discussões rumo à real explicação, que é a dilatação do ar, e os alunos constróem seus conhecimentos formulando hipóteses e colocando-as à prova", diz a professora Anna. Outra iniciativa com bons efeitos é a discussão de textos originais de cientistas, em que os alunos percebem a importância do trabalho de equipe, da curiosidade e da perseverança nas descobertas. "A maioria das pessoas não se lembra de nada do que aprendeu nas aulas de física", diz Anna. "Alguns dizem que gostavam das atividades de laboratório, mas também não conseguem lembrar exatamente do que gostaram. É um sinal de que o ensino tradicional de física está falido." O esforço em desenvolver uma nova metodologia esbarra sobretudo na parca carga horária da disciplina nas escolas públicas. "Com uma aula por semana, dá para fazer muito pouco", afirma. A Faculdade de Educação tem forte tradição também no estudo da história da educação. Se a corrente hegemônica, até os anos 1970, voltava-se para a história das idéias pedagógicas e o perfil dos teóricos, dos anos 80 para cá o foco recaiu sobre novos protagonistas: professores e alunos. "A década de 1980, de modo geral, marca uma mudança na pesquisa da faculdade, agora mais voltada para o chão da escola e para a pluralidade de orientações teóricas", explica a professora Marília Spósito, presidente da Comissão de Pesquisa. Um exemplo dessa vertente é o esforço para levantar a trajetória do livro didático no Brasil. Sob a liderança da professora Circe Bittencourt, o Centro de Memória da Educação, vinculado à faculdade, vem construindo um acervo de obras didáticas, material escolar e depoimentos orais de professores e alunos. Uma tese sobre o tema defendida pela professora Circe em 1993, "Livro didático: conhecimento histórico", será publicada em livro nos próximos meses pela Edi60 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

tora Unesp. As obras didáticas são obtidas de fontes diversas, como sebos e bibliotecas, com o objetivo de ajudar a compreender a dinâmica da educação no passado. Se o livro estiver usado, com exercícios respondidos, mais rica é essa compreensão. Numa obra antiga os pesquisadores encontraram até fragmentos de papel com cola para prova, combustível importante para o estudo dos usos e costumes das escolas. No acervo há raridades publicadas no século 19, algumas delas obtidas na França, onde se imprimia boa parte dos livros usados nas escolas do Brasil Império. "Minha vida é freqüentar sebos", diz a professora Circe. "Quando os sebos ainda não sabem que a gente está interessada, sai barato", ela explica. Uma limitação para a pesquisa é que os livros didáticos distribuídos pelo governo, hoje, têm de ser reaproveitados, inibindo a interação dos alunos. "Tentamos preencher essa lacuna recolhendo cadernos", afirma a professora. É possível citar outras contribuições da Faculdade de Educação, como o trabalho teórico da professora Marília Spósito sobre os jovens, em especial sobre políticas públicas para a juventude no Brasil nos últimos anos.


Acima, autoridades na inauguração do CRPE, em 1956. Abaixo, funcionário embala publicações pedagógicas para enviar a professores

Ou as pesquisas da professora Tizuko Morchida Kishimoto no Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos. Ao avaliar o potencial dos brinquedos em atividades pedagógicas, o laboratório busca colber subsídios para a formação de professores de educação infantil. A professora Selma Garrido Pimenta, atual diretora da faculdade, desenvolve um trabalho que se tornou referência sobre a formação de professores em todo o país. Um dos frutos dessa linha de pesquisa foi um projeto que coordenou, voltado à investigação do processo de produção do conhecimento dos professores, desenvolvido entre 1996 e 2000 em duas escolas públicas da periferia de São Paulo. O combustível da pesquisa foi a reflexão dos próprios professores sobre as práticas pedagógicas, uma metodologia qualitativa inovadora. Destacam-se, ainda, as pesquisas dos professores Celso Beisiegel sobre políticas públicas e as conseqüências da expansão do ensino. Sua contribuição mais recente foi a pesquisa Construção de banco de dados sobre experiências de professores da universidade pública na administração da educação pública das últimas décadas. Orientados por Beisiegel e pelo professor Romualdo Portela de Oliveira, também da faculdade, sete alunos percorreram vários estados do Brasil coletando e registrando informações sobre as atividades de professores em universidades públicas na elaboração e na execução de políticas educacionais. Levantaram documentos, entrevistaram educadores e promoveram seminários com a participação desses professores a fim de entender o trabalho que desenvolviam e debater a sua importância. A instituição é conhecida como formadora de quadros. Secretária da Educação do Estado de São Paulo por quase oito anos, a pedagoga Rose Neubauer saiu dos quadros docentes da instituição. Outra professora, Lisete Arelaro, foi Secretária de Educação do Município de Diadema. Num passado recente, a faculdade forneceu uma vice-reitora para a USP, Myriam Krasilchik, e dois pró-reitores de graduação, Celso Beisiegel e Sônia Penin, ainda em exercício. "A faculdade justifica sua presença dentro da Universidade de São Paulo", orgulha-se o professor Beisiegel. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 61


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

O SciELO Brasil chega a novembro com 131 revistas e mais de 9 milhões de acesso feitos até outubro. A biblioteca eletrônica está presente também no Chile, em Cuba, na Espanha e em outros países iberoamericanos. Em outubro, durante a 12a Conferência Internacional de Editores de Ciência, no México, houve a 2a Reunião Regional da Rede SciELO com representantes de oito países (veja reportagem completa na página 26)

■ Comunicação

■ Literatura

O percurso de Machado O estudo "Machado de Assis, leitor e crítico de teatro", de João Roberto Faria, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP), tem como objetivo principal traçar o perfil de Machado de Assis enquanto leitor e crítico de teatro. Primeiro, o pesquisador situa o escritor no contexto teatral do século 19, nos anos de 1850 e 1860, quando entraram em choque, nos palcos do Rio de Janeiro, a estética romântica e a realista. "Antes de se dedicar mais intensamente à atividade literária que o consagrou, Machado tornou-se conhecido como folhetinista, crítico teatral, crítico literário, comediógrafo, poeta e tradutor de poemas, peças teatrais e romances", lembra o autor. O artigo acompanha a extensa produção jornalística de Machado de Assis, na qual se notabilizou como crítico, detendo-se também na atividade de censor do Conservatório Dramático Brasileiro que o escritor exerceu por algum tempo. Ao acompanhar o percurso intelectual de Machado, em sua juventude literária, o autor procurou analisar, compreender e explicar suas idéias em relação à arte dramática e ao teatro brasileiro. "Os amigos admiravam a inteligência e o brilho do rapaz pobre que começara como tipógrafo e, já aos 20 anos, era uma peça-chave no debate cultural do seu tempo, com intervenções corajosas e por vezes contundentes nos textos críticos e nos folhetins que publicava em vários jornais do Rio de Janeiro", cita o pesquisador. "Foram esses escritos que o transformaram no nosso principal crítico literário e teatral da década de 1860", acredita Faria. REVISTA ESTUDOS AVANçADOS - SãO PAULO - 2004

- VOL. 18 ■ N° 51

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010 3-40142004000200020&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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Pauta pública para a TV "Uma pauta pública para uma nova televisão brasileira", de autoria de Regina Mota, professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, coloca em debate algumas questões relativas ao desconhecido universo da televisão pública no Brasil. A idéia é apresentar alguns elementos conceituais de uma "pauta pública" dos meios de comunicação no Brasil, em particular da televisão. "Nos últimos cinco anos, vem ocorrendo um movimento contínuo e crescente de mudanças conceituais nas televisões estatais e concessões de canais educativos no Brasil", acredita Regina. "O fenômeno é uma reação dessas emissoras ao atraso na legislação, à constante ingerência administrativa dos governos estaduais e ao eterno problema do financiamento dessas instituições." A partir de depoimentos de acadêmicos e profissionais liberais, o artigo apresenta elementos dessa participação cidadã e pauta pública na televisão. O texto considera que, diferentemente do que os profissionais da comunicação julgam, há no Brasil uma demanda por uma "televisão assertiva", que examine e apresente interesses sociais de longo prazo de maneira reflexiva e transformadora. "No momento, o Brasil inicia timidamente a discussão de um modelo de televisão digital para o país, privilegiando a tecnologia, para fazer face à disputa de mercado travada entre os que detêm os atuais padrões de digitalização." Segundo ela, essa seria uma oportunidade para rever a legislação do setor, uma vez que a mudança remodelará todos os serviços oferecidos pelos meios eletrônicos, incluindo as formas de acesso. Quando a autora fala de uma programação que possa estabelecer uma nova relação com o público, isso pressupõe um deslocamento da sua consciência: de mero espectador, o público pode repensar a sua relação com o mundo e com a televisão. REVISTA SOCIOLOGIA E POüTICA TIBA - IUN. 2004

■ N° 22 - CURI-

www.scielo.br/scielo. php?script=scLarttext&pid= S0104-44782004000100007&lng=pt&nrm=iso& tlng=pt


■ Oftalmologia

Saúde ocular Apresentar estimativas referentes à prevalência da cegueira e de baixa visão realizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS); discutir os aspectos relacionados às estratégias com vistas ao planejamento de programas preventivos; ressaltar a necessidade de realizar pesquisas epidemiológicas e operacionais para a formação de recursos humanos e aperfeiçoamento da infra-estrutura de serviços especializados. Essas são as metas do artigo "A perda da visão - estratégias de prevenção", de Edméa Rita Temporini e Newton KaraJosé, professores de Oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas e Universidade de São Paulo. De acordo com o trabalho, o conceito de oftalmologia em saúde pública é relativamente recente. "Se os princípios de saúde pública forem aplicados a programas de prevenção da cegueira, o número de cegos de uma população ou de uma comunidade pode ser significantemente reduzido", acreditam os pesquisadores. "O controle e a diminuição de índices de cegueira por meio de programas específicos assumem importância vital em programas nacionais de saúde ocular." Segundo estimativas baseadas na população mundial referentes à cegueira e à baixa visão, divulgadas pela OMS, em 1990 havia 38 milhões de indivíduos cegos e 110 milhões apresentavam visão deficiente e risco de cegueira. Já em 1996, o índice aumentou para 45 milhões de cegos e 135 milhões de portadores de baixa visão. "O aumento progressivo da cegueira e deficiência visual pode ser atribuído, em especial, ao crescimento populacional, ao aumento da expectativa de vida, às dificuldades de acesso da população à assistência oftalmológica e à insuficiência de esforços educativos que promovam a adoção de comportamentos preventivos." ARQUIVOS BRASILEIROS DE OFTALMOLOGIA N° 4 - SãO PAULO - JUL./AGO. 2004

- VOL. 67 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000427492004000400007&íng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Física

Energia solar via satélite "Por ser um país localizado em sua maior parte na região intertropical, o Brasil possui grande potencial de energia solar durante todo ano. Além disso, a radiação solar constitui uma opção limpa e renovável de produção de energia", segundo o artigo "Levantamento dos recursos de energia solar no Brasil com o emprego de satélite geoestacionário - o Projeto Swera", de Fernando Martins, Enio Pereira e Mariza Echer, pesquisadores da Divisão de Clima e Meio Ambiente,

Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A idéia é conhecer a disponibilidade dessa fonte de energia e seu aproveitamento, por meio de modelos computacionais para estimar o fluxo de energia solar na superfície. O trabalho apresenta uma revisão sobre os princípios que estão por trás desses modelos, seguindo como exemplo a transferência radiativa Brasil-SR. Trata-se de metodologia empregada no mapeamento do potencial energético solar da América Latina pelo projeto Solar andWind Energy Resource Assessment (Swera), financiado pela Divisão de Ambiente Global por meio do Programa das Nações Unidas para o Ambiente. REVISTA BRASILEIRA DE ENSINO DE FíSICA N°

- VOL. 26 -

2 - SãO PAULO - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010247442004000200010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Sociedade

Direitos dos adolescentes Discutir questões que dizem respeito à saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes é o objetivo do artigo "Direitos sexuais e reprodutivos: algumas considerações para auxiliar a pensar o lugar da psicologia e sua produção teórica sobre a adolescência", de autoria de Maria Filgueiras Toneli, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. O estudo se baseia em dois eixos fundamentais. O primeiro diz respeito a noção de direitos sexuais e reprodutivos fundamentada no que as grandes conferências promovidas pela Organização das Nações Unidas preconizam. O segundo eixo aborda o discurso médico-científico como dispositivo que oscila entre as estratégias de governo das populações e a incitação do sujeito para se ocupar de si mesmo. O artigo mostra que em 1990 foi publicada, no Brasil, a lei 8.069, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente. "De fato, nas duas últimas décadas houve um avanço considerável nas políticas públicas voltadas para a infância e a juventude no Brasil", acredita Maria. Entre as iniciativas desse período pode-se apontar a criação do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o Programa de Saúde do Adolescente, o Programa de Prevenção e Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis e do HIV/Aids, a inclusão da educação sexual nos parâmetros curriculares nacionais e da sexualidade como tema transversal na área da educação. "É preciso pensar essas iniciativas em um cenário que inclui agentes sociais bastante diversificados que disputam a tutela da infância e da juventude no contexto brasileiro", diz. PSICOLOGIA E SOCIEDADE ALEGRE - 2004

■ VOL. 16 - N° 1 - PORTO

www.scielo,br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S010271822004000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 63


TECNOLOGIA

Carro urbano dos sonhos Compacto, com apenas 1 metro de largura, produzindo menos poluição e gastando menos combustível. Esse é o carro dos sonhos daqueles que têm a preocupação com o ambiente como um fator essencial para a compra de um veículo. A materialização desse novo carro, chamado de Clever Car, do inglês compact lowemission vehicle for urban transport ou veículo para transporte urbano compacto e com baixa emissão de

poluentes, está sendo realizada por uma equipe de pesquisadores de instituições de pesquisa e de empresas de nove países europeus. O projeto de US$ 2,7 milhões é financiado pela União Européia. O protótipo do Clever Car está sendo construído com chassi e carroceria de metal e com acomodação para apenas um passageiro atrás do banco do motorista. Além de ser mais fácil de manobrar e possuir três rodas como

os triciclos, ele deverá ser mais barato que os veículos convencionais. O novo carro atingirá a velocidade máxima de 80 quilômetros por hora e o motor vai funcionar com gás natural comprimido. Entre as instituições que desenvolvem o carro estão o Instituto Francês do Petróleo, a Universidade de Bath, na Inglaterra, e a empresa BMW. O lançamento está previsto para dezembro de 2005. (London Press) •

Compacto e menos poluente

■ Cremes resfriados sem energia externa Um sistema de congelamento instantâneo permite que em poucos minutos, apenas com um processo de evaporação totalmente natural, um creme para uso cosmético aumente sua eficácia. Ao ser aplicado, o creme baixa a temperatura rapidamente, a uma taxa de 5°C por minuto. Dessa forma, os lipídios (moléculas orgânicas insolúveis em água), que são a principal matéria-prima dos produtos cosméticos, sofrem uma retração molecular, o que faz com que penetrem na pele de forma mais eficiente. Assim que atinge os poros e se reaquece, o material volta à sua estrutura normal. O sistema utiliza uma cerâmica especial e um processo de evaporação a vácuo que absorve o calor do produto, resfriando-o rapidamente sempre que necessário. "Nós desenvolvemos um sistema de congelamento rápido e controlado, sem o uso

de energia externa, no qual a temperatura cai 70 vezes mais rapidamente do que em uma geladeira comum", relata Fadi Khairallah, fundador da Thermagen, empresa responsável pela descoberta que foi baseada em tecnologia desen-

64 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

volvida pela Agência Espacial Européia (ESA). A tecnologia foi testada durante o rali Paris-Dacar por pilotos da equipe Pescarolo, que puderam tomar líquidos à temperatura de 15°C no meio do deserto. Para controlar o processo de

Cosmético mais eficaz com temperatura controlada

resfriamento, a equipe de pesquisadores da Thermagen usou o mesmo programa de simulação utilizado para calcular o funcionamento dos motores do foguete espacial francês Ariane. (ESA) •

■ No Egito,trigo tolerante à seca Pesquisadores egípcios apresentaram uma novidade que poderá mudar a milenar cultura do trigo no Egito. Eles introduziram um gene de cevada em uma variedade local de trigo que torna a planta resistente à seca. Enquanto as variedades convencionais necessitam de até oito irrigações por plantio, a transgênica pre-


BRASIL

Avião agrícola movido a álcool

cisa de apenas uma. A nova semente foi desenvolvida durante quatro anos por pesquisadores do Instituto de Pesquisa e Engenharia Genética em Agricultura do Cairo (Ageri). Eles iniciaram o trabalho transferindo o gene chamado HVAI1 da cevada para o trigo. Depois, com as sementes geneticamente modificadas em mãos, eles fizeram o cultivo em estufas e no campo. O coordenador da pesquisa, Ahmed Bahieldin, disse para a agência SciDev.Net que o trigo transgênico cresceu e teve um rendimento melhor que as plantas não-modificadas. Ele acredita que a cultura será importante para as áreas pouco favoráveis a esse tipo de plantação em condições de falta de irrigação, salinidade e alta temperatura. A primeira semente geneticamente modificada do Egito deverá primeiro passar por estudos de segurança para consumo humano e para o ambiente antes de ser colocada à venda. •

■ Computadores mais sensíveis Tornar os computadores mais parecidos com os seres humanos na maneira de pensar e agir. Esse é o objetivo de um projeto que reúne 160 pesquisadores de 27 instituições da Europa, coordenados pela Uni-

versidade Queen de Belfast, na Irlanda do Norte. "Computadores que respondem de acordo com as emoções humanas podem soar como ficção científica, mas esse limite está prestes a ser quebrado", diz Roddy Cowie, da Faculdade de Psicologia da universidade e coordenador do projeto. Foram destinados € 10 milhões para a pesquisa, que tem duração prevista de quatro anos e envolve a criação de uma interface multimodal que permitirá à máquina perceber e responder de acordo com o que o usuário espera dela. "Atualmente, o uso dos computadores é limitado pelo fato de que precisamos de um teclado e uma tela para acessá-los. Haveria uma enorme diferença se nós pudéssemos interagir com eles falando normalmente, talvez por meio de um microfone ou transmissor", disse Cowie. "As interfaces de pronúncia que existem atualmente ignoram os comandos caso a frase não esteja completa", ressalta. Por isso os pesquisadores envolvidos no projeto estão desenvolvendo métodos de programação para tornar os computadores mais intuitivos. Dessa forma eles poderiam ter um tipo de "personalidade", mostrar algum grau de autonomia e, em geral, estabelecer uma relação social com o usuário. •

Ipanema sai de fábrica certificado para voar com álcool

A aeronave agrícola Ipanema, equipada com motor movido a álcool hidratado, recebeu em outubro a certificação do Centro Técnico Aeroespacial (CTA). Com isso tornou-se o primeiro avião de série no mundo a sair de fábrica certificado para voar com esse tipo de combustível. O Ipanema, fabricado pela Neiva Indústria Aeronáutica, subsidiária da Embraer, é o campeão de vendas da empresa, com quase 30 anos de produção e cerca de mil unidades vendidas. A escolha do álcool foi motivada pelo fato de o Brasil ser um grande produtor desse tipo de combustível. O motor a álcool permite um aumento em torno de 5% na potência, melhorando o desempenho do avião pela diminuição da distância de decolagem, velocidade e altitude máximas. Além disso, polui menos que a gasolina de aviação porque não possui chumbo em sua composição. A Neiva já registrou o nome AvAlc (Aviation Alcohol) no

Brasil para o uso dessa fonte de energia. Até agora, a empresa já recebeu 69 pedidos de conversão do motor a gasolina para álcool, trabalho previsto para ser executado até janeiro do ano que vem. A certificação do Ipanema ocorreu no mesmo mês em que a empresa comemorou 50 anos. Fundada em 12 de outubro de 1954 pelo projetista José Carlos Neiva, no Rio de Janeiro, para produzir os planadores BN-1 e Neiva B Monitor, dois anos depois transferiu-se para Botucatu, no interior do Estado de São Paulo, onde está até hoje. No começo da década de 1980, a Embraer comprou o controle acionário da empresa e passou a responder pela produção de todos os aviões leves fabricados pela Neiva. Alguns anos depois transferiu a montagem do turboélice Brasília para Botucatu. Hoje produz componentes do jato ERJ 145, da Embraer, além de partes do Super Tucano, avião de treinamento militar. •

PESOUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 65


BRASIL

Avião agrícola movido a álcool

cisa de apenas uma. A nova semente foi desenvolvida durante quatro anos por pesquisadores do Instituto de Pesquisa e Engenharia Genética em Agricultura do Cairo (Ageri). Eles iniciaram o trabalho transferindo o gene chamado HVAI1 da cevada para o trigo. Depois, com as sementes geneticamente modificadas em mãos, eles fizeram o cultivo em estufas e no campo. O coordenador da pesquisa, Ahmed Bahieldin, disse para a agência SciDev.Net que o trigo transgênico cresceu e teve um rendimento melhor que as plantas não-modificadas. Ele acredita que a cultura será importante para as áreas pouco favoráveis a esse tipo de plantação em condições de falta de irrigação, salinidade e alta temperatura. A primeira semente geneticamente modificada do Egito deverá primeiro passar por estudos de segurança para consumo humano e para o ambiente antes de ser colocada à venda. •

■ Computadores mais sensíveis Tornar os computadores mais parecidos com os seres humanos na maneira de pensar e agir. Esse é o objetivo de um projeto que reúne 160 pesquisadores de 27 instituições da Europa, coordenados pela Uni-

versidade Queen de Belfast, na Irlanda do Norte. "Computadores que respondem de acordo com as emoções humanas podem soar como ficção científica, mas esse limite está prestes a ser quebrado", diz Roddy Cowie, da Faculdade de Psicologia da universidade e coordenador do projeto. Foram destinados € 10 milhões para a pesquisa, que tem duração prevista de quatro anos e envolve a criação de uma interface multimodal que permitirá à máquina perceber e responder de acordo com o que o usuário espera dela. "Atualmente, o uso dos computadores é limitado pelo fato de que precisamos de um teclado e uma tela para acessá-los. Haveria uma enorme diferença se nós pudéssemos interagir com eles falando normalmente, talvez por meio de um microfone ou transmissor", disse Cowie. "As interfaces de pronúncia que existem atualmente ignoram os comandos caso a frase não esteja completa", ressalta. Por isso os pesquisadores envolvidos no projeto estão desenvolvendo métodos de programação para tornar os computadores mais intuitivos. Dessa forma eles poderiam ter um tipo de "personalidade", mostrar algum grau de autonomia e, em geral, estabelecer uma relação social com o usuário. •

Ipanema sai de fábrica certificado para voar com álcool

A aeronave agrícola Ipanema, equipada com motor movido a álcool hidratado, recebeu em outubro a certificação do Centro Técnico Aeroespacial (CTA). Com isso tornou-se o primeiro avião de série no mundo a sair de fábrica certificado para voar com esse tipo de combustível. O Ipanema, fabricado pela Neiva Indústria Aeronáutica, subsidiária da Embraer, é o campeão de vendas da empresa, com quase 30 anos de produção e cerca de mil unidades vendidas. A escolha do álcool foi motivada pelo fato de o Brasil ser um grande produtor desse tipo de combustível. O motor a álcool permite um aumento em torno de 5% na potência, melhorando o desempenho do avião pela diminuição da distância de decolagem, velocidade e altitude máximas. Além disso, polui menos que a gasolina de aviação porque não possui chumbo em sua composição. A Neiva já registrou o nome AvAlc (Aviation Alcohol) no

Brasil para o uso dessa fonte de energia. Até agora, a empresa já recebeu 69 pedidos de conversão do motor a gasolina para álcool, trabalho previsto para ser executado até janeiro do ano que vem. A certificação do Ipanema ocorreu no mesmo mês em que a empresa comemorou 50 anos. Fundada em 12 de outubro de 1954 pelo projetista José Carlos Neiva, no Rio de Janeiro, para produzir os planadores BN-1 e Neiva B Monitor, dois anos depois transferiu-se para Botucatu, no interior do Estado de São Paulo, onde está até hoje. No começo da década de 1980, a Embraer comprou o controle acionário da empresa e passou a responder pela produção de todos os aviões leves fabricados pela Neiva. Alguns anos depois transferiu a montagem do turboélice Brasília para Botucatu. Hoje produz componentes do jato ERJ 145, da Embraer, além de partes do Super Tucano, avião de treinamento militar. •

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LINHA DE PRODUçãO

DRASIL

Cães imunizados com menos riscos .: Uma nova vacina contra a bactéria, responsável pela arvovirose canina, baseada produção de proteína do vítecnologia do DNA rerus que vai ativar a geração combinante, foi desenvolviCOi de anticorpos. "A vantagem da na Universidade Federal do novo método é que a de Minas Gerais (UFMG) e amamentação não prejudijá está sendo produzida ca a imunização dos filhopelo Laboratório Hertape. tes", diz a professora Erna A previsão é que no início Kroon, coordenadora do de 2005 ela já esteja no merLaboratório de Vírus da cado. Enquanto a vacina universidade e integrante da mineira usa apenas proteíequipe do projeto. Com 30 nas do vírus para estimular dias os filhotes já podem ser o sistema de defesa dos cães, vacinados. A parvovirose é as vacinas atualmente disuma doença que causa proponíveis no país utilizam o blemas intestinais e grave próprio vírus enfraquecido. desidratação, além de ser de Para produzir a nova vacifácil contágio. Os animais na, os pesquisadores analisão vacinados ainda filhotes, sam o material genético do entre a sexta e a nona semavírus e selecionam alguns gena de vida, fase em que muines para colocar em uma -~tos ainda estão sendo ama-

Z

■ Soja identificada em 30 segundos Metodologia desenvolvida no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) possibilita em apenas 30 segundos, sem necessidade de repetir a análise, diferenciar as sojas transgênica, normal e orgânica. A caracterização dos diferentes cultivares do grão é importante para obter a certificação da origem do alimento, exigência feita por vários países importadores do produto. A China, por exemplo, um dos maiores compradores mundiais, não permite a entrada de transgênicos em seu território. Pelo novo método, o extrato de isoflavonas, substâncias existentes na soja, é analisado no espectrômetro de

massas, equipamento que permite visualizar com precisão o universo molecular. A partir de um marcador químico, o equipamento faz a diferenciação dos cultivares. O resultado é apresentado na tela do computador por meio de gráficos e dados estatísticos. A principal vantagem da

66 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

mentados. Por isso o grande problema da aplicação da vacina tradicional é que os anticorpos maternos impedem a multiplicação do vírus atenuado e, com isso, diminuem sua eficiência. Outra vantagem apontada é que por ser uma proteína não há risco tanto na produção da vacina como na disseminação de vírus no ambiente. Os estudos que resultaram no novo produto foram iniciados em 1999 pela equipe do professor Paulo César Peregrino, a pedido do Hertape. •

nova metodologia, apontada pelos pesquisadores envolvidos no estudo, é que ela dá uma resposta direta, sem margem para dúvida. A técnica em uso atualmente, que utiliza a biologia molecular, pode gerar um resultado "falso positivo", o que exige nova análise para confirmação. •

Marcador químico caracteriza cultivares da soja

■ Petróleo testado em laboratório As instalações destinadas ao Laboratório Experimental de Petróleo (Labpetro), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já estão prontas. Assim que estiver finalizada a infra-estrutura e os equipamentos comprados, o que deve ocorrer até o final deste ano, o laboratório, fruto de parceria entre a universidade e a Petrobras, entrará em operação. A empresa brasileira repassou em setembro, como parte de um convênio destinado à implementação do Labpetro, R$ 1,3 milhão, valor que se soma aos R$ 900 mil destinados à universidade no ano passado para a construção das instalações. O laboratório tem como objetivo


desenvolver tecnologias que permitam à Petrobras aperfeiçoar o processo de produção de petróleo, principalmente o de alta viscosidade. •

■ Alerta sobre roubo de carro no celular Alguém arromba a porta do seu carro para roubá-lo e imediatamente aparece no visor do celular uma mensagem de alerta, não importa a distância em que você esteja do veículo. "Ao digitar um código com dois números no teclado do telefone, o carro é bloqueado, sem necessidade de o usuário entrar em contato com uma central de monitoramento, como ocorre com outros sis-

^>CX Bloqueio pelo telefone

temas à venda no mercado", diz Clédiston dos Santos Silva, um dos criadores do sistema. O Kalarm, nome comercial do alarme que está na fase de protótipo, foi desenvolvido pela Sea Wireless, empresa incubada no Centro de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico (CDT) da Universidade de Brasília (UnB). "O dispositivo permite ainda que o proprietário controle a velocidade do carro quando estiver sendo dirigido por outra

pessoa", relata Silva, sócio da empresa. As funções serão definidas no momento da compra, que se dará na forma de um contrato de concessão, a um preço aproximado de R$ 400,00 e mais uma taxa de manutenção mensal em torno de R$ 25,00. A previsão é que dentro de oito meses estará no mercado, mas os sócios da Sea Wireless estão à procura de um investidor para começar a produzir o sistema em escala industrial. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Operador treinado para termelétrica Da mesma forma que um piloto de avião utiliza um simulador para treinar manobras, os operadores de centrais termelétricas, usinas geradoras de energia elétrica, agora também têm um local de treinamento. O primeiro simulador de centrais termelétricas do país já está instalado na Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais. "É um laboratório de qualificação de operadores", explica o professor Marco Antônio Nascimento, do Núcleo de Excelência em Geração Termelétrica e Distribuída da universidade. No centro de treinamento estão instaladas oito estações de trabalho, que reproduzem a sala de controle de uma usina. O modelo utilizado é o de uma termelétrica de ciclo combinado (opera com duas turbinas a gás e uma a vapor), com potência de 712 megawatts (MW), tendo como combustível gás natural ou diesel. O simulador complementa os cursos teóricos para operadores que, ao longo do tempo, costumam repetir procedimentos básicos, mas quando ocorre uma emergência nem sempre estão preparados para tomar a decisão mais correta. •

Casca de arroz: um resíduo bem aproveitado

Energia e sílica Processo desenvolvido no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) permite preservar o valor comercial da sílica extraída da casca de arroz quando ela é queimada a temperaturas de até 800°C para gerar energia elétrica em centrais termelétricas. Antes de ser utilizada, a matéria-prima passa por uma etapa de escolha de modo de preparação: as cascas podem ser lavadas em água quente ou pré-aquecidas e moídas, sem o uso de ácidos. Esse processamento antes da queima final resulta em grande melhoria na qualidade desse rejeito agrícola, poluente do solo e da água e, normalmente, desprezado pelos agricultores. O resultado final é a transformação da massa orgâ-

nica em sílica de dimensões de partículas nanométricas e sem carbono. A sílica pode ser usada na construção civil, na indústria de tintas e vernizes, em pastas de dentes e pneus, além de servir de condicionador quando aplicado com adubo, para reter a água de solos arenosos. Todo o processo deve ser feito em uma termelétrica, o que resulta na produção de energia elétrica durante o processo de queima. Título: Aproveitamento da energia e dos compostos inorgânicos resultantes da queima da casca e da planta do arroz Inventores: Milton Ferreira de Souza e Marcos César Persegil Titularidade: USP/FAPESP

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TECNOLOGIA FARMACOLOGIA

Extrato de pariparoba exerce ação antioxidante contra o sol e deve chegar ao mercado em breve


mostrou em estudos realizados na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo atividade protetora contra os raios ultravioL. leta do tipo UVB, os mais lesivos para a pele. A descoberta resultou em um pedido de patente e interessou à empresa Natura, que disputou e venceu a licitação de concessão to de produtos de uso cosmético (gel, creme, filtro solar), com exclusividade para o Brasil e o exterior, realizada pelo Grupo de Assessoramento ao Desenvolvimento de Inventos (Gadi), da universidade. "O potencial antioxidante da molécula encontrada na pariparoba, responsável por proteger a pele dos radicais livres, chamou a atenção da Natura", diz Jean Luc Gesztesi, pesquisador da área de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa. "Por isso temos a firme intenção de usar o extrato em produtos cosméticos." Por enquanto ainda não há data prevista de lançamento, porque o desenvolvimento de um produto demora de seis meses a dois anos. Mas a empresa já tem contrato com um produtor para fornecer o extrato da raiz da pariparoba (Pothomorphe umbellata) dentro de algumas especificações, como a porcentagem exata do princípio ativo. A padronização é importante para garantir que a resposta do extrato vegetal seja sempre a mesma, característica chamada de reprodutibilidade. "A pariparoba é usada há muito tempo pela medicina popular para tratamento de má digestão, doenças do fígado, como icterícia, e queimaduras", diz a professora Silvia Berlanga de Moraes Barros, orientadora de Cristina Dislich Ropke na tese de doutorado, financiada pela FAPESP, que levou à descoberta da atividade fotoprotetora da planta da família das piperáceas, encontrada principalmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e sul da Bahia. As pesquisas com a pariparoba começaram, na realidade, com uma investigação sobre


a atividade de proteção hepática atribuída à planta, que não foi concluída. "Um olhar mais detalhado sobre a pariparoba mostrou que ela apresentava uma substância que já havia sido descrita pelo grupo de fitoquímica do Instituto de Química da USP em 1981", relata Silvia.

'O

composto (4-nerolidilcatecol), molécula enI contrada no extrato da raiz da planta, tinha algumas características de estrutura química muito semelhantes às do alfa-tocoferol (vitamina E), antioxidante usado em formulações cosméticas que hoje estão nas prateleiras para prevenção do envelhecimento cutâneo, porque é um excelente protetor da membrana celular", diz a pesquisadora. A semelhança de características levou a um estudo in vitro para medir a atividade antioxidante do composto extraído da raiz, realizado pelo professor Paulo Chanel Deodato de Freitas, também da FCF, na época em que ele fazia doutorado, concluído em 1999. "Como verificamos que o composto tinha atividade bem mais potente que a do alfa-tocoferol e apresentava características físico-químicas que poderiam justificar o uso em formulações cosméticas, resolvemos testá-lo na pele", conta Silvia. Os experimentos foram feitos então em camundongos sem pêlos, uma linhagem desenvolvida pelos biotérios, que não precisam ser depilados, evitando-se assim microlesões na pele e interferência nos resultados da pesquisa. O estudo tinha como objetivo mostrar se o extrato de pariparoba inibia a peroxidação espontânea da pele - reação química também chamada de oxidação -, que contribui para o envelhecimento cutâneo e pode ocorrer ainda por radiação solar. "No nosso modelo, nós tratávamos os animais com uma formulação muito simples, sem nenhum tratamento tecnológico", diz Silvia. Depois de aplicado e o excesso ser retirado, o produto permanecia na pele por um período predeterminado. A seguir, as pesquisadoras avaliavam se a oxidação era mais reduzida nos animais tratados com o extrato. "Os exames de microscopia feitos nos camundongos mostraram que o composto previne o envelhecimento cutâneo", relata Silvia.

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Após essa constatação, as pesquisadoras decidiram reproduzir o que acontece na natureza, com a exposição dos animais à radiação ultravioleta. Nessa etapa foi escolhida uma formulação para o extrato e feito um estudo de permeação, que significa quanto do produto fica na pele e quanto é absorvido. Essa informação é importante porque parte das lesões por radiação, como o câncer de pele, por exemplo, concentra-se na epiderme e parte, como o fotoenvelhecimento, na camada da pele logo abaixo, ou seja, a derme. O estudo levou ao desenvolvimento de uma formulação em forma de gel com o extrato retirado da raiz. Embora outras partes da planta também apresentem a substância com atividade antioxidante, é na raiz que ela se concentra mais intensamente. Raiz com propriedade antioxidante

Raios UVB - A próxima etapa foi expor os camundongos à radiação UVB, uma parte da radiação ultravioleta que penetra até a epiderme. Os raios UVB atuam sobre a superfície da Terra entre 10 e 15 horas e são os principais responsáveis pelas queimaduras solares e, a longo prazo, pelo câncer de pele. O tratamento com os camundongos foi feito durante dez minutos, quatro vezes por semana, por um período de 22 semanas. "Com isso verificamos que enquanto a radiação promove grande aumento das células da camada da epiderme, a chamada hiperplasia epitelial, que pode levar ao desenvolvimento de células cancerígenas, os animais tratados com o extrato apresentavam hiperplasia reduzida", relata Silvia. Foi quando a pesquisadora percebeu que estava diante de algo novo, porque até aquele momento não havia sido comprovada em estudos a atividade fotoprotetora da pariparoba. Em função dessa constatação, em 2002 foi apresentado o pedido de patente do uso do extrato de

Pothomorphe umbellata em preparações dermocosméticas ou farmacêuticas para prevenção e combate ao dano causado à pele pela exposição excessiva aos raios ultravioleta do sol e a lâmpadas de bronzeamento artificial, além das alterações causadas pelo envelhecimento cronológico. Outras funções da pariparoba continuam a ser pesquisadas no laboratório da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Os estudos estão centrados nos mecanismos bioquímicos de ação da planta. "As pesquisas mostram resultados interessantes na área farmacêutica, mas que ainda não podem ser revelados", diz Silvia. A ligação entre redução da hiperplasia e controle de crescimento celular pode significar a ponte para fármacos que regulem o desenvolvimento de células cancerígenas. Para chegar ao extrato da raiz que já possui resultados comprovados em laboratório, os pesquisadores utilizam uma técnica clássica de extração a frio,


Extrato pronto para uso cosmético

chamada percolação. É um método totalmente artesanal, em que as raízes, após serem colhidas, são secas e moídas. Depois passam por uma peneira, chamada tamis, com os poros controlados, para que a extração obedeça a um padrão predeterminado. Só então é feita a extração a frio com etanol, para retirada do extrato bruto. Por esse método a raiz tem de ficar constantemente umedecida pelo etanol para que as substâncias químicas sejam extraídas por decantação. Isso demora de dois a três dias, até que seja esgotado tudo o que tinha a ser extraído. Só então é feita a retirada da molécula de interesse para ser incorporada à formulação em forma de gel ou creme. Depois de o pedido de patente ter sido efetuado, Silvia achou que era o momento de a universidade abrir uma licitação para escolher um laboratório que pudesse produzir comercialmente produtos cosméticos à base de pariparoba. A licitação envolve o pagamento

de royalties sobre a venda do produto, que a empresa prefere não revelar, e a transferência de tecnologia por parte da universidade. A USP e a FAPESP, responsável pela concessão da bolsa de doutorado, receberão, cada uma, 50% do contrato com a Natura. As duas instituições vão repassar parte dos valores para os pesquisadores. A Funda0 PROJETO Uso de extrato de Pothomorphe umbellata para preparar composições dermocosmética e/ou farmacêutica MODALIDADE Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI) COORDENADORA SILVIA BERLANGA DE MORAES BARROS

INVESTIMENTO R$6.400,00 (FAPESP)

ção financiou também o pedido de registro internacional da patente, por meio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual do Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Papi/ Nuplitec). O uso do extrato da pariparoba é um dos projetos com potencial inovador que tem origem na universidade e a Natura aposta no seu aproveitamento comercial. Para isso, a empresa lançou no primeiro semestre deste ano o programa Natura Campus, que resultou em 44 projetos apresentados pelas universidades e institutos de pesquisa à empresa, dos quais 13 foram selecionados e enviados para a FAPESP, como parte do programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE). Destes, sete foram aprovados pela Fundação. Para Gesztesi, a geração de novos conhecimentos na universidade aplicados pela indústria pode contribuir para o desenvolvimento de produtos diferenciados. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 71


ITECNOLOGIA

METALURGIA

Reciclagem Empresa transforma sucata em matéria-prima usada na produção de ligas de alumínio

YURI VASCONCELOS

Uma guinada na linha de produção e o arrojo para pesquisar e desenvolver um produto mais adequado às necessidades do mercado foram os dois principais motivos que levaram a Mextra, uma pequena empresa de engenharia especializada no processamento de metais, a alcançar a posição de liderança na fabricação de pastilhas com produtos metálicos usadas na produção das ligas de alumínio. Com sede no município de Diadema, na Grande São Paulo, a companhia deve atingir em 2004 um faturamento de US$ 6 milhões, praticamente o dobro do ano passado, com 60 funcionários. Parte dessa receita é proveniente de vendas para o mercado externo. "Aproximadamente 30% do volume de produção, estimada em 200 toneladas mensais, é comercializado para cerca de 20 clientes no exterior. Embora tenhamos 26 anos de atuação no mercado, faz apenas seis anos que criamos a linha de fabricação de pastilhas. Devemos a ela o formidável crescimento da empresa", afirma o engenheiro metalurgista Ivan Calia Barchese, um dos sócios da Mextra. Pastilhas portadoras de elementos de liga - também chamadas de pastilhas endurecedoras - são fundamentais para a fabricação da grande maioria de produtos de alumínio, como janelas residenciais, utensílios domésticos e até asas de avião. Essa interação é importante porque o alumínio é um material 72 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 105

naturalmente maleável e para aumentar sua resistência mecânica é necessário adicionar os tais elementos de liga. Os mais comuns são ferro, cobre, cromo, manganês e titânio. "Feitas de pós prensados ou compactados, essas pastilhas são semelhantes às efervescentes de vitamina C em tamanho gigante (medem 85 milímetros de diâmetro e 40 de espessura e pesam cerca de 1 quilo) que, adicionadas ao alumínio em estado líquido, se dissolvem conferindo a ele novas propriedades mecânicas", afirma o engenheiro metalurgista Lúcio Salgado, pesquisador-colaborador do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Inovação em pastilhas - Para ganhar mercado e firmar-se como líder do segmento, o pulo-do-gato da Mextra foi inovar o processo de fabricação dessas pastilhas compostas de dois elementos metálicos. No lugar de fazer uma pastilha a partir da mistura de dois pós distintos (por exemplo, de ferro e de alumínio, que é a mais procurada do mercado), a empresa investiu na pesquisa e na elaboração de um novo processo para obtenção de um pó pré-ligado, que já contivesse em sua estrutura final os dois elementos. "A partir da fusão de sucatas de aço e de alumínio e de um processo chamado atomização, produzimos as pastilhas na composição desejada e não precisamos mais utilizar pós comprados no mercado", conta Ivan Barchese. "Desenvolvemos um produto adequa-

do do ponto de vista ambiental, uma vez que usamos material reciclado, e com custo de produção inferior ao do vendido no mercado. Além disso, as pastilhas têm qualidade superior, porque as propriedades do pó, como tamanho e composição química do grão, podem ser mais bem controladas, já que sua fabricação é feita por nós." O desenvolvimento do pó pré-ligado com ferro e alumínio só foi possível com o apoio financeiro da FAPESP por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). O trabalho contou com a fundamental participação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), que domina a tecnologia do processo de atomização de pós metálicos. "Atomização é um processo semelhante à pulverização. A liga metálica fundida de ferro e alumínio é pulverizada e transformada em pó, já na composição adequada", diz o pesquisador Salgado, que foi o coordenador do projeto PIPE. "Embora o processo de atomização seja conhecido e dominado em escala comercial desde os anos 1940, até hoje nenhuma empresa do mundo tinha feito uma liga de ferro e alumínio por esse método", conta Salgado. Em função do ineditismo do produto em nível mundial, as pastilhas da Mextra, na proporção 90% de ferro e 10% de alumínio, e o processo de produção resultaram em patentes depositadas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e também em outros dois países: Estados Unidos e Venezuela, onde estão os


Forno transforma sucatas em um filete líquido de metal que depois será pulverizado e transformado em pó


Sucata: material deve ter mínimos teores de carbono e outras impurezas, para o processo, como cobre, cromo, níquel e silício

principais clientes da empresa. A Mextra deve depositar, em breve, patentes em outros países.

"O

primeiro passo do processo de produção das pastilhas é a escolha da sucata, que deve ser composta de aço com teores mínimos de carbono", diz Salgado. Também não é desejável que ela tenha impurezas de outros elementos, principalmente cobre, cromo, níquel e silício. Feita a seleção, a sucata, cuja tonelada é vendida por cerca de R$ 500, é fundida em um forno a indução (o aquecimento é direto no metal e não nas paredes do forno) e aquecida até uma temperatura da ordem de 1.700°C. Depois que o metal toma a forma líquida, ele escorre para uma grande panela vazada através da qual se produz um filete líquido com cerca de 12 milímetros de diâmetro. Com o uso de um dispositivo chamado bocal de atomização, esse filete é bombardeado por um jato de água de alta pressão, levando à sua pulverização e produzindo o pó. "O choque da água com o filete em estado líquido leva a uma fragmentação do metal", afirma Salgado. "Para controlar o tamanho e a morfologia das partículas, os principais parâmetros a serem observados são pressão e vazão da água, temperatura do metal líquido e diâmetro do filete", diz ele. De acordo com Barchese, o processo de fabricação do pó metálico por atomização está praticamente concluído. "Por enquanto, a nova pastilha de ferro e alumínio é colocada no mercado em pequena quantidade. Estimamos que já foram produzidas cerca de 20 toneladas do produto. No momento estamos adequando algumas etapas da produção para atender os clientes de forma mais ampla", diz Barchese. A Mextra investiu cerca de R$ 2 milhões na montagem de uma planta industrial para a fabricação do pó atomizado. No futuro, a empresa terá capacidade de produzir 400 toneladas por mês da pastilha com material reciclado. "Além do

74 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

produto inovador, o processo também é uma novidade, pois todo o maquinado foi desenvolvido ao longo do desenvolvimento do PIPE, que deve ser concluído em abril do próximo ano", informa Barchese. "Acreditamos que dentro de dois anos nossa pastilha préligada entrará de vez no mercado." Clientes no exterior - Atualmente, a Mextra tem em seu portfólio de clientes os principais produtores de alumínio do país, como as indústrias Alcoa, Alcan, Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), BHP Billiton e Valesul, uma subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce. "A Alcoa, por exemplo, só compra pastilhas de ferro produzidas por nós. Entre as várias aplicações do pó prensado que vendemos para eles está a produção de folhas finas de alumínio para embalagens, conhecidas como tetrapak. Esse é um material muito sofisticado e a pastilha empregada precisa ser de boa qualidade, caso contrário a lâmina de alumínio pode ficar com impurezas e romper durante o processamento", explica Barchese. No exterior, a Mextra vende seus produtos para fábricas dos Estados Unidos, Canadá, México, Espa-

nha, França, Colômbia, Venezuela, Argentina, Taiwan e países do Oriente Médio. Um contrato firmado recentemente com a Alcan visando a exportação para a Europa prevê a entrega de pós metálicos produzidos por atomização. A parceria com o IPT para o desenvolvimento do pó atomizado foi a segunda firmada entre a Mextra e o centro de pesquisas paulista. Antes dela, a empresa já tinha recorrido, em 2000, ao Programa de Apoio Tecnológico à Exportação (Progex), promovido em conjunto com o IPT, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) de São Paulo e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. "Naquela ocasião, estávamos pretendendo disputar o mercado internacional e sabíamos que precisávamos ter um produto com qualidade e preço competitivo. Procuramos o IPT para nos ajudar a aperfeiçoar nossas pastilhas, que naquela ocasião já eram exportadas para uma empresa venezuelana. A parceria incluía a realização de estudos de compactação das pastilhas sem perda de eficiência. Isso significa que elas não podem ser duras demais, pois nesse caso


Pastilhas com 90% de ferro e 10% de alumínio: usadas pelas indústrias para aumentar a resistência mecânica das ligas de alumínio

sa é a Divisão de Serviços Especiais, que oferece serviços de moagem, classificação de metais e desenvolvimento de ligas metálicas de acordo com as necessidades do cliente. Esse mesmo setor beneficia ferro ligas, manganês em escama ou pó e ligas de alumínio.

levam muito tempo para se dissolver no alumínio líquido, nem muito frágeis, pois correm o risco de se esfarelar durante o transporte", conta Barchese. Os bons resultados desse trabalho conjunto serviram para iniciar as pesquisas visando ao desenvolvimento das pastilhas pré-ligadas de ferro e alumínio. A Mextra foi criada em 1978 pelo engenheiro Eduardo Barchese, pai de Ivan, que decidiu colocar em prática sua tese de doutorado defendida na Es0 PROJETO Produção de pós-metálicos, pré-ligados por atomização para aplicação na fabricação de pastilhas para adição de elementos de liga em banhos metálicos de alumínio MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR Lúcio SALGADO - Ipen-Mextra INVESTIMENTO R$ 373.600,00 (FAPESP)

cola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) sobre a transformação de minérios em metais por meio de uma técnica chamada aluminotermia (obtenção de altas temperaturas por meio do calor gerado em reações químicas entre o alumínio era pó e óxidos metálicos). Montou uma empresa pequena focada na fabricação de metais e ligas metálicas dirigidas para os mercados de fundição e siderúrgico. Eduardo Barchese também foi professor na PoliUSP e na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI). Aços especiais - Hoje a indústria está estruturada em três diferentes setores. A Divisão Cromo fabrica oxido de cromo verde, produto utilizado como matéria-prima na fabricação de refratários especiais e como pigmento verde na indústria cerâmica. Essa mesma divisão é responsável pela fabricação de cromo metálico, metal que a Mextra foi pioneira na fabricação no Brasil, e carbeto de cromo, ambos empregados na produção de eletrodos e aços especiais que exigem propriedades metalúrgicas superiores, tais como resistência mecânica à abrasão e à corrosão. Outro setor da empre-

A terceira divisão é a de pasti/% lhas de elementos de liga ^^^ para alumínio. Essa linha m W de produtos, o carro-che^L -m. fe da empresa, foi batizada de Mextral. Além das pastilhas de pó de ferro e alumínio atomizado, a empresa oferece ao mercado outras quatro pastilhas, produzidas a partir da mistura de diferentes pós metálicos (cromo, manganês, cobre ou titânio). Todas, exceto a de ferro, têm em sua composição de 10% a 25% de pó de alumínio e cada uma confere uma propriedade diferente ao alumínio. As pastilhas de ferro, por exemplo, aumentam a resistência mecânica do material à temperatura elevada, enquanto as de cromo reduzem a corrosão sob tensão. As pastilhas de manganês e cobre elevam a dureza do alumínio, ao passo que as de titânio melhoram as propriedades mecânicas em geral. Os bons resultados comerciais da Mextra, que possui um sistema de qualidade baseado na certificação ISO 9001:2000, levaram a uma expansão da empresa, que deverá inaugurar até o início do próximo ano uma nova unidade fabril na cidade de Taubaté, na região do Vale do Paraíba, em São Paulo. A construção da fábrica, orçada em R$ 3 milhões, contou com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Quando começar a funcionar, a instalação de Diadema ficará voltada para a fabricação de pastilhas pré-ligadas de ferro e de alumínio. "Estamos otimistas com o futuro da empresa. Fabricamos um produto global e estamos certos de que, com os investimentos que temos feito nos últimos anos, iremos cada vez mais ocupar um lugar de destaque no mercado internacional", diz Barchese. • PESUUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 75


ITECNOLOGIA

AGRICULTURA

Um grão para germinar Região Nordeste ganha nova variedade de amendoim de pele clara e resistente à seca MARCOS DE OLIVEIRA

Se sairmos por este Brasil afora perguntando quem gosta de pé-de-moleque e paçoca, poucos, muito poucos, vão responder não. Doces feitos de amendoim ou mesmo o grão puro e torrado ou cozido fazem parte das preferências nacionais, principalmente na Região Nordeste, responsável pelo segundo lugar em consumo no país com 50 mil toneladas de vagens por ano, embora só produza 13 mil toneladas. Com tamanha popularidade e altos índices de proteína, o amendoim deverá estar mais disponível nos campos dessa região a partir do segundo semestre do próximo ano quando uma nova variedade de sementes desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estará disponível aos agricultores. Chamada de BRS Havana, ela foi preparada especialmente para o semi-árido nordestino com as características de ser resistente à seca e render boa produtividade para as condições da região. Outra vantagem importante da nova semente é a película de cor creme que envolve os grãos, e não vermelha como a maioria das existentes no mercado. Películas da cor da semente são extremamente importantes para o agricultor vender sua produção para a indústria de doces e produtos elaborados com amendoim. "Como a película creme é da cor da semente, a indústria pode moer diretamente os grãos para fazer pastas, doces e salgados sem se importar com as impurezas visuais deixadas pela película vermelha", diz a agrônoma Roseane Cavalcanti dos Santos, responsável pelo desenvolvimento das sementes BRS Havana na Embrapa Algodão, em Campina Grande, na Paraíba. "Com a semente parecida com a película elimina-se uma fase do processo industrial, chamada de despeliculação." 76 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

A nova variedade, desenvolvida ao longo de quatro anos, foi planejada para proporcionar um outro benefício aos agricultores. As novas sementes resultam em plantas de porte médio e eretas, do jeito ideal para pequenos e médios produtores que fazem a colheita com a mão, sem maquinário, como acontece em grande parte das culturas da Região Sudeste, responsável por 80% da produção nacional (cerca de 300 mil toneladas anuais), e feita, muitas vezes, em rotação com a cana-de-açúcar. Grandes produtores preferem as variedades que crescem rentes ao solo, chamadas de rasteiras, porque elas favorecem a colheita mecânica. Roseane aponta também um ganho nutricional na nova semente. "A preservação da película garante ao consumidor uma maior dosagem de vitaminas do complexo B, como riboflavina e tiamina. Além disso, as novas sementes contêm 27% de proteína e baixo teor de óleo, 43%, um fator exigido pelo mercado porque assim o produto se torna menos indigesto e com melhor consistência para o fabrico de paçocas." Para formar a nova semente, Roseane liderou uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da Embrapa Algodão, da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agropecuário (EBDA), da Empresa Pernambucana de Pesquisa Agropecuária (IPA), da Embrapa Tabuleiros Costeiros, de Sergipe, e da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Eles utilizaram 250 tipos (também chamados de acessos) de semente da mesma espécie comercial de amendoim, a Arachis hypogaea. A principal variedade utilizada para se chegar à BRS Havana foi um tipo denominado Película Havana, cedido pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e pouco utilizado pelos agricultores da Região Sudeste, onde também existem


outras variedades específicas com película creme. Atualmente, sementes com esse tipo de película têm sido muito procuradas pelos produtores nacionais de amendoim, especialmente das regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, que preferem as variedades rasteiras, como por exemplo a IAC Caiapó. "O problema é que as rasteiras, além de se adaptarem melhor ao clima do Sudeste, não são adequadas ao pequeno e médio agricultor por crescer muito rente ao solo e ter ciclo de 120 a 140 dias, da plantação até a colheita. Os produtores do Nordeste preferem ciclos de 90 dias e sêmen tes bem tolerantes à seca", diz Roseane. A BRS Havana, além de ter essas características, tem a produtividade semelhante à variedade Tatu, plantada na região, e possui de três a quatro sementes por vagem. "Na estação das águas (janeiro a março) no semi-árido, a BRS Havana produz entre 1.800 e 2.500 quilos de vagem por hectare (kg/ha), enquanto a Caiapó, que possui duas sementes em cada vagem, tem uma produção entre 2.300 e 3.500 kg/ha, porém necessita de muito mais água para se desenvolver, exigindo investimentos em irrigação e equipamentos para a colheita mecanizada." Híbrido antif ungos - Os avanços científicos no cultivo do amendoim, uma das poucas espécies comerciais da família das leguminosas a dar frutos embaixo da terra (existem espécies de amendoim forrageiro - Arachis pintoi e A. glabrata - que possuem essa característica), também acontecem em Brasília, na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. Lá, um grupo de pesquisadores, coordenados pelo agrônomo José Francisco Valls, desenvolveu plantas híbridas de amendoim resistentes à mancha-preta, à mancha-castanha e à ferrugem, doenças provocadas por fungos que podem dizimar até 70% da produção. "Os fungos atacam as folhas que depois caem, deixando a planta sem fotossíntese. Assim, não há o crescimento dos grãos e a produtividade é reduzida", explica a agrônoma Alessandra Pereira Fávero. "O que nós fizemos foi levar a resistência natural contra os

fungos de duas espécies selvagens (não selecionadas pelo homem) para a espécie comercial por meio de cruzamento." As duas espécies são a Arachis ipaênsis e a A. duranensis, originárias da Bolívia e da Argentina. Também estão em testes os cruzamentos de A. hypogaea com A. hoehnei (do Mato Grosso do Sul), A. cardenasü (da Bolívia) e A. helodes (Mato Grosso), entre outras.

comerciais têm até quatro grãos. "Para chegar a mais sementes numa vagem precisamos fazer mais cruzamentos para melhorar o híbrido", avalia Alessandra. Essa etapa de melhoramento da planta vai começar a partir do plantio das novas sementes na Estação Experimental do IAC, na cidade de Pindorama, em São Paulo, sob os cuidados dos pesquisadores Sérgio Almeida de Moraes e Ignácio José de Godoy, também do IAC. O trabalho de ambos já resultou no desenvolvimento de cinco variedades nos últimos oito anos, sendo duas já comercializadas. Coleção

Película da mesma cor da semente favorece uso industrial do amendoim

A primeira fase do projeto foi cruzar as duas espécies silvestres que geraram plantas híbridas estéreis e com 20 cromossomos. O problema é que a espécie comercial possui 40 cromossomos, impossibilitando o cruzamento. A saída foi duplicar os cromossomos dos híbridos silvestres por um processo químico em laboratório utilizando uma substância chamada colchicina. Com isso, os pés de amendoim silvestres passaram a contar com 40 cromossomos e se tornaram férteis. Assim foi possível fazer o cruzamento dos híbridos silvestres com a espécie comercial de forma normal por polinização cruzada das flores. Os cruzamentos resultaram em plantas férteis com 50% do genoma da espécie cultivada e 50% da silvestre. Em relação às sementes, as híbridas possuem um ou dois grãos por vagem, como acontece nas espécies silvestres. As

estratégica - "O

plantio dos híbridos, que deve começar até o final deste ano, vai nos mostrar também se a resistência aos fungos prevaleceu na semente híbrida", explica Alessandra. Se comprovados os resultados em campo, o aproveitamento genético dos amendoins selvagens pode crescer. Na sede da Embrapa Recursos Genéticos estão reunidas sementes de 76 espécies de amendoim das 81 existentes no mundo. "Uma das cinco que faltam é da região da cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e está extinta", diz Alessandra. No Brasil foram encontradas 64 espécies, sendo 47 exclusivas do país. A espécie cultivada, segundo os últimos estudos, surgiu na área entre o sul da Bolívia e noroeste da Argentina, embora existam evidências de centros de variação (hábitats secundários provavelmente fruto de transporte e cultivo de humanos) na região do rio Xingu, no Mato Grosso, e no Peru. "Os índios, que já cultivavam o amendoim quando os portugueses chegaram ao Brasil, devem ter espalhado as sementes pelas Américas", conta Alessandra. Além do desenvolvimento de novas variedades de amendoim, mais resistentes a doenças, mais produtivas e adaptáveis à seca, as pesquisas realizadas na Embrapa podem, no futuro, ajudar na repovoação de áreas desmaiadas. Outra possibilidade é oferecer genes que exerçam alguma função importante e necessária para experimentos em transgenia, com a transferência de genes do amendoim para outras espécies. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 77


I TECNOLOGIA QUÍMICA

g marcantes Grafite para lápis e lapiseiras ganha mais resistência com a incorporação de um nanocomposto

SYLVIA LEITE

A multinacional alemã Faberg^k Castell, com a utilização de L^^ técnicas avançadas de caracã M terização e tecnologia deJL. -A. senvolvidas em parceria com o Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), obteve um grafite mais resistente, sem alteração da deposição, que é a intensidade da marca do grafite sobre o papel, e da maciez do produto. As melhorias implementadas como resultado de dois anos de pesquisas permitiram que os lápis e o grafite para lapiseiras, chamado de minas, alcançassem o nível de qualidade internacional, sem alteração do preço para o consumidor, relata Vladimir Barroso, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da empresa. Na produção de lápis grafite, a empresa é líder nacional, com cerca de 2,5 milhões de grosas (unidade de medida que eqüivale a 12 dúzias) anuais, além de ser a única fabricante de minas para lapiseira do grupo em todo o mundo. De acordo com Barroso, a melhoria da resistência e a manutenção de outras qualidades dos produtos vão garantir a liderança no mercado nacional e ajudarão a Faber-Castell a expandir sua participação em novos mercados. "Desenvolver um produto que atendesse às exigências do mercado internacional era fundamental para preservar essa participação", diz o professor Edson Leite, coordenador da pesquisa no Liec, laboratório que integra o Centro Multidisciplinar de Desenvolvimento de Mate78 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

riais Cerâmicos (CMDMC), um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Patente do catalisador - O principal desafio da equipe de pesquisadores consistiu em preencher os poros e as fissuras deixados na estrutura das minas de grafite durante a etapa de queima ou sinterização, quando os compostos orgânicos ali presentes se decompõem transformando-se em gás. Para isso, foi empregado um nanocomposto organometálico, ou moléculas orgânicas ligadas a metais, que já havia sido desenvolvido e patenteado pelo Liec para ser usado como catalisador (acelerador de reações químicas), principalmente na conversão de metano e etanol em hidrogênio. "Nossa tarefa foi adaptar esse

0 PROJETO Nanocomposto para grafite MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR - Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos ELSON LONGO

INVESTIMENTO

R$ 1.200.000,00 anual para todo o Cepid (FAPESP) R$ 1.000.000,00 específico para o projeto (Faber-Castell)

nanocomposto ao grafite e ao processo de produção da empresa", conta Leite. A utilização do nanocomposto, além de ser compatível com o coeficiente de expansão térmica (aumento de volume dos materiais durante o aquecimento) e com a estrutura cristalográfica (arranjo estrutural interno) do grafite, permitiu um bom desempenho do produto final e um custo aceitável pelo mercado. "Antes da parceria com o Liec, nós pensamos em usar um composto obtido por pesquisadores japoneses que custava US$ 2 mil o quilo e possuía reduzida estabilidade, necessitando de cuidados especiais de transporte, armazenagem e manuseio. O desenvolvimento do novo composto no Liec levou o produto a um custo 600 vezes inferior ao material japonês, sem apresentar dificuldades de estocagem e de manuseio, além de ter a vantagem de não conter solventes tóxicos em sua composição", diz Barroso. O gasto adicional decorrente da introdução de mais um componente na formulação do grafite foi compensado, segundo o gerente de P&D da empresa, pelo aumento da resistência do produto. Essa alteração proporcionou redução de perdas na industrialização dos lápis e das minas. "Com o grafite mais resistente, obtivemos uma redução de 2% sobre o índice de rejeitos e um conseqüente aumento de produtividade", comemora Barroso. No entanto, era preciso ainda realizar melhorias nas matérias-primas (grafite, argila e resinas) e em várias etapas do processo de produ-


Lápis com o novo grafite: resistente sem perder a maciez e a intensidade da escrita no papel

ção (mistura, extrusão, pirólise e sinterização) para permitir sua adaptação ao grafite. Os detalhes desse processo e a composição do organometálico e suas modificações são tratados como segredo industrial pelos pesquisadores. Eles revelam apenas que foram estabelecidas melhorias na pureza das matériasprimas e na homogeneização dos materiais. "Desenvolvemos metodologias de ensaios para avaliar o impacto de cada etapa do processo e das matérias-primas no produto acabado", conta Leite. Para a empresa, as tecnologias desenvolvidas em parceria com o Liec custaram cerca de R$ 1 milhão, desembolsados em dois anos. Desse total, R$ 160 mil foram repassados ao laboratório para manutenção de equipamentos e pagamento de técnicos. Outro resultado dessa parceria veio em forma de elogios dos pesquisadores alemães, na sede da Faber. "Eles ficaram bastante surpresos com as tecnologias introduzidas no processo", diz Barroso. Ele ressalta que o departamento de P&D brasileiro é o único que a multinacional mantém fora da sede. Oito pesquisadores, da universidade e da empresa, trabalharam diretamente no processo de melhoria do novo grafite. "Essa parceria com o Liec possibilitou a contratação de dois doutores, que antes pertenciam à equipe do laboratório, e a capacitação de todos os funcionários da empresa que se envolveram de alguma forma com o projeto", diz Barroso. • PESQUISA FAPESP 105 • NOVEMBRO DE 2004 ■ 79


CAPA ARQUEOLOGIA

. | Pré-história *

ilustrada Pinturas e gravuras revelam a diversidade de formas e estilos da arte rupestre nacional

MARCOS PIVETTA

Cinco homens encurralam um bicho imenso. Estão armados, arcos e flechas em suas mãos. O robusto animal, talvez um veado, parece apoiar as patas traseiras no chão ao passo que as da frente cortam o nada. Cercado, o cervo ensaia a fuga enquanto cada membro do quinteto firma a mira. Do combate, só sairá um vencedor - ou cinco (veja imagem ao lado). Mas nunca se saberá quem. Isso não importa. Importa é que a cena de caça está preservada há milhares de anos e é apenas parte de uma imensa pintura rupestre da Toca do Estevo III, um dos mais de 700 sítios pré-históricos encontrados no Parque Nacional Serra da Capivara, criado em 1979 em São Raimundo Nonato, município do sudeste semi-árido do Piauí. Rostos, rostos e rostos. Enigmáticos. Rindo. Com ar sério. Com cabelo, ou seria um cocar. Alguns acompanhados de tronco e membros. Outros soltos no ar, sem corpo. Todos expressivos, embora sem interagir entre si. A sucessão de cabeças forma mais um mosaico do que uma cena. Bichos por perto, aparentemente não há. Quem sabe, no máximo, um peixe estilizado ao lado de uma cara feliz. Afinal, o rio Cajueiro, um dos afluentes do Amazonas, corre ali ao lado. É difícil interpretar as gravuras rupestres de Boa Vista, um dos sete sítios pré-históricos de Prainha, município do noroeste do Pará. Redigidos em linguagem simples, acessível a não-especialistas, dois livros recentes, dos quais se extraíram as imagens acima descritas, dão tratamento de protagonista para a arte rupestre nacional. Em outras obras, esse tipo de vestígio arqueológico raramente ultrapassa a condição de coadjuvante de fósseis de animais ainda mais antigos, de artefatos ou mesmo de esqueletos do Homo sapiens. A primeira cena, uma pintura cheia de movimento e cor, faz parte de Imagens da Préhistória - Parque Nacional Serra da Pintura na Serra da Capivara, trabalho da francesa AnneCapivara: parque no Marie Pessis, professora da UniversiPiauí tem 600 sítios dade Federal de Pernambuco (UFPE) com arte rupestre 80 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105


PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 81


Pintura encontrada no sítio Toca da Entrada do Baixão da Vaca, no Piauí: ritual de figuras humanas e mascarados

e diretora científica da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade de pesquisa, sem fins lucrativos, que administra o parque federal ao lado do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A segunda, uma gravura mais estática e sem tinturas, consta do título Arte rupestre na Amazônia - Pará, de Edithe Pereira, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém. A s publicações mostram a di/% versidade de técnicas, forL^k mas e temas exibidos pela /m atividade gráfica pré-his^L. JL. tórica em duas áreas do território nacional, o Nordeste e a Amazônia. "As pinturas rupestres são uma porta de entrada para o conhecimento da vida na Pré-história, mas devem ser observadas com um olhar que permita ir além do mostrado, sem interpretações infundadas", escreve Anne-Marie. "Os grandes temas que preocupam a sociedade atual são, em parte, os mesmos que preocupavam as populações em épocas pré-históricas." Editado no final do ano passado pela Fumdham, com patrocínio da Petrobras, o livro sobre os sítios arqueológicos da Serra da Capivara é uma viagem fartamente ilustrada e trilingüe - escrita em português, francês e inglês - ao mundo perdido dos antigos habitantes que, um dia, ocuparam os 130 mil hectares do parque. 82 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

Lançado em abril deste ano, o título a respeito da arte rupestre na Amazônia é uma co-produção do Museu Goeldi e da editora da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), com patrocínio da Mineração Rio do Norte. Na obra, são inventariados 111 sítios com arte rupestre, em especial gravuras, no Pará. Nada mau para um estado (pré-) historicamente associado à produção de cerâmicas, como a marajoara. "Diante da beleza da cerâmica paraense, a arte rupestre foi deixada de lado por muitos pesquisadores, que nem citavam a sua existência em trabalho", afirma Edithe, que, após a conclusão do livro, obteve informações sobre mais 15 sítios com pinturas e gravuras da Pré-história no Pará. A atividade gráfica nos primórdios da humanidade, basicamente desenhos pintados ou gravados sobre pedra por povos do passado distante, está presente em todos os continentes, com exceção da gélida Antártida. Alvo tanto de estudos de pesquisadores como da curiosidade de turistas, as grutas de Lascaux, na França, e de Altamira, na Espanha, são famosas mundialmente por abrigar esse tipo de patrimônio cultural da humanidade. A caverna de Chauvet, também na França, descoberta apenas em 1994, apresenta pinturas de cavalos feitas há 30 mil anos. São os mais antigos desenhos de que se tem notícia. De dimensão quase continental, o Brasil é rico em arte rupestre de norte a sul, de

leste a oeste. "Os sítios com arte pré-histórica acompanham a adaptação do homem ao meio e variam com ele", diz Pedro Ignácio Schmitz, da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. "Aparecem no território brasileiro desde o início de sua ocupação." Patrimônio da humanidade - Além da Amazônia e do Nordeste, há grafismos pré-históricos nas regiões Sul e CentroOeste, como atestam pinturas e gravuras encontradas, por exemplo, em Serranópolis e Caiapônia (Goiás) e em São Pedro do Sul (Rio Grande do Sul). No Sudeste, esse tipo de vestígio arqueológico é comum só em Minas Gerais São Paulo é pobre em arte rupestre. Apesar da abundância de grafismos, só há duas ou três décadas o país passou a olhar com mais carinho e rigor científico os traços primordiais deixados pelos seus mais remotos antepassados. Em território nacional, a maior concentração conhecida dessa antiga manifestação cultural encontra-se no interior do Parque Nacional Serra da Capivara, considerado Patrimônio Mundial pela Unesco (órgão das Nações Unidas dedicado à cultura) desde 1991. Estima-se que haja cerca de 60 mil figuras pintadas (ou gravadas) no parque. Numa região inserida no chamado Polígono das Secas, onde a caatinga encontra o cerrado e não faltam chapa-


r

das, a unidade de conservação é a morada de mais de 700 sítios arqueológicos. "Em cerca de 600 há arte rupestre, em especial pinturas", diz a arqueóloga Niède Guidon, diretora-presidente da Fumdham, que enfrenta constantes dificuldades financeiras para manter o parque e desenvolver a região. "São milhares de figuras que formavam um sistema gráfico de comunicação, um dos primeiros a ser criado no mundo." A maior parte da arte rupestre de São Raimundo Nonato se encontra em abrigos sobre rochas, locais com paredes relativamente protegidas da ação das intempéries. Essa característica, somada ao atual clima semi-árido, atuou a favor da preservação das marcas feitas pelos primeiros habitantes da região. Arte rupestre em Goiás iacima) e no Rio Grande do Sul (á esq.): estilos diferentes

O

s arqueólogos costumam agrupar pinturas e gravuras pré-históricas de estilo e temática semelhantes, feitas muitas vezes com a mesma técnica, numa unidade artística denominada tradição. A mais antiga e complexa tradição de arte rupestre brasileira é a Nordeste, caracterizada por pinturas de cenas e acontecimentos que sugerem movimento, com homens (de no máximo 15 centímetros) interagindo entre si ou com animais. É um tipo de pintura com alta carga narrativa. São desenhos geralmente em tons vermelhos, às vezes com algum amarelo e eventualmente outras cores, que retratam cenas de caça, de dança, de sexo. Uma representação clássica da tradição Nordeste é a de um conjunto de homens em torno de uma árvore, como se estivessem prestando uma reverência ao vegetal. Segundo alguns pesquisadores, essa, diríamos, escola pictórica surgiu há 23 mil anos, talvez antes, e foi praticada até pelo menos 6 mil anos atrás. Seu epicentro foi a área hoje ocupada pelo Parque Nacional Serra da Capivara, de onde se irradiou para outros estados do Nordeste e porções do Centro-Oeste e norte do Sudeste. "As tradições não obedecem às fronteiras administrativas atuais", afirma o pesquisador André Prous, do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda arte rupestre em várias regiões mineiras, como a Serra do Cipó, Diamantina e Lagoa Santa, e em outros estados. PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 83


Obra editada pelo Museu Goeldi e Unesp faz inventário de 111 sítios paraenses com grafismos pré-históricos, sobretudo gravuras (à dir.)

A pesar de predominante, a trai^k dição Nordeste não é a úniL^^ ca presente na Serra da CaÈ m pivara. Outra importante .^L. JL. tradição, também mostrada nas páginas de Imagens da Pré-história, é a Agreste, de origem provavelmente mais recente, de 9 mil anos atrás. Em alguns sítios do parque, como a Toca da Entrada do Baixão da Vaca e as Tocas da Fumaça I, II e III, desenhos dessa escola se sobrepõem ao da unidade artística Nordeste. Na tradição Agreste, menos refinada que a Nordeste, quase não há cenas narrativas e as figuras, em geral homens, são maiores e estáticas. Os únicos acontecimentos retratados que denotam algum movimento são as pinturas de caçadas. Essa escola menos rebuscada de arte rupestre surgiu provavelmente na margem pernambucana do rio São Francisco, local de clima mais ameno do que o sertão do Piauí. Os pesquisadores acreditam que essa linha de pintura desapareceu há 2 mil anos. Outra tradição encontrada esporadicamente no parque é a Geométrica, que, como o nome sugere, produz grafismos mais abstratos, geralmente com linhas tracejadas, e seria originária da Bahia. 84 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

Nominar autores da arte rupestre é virtualmente impossível. Os desenhos são produções coletivas, comunitárias e anônimas. Podem ter sido executados por membros de uma ou de várias culturas que habitaram, de maneira concomitante ou não, uma região. Então a presença de dois estilos de arte rupestre num mesmo sítio arqueológico significa o quê? Que dois povos distintos, com habilidades gráficas díspares, viveram ali em momentos diferentes do passado remoto? Ou que diversas gerações de uma mesma cultura acabaram desenvolvendo formas novas de utilizar pigmentos minerais (dissolvidos ou não em água) para desenhar nas rochas? É difícil dizer. "Uma tradição pode ser a expressão de uma etnia, mas também de várias", pondera Prous. Mais tortuosa ainda é a busca pelo significado dos desenhos da Pré-história. Em Arte rupestre na Amazônia - Pará, Edithe Pereira rememora as principais tentativas de análise da arte rupestre na região Norte feitas por pesquisadores e alguns viajantes. Entre o século 17 e o final do 19, essa forma de manifestação cultural em território amazônico foi alvo mais da curiosidade de aventu-

reiros que da exegese rigorosa de cientistas. No século 20, alguns especialistas mais sérios, mas preconceituosos ou fantasiosos, exploraram novos sítios arqueológicos e opinaram sobre o tema. Ócio indígena - Depois de percorrer o rio Negro e observar as suas gravuras, o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg sentenciou, numa obra escrita em 1907, que os grafismos não queriam dizer nada. "Ele disse que eram resultado, única e exclusivamente, do ócio indígena", diz a pesquisadora do Museu Emílio Goeldi. Desenhos pré-históricos encontrados em outras partes do globo também foram alvo desse tipo de comentário. Na década de 1930, um partidário da idéia de que gregos e fenícios estabeleceram colônias no Brasil e na América do Sul, Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, "traduziu" para o português uma série de sinais "escritos" em gravuras e pinturas rupestres. Silva Ramos comparou os traços presentes na arte pré-histórica com as letras de antigos alfabetos e, assim, "decifrou" a voz esculpida nas rochas. A partir dos anos 1950, o interesse pela arte rupestre amazônica refluiu em


Livro mostra os estilos de arte rupestre do sertão do Piauí e, em menor escala, do Seridó, no Rio Grande do Norte (â esq.)

favor de trabalhos que passaram a explorar a espetacular cerâmica marajoara e tapajônica. Mas, quando começou a estudar a atividade gráfica de povos préhistóricos na Amazônia, no fim da década de 1980, Edithe percebeu que havia muito o que ser pesquisado no Pará. Depois de vasculhar a literatura sobre o tema, empreender viagens a sítios já conhecidos e descobrir novos locais com antigas representações pictóricas, a arqueóloga reuniu informações sobre 111 pontos do estado onde os índios da Pré-história deixaram suas marcas. São 77 sítios com gravuras, 29 com pinturas, 4 com gravuras pintadas e somente 1 com gravuras e pinturas. A maior parte dos grafismos produzidos no Pará não se encontra em cavernas ou abrigos sobre rochas, como acontece no Nordeste e em outras partes do país. Está situado em rochas que surgem ao longo do curso dos rios, locais que, às vezes, ficam sob as águas seis meses por ano. A maior concentração de sítios - 37 com gravuras e 2 com pinturas - fica na bacia do rio Trombetas, no noroeste do estado.

Em termos estilísticos, a arte rupestre no Pará, em especial em sua porção norte-noroeste, acima do rio Amazonas, pouco tem a ver com as pinturas e gravuras de outras partes do Brasil. As figuras humanas, e com menor freqüência de animais, são representadas quase sempre de forma estática, sem que seja possível identificar a representação de cenas. "As gravuras rupestres dessa região se assemelham mais às que encontramos nos demais países amazônicos", afirma Edithe. Há o predomínio de figuras humanas, com cerca de 50 centímetros de tamanho, às vezes só a cabeça, em outras também há o corpo. Alguns rostos entalhados parecem conter expressões de alegria ou tristeza. Existem também gravuras de mulheres, aparentemente grávidas. Até hoje é um desafio situar no tempo essas representações. No Pará, apenas um sítio pré-histórico foi alvo de datação. No início dos anos 1990, a arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt estimou em 11.200 anos as pinturas rupestres da Gruta do Pilão, também chamada Gruta da Pedra Pintada, na região de Monte Alegre, no baixo Amazonas. A idade do sítio, demasiado antiga segun-

do alguns pesquisadores, é alvo de polêmica até hoje. Aliás, controvérsia não falta quando o assunto é determinar a idade de amostras de arte rupestre. Amparada por datações feitas com os métodos do carbono 14 e termoluminescência, a equipe de Niède Guidon sustenta que algumas pinturas da Serra da Capivara, no Piauí, foram realizadas 48 mil anos atrás. Ao lado de restos de fogueiras pré-históricas, igualmente antigas segundo Niède, a arte rupestre do Nordeste seria a prova de que o homem chegou à América antes do que se pensa. É uma afirmação que se choca com uma das idéias mais difundidas pela arqueologia tradicional, a de que o Homo sapiens chegou à América há cerca de 12 mil anos. "Os europeus aceitam essas datações", diz a diretora-presidente da Fumdham. "Alguns norte-americanos, não." Como se vê, na América, a arte rupestre pode ser mais do que uma forma de pré-escrita dos povos pré-históricos, mais do que um dos primeiros legados culturais da humanidade. Pode ser a chave para se saber quando o homem fincou pé no último continente colonizado por nossa espécie. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 85


I HUMANIDADES

Mario de Andrade, por Anita Malfatti, e Clarice Lispector: literatura pode ser quase bolsa de valores

LITERATURA

Companheiro de viagem Estudo discute razĂľes para se aventurar nos romances brasileiros

JOSĂŠ CASTELLO


Por que é importante ler os romances brasileiros? E como escolher as melhores portas de entrada para seu complexo universo? Essas perguntas acabam de receber estimulantes respostas da crítica e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marisa Lajolo. Como e por que ler o romance brasileiro, livro da coleção "Como e por que", da editora Ática, torna-se, de imediato, uma espécie de guia não só para os leitores de primeira viagem, mas também para aqueles acostumados a circular por nossa ficção. "Tenho a maior dificuldade em dar receitas universais", adverte Marisa. "Recomendar livros, mesmo para quem a gente conhece, nem sempre dá certo, o que dirá para quem a gente não conhece!" De fato, o mundo da leitura exercício íntimo, experimentado em recolhimento e silêncio - é regido pelo particular. Muitos fatores ajudam a explicar por que gostamos de um li-

vro, e não nos interessamos por outro, e, ainda assim, nenhum deles, e nem mesmo sua soma, chega a explicar esses dois fatos. Por que alguns preferem Guimarães Rosa, e outros Clarice Lispector? Por que o grupo de leitores entusiasmados de Graciliano Ramos nem sempre é o mesmo daqueles que devoram, com o mesmo fervor, a obra de Machado de Assis? Existem respostas para essas perguntas? Se não existem explicações prontas, essas divergências servem, ao menos, para deliciosos exercícios intelectuais. É a eles que Marisa Lajolo se entrega. "Acho muito interessante discutir o que o tal leitor sem hábito de leitura leu ou o que ele não leu. E por que leu o que leu e por que não leu o que não leu", diz Marisa. De fato, são muitos os motivos que levam um leitor a ler um romance: a opinião de amigos, a atração por um título, o ato de abrir um livro ao meio e ao acaso, dar uma espiada enviesada numa livraria... Maneiras, incertas, de, como Marisa sugere, "deci-

dir, enfim, se o livro tem alguma coisa a lhe dizer". Marisa, é claro, tem sua seleção pessoal de livros prediletos. "Vou responder montando uma estante marota, só de autores falecidos e que foram importantes em minha história de leitura", ela explica. E, assim, chega a uma lista de onze títulos: A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, Iracema, de José de Alencar, Dom Casmurro, de Machado, São Bernardo, de Graciliano Ramos, A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, Grande sertão: Veredas, de Rosa, O tempo e o vento, de Erico Veríssimo, Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, Quarup, de Antônio Callado, A hora da estrela, de Clarice, e Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz. Bolsa de valores - Uma lista respeitável - mas nem por isso imune às interferências dos elementos pessoais. "Se eu tivesse que disfarçar o personalismo da seleção, embrulharia a lista no argumento da recepção. São obras que semPESOUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 87


pre tiveram muitos leitores, que foram reescritas em diferentes linguagens e que, acho, ainda têm coisas a dizer aos brasileiros de hoje." O fato é que, como diz Marisa, a literatura é uma espécie de bolsa de valores, em que títulos e assinaturas sobem e descem, sem que se possa entender claramente os motivos. Mas quase sempre que autores são resgatados, ou valorizados, isso se faz em causa própria, ela alerta - para que sejam proclamados precursores disso ou daquilo, "para conferir a patina do tempo a um determinado traço literário". É um jogo, o literário, que ninguém pratica ingenuamente. Marisa reconhece que, ela também, para escrever seu Como e por que, se submeteu a essa lógica do resgate. Em seu caso, tentando prestigiar nomes como Paulo Setúbal e Coelho Neto, "escritores que foram lidíssimos em seu tempo, mas que hoje são completamente desqualificados pelos estudos literários". Ela admite ainda que é sempre mais difícil falar da produção do presente: no calor da hora, um conjunto de obras é sempre incompreensível. Com o passar do tempo, a crítica literária procura agrupar e gerenciar esses livros, classificando-os em "escolas literárias", "estilos", "gerações", "ismos". São tentativas, dignas - mas não definitivas. Mas, então, como ensinar literatura? Marisa imagina um curso ideal, "meio como se diz que Sócrates ensinava", quer dizer, ensinar passeando devagar com os alunos, discutindo leituras, declamando poesia. Mas, reconhece, o ensino de literatura sempre se compromete com algum tipo de sistematização. A seu ver, todas se eqüivalem. O que importa, mesmo, é se o professor é um leitor "maduro, experiente e apaixonado". O romance é o gênero da versatilidade. "Abrange tanto livrões maravilhosos e difíceis quanto livrinhos igualmente maravilhosos, porém simples e diretos, que todo mundo lê e comenta", diz. Talvez por isso o romance represente, melhor que qualquer outro gênero, a arena na qual mais se manifestam os desencontros entre o grande público e a 88 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

crítica. "Escrevi meu livro com um olho em cada área, tentando levar o leitor a cobrir todo o campo e conhecer as jogadas ensaiadas dos dois times", ela admite. Diferentes romances ajudam na construção de diferentes imagens do Brasil. E há sempre novas imagens a criar, novas perspectivas a descortinar. Mas, ainda assim, Marisa Lajolo acredita que o romance não nasceu para ser ensinado em escolas e para cair em exames. "Muito pelo contrário, o romance parece ter nascido como alternativa às produções escritas, eruditas e sérias, inacessíveis à grande maioria dos leitores." Contudo, com o tempo, ele foi abocanhado pela escola, "correndo o risco de perder o lance de emoção e envolvimento". Marisa dá um exemplo: a informação de que São Bernardo, de Graciliano, é um romance "metalingüístico", como os críticos costumam defini-lo, é mais relevante do que a experiência dramática que a leitura do romance oferece a seus leitores? Não é. Ainda assim, com a sistematização do ensaio, a perspectiva do prazer da leitura fica em segundo plano. É essa a barreira que o leitor deve ultrapassar. Marisa Lajolo não está sozinha em suas avaliações, parte significativa dos

romancistas e críticos brasileiros concorda com ela. "É importante ler o romance brasileiro porque é toda a nossa vida, nossa história, nossa língua e linguagens muito próprias que passam por ele", avalia, por exemplo, o romancista Sérgio SanfAnna. E só por isso: no mais, é ler e encontrar suas próprias razões. "Por que ler o romance brasileiro? Porque ele fala de uma realidade que conhecemos", faz coro o romancista Ignácio de Loyola Brandão. "Mostra personagens que estão em torno de nós, nos são familiares, amigos. Sabemos a linguagem, os códigos, nos sentimentos próximos." Porque nos ajuda a entender quem somos. Embate - Muitas vezes, admite Loyola, é incrível perceber que somos nós, brasileiros, que estamos ali naquele romance. Por isso, ele acredita que "o romance brasileiro pode nos ajudar a entender o nosso modo de viver, de ser e de pensar". Ler romances já é aprender - e, por isso, o leitor não precisa ser um especialista, não precisa aprender a ler. Cada leitor se faz sozinho, no embate silencioso com os livros. Ainda assim, Loyola pensa que o caminho de entrada no mundo do romance brasi-


roz e João Antônio. E ainda Antônio Torres, João Gilberto Noll e Sérgio Sant'Anna. São tantos nomes, tantas escolhas, que toda tentativa se perde sempre na dispersão e na fragmentação.

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A Jorge Amado (esq.) e Machado de Assis: na lista dos livros prediletos de Marisa Lajolo

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A leiro deve começar pelos romancistas contemporâneos. Ele coloca Erico Veríssimo logo na primeira posição, e em seguida Jorge Amado, mas logo depois vêm nomes como Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Antônio Torres, Moacyr Scliar e Salim Miguel, entremeados com nomes obrigatórios como Graciliano, Zé Lins, Callado, Rachel, Mario e Oswald de Andrade, Cornélio Pena. É, sempre, uma lista interminável, mesmo quando o leitor se pauta, unicamente, por seus padrões pessoais. De qualquer modo, Loyola acredita que um autor como Guimarães Rosa deve ser guardado, de preferência, para depois. "Só depois, eu leria o Rosa, porque acho que ele precisa de toda essa preparação." É preciso, sempre, fazer escolhas, e depois acreditar nelas, ou o leitor se perderá. "Dostoievski costumava dizer que todos os escritores russos eram herdeiros de Gogol", compara o romancista pernambucano Raimundo Carrero. "Nós podemos assegurar que somos todos filhos de Machado de Assis." Mesmo quando a escolha, como essa, tende à unanimidade, ainda assim é preciso certa prudência. Carrero, porém, tende a achar que a simples existência de Ma-

chado é uma razão suficiente para a leitura de romances brasileiros. "É uma razão forte demais", ele enfatiza. No século 20, destaca a vitalidade, em particular, de dois movimentos: o Modernismo e o Regionalismo. "Eles geraram, entre outros, romances como Macunaíma, Vidas secas e Fogo morto'' Raimundo Carrero recorda, ainda, uma declaração do grande escritor mexicano Juan Rulfo, autor de uma obra mínima, mas fabulosa, segundo a qual o Brasil tem uma literatura superior à norte-americana. Para entender o peso dessa opinião, basta lembrar, por contraste, que os Estados Unidos são o país de Hemingway, Faulkner e Fitzgerald. Mas, Carrero contrapõe, a tradição ficcional brasileira produziu nomes como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins e Autran Dourado, ao lado de quem faz questão de colocar Erico Verissimo e o em geral esquecido Dyonélio Machado, além de Lima Barreto e Alencar. Na segunda metade do século 20, Carrero escolhe os nomes de Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Adonias Filho, Rachel de Quei-

Televisão - O jornalista e biógrafo Alberto Dines, autor de Morte no paraíso, biografia de Stefan Zweig, prefere refazer a pergunta colocada por Marisa Lajolo e ampliá-la assim: "Como e por que ler textos brasileiros?" Dines reivindica a importância do ensaio, da biografia, do conto e da crônica. E, numa direção contrária, reflete criticamente sobre o destino da prosa de ficção no Brasil. "A prosa brasileira está desaparecendo, em parte por causa da academia e dos cientificismos, em parte por causa dos políticos incapazes de expressar suas idéias com correção", diz. "E, acima de tudo, por causa do predomínio absoluto da televisão na formação de, pelo menos, duas gerações de brasileiros - inclusive de muitos intelectuais entre aspas." Dines alerta, ainda, que nem sempre as melhores coisas estão onde julgamos encontrá-las. "Li, recentemente, as memórias do romancista israelense Amos Oz e as considero o seu melhor romance", ele exemplifica. Recorda, também, os textos preciosos que compuseram os diferentes comentários sobre Fernando Sabino, o escritor mineiro falecido em outubro. "O desabafo de Antônio Cândido foi tocante - ele se sente sozinho!", recorda. "Reunidos, costurados e referenciados, esses obituários comporiam uma espécie de biografia", sugere, mostrando que nem sempre o que se deve ler está nos livros. De fato, o romance brasileiro é um território inesgotável. "O Brasil é desigual demais, vasto demais territorialmente, com regiões tão diversas e um abismo entre classes, o que o torna um país especial", recorda o escritor e crítico gaúcho Paulo Bentancur. "Ele não é horizontal, como a Mongólia, é vertical - e, às vezes, até caótico. Mas isso, é claro, não garante boa literatura." Bentancur lembra que é fácil perder-se na literatura brasileira, "ela é imensa, como o país". Nem por isso devemos abdicar da aventura. • PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 89


I HUMANIDADES

COMUNICAÇÃO

0 drama nosso de cada dia Estudo propõe que o jornalismo é a principal narrativa contemporânea FRANCISCO BICUDO

Há quase 40 anos, o então jovem repórter Luiz Gonzaga Motta foi enviado para a cidade de São João Nepomuceno, interior de Minas Gerais, para apurar o caso de uma urubu fêmea que criava pintinhos como se fossem seus filhotes - e, pior, eles tinham sido roubados. O jornalista conversou com moradores locais, anotou tudo o que viu e ouviu e voltou para o Rio de Janeiro com a certeza que o material renderia no máximo uma pequena nota curiosa. Quando abriu o Jornal do Brasil do dia 19 de novembro de 1967, tomou um susto: a reportagem sobre a mãe-urubu era a manchete da página 21 da edição. Motta guarda até hoje o recorte de jornal em um canto especial, na gaveta da mesa-de-cabeceira. Mas confessa que ficou intrigado: por que um assunto aparentemente tão banal conquistara tanto destaque? "O episódio redirecionou minha vida intelectual", admite. Depois de concluir o mestrado, em 1973, na Universidade de Indiana, e o doutorado, em 1977, na Universidade de Wisconsin-Madison, ambas nos Estados Unidos, passou a se dedicar ao estudo das narrativas. Conseguiu finalmente entender o alvoroço provocado pela matéria da mãe-urubu: o texto encantava porque era capaz de contar uma boa história e de fazer referência a dramas que estariam também relacionados a angústias humanas, como as questões da negritude e da maternidade. Satisfeito por ter encontrado o caminho, seguiu em frente. E, depois de mais de 20 anos debruçando-se sobre o tema, Motta não hesita em afirmar: o jornalismo, atividade que tem suas marcas de identidade e características específicas, conquistou o status de principal e mais representativa narrativa da contemporaneidade. "É fundamentalmente por meio dele que tomamos contato 90 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 105

com as histórias e personagens do mundo atual", afirma. "Mas essa supremacia traz uma série de riscos", alerta o pesquisador, que deve oficializar, ainda neste semestre, a criação do Núcleo de Estudos de Narratologia da Universidade de Brasília (UnB). Para o jornalista, que resgata idéias já presentes na Poética de Aristóteles, compreender as narrativas é im-

Polícia indicia filho portante porque são elas que nos colocam em contato com nossas próprias experiências, medos, virtudes e fraquezas, provocando efeitos catárticos e de identificação e despertando sentimentos muitas vezes escondidos. "Quando lemos um texto e nele nos reconhecemos, somos transportados para a história", afirma. Com a oficialização do núcleo, ele pretende consolidar trabalhos que já vêm sendo desenvolvidos pelo grupo da UnB há 12 anos, além de ampliar as linhas de investigação e estudo. Atualmente a equipe desenvolve quatro teses de doutorado, três dissertações de mestrado e mais duas pesquisas de iniciação científica, abordando temas como mídia e memória cultural, jornalismo como forma de conhecimento e de mediação social e a representação dos políticos nas notícias de televisão. Todos os estudos seguem a idéia do jornalismo como uma narrativa específica, com características intrínsecas, e diferente, portanto, de outras formas de narrativa, como a literatura, o cinema e a história. Segundo Motta, há pelo menos quatro elementos que garantem vida própria ao jornalismo.


Novas evidências reforçam suspeita contra filho

■ AMíUA VIVE PESADELO, DIZ MÃE t

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O primeiro deles estaria ligado à relação sempre conflituosa que estabelecemos com o tempo. Motta recorre às teorias do filósofo francês Paul Ricouer para afirmar que o jornalismo é a forma que o homem contemporâneo encontrou não apenas para lidar com o tempo, mas para tentar dominá-lo. Surgiria dessa relação a sensação de apropriação. O pesquisador lembra que, ao presentificar as ações e apresentar a idéia de que tudo está acontecendo aqui e agora - estratégia reforçada inclusive pelos verbos usados em suas manchetes e textos -, o jornalismo preenche o tempo de conteúdo. "Passamos a organizar passado e futuro a partir do momento atual", explica. Já o segundo elemento aponta o jornalismo como uma forma de expressão colocada entre a história e a literatura. Isso porque, ao mesmo tempo que trabalha com a intenção de buscar a verdade possível e está baseado no conhecimento racional, na organização lógica de idéias, devendo se sustentar em fatos e documentos concretos, faz uso de recursos narrativos literários para contar suas histórias. Segundo Motta, mesmo no jornalismo que se pretende totalmente objetivo, nos textos mais áridos e frios, é possível encontrar dramas humanos, enredos, personagens, diálogos, conflitos, ritmo, clímax e ambientações. Ele usa como exemplo notícias que tratam das taxas de juro no país. À primeira vista, poderiam ser consideradas matérias técnicas - portanto menos atraentes. No entanto, elas recorrem a estratégias discursivas que têm como propósito humanizar a narrativa - as explicações do ministro da Fazenda, o destaque para o impacto do aumento ou da queda dos juros sobre o consumo popular, a descrição da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), as críticas de políticos da oposição. Motta garante: não há texto jornalístico sem narrativa, que pode aparecer com maior ou menor intensidade. E, se a intenção é criar identidade e atrair a atenção do leitor, o pesquisador destaca outra das principais estratégias da narrativa jornalística: o uso do suspense. "Há sempre um sentido que não 92 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

se completa e que mantém acesas perguntas como 'o que vai acontecer amanhã?'", destaca o professor. A explicação ajuda a compreender aquele que é considerado o terceiro elemento definidor - a seqüência de capítulos e episódios. Motta lembra que o início e o fim das histórias contadas pelo jornalismo são apenas mais ou menos definidos - e jamais estabelecidos com precisão absoluta. Em geral, uma notícia aparece por conta de um momento de ruptura, conquistando destaque e gerando repercussões na sociedade, até que se chega a uma situação em que se acredita que ela tenha se esgotado - e o fato desaparece. A recente invasão de uma escola em Beslam, na Rússia, por militantes separatistas chechenos, fazendo mais de mil reféns, a grande maioria crianças, ilustra as afirmações do pesquisador. A ocupação da escola marca a ruptura - a ordem natural dos fatos foi alterada. A partir de então, transportados para a história, passamos a acompanhar, diariamente, as negociações com a polícia, o sofrimento dos parentes, a invasão iminente do local para tentar libertar os reféns. Logo depois do desfecho, que resultou na morte de dezenas de pessoas, quando a situação volta ao normal, acaba perdendo importância e não demora a sumir do noticiário. "Há uma sucessão de episódios conectados entre si que formam a narrativa", reforça Motta. Apesar do caráter aparentemente aleatório - ou até mesmo autoritário - do ciclo de vida do noticiário, o pesquisador faz questão de lembrar que a relação que as notícias estabelecem com o público não é impositiva. Resgatando as teorias de pensadores como Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, da Universidade de Constanza, no sul da Alemanha, que falam da recepção como um ato ousado e criativo, ele garante que é o leitor quem converte textos em interpretações, introduzindo nele seus marcos de referência e a sua compreensão prévia do mundo. Em sua análise, o pesquisador não esquece a dimensão ética da atividade justamente o quarto e último elemento-chave. Motta afirma que as histórias contadas pelo jornalismo têm sempre um pano de fundo moral, que estabele-

ce lições de vida, delineia as fronteiras entre o bem e o mal, o permitido e o proibido, o belo e o feio, ajudando a consolidar valores e princípios e uma teia de tecidos e significados que garantem a ordem social. Estaria próximo, como define o pesquisador, das fábulas infantis, sempre preocupadas com finais morais. O caso do ex-assessor de Assuntos Parlamentares do Ministério da Casa Civil, Waldomiro Diniz, é lembrado como uma das mais recentes e importantes situações que seguem esse caminho. Para o professor da UnB, o risco se manifesta quando a narrativa jornalística utiliza sua dimensão ética de forma exagerada, extrapolando as funções da profissão e passando a ocupar papéis que são da polícia, como acontece em casos de telefones grampeados ou com os dossiês anônimos que chegam às redações e são publicados ou veiculados. Com base nessas quatro características, Motta não tem dúvidas em afirmar que o jornalismo não reproduz fatos, mas revela versões possíveis sobre eles. A proposta contraria um dos mais antigos mitos que marcam a profissão - a idéia da neutralidade e do jornalismo como uma fotografia fiel e exata da realidade. Conhecida como "teoria do espelho", e nascida nos Estados Unidos, no final do século 19, a tese ainda hoje encontra respaldo tanto em redações quanto em cursos universitários, inclusive no Brasil. Para contestar essa perspectiva, Motta dialoga com autores como Eduardo Meditsch, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que aborda a singularidade jornalística e sua capacidade de suscitar dúvidas e de estimular o espírito crítico e a produção de conhecimento; com Cremilda Medina, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), que trata o jornalismo como a arte de tecer o presente; e também com Alfredo Vizeu, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) que classifica a notícia como uma construção social da realidade e apresenta o jornalismo como um saber explicativo. Ao reforçar a supremacia conquistada pela narrativa jornalística e desta-


car o espaço que ocupa nas sociedades atuais, o pesquisador afirma que ela pode ser vista como uma espécie de herdeira do teatro grego, que, na Antigüidade, era o responsável por explicitar e levar para os palcos tragédias e comédias da humanidade. Já na era da globalização, as conquistas e os conflitos são narrados pelo jornalismo - e é por meio dele que promovemos a nossa catarse moderna. Da guerra contra o Iraque às eleições municipais no Brasil, do debate sobre células-tronco e clonagem à discussão sobre a taxa de juros, do Protocolo de Kyoto à alta dos preços do petróleo - os mais diversos assuntos só parecem ganhar significado e existência concreta quando publicados pelos jornais ou veiculados pelas rádios, TVs e internet. Para Motta, a experiên-

futilidades e fofocas. "São idéias hegemonicamente vigentes na sociedade, independentemente de sua real pertinência no contexto histórico", completa. A fragmentação e a superficiaã^k lidade, outras características / ^k do jornalismo contemporâ/m neo, ajudam a compor um ^L, -A_ cenário ainda mais perigoso. A preocupação maior das notícias é com o factual, o imediato e o parcial, e a ausência de contextos, de causas e conseqüências e de explicações leva a uma apreensão muito frágil e desconectada da realidade. "Enxergamos apenas a ponta do iceberg, compara Motta. O grande risco, segundo o pesquisador, seria a formação de sujeitos alienados e atomizados, incapazes de estabelecer relações

Testemunha com medo Guarita do vigia que diz ter visto Gil Ruçai sair da casa do pai foi queimada.

•Ele quer passar a palavra de Deus na prisão' cia de ler, ver ou ouvir notícias se transformou em um ato ritualístico que se repete diariamente. É a maneira que encontramos para manter contato permanente com a realidade. "A história que fica é a jornalística", reforça. Raquel Paiva, coordenadora do programa de pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), concorda com o professor da UnB e diz que é o jornalismo quem nos aponta os fatos que seriam importantes, dizendo quais os assuntos que merecem ser conhecidos e os que podem ser descartados. Ela chama a atenção, no entanto, para um dilema mais do que perigoso: algumas das marcas principais da atual atividade jornalística são a velocidade de produção e a rapidez de circulação, que se estabelecem com sérios prejuízos para a qualidade da informação. "A volatilidade favorece o erro e o discurso do senso comum, que acaba por reforçar estereótipos, preconceitos e exclusões" adverte a professora, que também estuda as narrativas desde meados dos anos 1980. Ela cita como exemplo a imagem que muitas vezes o jornalismo constrói da mulher, como alguém que estaria apenas preocupado com a aparência e com

e de compreender a complexidade das situações, e sem o repertório necessário para participar das discussões públicas. A linguagem de videoclipe anestesia e paralisa. O conflito árabe-israelense parece ser sintomático dessa situação: sabemos que há ataques militares e de homens-bomba acontecendo diariamente, mas será que conseguimos compreender de fato as razões de tanto ódio e as histórias desses dois povos? Como contraponto à fragmentação, Raquel sugere a necessidade de construção do que chama de narrativas inclusivas - capazes de ir além do factual, de oferecer detalhes e descrições e de incentivar a reflexão, promovendo assim a democratização do conhecimento. Seria o resgate da reportagem de mais longo fôlego, da narrativa em profundidade e do jornalismo interpretativo - aquele que oferece o maior número possível de relações e de informações ao público, sem escorregar nas opiniões ou no sectarismo e na parcialidade. Motta sugere que outras narrativas - história, literatura, cinema - se juntem à jornalística para ajudar a compor realidades mais complexas e menos impositivas. "O jornalismo é uma narrativa importante", reforça. "Mas não é a verdade absoluta." •

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RESENHA

Um majestoso marquês Reedição recupera brilho da biografia de Pombal TIAGO

C. P.

DOS REIS

MIRANDA

Nove anos depois de voltar do Pará, onde vivera desde formado, com grande sucesso, e iniciara carreira de homem de letras, João Lúcio de Azevedo publicou em Lisboa O Marquês de Pombal e a sua época. Nota preliminar de duas páginas esclarecia que se tratava de uma obra infensa a polêmicas. Pela análise de documentos originais, ultimamente acrescidos de testemunhos do próprio Marquês, em cartas e notas particulares, apresentava-se como versão "alguma vez porventura" diversa dos "fatos, quais se passaram", embora, decerto, comprometida com a verdade: "A verdade histórica, que é realmente a verdade crítica". Gestava-se então no país um outro regime. E como Pombal há muito se impunha entre os exemplos dos republicanos, o livro editado teve uma venda expressiva. Treze anos mais tarde, ao comentar com Capistrano as peripécias de nova edição, o próprio João Lúcio adiantava que, para além do que dera a Antônio Sérgio, para matriz, só possuía o exemplar que utilizava. Em caso de necessidade, muito difícil seria alcançar um terceiro, sendo esgotado o estoque da Livraria de A. M. Teixeira, e não se encontrando nos alfarrabistas nenhuma outra cópia. A nova edição acabou por sair no Rio de Janeiro em meados de agosto de 1922. Com patrocínio da Seara Nova e da Renascença. A essa altura, o seu autor era também conhecido por uma série de outros trabalhos, quase todos clássicos já à nascença, como Evolução do sebastianismo, História de Antônio Vieira e História dos cristãos-novos. Juntavamse a eles diversos artigos de erudição, em várias revistas, de que merece destaque o Boletim de 2a classe da Academia das Ciências de Lisboa. Anos depois, sairiam também as Épocas de Portugal econômico: para alguns, sua maior obra-prima. Surge agora em São Paulo o ambicioso projeto de reeditar todos os títulos autônomos desse notável representante da historiografia portuguesa, ou, mais propriamente, luso-brasileira. E O Marquês de Pombal e a sua época é o volume que marca o ar94 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 105

ranque da iniciativa. Existem detrás dessa escolha razões institucionais, ligadas à programação acadêmica de João Lúcio de Azevedo uma entidade atualmente Alameda / Cátedra mantida com o concurso do Jaime Cortesão Instituto Camões, do Ministério dos Negócios Estran400 páginas / R$ 54,00 geiros de Portugal: a Cátedra Jaime Cortesão. A partir de meados do mês de novembro, tanto na Universidade de São Paulo (USP) como na Pinacoteca do Estado e no Museu do Ipiranga, vão ocorrer debates e exposições em torno do novo papel que o governo d'el-rei d. José reconheceu a São Paulo, sobretudo a partir do governo do Morgado de Mateus. Permanecendo, porém, ainda hoje, como uma espécie de referência obrigatória entre especialistas do século 18, e tendo interesse provado para leitores de outras áreas ou simples amantes de boa prosa, O Marquês de Pombal e a sua época dificilmente é uma aposta arriscada. Neste novo volume, todo o trabalho denota cuidado e muito bom gosto. A mancha das páginas é agradável e o tamanho adotado convida à leitura na palma da mão. O personagem que serve de tema surge na capa com os irmãos que o ajudaram a fazer fortuna: Paulo de Carvalho e Ataíde, sacerdote da Igreja Patriarcal, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado dos Negócios Ultramarinos. Abraçam-se os três num oito deitado - sinal de infinito -, como que a representar as grandes virtudes da união. Outra gravura marcante se encontra no termo da obra, por contraponto a esse retrato encomendado para o futuro: A expulsão dos jesuítas, de Rafael Bordalo Pinheiro - onde nos ombros do majestoso marquês repousa a cabeça do Zé Povinho. Amigo chegado de Columbano, talvez João Lúcio se divertisse com essa sátira. Aos nossos olhos, ela relembra também a duradoura eficácia da sua obra na desmontagem de idéias-feitas. 0 Marquês de Pombal e a sua época

TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa


LIVROS \>*asi|7íQi;

Freud:

Grandesertao.br Willi Bolle Duas Cidades / Editora 34 480 páginas / R$ 44,00

a presença da antigüidade clássica Ana Lúcia Lobo Associação Editorial Humanitas/ FAPESP 332 páginas / R$ 30,00

A partir do estudo aprofundado da bibilioteca particular de Freud, incluindo-se todas as anotações e grifos feitos pelo pai da psicanálise neles, a pesquisadora quis averiguar a ligação fundamental entre os seus estudos e descobertas e as suas leituras sobre textos da antigüidade clássica. O que surge é um painel fascinante de como boa parte das conclusões que levaram à criação da psicanálise derivam dessas suas buscas pela cultura dos gregos e romanos. Associação Editorial Humanitas (11) 3091-2920 www.fflch.usp.br/humanitas

Um moralista nos trópicos: o Visconde de Cairu e o Duque de Ia Rochefoucauld

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Um especialista na literatura rosiana, o professor de literatura alemã da Universidade de São Paulo, ZT~ Willi Bolle, consegue a proeza de trazer uma nova luz ao mais estudado dos textos de Rosa, Grande Sertão: Veredas. Para Bolle, o clássico pode ser lido como uma reescrita crítica de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, dessa forma, o pesquisador consegue inserir a obra de ficção em meio a todo o manancial de grandes estudos de interpretação do Brasil, entre esses, os estudos de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Faoro, Celso Furtado e, entre outros, Antônio Cândido. Livraria Duas Cidades (11) 3331-5134 / Editora 34 (11) 3816-6777 www.duascidades.com.br / www.editora34.com.br

Modos de ver a produção do Brasil

Pedro Meira Monteiro Boitempo 328 páginas / R$ 42,00

A obra restabelece o diálogo entre o Visconde de Cairu e o autor francês das Máximas. Assim podemos colocar frente a frente um dos fundadores do Império brasileiro e o cínico espectador da decadência da aristocracia francesa moderna. Entre os dois, em comum, o conservadorismo como ideal. Mas com base também, já que se colocava diante de ambos o dilema de erguer uma sociedade e depois mantê-la, contendo "desvios" de conduta. Boitempo Editorial (11) 3872-6869 www.boitempo.com

Nascimento da antropologia cultural: a obra de Franz Boas Margarida Maria Moura Editora Hucitec 400 páginas / R$ 65,00

PRODUÇÃO -

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José Ricardo Figueiredo Autores Associados/EDUC/FAPESP 648 páginas / R$ 59,00

DO BRASIL

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Baseado no conceito marxista de modos de produção, o autor traça um panorama fascinante das várias teorizações que pretendem dar conta de como se estruturou o processo econômico e social brasileiro. Trata-se, sem dúvida, de um trabalho de fôlego, que analisa, de forma consistente, as idéias de Celso Furtado, Varnhagen, Roberto Simonsen, etc. Educ (11) 3873-3359 www.pucsp.br/educ

A militarização da burocracia: a participação militar na administração federal das comunidades e da educação Suzeley Kalil Mathias UNESP/FAPESP 232 páginas / R$ 35,00

Nascido em 1883, na Alemanha, Franz Boas, após uma viagem ao Canadá, escreveu um artigo que virou o destino da antropologia. Ao criticar o método evolucionista vitoriano, lançou as bases para a uma nova antropologia, que deixava de ser feita nos gabinetes para se desenvolver no trabalho de campo. Entre os seus vários discípulos, mesmo indireto, está o nosso Gilberto Freyre.

Uma tema delicado tratado com seriedade nessa pesquisa sobre como se deu a relação entre os militares e as políticas públicas, entre os anos de 1963 e 1990, ou seja, pouco antes do golpe e no fim da ditadura. É de assustar o quanto educação e comunicação atuais estão presas ao passado autoritário dos anos de chumbo.

Editora Hucitec (11) 3060-9273 www.hucitec.com.br

Editora da Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br PESQUISA FAPESP 105 ■ NOVEMBRO DE 2004 ■ 95


Na fila do correio NELSON DE OLIVEIRA

A fila das agências do correio é tão longa e arrastada que, para as pessoas não se irritarem ainda mais, f\ há cartazes espalhados por toda parte pedindo aos usuários que evitem os temas polêmicos. O 1 V aviso é muito claro: não discutam política. Não comentem a última partida da seleção brasileira. Não falem sobre o capítulo final da novela das oito, tampouco sobre a conjectura de Poincaré ou a propriedade ferromagnética da nanoespuma de carbono. De preferência, não abram a boca, que é para não ficarem ainda mais irritados. Essa é a mensagem dos cartazes. É pena que ninguém dê a menor bola a eles. Não se sabe exatamente como o tumulto começou. Parece que a garota de jaqueta vermelha, com dezenas de envelopes azuis, era secretária do matemático cuja equipe comprovara, havia poucas horas, a teoria das cordas. A senhora de vestido caqui e brincos helicoidais sentiu-se ultrajada. Ela não aceitava o resultado de muitas das equações da tal comprovação. Quando soube que a garota era secretária do matemático, começou a resmungar baixinho. Depois mais alto. Então passou a ofendê-la. Em seguida a agredi-la. A garota teve que sair do correio às pressas. O velhote de cavanhaque, meias roxas e colete cinza deu força à senhora de vestido caqui e brincos helicoidais: — Esses cientistas nunca se decidem. Ora dizem que o mundo é assim, ora dizem que é assado. — Fazem gato-sapato das nossas crenças mais queridas, sem a menor cerimônia. Sacripantas! — a senhora de vestido caqui e brincos helicoidais esbravejava. — A matéria do Universo, por exemplo. Cristo Rei! Primeiro Tales disse que o ingrediente básico do Universo era a água. Depois Anaxímenes disse que era o ar. Então Heráclito disse que era o fogo. Aí vieram os atomistas dizendo que a matéria do Universo era formada da combinação mecânica e fortuita de átomos... Diabos, decidam-se! — Depois Thomson descobriu o elétron e desmentiu a idéia do átomo indivisível — a magricela de tatuagem no ombro direito meteu a colher. — Depois Rutherford concebeu o modelo planetário do átomo: pequenos pontos distribuídos no imenso espaço vazio. É, pequenos pontos girando em torno do núcleo. Como no sistema solar — o velhote disse, antes de entregar os envelopes ao atendente. — Depois Planck, Einstein e Bohr incorporaram ao modelo de Rutherford a hipótese dos quanta. Isso pôs fim à idéia de que o átomo seria o constituinte último da matéria — o enfermeiro de colar de madrepérola disse, assoando o nariz num lenço de papel. A senhora de vestido caqui e brincos helicoidais estava possessa: — Se dependesse deles, dado o imenso intervalo vazio entre os elétrons e o núcleo atômico, a gente passaria a vida acreditando que o átomo é constituído basicamente de nada... É ou não é? Tô errada? O mundo feito de nada?! — Lembram quando o tempo ainda era tido como uma das intuições a priori dos sentidos? Lembram? — ergueu o dedo raivoso a professora de bale com manchas nas bochechas. — Para Newton e Kant o tempo sempre existiu. Mas para os físicos de hoje, ah, não, para essa corja o tempo é uma dimensão que passou a existir a partir de determinado momento da formação do Cosmo! Outro exemplo? Essa teoria das cordas. Até há poucas horas as leis que regiam o microcosmo não faziam sentido no macrocosmo e viceversa. E a senhora de vestido caqui e brincos helicoidais: — É, cada lei na sua praia. Cada qual contava a sua versão da história. — Agora essa maldita teoria das cordas! — atalhou o enfermeiro de colar de madrepérola. — Mamãe, que teoria é essa? — quis saber o menino fantasiado de Homem-Aranha. — Fala baixo, Horácio. Vem cá que eu te explico. Sabe a teoria geral da relatividade? — Sei. — Sabe a mecânica quântica? — Ô, mãe! É claro! — Então. Na procura do modelo capaz de unificar as leis do macrocosmo com as do microcosmo, a última caixinha encontrada é essa aí da teoria das cordas. Segundo essa teoria a partícula fundamental do 96 ■ NOVEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP105


Universo não se parece com um ponto, mas sim com uma linha. Ainda segundo esse modelo, as dimensões da realidade não são apenas quatro: comprimento, largura, altura e tempo. São dez! Sendo que as outras seis são pequeníssimas, imperceptíveis aos nossos sentidos. — Ah... Entendi. — Teorias. Teorias. Teorias — a senhora de vestido caqui e brincos helicoidais não conseguia se controlar. O tumulto foi ganhando proporções assustadoras. A chamada eletrônica soava, os atendentes faziam sinal, porém ninguém mais se dirigia aos guichês. Ninguém queria mais saber de cartas, cartões-postais ou encomendas. — Cara, tô farto desse troca-troca! — alguém no meio do amontoado gritou. — No começo a Terra era plana. Na época de Pitágoras ela se tornou esférica e foi parar no centro do Universo. Durante treze séculos o modelo cosmológico que prevaleceu foi o geocêntrico, aperfeiçoado por Ptolomeu. Mas é claro que a alegria durou pouco. É claro que Copérnico tinha que jogar água fria na rapaziada. — Jogou água fria? Então, pra esquentar as idéias, devia ter sido atirado na fogueira, o gajo. Que nem fizeram com Giordano Bruno. — Bem-feito pra esse Giordano. Quem mandou mexer com o que estava quieto? — Com Copérnico a gente deixou de figurar no centro do Universo. Mas a crença de que o Sol localizava-se no centro da galáxia durou mais um tempinho. — Ah, era tão bom quando a gente estava no centro. Não entendo essa necessidade de estar fora do centro de tudo, de descentrar-se a qualquer custo. — É a sensação de vazio. Os jovens de hoje adoram a sensação de vazio. Principalmente os matemáticos. Eles adoram! O ilustrador de livros infantis: — Tudo culpa dos pré-socráticos. Foram eles, não é? Os primeiros sujeitos a explicarem a origem do Universo e do homem, e a realidade sensível, sem lançar mão de mitos e deuses? Não adianta tentarem me enganar. Foram eles os primeiros cientistas, sim! Foram eles que deram a deixa para Ptolomeu, Galüeu, Newton, Einstein e toda a corja. A costureira com problemas respiratórios: — Para o inferno os pré-socráticos! O entregador de pizza vesgo e meio coxo: — Para o inferno a causalidade! Para o inferno as ciências exatas! Para o inferno o pensamento lógico! As cenas que se seguiram jamais deveriam ter sido mostradas na tevê. A turba saiu em passeata e se misturou às pessoas preocupadas apenas com abobrinha, banana e tangerina, na feira montada em frente ao correio. O quebra-quebra começou quando, ofendido com as declarações sem pé nem cabeça da senhora de vestido caqui e brincos helicoidais, o dono da barraca de ovos atirou doze deles na velha e nos seus partidários (para ele a teoria das cordas era de inestimável valor). Se as pessoas respeitassem mais os cartazes afixados nos correios, a taxa de violência nas nossas cidades nunca atingiria níveis tão insuportáveis.

é escritor e mestre em Letras pela USP. Publicou, entre outros, Naquela época tínhamos um gato, Subsolo infinito e O filho do crucificado. NELSON DE OLIVEIRA

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