O parasita do cérebro

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Ciência e Tecnologia

Maio 2005 • N° 111

FOLHAS BRASILEIRAS NO CHANEL N° 5

e no Brasil

FAPESP


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TroplNet.org .

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A conexão entre as dolnças tropicais e seus pesquisadores. Se você faz parte da comunidade médica e científica e tem interesse em compartilhar experiências e informações sobre as doenças tropicais. já existe um espaço virtual que pode transformar esta conexão em mais um passo para solucionar o problema. TropiNet™é uma rede que pode conectar pesquisadores de todo Brasil envolvidos com o tema. Uma proposta de responsabilidade social da Novartis que valoriza o trabalho de profissionais como você. Acesse o site www.tropinet.org

(l) NOVARTIS


A IMAGEM DO MÊS

BERÇÁRIO DE ESTRELAS Uma imagem da nebulosa Águia, a 7 mil anos-luz da Terra, foi divulgada pela Nasa no dia 25 de abril para comemorar os 15 anos de órbita do telescópio espacial Hubble. A foto mostra uma gigantesca torre de poeira e gás, comum em áreas de intensa formação este lar. Desde que começou a operar, o Hubble já tirou mais de 750 mil fotos do espaço.

PESQUISA FAPESP 111 • MAIO DE 2005 • 3


PeiqeTe~iiisa

www.revistapesquisa.fapesp.br

FAPESP

12

ENTREVISTA Carlos Augusto Monteiro fala do fenômeno da transição nutricional e mostra como a obesidade

36

destronou a fome no rol dos grandes problemas

CAPA A neurocisticercose,

24

Nova edição dos Indicadores da FAPESP

de saúde do país

moléstia

registra aumento nos

escamoteada pelo descaso e pela falta de diagnóstico, começa

gastos públicos com ciência e tecnologia

a mostrar a sua real dimensão

42

POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

27

50

CIÊNCIA

REPORTAGENS

INVESTIMENTOS

GEOLOGIA

50 MIL

EPIDEMIOLOGIA

TELECOMUNICAÇÕES

-75MIL

30

Projeto KyaTera integra por

Como a cultura machista

Estudos em cavernas revelam

meio de fibras ópticas

contribui

o clima do hemisfério

dezenas de laboratórios

a Aids na América Latina

46

INCLUSÃO

para disseminar

QUíMICA

Rede de Tecnologia Social

Formulações com rutênio

difunde soluções inovadoras

podem servir de base

em comunidades

para futuros medicamentos

carentes

4 • MAIO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 111

Sul de

milhares de anos atrás

55

FíSICA Equações simples explicam a localização de objetos que parecem surgir do nada


64

ENGENHARIA QUíMICA Exploração das folhas do pau-rosa, em vez de cortar o tronco, garante produção de perfume francês e preserva a floresta

72

Técnicas de exploração

Projeto resgata complexidade

e de gestão ajudam pequenos

das relações entre missionários e indígenas

ENGENHARIA FLORESTAL Manejo não impede a redução no estoque de

86

certas espécies de árvore

74

a ter mais renda

HUMANIDADES

TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA Fungos e bactérias são a base de detergentes para a limpeza de aparelhos hospitalares

ANTROPOLOGIA

do rebanho leiteiro produtores

68

82

PECUÁRIA

SEÇÕES

ECONOMIA

A IMAGEM DO MÊS

3

Estudos mostram as relações dos poderes Executivo e

CARTAS .......•......•......•.....

6

CARTA DO EDITOR ......•.......•....

9

Legislativo com os lobistas

90

MEMÓRIA

MÚSICA

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10

...........•.......•....

ESTRATÉGIAS

.......•.......•.....

LABORATÓRIO

........•......•....

18

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ENGENHARIA ELÉTRICA

SCIELO NOTíCIAS ...•......••......

Empresa desenvolve equipamentos de precisão

LINHA DE PRODUÇÃO

32 58 60

para uso na agricultura LlVROS··························94

6

NOVOS MATERIAIS Grafite desenvolvida

FICÇÃO··························9 por

Academia tenta entender como

brasileiros e uruguaios

e por que o samba ganhou

tem propriedades

importância

magnéticas

Capa e ilustração:

Hélio de Almeida

no século 20

PESQUISA FAPESP 111 • MAIO DE 2005 • 5


CARTAS cartas@fapesp.br

Células-tronco Acabo de receber e ler a revista Pesquisa FAPESP (edição 110). Gostei muito! Parabéns a Claudia lzique e ao Marcos Pivetta pelas reportagens de capa sobre a Lei de Biossegurança. Ficaram 1O!

diagnóstico, tratamento e aconselhamento genético, implantados no início da década de 1970. ANTONIO

SÉRGIO RAMALHO

Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp Campinas, SP

ALUIZIO BOREM

Universidade Federal de Viçosa Viçosa,MG Parabéns pelas reportagens referentes à biossegurança (edição 110). Esta revista vem apoiando a biotecnologia brasileira de forma séria, respeitando os cientistas. Parabenizo-os também pela excelente entrevista com Mayana Zatz, um exemplo de cientista, uma lição de vida e um orgulho para as mulheres

EMPRESA QUE APóiA A PESQUISA BRASILEIRA

{') N O V AR TIS

LUCIANA DI ClERO

Departamento de Ciências Florestais Esalq/USP Piracicaba, SP

TroplNet.org

Mayana Zatz Parabenizo Pesquisa FAPESP pela interessante entrevista com Mayana Zatz (edição 110). Como geneticista clínico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acompanhei de perto a evolução da genética médica durante os últimos 30 anos em nosso país e posso testemunhar a grande contribuição científica e assistencial da Mayana, incluindo o seu empenho entusiasmado, porém prudente, em relação às pesquisas com célulastronco embrionárias. Gostaria também de mencionar outras doenças genéticas freqüentes no Brasil, além das citadas na entrevista. As hemoglobinopatias (síndromes falciformes, talassemias etc.) são atualmente as doenças hereditárias monogênicas mais freqüentes. Pela sua importância em saúde pública, as hemoglobinopatias foram as primeiras doenças genéticas a contar com programas brasileiros de triagem populacional, 6 • MAIO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 111

Colesterol Por muito tempo, durante a hora do almoço, acompanhei esta revista, tirando uma "casquinha" do exemplar de uma pesquisadora. Assim foi, até que, no início deste ano, ganhei uma assinatura de presente. E qual não foi minha surpresa ao ver que, logo no segundo número que recebi (na verdade, o nO 109), a matéria de capa era totalmente "dédicada" a mim. Explico. Há alguns anos que venho brigando ferozmente com os níveis de colesterol, que, "voluntariosamente", insistem em se manter em desacordo com os preceitos da medicina. Abri a revista e fui lá, na matéria sobre o colesterol, "Além do bom e do mau". A cada linha, a esperança de encontrar aquela novidade fantástica, que me permitiria apreciar todos os encantos de uma bela mesa sem que depois tivesse que enfrentar a "fatura" do co-

lesterol! E, enquanto esta novidade não chegava, eu ia me surpreendendo com a clareza com que o assunto ia sendo explicado para leitores leigos como eu. Ao final, contudo, a terrível constatação: não havia a tão desejada novidade! Confesso que fiquei até um tanto mais frustrada, pois vi que nenhuma menção era feita aos efeitos do lazer na elevação do nível do bom colesterol ("fortalecendo-o': portanto, para enfrentar o "mau"). Ou pelo menos, se houve esta menção, não foi suficiente para ficar registrada. No entanto, vocês foram sábios, ou a reunião em que vocês definiram a pauta deste número foi guiada por "forças superiores". Duas matérias adiante, lá estava a resposta: "Pé na estrada: idosos param de sentir dores e reavivam a memória quando viajam". É isso, gente! Aí está a ligação que faltou ao artigo do colesterol, e que acho importante que seja explicitado para as pessoas portadoras do mau colesterol: doses maiores de lazer em nossas vidas, por mais que os políticos deste país tentem complicá-Ias, por mais que a insegurança das cidades grandes tentem restringir nossas saídas, por mais ... Fora isso, meus parabéns, principalmente pela constância com que vocês vêm mantendo a qualidade, o que é tão difícil em se tratando de um meio de divulgação acadêmica. REGINA L. MOREIRA

Pesquisadora em história Rio de Janeiro, RJ Na edição 109 de Pesquisa FAPESP há a excelente reportagem "Além do bom e do mau", a respeito de doenças cardiovasculares relacionadas com entupimento dos vasos sangüíneos e colesterol. Porém, o que nos preocupou foram as ilustrações. Na maior parte das duas primeiras páginas aparecem fotos com


uma legenda "condenando" o consumo de produtos de origem animal. Para leigos, ou para pessoas que simplesmente não leram a matéria na íntegra, dá-se a impressão de que a pesquisa descrita na reportagem trata dos malefícios da ingestão de produtos de origem animal para a saúde cardiovascular. Contudo a matéria não diz nada a respeito da relação da dieta com colesterol e suas implicações para a saúde, e sim discute exclusivamente a respeito da incidência de doenças cardiovasculares e complicações verificadas associadas a baixos níveis de HDL (colesterol bom) e altos de homocisteína (arninoácido, e não uma proteína). Foram apresentados na reportagem alimentos de origem vegetal, como a uva, que possuem fito químicos (flavonóides) que, assim como a niacina, podem corrigir a disfunção do endotélio. Vale a pena destacar que apenas alimentos de origem animal são fontes naturais de vitamina do complexo B, principalmente a B12. Uma porção de 100 gramas de carne bovina magra supre 20% do valor diário de riboflavina, 33% de niacina (o que representa 5,3 mg) e 80% de vitamina B12. Outro ponto favorável em relação a produtos de origem animal, principalmente a carne bovina, é que cada 100 gramas desse alimento contêm aproximadamente 53 mg de colesterol. Depois do preparo, o mesmo peso de carne fornece aproximadamente 80 a 90 mg. Recomenda-se que a ingestão diária de colesterol por um adulto seja próxima a 250 ou 300 mg, portanto o consumo de quantidades moderadas de carne vermelha magra não seria o grande vilão da história. EDUARDO

FRANSCISQUINE

Enrc

FRANCHI

DELGADO,

Nussenzweig Excelente a entrevista com os pesquisadores Ruth e Victor Nussenzweig (edição nv 106). Espero que algumas ponderações dos pesquisadores sobre a participação dos milionários nos Estados Unidos possam contribuir para o processo de discussão e maior participação dos empresários brasileiros no financiamento de pesquisas no Brasil. Embora ao longo dos anos venha crescendo a responsabilidade social dos empresários brasileiros, as iniciativas para financiar pesquisas ainda são tímidas. Também são acanhadas as ações para identificar e trazer de volta os cientistas que vivem em outros países onde têm melhores condições de trabalho. Parabéns a Marcos Pivetta pela entrevista. MARIA EUGENIA

LEMOS FERNANDES

São Paulo, SP

Programa de rádio A todos que puseram o programa Pesquisa Brasil no ar - de quem teve a idéia a quem aprovou e pôs no ar -, parabéns. Não sabia deste programa em parceria com a Rádio Eldorado, mas estou ouvindo neste instante e prendeu minha atenção do começo ao fim. Muito interessante, amigável para cabeça leiga da gente, dinâmico e apresentado por dois jornalistas. CONNIE

HARRISON

Correção Ao contrário do que foi escrito na resenha "Gigantes da gravitação" (edição 109), o texto de Kepler da edição brasileira do livro Os gênios da ciência não apresenta cortes em relação à edição em inglês.

LEONARDO,

CAROLINA DE CASTRO SANTOS E

Luts STELLA Laboratório de Anatomia e Fisiologia Animal- Esalq/USP Piracicaba, SP IVAN

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br,

pelo fax (1~ 3838-4181

ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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As entrevistas de Pesquisa FAPESP

ORGANIZAOO

MARILUCE

POR

MOURA

-::::FAPEsP

端N'iEMP


Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE

CARTA DO EDITOR

Um trânsito entre dor, prazer e ética

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOSCIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM ]. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WALTER COLU DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOU N EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DEARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACM), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CAROL LEFÈVRE, DANIELA MACIEL PINTO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), ELY BUENO, FRANCISCO BICUDO, GONÇALO JÚNIOR, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, PATRÍCIA LIMA, RODRIGO PETRONIO, THIAGO ROMERO (ON-LINE), VICTOR HUGO DURÁN E YURI VASCONCELOS REPÓRTER DO SITE SIMONE MATEOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11} 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO CIRCULAÇÃO £ ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@fmx.com. br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP RUA PIO XI, N? 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181 http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Sabe-se pouco sobre a neurocisticercose no Brasil. Do ponto de vista da saúde pública, trata-se de uma doença grave que, supõe-se, afeta neste momento em torno de 140 mil pessoas no país e que poderia certamente ser evitada com algumas medidas profiláticas simples. E tanto é assim que, epidêmica em vastas regiões da América Latina, da Ásia e da África - o que sugere sua associação com subdesenvolvimento e pobreza -, a doença praticamente inexiste nos países desenvolvidos. Olhada mais de perto e no singular, a doença, parasitária do sistema nervoso central, mostra em muitos casos uma face dramática, marcada por crises de epilepsia, uma série de tristes padecimentos neuropsiquiátricos e até a morte para um número entre 15% e 25% de suas vítimas. A reportagem de capa desta edição, elaborada pelo editor especial Fabrício Marques, apresenta um amplo diagnóstico da doença no país e ainda revela uma boa novidade em meio a seu panorama sombrio: um teste barato, desenvolvido por uma equipe de pesquisadores paulistas, capaz de detectar vestígios de DNA do parasita que provoca a neurocisticercose no líquido cefalorraquiano do paciente. Com isso, os diagnósticos por imagem deixam de ser a alternativa única para decidir se alguém é ou não uma vítima de neurocisticercose e começar a tratá-la adequadamente. A pesquisa científica e tecnológica, ainda bem, tem uma plasticidade quase infinita, o que de uma certa maneira nos permite, ao acompanhá-la, percorrer em paralelo praticamente todo o amplo espectro dos sentimentos e das emoções humanas. Assim, a reportagem que disputou com a neurocisticercose a capa desta edição, muito longe das associações com dor e tristeza, nos traz ao olfato um certo toque glamouroso e sensual, um delicioso hálito festivo, eu diria. É que um processo inovador de extração da essência de pau-rosa a partir das folhas, e não mais do tronco dessa árvore nativa da Amazônia ameaçada de extinção, garante, a par de sua preservação, a continuidade da produção do Chanel n° 5, perfume que Marilyn Monroe ajudou a transformar num dos maiores ícones

da indústria cosmética francesa. Quem faz esse relato é a editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, a partir da página 64. A preocupação com a preservação de espécies nativas da Amazônia, aliás, recebe um reforço considerável na reportagem apresentada a partir da página 68, em que o editor especial Marcos Pivetta relata como simulações feitas por computador indicam que a extração comercial de certas árvores nobres da Amazônia pode não ser uma atividade sustentável a longo prazo. De acordo com os dados virtualmente produzidos, duas espécies de árvore testadas, a tatajuba e a maçaranduba, demorariam mais de um século para crescer e repor a quantidade de madeira cortada. Enquanto a tecnologia lança projeções para o futuro que recomendam cautela no manejo dos recursos naturais do país, algumas visitas ao passado propiciadas pelas pesquisas no campo das humanidades podem revelar que nem sempre as coisas foram tão dramáticas quanto pensamos nos processos de formação da nação brasileira. Por exemplo, a intervenção missionária cristã junto aos povos indígenas, em vez de apenas um choque cultural entre vencedores e vencidos, com a destruição da cultura dos últimos, talvez possa ser compreendida de forma mais sutil e complexa como um estabelecimento de relações entre culturas, onde as formas culturais aparentemente condenadas ao desaparecimento são recriadas e reinventadas para produzir novas significações. É o que relata o editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 82, tomando como objeto de reportagem uma ampla pesquisa sobre missionários na Amazônia brasileira. Curiosamente, essa pesquisa antropológica torna-se neste momento de uma atualidade espantosa, quando sai de cena um papa claramente missionário, que acolhia ritualmente os diferentes em suas incursões pelo mundo, e assume o trono de São Pedro um outro que, concedendo embora importância ao trabalho missionário, o submete às questões da doutrina e da fé cristã como o grande universal ético. Boa leitura! MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 9


Uma longa jornada Há 130 anos começava a trajetória das primeiras médicas brasileiras

NELDSON MARCOLIN

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o mais famoso e produtivo centro de atendimento de saúde, ensino e pesquisa do Brasil, ganhou sua primeira professora titular no final do século 20, em 1996, com a patologista Maria Irmã Seixas Duarte. Em entrevista dada à Revista da Folha à época, Maria Irmã contava: "Sempre lembro de um amigo do tempo de residência que me dizia: 'Se eu, como homem, vou precisar de um esforço x para fazer alguma coisa, pode estar certa que você precisará de 2x. Incorporei isso e resolvi não olhar 10 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

Maria Augusta abriu caminho para outras médicas

mais para essa história de machismo. Penso: vou me esforçar o dobro e pronto". Há 130 anos a condição da mulher no cenário brasileiro era bem diferente - a elas nem era permitido fazer os mesmos cursos superiores dos homens. Cada conquista exigia grande esforço, e apenas a determinação e a coragem as levavam a obter vitórias. Foi assim em 1875 com a carioca Maria Augusta Generoso Estrela, que aos 15 anos embarcou para os Estados Unidos para estudar medicina. Quatro anos depois, a pernambucana Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira seguiu o mesmo caminho, com a mesma idade de Maria Augusta. A primeira vislumbrou seu futuro ao ler sobre a formatura de uma médica


a. THESES K íflolífllie Bc PeíitíM ia galjia EM 3o DK 8ETKMBH0 DK 1887 URA >MEM HPII1T*I)AI

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DE OBTER O GRÁO

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Rita Lobato e a tese de conclusão de curso, de 1887: primeira formada no Brasil

DOUTORA EJVI JV1EDICINA

B.&HIA IMPRENSA POPULAR U. Ikjfroéf da (-k ri. tmsl-, n

#^ y^3__ norte-americana. Maria Augusta venceu a resistência do pai, que a enviou para Nova York onde, no final de 1876, conseguiu ser aceita no New York Medicai College and Hospital for Women, faculdade de medicina voltada para mulheres, criada em 1863. Desde o início seus passos foram acompanhados pela imprensa brasileira, que publicava relatos periódicos de sua vida acadêmica e pessoal no exterior. Seu prestígio era tanto que o imperador d. Pedro II destinou uma bolsa de estudos para ela quando os recursos da família minguaram. Foi no Medicai College que Maria Augusta encontrou Josefa, que também havia conseguido

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dobrar seu pai. Josefa e Maria Augusta desenvolveram grande amizade e publicaram juntas o jornal literário A Mulher, produzido em Nova York e distribuído nas capitais brasileiras. Ambas se formaram em 1881. Josefa voltou para Recife e pouco se sabe de sua trajetória posterior. Maria Augusta ficou mais um ano no exterior e depois voltou ao Rio de Janeiro, onde se casou e clinicou por muitos anos. O ineditismo de sua luta para estudar e a constante presença na mídia ajudaram na aceitação, autorizada por uma reforma no ensino, de mulheres em cursos superiores em 1879, meses depois de Josefa ir para Nova York. Com a nova legislação, Rita Lobato Velho Lopes, gaúcha de São Pedro do Rio Grande, conseguiu matricular-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884, mas transferiu-se para a Faculdade de Medicina da Bahia, de onde saiu como a primeira médica brasileira formada no país. Em São Paulo, a Faculdade de Medicina e Cirurgia, atual FMUSP, já tinha em sua primeira turma, de 1913, duas mulheres: Odette Nora de Azevedo Antunes e Delia Ferraz Fávero. As conquistas das mulheres médicas continuaram pelo século 20. Em 1998, Angelita Gama tornou-se professora titular em cirurgia no Departamento de Gastroenterologia da FMUSP. Além de superar dois obstáculos o acadêmico e o da especialidade -, quebrou o tabu com relação à cirurgia, tradicionalmente considerada uma atividade masculina. PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 11


ENTREVISTA: CARLOS AUGUSTO MONTEIRO

Da privação ao excesso de comida FABRíCIO MARQUES

sociedade brasileira viveu transformações rápidas e radicais no campo da nutrição nas últimas décadas. Da fome que tangia retirantes até a década de 1970, o país também passou a conviver com o espectro da obesidade que ameaça até mesmo os estratos mais pobres da população. O médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, de 57 anos, há três décadas vem se dedicando a estudar o chamado fenômeno da transição nutricional no Brasil. Busca compreender causas e identificar implicações para o aperfeiçoamento de políticas públicas na área da alimentação, nutrição e saúde. Em grande parte por conta das pesquisas e publicações deste pesquisador, o Brasil desfruta da condição, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de ser um dos países do mundo que melhor vem documentando e analisando o fenômeno da transição nutricional. Professor titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenador científico do Núcleo de Estudos Epidemiológicos em Nutrição e Saúde (Nupens),

Monteiro liderou nos anos 1990 um projeto temático da FAPESP executado por uma equipe de epidemiologistas, demógrafos, economistas, sociólogos e especialistas de várias áreas da saúde pública sobre as características e a natureza das mudanças no perfil das condições de saúde e nutrição da população brasileira na segunda metade do século 20. O projeto redundou no livro Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças, que alcançou o Prêmio Jabuti em 1995. Desde 1997, Monteiro codirige a força-tarefa da International Union of Nutritional Sciences sobre transição nutricional e, nesta função, dedica-se em particular a desvendar as relações existentes entre pobreza e obesidade nos países em desenvolvimento. Recentemente, o pesquisador esteve no epicentro de uma polêmica com o governo federal por conta de uma publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual a obesidade se tornou um problema de saúde pública muito mais sério no país do que a fome, flagelo restrito a alguns poucos rincões do semi-árido nordestino. A publicação, que teve grande divulgação, foi produzida por uma equipe de pesquisadores e de técnicos


Monteiro: o desafio de propor políticas em meio a uma veloz transição nos hábitos alimentares

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 13


do IBGE e do Ministério da Saúde coordenada por Monteiro. O trabalho foi criticado pelo próprio presidente da República, que viu na pesquisa um desafio à prioridade de seu governo no combate à fome. Monteiro mantevese sereno, mas não evitou a polêmica. "Reza o senso comum que o Brasil é um país que sofre de doenças devidas à escassez, à miséria absoluta. Mas quando você examina objetivamente os dados, vê que não é bem assim. A opinião pública, infelizmente, nem sempre repousa no conhecimento científico", afirma. Casado, pai de duas filhas, avô de dois netos, Monteiro não é daqueles médicos que pregam uma coisa e fazem outra na vida pessoal. Cuida da alimentação, procura se exercitar com freqüência e prega a importância de os professores darem bom exemplo aos alunos. Tempos atrás, quando chefiou o Departamento de Nutrição pela primeira vez, resolveu criar um ambiente livre de cigarro, no que logo foi seguido pelos chefes dos demais departamentos. "Parece uma coisa sem importância, mas não é. O professor exerce uma influência importante e é preciso ser coerente. Não é aceitável que um professor de saúde pública fume nos corredores ou engula sanduíches com refrigerantes no meio da aula", afirma. ■ Qual é o espectro da fome no Brasil? — A OMS considera que a deficiência crônica de energia em uma população adquire conotação de problema de saúde pública quando a proporção de pessoas adultas magras, ou seja, com índice de massa corporal abaixo de 18,5 quilos por metro ao quadrado, é superior a 5%. Proporções de indivíduos magros entre 5% e 10% devem ser vistas como sinal de alerta e justificam um monitoramento, enquanto proporções até 5% são normais e correspondem à fração de pessoas magras que normalmente existe em qualquer população. A proporção média de indivíduos magros na população adulta brasileira, segundo estimativas do inquérito antropométrico nacional realizado pelo IBGE em 2003, é de 4%, o que não situaria a deficiência crônica de energia como um problema de saúde pública no país como um todo. Situações que justificariam um monitoramento do problema (6 a 7% de indiví14 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

duos magros) foram encontradas pelo IBGE nas áreas rurais da Região Nordeste e, de modo geral, entre famílias com renda inferior a um quarto de salário mínimo per capita. Felizmente, em nenhuma região ou estrato de renda foram encontradas situações em que a deficiência crônica de energia representaria um inquestionável problema de saúde pública. A comparação do inquérito de 2003 com inquéritos anteriores do IBGE realizados nas décadas de 1970 e 80 indica tendência de queda da deficiência crônica de energia e permite projetar para um futuro próximo a virtual eliminação do problema em todo território nacional. Embora o problema ainda subsista no semi-árido nordestino e entre famílias muito pobres, a situação brasileira hoje nada tem a ver com aquela encontrada, por exemplo, no Haiti, na Etiópia ou na índia, onde 20%, 30% e 50% dos indivíduos adultos apresentam sinais claros da deficiência crônica de energia. ■ Deficiência crônica áe energia e fome querem dizer a mesma coisa? — A deficiência crônica de energia é a modalidade de distúrbio nutricional que mais se aproxima do significado que a palavra fome tem para a maioria das pessoas, com a vantagem de que temos indicadores objetivos para o seu diagnóstico na população. Por vezes se utiliza o termo fome como sinônimo de pobreza, do não acesso das pessoas a necessidades básicas. Antes de ajudar, creio que este uso livre da palavra fome só confunde as coisas e iguala o problema daqueles que não têm o que comer, que, felizmente, são poucos no Brasil dos nossos dias, com aqueles que não dispõem de moradia adequada, saneamento, assistência à saúde e educação de qualidade. Infelizmente, esses ainda são muitos. ■ E qual é o espectro da obesidade no Brasil? — Entre os homens, a trajetória da obesidade é explosiva em todo o país, com aumentos de 50% a cada 15 anos. Entre as mulheres, o aumento maior aconteceu nas décadas de 1970 e 1980, observando-se certa estabilidade nos anos 1990, exceto na Região Nordeste e entre as famílias de baixa renda, em que a obesidade feminina continua au-

mentando. De qualquer forma, em ambos os sexos, quatro em cada dez adultos sofrem de excesso de peso no país. A obesidade já é o segundo fator que mais mata e causa doenças no Brasil, atrás apenas do consumo do álcool. O mesmo inquérito do IBGE de 2003 revelou um aumento substancial do teor de gorduras em geral e de gorduras saturadas na alimentação do brasileiro, a manutenção de níveis absurdamente elevados de consumo de açúcar e aumentos geométricos no consumo de alimentos processados ricos em gordura, sal e açúcar, incluindo biscoitos, embutidos, refrigerantes e refeições prontas. Esses fatores são consistentes com o papel destacado da obesidade, da hipertensão e de colesterol alto no perfil das doenças e de mortalidade do país. ■ O estudo do IBGE do qual o senhor participou, mostrando que a obesidade no Brasil é um problema de saúde pública bem maior do que o da fome, foi criticado pelo presidente da República. Qual sua avaliação do incidente? — Muitas vozes se levantaram contra ou a favor deste estudo. Em toda minha experiência de pesquisador, não lembro de outro estudo que tenha causado maior repercussão. Uma parte da polêmica eu atribuo ao fato de que muitas declarações e opiniões sobre o estudo foram feitas por pessoas que aparentemente não consultaram a publicação, mas sim reagiram a declarações e opiniões de outros que também não leram a publicação. A outra parte da polêmica eu atribuo ao fato de que os resultados revelados pelo estudo contrariaram uma visão, digamos, superficial da realidade sanitária do país. Segundo essa visão, os maiores problemas de saúde da população brasileira decorreriam de doenças associadas à escassez, à miséria absoluta, enquanto os problemas relativos ao excesso de consumo, como a obesidade, seriam exclusivos das classes sociais mais abastadas. De qualquer modo, acho que o estudo do IBGE alimentou de forma saudável o debate em torno da realidade brasileira. ■ A reação não foi da opinião pública. Foi do governo, que tem como bandeira o combate àfome...


— A reação do governo não foi homogênea. Houve, sim, comentários que procuraram desqualificar o estudo do IBGE ou pelo menos as implicações óbvias que ele trouxe, mas houve também reações ponderadas e imbuídas de espírito construtivo. É preciso considerar que o atual governo do país foi eleito tendo o combate à fome e à pobreza como uma de suas maiores senão sua maior bandeira e também é preciso levar em conta que o partido que lidera o governo tem uma longa e reconhecida tradição de lutar pelas questões sociais. Tudo isso produz a idéia de uma certa infalibilidade do governo em tudo que se refira à área social. Só que políticas sociais não são feitas apenas com boas intenções, precisam de diagnósticos corretos e de análises sem vícios dos problemas que pretendem corrigir. ■ Qual sua avaliação sobre o Programa Fome Zero? — O começo, centrado nas campanhas de doação de alimentos, no desfile de celebridades e em idéias de difícil adjetivação, como a exigência de notas fiscais para comprovar o gasto das famílias beneficiadas com a compra de alimentos, foi de fato sofrível. Mas a direção que o programa tomou posteriormente, enfatizando a transferência de renda para famílias abaixo da linha de pobreza e incentivando a freqüência das crianças nas escolas e os acompanhamentos de saúde nas unidades básicas de saúde, foi sem dúvida positiva. Claro que essas ações se destinam basicamente a combater a pobreza, e não a fome. Mas a pobreza no país é suficientemente importante para relevarmos a impropriedade semântica. ■ O combate à fome não passa pela distribuição de alimentos? — Como já disse, ainda há regiões com sinais de deficiência crônica de energia, principalmente o semi-árido do Nordeste. Lá, a oferta de alimentos é instável, devido à questão da seca e a uma estrutura econômica arcaica, bastante diferente do resto do país. Há também a difícil e complexa situação das comunidades indígenas do país. Eventualmente, em situações de emergência cíclica, você tem que pensar realmente em socorro, em distribuir ali-

mentos, e de maneira eficaz, rápida. O país precisaria ter nessas regiões sistemas de monitoramento ágeis sobre a disponibilidade e consumo de alimentos - o que ainda não tem - pois a fome quando ocorre é devastadora e não espera. Mas é claro que a solução definitiva para essas regiões não é distribuir alimentos. É remover as causas que determinam o problema, basicamente com instrumentos de desenvolvimento local. ■ Autoridades do governo referiram-se a uma suposta fome gorda, que contempla uma associação da obesidade com a desnutrição. Isso existe? — Além novamente da impropriedade semântica, este argumento não se sustenta. No Brasil, pelo menos por enquanto, o alimento típico da população mais pobre ainda é o arroz, o feijão, uma verdura, um pouco de carne. O feijão, por exemplo, é um excelente alimento, relativamente barato, fonte de proteínas, micronutrientes e fibras, e que nada tem de obesogênico, ao contrário. Do ponto de vista do risco da obesidade, os pobres no Brasil, no geral, tendem a se alimentar melhor do que os ricos, pois consomem menos gorduras e menos alimentos processados, que habitualmente têm alta densidade energética. Mas este quadro é diferente nos países desenvolvidos, onde a industrialização intensa da produção de alimentos barateou o custo da alimentação e tornou os alimentos processados mais acessíveis do que os alimentos in natura. Devemos estar atentos, pois essa mesma situação poderá ocorrer no futuro no Brasil.

■ Por que se supervaloriza o problema da fome? — Acredito que um cientista político poderia responder melhor esta pergunta, mas me arrisco a dizer que a dramaticidade da fome e o fato de ela mobilizar mais a sociedade do que a pobreza são elementos que mecerem ser considerados. ■ Há políticas sociais que podem ser sacrificadas com a supervalorização do problema da fome? — Recentemente foram alocados recursos expressivos do orçamento do Ministério da Saúde para o programa do governo de transferência de renda. A argumentação usada foi que, combatendo-se a pobreza, combateríamos a fome e assim estaríamos melhorando a saúde das pessoas. Mas a realidade brasileira não autoriza este raciocínio simplista e, de fato, é bastante provável que investimentos diretos na rede básica de saúde e em saneamento ambiental ofereçam retornos para a saúde da população muito maiores do que aqueles associados à transferência de renda. ■ Qual o risco de só ter olhos para a fome num país em que a obesidade avança? — Quando você cria um programa de transferência de renda, ou quando a economia cresce, as pessoas ampliam sua capacidade de consumo. O que elas irão consumir a mais? Estudos que fizemos sobre a relação entre renda e consumo alimentar indicam que é bastante provável que famílias de muito baixa renda comprem mais alimentos e que melhorem a qualidade nutricional de sua alimentação, diversificando PESQUISA FAPESP111 • MAIO DE 2005 ■ 15


a dieta e sobretudo aumentando o consumo exíguo de produtos de origem animal como carnes e laticínios. Essas mudanças poderão melhorar as condições de nutrição e de saúde das pessoas, em particular de crianças de pequena idade. Mas não se pode assegurar o mesmo para famílias com rendas ainda baixas a ponto de serem parte da clientela de programas de transferência de renda, mas não tão baixas. ■ Por quê? — Entre essas famílias o aumento no consumo de produtos de origem animal pode facilmente levar ao excesso de consumo de gorduras, em particular de gorduras mais prejudiciais à saúde, as gorduras saturadas. Também é bastante provável que cresça entre essas famílias o consumo de alimentos processados, em geral altamente calóricos, ricos em gordura, açúcar e sal e pobres em fibras e micronutrientes. Ainda é provável que se observe aumento no consumo de bebidas alcoólicas e na quantidade de cigarros consumidos pelos fumantes. O hábito de fumar no país cada vez se vê mais concentrado nos segmentos mais pobres da população. Em resumo, não há nenhuma segurança de que o efeito final do aumento do poder aquisitivo de segmentos relevantes da população brasileira resulte em melhoria de suas condições de nutrição e de saúde. Claro que o aumento do poder aquisitivo da população de baixa renda poderia produzir resultados mais positivos para suas condições de nutrição e saúde, mas precisaríamos contar com mais ações na área de informação e educação nutricional da população e com medidas fiscais e regulatórias que tornassem mais acessíveis alimentos saudáveis como frutas e hortaliças, por exemplo, e menos atraentes os alimentos pouco saudáveis. ■ Que tipo de política pública teria força para combater o problema da obesidade? — Em primeiro lugar é preciso reconhecer que o controle do avanço da obesidade é bastante complexo e necessita de ações que envolvam desde modificações na agricultura, que possibilitem maior oferta de alimentos saudáveis, até mudanças no planejamento 16 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

urbano, capazes de estimular a prática regular de atividade física nas cidades. Medidas fiscais que tornem mais acessíveis os alimentos saudáveis e menos acessíveis os alimentos não saudáveis são indispensáveis, assim como medidas regulatórias que disciplinem os limites para a propaganda de alimentos, proibindo completamente a propaganda dirigida a crianças. O esforço permanente e sistemático para educar e conscientizar as pessoas sobre a importância da alimentação saudável e da luta contra o sedentarismo é obviamente essencial. Em síntese, controla-se a obesidade apoiando, protegendo e promovendo práticas de vida saudáveis. ■ Que países conseguiram resolver essa equação? — Há exemplos bem-sucedidos de países desenvolvidos que têm conseguido reverter o crescimento da obesidade ou mesmo de prevenir o seu surgimento como problema de saúde pública. No primeiro caso temos o exemplo da Finlândia e no segundo caso os exemplos do Japão e da Coréia do Sul. O paralelo com a redução do tabagismo conquistada a partir de políticas públicas

corajosas por vários países, inclusive o Brasil, é inevitável. Nos anos 1960, mais da metade da população masculina brasileira fumava, no final dos anos 1980, quando o Brasil iniciou esforços sistemáticos para controlar o tabagismo no país, os fumantes ainda eram cerca de 40%, mas agora sabemos que apenas um em cada quatro ou cinco adultos segue fumando. Alega-se muitas vezes que o poder econômico da indústria de alimentos é muito grande, mas o da indústria de cigarros também não é? De qualquer forma, desde o ano passado, temos um grande aliado na luta para o controle da obesidade e das demais doenças crônicas associadas à alimentação não saudável e ao sedentarismo. Trata-se da Estratégia Global para Alimentação, Atividade Física e Saúde formulada pela OMS, discutida por vários anos com a comunidade cientifica e com os governos nacionais e, finalmente, aprovada pela Assembléia Mundial de Saúde em maio de 2004. O avanço maior dessa estratégia, que foi duramente combatida pelos Estados Unidos e por setores contrariados da indústria de alimentos, em particular os produtores de açúcar, está em admitir que informações sobre escolhas mais saudáveis quanto à alimentação devem ser acompanhadas de ações governamentais sobre o ambiente que tornem essas escolhas factíveis e mais fáceis, incluindo medidas fiscais e de regulação, que poderão não ser apreciadas pelos setores econômicos que lucram com o consumo de alimentos não saudáveis. ■ A pesquisa do IBGE mostrou uma outra realidade: a obesidade avança, mas há fatias da população, como as mulheres de classe média, que estão menos gordas do que estavam nos anos 1980, num raro exemplo de inversão da tendência. A que o senhor atribui isso? — O Brasil é um país incrivelmente permeável a mudanças. Ao mesmo tempo que incorporamos determinados hábitos inadequados, estilos de vida não saudáveis, a gente também incorpora mensagens positivas. Isso parece ter acontecido com mulheres brasileiras que possuem nível médio ou superior de escolaridade. O inquérito de 2003 evidenciou que em todo o país, com exceção da Região Nordeste, a


obesidade entre mulheres de classe média parou de subir ou mesmo estaria declinando. Os dados disponíveis não possibilitam conhecer os determinantes desta tendência, que ainda não foi descrita em nenhum outro país em desenvolvimento. De qualquer forma, na população masculina brasileira não há qualquer sinal de arrefecimento do crescimento da obesidade em nenhum estrato social. ■ Dizer que a garota de Ipanema está ficando gorda, como sugeriu a polêmica reportagem do jornal The New York Times, é uma injustiça... — Um absurdo completo, talvez a garota de Bangu, mas certamente não a de Ipanema. ■ Se a fome sofreu uma redução drástica no Brasil nos anos 1970, a desnutrição infantil só foi ceder mais recentemente, nos anos 1980 e 1990. Por quê? — A desnutrição do adulto é de modo geral um problema de escassez, de falta absoluta de alimentos. Você só tem fome quando a miséria é extrema. Se o adulto tiver comida, mesmo vivendo em um meio desfavorável, dificilmente apresentará sinais clínicos de desnutrição. O aumento da renda familiar proporcionado pelo crescimento da economia brasüeira nos anos 1970 foi decisivo para reduzir a exposição da população adulta à desnutrição. Já a desnutrição infantil tem outros determinantes além da renda familiar. Destaca-se, em particular, a exposição seguida da criança a episódios de doenças infecciosas que acabam por minar o seu estado nutricional. E os principais fatores de prevenção dessas doenças - o saneamento ambiental, a assistência básica de saúde e a escolaridade das mães - só recentemente chegaram aos estratos mais pobres da população brasileira. ■ O brasileiro é sedentário? — Em um estudo que fizemos a partir de outro inquérito do IBGE realizado no país em 1997 mostramos que apenas 3% dos adultos seguiam a recomendação de fazer pelo menos 30 minutos diários de exercícios físicos na maior parte dos dias da semana. Embora em outros países, sobretudo desenvolvidos, haja mais pessoas se exercitando, não dá para dizer que o país é

um campeão em sedentarismo porque uma parte da população tem ocupações que demandam gasto energético regular e intenso. A partir de um sistema de monitoramento por entrevistas telefônicas, que estamos no momento testando em várias capitais do país, estimamos que na cidade de São Paulo a proporção de pessoas completamente sedentárias, ou seja, que não fazem com mínima regularidade qualquer tipo de atividade física moderada ou intensa, passa de 50%. E, no caso das mulheres, há uma relação inversa do sedentarismo com a escolaridade, ou seja, quanto menor a escolaridade, mais freqüente o sedentarismo. Essa relação inversa oferece uma pista interessante para se compreender por que a prevalência de obesidade em mulheres mais pobres suplanta em duas a três vezes a mesma prevalência em mulheres mais ricas. O estudo dos padrões e determinantes da atividade física na população é uma das grandes prioridades para a pesquisa em saúde pública no país.

de alimentos de uma amostra das famílias. A primeira parte da intervenção que implementamos na comunidade consistiu em oferecer à metade das famílias selecionadas informações sobre alimentação, nutrição e saúde e oficinas de culinária que ensinavam a preparar refeições saudáveis utilizando com mais freqüência frutas, verduras e legumes. Na segunda parte da intervenção, estendida a todas as famílias, criamos um "armazém volante" que passou a percorrer as ruas da comunidade três vezes por semana durante quatro semanas comercializando frutas e hortaliças frescas e de boa qualidade compradas no Ceagesp. A avaliação do impacto da intervenção, ainda em andamento, indica um aumento de cerca de 20% no consumo de frutas e hortaliças apenas com as atividades educativas e de motivação e um aumento de 50% com a intervenção completa. Estamos realizando este estudo com financiamento do CNPq sobre pesquisas em segurança alimentar.

■ E o que pode ser feito? — Bem, o tamanho e a complexidade dos problemas nutricionais em uma sociedade como a brasileira são tão grandes que às vezes fica difícil convencer os formuladores de políticas públicas e os tomadores de decisão de que vale a pena investir nesta área. Como já disse antes, as ações consistentes na área da promoção da alimentação saudável são essencialmente aquelas que combinam informação e motivação com mudanças no ambiente que permitam a escolha de opções saudáveis. No final de 2004 fizemos um experimento relativamente simples em uma comunidade muito carente do bairro do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo. Primeiramente fizemos um estudo de campo que documentou a carência dessa comunidade com relação à comercialização de alimentos saudáveis. As opções para compra de alimentos que encontramos praticamente se restringiam a pequenos negócios que vendiam alimentos processados, como arroz, macarrão, sardinha em lata e salsicha. Produtos frescos como frutas e hortaliças eram raros e quando existentes tinham péssima qualidade e preços altos. A seguir estudamos durante um mês o padrão de compra e de consumo

■ O senhor vê o futuro com otimismo? — Pergunta difícil. No caso, por exemplo, de deficiências na oferta de alimentos saudáveis e no grau de informação da população, creio que a solução não é tão difícil e dependerá sobretudo da clarividência de governos municipais e da alocação de investimentos públicos. Há outras medidas igualmente factíveis que estão em andamento em vários municípios brasileiros, como a melhoria da qualidade nutricional da alimentação escolar e a restrição da venda de alimentos não saudáveis nas cantinas escolares. Mas há outras medidas de política pública, igualmente necessárias, que encontram mais resistência na sociedade e sobre as quais avançamos muito pouco. Por exemplo, medidas que restrinjam a publicidade de alimentos não saudáveis e proíbam totalmente a propaganda na televisão dirigida especificamente a crianças, na linha do que já se fez em vários países desenvolvidos. Há um projeto tramitando há muito tempo no Senado Federal, de autoria do senador Tião Viana, do PT do Acre, cuja aprovação poderia ser um importante sinalizador da preocupação dos parlamentares brasileiros e do governo com o processo de transição nutricional por que passa nosso país. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 17


POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

A pedido dos habitantes do Ártico, mais ursos serão abatidos

■ As ambições da Líbia O ditador da Líbia Muammar Qadhafi quer transformar o país numa referência científica da África. A construção de um complexo de pesquisas em medicina é um primeiro passo. Ao custo de US$ 100 milhões, o Centro para o Controle de Doenças Infecciosas quer atrair uma centena de pesquisadores estrangeiros para trabalhar com malária, tuberculose e Aids. Resta saber se Qadhafi conseguirá atrair cérebros depois das recentes condenações à morte de médicos e enfermeiros búlgaros em atividade na Líbia, cuja suposta negligência teria contaminado crianças com o vírus HIV. (Science, 8 de abril) • 18 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Os ursos da discórdia No afã de evitar o aumento da caça aos ursos-polares, ambientalistas do hemisfério Norte compraram briga com um velho aliado: o povo inuíte, etnia aborígene que habita o Ártico. Até recentemente eram parceiros, tanto que os inuítes fizeram uma acusação formal contra os Estados Unidos por violação de direitos humanos, com a alegação de que a poluição industrial seria a causa das mudanças climáticas que derretem o gelo e comprometem seu ancestral estilo de vida. Agora os aborígenes viraram vilões. Isso porque eles pediram ao governo do Canadá para ampliar o número de li-

cenças de caça de ursos, sob o argumento de que a população dos animais cresce a olhos vistos. As autoridades concordaram e ampliaram a cota de 403 ursos abatidos para 518 em Nunayut, região do Ártico canadense. Desde então, ecologistas insinuam que os inuítes renderam-se aos interesses dos caçadores em troca de dinheiro - uma licença para matar um urso, fonte de renda local, custa US$ 28 mil. "Suspeito que os inuítes são movidos por interesses econômicos, sem levar em conta a sustentabilidade da caça", diz Naomi Rose, da entidade norteamericana Humane Socie-

ty. Outros dizem que a alegada proliferação de ursos é uma miragem. "É possível que os animais apenas estejam se agrupando nessa região do Canadá devido ao degelo, que deixou muitos ursos sem território", diz Oystein Wiig, zoólogo da Universidade de Oslo e da União de Conservação Mundial. Autoridades canadenses garantem que estudos científicos foram considerados. "E os conhecimentos tradicionais dos inuítes são dignos de confiança", diz o biólogo Mitch Taylor. Estima-se a existência de 25 mil ursos no Ártico. Não estão na lista dos ameaçados de extinção. •


■ 0 entulho que paira no céu Devem endurecer as regras de controle do lixo espacial, pedaços de foguetes e de satélites e outros resíduos que pairam em órbitas próximas à Terra. Estima-se a existência de 13 mil objetos com mais de 10 centímetros na vizinhança do planeta. A maioria não tem mais nenhuma função, mas ameaça danificar os mais de 600 satélites e equipamentos em operação. Um congresso que reuniu representantes de diversas agências espaciais, realizado em abril em Darmstadt, Alemanha, começou a discutir novos parâmetros de controle para

■ Sem água não há desenvolvimento Foi lançada na Etiópia uma rede de jornalistas com a missão de melhorar e ampliar a cobertura sobre os problemas da água nos países africanos. Reúne mais de mil profissionais que irão compartilhar informações e idéias através de um site da internet. A rede busca encorajar a imprensa africana a monitorar as políticas públicas relacionadas ao abastecimento para fortalecer o compromisso dos políticos locais com o problema e res-

saltar a importância da água e do saneamento nos esforços para a redução da pobreza. Cursos de treinamento para repórteres africanos deverão ser oferecidos. Ainda neste ano o grupo começará a produzir e distribuir uma news letter. James Dorsey, do jornal norte-americano Wall Street Journal, e Rupert Wright, do britânico Sunday Times, serão os editores. James Dorsey lembra que sem acesso a água limpa e saneamento básico não há desenvolvimento possível na África. (SciDev.Net, 4 de abril) •

Pedaços de foguete que caíram no Texas em 1997

lançamentos espaciais, a fim de evitar a produção desnecessária de lixo, e a remoção de objetos que ameaçam colidir com satélites ou despencar sobre áreas populosas. •

■ As veias abertas do planeta

Erosão em rio de Madagascar: desenvolvimento insustentável

abastecimento de água e a pesca, entre outros - registram elevado grau de degradação ou são usados de forma insustentável, num processo que colocará em risco a sobrevivência das futuras gerações. Os cientistas alertam no relatório que "qualquer progresso conseguido em relação aos objetivos da erradicação da pobreza e da fome, da melhoria da saúde e proteção ambiental provavelmente não será sustentável se a maior parte dos serviços dos ecossistemas nos quais se assenta a humanidade continua a deteriorar-se". Entre as conseqüências, apontam a eclosão de novas doenças, perda da qualidade da água, destruição

O relatório do Programa Avaliação Ecossistêmica do Milênio, encomendado pela ONU a 1.300 cientistas de 95 países, mostrou que 60% dos serviços extraídos de ecossistemas do planeta - como o

da biodiversidade em extensas zonas marinhas e o colapso da pesca. Teme-se que o documento, bem embasado mas bastante pessimista e abrangente, não consiga sensibilizar de forma clara a opinião pública do planeta para mudanças de comportamento. "A estratégia de semear o pânico pode acabar segregando setores cujo engajamento seria vital para reverter as atuais tendências", observaram David Dickson e Ehsan Masood, editores do site SciDev.Net. . PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 19


ESTRATéGIAS

MUNDO

Telescópios em solo sagrado

Representação das antenas que serão erguidas no Atacama

Comunidades indígenas que povoam o deserto chileno de Atacama, no altiplano andino, vão beneficiar-se de um programa de estímulo à instalação de observatórios astronômicos. O governo chileno acaba de autorizar a criação de um parque internacional de astronomia em pleno deserto. A atmosfera límpida, os até 5 mil metros de altitude e a escassez crônica de chuvas fazem do Atacama um local privilegiado para a construção de radioobservatórios, que registram imagens a partir das ondas de rádio emitidas por estrelas, planetas e outros corpos celestes. Segundo protocolo estabelecido pelo governo em fevereiro, os projetos instalados na área terão de patrocinar programas de saúde e educação para 13 comunidades locais, a maioria delas pertencente ao grupo étnico atacamenho. "Essa é uma terra ancestral para nós", diz Wilfredo Cruz, líder indígena atacamenho. "Nossas famílias instalaram-se aqui muito tempo atrás e nós ainda preservamos lugares cerimo-

niais e resquícios do nosso passado." Nos próximos anos, a Comissão Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica do Chile (Conicyt) vai convidar instituições internacionais para construir observatórios na área. Representantes das comunidades locais estarão envolvidos nas negociações para assegurar que os projetos respeitem seus territórios. Duas instituições já erguem instalações no deserto. Em 2003, o European Southern Observatory e a Fundação Nacional da Ciência dos Estados Unidos acertaram a construção do maior e mais sensível rádiotelescópio do mundo numa área de 18 mil hectares do total de 45 mil hectares que deverão constituir o parque. O Atacama Large Millimeter Array (Alma) vai captar ondas de rádio do espaço usando 64 antenas gigantes. Desde 2004, o European Southern Observatory destina US$ 124 mil por ano para patrocinar a astronomia chilena e estimular o desenvolvimento local e regional. (SeiDev.Net, 5 de abril) •

20 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

http://www.labvirt.futuro.usp.br/ 0 site da Escola do Futuro da USP traz material didático de física e química, incluindo animações produzidas a partir de roteiros feitos por alunos da rede pública.

Dennis Kunkel Microscopy, Inc. - Education Web Site

1ÈÈÈ JÁ*

Science and Photography Through the Microscope A web site devoted to microscopy science education Stock Photography Clients, click here.

http://education.denniskunkel.com/ Mantida pelo fotógrafo Dennis Kunkel, oferece um acervo de 1.500 imagens microscópicas mostrando, em detalhes extraordinários, insetos, células e bactérias.

http://web.utk.edu/%7Egrissin0/default.html A página traz informações, novidades e fotos no campo da dendrocronologia, a determinação da idade baseada na contagem dos círculos dos troncos das árvores.


ESTRATéGIAS

BRASIL

Brito assume Diretoria Científica

Carlos Henrique de Brito Cruz assumiu a Diretoria Científica da FAPESP no dia 26 de abril em substituição ao físico José Fernando Perez. O governador Geraldo Alckmin manifestou a intenção de participar da posse, mas, como tinha compromisso agendado para a data, a cerimônia foi adiada por alguns dias. Brito Cruz, 48 anos, engenheiro eletrônico e físico, já havia sido presidente da Fundação de 1996 até 2002, ano em que se tornou reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em fenômenos ultra-rápidos, laser e semicondutores, é um dos coordenadores do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), da Unicamp, e um profundo conhecedor de políticas de desenvolvimento cientí-

■ O primeiro módulo doSAGe Com o início da operação do módulo de despacho eletrônico do diretor científico às solicitações encaminhadas pelo Sistema de Apoio a Gestão (SAGe), a FAPESP completa a implantação do módulo de análise e julgamento eletrônico das propostas, que inclui as etapas de apresentação das

Brito Cruz e Perez: sucessão

fico e tecnológico. Perez, 60 anos, também engenheiro e físico, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, sai da FAPESP para montar sua própria empresa, a PP&D Tecnologia, depois de 11 anos à frente da Diretoria Científica. Em sua última participação no Conselho Superior da Fundação, ele falou dos quatro pontos que considera marcantes em sua gestão. O primeiro deles foi a criação dos programas voltados para a inovação tecnológica, que envolvem empresas como parceiras

solicitações; habilitação de propostas; definição, pelos coordenadores de área, de assessores ad hoc para análise das solicitações; análise dos assessores; parecer e recomendação dos coordenadores adjuntos e de áreas; e despacho do diretor científico. Superados os problemas ocorridos no começo da implantação do SAGe, em fevereiro passado, o sistema permite

ou como atores principais. "Até hoje, 348 pequenas empresas já participaram dos programas", disse Perez aos conselheiros. O segundo ponto foi o papel da FAPESP como indutora da criação de novos programas articulados às iniciativas da comunidade científica do Estado de São Paulo. Graças a essa ação conjunta foram criados o Biota, o Genoma, o Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) e a Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cére-

uma maior agilidade e operacionalidade no processo de tramitação dos processos eletrônicos em relação ao processo tradicional. Até o dia 27 de abril o SAGe já havia atingido a marca de mil processos encaminhados eletronicamente e contava com 16 mil pesquisadores cadastrados. A sistemática de encaminhamento e análise eletrônica garante operacionalidade,

bro (CInAPCe), entre outros. "Todos os programas foram implantados sem nenhum prejuízo do financiamento da pesquisa básica", ressaltou. O terceiro ponto refere-se ao empenho dado à divulgação científica. Durante sua gestão foi criada e consolidada a revista Pesquisa FAPESP e a SciELO, novo modelo de publicação eletrônica dos periódicos científicos e tecnológicos brasileiros. O último item considerado marcante por Perez refere-se à criação de paradigmas que se generalizaram, como o genoma paulista, que inspirou o grande projeto genoma nacional, e os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que viraram, na esfera federal, os Institutos do Milênio, entre outros exemplos. •

segurança e mais agilidade para o pesquisador, para a instituição e para os gestores. Eventuais problemas serão sempre contornados, seja por soluções técnicas imediatas dentro do SAGe, seja pela possibilidade de uso do método tradicional, nessa fase de transição, como já ocorreu anteriormente, sempre tendo em mente o atendimento à comunidade. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 21


ESTRATéGIAS

BRASIL

Depois do sinal verde, o dinheiro Os ministérios da Ciência e Tecnologia e da Saúde lançaram edital no valor de R$ 11 milhões direcionado para pesquisas com células-tronco. Pela primeira vez serão contemplados projetos com células extraídas de embriões humanos, cuja pesquisa só foi liberada a partir da aprovação da nova Lei de Biossegurança. Metade desses recursos é proveniente do Fundo Setorial de Biotecnologia, gerido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e outra metade da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. As verbas financiarão projetos de pesquisa clínica para desenvolvimento de terapias inovadoras utilizando células-tronco derivadas da medula óssea, do cordão umbilical e também as embrionárias. O anúncio foi

■ Contribuições para o debate O primeiro número da revista Inovação Uniemp foi lançado no dia 26 de abril com o propósito de contribuir, trimestralmente, para o debate dos temas científicos e tecnológicos articulados com o processo de inovação. Voltada para empresários, pesquisadores e estudantes, traz em sua edição inaugural uma reportagem de capa sobre os investimentos do setor da construção civil em novas tecnologias. Há ainda entrevistas com Sérgio

Células-tronco no laboratório: R$ 11 milhões para pesquisa brasileira

feito em reunião da Frente Plurissetorial da Câmara dos Deputados. "O debate feito nesta Casa aproximou a sociedade, comunidade científica, portadores de necessidades especiais e ajudou o país a conquistar um

Rezende, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e com o empresário José Ricardo Roriz Coelho, diretor de competitividade e tecnologia da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que respondem questão sobre o mesmo assunto polêmico: os rumos dos fundos setoriais. Além de artigos, notas e informações, a revista divulgará o índice Brasil de Inovação, elaborado a

22 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Inovação Uniemp: reflexões sobre ciência e tecnologia

marco regulatório de qualidade para que a inteligência científica brasileira continue trabalhando", destacou o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. O ministro da Saúde, Humberto Costa, ressaltou

partir de pesquisa desenvolvida pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com o apoio da FAPESP, que tem como objetivo permitir

que não é prudente esperar milagres ou resultados imediatos das pesquisas. "Temos ainda um grande caminho a ser trilhado e, se não começássemos agora, ficaríamos muito atrasados", afirmou.

uma melhor compreensão do papel do conhecimento e da inovação tecnológica na dinâmica da geração da riqueza econômica e social no país. •

■ Um novo conselheiro

wmnamoGustammiíÂMmumuKsm ENIRÍViSTA

^£m debate os rumos dos Fundos Setoriais

O bioquímico Hugo Aguirre Armelin, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), é o mais novo conselheiro da FAPESP. Seu nome foi confirmado em abril pelo governador Geraldo Alckmin. Ele vai completar o mandato de Ri-


cardo Brentani, que deixou o conselho para ser diretor-presidente da Fundação. Professor titular, Armelin é doutor em bioquímica, com pósdoutoramento em Berkeley, na Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Foi diretor do Instituto de Química entre 1990 e 1994 e pró-reitor de pesquisa da USP entre 1994 e 1997. •

■ Destaques na ciência e na cultura O presidente da Fundação Instituto Butantan, Isaias Raw, foi o vencedor do Prêmio Fundação Conrado Wessel (FCW) de Ciência e Cultura, edição 2004, na categoria Ciência Geral. Na categoria Ciência Aplicada à Água, o vencedor foi o almirante Alberto dos Santos Franco, do Rio de Janeiro, estudioso do fenômeno das marés. O Instituto Agronômico de Campinas (IAC) ganhou o prêmio de Ciência Aplicada ao Campo; o Museu Paraense Emílio Goeldi, o de Ciência Aplicada ao Meio Ambiente; e o poeta Ferreira Gullar, na categoria Literatura. César Victora, professor de Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (RS), foi laureado na categoria Medicina. O prêmio será entregue no dia 30 de maio. Cada um dos laureados receberá R$ 100 mil. Na mesma cerimônia será entregue o Prêmio FCW de Fotografia, que homenageia os melhores trabalhos de fotografia publicitária. A fundação é uma instituição criada por Ubaldo Conrado Wessel, fotógrafo e químico, inventor na década de 1920 do primeiro papel fotográfico brasileiro. O prêmio, criado por ele, já é considerado um dos mais importantes do Brasil na área de ciência e cultura. •

Escultura que os vencedores do Prêmio FCW vão ganhar

■ Aventuras da nanociência A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Laboratório Nacional Luz Síncroton (LNLS), com o apoio da FAPESP e da Fundação Vitae, desenvolveram um projeto para difundir, de forma lú-

dica, a nanociência e a nanotecnologia entre jovens de 9 a 13 anos. Batizado de nanoaventura, o projeto utiliza jogos eletrônicos, cinema em três dimensões, teatro, música e animação, para simular atividades dos cientistas em laboratórios. Os participantes podem realizar, por exemplo, um passeio virtual por laboratórios da Unicamp e do LNLS e fazer experiências com o manuseio de átomos. Em outro jogo é possível aplicar fármacos em uma célula danificada para tentar a cura. As atividades incluem ainda a montagem de um nanocircuito eletrônico e manipulação de átomos sobre uma superfície coberta de impurezas que poderá ser limpa por meio do uso de um microscópio de força atômica. "Quisemos mostrar como os cientistas fazem no mundo real", diz Marcelo Knobel, coordenador da equipe responsável pela nanoaventura e professor do Instituto de Física da Unicamp. A nanoaventura se desenrola dentro de uma espécie de tenda - uma estrutura de lona sustentada por aço, com 9 metros de altura e 19 metros de

diâmetro - montada no Parque Taquaral, em Campinas, com capacidade para até 48 pessoas. A tenda pode ser desmontada e transportada para outras cidades do país. O projeto teve início no dia 4 de abril, em Campinas, e seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi apresentado no 4o Congresso Internacional de Centros e Museus de Ciência. •

■ Homenagem em Brasília Carlos Vogt, presidente da FAPESP, foi admitido no dia 26 de abril na Ordem Nacional do Mérito Científico, classe Comendador. O professor Francisco Romeu Landi (19332004), que foi integrante do Conselho Superior, presidente e diretor-presidente do Conselho Técnico Administrativo da FAPESP, foi admitido post mortem também na classe Comendador. A solenidade ocorreu no Palácio do Planalto e foi presidida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Instituída em 1993, a ordem premia personalidades de destaque nos campos da ciência e da tecnologia. •

0 projeto utiliza jogos e animação para simular atividades dos cientistas PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 23


POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLóGICA

INVESTIMENTOS

Radiografia da inovação Terceira edição dos Indicadores da FAPESP registra aumento nos gastos públicos com C&T entre 1998 e 2002

CLAUDIA IZIQUE

AFAPESP lança, no dia 10 de maio, a terceira edição dos Indicadores de ciência, tecnologia e . inovação em São Paulo - 2004, uma radiografia detalhada do avanço da pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Estado de São Paulo entre 1998 e 2002. A exemplo das duas edições anteriores (1995 e 2001), a publicação tem como objetivo subsidiar a formulação da política de ciência e tecnologia em São Paulo e no país. A terceira edição, elaborada por cerca de 40 especialistas, organiza-se em torno de três grandes blocos de indicadores - de insumo, de resultados e de impacto econômico e social. Ao longo de 12 capítulos temáticos, a ciência e tecnologia desenvolvidas em São Paulo são interpretadas tendo como pano de fundo o contexto nacional e internacional. O volume integra ainda as séries estatísticas a partir das quais os indicadores foram construídos e a descrição das metodologias adotadas na coleta e tratamento


dos dados apresentados, conforme ressalva Regina Gusmão, coordenadora da terceira edição. Gastos em P&D - No que se refere aos gastos em P&D, os Indicadores adotam nova metodologia de identificação e coleta de dados distintas das utilizadas nas demais edições (1995 e 2001). Para delimitar o campo das atividades no Estado de São Paulo, os autores enfatizaram a comparabilidade dos números agregados, com base nas recomendações do Manual Frascati, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), já adotado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em 2001. Os gastos públicos em P&D foram calculados a partir de dados da execução orçamentária. Com base nesse critério, os autores registram aumento nos dispêndios públicos no Estado de São Paulo, entre 1998 e 2002. Essas despesas mantiveram-se acima dos R$ 2,3 bilhões durante o período. Os dispêndios do governo estadual - que responderam por cerca de 60% do

total - mostraram-se mais dinâmicos que os do governo federal em São Paulo. Em São Paulo, esse incremento foi determinado, principalmente, pelos gastos das instituições de fomento. A FAPESP manteve posição de destaque, sendo responsável por mais de 56% do total de recursos destinados ao fomento no estado. Os gastos anuais com pós-graduação também contribuíram para o aumento dos dispêndios públicos. Somaram R$ 863 milhões, na média, sendo 84% realizados pelas três universidades estaduais, sob a liderança da Universidade de São Paulo (USP), seguida pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No cálculo dos investimentos privados, a terceira edição dos Indicadores incorporou a base de dados da Pesquisa Industrial Inovação Tecnológica 2000 (Pintec), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada com 10 mil empresas, além de tabulações especiais da Pintec 2003 que o instituto deverá divulgar no segundo semestre deste ano, de acordo com San-

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 25


dra Hollanda, coordenadora do capítulo sobre os dispêndios em P&D. Nas outras edições de Indicadores esse cálculo era feito com informações coletadas pela Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei) com um painel de 400 a 600 empresas. Por esse novo critério, a participação das empresas no total dos gastos em P&D em São Paulo, em 2000, foi de 54%. No plano nacional, no mesmo ano, ainda prevaleciam os investimentos públicos que, no conjunto dos gastos de P&D, representavam 58% diante dos 42% do setor privado. Esses resultados, no entanto, devem ser relativizados, como observa Sandra, já que a Pintec é realizada por amostragem probabilística com uma margem de erro de 30%. A nova metodologia deverá ainda ser aperfeiçoada. Registro de patentes Apesar das sinalizações positivas no capítulo sobre gastos em P&D, os Indicadores mostram acentuado distanciamento do padrão brasileiro de investimento em ciência e tecnologia em relação aos países industrializados, o que mantém aberto o desafio de buscar soluções para o avanço tecnológico. Prova disso está no capítulo dedicado a indicadores de propriedade intelectual. O número de patentes concedidas pela United States Patent and Trademark Office (Uspto) a brasileiros teve um crescimento modesto, ainda que persistente, entre 1999 e 2001, até fechar o período com 0,07% do total de registros. A contribuição de São Paulo representou a metade do esforço nacional no período, similar à sua participação nos pedidos de patente depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) entre 1990 e 2001. Os dados revelam, no entanto, que das 20 entidades brasileiras líderes em depósito de patente, entre 1990 e 2001, sete localizavam-se em São Paulo, sendo duas universidades e três institutos de pesquisa. Os autores destacam, ainda, o peso extremamente elevado, superior a 70%, dos pedidos de patente no sistema INPI depositados por indivíduos em relação 26 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

aos das pessoas jurídicas, tanto no caso de São Paulo como no do Brasil. Esse quadro, de acordo com a literatura especializada, está associado a uma realidade de atraso e subdesenvolvimento, lembram os autores da pesquisa. Inversamente, projetados num plano internacional, os dados revelam a preponderância de patentes concedidas a pessoas jurídicas, a grande maioria representada por empresas transnacionais. O capítulo sobre o balanço de pagamentos tecnológicos deixa claro o preço que o país paga pelo atraso tecnológico. Entre 1998 e 2002, a participação dos produtos de alta tecnologia nas exportações do Estado de São Paulo representou entre 25% e 30%, enquanto a do Brasil situava-se entre 15% e 20%.

aíses avançados tecnologicamente têm cerca de metade de suas exportações concentrada em bens de alta tecnologia e apresentam valores médios das exportações superiores aos das importações. Essa relação se inverte nos países onde a sofisticação tecnológica da indústria é baixa. É o caso do Brasil e de São Paulo, classificados entre as regiões e países de grau médio de desenvolvimento tecnológico que se caracterizam por déficits no comércio exterior de bens de alta tecnologia e no balanço de pagamentos de serviços tecnológicos. Isso evidencia a alta dependência do Brasil e de São Paulo em relação à tecnologia estrangeira. No caso de São Paulo, esse problema aparece de forma mais visível: no que se refere às vendas externas, o estado se enquadra no nível intermediário de integração internacional, similar ao da Itália. Mas, pelo lado das compras, tem desempenho semelhante ao dos países mais avançados, como Alemanha ou França. Os indicadores relativos aos recursos humanos disponíveis em ciência e tecnologia também não são animadores. Em 2001, o número de pessoas ocupadas em ciência e tecnologia no país era de 11,2 milhões e, em São Paulo, 3,6 mi-

lhões, patamar comparável ao da França e Reino Unido, de acordo com parâmetros da OCDE. Entretanto, quando relacionados à população economicamente ativa (PEA), os resultados são desfavoráveis: o pessoal ocupado em todo o país representa 12% da PEA e, em São Paulo, 17%, diante do patamar de 40% observado naqueles países. Ensino superior - Os Indicadores apontam ainda uma aceleração do ritmo de crescimento da matrícula de ensino superior no país em relação ao período 1995 a 1998, com um ingresso de mais de 1,3 milhão de alunos no sistema. A demanda cresceu em razão da duplicação do número de formandos no ensino médio, junto com a progressiva interiorização e diversificação das universidades em todo o país. Entre 1998 e 2002, São Paulo registrou aumento de 46% no número de matrículas, 89% no de cursos e de 40% no total das instituições de ensino. No Brasil, esse crescimento da graduação foi ainda mais acentuado, com um crescimento de 64% nas matrículas, 107% no número de cursos e de 68% das instituições. A rede privada foi a principal responsável pela expansão da graduação, com um aumento de 50% no número de matrículas, no caso de São Paulo, e de 84% no conjunto do país. Os autores identificaram, no entanto, um "esgotamento da expansão do setor privado", ao constatar queda significativa na relação candidatos/vaga nos processos seletivos. As matrículas nos cursos de pós-graduação, ao contrário da graduação, concentram-se majoritariamente na rede pública, que, entre 1998 e 2002, manteve o ritmo de crescimento já registrado na segunda edição dos Indicadores. O número de matrículas no Estado de São Paulo, em 2002, ainda representava 37% das vagas em todo o país. A grande maioria dos cursos eram oferecidos pelas três grandes universidades estaduais. Os cursos da rede privada não ultrapassavam 17% do total das vagas de mestrado e de 7%, no doutorado. A pós-graduação, no entanto, continua em franca expansão no resto do país, ainda que em ritmo menor, sem comprometer o padrão de qualidade acadêmica e a excelência dos cursos oferecidos. •


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

Os parceiros da luz Projeto KyaTera integra por meio de fibras ópticas dezenas de laboratórios

m projeto que vai interligar dezenas de laboratórios do Estado de São Paulo por meio de fibras ópticas começou a operar no dia 14 de abril. Financiado pela FAPESP, o Projeto KyaTera (Plataforma Óptica de Pesquisa para o Desenvolvimento da Internet Avançada) reúne ferramentas inéditas, capazes de suplantar fronteiras institucionais e geográficas que separam pesquisadores. Por meio de sua plataforma, um indivíduo instalado num laboratório da Universidade de São Paulo (USP) poderá controlar, através de programas desenvolvidos para a rede, instrumentos de um laboratório, por exemplo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Não será somente uma plataforma, mas também o palco de pesquisas sobre aplicações da internet avançada. Os primeiros ensaios foram realizados com uma velocidade de 320 gigabits por segundo, mas sua capacidade não tem limites, daí a alusão ao terabit, que corresponde a 1.000 gigabits. Kya quer dizer rede de pesca em tupi-guarani. Terá,

em grego, mede a grandeza de 1 trilhão. "Mais do que pesquisar aplicações via internet, a plataforma permite pesquisar a própria rede, como a quantidade de terabits que se pode transmitir numa fibra", diz o coordenador do projeto, Hugo Fragnito, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Projetos selecionados - Na primeira fase foram interligadas instituições da capital paulista, como a USP, o Instituto do Coração e a Universidade Mackenzie, e de Campinas, Unicamp, Pontifícia Universidade Católica e CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações). Em breve haverá conexão com São Carlos (USP e universidade federal) e, num outro momento, com laboratórios das cidades de Rio Claro, Santos, Bauru, Ribeirão Preto e São José dos Campos. A FAPESP já selecionou projetos para o KyaTera que envolvem 600 professores e alunos ligados a grupos de excelência em áreas como física, engenharias mecânica e elétrica, computação, mecatrônica, robótica, biologia e medicina. O KyaTera está integrado ao Programa Tidia (Tec-

nologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada) da FAPESP. A base de operação será utilizada por outros projetos vinculados ao Tidia, como no desenvolvimento de ferramentas para ensino e aprendizado via internet. Uma solenidade realizada no dia 14 de abril na Unicamp marcou o início das operações do KyaTera. José Fernando Perez, num de seus últimos compromissos como diretor científico da FAPESP, relacionou o Projeto KyaTera aos desafios que a Fundação e a pesquisa brasileira vêm enfrentando. Citando o livro O Sol, o genoma e a internet, no qual o autor, Freeman Dyson, aponta os três quesitos fundamentais para o futuro da humanidade, Perez disse: "Quanto ao Sol, nosso país tropical tem de sobra. Em relação ao genoma, o Brasil entrou no mapa dos países que fazem pesquisa relevante. Sobre a internet, o Projeto KyaTera mostra que também estamos dedicando nossos melhores esforços", disse Perez, saudado pelo sucessor, Carlos Henrique de Brito Cruz, que também cumpriu na solenidade um de seus últimos compromissos como reitor da Unicamp. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 27


Rádio Eldorado AM Sintonize

700

kHz Toda semana, em meia hora, você terá: • Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos . da ciência

E o que não poderia faltar: sua participação nas seções • Pesquisa Responde • Promoção da Semana Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP

Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 2oh30

PesqeTeooüisã FAPESP

www.revistapesquisa.fapesp.br

www.radioeldoradoam.com.br


PESQUISA RESPONDE

- os sons mais familia-

tífica brasileira. Aos 75 anos,

res tornam-se verdadeira

é dono de um vigor incomum,

tempestade

como você, ouvinte,

sonora

aos

ouvidos; baixos reflexos;

poderá

perceber pela voz dele. É di-

• Bradal Lacerda

lentidão em formular

- Sou engenheiro e a minha

dar respostas sobre o que

em Patologias

pergunta é: quando temos níveis normais de gordura e trio

está acontecendo.

Rondônia.

Parodiando

Velho há pouco mais de sete

g/icérides altíssimos, quais os

da informática,

passo o

anos, depois de ter vivido

problemas

dia trabalhando

em mo-

anos na França, onde desen-

que podem ocor-

ou

a linguagem

do de segurança. Torcen-

rer?

retor do instituto de Pesquisa Tropicais

em

Está lá em Porto 32

volveu uma carreira brilhante

do o tempo todo para não

em parasitologia.

• Dr. Protásio Lemos da Luz

travar, um boot no meio-

o que levou o professor

Quando existem trlgllcê-

dia seria muito perigoso,

debrando

sob pena de danificar

para a Europa? A ditadura

-

rides aumentados,

bastante

a

Você sabe

por tanto

HiI-

tempo

brasileira que, em vez de ver

aumentados, mesmo com co-

placa-mãe, que a essa al-

lesterol normal, dois tipos de problemas principais podem

não pode ser prolongado o ra-

tura é madrasta. As operações

nele o cientista inteligente

diorrelógio dispara:

são lentas e apenas as essen-

produtivo

acontecer. Primeiro: existe o

"E o termômetro

já marca

ciais, tudo que for sofisticado

enxergá-lo como perigoso co-

risco de doença cardiovascu-

graus podendo

hoje chegar

fica para depois, não consigo

munista e o afastou da USP,

lar, ou seja, infarto, angina, ou mesmo acidente cerebral. Ou

aos 30 ... as ruas já começam

processar. Olho fixo no reló-

onde ele trabalhava.

a apresentar um trânsito que

gio, horas e minutos passan-

mos ouvi-lo.

seja, existe o risco de desen-

certamente se tornará daqui a

do devagar para enfim poder

volvimento

pouco um congestionamento.

ser desligado: seis horas. Fe-

de aterosclerose,

22

que compromete os vasos. E a outra coisa é que pode ha-

O ouvinte da Eldorado ...

cho as janelas, ativo a função

A voz do radialista soa como a

sleep. E não adianta

ver o comprometimento

corneta da tropa do exército.

control + alt + dei, só depois

Levanta!

de uma boa noite de sono con-

elevados de triglicérides, cau-

De pé, pisoteio o tapetinho,

sigo me recuperar. Tente um

sando até pancreatite.

Então

na tentativa frustrada de en-

enter amanhã!

níveis muito elevados de tri-

contrar os meus chinelos. im-

glicérides precisam ser trata-

possível,

dos também.

eles. Coloco os meus pés ain-

pâncreas,

do

com níveis muito

Eles são risco

de doença cardiovascular

im-

alguém

saiu com

tentar

PROFISSÃO PESQUISA

PROMOÇÃO DA SEMANA

térmico

é capaz de

• Luis Hildebrando Pereira da Silva: - Vim para Rondônia depois de aposentado, porque considero que na Amazônia ainda tem grandes problemas a esparticularmente na área de biociências, isto é, de ciências dos seres vivos, relacionados

da quentes sobre as frias pechoque

não apenas com a saúde humana, mas com a saúde animal e com a saúde vegetal. As

• Comentarista:

me tirar do estado de torpor.

-

Um verdadeiro zumbi, fruto de

de Santos, é uma das figuras

Amazônia

uma noite maldormida:

mais fascinantes da cena cien-

pouco conhecidas

02.04.2005

Mas va-

clarecer em todas as áreas e

dras mineiras. Nem mesmo o

portante.

e

que era, preferiu

Luis Hildebrando,

paulista

patologias existentes aqui na são ainda

muito

e, se nós

quisermos ter uma colonização equilibrada,

com a pre-

• Produção

sença do homem compatível

- Que efeitos você sente em seu organismo depois de uma

com o equilíbrio

noite maldormida?

ta ciência a ser desenvolvida,

com a natu-

reza, há muita pesquisa, muie nós temos, de certo modo, a

• Elizabeth Monteiro

pretensão de poder colaborar

(ouvinte de Santos;SP)

com esses objetivos.

-

atualmente

uns 50 cientistas

toca, seis horas. Ainda me sin-

e técnicos

trabalhando

to em nuvens de fumaça, um

áreas de patologias humanas

O relógio freneticamente

Somos

barulho de trem da balada, e,

e animais e pretendemos

atordoada, me pergunto: - Mas o que é isto tocando?

tender

o que

es-

isso para patologias

vegetais. isso nós considera-

Viro para o outro lado. Tentativa vã de prolongar

nas

mos essencial para o futuro Quais os efeitos da insônia?

da Amazônia.


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INCLUSÃO

Multiplicação de idéias Rede quer difundir tecnologias úteis para comunidades carentes CLAUDIA IZIQUE

ma solução simples e inovadora garante o sustento de centenas de famílias no semi-árido brasileiro. Ao redor de um tanque de água em formato circular elas plantam verduras, legumes e frutas irrigados por mangueiras ou garrafas PET. Nesses tanques criam peixes e aves que se alimentam de insetos noturnos - estrategicamente atraídos por uma lâmpada - e enriquecem a água com os nutrientes necessários para o desenvolvimento dessas culturas. Batizado de Mandalla, esse sistema de irrigação - concebido por Willy Pessoa Rodrigues, um administrador de empresas ligado a uma organização não-governamental da região - está ampliando a oferta de alimentos e a renda de comunidades carentes. Exemplos como este estimularam 13 entidades do setor público, organizações não-governamentais e universidades - representadas pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão a criarem a Rede de Tecnologia Social para difundir o uso de soluções ino30 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

vadoras como a Mandalla para outras regiões. O projeto começou a ser arquitetado em 2004, com o apoio estusiasmado da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República (Secom). "As tecnologias sociais precisam romper o isolamento e viabilizar-se enquanto projetos nacionais de larga escala. Para inverter esse quadro, somente com a articulação e coesão entre todos os agentes organizados", argumentava na época o ministro da Secom, Luiz Gushiken. Depois de um longo período de gestação, a rede foi ativada no dia 14 de abril, com o objetivo de difundir experiências bem-sucedidas, estimular o desenvolvimento de novas tecnologias sociais e garantir escala às diversas aplicações, devidamente adaptada à realidade regional. As tecnologias sociais, na concepção do governo, são técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas em interação com a comunidade. Ganharam projeção a partir de 2001, quando a Fundação Banco do Brasil criou um prêmio para selecionar experiências de sucesso e patrocinar a sua implantação em

outras regiões do país. O sistema Mandalla, por exemplo, um dos premiados em 2003, será reaplicado 1.100 vezes neste ano, numa parceria da fundação com o Ministério da Integração Nacional e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Banco de dados - A rede pode ser acessada por meio do portal www.redetecnologiasocial.net, desenvolvido pela Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica (Abipti), que também dá acesso a um banco de dados com experiências nas áreas de emprego e renda, acesso a água, saneamento, energias alternativas, saúde, educação, habitação, entre outros. No dia do lançamento, 130 entidades públicas, privadas e organizações não-governamentais já tinham aderido ao projeto. A rede tem como mantenedores os ministérios da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Fundação Banco do Brasil, a Petrobras, a Caixa Econômica Federal e o Sebrae. "As tecnologias sociais são geradoras de emprego e renda nas regiões mais pobres do país", justi-


fica o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. Cada um dos seis patrocinadores contribuirá com, no mínimo, R$ 2 milhões anuais para a reaplicação de tecnologias previamente selecionadas. Além disso, há disposição entre os parceiros de articular os objetivos da rede com outros programas sociais já em andamento. A Petrobras, por exemplo, além dos R$ 5 milhões que destinará à rede, abrirá à comunidade os poços em que teve frustrada a prospecção de petróleo, mas que deram acesso a lençóis de água e que, a partir de agora, poderão ser utilizados para projetos de irrigação ou até para a reaplicação de Mandallas. "Muitos desses poços, que estavam fechados, serão reabertos", diz Luiz Fernando Nery, gerente de comunicação da empresa.

Prêmio para bons projetos A Fundação Banco do Brasil abriu inscrições para a terceira edição do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social. As oito melhores experiências de tecnologias implementadas com sucesso em comunidades carentes receberão premiação no valor total de R$ 400 mil. Estão aptas a participar do concurso as entidades sem fins lucrativos como universidades, organizações não-governamentais, prefeituras e empresas, entre outras. Os interessados poderão inscrever seus projetos até o dia 30 de junho no site www.fundacaobancodobrasil.org.br Todos os projetos inscritos que se enquadrarem no conceito de tecnologia social receberão uma certificação e passarão a integrar o Banco de Tecnologias Sociais acessível a gestores públicos, empreendedo-

res sociais e lideranças comunitárias. "Atualmente temos reaplicado uma série de tecnologias sociais finalistas e vencedoras", diz Jacques Pena, presidente da Fundação Banco do Brasil. Entre essas tecnologias, Pena cita as 14 minifábricas para o beneficiamento de castanha-de-caju, em funcionamento desde 2003 com o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Sebrae e Telemar. A expectativa é de que o projeto crie 5,8 mil empregos nos estados do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Maranhão até 2006. Neste ano, o prêmio conta com duas categorias especiais - tecnologia social voltada à Gestão de Recursos Hídricos e aos Direitos da Criança e do Adolescente - em função de parceria firmada com a Petrobras.

Aprender com o povo - A expectativa do governo é incorporar as tecnologias sociais às políticas públicas. A Secretaria de Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, já lançou editais para o financiamento de projetos de tecnologia social no valor de R$ 34,5 milhões, com o objetivo de estimular o desenvolvimento de novas tecnologias para as regiões Norte e do semi-árido. Além das instituições de pesquisa, entidades do terceiro setor também poderão apresentar propostas. "Queremos apoiar os cientistas que trabalham com tecnologia de ponta e, ao mesmo tempo, lembrar do Brasil esquecido", afirma Eduardo Campos. "Os cientistas e pesquisadores vão aprender com o povo." A Finep também já conta com uma área específica para o apoio às tecnologias sociais, de acordo com Eliane Bahruth, diretora de Inovação para o Desenvolvimento Econômico e Social da Finep. Em parceria com a Caixa Econômica Federal e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, anunciou uma chamada pública para o financiamento de incubação de empreendimentos solidários. A rede conta com uma secretaria executiva e terá suas atividades acompanhadas de perto por um comitê gestor, formado por representantes das 13 entidades, que se reunirá a cada 15 dias. Anualmente um fórum nacional avaliará as metas estabelecidas. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 31


CIÊNCIA

0 diálogo dos mares ■ As leis da física no Inferno No Inferno de Dante, bem entendido. Três séculos antes de Galileu Galilei, Dante Alighieri descreveu uma lei do movimento, a invariância, que explica por que as pessoas sentem como se ainda estivessem paradas em um carro ou em um avião em movimento. O físico Leonardo Ricci, da Univer-

sidade de Trento, na Itália, encontrou a notável intuição do poeta no canto 17 do poema "Inferno", que integra a Divina comédia (Nature, 7 de abril). Dante faz ali a primeira descrição da sensação de voar ao descer para o oitavo círculo do Inferno nas costas do monstro alado Gerion, ao lado de seu guia, Virgílio. Galileu se baseou em uma viagem de barco ao descrever esse efeito. •

As mudanças climáticas nos hemisférios Norte e Sul estão ligadas por fenômenos pelos quais os oceanos reagem a mudanças no lado oposto do planeta. De acordo com um estudo da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha, e da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, quando o clima esquentava no norte, o

sul entrava em uma fase de resfriamento que reduzia o transporte de águas profundas do Atlântico. Se o norte esfriava, o sul vivia uma temporada mais quente, que estimulava o fluxo de água rumo ao norte (Science, 18 de março). Atualmente o clima da Europa e da América do Norte é bastante influenciado pela corrente do

Preconceitos femininos

Gerion, Dante e Virgílio: a primeira sensação de voar 32 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

Tudo indica que as meninas normalmente fogem das carreiras em matemática, ciências exatas e engenharia porque não as vêem como uma ocupação social, mas, ao contrário, solitária. Numa conferência realizada em abril, Jacquelynne Eccles, da Universidade de Michigan, Estados Unidos, falou para pais e professores de um estudo que acompanhou 1.200 meninos e meninas de 1983 a 2002, quando os participantes completaram 30 anos. Segundo

esse estudo, os pais fornecem mensagens que corroem a confiança das filhas em suas habilidades científicas e matemáticas. Mesmo que as meninas tirem notas melhores em matemática que os garotos, pais de meninas contaram que a matemática era mais difícil para a filha deles que os pais de meninos. Para Jacquelynne, pais e professores deveriam aumentar a confiança das meninas nas ciências e mostrar que os pesquisadores trabalham em equipe.


■ 0 perigo das supererupções

Ora mais quente, ora mais frio: oceanos se ajustam às mudanças climáticas (vermelho e amarelo indicam temperaturas mais altas, verde intermediária e azul e violeta, as mais baixas)

Golfo, que carrega água quente das regiões tropicais ao longo do litoral da Flórida, cruza o Atlântico e banha a costa oeste da Europa, tornando o clima mais ameno. Acredita-se que o aquecimento global poderia fazer o gelo da Groenlândia derreter e aumentar o volume de água doce do oceano Atlântico - e então a corren-

Segundo ela, as crianças têm uma imagem falsa dos cientistas, vistos como homens, com cabelos despenteados, sempre concentrados e solitários. "Temos de mudar essa imagem", diz Jacquelynne, "e dar às crianças uma imagem mais rica e sutil de como os cientistas são e trabalham". •

■ Felicidade refletida no organismo Não é só o coração. Todo o organismo das pessoas felizes funciona melhor que o das infelizes, de acordo com um estudo coordenado por Andrew

te do Golfo enfraqueceria e o clima da Europa e da América do Norte seria mais frio e seco. Hoje se sabe que a força dessa corrente depende da salinidade da água que chega do sul: se a salinidade diminui, ela enfraquece. As águas do hemisfério Sul, menos salgadas, afundam e se distribuem por todo o oceano, diminuindo

Steptoe, da University College de Londres, que acompanhou as emoções e a saúde de 200 londrinos. Aqueles mais felizes tinham taxas menores de cortisol, hormônio ligado ao estresse e a doenças como diabetes tipo 2 e hipertensão. Também respondiam ao estresse com uma quantidade menor de fibrinogênio, uma proteína encontrada no sangue que, em altas concentrações, pode prejudicar o coração. Estudos anteriores já haviam mostrado que pessoas deprimidas têm mais problemas de saúde, mas faltava encontrar as razões biológicas. •

a salinidade do Atlântico no hemisfério Norte e debilitando a corrente do Golfo. Um indício de que os oceanos estariam se adaptando às mudanças climáticas, como já ocorreu no passado, é que nos últimos dez anos tem havido uma redução do volume de água doce do hemisfério Sul que segue para o fundo do Atlântico. •

Durou alguns anos o efeito das erupções dos vulcões Tambora em 1815, do Krakatoa em 1883 e do Pinatubo em 1991. Ficou no ar uma nuvem de gotas de ácido sulfúrico, que refletia e absorvia a radiação solar, além de reter o calor da Terra, alterando o clima global. Supererupções como essas representam uma ameaça à civilização humana, já que poderiam afetar a produção de alimentos, as viagens aéreas e as telecomunicações, alertou um grupo de trabalho da Sociedade Geológica de Londres. De acordo com o relatório assinado por Steve Sparks, da Universidade de Bristol, e por Stephen Self, da Open University, ambas da Inglaterra, o impacto desses megaeventos é comparável à colisão com o planeta de um asteróide de 1 km de diâmetro - e a probabilidade de eles ocorrerem são de cinco a dez vezes maior. Estimase que possa haver erupções intensas o bastante para causar um desastre global a cada 100 mil anos. •

Monte Mayon em 1928: o vulcão mais ativo das Filipinas PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 33


Etnia explica mutação Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) descobriram que às vezes é essencial levar em conta a etnia das pessoas para evitar falsas associações entre alterações genéticas e doenças. Chegaram a essa conclusão após analisarem uma alteração - a seqüência CAA (citosina-adenina-adenina) - no gene Nogo, responsável pelo controle do crescimento das células nervosas. A modificação na estrutura desse gene varia segundo a etnia e não está necessariamente ligada à esquizofrenia, como havia sugerido Philip Seeman, da Universidade de Toronto, no Canadá, em 2002. Em uma pesquisa a ser publicada na Schizophrenia Research, Sheila Gregório, da USP, analisou essa modificação genética em 725 pessoas de etnias diferentes (181 34 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

com esquizofrenia e 98 com transtorno bipolar). Ela confirmou: a intromissão da seqüência CAA não se mostrou associada a essas doenças, mas diretamente ligada à etnia. É duas vezes mais comum na população branca (atinge 40%) do que na negra (20%) - e sua proporção é de 30% entre os pardos. "A etnia pode às vezes ser um fator importante que permite dizer se uma alteração genética está ou não associada a uma doença", diz Sheila. •

dos em pesqueiros particulares, alcançaram o rio nas cheias mais intensas da década de 1980. Suspeita-se ainda que pescadores imprudentes tenham soltado alevinos desse peixe no reservatório - um crime ambiental. A conseqüência mais evidente da introdução dessas duas espécies de tucunaré - o azul (Cichla cf. ocellaris), nativo do rio Solimões, e o amarelo {Cichla monoculus), do Araguaia - é a alteração de hábitos alimentares e da velocidade de desenvolvimento e reprodução

desses peixes. Em estudos publicados no Brazilian Journal ofBiology, os zoólogos Leandro Gomiero e Francisco Braga, ambos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, interior de São Paulo, constataram que os tucunarés de Volta Grande atingem a idade reprodutiva em apenas um ano, enquanto nos rios amazônicos levam o dobro do tempo para atingir a maturidade sexual. Além de procriar mais rápido, os tucunarés da represa do rio Grande apresentaram uma

■ O rei dos rios do Sudeste Não deveria ser assim tão fácil pescar tucunarés na represa próxima a Miguelópolis, cidade no extremo norte do Estado de São Paulo. Esse peixe de até 9 quilogramas não é natural dessa região, mas sim da Amazônia. Cria-

Tucunaré-amarelo nos rios do Sudeste: canibalismo


dieta menos variada: tilápias, corvinas e mesmo filhotes de tucunarés. Incomum na Amazônia, o canibalismo confirma o empobrecimento da fauna de peixes no Sudeste, onde antes havia dourados, pintados e jaús. "O dano maior para os peixes foi a construção da barragem", afirma Gomiero. •

■ Pais obesos e filhos desnutridos Um estudo feito em sete países revela que o Brasil está em fase de transição nutricional, com número crescente de obesos, assim como outros países em desenvolvimento, a exemplo da Rússia e da China. Uma das marcas dessa situação é que às vezes se encontram pessoas com peso acima e abaixo do normal, na mesma casa. Há alguém com sobrepeso (em geral, um adulto) e outra pessoa, quase sempre uma criança, com peso inferior ao normal, em uma em cada dez famílias brasileiras, revela estudo publicado no International Journal of Obesity. Essa situação complexa atinge em especial as famílias de baixa renda das áreas urbanas, que em geral só têm acesso aos alimentos mais baratos, ricos em energia e pobres em nutrientes como os lanches, explica Benjamin Caballero, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em comentário publicado no New England Journal of Medicine. •

■ Em busca da máquina ideal Um gerador que beira os limites da idealidade, quase sem perda alguma de energia e que dispensa a aplicação de uma corrente elétrica para

funcionar. Assim seria o oscilador elétrico-mecânico proposto pelo físico Osvaldo Schilling, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), num artigo publicado na revista Superconductor Science and Technology. "Praticamente não haveria atrito e as formas de energia seriam ciclicamente convertidas e conservadas", diz. Seu dispositivo tem uma bobina supercondutora submetida a uma força constante e a campos magnéticos uniformes. Em relação a outras máquinas supercondutoras, a peculiaridade seria o movimento lento e linear da bobina (em vez de rotatório), sem recorrer a altas velocidades para operar. As oscilações seriam capazes de gerar uma corrente de algumas centenas de amperes. "Em termos práticos", diz ele, "o oscilador poderia ser usado para gerar e armazenar energia eletromagnética". •

Animais raros fora das áreas preservadas As 700 unidades de conservação da Mata Atlântica estão longe de ser suficientes para evitar o desaparecimento de espécies de animais e plantas muitas vezes exclusivas (endêmicas). Biólogos da Universidade Federal de Minas Gerais e da Conservação Internacional examinaram quão protegidas estão 105 das 110 espécies de mamíferos, aves, anfíbios e répteis endêmicos da Mata Atlântica que integram a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas. Compararam as áreas de distribuição das espécies com a localização das unidades de conservação e concluíram: 54 espécies estão total-

mente desprotegidas. Há 14 com 50% de risco de desaparecer em dez anos, como o macaco-prego-do-peito-amarelo {Cebus xanthosternos) e o muriquido-norte (Brachyteles hypoxanthus); 39 estão sob proteção parcial, como o papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) e o mico-leão-da-cara-preta (Leonthopitecus caissara); e só 12 estão protegidas. A sobrevivência dessas espécies depende da preservação de áreas como a serra do Mar fluminense, as serras do Espírito Santo, o sul da Bahia e os remanescentes florestais entre Alagoas e Pernambuco. •

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 35


I

CAPA

MEDICINA

Parasita dissimulado A neurocisticercose, doença escamoteada pelo descaso e a dificuldade de diagnóstico, começa a mostrar sua real dimensão FABRíCIO MARQUES

diagnóstico da neurocisticercose, a mais importante doença parasitária do sistema nervoso central. A moléstia se caracteriza pela instalação no cérebro de uma larva adquirida pela ingestão de alimentos contaminados com ovos da Taenia solium e é praticamente inexistente nos países desenvolvidos. Mas emerge como um grande problema de saúde pública em amplas regiões da América Latina, da Ásia e da África, produzindo males neuropsiquiátricos e matando entre 15% e 25% de suas vítimas. No Brasil é endêmica em várias regiões e atinge presumíveis 140 mil pessoas. Não se conhece ao certo o espectro da doença, em boa medida, por dificuldades de diagnóstico. Em geral, só se pesquisa a neurocisticercose em pacientes que procuram ambulatórios de neurologia com sintomas como crises de epilepsia e distúrbios psiquiátricos. Mas estudos recentes indicam que a incidência é elevada até mesmo em estados supostamente livres da moléstia. Há testes capazes de detectar anticorpos produzidos contra o invasor, mas nenhum deles é específico a ponto de atestar ou excluir a doença. O diagnóstico somente é conclusivo com a ajuda de imagens de ressonância magnética ou de tomografia computadorizada, que apontam um ou vários cistos, às vezes muitos, a povoar regiões do cérebro do paciente. A boa novidade é que a pesquisa genética acena com um teste barato capaz de detectar vestígios do DNA do verme em amostras do líquido cefalorraquiano, também conhecido como líquor, aquele que envolve e protege o cérebro. Uma equipe liderada pelo especialista em genética molecular Emmanuel Dias Neto, do Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), demonstrou pela primeira vez que o DNA do invasor está presente

0 cérebro visto em exame de diagnóstico por imagem: o parasita se revela


PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 37


no líquor. E desenvolveu um exame de detecção molecular da presença do parasita baseado na amplificação do DNA pelo método PCR (reação de polimerase em cadeia). O teste foi criado em parceria com pesquisadores do Departamento de Neurologia da FMUSP, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, num projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Asso ciação Beneficente Alzira Denise Hertzog Silva (Abadhs). Ao avaliar 30 pacientes com a neurocisticercose, o novo método exibiu uma sensibilidade de 96,7% na detecção do parasita deu positivo para 29 deles. Um grupo de controle, de dez pacientes sem a doença, atestou sua eficiência. A equipe está submetendo o achado à publicação numa revista científica e saiu em busca da patente. "Já temos uma empresa interessada", diz Emmanuel. A pesquisa será apresentada na dissertação de mestrado de Carolina Rodrigues Almeida, orientada por Emmanuel no Departamento de Psiquiatria da FMUSP. O advento do teste promete expandir o diagnóstico da neurocisticercose, oferecendo exames precisos e mais baratos que o diagnóstico por imagem. Os acenos da genômica atingem outros flancos da doença. A equipe de Emmanuel lidera ainda um trabalho pioneiro na identificação de genes funcionais do cisticerco, a forma larval que causa a neurocisticercose. Já foram identificados 2.880 ESTs - fragmentos de genes ativos que, em inglês, são denominados Expressed Sequence Tags, segundo uma técnica concebida pelo pesquisador Andrew Simpson e pelo próprio Emmanuel, quando trabalhavam no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. A metodologia brasileira recebeu o nome de Orestes (Open Reading Expressed Sequence Tags), que, em português, significa algo como etiquetas da fase aberta de leitura de seqüências expressas. Essa técnica já foi usada no Projeto Genoma do Câncer e também no estudo do genoma do Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose. "Fiquei surpreso quan38 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

do descobri que não havia nenhuma seqüência do tipo EST do parasita que causa a neurocisticercose", diz Emmanuel, que se debruçou sobre o tema quando foi trabalhar no Departamento de Psiquiatria da FMUSP. "Já encontramos grande quantidade de novos genes do parasita, que incluem candidatos para desenvolvimento de terapias e testes", diz Carolina Almeida.

possibilidade de ampliar o diagnóstico da neurocisticercose é essencial para o combate à moléstia. "A doença é gravíssima e enfrenta muitos problemas no campo da prevenção, a começar pelo fato de que não é obrigatório notificar os casos", diz Vicente Amato Neto, professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da FMUSP. "Aparece com muita freqüência em ambulatórios neurológicos que tratam dos principais sintomas, mas é difícil saber a real ocorrência na população, porque não se busca detectá-la." Estudos recentes mostram que o espectro é mesmo maior do que se imaginava. Um exemplo é a situação do Piauí, estado que não integrava o mapa de incidência da moléstia no Brasil. Na verdade, parecia livre da moléstia apenas porque ninguém se dera ao trabalho de procurar a neurocisticercose ali. Entre 1999 e 2001, uma equipe de pesquisadores de três estados liderada por Alberto Novaes Ramos Júnior, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará, fez uma ampla investigação sobre doenças parasitárias em João Costa, um paupérrimo município de 3 mil habitantes nas cercanias do Parque Nacional Serra da Capivara. Foram identificadas 169 pessoas com sintomas compatíveis com a neurocisticercose humana, como cefaléias e crises epiléticas. Exames imunológicos detectaram anticorpos contra o cisticerco em 27 delas. A grande lição da pesquisa no Piauí é que a realidade epidemiológica da doença no Brasil permanece desconhecida, por ser pouco investigada.

Santa Catarina também começa a desvendar a real dimensão da neurocisticercose. A análise de 143 mil exames de tomografia computadorizada realizados na década de 1990 em diferentes regiões do estado revelou uma incidência de 1,2% de neurocisticercose. Num universo mais específico, de 1.849 pacientes atendidos com sintomas neurológicos, a porcentagem de exames positivos chegou à ordem de 30%. Duas regiões despontaram no ranking dos casos, as dos municípios de Lages e de Chapecó. "São regiões onde a criação suína é tradicional. Mas os casos costumam envolver pessoas de municípios pobres das redondezas, onde a criação é feita de modo rudimentar", diz Mario Steindel, professor do Departamento de Microbiologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisadora Maria Márcia Imenes Ishida, também da UFSC, estuda o entorno do município de Lages. Já foram coletadas 400 amostras de sangue, que estão sendo avaliadas em busca de anticorpos. O objetivo é realizar um levantamento epidemiológico no local para determinar a prevalência e identificar os fatores de risco associados à parasitose, tanto na população rural quanto na urbana de Lages. Hermafrodita - A ignorância sobre as formas de contágio conspira a favor da proliferação. Em geral associa-se a neurocisticercose à carne suína e se imagina que basta evitar o consumo de receitas à base de porco, além de seus derivados, para ficar a salvo. Não é bem assim. Quando um indivíduo come carne de porco contaminada pelos cisticercos, as larvas do parasita, existe o risco de pegar outra doença, a teníase. Uma vez ingeridos, os cistos incrustados na musculatura suína transformam-se, dentro do intestino humano, na Taenia solium, a forma adulta do parasita, conhecida como tênia ou solitária. Trata-se de um verme com o corpo alongado, em forma de fita. A tênia é hermafrodita e fabrica ovos aos milhares, que são liberados nas fezes humanas. A cada dia, o hóspede indesejável do intestino despeja entre 50 mil e 60 mil microscópicos ovos. O ciclo da teníase se fecha quando o porco ingere água ou alimentos que tiveram contato com as fezes contaminadas do homem.


O teste por PCR (acima) e uma imagem do cérebro que mostra cisticercos (pontos mais claros): ferramentas de diagnóstico preciso

No organismo suíno, esses ovos irão converter-se em novas larvas que vão povoar sua carne e, por fim, infectar o homem que se alimentar dela. A teníase pode causar retardo no crescimento das crianças e provocar prejuízos a adultos, como perda de capacidade de trabalho. Mas tem tratamento relativamente simples: a administração de vermífugos específicos é capaz de eliminála do organismo. Um outro verme, a Taenia saginata, parasita de bovinos, também pode causar a teníase em seres humanos. Mas apenas a Taenia solium, a tênia do porco, participa do ciclo evolutivo da neurocisticercose. A neurocisticercose é uma doença associada à teníase, mas tem manifesta-

ções muito diferentes. Ela eclode quando o homem ingere diretamente os ovos produzidos em seu intestino pelo parasita. No passado, estava mais vinculada a regiões desprovidas de saneamento básico, onde os porcos têm contato direto com fezes humanas. Não por acaso, ainda hoje, a incidência de neurocisticercose em aldeias indígenas é 18 vezes maior do que no resto do Brasil. Mas, com o êxodo rural, a doença tornou-se urbana, transmitida em qualquer ambiente onde falte higiene. Pessoas infectadas que não lavam as mãos depois de ir ao banheiro podem contaminar os alimentos na hora de prepará-los. Assim, a doença é transmitida a todas as pessoas que os comerem.

Há outra forma de contágio, considerada mais rara, na qual, por força dos movimentos da digestão, o estômago humano é contaminado por ovos liberados no intestino. Os ovos, diga-se, são ultra-resistentes. Liberados na água, no solo ou na vegetação, permanecem viáveis para o contágio por até sete anos. Mas são destruídos por altas temperaturas, daí a importância de comer os alimentos bem cozidos. Por isso, o principal foco de contaminação são os alimentos ingeridos crus, como as verduras. E não adianta mergulhar a salada em soluções que matam germes, como vinagre ou hipoclorito. Os ovos resistem. Apenas a remoção mecânica, com água corrente e limpeza manual de cada folha, é capaz de afastar o perigo. Cozinheira - Todo cuidado é pouco. Um caso clássico na literatura médica foi publicado em 1992 na revista científica The New England Journal of Medicine, na qual quatro judeus ortodoxos de uma mesma família nova-iorquina receberam o diagnóstico de neurocisticercose. Por razões religiosas, eles jamais comiam carne de porco. E, nos Estados Unidos, a doença chegou a ser considerada erradicada. Uma pesquisa capitaneada pelo parasitologista Peter Schantz, do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) de Atlanta, vinculado ao governo norte-americano, investigou todas as pessoas ao redor das vítimas e desvendou o mistério. Uma cozinheira, imigrante recém-chegada do México, sofria de teníase e tinha hábitos precários de higiene. Foi ela a responsável pela contaminação da família para quem trabalhava. No porco, os cistos costumam instalar-se nos músculos e não representam um perigo à vida do animal. Já no homem, a larva pode integrar-se aos músculos ou crescer bem embaixo da pele, onde não causa grandes prejuízos, exceto os estéticos. Há casos em que uma multidão de cistos se agrupa na região subcutânea da face, causando deformações. Em outras situações, bem mais graves, o cisto invade o globo ocular, podendo levar à deficiência visual. "Antigamente, clínicas oftalmológicas apresentavam uma grande casuística, porque é relativamente fácil para um oftalmologista identificar o cisto dentro do olho", diz Vicente AmaPESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 39


to. Mas o verme tem preferência por localizar-se no sistema nervoso central, endereço de 90% dos invasores. Por isso a doença é chamada neurocisticercose. Trata-se da principal causa de epilepsia nos países em desenvolvimento. No Brasil é responsável por cerca de 3% dos atendimentos em serviços de neuropsiquiatria.

epois que chegam ao aparelho digestivo, os ovos atravessam a parede do intestino e penetram na corrente sangüínea. Quando migram para o sistema nervoso central, atingem primeiro pequenos vasos sangüíneos entre o tecido nervoso. A neurocisticercose pode apresentar-se sob duas formas: a cística, conhecida como Cysticercus cellulosae, e, em cachos com numerosas vesículas, denominada Cysticercus racemosus. Diz-se que a infecção é ativa quando os cistos ainda estão vivos, o que dura em média seis anos, e inativa quando os vermes já morreram e encontram-se calcificados. A doença produz danos específicos, a depender do lugar onde se instala, do tamanho alcançado por cada lesão (de 2 a 43 milímetros) e da resposta imunológica do organismo humano. É comum que o crescimento do verme pressione regiões do cérebro e bloqueie a passagem do líquido cefalorraquiano. Esse líquido é produzido continuamente e qualquer problema que atrapalhe sua absorção e reposição altera a pressão intracraniana, com sérias conseqüências neurológicas. Pode causar seqüelas gravíssimas e até mesmo a morte. A reação inflamatória produzida pelo organismo também produz malefícios. Os primeiros sintomas podem ser pouco específicos, como dores de cabeça, convulsões, perda de visão ou da capacidade motora. Já as seqüelas cerebrais podem levar a quadros como crises epiléticas, hipertensão craniana, hidrocefalia, meningite crônica e distúrbios psi40 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

quiátricos. Estima-se que apenas 10% dos casos são assintomáticos. Segundo levantamento de pesquisas sobre a doença no Brasil feito pela médica Svetlana Agapejev, do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp), a maioria das vítimas no Brasil são homens, com idade entre 31 e 50 anos. Os exemplos mais graves, contudo, concentram-se em mulheres entre 21 e 40 anos, habitantes de áreas urbanas, em geral com hipertensão intracraniana. Não se sabe a razão da diferença. Especula-se que exista algum fator hormonal a interferir na evolução da moléstia. As larvas sobrevivem no organismo humano por um período de três a seis anos. Antigamente era relativamente comum tentar debelar a doença cirurgicamente. Comum e pouco eficaz. Hoje as operações são indicadas apenas em casos muito específicos, em que a lesão é isolada e se encontra em regiões acessíveis do cérebro. Mas, sobretudo, recorre-se a cirurgias para amenizar os sintomas, como fazer drenagem em casos de hidrocefalia. Da mesma forma, há tratamentos ministrados de acordo com a doença desenvolvida, como corticóides, no caso de meningite, ou anticonvulsivos, se ocorrer epilepsia, além de antiinflamatórios e analgésicos. Alguns casos são tratados com dois medicamentos, o albendazol e o praziquantel, capazes de matar cisticercos instalados em determinadas áreas acessíveis do sistema nervoso central. A terapia, porém, é controversa. Ocorre que o cisticerco, mais cedo ou mais tarde, morreria mesmo - sem o poder de deixar herdeiros - e o seu extermínio produzido por medicamentos pode desencadear um complicado processo inflamatório. "Um estudo mostrou que pacientes tratados com o albendazol desenvolveram sintomas mais amenos que os que não receberam o remédio", diz Osvaldo Takayanagui, professor de Neurologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP. Em 1993, a Força-Tarefa Internacional para Erradicação de Doenças, ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou a neurocisticercose como um raro exemplo de moléstia que poderia ser eliminada no planeta, entre 93 males infecciosos e parasitários estudados. A doença foi erradicada

de países como o Japão, Canadá e na maior parte da Europa Ocidental. Nos Estados Unidos registram-se hoje mais de mil casos por ano. O problema ressurgiu graças a fluxos migratórios da América Latina, onde a moléstia atinge 350 mil pessoas em 18 países. No México, a neurocisticercose é o diagnóstico final de 10% das autópsias realizadas em hospitais neurológicos. Permanece um problema grave de saúde pública na África, onde são escassos os estudos epidemiológicos, e na Ásia, sobretudo na China e na índia, mas também na Tailândia, nas Filipinas e na Coréia do Sul. Estima-se que 50 milhões de indivíduos estejam infectados pelo complexo teníase/cisticercose no mundo. Cinqüenta mil morrem a cada ano. Predileção - Um programa eficiente de controle da doença inclui, em primeiro lugar, o monitoramento da qualidade da carne suína. Hoje, a inspeção sanitária feita no Brasil procura vestígios das larvas em órgãos como o coração, a língua, o diafragma e músculos, locais onde os cisticercos têm predileção em se instalar. Mas o verme também pode estar em outros órgãos, daí a importância de sempre cozinhar bem a carne de

Cuidados que os médicos recomendam i Comer carne de porco e seus derivados bem cozidos e adquiridos em estabelecimentos sujeitos à fiscalização sanitária. f As verduras devem ser muito bem lavadas antes de consumidas. Beber somente água filtrada ou fervida. Lavar as mãos antes das refeições, de preparar alimentos e após o uso do sanitário. Fazer exames periódicos de fezes, procurando tratamento se necessário.

I

Dar destinação adequada às fezes humanas, através de fossas sépticas e rede de esgoto.


A face da Taenia solium: duas doenças em uma

Pedaço do verme adulto: carregado de ovos

0 ovo microscópico: viagem até o cérebro

porco. O ideal seria submeter os porcos abatidos a exames imunológicos, que são capazes de encontrar vestígios de anticorpos contra o cisticerco. Segundo diretrizes da Organização Panamericana da Saúde (Opas), além de monitorar a carne, é importante criar um sistema de notificação compulsória dos casos de teníase, inclusive com visitas a familiares das vítimas, para deter o contágio no ambiente doméstico. Também é vital fiscalizar a qualidade de verduras e exigir a apresentação

de exame parasitológico de fezes na renovação da carteira de saúde de qualquer profissional que manipule alimentos, além, obviamente, de melhorar as condições sanitárias da população. A Opas também sugere, como medida extrema, administrar vermífugo em todas as pessoas de uma comunidade bastante atingida pela doença. Poucos estados brasileiros, como Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, dispõem de algum tipo de programa de prevenção. O município de

Ribeirão Preto, no interior paulista, tem um dos mais bem articulados esquemas de combate à doença no país, deflagrado pela elevada incidência da doença naquela região nas últimas décadas. Além da notificação compulsória dos casos, até mesmo a qualidade das verduras vendidas em feiras e mercados foi avaliada. Revelou-se uma elevada contaminação por coliformes fecais, sinal de falta de higiene, mas nenhum vestígio de ovos da Taenia solium. Desse programa saiu uma rara estatística epidemiológica confiável sobre a doença no Brasil. Há 74,1 casos de neurocisticercose em Ribeirão Preto para cada grupo de 100 mil habitantes. "Não dá para dizer se é muito ou é pouco, pela falta de parâmetros de outras localidades para comparar", diz o médico Osvaldo Takayanagui. A doença, apesar da eficiência do programa, mostra fôlego. Cerca de 25% das vítimas apresentaram cisticercos ainda vivos, num sinal de que a doença fora contraída num passado bem recente. Peptídeos - Uma promessa ainda distante é o desenvolvimento de uma vacina capaz de bloquear o ciclo da teníase e da neurocisticercose nos hospedeiros. Há estudos no México de uma vacina baseada em três peptídeos sintéticos compartilhados pela Taenia solium e a Taenia crassiceps, parasita de raposas. O grande entrave, nesse caso, é econômico: o custo de sintetizar esses peptídeos é elevado. No ano passado, pesquisadores chineses concluíram que o antígeno cCl, obtido da Taenia crassiceps, é um bom candidato ao desenvolvimento de uma vacina contra a Taenia solium. Em 1999, um pesquisador australiano conseguiu desenvolver uma vacina, com o uso combinado de três diferentes antígenos, que atingiu um nível de proteção de 93% em porcos propositadamente infectados. Essa vacina talvez não seja eficiente no Brasil, dada a variabilidade genética da Taenia solium ao redor do planeta. "É preciso concentrar esforços em se conhecer outros genes e proteínas do parasita para expandir o potencial de antígenos a serem testados", diz Emmanuel Dias Neto. O Brasil, com a experiência que vem acumulando na ciência genômica, tem uma importante contribuição a dar nesse campo. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 41


CIÊNCIA EPIDEMIOLOGIA

Gradas a Ia vida Mulheres na América Latina aprendem a conviver com o vírus da Aids disseminado por uma cultura machista

POR PATRíCIA LIMA E VíCTOR HUGO DURáN* ILUSTRAçõES ELY BUENO

noite sua. O calor não se desprende dos lençóis. O inútil ventilador de teto repete uma vez mais seu chiado sufocado. Na escuridão os meninos dormem. Ana, não. Não consegue matar todos os mosquitos do quarto. Sempre sobra um, escondido. E se se descuida e o mesmo inseto que antes a picou pica seu filho? E se o pequeno fica doente? O medo a apavora. Não consegue matar todos os mosquitos do mundo. Não consegue matar a raiva. Em novembro de 1999 o mundo de Ana desabou. Às dez e meia da manhã, um jovem com avental branco lhe informa que seu exame é positivo: está infectada pelo HIV, o vírus da Aids. "Por que eu?, foi a primeira coisa que pensei." Era casada havia 15 anos com um bem-sucedido empresário, donade-casa, mãe de três filhos, dois pequenos e uma adolescente. "Por que comigo?" A história de Ana não é singular. Centenas de casos similares ocorrem a cada ano no Paraguai. No país, como na América Latina inteira, a Aids é cada vez mais feminina, mais jovem e mais pobre. A síndrome afeta cada vez mais mulheres que adquirem o vírus em suas próprias casas através dos maridos. Os números do Paraguai causam impacto. No começo da epidemia havia 20 homens infectados para cada mu-

*PATRICIA LIMA é jornalista do diário paraguaio Última Hora e Victor Hugo Durán, do El Mercúrio, do Chile. Esta reportagem foi originalmente publicada na Revista Acción, do Centro de Estudos Paraguaios Antônio Guasch, e reproduzida com autorização. Tradução: Mariluce Moura.


PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 43


lher. Quase duas décadas depois, em 2002, a proporção registrada é praticamente de um homem para cada mulher. A feminização da doença é um fenômeno relativamente novo no Cone Sul. Inicialmente o HIV afetava homossexuais e dependentes de drogas que compartilhavam seringas. Mas com o passar dos anos a transmissão começou a ser um problema comum em mulheres jovens e segmentos pobres. A Aids deixou de ser assunto de homens que praticam sexo com homens e tornou-se parte do cotidiano também de bissexuais e heterossexuais. Muitos homens casados relacionamse sexualmente com outros homens ou mulheres e chegam à noite em casa para dormir com suas esposas — promiscuidade de dia, fidelidade à noite. Assim, sem se dar conta, muitas mulheres partilham a cama não apenas com seu par, mas também com os amantes ocasionais dele, e todos os amantes de cada um desses amantes, e assim sucessivamente. Paloma Cuchi, médica, assessora regional da agência das Nações Unidas para Aids, falando por telefone de seu escritório em Washington, reconhece essa tendência. Diz que as populações suscetíveis - homossexuais e dependentes de drogas - chegaram a um ponto tal de saturação que agora empurram a doença para mulheres e populações de baixa renda. Mais grave ainda é que a pressão social sobre as mulheres freia sua liberdade de exigir a preservativo para manter relações sexuais. Ao machismo que ainda impera na região soma-se a falta de educação. "Continua existindo uma desigualdade sexual entre homens e mulheres para propor o uso da camisinha. Porque ou se considera que neste caso ela traiu o marido, ou porque simplesmente ele se nega a usá-la. Há inclusive trabalhadoras sexuais a quem se continua a pedir para não usar a preservativo. Continua esse desequilíbrio entre homens e mulheres que obedece a um desequilíbrio econômico. Quando as mulheres têm um nível maior de educação, têm maiores possibilidades econômicas e são também mais capazes de exigir igualdade nas relações sexuais, e não só quanto ao uso da cami44 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

sinha, mas também na vida sexual como um todo", adverte. As famílias, no entanto, continuam a educar as mulheres para se tornarem donas-de-casa. Os homenzinhos vão a colégios e universidades. As mulherzinhas cuidam de seus irmãos. Os homenzinhos vão a festas e se divertem. As mulherzinhas preparam a comida. Os homenzinhos sabem como cuidar-se no sexo e como convencer uma mulher não educada a fazer sexo desprotegida.

sse fenômeno pode ser confirmado pelos números da América Latina. No Chile, por exemplo, em poucos anos a tendência passou de uma mulher infectada pelo HIV para cada 20 homens a uma mulher para cada cinco homens, no presente. No Brasil a situação é ainda mais grave. Os dados de 2002 estabelecem que entre os adolescentes de 13 a 19 anos as mulheres contaminadas já representam o dobro dos homens contaminados. Tanto na faixa de 19 a 30 anos quanto na faixa acima dessa idade a proporção é de aproximadamente uma mulher para cada homem. Na Costa Rica, em apenas quatro anos, a tendência passou de uma mulher para 12 homens a uma mulher para sete homens. E no Paraguai, como dito, a proporção é de uma a um. Vida roubada - Desde aquela manhã de novembro de 1999 a vida para Ana mudou. Ela não entendia o que se passava. "Minha vida sempre girou exclusivamente em torno de minha família, de meus filhos, para mim o resto não era nada." Da noite para o dia estava infectada por uma doença mortal da qual não sabia nada. E ninguém lhe dava informação. "O primeiro ano foi terrível", lembra. "No começo eu não dormia à noite, caçando os mosquitos que tinha que matar para que não picassem meus filhos, já que podiam ter picado primeiro a mim. Não queria levar meus filhos ao dentista. Não queria nem ir ao ba-

nheiro, para não contaminá-los." Chorava e comia o dia inteiro. Em oito meses engordou 40 quilos. Ainda que esteja cientificamente comprovado que o vírus da Aids não é transmitido pelo ar, por insetos nem pela saliva, os preconceitos continuam vigentes, inclusive entre os próprios profissionais da saúde. Ana os sofreu em sua própria carne. "Os médicos não me examinavam, não me tocavam." Até 1999 os pacientes que morriam de Aids nos hospitais públicos paraguaios eram enfiados diretamente em um saco de plástico e daí eram colocados em caixões selados, sem dar oportunidade aos familiares de banhá-los e lhes dar um último beijo. A discriminação ainda hoje se impõe como um entrave ao acesso à saúde. "Não atendemos pessoas com Aids", ouve-se pelos corredores dos hospitais ou consultórios médicos. Maus-tratos, menosprezo, olhares por cima dos ombros persistem ainda, e com muita força, nos serviços de saúde. Por medo de perder o direito aos medicamentos ou por medo de que se saiba que são soropositivas, muitas mulheres sofrem em silêncio. Choram de impotência ao chegar em casa, mas tratam de ser fortes diante de um serviço assistencial que não honra esse nome. Cuchi confirma que "a mulher em geral é discriminada no acesso aos serviços de saúde. Existem algumas doenças, como o câncer de colo do útero, que não estão incluídas na cobertura em caso de Aids. No Paraguai, um diagnóstico positivo de Aids representa a diferença entre ser atendido e ser excluído dos serviços de medicina privada. E a mulher, dada a forma como foi educada, busca menos o atendimento médico. Procuram-no quando os filhos estão doentes ou quando elas estão muito mal, mas isso lhes custa muito, porque não têm tempo, estão sempre ocupadas, ou porque devem desempenhar o papel de pilares das famílias. Ainda se vê um estigma muito grande em muitos setores, inclusive o da saúde. Mas esse é um tema que tem a ver com desenvolvimento". Quando Ana tomou consciência de que estava infectada deixou-se invadir por uma raiva imensa. Culpou seu marido, que a havia enganado, culpou a si mesma, por não se cuidar. Culpou os amigos, porque continuavam saudáveis. "No começo, por raiva, por desespero,


queria contar a todo mundo que estava infectada", lembra. "Por sorte não o fiz", pensa agora. "Porque depois você já não pode apagar o que fez e todos lhe dão as costas, é aí que dói." Ruiva, gordinha, alegre, Ana chegou para a entrevista suada e carregada de sacolas com as roupas que vende para sustentar seus três filhos. Não tem carro, anda de ônibus. Desde que seu marido morreu em conseqüência da Aids, ela tomou as rédeas da casa. Trabalha em qualquer coisa: "Às vezes trabalho de cabeleireira, outras vendo calças, vendo cosméticos, se tiver que lavar roupa alheia, lavo, se tenho que limpar a casa dos outros, limpo. O trabalho para mim não é degradante", diz, para em seguida ajuntar, "agora". Antes, sim, era. Ela garante que voltou a nascer há dois anos. Sua vida mudou desde que aprendeu a conviver com a Aids. Desde que começou a participar das reuniões de auto-ajuda da Fundação Vencer, criada por pessoas que vivem com o vírus. Ainda não se notam nela os sintomas da infecção. Não tem manchas no rosto, não emagreceu, embora suas defesas tenham baixado já há um ano e a carga viral tenha subido até o ponto de precisar começar a tomar os medicamentos anti-retrovirais. Ninguém, à exceção de um seleto grupo de familiares e seus amigos da Fundação Vencer, sabe que ela carrega o HIV em seu corpo. "Meus pais e meus irmãos? Dizem que me apoiam, mas sumiram todos da minha casa", comenta. Por isso é melhor manter o segredo. Desatenção estatal - Outro dos dramas que os infectados pelo HIV devem enfrentar no Paraguai é a escassez de medicamentos. O orçamento anual de US$ 500 mil destinado ao Programa de Luta contra a Aids não chega sequer a garantir a medicação anual aos 450 pacientes sob tratamento. Existem outros 700 doentes que deveriam receber essa

medicação, mas eles nem a começaram porque sabem que não poderão dar continuidade ao tratamento. É diferente no Chile, onde o Estado tem um orçamento de US$ 15 milhões anuais e dá cobertura a 90% dos pacientes que requerem terapia. No Brasil, um dos países mais avançados em tratamento de Aids, entre 2000 e 2002 o governo gastou US$ 180 milhões e dá cobertura a 140 mil infectados em tratamento. Como a maioria dos portadores do vírus no Paraguai e no resto do Cone

Sul, Ana é muito pobre. Desde que seu marido faleceu, apenas sobrevive. Por isso quando chega ao escritório do programa e lhe dizem que este mês não terá medicação se sente mal. Sabe que lhe estão roubando dias de vida. Cada interrupção no tratamento tem conseqüências clínicas irreversíveis. O vírus se fortalece e é cada vez mais difícil controlá-lo. "E o que você faz quando não lhe dão os remédios?", perguntamos. "Nada", ela ri nervosa como ao longo da entrevista, "me cuido com remédios populares, com olho-de-gato, que dizem que faz subir as defesas, tomo qualquer coisa". Os doentes de Aids não têm ou-

tra opção nesse caso, porque não conseguem localmente os medicamentos e no exterior seu preço é inacessível para a maioria. Graças a negociações com laboratórios farmacêuticos, o custo mensal do tratamento baixou de US$ 1.300 em 1996 para US$ 180 hoje. Ainda assim o governo paraguaio não garante sua provisão. Agradecer à vida - Atualmente já não se fala em "grupos de risco", e sim que todos nós, homens e mulheres, estamos expostos a adquirir o vírus. Segundo estimativas do Programa de Luta contra a Aids no Paraguai, cerca de 12 mil pessoas estão infectadas. Sabe-se que sete de cada dez infecções ocorrem por via sexual e a maioria dos casos são de heterossexuais. Do restante, 13,2% correspondem a usuários de drogas intravenosas e a alguns casos de acidentes em transfusões notificados no começo da epidemia. A transmissão de mãe a filho recém-nascido contribui com 3,5% dos casos e se desconhece a via de infecção em cerca de 11% dos casos. Agora, depois de dois anos de conversas e educação, Ana já não teme que um mosquito infecte seus filhos com o HIV Já não tem medo de prejudicá-los. "Cada vez que me deito dou graças a Deus por mais um dia de vida e por todas as coisas a que antes não dava importância." Ela não sabe por quantos anos mais viverá, assim como ninguém sabe. Só espera manter-se medicada e o mais sadia possível, à espera de que surja um tratamento capaz de curá-la. É a mesma esperança que têm 42 milhões de pessoas que vivem atualmente como portadoras do HIV ou doentes de Aids em todo o mundo. "Enquanto a pessoa não aceita que traz em seu corpo o HIV sofre muito, mas, a partir do momento em que aceita conviver com esse vírus, tudo é mais fácil." São palavras de uma mãe. De uma lutadora. De uma mulher como tantas outras. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 45


CIÊNCIA QUÍMICA

Corpo com mais gás Formulações com rutênio que liberam ou captam oxido nítrico podem servir de base para futuros medicamentos CARLOS FIORAVANTI

a oderíamos nos apresentar como projetistas de compostos químicos produzidos sob medida que doam ou captam oxido nítrico." _^H__ Ao imaginar essa possibilidade, Elia Tfouni não pretende abrir mão da modéstia, mas resumir os resultados de dez anos de trabalho com Douglas Franco - ambos são químicos e professores da Universidade de São Paulo (USP). Em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Tfouni, Franco e as respectivas equipes desenvolveram cerca de 50 compostos que nos estudos iniciais feitos em laboratório se mostraram capazes de absorver ou liberar oxido nítrico, gás incolor essencial ao organismo que aparece e desaparece a todo momento: sua meia-vida, quando metade do total de moléculas se desfaz, é de apenas cinco segundos. Produzido, consumido e reposto a todo momento, o oxido nítrico facilita a circulação do sangue, o funcionamento do rim, a destruição de microorganismos nocivos, a ereção peniana e a contração do útero na hora do parto, além de servir como mensageiro químico entre os neurônios do cérebro. Poucas moléculas são tão versáteis e onipresentes, embora essa combinação de um átomo de nitrogênio com outro de oxigênio tenha sido vista durante décadas principalmente como um resíduo liberado pelo escapamento dos carros - até que três farmacologistas norteamericanos demonstraram sua importância para 46 ■ MAIO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 111

os seres vivos e ganharam o Prêmio Nobel de Medicina de 1998. Às vezes pode ser bom reduzir a quantidade de oxido nítrico em circulação no organismo; outras vezes, o melhor é aumentar a oferta dessa molécula ligada à vida e à morte, ao prazer e à dor. No choque séptico, como é chamada a brutal queda da pressão arterial que decorre de uma infecção bacteriana, há uma produção excessiva de oxido nítrico - associada também à esquizofrenia, ao mal de Alzheimer, ao diabetes e à asma. Nesses casos sua abundância não é desejada e seriam bem-vindos medicamentos que reduzissem sua concentração no organismo. Outras vezes o que se quer é o efeito contrário e manter a maior quantidade possível de oxido nítrico em circulação, valendo-se de sua propriedade de promover a dilatação das veias e artérias: medicamentos como o Viagra baseiam-se justamente nesse efeito, por meio do qual o sangue circula mais generosamente pelo pênis. Na situação inversa, a escassez de oxido nítrico faz os vasos sangüíneos se contraírem e torna mais iminente a possibilidade de um infarto. Franco e Tfouni gostariam imensamente de dizer que já têm em mãos algo novo para evitar o infarto ou mesmo um Viagra nacional. Mas não. Seus estudos são puramente químicos e apenas começaram os testes em animais, primeira etapa de uma longa jornada rumo a aplicações seguras em seres humanos. O composto que se encontra em estágio mais avançado de pesquisa é chama-


do coloquialmente de PRuNO, abreviação de um nome quase impronunciável, o hexafluorofosfato de írans-nitrosiltetramintrietilfosfitorrutênio(II). Em laboratório, o PRuNO mostrou-se eficaz para reduzir a pressão arterial de ratos hipertensos, de acordo com um estudo feito em conjunto com Marta Krieger, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicado em 2002 na revista Nitric Oxide: Biology and Chemistry. Alessander Acácio Ferro, ex-aluno de doutorado de Tfouni, desenvolveu outro composto aparentemente promissor. Chama-se hexafluorofosfato de frans-nitrosylcloro (1,4,8,11tetraazaciclotetradecano) rutênio (II) - para simplificar, cyclam - e exibiu uma ação 20 vezes mais lenta quando comparado com o nitroprussiato de sódio, um composto usado para tratar ataques cardíacos, já que repõe rapidamente o oxido nítrico. Ainda que o trabalho tenha apenas começado, segundo Franco esse resultado sugere que o cyclam poderia ser utilizado para manter a pressão arterial estável, mais do que para resolver situações de emergência, como fazem o nitroprussiato ou a nitroglicerina, que também é um liberador de oxido nítrico, além de ser um explosivo poderoso.

Nova coletânea de osteologia e de miologia, de Jacques Gamelin, 1779


Em estágio menos avançado estão os estudos de Jean Jerley Nogueira da Silva, um dos alunos de Franco, sobre o uso potencial desses compostos no combate a infecções. Em colaboração com João Santana, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, Silva verificou que o oxido nítrico bloqueia a reprodução do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, contra a qual há décadas não surgem medicamentos novos. Silva selecionou três compostos com alto poder de destruição: em uma hora, cada um dos três matou de 60% a 92% dos parasitas mantidos em meio de cultura. Primeiros testes - Esse grupo de pesquisadores chegou a esses resultados valendo-se das propriedades dos íons partículas carregadas eletricamente - de um elemento químico chamado rutênio. Em sua forma eletricamente neutra, o rutênio é um metal branco usado na produção de ligas resistentes à corrosão e em joalheria como substituto da platina. Com dois elétrons a menos, torna-se Ru2+ e um modelo experimental para o desenvolvimento de novos medicamentos, por se combinar facilmente com o oxido nítrico e formar compostos pouco reativos. "Essa é a via de síntese química mais simples que encontramos", diz Franco, cuja equipe integra o Instituto de Química de São Carlos, enquanto Tfouni e seus alunos trabalham nos laboratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. Os compostos com rutênio ainda são tratados com cuidado, por causa de sua toxicidade. Mesmo assim, em doses controladas, têm sido testados no mundo inteiro contra algumas doenças, constituindo-se uma alternativa para as estratégias hoje adotadas, que controlam o estoque desse gás agindo sobre as enzimas que produzem oxido nítrico ou o desfazem depois de ter cumprido sua tarefa. Em um artigo de revisão publicado no ano passado na Current Topics in Medicinal Chemistry, Celine Marmion e sua equipe do Royal College of Surgeons, na Irlanda, em conjunto com pesquisadores da empresa cana48 • MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

dense AnorMED, desenham um rico futuro para os doadores e captadores de oxido nítrico à base de rutênio ao descrever os resultados das novas formulações testadas em ratos, porcos, cães e coelhos contra problemas de amplo alcance, como hipertensão, câncer, infarto e inflamação. Já foram feitos os primeiros testes também em seres humanos. Em um estudo publicado também no ano passado na Clinicai Câncer Research, pesquisadores do Instituto de Câncer da Holanda relatam a descoberta da melhor dose de um composto à base de rutênio apta a evitar o espalhamento de tumores, após tratarem 34 pacientes com dosagens diferentes. Em paralelo, especialistas da Universidade de Trieste, na Itália, sob a coordenação de Enzo Alessio, encontraram uma formação designada como NAMI-A, que foi testada em 24 pessoas e impediu a proliferação das células cancerígenas. "O composto de rutênio que desenvolvemos e testamos é muito menos tóxico que os antitumorais com platina, mas é claro que nem todos os derivados de rutênio têm baixa toxicidade", comenta Enzo Alessio, o coordenador desse estudo, relatado em 2004 na Current Topics in Medicinal Chemistry. Na Bulgária, um grupo encontrou um derivado de rutênio que combateu a leucemia em células humanas.

ada grupo de pesquisa adota uma estrutura química básica, da qual derivam todos os compostos, do mesmo modo que a partir de um único chassi são feitos modelos de carros mais simples ou mais luxuosos. Nos compostos formulados pela equipe da USP, cujas propriedades foram descritas em cerca de 40 artigos publicados nos últimos dez anos, o rutênio ocupa o centro de um sólido imaginário de oito faces, em forma de duas pirâmides unidas pela base quadrada. Foi dessa plataforma atômica que se originou o PRuNO, até agora o exemplo mais generoso de doador de

Compostos à base de sílica {acima): liberadore captador de oxido nítrico {ao centro e abaixo)


oxido nítrico, que age 10 mil vez mais rápido que outro, por enquanto o mais parcimonioso dos entregadores de oxido, o cyclamNO (é o mesmo cyclam com aquele nome imenso, mas agora sem o oxido nítrico ou NO). "Podemos criar compostos intermediários que retardam ou aceleram a liberação de oxido nítrico, variando os ligantes", diz Tfouni. Ligantes são as moléculas que formam o esqueleto externo desse sólido de oito faces. Os quatro vértices da base comum das duas pirâmides são formados por moléculas relativamente complexas, com grupos de dez a 40 átomos, como as multipiridinas, tetraminas, aminpolicarboxilatos ou salen, de acordo com a classe química a que pertencem. Já no alto de uma das pirâmides há ligantes mais simples - sulfito, fosfito, cloreto ou, simplesmente, água -, decisivos no controle da liberação de oxido nítrico, situado no outro extremo dessa estrutura. Elétron fujão - Em colaboração com pesquisadores da Universidade do Arizona, da Universidade da Califórnia e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, os químicos da USP construíram suas substâncias de modo que o oxido nítrico, em laboratório, seja liberado quando recebe um feixe de luz com a energia adequada ou quando encontra um elétron solitário, a partícula elementar de carga elétrica negativa que orbita o núcleo atômico. Em seguida, segundo Tfouni, a posição que o oxido nítrico ocupava fica vazia e é tomada por outra molécula - geralmente água. Essa mesma estrutura, agora com uma molécula de água ocupando a vaga do oxido nítrico, mas com um elétron a menos, cumpre a função inversa e se torna um captador de oxido nítrico. É uma união perfeita entre uma estrutura atômica com um elétron a menos e um gás constituído por um elétron que escapa facilmente. Por perder um elétron é que o oxido nítrico se torna muito reativo - com fome de elétron, digamos - e adere rapidamente a outras moléculas do organismo, a exemplo do ferro da hemoglobina, a proteína que distribui oxigênio às célu-

las do corpo. Franco e Tfouni aproveitaram justamente essa instabilidade do oxido nítrico para sintetizar seus compostos que funcionam como ímãs de maior ou menor intensidade: o oxido nítrico se aproxima, deixa escapar o elétron fujão e prende-se, ora de modo mais intenso, ora de modo mais tênue, ao íon de rutênio dessa estrutura, que está justamente à espera de um elétron - e assim esse oxido nítrico sai de circulação, ao menos temporariamente. "O oxido nítrico pode escapar de algumas estruturas e de outras não", comenta Tfouni.

ara chegar a esses resultados, essa equipe de químicos da USP trabalha em média durante uma semana, preparando e acompanhando as reações entre os compostos iniciais, que são vermelhos, azuis, verdes ou amarelos, mas desbotam à medida que se combinam com o oxigênio e o nitrogênio do oxido nítrico. Só no final é que surgem os pós geralmente amarelo-claros ou marrom-avermelhados que liberam ou seqüestram oxido nítrico em poucos segundos. Mas calma, não terminou. Corre mais uma semana em testes e análises até se chegar à certeza de que os resultados das reações eram exatamente os esperados. "Se descobrirmos que o composto ficou impuro", diz Tfouni, "temos de voltar tudo e recomeçar". Se se O PROJETO Reatividade térmica e fotoquímica de nitrosilo complexos de rutênio, conhecimento e controle da reatividade do oxido nítrico coordenado MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

DOUGLAS WAGNER FRANCO

- IQSC/USP

INVESTIMENTO

R$ 1.787.508,80 (FAPESP)

trata de formulações novas, o trabalho é ainda maior. Mas quais as chances reais desses compostos seguirem adiante, cumprirem todas as etapas e se tornarem, efetivamente, medicamentos? Franco, aos 60 anos, e Tfouni, aos 61, sabem que se trata de uma longa jornada, em vista da dificuldade de repassar os resultados da pesquisa acadêmica para as indústrias brasileiras do setor químico-farmacêutico, que não primam pela familiaridade com a pesquisa científica, que poderia ajudar a depender menos das importações. Em 2004, de acordo com um levantamento divulgado no início de março, acentuou-se o desequilíbrio da balança comercial da indústria farmacêutica, com exportações de US$ 351 milhões (25% mais que no ano anterior) e importações de U$ 1,8 bilhão (17% mais). A própria Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma), responsável por esse levantamento, reconhece que essa diferença só vai amenizar à medida que se ampliarem os investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Mesmo assim, o trabalho continua. No final do ano passado, Patrícia Zanichelli, da equipe de Franco, obteve as primeiras amostras de macromoléculas chamadas dendrímeros, com 27 estruturas de rutênio, ligantes e oxido nítrico repetidas, e de sílicas - ou areias - embebidas nos doadores e nos captadores de oxido nítrico, cuja distribuição no organismo seria assim mais controlada e dirigida apenas a alguns órgãos do corpo humano. Com essas areias especiais, desenvolvidas por Fábio Gorzoni Doro e Kleber Queiroz Ferreira, dois alunos de doutorado de Tfouni, pretende-se recobrir superfícies de aço inoxidável e assim aumentar a eficiência dos dispositivos conhecidos como stents, uma espécie de mola que mantém as artérias abertas e ajuda a evitar o infarto - cada um custa cerca de US$ 2 mil. Já existem stents recobertos com antibióticos, liberados durante uma ou duas semanas, mas não doadores de oxido nítrico de longa duração, como os químicos da USP desejam. "Queremos que esses compostos durem tanto quanto o próprio aço dos stents", diz Tfouni. "É muito difícil, mas chegando perto já está bom." Ele sabe que um bom aço inoxidável dura pelo menos 20 anos. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 49


CIÊNCIA

GEOLOGIA

Guardiãs do

tempo Cavernas revelam como era o clima no hemisfério Sul há 100 mil anos

CARLOS FIORAVANTI

Ivo Karmann entrou no curso de geologia da Universidade de São Paulo (USP), em 1977, para estudar em profundidade as cavernas que adorava explorar desde os tempos de garoto. Mas naquela época as cavernas ainda eram vistas apenas como uma alternativa para o turismo de aventura - e no Brasil pouco interessavam do ponto de vista geológico. Karmann insistiu, conquistou a atenção de uns raros professores que se dispuseram a orientar suas pesquisas, tornou-se ele também professor da USP, formou uma equipe e, quase 30 anos depois, provou que as cavernas abrigam uma formidável matéria-prima para a geologia, capaz de registrar as mudanças no clima e na vegetação ao longo de milhares de anos. Após associar uma série de dados colhidos dentro e fora de uma caverna de Santa Catarina e outra de São Paulo, Karmann e seu grupo de alunos, quase todos caverneiros, como também são chamados, concluíram que ao longo dos últimos 116 mil anos houve uma intensa variação no regime de chuvas das regiões Sul e Sudeste do Brasil: os aguaceiros do passado ou, na situação inversa, a maior escassez de chuva se devem principalmente à maior ou menor intensidade da radiação solar - a insolação -, que varia de acordo com a inclinação do eixo de rotação da Terra, em ciclos de cerca de 23 mil anos. Dependendo da inclinação do eixo da Terra pode haver mais sombra no hemisfério Norte e maior cobertura solar no hemisfério Sul - ou o contrário. Essas descobertas sobre o comportamento do clima no passado ajudam a refinar os modelos de simulação climática, que vão fornecer previsões mais confiáveis à medida que refletirem o passado com mais precisão. "A insolação de verão está aumentando nos últimos 4 mil anos na região Sul, fazendo com que os verões no litoral de Santa Catarina se tornem gradativamente mais chuvosos", diz Francisco William da Cruz Jr., ex-aluno de mestrado e de doutorado de Karmann e primeiro autor de um estudo publicado em março na Nature com esses achados. "É uma tendência natural que deve se manter nos próximos mil anos, sem considerar as intervenções humanas sobre o clima." A maior insolação, como esse grupo da USP verificou, intensifica a circulação dos ventos úmidos que chegam do Atlântico, a leste, e alimentam a Floresta Amazônica. Chamados de alísios, esses ventos circulam na baixa atmosfera, próximos à superfície, se desviam para o sul ao entrarem na Amazônia e trazem a umidade para as regiões Sudeste e Sul do Brasil. Chegam também ao norte da Argentina e do


Paraguai, favorecendo a formação de nuvens e de chuva. Em tempos de menor insolação, os alísios se aquietam e a umidade que origina a chuva nas regiões Sul e Sudeste provém principalmente do Atlântico Sul. Floresta e sertão - O deslocamento da umidade das proximidades do equador fez chover mais também no semi-árido nordestino. "No Nordeste as mudanças climáticas e ambientais foram radicais", diz Augusto Auler, geólogo do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coautor de um artigo sobre o antigo clima do Nordeste, publicado em dezembro na revista Nature, e primeiro autor de outro, divulgado também no final do ano na Journal of Quaternary Science. Esses trabalhos mostram que a chamada Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), uma região da atmosfera carregada de umidade que se desloca no sentido norte-sul sobre o oceano, próximo ao equador, já esteve mais para o sul - mais próxima do Nordeste brasileiro - e trouxe a água que nutriu uma floresta tropical. Depois, quando a ZCIT se continha a norte, sem se aproximar tanto do continente, voltava a imperar uma paisagem semelhante à atual. Estudos de outros grupos já haviam levantado os resquícios de antigas matas úmidas no Nordeste, mas faltava mostrar exatamente em que épocas do passado o sertão havia virado floresta. A última vez que houve por ali uma mata alta, verde e viçosa, tão vasta a ponto de provavelmente unir a Amazônia à Mata Atlântica, foi há cerca de 15 mil anos. Mas antes no interior do Nordeste já haviam reinado a seca e a vegetação esparsa, semelhante à atual. A floresta, alimentada pelos ventos úmidos, vicejou por breves períodos de poucos milhares de anos - há cerca de 39 mil, 48 mil e 60 mil anos, para citar apenas os intervalos mais próximos - que correspondem às fases de chuvas mais intensas e constantes. O período mais longo em que uma floresta semidecídua - que perde as folhas por alguns meses do ano - povoou a terra hoje seca do Nordeste durou quase 5 mil anos, de 68 mil a 63 mil atrás, de acordo com os estudos realizados por Auler em conjunto com pesquisadores das universidades de Minnesota, nos Estados Unidos, de Bristol, na Inglaterra, e de Taiwan, na China. No Brasil, contou com a colaboração da bióloga Patrícia Cristalli, da Universidade de Mogi das Cruzes e da USP. Essa equipe percorreu o interior e os arredores de duas cavernas do interior da Bahia, a Toca da Barriguda e a Toca da Boa Vista, a maior do hemisfério Sul, com 108 quilômetros de extensão. Auler e sua equipe colheram e analisaram as estalagmites das cavernas, como o grupo da USP, mas foram além e estudaram também fósseis de folhas encontrados em depósitos de calcita - mineral composto de carbonato de cálcio - acumulados a céu aberto. Foi possível assim reconstituir, além das formações

Gota a gota HA 5 ANOS

2.500

100 MIL Esta estalagmite crescia à medida que recebia água do teto da caverna de Botuverá (medidas aproximadas em corte da base ao topo)

116 MIL PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 51


vegetais de até 210 mil anos atrás, os animais que viviam por ali. Não faltavam exemplares de grande porte, como preguiças e tatus gigantes. Havia também um macaco, o Caipora bambuiorum, com cerca de 40 quilogramas e o dobro do tamanho do maior macaco brasileiro, o muriqui. A equipe da UFMG que o descreveu em um artigo publicado em 1996 no Proceedings of the National Academy of Science sabia que se tratava de um animal arbóreo, mas não tinha idéia de quando poderia ter vivido. Agora se pode afirmar que o Caipora bambuiorum viveu provavelmente há 15 mil anos, em meio à floresta que mais tarde cederia espaço ao corredor seco de quase 3 mil quilômetros de extensão que separa a Floresta Amazônica da Mata Atlântica.

m conjunto, os dois grupos de pesquisa conferem uma dimensão continental ao estudo de paleoclimas no Brasil, mostrando que as chuvas intensas que caíram - e ainda caem - nas regiões Sul e Sudeste podem originar-se da umidade da bacia amazônica, transportada por milhares de quilômetros. Também sugerem que a redução da umidade na Floresta Amazônica, atualmente causada pelo desmatamento, pode alterar o regime de chuvas na região Sul. Foi o que aconteceu este ano, lembra Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, que participou do trabalho conduzido por Karmann e Cruz, com pesquisadores da Universidade de Massachusetts e do Centro de Geocronologia de Berkeley, ambos dos Estados Unidos, e do Instituto Geológico, de São Paulo. Neste verão, os ventos úmidos da Amazônia não se deslocaram tanto para o sul do equador. Chegaram apenas até Minas Gerais e Bahia, causando chuvas intensas. O Rio Grande do Sul, sem a umidade que normalmente vem da Amazônia, padeceu com a seca. Evidenciou-se também a versatilidade de um dos métodos empregados para chegar a essas conclusões: a análise da proporção entre os isótopos 18 0 e lóO, que correspondem às formas mais pesada e mais leve do oxigênio, nos minerais que compõem as estalagmites - as colunas de calcita que crescem a partir do piso em direção ao teto das cavernas. A razão é que a proporção entre as duas formas de oxigênio nas estalagmites depende principalmente da composição da água de chuva e pode refletir as mudanças atmosféricas de até 500 mil anos atrás, como os pesquisadores da USP atestaram em um artigo 52 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

recém-aceito na Chemical Geology. A bióloga MariePierre Ledru, especialista em pólens da Universidade de Montpellier II, da França, usou as informações obtidas pela equipe da USP na caverna de Santana para completar as que ela própria conseguiu analisando pólens, cujo método de datação pode chegar a no máximo 40 mil anos. Seu objetivo era datar e recompor a antiga vegetação de Colônia, uma depressão circular de quase 4 quilômetros de diâmetro no extremo sul da cidade de São Paulo, resultante possivelmente do impacto de um meteorito ou de um fragmento de cometa. Os resultados do estudo de Marie-Pierre em conjunto com a equipe da USP, publicados neste mês na revista Quaternary Research, indicam que os períodos de expansão de florestas nessa área que lembra a cratera de um vulcão coincidem aproximadamente com as variações na circulação atmosférica dos últimos 110 mil anos. Quando a teoria não é suficiente - Mas houve muitas pedras no caminho dessas descobertas que conseguiram relacionar a proporção entre os isótopos de oxigênio nas estalagmites ao longo de milhares de anos com as mudanças na circulação atmosférica global. Karmann, Cruz e Oduvaldo Viana Jr., estudante de mestrado de Karmann, começaram em 1999 a visitar uma vez por mês as cavernas de Santana, no Vale do Ribeira, sudeste do Estado de São Paulo, e de Botuverá, a leste de Santa Catarina. Não iam apenas como apreciadores de cavernas, mas como pesquisadores, equipados para colher a água que goteja do teto e com o passar do tempo forma as estalagmites. Trouxeram também amostras das próprias estalagmites para análise em laboratório. Após dois anos de trabalho, a equipe formada também pelo geógrafo José Ferrari, do Instituto Geológico de São Paulo, já havia descoberto a idade de duas estalagmites. Uma delas tinha 1,6 metro de comprimento e havia sido retirada de um ponto a 300 metros abaixo da superfície e a 1.500 metros da entrada da caverna de Santana, ao qual se chega percorrendo um rio subterrâneo. A outra, de 70 centímetros, fora coletada a 110 metros de profundidade e a 300 metros da boca da caverna de Botuverá. Cruz e Warren Sharp, do Centro de Geocronologia de Berkeley (BGC), Estados Unidos, fizeram a datação das estalagmites e concluíram que ambas tinham entre 111 e 116 mil anos. Era um ótimo começo, já que se tratava provavelmente dos registros mais antigos obtidos do final do último período de glaciação na América do Sul, quando as massas de gelo nos pólos Norte e Sul se expandiram e a linha da costa recuou, como se a maré baixasse bastante em torno de 100 metros em média. Feita a datação das estalagmites, o grupo da USP começou a preparar um gráfico sobre a variação, ao longo do tempo, da proporção entre as duas formas de oxigênio acumuladas ao longo do eixo de crescimento das estalagmites. Nas regiões tropicais do


Os animais que saem das cavernas

s

É possível descobrir as épocas em que choveu mais ou menos intensamente examinando a espessura e a transparência das camadas de calcita de estalagmites como esta, de Botuverá. A análise da composição dos minerais, a datação das estalagmites e o estudo de fósseis vegetais e animais permitem reconstituir o clima, a flora e a fauna de uma região no passado. Preguiças-gigantes como esta ao lado viveram em meio às florestas que há milhares de anos cobriram o atual sertão do Nordeste.

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 53


planeta a variação entre elas costuma indicar as épocas em que choveu mais ou menos, porque a forma mais pesada, lsO, se perde com as primeiras chuvas, deixando a água cada vez com mais '"O. A curva da proporção entre as duas formas de oxigênio acompanhava a variação da insolação, mas a única teoria então à mão - segundo a qual a proporção entre "O e "O deveria responder diretamente ao volume de chuva - não explicava os resultados.

ií ^\ ■

caiu no caminho. Na situação inversa, quando a insolação é menor no hemisfério Sul (e maior no hemisfério Norte), diminuem o calor e os ventos alísios - e quase não chega umidade da Amazônia. "Quando chove menos no verão", comenta Andréa Cardoso, da equipe do IAG, "a ZCAS se enfraquece ou permanece mais ao norte". A umidade que chega à região Sul e Sudeste provém então de uma fonte mais próxima, o Atlântico Sul. Trazida pelos ventos que sopram do oceano para o continente e pelas massas de ar polares, essa umidade resulta em um clima mais seco que o observado nos invernos atuais na região Sul. É quando predomina o oxigênio mais pesado, l80, que não teve tempo de precipitar, já que a distância até o continente é relativamente curta.

icamos no escuro", conta Karmann, lembrando-se Ilhas de verde - Esse vaivém do ar úmido da atmosdas vezes em que esteve fera para o sul do equador explica também como nas cavernas e de repente cresceram as florestas úmidas no território hoje __^A__ acabava a carga de carbuocupado pela Caatinga, de acordo com os estudos reto que gerava a luz para coordenados por Auler. No semi-árido nordestino a iluminar o caminho. Cogitaram que poderia haver intensificação da umidade promove a expansão das mais de uma origem da água da chuva - o problema matas que habitam os terrenos mais altos e das floé que não tinham como provar. Mas estavam certos. restas do Cerrado, um ambiente acostumado a va"O maior mérito desse trabalho é justamente mosriações climáticas intensas. Quando a umidade se trar que a umidade do Sul e Sudeste pode ter origens vai, o solo seca e a floresta se retrai. Atualmente bastante diferentes", comenta Pedro Dias, professor do ainda existem algumas ilhas de vegetação verde e IAG da USP a quem os geólogos pediram ajuda após densa - os chamados brejos - em meio à tórrida sofrerem um ano em silêncio. E era relativamente Caatinga. Crescem ao pé de serras, como nas chasimples. De acordo com Dias e sua equipe do IAG, padas de Borborema, Araripe e Ibiapaba, em altias intensas chuvas do passado - e as de hoje também tudes que variam de 500 a mil metros, favorecidas - nas regiões Sul e Sudeste resultam da umidade que pelo clima atual. chega da Amazônia ou do Atlântico Sul. Atiçados "Esses trabalhos me abriram os olhos para o vapela insolação, os ventos alísios provenientes da lor das informações retiradas das cavernas", reconhece Amazônia ajudam a adensar Pedro Dias, um matemático de com mais umidade a região da formação que enveredou pelo OS PROJETOS atmosfera conhecida como Zoestudo do clima há três décadas na de Convergência do Atlânti- esteve poucas vezes em caRegistros paleoambientais do co Sul (ZCAS ou SACZ na sigla vernas e, diz ele, não gostou Quaternário em sistemas cársticos em inglês). Alimentada também muito. Certamente ainda saipela umidade que recebe do rão mais coisas. Meses atrás, enMODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa próprio oceano ao sul do quanto Franscisco Cruz examiequador, a ZCAS é um vasto nava estalagmites de outras COORDENADOR conjunto de nuvens, às vezes cavernas do Brasil na UniversiIvo KARMANN - IG/USP com até 5 mil quilômetros de dade de Massachusetts, em Amextensão, orientado no sentido herst, cidade próxima a Nova INVESTIMENTO R$ 103.316,08 (FAPESP) noroeste-sudeste, que cruza o York, Ivo Karmann suava a calitoral brasileiro entre 18 e 25 misa no laboratório trabalhan0 Quaternário tardio em áreas graus de latitude sul. do com uma estalagmite de um continentais Quando a insolação é maior, metro e meio de comprimenhá mais calor e umidade dos to. "Acho que esta vai chegar MODALIDADE Bolsa de Pós-doutorado trópicos. A ZCAS se intensifica nos 150 mil anos", comentou, e se desloca mais em direção preparando-se para serrar, abrir COORDENADOR ao sul, fazendo chover mais e furar mais uma fatia da coluAUGUSTO AULER - IGC/UFMG nessa região. É quando predona de rocha extraída da cavermina a forma mais leve de oxina de Santana, que ainda não INVESTIMENTO R$45.000,00 (CNPq) gênio, o 160 - a mais pesada fifoi estudada tanto quanto a de cou para trás com a chuva que Santa Catarina. • 54 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111


CIÊNCIA FÍSICA

Golpe de vista Equações simples explicam a localização de objetos que parecem surgir do nada FRANCISCO BICUDO

A bandeirinha Ana Paula da Silva Oliveira em um Corinthians x São Paulo: flash-lag sempre em campo ítimas preferenciais dos xingamentos de torcedores de futebol, principalmente ao marcarem os impedimentos, quando o atacante fica cara a cara com o goleiro, os bandeirinhas ficariam agradecidos caso uma ilusão visual chamada flash-lag fosse mais conhecida. Esse fenômeno, que poderia ser traduzido como aquilo que é visto com atraso, manifesta-se em situações na qual um objeto em movimento é surpreendido em sua trajetória por um segundo elemento, que surge muito próximo e de modo repentino. A cena que se forma dá a impressão de existir uma distância, ainda que pequena, entre os dois. O que aparece de surpresa parece estar atrás do primeiro, mas na realidade os dois estão emparelhados, lado a lado. Esse poderia ser um argumento a ser usado pelos bandeirinhas para justificar alguns de seus erros. Em campo, lutando para acompanhar os lances em geral muito rápidos, o auxiliar do juiz identifica a presença do último zagueiro adversário só depois de olhar fixamente para o deslocamento do atacante e de se preocupar com o momento do passe final. Fica com a impressão de que o atacante estaria avançado, à frente do defensor, e levanta a bandeira, marcando o impedimento. Mas a jogada deveria

ter prosseguido, porque os dois jogadores estavam na mesma linha - não havia irregularidade no lance. "O bandeirinha pode ser facilmente traído pela ilusão visual", assegura o neurofísiologista Marcus Vinícius Chrysóstomo Baldo, formado em física e em medicina, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP). Baldo e Nestor Felipe Caticha Alfonso, do Instituto de Física da USP, partin-

do do que já se sabia sobre o funcionamento dos neurônios, criaram um modelo matemático que ajuda a explicar esse atraso na percepção de objetos. Os dois físicos aplicam às situações em que o flash-lag aparece uma abordagem matemática clássica, já usada para estudar a memória e o aprendizado, conhecida como redes neurais artificiais. De acordo com esse enfoque, as regiões do sistema nervoso responsáveis pela visão são divididas em camadas formadas por filas de neurônios que se comunicam simultaneamente com outros neurônios da camada seguinte, mas não apenas de uma maneira direta: cada célula nervosa pode interagir com as outras também de modo divergente e convergente, usando, portanto, rotas diagonais. Essa é a razão pela qual as informações levam mais tempo para fluir pela rede e, em conseqüência, demora a se formar a imagem do objeto que aparece de repente - eis o flash-lag. "Até agora, a maioria das explicações eram conceituais; não existiam modelos matemáticos com esse realismo biológico", diz Caticha. "Temos agora um instrumento mais preciso e realista, que pode ser testado experimentalmente." O modelo que criaram incorpora explicações físicas e fisiológicas, colocando em linguagem numérica as conexões entre os neurônios, os estímulos elétricos que permitem essa comunicaPESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 55


ção e a própria estrutura de circuitos neuronais. Não há fórmulas enigmáticas, mas essencialmente apenas somas e multiplicações: o detalhe é que são dezenas ou mesmo centenas de equações resolvidas ao mesmo tempo por um programa de computador. Cada equação expressa duas variáveis matemáticas: a atividade elétrica de cada neurônio e a soma das influências que cada um deles recebe dos outros com quem se relaciona. O conhecimento consolidado sobre o funcionamento da visão foi o ponto de partida. Enxergamos porque a luz, ao penetrar nos olhos, estimula células fotossensíveis, localizadas na retina, que recobre a parede posterior interna do globo ocular e é composta por um complexo conjunto de camadas neuronais. É na retina que luzes e sombras transformam-se em impulsos nervosos, seguindo agora para um segundo conjunto de circuitos neurais, o tálamo, uma espécie de filtro do sistema nervoso que direciona a informação para uma terceira estação de processamento, o córtex cerebral. E é ali que se dá o fascinante processo de construção da percepção visual, que nos permite reconhecer um jogador em movimento próximo ao gol, uma silenciosa e colorida serpente na floresta ou um rosto familiar em meio à multidão. O modelo dos físicos incorpora justamente essa arquitetura em camadas que caracteriza o sistema nervoso, embora, em seu estágio atual, não haja um compromisso em se identificarem as camadas do modelo como sendo as complexas camadas de células corticais ou mesmo as camadas neuronais já presentes na retina. Como em um teatro - Baldo compara cada camada a uma platéia de um teatro onde os lugares são numerados de acordo com as fileiras, representadas por letras, e as colunas, identificadas por números. Dessa forma, um neurônio localizado na primeira camada, lugar A5, interage com parceiros que ocupam, por exemplo, os assentos B4, B5 e B6 na segunda camada, que podem, por sua vez, dialogar com os companheiros C3 a C7, na terceira camada. Além disso, os impulsos elétricos troca56 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

dos entre eles - por meio de sinapses, também simuladas pelo computador podem ser de ativação, quando o neurônio recebe uma ordem para fazer algo, ou de inibição, que corresponde a uma ordem para não fazer nada - como se fossem sinais positivos e negativos.

e um neurônio recebe sinais provenientes de cinco outros neurônios, por exemplo, três desses sinais poderiam ser de ativação e dois de inibição. Se o resultado dos sinais for maior que um valor previamente estabelecido pelo programa, o neurônio receptor dispara um novo impulso, que será transmitido à camada seguinte. Se a soma for inferior a esse valor, conhecido como limiar, uma propriedade fisiológica real, o neurônio permanecerá inativo, sem passar a informação adiante. É essa comunicação baseada em convergências e divergências, somada ao tempo que leva para se completar, que explica o fenômeno conhecido como flash-lag. Baldo e Caticha acreditam que o modelo aplicado ao flash-lag poderá auxiliar na compreensão de outras ilusões visuais, como o efeito Frõhlich, quando um objeto em movimento aparece por detrás de outro, estático, e impede a formação dos detalhes do início da trajetória. Imagine uma onça surgindo detrás de uma árvore: muito provavelmente não será possível identificar sua boca e 0 PROJETO Dinâmica temporal da percepção visual e sua modulação sensorial, atencional e comportamental MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa COORDENADOR MARCUS VINíCIUS CHRYSóSTOMO BALDO INVESTIMENTO

R$ 76.597,50 (FAPESP)

focinho, que despontam primeiro detrás da árvore, e a imagem da onça será construída a partir da metade direita ou esquerda do rosto dela. A melhor compreensão sobre as diferentes ilusões visuais representa também a possibilidade de conhecer com mais detalhes o funcionamento geral da própria visão. Baldo não descarta a hipótese de qualquer imagem formada, mesmo as chamadas normais, que em tese não sofreriam interferências, poder ser considerada uma ilusão, pois jamais será a exata representação da realidade. "Creio que todos nós enxergamos a mesma pessoa ou o mesmo cenário com diferenças de detalhes, nem sempre sutis", diz ele. "A visão é sempre uma leitura interpretativa do mundo e não há precisão absoluta." Imagens com atraso -O flash-lag começou a chamar a atenção em 1958, com um artigo do físico Donald MacKay, da Universidade de Keele, Inglaterra, publicado na Nature. Nesse trabalho, MacKay descrevia um fenômeno que permaneceria muitos anos sem explicação: quando ele chacoalhava uma lâmpada e a iluminava com uma outra fonte de luz estroboscópica - que acende e apaga em intervalos regulares, em flashes seguidos -, tinha a impressão de ver o filamento à frente, como se estivesse fora da lâmpada. Só em 1994 o psicólogo indiano Romi Nijhawan, atualmente na Universidade de Sussex, também na Inglaterra, ofereceu a primeira explicação sobre o fenômeno, ao afirmar que todos os objetos são vistos com atraso. Assim, um carro que vem pela avenida pode já estar um metro adiante quando o cérebro consegue processar a imagem. Segundo Nijhawan, a evolução do cérebro humano teria desenvolvido um mecanismo de eliminar automaticamente a defasagem de espaço e o atraso na percepção da imagem, mas somente quando a trajetória já é conhecida. Se houver uma surpresa o cérebro não será capaz de fazer esses ajustes - e o flash-lag se manifestará. Por isso é que o risco de atropelamento é maior quando somos surpreendidos por um automóvel que parece ter surgido repentinamente na esquina. Em 1995, Baldo e o físico norteamericano Stanley Klein, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, publicaram também na Nature outro


Risco de atropelamento: o cérebro demora a formar a imagem do carro que pode já estar muito próximo

estudo sobre oflash-lag, mostrando que esse tipo de ilusão visual poderia decorrer de desvios da atenção. A idéia era simples: como a atenção é dedicada ao objeto em movimento, leva-se um tempo maior para perceber e determinar a posição de qualquer novo elemento que apareça no cenário como um flash e chame a atenção para si. Neurônios em ponto morto - Argumentos bastante semelhantes foram utilizados três anos mais tarde, em 1998, por dois grupos independentes de pesquisadores: um chefiado pelo professor de optometria norte-americano Harold Bedell, hoje na Universidade de Houston, Estados Unidos; o outro coordenado por dois psicólogos, David Whitney, atualmente na Universidade de Western Ontário, no Canadá, e Ikuya Murakami, do NTT Communication Science Laboratories, no Japão. As duas equipes trabalhavam com a perspectiva

de tempos diferentes de percepção dos objetos - ou latências. Afirmavam que o cérebro, já acostumado com a cena previamente identificada, precisava passar por uma espécie de aquecimento para retomar sua atividade neural e registrar um novo objeto. É como se os neurônios já estivessem em posição de descanso, em ponto morto, e, graças ao estímulo repentino, se vissem obrigados a passar novamente pela primeira, segunda e terceira marchas até recuperar a velocidade normal. O modelo dos dois físicos unifica essas teorias, mostrando que as propostas antes discrepantes ou mesmo contraditórias são, na verdade, facetas de um mesmo fenômeno olhado por diferentes ângulos. Agora, um aviso. Antes de apresentarem o modelo matemático que criaram e será publicado em breve na revista Vision Research, Baldo e Caticha costumam convidar para um teste quem os visita pela primeira vez. Pedem que o vi-

sitante se sente diante de um computador ligado e apagam a luz da sala, cheia de arquivos e de papéis espalhados sobre a mesa. Basta um clique no mouse e uma pequena barra aparece na tela, movendo-se sempre na horizontal, em linha reta. Quando atinge um ponto fixo, predeterminado e assinalado, um flash luminoso - uma segunda barra pisca na tela. A tarefa é dizer aonde esse segundo ponto havia aparecido. Na maior parte das vezes, a resposta deste repórter foi: "Antes da outra". Os pesquisadores sorriem satisfeitos, diante de mais uma vítima do efeito flashlag. na verdade, as duas barras estavam sempre alinhadas. As explicações que os dois físicos oferecem em seguida esclarecem por que muitas vezes somos traídos pela visão e permitem encarar com mais solidariedade as dificuldades enfrentadas pelos bandeirinhas num campo de futebol, sob o olhar de milhares de torcedores. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 -57


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Iniciada com a publicação eletrônica de dez títulos, atualmente a coleção SciELO Brasil é constituída por 134 títulos de periódicos científicos e recebeu mais de 1,6 milhão de acessos em março de 2005. Os periódicos indexados encontram-se distribuídos da seguinte maneira: 16% são da área de ciências agrárias, 8% de biológicas, 29% de ciências da saúde, 9% de ciências exatas e da terra, 23% de humanas, 7% de ciências sociais aplicadas e 8% de engenharia.

■ Educação

■ Política

Depressão escolar

Autonomia autoritária

Avaliar a relação entre sintomas de depressão, rendimento escolar e estratégias de aprendizagem entre alunos do ensino fundamental é o objetivo do artigo "Sintomas depressivos, estratégias de aprendizagem e rendimento escolar de alunos do ensino fundamental", de Miriam Cruvinel e Evely Boruchovitch, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As autoras decidiram aprofundar o tema em razão do grande aumento da incidência de sintomas depressivos e dos aspectos negativos do problema na aprendizagem. "Durante muito tempo, pensou-se que a depressão em crianças não existia ou seria muito rara", dizem as pesquisadoras. "A partir da década de 1960, estudos foram realizados e atualmente não há dúvida quanto à ocorrência de depressão na infância." Participaram da pesquisa 169 alunos de 3a, 4a e 5a séries de uma escola pública de Campinas. Os estudantes eram não-repetentes, com idade variando de 8 a 15 anos. As informações adquiridas foram analisadas quantitativamente, utilizando-se os procedimentos da estatística descritiva e inferencial. Fatores motivacionais e emocionais como auto-estima, ansiedade e sintomas depressivos podem interferir na aprendizagem. O levantamento detectou uma correlação negativa entre a presença de sintomas de depressão e o uso de estratégias de aprendizagem. "Quanto maior o número de sintomas de depressão, menor o relato de uso de estratégias de aprendizagem pelos alunos." PSICOLOGIA EM ESTUDO - VOL.

9 - N° 3 - MARIN-

GÁ - SET./DEZ. 2004 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si4i373722004000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

58 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

O estudo "Superior Tribunal Militar (STM): entre o autoritarismo e a democracia" procurou mostrar como, decorridos quase 20 anos do fim do regime autoritário, os militares conseguem exercer autonomia política no aparelho de Estado. "A manutenção de graus de autonomia política pelos militares, variando de intensidade de acordo com cada país, é o preço pago pelos democratas para assegurar a concordância castrense em devolver o governo aos civis", afirmam os autores do estudo Jorge Zaverucha e Hugo Cavalcanti Melo Filho, pesquisadores do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Porém essa autonomia deve ser temporária caso se almeje avançar rumo a uma democracia plena. O artigo defende que, quanto mais autoritário ou menos democrático for o país, maior a abrangência da jurisdição militar. "A Justiça Militar, nesses casos, é usada como instrumento autoritário de controle social da população civil." O STM costuma extrapolar os limites de ação de um órgão do Judiciário, restritos à resolução de conflitos, para ser um instrumento de controle da vida social. "Em matéria criminal o STM constitui-se em braço jurídico dos interesses institucionais das Forças Armadas." No artigo também se defende a idéia de que o Brasil se situa em uma zona política cinzenta em que não se avança no sentido de uma democracia sólida nem se faz um retorno à ditadura. "O STM é um típico exemplo desse hibridismo institucional por possuir tanto características democráticas como autoritárias", ressaltam. DADOS - VOL.

47 - N° 4 - Rio DE JANEIRO - 2004

www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=Soon525820040oo40ooo5&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Toxicologia

Orla contaminada O artigo "Contaminação de canteiros da orla marítima do Município de Praia Grande (SP) por ovos de Ancylostoma e Toxocara em fezes de


cães" avaliou o nível de infecção de algumas regiões do litoral paulista. O estudo, assinado por João Manoel de Castro, da Universidade Paulista, Sérgio Vieira dos Santos e Nabor Alves Monteiro, ambos da Universidade Guarulhos, procura enfocar um importante problema de saúde pública. A larva migrans visceral e a larva migram cutânea, causadas por Toxocara e Ancylostoma, podem transmitir zoonoses. "Os turistas costumam viajar com seus cães e levá-los para passear no calçadão da orla marítima, onde os animais utilizam os canteiros para defecar e urinar, sem que os proprietários recolham as fezes", relatam os autores. "Adultos e crianças costumam utilizar os canteiros do calçadão para limpar os pés de areia ou mesmo sentar ou deitar para descansar", alerta. O estudo analisou 257 amostras de fezes de cães provenientes do calçadão da orla marítima de Praia Grande, no litoral paulista. Do total das amostras analisadas, independentemente do local de coleta e da estação do ano, 45,9% estavam contaminadas por ovos de Ancylostoma e 1,2% com ovos de Toxocara. "Nos últimos anos, contamos no Brasil com alguns levantamentos isolados sobre o grau de contaminação com ovos de Ancylostoma e Toxocara em áreas públicas. Todos demonstram potencial de transmissão de doenças à população", afirmam os pesquisadores. A alta freqüência de ocorrência de amostras de fezes positivas para Ancylostoma vai ao encontro de outros estudos sobre a prevalência de parasitas em fezes de cães em diversas regiões do país. REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA TROPICAL

- VOL. 38 - N° 2 - UBERABA - MAR./ABR. 2005 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soo378682200500020ooi7&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Alimentos

Processamento em excesso Quatro marcas de goiaba em calda foram submetidas a análises físico-químicas, de cor e textura instrumentais, além de teste sensorial de preferência. Todas essas análises tinham como objetivo avaliar diferenças de qualidade entre os produtos. Os resultados dos testes estão no artigo "Avaliação das propriedades físicas, químicas e sensorial de preferência de goiabas em calda industrializadas", escrito por A. C. K. Sato, E. J. SanjinezArgandona e R. L. Cunha, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Análises semelhantes foram realizadas em uma goiaba in natura madura, a fim de avaliar os possíveis efeitos do processamento na qualidade do produto. "De maneira geral, observaram-se grandes diferenças entre os produtos, e muitas vezes entre os frutos de um mesmo fabricante", dizem os autores. As análises químicas mostraram que o teor de açúcares da maior parte dos produtos está entre 22% e 30%, com exceção de uma amostra que revelou um valor ao redor de 40%. De acordo com a análise sensorial, a amostra com maior teor de açúcares foi a mais preferida em relação à doçura. A luminosidade das goiabas

em calda também é maior que da fruta in natura. Em alguns casos foi visível o efeito de processamentos mais drásticos que levaram à perda da estrutura celular. "As propriedades mecânicas que estão associadas com a textura da fruta mostraram um comportamento diferente. Em geral, as frutas processadas eram mais duras, elásticas e firmes que a fruta in natura, o que pode estar associado a alterações na estrutura celular da goiaba." CIêNCIA E TECNOLOGIA DE ALIMENTOS

- VOL. 24 - N° 4

- CAMPINAS - OUT./DEZ. - 2004

www.scielo.br/scie Io. php?scri pt=sci_arttext&pid=Soioi2o6i20040004000i2&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Bioquímica

Transfusões seguras O trabalho "Caracterização, produção e indicação clínica dos principais hemocomponentes" se concentrou em fazer uma revisão dos procedimentos de coleta, produção, armazenamento e indicação clínica dos principais fatores que envolvem uma transfusão de sangue. A farmacêutica bioquímica Fernanda Razouk, do Laboratório Oscar Pereira, em Ponta Grossa (PR), e Edna Reiche, professora de imunologia clínica da Universidade Estadual de Londrina, acreditam que a prática da transfusão de sangue é uma ciência que cresce rapidamente, modifica-se continuamente e apresenta uma grande perspectiva de desenvolvimento futuro. "Recentes avanços na segurança e qualidade do sangue e o aumento dos custos associados com a terapia transfusional têm levado a uma reavaliação da prática desta área da medicina", dizem. Os pesquisadores defendem o aperfeiçoamento das técnicas nos serviços de hemoterapia, "pois o fracionamento do sangue coletado se faz necessário, uma vez que cada unidade doada pode beneficiar diversos pacientes e permitir que sejam transfundidas grandes quantidades de um determinado componente que o paciente necessite". De acordo com as pesquisadoras, há perspectivas de mudanças na terapia transfusional nos próximos anos. "O maior foco será no aperfeiçoamento da segurança, havendo aumento de produtos manufaturados, desenvolvimento de produtos acelulares, atenuação microbiana e proteínas recombinantes do plasma, que poderão substituir produtos derivados plasmáticos em poucas décadas." REVISTA BRASILEIRA DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA VOL.

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26 - N° 2 - SãO JOSé DO RIO PRETO - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si5i6848420040002000ii&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 59


I TECNOLOGIA

Sensor mais eficiente

■ Motor trabalha com gotas de metal Um pequeníssimo motor elétrico que leva o nome de oscilador nanoeletromecânico foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade da Califórnia e do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, sob a coordenação de Alex Zettl. Ele pode funcionar com até 20 microwatts de potência. O aparelho baseia-se no movimento de gotas de metal líquido (índio e rádio), uma grande e outra pequena, que ficam sobre um nanotubo de carbono. Uma corrente elétrica transmitida através do nanotubo permite a movimentação da gota grande pa-

Um novo método de produção de películas de polímeros condutores de energia desenvolvido por pesquisadores do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na sigla em inglês) dos Estados Unidos vai servir para a produção de sensores de gases mais precisos e baratos. Na forma de uma

ra a pequena. Eventualmente, a gota pequena cresce tanto que ela pode tocar a grande. A energia gerada é estocada na gota pequena em forma de tensão superficial. Em artigo

esponja, esse polímero captura de forma mais eficiente as moléculas de gases. Chamado de polianilina, ele é uma promessa para aplicações em microeletrônica devido à sua capacidade de ser um bom condutor, além de flexível e fácil de ser sintetizado. Os testes com o novo sensor já demonstraram

publicado na revista Applied Physics Letters, em 18 de março, os autores informam que a aplicação do novo oscilador é a locomoção de objetos em microescala, chamados de sis-

sua capacidade de detectar diferenças entre metanol e vapor d'água. Outros experimentos serão necessários antes de o polímero ser usado para detectar gases tóxicos. Um dos testes é feito com microaquecedores que possuem resistência elétrica e são também usados para detectar gases.

tema microeletromecânico (Mems), usados na indústria eletroeletrônica, com a combinação de boa velocidade, simplicidade e operando em baixa voltagem. •

■ Nanotubos extraem hidrogênio da água

Representação do movimento das gotas que geram energia para mover objetos em microescala 60 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

Utilizar a luz do sol para quebrar moléculas de água com o objetivo de produzir hidrogênio, usando equipamentos em âmbito nanométrico, é a meta de um grupo de pesqui-


sadores dos Laboratórios Sandia, dos Estados Unidos. A chave para construir nanodispositivos que quebram moléculas de água está na descoberta de Zhongchun Wang, um dos membros da equipe de pesquisa. Ele desenvolveu nanotubos compostos inteiramente de porfirina, moléculas relacionadas à clorofila, a parte ativa das proteínas fotossintéticas. Ativados pela luz, esses nanotubos podem ser moldados para terem minúsculos depósitos de platina e de outros metais, tanto do lado de fora como dentro do tubo. Com essas características, esses na-

Nanotubo de porfirina: cobertura de platina

notubos se transformam no coração do dispositivo, que pode quebrar a água em oxigênio e hidrogênio. •

■ Plástico inteligente muda forma com a luz Imagine uma flor que se abre quando recebe a luz do sol. Em um trabalho que imita essa sensibilidade, engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos

Estados Unidos, e pesquisadores do Instituto de Tecnologia e Desenvolvimento de Equipamentos Médicos, da Alemanha, criaram o primeiro plástico que pode ser deformado e fixado temporariamente em uma forma por meio de um foco luminoso. Esses materiais programáveis trocam de forma quando atingidos por certa luz, em determinado comprimento de onda, e voltam à forma original quando atingidos pela luz em outro comprimento de onda. A descoberta, relatada pela Nature, na edição de 14 de abril, poderá ter potencial de aplicação em vários campos, incluindo cirurgias minimamente invasivas. Nesse caso, por exemplo, um médico poderá colocar um fio de plástico dentro do corpo através de uma pequena incisão. Quando ativado por meio de uma sonda de fibra óptica, este fino fio poderá se transformar em um dispositivo com formato de saca-rolha para manter as veias abertas. Plásticos com "memória de forma" - aqueles que mudam a forma em resposta a um aumento na temperatura - são bem conhecidos. Em 2001, Robert Langer, professor do MIT, e Andreas Lendlein, ex-pesquisador visitante do MIT, apresentaram uma primeira versão desse material biodegradável na Proceedings of the National Academy of Sciences. Eles também são autores do presente estudo em parceria com os alemães. "Agora, em vez do calor, nós podemos induzir o efeito memória de forma em polímeros com luz", disse Lendlein. A chave do trabalho é o interruptor molecular, ou um grupo molecular fotossensível que é enxertado dentro de uma rede polimérica. •

BRASIL

Linha de montagem em sintonia com a arte

Instalação interage com o movimento e a voz do visitante

Fundir arte e tecnologia. Essa é a proposta do projeto Op_Era Sonic Dimension, criado pelas artistas plásticas brasileiras Daniela Kutschat e Rejane Cantoni e exposto desde o final de abril no Beall Center for Art Technology, uma mostra de tecnologia digital apresentada pela Universidade da Califórnia, em Irvine, nos Estados Unidos. O Sonic Dimension é uma instalação interativa concebida como um instrumento musical. Ele tem a forma de um cubo preto e aberto, preenchido por centenas de linhas brancas em cada parede, parecidas com as cordas de um violino. Cada linha funciona como uma corda afinada em determinada freqüência. Ao entrar na sala, o visitante é examinado em detalhes por sensíveis microfones e 72 sensores eletrônicos ligados a um Controlador Lógico Programável (CLP), da empresa Atos Auto-

mação, e por meio dele a computadores. Nas linhas de montagem de fábricas, o CLP é utilizado para controlar máquinas. Na instalação, ele monitora tudo o que ocorre na sala. "Quando o visitante interage com as linhas da projeção, necessariamente ele interrompe uma ou mais fotocélulas. Ao interromper uma fotocélula, esta informação é levada ao microcomputador, que produz as saídas sonoras e visuais do projeto", relata Luciano de Oliveira, diretor de Tecnologia e Marketing da Atos Automação. Qualquer som ou movimento feito pelo visitante é "entendido" pela sala. A sala responde, em tempo real, a qualquer solicitação, fazendo oscilar as linhas correspondentes à freqüência de voz ou de ruído, ou ainda à posição do visitante. Na prática, a sala responde com música à presença humana em seu interior. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 61


sadores dos Laboratórios Sandia, dos Estados Unidos. A chave para construir nanodispositivos que quebram moléculas de água está na descoberta de Zhongchun Wang, um dos membros da equipe de pesquisa. Ele desenvolveu nanotubos compostos inteiramente de porfirina, moléculas relacionadas à clorofila, a parte ativa das proteínas fotossintéticas. Ativados pela luz, esses nanotubos podem ser moldados para terem minúsculos depósitos de platina e de outros metais, tanto do lado de fora como dentro do tubo. Com essas características, esses na-

Nanotubo de porfirina: cobertura de platina

notubos se transformam no coração do dispositivo, que pode quebrar a água em oxigênio e hidrogênio. •

■ Plástico inteligente muda forma com a luz Imagine uma flor que se abre quando recebe a luz do sol. Em um trabalho que imita essa sensibilidade, engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos

Estados Unidos, e pesquisadores do Instituto de Tecnologia e Desenvolvimento de Equipamentos Médicos, da Alemanha, criaram o primeiro plástico que pode ser deformado e fixado temporariamente em uma forma por meio de um foco luminoso. Esses materiais programáveis trocam de forma quando atingidos por certa luz, em determinado comprimento de onda, e voltam à forma original quando atingidos pela luz em outro comprimento de onda. A descoberta, relatada pela Nature, na edição de 14 de abril, poderá ter potencial de aplicação em vários campos, incluindo cirurgias minimamente invasivas. Nesse caso, por exemplo, um médico poderá colocar um fio de plástico dentro do corpo através de uma pequena incisão. Quando ativado por meio de uma sonda de fibra óptica, este fino fio poderá se transformar em um dispositivo com formato de saca-rolha para manter as veias abertas. Plásticos com "memória de forma" - aqueles que mudam a forma em resposta a um aumento na temperatura - são bem conhecidos. Em 2001, Robert Langer, professor do MIT, e Andreas Lendlein, ex-pesquisador visitante do MIT, apresentaram uma primeira versão desse material biodegradável na Proceedings of the National Academy of Sciences. Eles também são autores do presente estudo em parceria com os alemães. "Agora, em vez do calor, nós podemos induzir o efeito memória de forma em polímeros com luz", disse Lendlein. A chave do trabalho é o interruptor molecular, ou um grupo molecular fotossensível que é enxertado dentro de uma rede polimérica. •

BRASIL

Linha de montagem em sintonia com a arte

Instalação interage com o movimento e a voz do visitante

Fundir arte e tecnologia. Essa é a proposta do projeto Op_Era Sonic Dimension, criado pelas artistas plásticas brasileiras Daniela Kutschat e Rejane Cantoni e exposto desde o final de abril no Beall Center for Art Technology, uma mostra de tecnologia digital apresentada pela Universidade da Califórnia, em Irvine, nos Estados Unidos. O Sonic Dimension é uma instalação interativa concebida como um instrumento musical. Ele tem a forma de um cubo preto e aberto, preenchido por centenas de linhas brancas em cada parede, parecidas com as cordas de um violino. Cada linha funciona como uma corda afinada em determinada freqüência. Ao entrar na sala, o visitante é examinado em detalhes por sensíveis microfones e 72 sensores eletrônicos ligados a um Controlador Lógico Programável (CLP), da empresa Atos Auto-

mação, e por meio dele a computadores. Nas linhas de montagem de fábricas, o CLP é utilizado para controlar máquinas. Na instalação, ele monitora tudo o que ocorre na sala. "Quando o visitante interage com as linhas da projeção, necessariamente ele interrompe uma ou mais fotocélulas. Ao interromper uma fotocélula, esta informação é levada ao microcomputador, que produz as saídas sonoras e visuais do projeto", relata Luciano de Oliveira, diretor de Tecnologia e Marketing da Atos Automação. Qualquer som ou movimento feito pelo visitante é "entendido" pela sala. A sala responde, em tempo real, a qualquer solicitação, fazendo oscilar as linhas correspondentes à freqüência de voz ou de ruído, ou ainda à posição do visitante. Na prática, a sala responde com música à presença humana em seu interior. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 61


LINHA DE PRODUçãO

BRASIL

Cadeira para medir a pressão Uma cadeira desenvolvida especialmente para que o próprio paciente meça sua pressão arterial foi patenteada pelo nefrologista Décio Mion Júnior, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em hipertensão arterial, o médico aceitou o desafio proposto em 2001 a ele pelo então secretário de Saúde do Estado de São Paulo, José da Silva Guedes, de criar um "detector de hipertensão" para ser instalado nas unidades básicas de saúde. "A principal causa de óbito no nosso país é a doença cardiovascular representada por derrame e infarto, que tem como origem a hipertensão

■ Embalagem livre do óleo lubrificante As embalagens plásticas de óleo lubrificante usadas em motores automotivos ganharam um novo método de reciclagem que vai tornar essa processo mais limpo e produtivo. Produzidas em polietileno de alta densidade (Pead), elas se tornaram um problema para os recicladores. É que a dificuldade em extrair o óleo remanescente das embalagens plásticas impede o reaproveitamento dos recipientes. Um problema que recebeu a solução do químico industrial Fábio Bonneau Ribeiro, proprietário da FBR Reciclagem de Plásticos, empresa da cidade de Montenegro, no Rio Gran62 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

arterial", diz Mion. Engenheiros do Hospital das Clínicas de São Paulo partici-

de do Sul. Ribeiro patenteou a utilização do solvente orgânico hexano para separar o óleo das embalagens plásticas. "Atualmente usam-se detergente e água para extrair o óleo, e o efluente não pode

param do desenvolvimento de um protótipo da cadeira. Ela cumpriu todos os requi-

ser despejado em esgotos e rios sem passar por um tratamento, que eleva muito o custo do processo", diz Ribeiro. Já o hexano, embora um derivado do petróleo, é usado também para extrair óleo da

sitos técnicos para uma boa medição e incorporou uma pequena impressora para que o resultado pudesse ser encaminhado ao médico. A cadeira foi aprimorada pelo designer Fábio D'Elia, que passou a fabricá-la na sua empresa, a Dafs Design. Ela começou a ser utilizada em campanhas públicas de combate à hipertensão arterial e há um ano um laboratório farmacêutico de São Paulo comprou 50 cadeiras e distribuiu para clínicas localizadas em vários estados brasileiros. A próxima etapa será a instalação de cadeiras, já encomendadas pela Secretaria da Saúde, em unidades básicas de saúde do Estado de São Paulo. •

semente de soja e pode ser reaproveitado nas indústrias de tintas, sem dano ao ambiente. Assim, as embalagens de óleo podem ser transformadas em grânulos que voltam a ser usados em recipientes para óleo ou servir para a fabricação de cabides, caixas de ferramenta e conduítes. •

■ Argila para construir estradas

Solvente separa óleo do plástico sem dano ambiental

A dificuldade em encontrar pedras na região amazônica para uso na construção de estradas motivou os engenheiros do Instituto Militar de Engenharia (IME) a desenvolver um novo material, a argila calcinada, que poderá substituir a brita. O projeto,


cúbico de brita custa em torno de R$ 100, enquanto no Sudeste é encontrado por cerca de R$ 30. Já o metro cúbico da argila calcinada custará R$ 40. Algumas indústrias cerâmicas da região amazônica já procuraram o IME, interessadas em produzir a argila calcinada. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Caminhos da biotecnologia

A brita da Amazônia

que teve início em 1997, resultou no final do ano passado em um pedido de patente do novo material. Na primeira fase, a pesquisa, coordenada pelo coronel Álvaro Vieira, destinou-se a estabelecer critérios para a seleção das melhores matérias-primas, todas retiradas de jazidas naturais da Amazônia. "Existem vários tipos de argila que servem para essa finalidade", diz Vieira. Elas podem ser usadas sozinhas ou misturadas. "Para que endureça e ganhe resistência, a argila precisa ser aquecida a temperaturas elevadas, em torno de 900 a 1.000°C." O material pode ser usado tanto na fabricação de concreto como de misturas asfálticas para revestimento de estradas. Experimentos feitos com a argila calcinada mostraram que ela suporta todas as solicitações do tráfego normal. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, há escassez de pedreiras e, conseqüentemente, de brita, o que^J a torna escassa e cara. Na Amazônia, o metro

Os fundamentos teóricos e os aspectos práticos das diferentes técnicas de purificação de biomoléculas em escala laboratorial e industrial estão no livro recém-lançado Purificação de produtos biotecnológicos. Ele foi coordenado por dois professores da Universidade de São Paulo (USP), Adalberto Pessoa Júnior, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, e Beatriz Vahan Klikian, da Escola Politécnica. Publicado pela editora Manole, o livro, nos seus 22 capítulos, possui informações sobre vários processos biotecnológicos. Além de alunos de várias áreas da graduação e da pós-graduação, profissionais de laboratórios e indústrias também vão se beneficiar, inclusive com a ampla bibliografia no final de cada capítulo. •

Um milhão de furos por milímetro quadrado

Pequenos furos de uma peneira Um novo processo de obtenção de peneiras com furos extremamente pequenos que podem chegar à ordem de dezenas de nanômetros (1 milímetro dividido por 1 milhão) foi patenteado por um grupo de pesquisadores do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenado pela professora Lucila Cescato. A técnica utiliza um processo semelhante à produção de CDs e DVDs em que uma matriz em resina, gravada com laser em relevo, serve como molde para deposição de níquel. A membrana metálica resultante é vazada com cerca de 1 milhão de furos regulares por milímetro quadrado e pode barrar as menores bactérias. Essa regularidade torna essas peneiras superiores em qualidade aos filtros

porosos que possuem furos irregulares. A peneira poderá ser usada em sistemas de microfiltração e separação de materiais nas indústrias farmacêutica e alimentícia. Outros usos estão na filtragem de água em equipamentos de hemodiálise e na separação de fragmentos de DNA. Além disso, como as matrizes são produzidas em relevo, é possível fabricar um molde com relevo invertido e estampar as peneiras em materiais biocompatíveis, ampliando as aplicações. Título: Processo de fabricação de peneiras submicrométricas Inventores: Edson José de Carvalho, Luís Enrique Gutierrez Rivera e Lucila Helena Deliesposte Cescato Titularidade: FAPESP/Unicamp

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 63


I

TECNOLOGIA

ENGENHARIA QUÍMICA

64 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111


Folhas de árvore da Amazônia garantem a continuidade da produção do perfume Chanel DlNORAH ERENO

A lendária frase dita pela atriz Marilyn Monroe de que dormia vestida apenas com algumas gotas de Chanel n° 5 guarda, quem diria, um toque bem brasileiro. O principal ingrediente do famoso perfume francês lançado pela empresa de mademoiselle Coco Chanel em 1921 é o óleo essencial extraído da madeira do pau-rosa, uma árvore nativa da Amazônia. Estimativas indicam que cerca de 500 mil árvores dessa espécie já foram abatidas desde o início da exploração do pau-rosa, o que levou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a incluí-lo na lista das espécies em perigo de extinção em abril de 1992. Para preservar a preciosa madeira, e garantir o fornecimento da matéria-prima para a indústria perfumista, o professor Lauro Barata, do Laboratório de Química de Produtos Naturais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), começou a desenvolver em 1998 um projeto de extração do óleo essencial das folhas que resultou em rendimento e qualidade semelhantes aos obtidos da madeira. "Aprendi que o óleo poderia ser tirado das folhas em trabalhos publicados pelo professor Otto Gottlieb", diz Barata. Ele se refere a um estudo publicado no final da década de 1960 pelo químico que nasceu na República Checa e se naturalizou brasileiro, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e lembrado até pela comunidade científica brasileira para concorrer ao Prêmio Nobel. "Aprendi também com a experiência de Raul Alencar, um ribeirinho de 80 anos que sempre viveu dos produtos da floresta e é produtor tradicional de óleo de pau-rosa", diz Barata. Essas duas referências serviram de base para o seu projeto, financiado pelo Banco da Amazônia (Basa), no valor de R$ 25 mil. O interesse do professor da Unicamp em estudar a árvore amazônica surgiu em 1997, quando ecologistas franceses iniciaram uma campanha para boicotar os produtos da Chanel por conta da extração do pau-rosa, que tem como nome científico Aniba rosaeodora, e a conseqüente devastação da floresta. Em resposta, a empresa francesa contratou a ONG Pro-Natura, de origem franco-brasileira, que trabalha em parceria com empresas para desenvolver programas de desenvolvimento sustentável. O objetivo era encontrar uma solução que

acalmasse o ânimo dos grupos ambientalistas. Barata foi então chamado pela ONG para fazer um diagnóstico da situação da extração do óleo da árvore amazônica. No relatório final, ele ensinava como trabalhar com a produção sustentável do paurosa, que começava com o cultivo e o manejo e passava pela extração das folhas. "Fizemos um levantamento inventariando a situação e a empresa se comprometeu a adotar o desenvolvimento sustentável proposto no nosso relatório", diz Barata. "A solução apontada conseguiu barrar as manifestações programadas." Mas até hoje eles continuam a comprar o extrato obtido das árvores cortadas inteiras no meio da floresta. A pressão internacional provocou uma retomada das possibilidades de manejo sustentável do pau-rosa e, após uma série de discussões com a participação dos produtores, o Ibama lançou em 1998 uma portaria com diretrizes que regulamentam a extração da árvore. Extração experimental - A partir do estudo encomendado pela Chanel e com o projeto financiado pelo Basa, Barata fez várias viagens à região amazônica, que resultaram em um trabalho de cultivo do pau-rosa em parceria com o produtor Raul Alencar. Uma área de capoeira - mata que surge depois do desmatamento da floresta original - no município de Nova Aripuanã, no Estado do Amazonas, foi escolhida para abrigar as mudas da planta. Hoje a área tem 10 mil árvores com três anos e meio que já estão no ponto de serem podadas para dar início à extração experimental do óleo. Para a exploração comercial, as podas podem ser iniciadas aos cinco anos para a extração do linalol e no 25° ano a árvore pode ser cortada e extraído o óleo da madeira, desta vez de modo sustentável. O óleo puro da madeira tem um tom amarelodourado. No início possui um aroma forte, meio cítrico, que se sobrepõe aos outros aromas. Com o passar do tempo, outros cheiros agregam-se ao primeiro, compondo uma mescla harmônica, doce e amadeirada. Já o óleo obtido das folhas é de um amarelo quase transparente, com um cheiro bastante suave, sem muitas gradações. Para testar a qualidade do óleo, folhas de diferentes idades, entre cinco e 35 anos, foram coletadas tanto na floresta como em campos de cultivo durante seis meses. A primeira plantação experimental avaliada foi estabelecida em 1990 por pesquisadores da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), no municíPESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 65


pio de Benfica, a 27 quilômetros de Belém, no Pará, em colaboração com as pesquisadoras Selma Ohashi e Leonilde Rosa. Outra plantação estudada fica em Curuá Una, no Pará, onde existem 300 árvores plantadas desde 1973. O óleo extraído das folhas apresentou rendimento e qualidade similares aos da madeira. No item quantidade de óleo obtido das folhas, a variação foi de 0,9% a 1,1%, em média, ou seja, cerca de 10 quilos de óleo por tonelada de folhas, um rendimento semelhante ao extraído da madeira. Em relação ao aroma, o óleo das folhas perde o toque amadeirado. Isso pode ser corrigido em laboratório. "Basta um tratamento físico-químico para que não se note a diferença entre eles", diz Barata.

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em revelar o conteúdo do tratamento feito em laboratório, e que pode ser reproduzido industrialmente, ele enviou amostras dos óleos das folhas e da madeira para serem avaliadas por dois representantes no Brasü de casas perfumistas internacionais. Eles disseram que as diferenças entre as duas amostras eram mínimas, e um deles assegurou que a fragrância do óleo das folhas era superior à da madeira. Hoje a extração é feita apenas das árvores que se encontram na floresta, não em campos de cultivo, que são poucos e experimentais. Para a árvore na floresta chegar ao ponto de corte demora em média de 30 a 35 anos. E para se obter uma tonelada do linalol é necessário derrubar de 25 a 50 árvores. Se o manejo e cultivo forem bem feitos, com a escolha de melhores matrizes, esse prazo cai para 25 anos. Atualmente, a produção anual do óleo de pau-rosa fica em torno de 40 toneladas, o que representa uma pequena fração das 450 toneladas produzidas nos anos de 1950. O declínio na demanda deve-se principalmente à introdução do linalol sintético no mercado nos anos de 1980. Mas mesmo que isso não

66 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

tivesse ocorrido os produtores, hoje reduzidos a apenas seis, não teriam como dar conta da demanda porque a árvore, que antes se encontrava distribuída por toda a Amazônia, agora se concentra nos municípios de Parintins, Maués, Presidente Figueiredo e Nova Aripuanã, todos no Estado do Amazonas, em um círculo de 500 quilômetros. A espécie já foi extinta na Guiana Francesa, onde começou a ser retirada no início da década de 1920, e logo depois no Amapá e no Pará. O linalol sintético não substitui o natural, porque a fragrância é de qualidade inferior. Mas serve como base para sabonetes e outros produtos de higiene e beleza. A facilidade em produzir o óleo essencial era tanta que quando o sabonete Phebo foi lançado, em 1930, no Brasil, levava em sua fórmula o óleo de pau-rosa, algo impensável nos dias de hoje pelo preço elevado da matériaprima. "O linalol também é encontrado em outras fontes vegetais, como o manjericão, mas nenhuma fonte apresenta a qualidade superior do pau-rosa. Enquanto no pau-rosa o linalol representa 80% da composição do óleo essencial, no manjericão essa porcentagem fica em 30%", explica Barata. Para extrair o óleo essencial é necessário andar bastante dentro da mata por-

que as árvores acham-se espalhadas na natureza. Em cada 6 hectares, encontra-se apenas uma. Para localizá-las, cada mateiro embrenha-se solitariamente nas florestas. Quando eles avistam o pau-rosa, a árvore é marcada com um facão com as iniciais do produtor. As que não devem ser derrubadas também são identificadas, uma exigência do Ibama para preservar as matrizes que estão produzindo sementes. Medida do corte - No verão, outra equipe adentra novamente a floresta para cortar as árvores marcadas. "Só são derrubadas árvores que medem acima de quatro palmos de roda", conta Barata. A medida de um palmo de roda é feita esticando as mãos abertas, unidas pelos polegares. Os quatro palmos correspondem a cerca de 30 centímetros de diâmetro. Depois que a árvore é derrubada, as toras são cortadas com serrote e carregadas nas costas, amarradas a uma mochila de cipó, até a beira do rio. Lá, elas permanecem até que estejam em quantidade suficiente para serem transportadas de barco até a usina de extração do óleo, o que só ocorre no inverno, quando os igarapés se tornam navegáveis. A extração é feita pelo método de arraste a vapor, com um equipamento semelhante a uma panela de

Um clássico dos perfumes Lançado no dia 5 de maio de 1921, o Chanel n° 5 faz sucesso até hoje. Símbolo de requinte e elegância, o perfume foi criado por Ernest Beaux, reconhecido como um dos maiores perfumistas de todos os tempos, a pedido de Gabrielle Chanel, mais conhecida como Coco. A estilista queria um perfume de mulher, mas diferente de todos os outros vendidos na época baseados em aromas florais. A fórmula, além do óleo essencial do pau-rosa, leva jasmim de Grasse - uma cidade na região de Provença, na França -, ilangue-ilangue, néroli (óleo extraído das flores de laranjeira), sândalo e vetiver. A composição

foi a primeira do gênero que mesclou essências de flores com aldeídos, substâncias obtidas por síntese química. Oito décadas após seu lançamento, o n° 5 continua sendo um perfume clássico e ao mesmo tempo contemporâneo. Há controvérsias sobre a escolha do número 5 para a fragrância. Alguns dizem que esse era o número de sorte de maãe moiselle Chanel, outros que quinta fórmula apresentada pelo perfumista foi a escolhida por ela. Em 1959, o design do frasco, criado pela fábrica de vidros Brosse, entrou para o Museu de Arte Moderna de Nova York como símbolo de vanguarda.


tada e retirada dali a dois anos. E no quinto ano o pau-rosa já começa a dar lucro, com a extração do óleo das folhas. O projeto também testa o plantio consorciado do pau-rosa com plantas aromáticas da Amazônia, como a raiz do vetiver, o cumaru, a copaíba e outras como a andiroba. No início, antes de as mudas do pau-rosa serem transplantadas para o solo, elas são aclimatadas em viveiros protegidas por uma cobertura de folhas de palmeiras de açaí. Quando a palha dessa árvore se decompõe, as plantas estão mais estruturadas e preparadas para receber a luz solar.

Óleo extraído da folha do pau-rosa {no detalhe) tem cheiro bastante suave e apresenta rendimento e qualidade semelhantes ao obtido da casca da árvore

pressão gigantesca de 1.500 litros de capacidade. Por esse processo, o vapor d'água passa pela planta aromática extraindo, condensando e separando suas essências. Todo o processo, que tem início com a marcação da árvore e termina com a madeira dentro da usina, leva em média um ano. E tem um alto custo, que os donos das usinas, na verdade ribeirinhos que sempre viveram por lá, não têm dinheiro para bancar. Por isso eles vendem a produção antecipadamente para os intermediários, que a revendem para a Europa e os Estados Unidos. Cerca de 90% da produção é exportada. Eles vendem o extrato em tambores de 200 litros para as casas perfumistas ao preço de US$ 300 o litro. Aqui o produtor vende seu produto para o intermediário por US$ 20 o litro. Poucos conseguem exportar dire-

to para as indústrias, sem intermediários. Quando isso acontece, o produtor recebe US$ 60 por litro do óleo. As casas perfumistas do Brasil compram diretamente da matriz, porque as compras são centralizadas. "É uma cadeia enorme e complexa, e quem sai perdendo é o produtor", diz Barata. A parceria do pesquisador com os produtores resultou num plano de manejo e extração do óleo das folhas que começa com o cultivo do pau-rosa consorciado com outras culturas. Como a planta precisa ser protegida do sol no início do seu ciclo de vida, uma das soluções é cultivar uma árvore a cada 5 metros, intercaladas com bananeiras. Quando as bananeiras estão no ponto de corte, aos dois anos, o pau-rosa está na fase em que precisa receber sol direto. As bananas já podem ser vendidas e outra leva de bananeiras pode ser plan-

Novos caminhos - Para que o projeto dê retorno financeiro, é necessário plantar pelo menos 10 mil mudas de pau-rosa em 30 hectares. O mesmo número de mudas que foi plantado na área cultivada no município de Nova Aripuanã. Outras 10 mil mudas estão no viveiro, esperando o momento de serem transferidas para o campo. Essa quantidade é quase 30 vezes mais do que seria necessário plantar segundo a portaria do Ibama. Para cada tambor de 200 litros exportado o produtor é obrigado a plantar 80 unidades de pau-rosa. Como Raul Alencar exporta, em média, dez tambores por ano, ele teria de plantar apenas 800 mudas. O projeto de desenvolvimento sustentável do pau-rosa já foi apresentado em vários congressos internacionais e despertou o interesse de empresários brasileiros que não querem, por enquanto, a divulgação de seus nomes. Muitos daqueles que plantam outras culturas também poderiam lucrar com a produção do óleo do pau-rosa. E, se as árvores forem extintas, o próprio mercado consumidor será afetado. Antes que isso aconteça, produtores que sempre viveram dos recursos da floresta procuram novas maneiras de extrair o que dela precisam. O desenvolvimento sustentável foi o caminho escolhido por comunidades amazônicas que vivem dos recursos da extração da andiroba e do açaí, por exemplo, que antes corriam o risco de serem extintos. Hoje o açaí é importante pelo fruto, e não pelo palmito. E o óleo de andiroba é a base de velas repelentes de insetos e de muitos produtos cosméticos. O mesmo caminho que pode ser seguido para a produção do óleo das folhas do pau-rosa. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 67


■ TECNOLOGIA ENGENHARIA FLORESTAL

rLstoque finito

A

na Amazônia

Duas espécies de árvore demoram mais de um século para crescer e repor a quantidade de madeira cortada MARCOS PIVETTA

imulações feitas por computador indicam que a extração comercial de certas árvores nobres da Amazônia pode não ser uma atividade sustentável a longo prazo. Nem a adoção das técnicas hoje recomendadas pelo manejo florestal, um conjunto de medidas que, em tese, deveria reduzir os efeitos da atividade madeireira sobre a floresta a níveis aceitáveis, é capaz de suavizar as marcas deixadas pela mão humana: rápida e eficaz, a motosserra vence sempre, e com folga, a corrida contra a natureza. Num dos cenários virtuais, criado nos micros dos pesquisadores do projeto Dendrogene - Conservação Genética em Florestas Manejadas na Amazônia, populações de duas espécies arbóreas, a tatajuba e a maçaranduba, foram submetidas a um único ciclo de corte, efetuado de acordo com os preceitos considerados racionais da atual sustentabilidade. Essa situação foi representada com o auxílio de um programa de modelagem ecológica e genética, o Eco-Gene, que calculou quanto tempo seria necessário para que as árvores remanescentes de cada espécie crescessem, se multiplicassem e a mata voltasse a ter a sua quantidade original de tatajubas e maçarandubas. Os resultados acenderam uma luz amarela: um século de descanso não foi suficiente para dotar novamente a floresta com o mesmo estoque de madeira das duas espécies que havia antes. A situação da Bagassa guianensis, nome científico da escassa tatajuba, que dá uma madeira amarelada, apreciada na construção de barcos e assoalhos, é particularmente preocupante. Na simulação, a floresta precisou de 200 anos para recuperar 80% de sua quantidade original de madeira. O processo de regeneração foi tão demorado que a espécie não conseguiu reaver todo o seu estoque inicial. Mais abundante, a Manilkara huberi, a popular maçaranduba, dona de uma madeira muito dura e

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resistente, em tom vermelho-escuro, teve um desempenho melhor, mas não muito animador: necessitou de 130 anos para exibir de novo a quantidade original de madeira. "Precisamos rever algumas idéias sobre a exploração madeireira", diz Milton Kanashiro, engenheiro florestal da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)-Amazônia Oriental, de Belém, que coordena, há cinco anos, os trabalhos de aproximadamente 50 pesquisadores e colaboradores do Dendrogene. "Temos indícios de que, mesmo com a adoção do manejo, nos moldes hoje praticados pelas empresas, há uma grande redução no estoque comercial de árvores de algumas espécies exploradas economicamente." Sol e sombra - A tatajuba e a maçaranduba são árvores de alto valor comercial da Amazônia, encontradas às vezes uma ao lado da outra em áreas de terra firme, como são chamados os trechos de floresta que nunca ficam alagados. Em sua plenitude, atingem 40 ou até 50 metros de altura, podendo ultrapassar o dossel da floresta. Têm troncos grossos, com diâmetro variando de 1,4 metro a 2 metros em exemplares adultos, e seus frutos são comestíveis, em especial o da maçaranduba. Apesar dos pontos em comum, as duas espécies primam pelas diferenças em sua dinâmica de reprodução e crescimento. "Uma é o contrário da outra", afirma a bióloga Marivana Borges Silva, aluna de doutorado da Universidade Federal do Pará (UFPA), que trabalhou nas simulações. Em florestas adultas, a tatajuba é rara, adora sol e cresce rapidamente. A maçaranduba é abundante, tolera bem a sombra e se desenvolve lentamente. Numa área de 500 hectares da Floresta Nacional do Tapajós, perto de Santarém, no Pará, onde se concentram os trabalhos de campo do Dendrogene, entre as árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro, o número de exemplares da primeira espécie é dez vezes menor do que o da segunda.


Tatajuba: 200 anos para recuperar a quantidade original de madeira

Nesse trecho de floresta, cerca de 50 pesquisadores e colaboradores do projeto, daqui e do exterior, estudam a fundo, há cinco anos, os mais variados aspectos da biologia e da genética de sete espécies arbóreas, todas exploradas pelas madeireiras. Além da tatajuba e da maçaranduba, cujos trabalhos estão numa fase mais adiantada, são alvo das pesquisas o jatobá, o cumaru, o anani, a andiroba e o parapará. Cada árvore tem ocorrência e dinâmica reprodutiva distintas das demais, formando, segundo os cientistas, um painel representativo de boa parte da diversidade de espécies arbóreas da Amazônia. O objetivo central do Dendrogene, empreitada científica de R$ 6 milhões tocada basicamente com recursos da própria Embrapa e do Departamento para Desenvolvimento Internacional do governo britânico, é entender o maior número possível de variáveis que influem no processo de nascimento, crescimento, morte e regeneração das árvores de interesse comercial. E, dessa forma, desenhar planos de manejo específicos para os grupos de árvores que se mostrarem aptos a serem explorados a longo prazo. "Um dos problemas do manejo atual é ver a floresta como algo homogêneo, sem levar em conta as particularidades de cada espécie", opina Kanashiro. "Nossos dados, embora preliminares, mostram que o manejo florestal pode ser viável se seguir dois caminhos: reduzir a intensidade da extração, diminuindo a quantidade de madeira retirada ou alongando o ciclo de corte, e promover uma rotação entre as espécies que serão comercialmente exploradas no futuro, concentrando suas atividades nas de rápido crescimento." O problema é que ainda não se sabe com certeza quais espécies podem ser manejadas de maneira sustentável. Daí a importância de haver projetos científicos que tentam responder a essa difícil questão. Por ora, ainda não está claro que tipo de manejo será possivelmente recomendado para a exploração da tatajuba e da PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 69


maçaranduba. A análise de uma outra série de simulações feitas no projeto Dendrogene indica que ambos os casos são delicados. Com a ajuda do programa Eco-Gene, que foi abastecido com dados biológicos e moleculares das duas espécies, os pesquisadores compararam o impacto da adoção de nove cenários distintos de exploração ao longo de um período de 300 anos. O objetivo era ver se alguma mudança de conduta produziria reduções significativas nos efeitos da atividade madeireira sobre as populações de tatajuba e maçaranduba. Mais uma vez, no final das simulações, não houve o que comemorar: em todos os cenários testados, até nos aparentemente menos agressivos, não restavam mais árvores em quantidade suficiente para a exploração comercial após o terceiro ciclo de corte. "Os resultados não mudavam muito em função do cenário adotado", comenta Vânia Azevedo, aluna de mestrado da Universidade de Brasília (UnB), que participou das simulações. "Depois do terceiro ciclo de corte, já não dava para tirar quase nada da floresta."

m cada simulação, pelo menos um dos três principais parâmetros do plano de manejo florestal foi alterado. Essas diretrizes centrais definem o intervalo de tempo entre cada extração de madeira, o diâmetro mínimo do tronco das árvores que podem ser retiradas e a porcentagem de árvores passíveis de corte que serão preservadas (deixadas como reserva). Entre as poucas empresas que adotam planos de manejo na Amazônia, onde 70% da extração de madeira é irregular, segundo algumas estimativas, o padrão é fazer o que a lei manda: adotar um ciclo de corte de 30 anos, considerar candidata à extração toda árvore com pelo menos 45 centímetros do chamado diâmetro na altura do peito (Dap) e manter como reserva apenas 70 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

uma de cada dez árvores que atingiram o ponto de corte. O primeiro cenário testado serviu de controle. Nesse caso, o Eco-Gene calculou o que aconteceria com populações de 500 tatajubas e de 500 maçarandubas que permanecessem intocáveis durante três séculos. Nos outros cenários, do segundo ao nono, foram testados distintos planos de manejo, mais ou menos restritivos à atividade madeireira. O de número dois simulou exatamente os parâmetros hoje empregados no manejo. Nos demais, o ciclo de extração variou entre 30, 60 e 90 anos, o diâmetro mínimo de corte oscilou entre 45,55 e 65 centímetros e a cota de árvores deixadas como reserva flutuou entre 10%, 30% e 50% dos exemplares adultos. Depois de 300 anos de exploração virtual das árvores, o quadro geral pintado pelo Eco-Gene não era animador. Em relação ao cenário um, em que não houve corte algum de madeira, a tatajuba e, em menor escala, a maçaranduba apresentaram, nas demais simulações, reduções significativas no estoque de madeira e no número de árvores que

compunham suas respectivas populações. A quantidade de madeira da B. guianensis disponível na floresta encolheu entre 82% e 90% e o número de árvores, entre 63% e 78%. O estoque de madeira da M. huberi retrocedeu de 58% a 80% e o número de árvores decresceu no máximo 12%. Parece haver um paradoxo - ou um erro - rondando os dois índices calculados pelo programa de modelagem para a maçaranduba. Como, depois de três séculos de exploração, o número de árvores da espécie quase não diminuiu enquanto o estoque de madeira minguou a olhos vistos? Resposta: é verdade que, no final das simulações, havia quase tantas maçarandubas como no passado, só que elas eram bem menores que antes. Se o manejo florestal tal como hoje praticado altera radicalmente o estoque de madeira da floresta, seu impacto sobre a diversidade genética da tatajuba e da maçaranduba não parece ser da mesma magnitude. Em ambas as espécies, a perda de informação molecular foi de no máximo 15% das chamadas combinações genotípicas que haviam


nas árvores antes do início da atividade madeireira. Uma combinação genotípica é a forma particular de um gene encontrado em um indivíduo. Em outros parâmetros, como a consagüinidade, não houve mudanças estatisticamente significativas. "As simulações indicam que não há fortes ameaças à conservação genética dessas árvores", pondera Kanashiro. "Mas ainda não podemos afirmar isso com toda a certeza." Realidade complexa - É preciso colocar em perspectiva os resultados das simulações. A realidade, todos sabem, sobretudo os pesquisadores do Dendrogene, é mais complexa do que os cenários construídos por um programa de computador que tenta prever os efeitos da extração controlada de madeira. O programa Eco-Gene foi abastecido com dados sobre as características genéticas e biológicas da tatajuba e da maçaranduba estudadas numa área de floresta natural. O ideal é que o software seja alimentado com informações de árvores provenientes de áreas manejadas, que devem apresentar uma di-

nâmica reprodutiva distinta. Em breve, isso deve ser possível. No final de 2003, os pesquisadores acompanharam o corte de 90% das árvores adultas das sete espécies estudadas pelo projeto que existiam nos 500 hectares de floresta em que o projeto concentra sua parte de campo. "Ainda este ano, ou em 2006, devo voltar à área para ver o impacto da extração de madeira sobre os insetos e animais responsáveis pela polinização das árvores", diz a bióloga Márcia Motta Maués, da EmbrapaAmazônia Oriental. Pode parecer um contra-senso para o leigo, mas a extração de madeira estimula a germinação de sementes no solo da Amazônia e, num primeiro momento, favorece o crescimento de mudas de árvores no trecho de floresta explorada. O corte de uma maçaranduba ou de uma tatajuba de grande porte abre uma clareira na mata serrada e os raios solares atingem mais facilmente a terra. O engenheiro florestal José do Carmo Alves Lopes, também da Embrapa, mediu no Tapajós os níveis de regeneração das sete espécies estudadas em detalhe pelo

Dendrogene, antes e depois de ter havido o corte de árvores ali. Dez meses após a motosserra ter feito o seu trabalho, todas as variedades aumentaram suas taxas de regeneração. A tatajuba, que adora sol, apresentou o maior índice de aparecimento e crescimento de plântulas, como os técnicos chamam as mudas. Havia 62 vezes mais plântulas da espécie do que antes (o número de mudas por hectare passou de 0,3 para 19). A andiroba, a espécie que teve a menor taxa de regeneração, aumentou em meros 5% o seu número de plântulas (pulou de 106 mudas por hectare para 112). "Agora precisamos ver como essas taxas de crescimento vão cair ao longo do tempo. Elas vão cair, só não sabemos quanto", afirma Carmo. A medida que a copa da floresta volta a se adensar, espécies que não toleram a sombra passam a apresentar taxas alarmantes de mortalidade. Apenas os poucos exemplares mais altos, que conseguiram literalmente um lugar permanente ao sol, sobrevivem. Essa é a sina da tatajuba, ao contrário da maçaranduba, que gosta de sombra. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 71


[TECNOLOGIA

Projeto reabilita pequenos produtores rurais

Melhor manejo, mais lucro

CLAUDIA IZIQUE

T7

m 2002, Carlos Santim, proprietário de uma área pouco maior que 30 hectares, no município de Uirapuru, no Estado de São PauIo, decidiu substituir o cultivo do café por um rebanho de 70 vacas holandesas e mestiças que produzem 430 litros de leite por dia. Hoje, a produtividade do sítio, bem acima da média da região, garante a Santim uma renda em torno de dez salários mínimos e alimenta sonhos de expansão. Ele acabou de comprar oito novilhas com recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do Banco do Brasil, e busca reduzir os gastos com ração animal. Faz contas e garante: em 2006 atingirá uma produção de 7 mil litros de leite por dia. Aos que suspeitam que a meta pode ser inatingível ele lembra que, em apenas dois anos, a produção cresceu quase sete vezes. Mantida a progressão, os planos de Santim po* dem até ser conservadoW res. "Aprendi a manejar o rebanho e a administrar a propriedade", explica. As técnicas de manejo do rebanho e de gestão do negócio ele aprendeu com um dos 240 técnicos da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), que, por sua vez, foram treinados por especialistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)-Pecuária Sudeste, no âmbito do projeto Agricultura Familiar - Leite. Criado em 1999 e instalado há dois anos e meio, o projeto tem como objetivo transferir conhecimentos sobre a pro. 1 ^M ^^^^^~^^^^^^

Manejo adequado do rebanho aumenta a produção de leite e a renda familiar

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dução intensiva e rentável do leite aos pequenos proprietários e aos técnicos de extensão rural. As "salas de aula" são pequenas propriedades familiares, como a de Santim, em que especialistas da Embrapa discutem, analisam e avaliam práticas agrícolas e zootécnicas junto com produtores rurais e técnicos da Cati. "Nas propriedades rurais o que mais falta é a informação para produzir leite de uma maneira simples, porém rentável, e com conceitos altamente técnicos e ambientalmente sustentáveis", afirma Artur Chinelato de Camargo, pesquisador da EmbrapaPecuária Sudeste, um dos mentores do projeto. Desinformados, os pequenos produtores não utilizam práticas básicas, como análise do solo, controle leiteiro, plantio em nível ou exames para identificar doenças nos animais. Mal alimentado, o rebanho não tem potencial produtivo e não garante renda aos produtores, que acabam por descuidar da propriedade, antes de abandonar a atividade, e, muitas vezes, vender a terra e mudar-se para a cidade. Foi exatamente esse quadro que os técnicos da Cati encontraram na maioria das 109 propriedades paulistas nas quais já está implantado o projeto. "O primeiro passo é promover uma limpeza na área e resgatar a auto-estima do produtor", diz Adalberto Estivar, técnico da Cati, responsável pelo sucesso do empreendimento de Santim.

O segundo passo é tratar de mudar a alimentação dos animais, substituindo, sempre que possível, o uso da ração - mais cara - pelo capim. "Para produzir leite não é preciso alimentar o gado exclusivamente com ração", adverte Estivar. Mas, antes, é preciso ensinar os produtores a formar, adubar e manejar pastos. O capim garante a alimentação de animais com produção de 12 litros de leite por dia. A ração só deve ser utilizada como suplemento alimentar para os animais mais produtivos. Os técnicos recomendam que, em vez de comprar a ração no mercado, os produtores devem manipulá-la, utilizando produtos de época. O resultado é que, no lugar de pagar R$ 0,52 por quilo de ração convencional, ele só gasta R$ 0,30. A partir dessa etapa, os técnicos iniciam o trabalho com o rebanho, com a identificação dos animais produtivos e o descarte dos pouco eficientes. "O investimento tem que reverter em leite." Os proprietários são ainda convencidos a adotar uma planilha de custos, onde anotarão, religiosamente, as receitas e despesas diárias. "Num primeiro momento, para reorganizar a atividade, eles só têm despesas e ficam atordoados. Quando começam a aparecer resultados positivos, eles fazem planos para crescer", conta Estivar. O passo mais delicado é induzi-los a adotar a irrigação. "Isso assusta os produtores", justifica. Com irrigação, o período de seca do pasto fica reduzido

a três meses, quando então o capim pode ser substituído por cana-de-açúcar corrigida, ou seja, rica em proteína e adicionada de uréia mineral. Fórmula simples - As planilhas utilizadas pelos produtores incluem fórmulas simples que permitem contabilizar a depreciação de equipamentos, juros sobre o capital investido na terra, "salário" do produtor, entre outros, de tal forma que ele possa avaliar a rentabilidade do negócio. "Aos poucos, os produtores descobrem que o leite cobre todos os seus investimentos." Feitas as contas, eles constatam que o custo de produção de cada litro de leite - vendido por R$ 0,52 - é de R$ 0,32. "O lucro líquido é de R$ 0,20 por litro de leite", diz Estivar. "O modelo é lógico, é economia de escala. Se a produção for de 50 litros por hectare/dia, é pouco e o- produtor perde. Tem que chegar a 200 litros." Para integrar o projeto capitaneado pela Embrapa, os produtores têm alguns deveres, explica Chinelato: deixar a propriedade "aberta" para a visita de técnicos locais, fazer exames de brucelose e tuberculose nos animais a cada quatro meses e descartar os animais doentes. O projeto tem o apoio de cooperativa de produtores, prefeituras e, em algumas regiões, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). "É um projeto barato, com resultados positivos", diz Chinelato. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 73


I TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

Turma da limpeza Fungos e bactérias são a base de detergentes usados em equipamentos hospitalares

nzimas produzidas por um fungo e uma bactéria são a base de novos detergentes desenvolvidos no Brasil destinados a higienizar instrumentos cirúrgicos, desobstruir sondas com resíduos coagulados e digerir e dissolver restos orgânicos, como manchas de sangue e outras. O desenvolvimento dos produtos foi feito no Centro de Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CBiot/UFRGS), coordenado pela professora Marilene Henning Vainstein. A utilização de detergentes que contêm enzimas - proteínas produzidas por seres vivos capazes de estimular reações químicas sem sofrer alterações em sua composição - não é novidade. Mas até hoje o Brasil não dominava o processo de produção industrial das enzimas para fabricação de detergentes e, por isso, importa a matéria-prima para formular o produto. "A principal vantagem da formulação de detergentes contendo enzimas é sua característica biodegradável, ideal para substituir produtos cáusticos, ácidos e solventes, que agridem o ambiente e provocam o desgaste de materiais e instrumentos", diz Marilene. A primeira etapa da pesquisa consistiu na escolha dos microorganismos mais adequados para a formulação industrial, já que os pesquisadores estavam à procura de bactérias produtoras de protease, uma enzima com ampla aplicação na indústria de alimentos e na formulação de detergentes, e de amilase, responsável por degradar as moléculas de amido. Para chegar até elas, várias linhagens de espécies citadas na literatura científica com as características procuradas foram testadas. "Sabemos que algumas espécies do fungo Asper74 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

gillus são boas produtoras de amilase", diz Marilene. "Isso facilitou a nossa busca." A seleção do melhor microorganismo para produzir a protease também foi feita da mesma forma. "Foi testada uma coleção de bactérias do gênero Bacillus para a escolha de um excelente produtor de proteases, que era o que precisávamos." Com a escolha do fungo e da bactéria, os pesquisadores precisavam desenvolver um processo de produção que, ao mesmo tempo, apresentasse um rendimento satisfatório e fosse de baixo custo, para poder ser aplicado na indústria. Foram testadas várias substâncias para compor o meio de cultura, que contém nitrogênio, carbono, além de sais minerais e complementos nutricionais que não podem ser revelados. Assim que essa etapa foi encerrada, o grupo de pesquisa gaúcho requereu a patente do processo de produção da protease e da amilase para aplicação industrial. As proteases representam 60% do total do comércio de enzimas no mundo em um mercado estimado em US$ 1 bilhão. Além da indústria de detergentes e de alimentos, elas têm sido utilizadas no tratamento do couro, em substituição aos compostos tóxicos e poluentes. A adoção de processos biológicos nos curtumes tem como principal finalidade reduzir os custos com o tratamento dos efluentes resultantes dos processos químicos. Já as amilases são empregadas na indústria para quebrar as moléculas do amido, originando substratos que são importantes na preparação de xaropes de glicose, maltose ou mistos, panificação, cervejaria e produção de etanol. Na formulação de detergentes, elas são utilizadas para remover resíduos. O uso diversificado das enzimas está relacionado às suas características de atuar como biocatalisadores especializados, que são substân-


cias que modificam a velocidade de uma reação química. O desenvolvimento na universidade originou-se de um pedido feito por empresários de Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul. Newton Mário Battastini e Ivete Casagrande Battastini são sócios das empresas Tecfarm e Tecpon, que importam enzimas de uma empresa da Dinamarca para produzir detergentes para higienização hospitalar vendidos aqui no Brasil. A proposta para o estudo e a produção dessas enzimas foi feita para o veterinário Sydnei Mitidieri Silveira, que já havia publicado trabalhos sobre o tema. Ele ia começar a fazer doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular do Centro de Biotecnologia da UFGRS e levou a idéia para a professora Marilene. Na mesma época, no ano 2000, foi publicado um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs) apoiando interações entre universidades e empresas. A coincidência de interesses levou à apresentação de um projeto à fundação para o desenvolvimento das enzimas, que foi aprovado. As empresas entraram com parte dos recursos necessários para a pesquisa. "A idéia inicial era trabalhar no desenvolvimento de mais uma enzima, a lipase, que degrada lipídios, mas ainda não conseguimos os resultados esperados", diz Marilene. Toda a parte de desenvolvimento das enzimas para aplicação industrial já está pronta. A Enzi-Far, braço da Tecfarm e Tecpon abrigada na Incubadora Empresarial do CBiot da universidade, trabalha agora na otimização da escala de produção. "A empresa está produzindo 400 litros semanais dessas enzimas que estão sendo usados para as formulações e os testes de estabilidade", diz Marilene. "Assim que acelerarmos a produção, as empresas poderão começar a vender os detergentes biodegradáveis para os hospitais." No futuro, outras formulações poderão ser feitas utilizando as mesmas enzimas para tratamento de esgotos, de couros e na limpeza de resíduos de padaria. Para que isso ocorra, precisam ser feitos apenas alguns ajustes no processo de formulação porque todo o processo de produção em escala já está dominado. • DlNORAH ERENO PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 75


■ TECNOLOGIA ENGENHARIA ELÉTRICA

Lavoura digital Empresa desenvolve equipamentos de precisão para uso na agricultura

Um salto tecnológico e um aumento de faturamento. Esses foram os frutos colhidos pela empresa DLG Automação, da cidade de Sertãozinho, que contou com a colaboração da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para desenvolver aparelhos de precisão voltados principalmente para o mercado agrícola. O primeiro a ficar pronto foi um equipamento que serve para determinar o nível de compactação do solo das lavouras, medida útil para que as plantas cresçam fortes e produtivas. Além dele, está em fase final de desenvolvimento um sistema para geração de sinal de correção diferencial, em tempo real, para receptores do Sistema de Posicionamento Global, conhecido por GPS (Global Positioning System). O objetivo é reduzir a imprecisão dos receptores desse sistema que indica, por meio de sinais de satélite, as coordenadas terrestres como latitude e longitude. Esse projeto se destacou no Prêmio Gerdau Melhores da Terra 2004, dedicado à indústria de máquinas e equipamentos agrícolas, vencendo na categoria Pesquisa e Desenvolvimento. "Com o trabalho de pesquisa para projetar e desenvolver esses aparelhos passamos a dominar uma nova tecnologia, a de aparelhos microprocessados, e conseguimos diversificar nossa linha de produtos. Com isso, atingimos 76 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

novos mercados e nosso faturamento passou de R$ 200 mil em 1997, ano da criação da empresa, para R$ 1,4 milhão em 2004", afirma Glauco Guaitoli, diretor da DLG, que também fabrica sistemas e equipamentos de automação para vários segmentos industriais. Segundo o engenheiro agrícola Nelson Luís Cappelli, da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, que coordenou dois projetos da empresa financiados pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, o desenvolvimento dos equipamentos ajudará a resolver certos gargalos tecnológicos para a utilização mais ampla da agricultura de OS PROJETOS í. Desenvolvimento de um penetrômetro eletrônico geo-referenciado de baixo custo 2. Desenvolvimento de um sistema de baixo custo para geração de sinal de correção diferencial, em tempo real, para GPS MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR NELSON

Luís

CAPPELLI

- Unicamp/DLG

INVESTIMENTO 1. R$ 172.270,00 (FAPESP) 2. R$ 265.615,00 (FAPESP)

precisão do país. O analisador da compactação do solo, conhecido pelo nome de penetrômetro, é identificado como PNT-2000 e é o único modelo eletrônico, portátil e georreferenciado produzido no Brasil. "Os importados têm um custo muito mais alto, em torno de US$ 5 mil, enquanto o nosso sai por R$ 5 mil", diz o pesquisador. Além de mostrar o nível de compactação do solo, ele revela a profundidade das camadas compactadas e a localização espacial delas. "O solo compactado prejudica o crescimento das plantas porque impede o desenvolvimento das raízes e a sua melhor fixação, além de diminuir a absorção de água e de nutrientes", diz Cappelli. O PNT-2000 apresenta vantagens em relação aos aparelhos disponíveis no mercado, porque o processo de aquisição e armazenamento dos dados é todo automático. "Nos penetrômetros convencionais o usuário precisa fazer anotações a cada ponto, enquanto no nosso os dados ficam armazenados no próprio aparelho", afirma o engenheiro Cláudio Kiyoshi Umezu, que também participou da criação do produto. "Além disso, como nosso equipamento fornece as coordenadas geográficas, o usuário não precisa fazer um mapa topográfico para identificar a localização dos pontos amostrados", diz. O georreferenciamento (determinação da latitude e da longitude) depende do uso de um receptor de GPS acoplado ao equipamento.


Aparelho mede a compactação do solo, armazena os dados e possibilita a elaboração de mapas tridimensionais

O funcionamento do penetrômetro é relativamente simples. Além de uma unidade para armazenamento das informações, o aparelho tem uma haste de metal de 60 centímetros de extensão que possui um pequeno cone metálico na extremidade. Para saber se o solo está compactado, o usuário introduz a haste na terra e um sensor de força mede a resistência à penetração da haste na terra. O dado colhido revela o nível de compactação do terreno. O aparelho também tem um sensor de distância por ultra-som que mede o quanto da haste foi introduzido no solo. Esse sensor, aliado ao posicionamento obtido por meio do GPS, possibilita a elaboração de mapas tridimensionais da compactação do solo agrícola.

"É um aparelho de grande utilidade em áreas de reflorestamento e de culturas com mecanização intensa e alto índice de compactação, como as plantações de cana-de-açúcar e de soja", afirma Guaitoli. Desde que começou a ser comercializado, em 2002, foram vendidas oito unidades do aparelho para universidades, instituições de pesquisa e uma empresa de reflorestamento, a Bahia Sul. A outra inovação tecnológica surgida da parceria entre a DLG e a Unicamp, por meio de um outro projeto do PIPE, também deve trazer benefícios para os produtores rurais. "Com o uso do sistema GPS com correção diferencial, também chamado DGPS (o D é de diferencial), os agricultores podem

elaborar mapas de produtividade, identificar regiões com infestação de pragas e fazer mapas de aplicação de insumos com muito mais precisão", diz Cappelli. Segundo o pesquisador, esse é o primeiro aparelho do gênero feito no país. "Decidimos criar esse sistema para baratear o custo do equipamento e assim disponibilizar a tecnologia para grande número de usuários." O sistema importado custa, no mínimo, US$ 8 mil, valor bem superior ao equipamento da DLG, que deverá ter o preço definido até o lançamento previsto para o final do ano. Para entender a operação de uma estação DGPS é preciso primeiro saber como funciona o GPS. Esse sistema, criado nos anos 1970 pelo governo norte-americano, utiliza uma constelação de 24 satélites posicionados a cerca de 20 mil quilômetros de altitude. Durante muito tempo ele só foi usado para fins militares até que, em 1995, passou a ser aberto para uso civil, porém com um sinal de erro introduzido intencionalmente de 100 a 140 metros. A partir do ano 2000, as autoridades norte-americanas, com o objetivo de difundir seu uso comercial, decidiram desativar a deterioração do sinal e deixar o sistema com sua imprecisão original, em torno de 15 metros. Para reduzir esse erro, é necessário recorrer ao DGPS, que consiste numa base fixa localizada num ponto georreferenciado conhecido. Assim, quem possuir um receptor GPS pode captar o sinal DGPS. O erro, então, cai para 2 metros. O aparelho da DLG possui um receptor GPS base e um processador de correção responsável por identificar o tamanho do erro. A informação do erro é enviada por meio de um transmissor de rádio para os aparelhos de GPS móveis localizados, por exemplo, em tratores e colhedeiras. Atualmente existem no Brasil poucas opções para correção do sinal, além de serem caras e muitas vezes possuírem receptores pouco precisos. "Nosso DGPS vai reduzir o erro para algo como 2 metros e pode ser utilizado com quase todos os receptores GPS", diz Cappelli. • PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 77


I TECNOLOGIA

NOVOS MATERIAIS

(Um

ímã

diferente Grafite desenvolvida por uma equipe de pesquisadores brasileiros e uruguaios tem propriedades magnéticas YURI VASCONCELOS

esquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade da República (Udelar), de Montevidéu, no Uruguai, conseguiram transformar um composto puramente orgânico e nãometálico - o carbono grafite - em um ímã por meio de um tratamento químico barato. O novo material abre caminhos para a fabricação de dispositivos magnéticos como sensores e detectores usados em áreas que abrangem da engenharia espacial até a medicina. Até agora pesquisadores europeus haviam conseguido tal feito, mas empregando técnicas bem mais caras e complexas, como é o caso do método desenvolvido por uma equipe de pesquisadores da Alemanha que recorreu ao bombardeio de um feixe de prótons, gerado por um reator nuclear, para produzir o magnetismo na grafite. "Além de ser um processo muito mais oneroso, complexo e ainda não totalmente explicado, o magnetismo obtido por eles é aproximadamente dez


vezes menor do que o do nosso carbono", explica um dos inventores, o engenheiro de materiais Fernando Manuel Araújo-Moreira, professor do Departamento de Física da UFSCar, coordenador dos trabalhos no Brasil. A importância do invento está no fato de que, por muito tempo, a comunidade científica acreditou que um material magnético deveria obrigatoriamente conter átomos de elementos metálicos como o ferro, o cobalto e o níquel. A pesquisa feita pelos cientistas das universidades brasileira e uruguaia demonstrou o contrário porque a grafite só possui átomos de carbono. "Conferimos ao arranjo de átomos de carbono, que é o elemento base de todas as estruturas orgânicas, uma nova propriedade, o magnetismo", diz Araújo-Moreira. A patente do invento, denominada Processo de preparação áe materiais graftticos magnéticos e materiais assim preparados, foi depositada pela Fundação de Apoio Institucional da UFSCar no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e tem co-titularidade das duas universidades. A lista de inPESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 • 79


ventores inclui, além de Araújo-Moreira, a doutoranda Helena Pardo e o professor Álvaro Mombrú, coordenador dos trabalhos no Uruguai. O novo material já repercutiu também no meio empresarial. Os pesquisadores da UFSCar estão em negociações com a empresa brasileira Nacional de Grafite, com sede na cidade de Itapecerica, em Minas Gerais. Ela é a maior fabricante mundial de grafite natural cristalina com capacidade para produzir 46 mil toneladas por ano, sendo que metade da produção é vendida para clientes no exterior. "O acordo prevê a alocação de cerca de R$ 300 mil para a continuidade de nossas pesquisas, agora em nível industrial, visando às aplicações tecnológicas", diz Araújo-Moreira. As pesquisas para a obtenção de materiais orgânicos com propriedades magnéticas são muito recentes e só foram iniciadas na década passada. Segundo o pesquisador da UFSCar, até hoje cientistas do mundo inteiro se perguntam se é possível produzir um material puramente orgânico com propriedades magnéticas. "Alguns grupos já haviam conseguido sintetizar compostos orgânicos dotados de magnetismo, porém apenas em quantidade microscópica e com sinais muito fracos, o que colocava em dúvida os resultados", afirma Araújo-Moreira. "Nossa equipe conseguiu fabricar quantias macroscópicas da grafite magnética, que, embora muito pequenas, podem ser vistas a olho nu. Além disso, esse novo material é dotado de ferromagnetismo, uma propriedade que lhe garante uma magnetização permanente e a capacidade de atrair metais. Outra prova disso é que ele é fortemente atraído por um ímã a cerca de 10 centímetros de distância", diz ele. O ferromagnetismo da grafite produzida pelos pesquisadores da UFSCar e da Udelar tem também a vantagem de se manter estável à temperatura ambiente. Isso é importante porque todos os magnetos obtidos a partir de carbono no passado só apresentam ferromagnetismo em baixíssimas temperaturas, próximas do zero absoluto (-273°C), o que limitava seu campo de aplicação. 80 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

O material descoberto pelas equipes dos professores Mombrú e Araújo-Moreira é estável ao longo do tempo porque possui um sinal magnético que não sofre degradação com o passar dos meses. A amostra de 0,5 milímetro quadrado produzida pelos pesquisadores em maio de 2004 continuava com seu magnetismo inalterado nos dez meses seguintes à sua sintetização. Essa propriedade é fundamental para a construção de dispositivos e equipamentos com grande durabilidade.

e os resultados da pesquisa, feita em nível laboratorial, forem bem-sucedidos em escala industrial, a descoberta de uma grafite com propriedades magnéticas deverá inaugurar uma nova fase na engenharia de materiais. Como é um material recém-descoberto, ainda não se sabe exatamente em que ele poderá ser aplicado. Os pesquisadores acreditam que ele será empregado num grande número de dispositivos de alta tecnologia, como sensores, atuadores (dispositivos que se movimentam em uma linha de produção de semicondutores ou em bancadas de análises clínicas, por exemplo), detectores, além de equipamentos dos setores aeroespacial, químico, eletrônico, de telecomunicações e biotecnológico. Por ser, por enquanto, o único material magnético 100% biocompatível, a grafite magnética tem chances de ser usada também na medicina. "Marcapassos e válvulas cardíacas são baseados em processos magnéticos e um material 100% orgânico, que não causa rejeição no organismo humano, e magnético permitirá novos avanços nesses aparelhos", diz Araújo-Moreira. "Além disso, pesquisadores canadenses estão começando a pesquisar o uso da grafite magnética para tratamento de câncer." Aceito para publicação no mês de março na revista científica Physical Review B - Rapid Communications, o estudo já atingiu uma boa repercussão. "Se ficar comprovado que os resultados são

reproduzíveis e que a amostra não contém impurezas de ferro, esta é uma grande descoberta na área de ciência de materiais", disse a pesquisadora russa Tatiana Makarova, da Universidade Umea, na Suécia, considerada uma das maiores pesquisadoras na área de carbono magnético. "As diferenças entre o carbono magnético produzido pela equipe liderada pelo professor Araújo-Moreira e outros materiais similares estão na amplitude do efeito magnético do primeiro e no fato de seu método de produção ser barato", diz ela. O próximo desafio dos cientistas é demonstrar que é possível produzir carbono magnético com as mesmas características - sinal forte em temperatura ambiente e estável ao longo do tempo - em grandes quantidades e desenvolver um processo industrial. No âmbito das negociações com a empresa Nacional de Grafite está também previsto um trabalho conjunto a ser submetido às agências de fomento à pesquisa com o objetivo de desenvolver suportes para catalisadores baseados em carbono magnético. Esses suportes seriam usados para acelerar reações químicas geradoras de produtos químicos. Simples e econômico - Para fabricar a grafite magnética, o professor AraújoMoreira e seus colegas recorreram a um processo inédito, diferente de tudo que já havia sido feito até então. "Trata-se de um método muito simples, baseado num processo químico controlado de oxidação-redução (redox) em fase vapor, que, por ser econômico ao utilizar reagentes comerciais de baixo custo, permitirá, no futuro, sua fabricação e comercialização por pequenas empresas." A produção em laboratório é feita em um forno com atmosfera controlada, onde são colocados dois cadinhos (recipientes cerâmicos que suportam altas temperaturas), um deles com grafite comercial em pó e outro com um oxido de um metal como, por exemplo, o de cobre (CuO). O forno é mantido aquecido a 1.200°C durante 12 a 16 horas. Sob esta temperatura, o oxido de cobre se decompõe e é reduzido a cobre metálico. O oxigênio liberado por ele provoca a oxidação controlada da grafite e introduz em sua estrutura peque-


recorda Araújo-Moreira. Naquele ano, a revista de divulgação científica americana Nature publicou um artigo que mostrava a possibilidade de fabricação de uma variante de carbono puro magnético. A terceira integrante da equipe, a química uruguaia Helena Pardo, faz atualmente doutorado no Instituto de Física da Faculdade de Química da Universidade de Ia República de Montevidéu, no Uruguai, sob a dupla orientação de Araújo-Moreira e Mombrú.

Topografia do grafite magnético em microscopia de força atômica (acima). Imagem mostra trilhas ferromagnéticas [nas partes mais claras) típicas de materiais magnéticos

nos defeitos, em forma de cavidades, que, supõem os pesquisadores, são responsáveis por conferir propriedade magnética ao mineral. "Na verdade, a origem do fenômeno de magnetismo nesses materiais ainda não foi totalmente elucidada", diz Araújo-Moreira. O pesquisador aponta que dados mais recentes obtidos por meio de simulações em computador indicam o aparecimento de um forte ferromagnetismo como conseqüência da falta de átomos de carbono na estrutura atômica típica da grafite. A simulação retira um átomo do carbono e ele fica magnético. No

laboratório, provavelmente, essa ausência de átomos de carbono na estrutura da grafite é alcançada por meio de um ataque químico. A descoberta do novo material é resultado de três anos de intensas pesquisas. "Tudo começou em 2001, durante o pós-doutoramento do pesquisador uruguaio Álvaro Mombrú no Departamento de Física da UFSCar, sob minha supervisão. Foi aí que nasceu a idéia de estudarmos as propriedades físicas e químicas da grafite, da qual derivou a descoberta do processo químico que levou à obtenção da grafite magnética",

Caracterização detalhada - Para certificar-se de que o material produzido tinha realmente características únicas, a equipe submeteu a amostra a uma extensa bateria de testes, realizados no Laboratório de Semicondutores do Departamento de Física da UFSCar, trabalho realizado pelo pesquisador Giovanni Zanelato, e no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), com o professor Edson Leite, da UFSCar, além da colaboração do professor Oscar Ferreira de Lima, do Laboratório de Materiais e Baixas Temperaturas (LMBT) do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O experimento realizado nesse último laboratório, feito com um magnetômetro Squid (Superconducting Quantum Interference Device ou Dispositivo Supercondutor de Interferência Quântica) mediu a variação da magnetização do material com a temperatura. Esse teste demonstrou que a grafite permanece magnética até 80°C. Além dos exames laboratoriais que demonstraram a efetividade do método químico, a amostra foi submetida a uma análise química com um espectrofotômetro de absorção atômica que verificou a pureza do material, constatando a ausência, em níveis indesejados, de qualquer impureza metálica ferromagnética tais como ferro, cobalto e níquel. Um exame complementar de microscopia eletrônica de varredura confirmou a existência dessas cavidades na grafite, provocadas pelo ataque químico. Por fim, observações realizadas com um microscópio de força atômica e de força magnética mostraram, em imagens bi e tridimensionais, a existência de trilhas magnéticas na grafite, características dos metais ferromagnéticos, materiais que atraem metais. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 81


ANTROPOLOGIA

Em nome

de Deus Projeto resgata relação real entre missionários e indígenas CARLOS HAAG

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les sentam no trono de São Pedro, mas suas preocupações estão mesmo em Paulo, o primeiro "missionário" que foi até os "pagãos" para levar a mensagem cristã. Assim, sintomaticamente, os missionários estiveram no foco final do último papa e no primeiro do novo. "Os missionários são o pão partido para a vida do mundo que fazem ressoar com sua ação as palavras do Redentor e não duvidam em dar vida ao Evangelho", escreveu João Paulo II num documento póstumo recém-revelado pelo Vaticano. "Devemos ser missionários, animados por uma santa inquietação: levar a todos o dom da fé. O amor de Deus nos foi dado para que chegue aos outros. Recebemos a fé para doá-la aos outros", anunciou Bento XVI em sua primeira homília aos cardeais, um dia após ser eleito pontífice. Longe das sutilezas teológicas, os missionários influenciam até mesmo a sociedade laica: não foi sem razão que, por causa de questões de terra, uma freira norte-americana foi baleada na Amazônia. A ação missionária é uma questão complexa-em especial a iniciada no século 16, pelos jesuítas, na América portuguesa recémdescoberta, junto aos nativos - e continua ainda


hoje a inquietar a Igreja. "João Paulo II esforçou-se em ser o grande missionário", observa Paula Montero, coordenadora do projeto temático Missionários cristãos na Amazônia brasileira: um estudo de mediação cultural, apoiado pela FAPESP. Mas apesar desse labor simbólico do Vaticano, desde os anos 1970, a intervenção missionária junto aos povos indígenas é vista de maneira maniqueísta, como um choque cultural de vencedores e vencidos (ou aculturados). "Esse encontro não foi apenas dizimador, mas propiciou o estabelecimento de relações entre culturas", revela a pesquisadora. "Uma das grandes questões que nos são colocadas hoje é compreender o sutil processo pelo qual as diferenças, que supostamente estariam condenadas ao desaparecimento, ante a globalização, são recriadas e reinventadas. Em nossa pesquisa, interessa-nos sobretudo perceber esse processo dinâmico de reelaboração cultural, quando mediado por um ator social particular: o missionário cristão", diz Marco Rufino, da equipe do projeto, cujos resultados serão lançados em livro pela Editora Globo.

"Assim, o foco da reflexão se desloca, pois, do ponto de vista das sociedades indígenas para situar-se nos espaços de produção das relações de interação; trata-se de compreender como dois (ou mais) pontos de vista interagem para produzir significações compartilhadas em níveis cada vez mais generalizantes", explica a coordenadora. "Um motivo a mais para voltar à história das missões: como história emblemática da estrutura pluricultural da modernidade, já que elas apresentam a primeira etnografia da alteridade, cujo valor histórico transcende a dimensão 'religiosa', e, por outro lado, constituem uma arqueologia de todas as ciências humanas que, por meio dos encontros-choques entre diversas civilizações, continuam narrando o caminho dos homens e o 'sentido' que eles se esforçam para dar às suas vidas", avalia outro membro da equipe, Nicola Gasbarro. "De direito e de fato, eles são os primeiros antropólogos da modernidade", completa o pesquisador. Curiosamente, o movimento missionário - que se modificou muito ao longo da história e, ao contrário do senso comum, não foi apenas um braço do

Estado colonizador (embora seus interesses possam, por vezes, se interligar), mas dotado de vontade própria - tem sua origem no desejo de universalidade do cristianismo ao se colocar como o "verdadeiro culto do verdadeiro Deus". Nesse movimento, a Igreja é estruturalmente missionária, nota Gasbarro. "As missões são uma prática de evangelização que permite passar da universalidade potencial para a universalidade atual e histórica." Na base desse edifício está o conceito de salvação, organizador de diferenças ao reunir, sob sua "grandeza espiritual", a pluralidade. Todos, até índios, são homens e precisam ser salvos. "O grande projeto missionário da Contra-Reforma nasce de uma urgência cultural: o Ocidente tenta compreender as outras culturas em termos de 'civilização' e de 'religião', porque se trata das estruturas fundamentais da vida social", observa o pesquisador. A religião vira construtora do real. A descoberta dos novos povos do Novo Mundo foi uma chance de ouro para a Igreja colocar em prática o novo conceito de "salvação" como amálgama universalizante. Da teoria à prática, poPESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 83


rém, havia todo um oceano a separar jesuítas e nativos. O modelo cristão monoteísta existia em oposição ao antigo paganismo clássico: o Deus único precisava de rivais para poder exibir seu poder maior. O problema é que a religiosidade dos índios não servia para isso: eles efetivamente não acreditavam em grandes forças superiores. Foi o início de uma longa e penosa "tradução" da religião (o que explica por que, antecedendo a catequese, houve a necessidade da escrita das gramáticas dos nativos) e da barganha entre as duas culturas. Ao mesmo tempo, foi preciso fazer do índio um "civil" para que ele pudesse receber a dádiva espiritual. "No começo da catequese trata-se, portanto, da idéia de tornar os índios 'homens' (= civis) para fazê-los, depois, cristãos, idéia esta que acompanha todo o processo de evangelização no Brasil colonial", diz Cristina Pompa, também pesquisadora do projeto. Dessa forma, então, não se pode mais falar no encontro entre missionários e indígenas como "um choque entre dois blocos monolíticos, um impondo seus esquemas culturais e religiosos e outro absorvendo-os, sendo destruído (ou aculturado) por eles ou, por outro lado, 'resistindo' em volta de sua imutável tradição", continua a autora. Significa a produção de um consenso negociado. "Há um cálculo do índio também no que diz respeito às relações com o missionário e, simplesmente, não se pode falar em fusão de culturas, mas num conjunto de relações que se acordam em torno de alguns interesses comuns que acabam por produzir relações interculturais", explica Paula Montero. Tupã se torna o equivalente do Deus monoteísta cristão, Nossa Senhora se transforma em Tupansy e os pajés viram os diabos. "O imaginário europeu construiu a alteridade indígena a partir de uma revisão e de uma rearticulação de algumas categorias religiosas: a fé, a profecia, a esfera demoníaca. A partir daí, contruiu-se o projeto missionário. Paralelamente, o 'outro' indígena realizava a sua leitura da alteridade colonizadora e missionária, tentando absorvê-la e plasmá-la segundo suas categorias: o sim84 ■ MAIO DE 2005 • PESQUISA FAPESP111

bolismo mítico-ritual", continua Cristina. Desde o início, então, não se observam polaridades irredutíveis, mas um jogo, uma "tradução", na procura de um patamar comum, uma dimensão de trânsito simbólico que teve no "religioso" a sua linguagem de mediação.

em negar a truculência com que os nativos foram tratados, o projeto revela que até mesmo "a adesão ao uso de símbolos cristãos traduz a dinâmica histórica pela qual os indígenas buscavam instrumentos de afirmação política no mundo colonial, construindo um universo simbólico compartilhado por outros atores sociais e resconstruindo com esses uma nova hierarquia das relações sociais e de poder". Mas novos tempos se seguiram e uma nova Igreja pedia um novo missionário. A partir do século 19, a indexação é invertida: a civilização passa a ser o novo código generalizador do mundo no lugar da "salvação". "Ao longo do século 20 vai se consolidando uma nova noção de cultura, reificada pelas lutas políticas dos séculos 19 e 20 como um conjunto de

traços específicos hereditários", conta Paula. Nos anos pós-1970, os missionários viram agentes culturalistas. "O campo religioso foi relativamente neutralizado como campo legítimo da tradução, a cultura nativa compreendida como rito, cerimônia e tradições, já estava constituída como tal na percepção desses atores. O campo da tradução pôde assim deixar a gramática do religioso e adotar o campo da 'cultura' (da identidade étnica ou etnicidade) como linguagem de negociação de sentidos", observa a coordenadora. "Nos anos pós-1970, o código de salvação dos missionários se move do espiritual (a alma a ser convertida) ao cultural (a tradição a ser salva), sem perder sua capacidade de organização de sentidos." Toda essa reversão se consolida, nos anos 1960, com o Concilio Vaticano II: na tentativa de incorporar a uma instituição europeizante os muitos bispos não-europeus, a Igreja assume em seu vocabulário o conceito antropológico de cultura. Num primeiro momento, isso é levado ao extremo, em especial pelos ideólogos da chamada Teologia da Libertação, dos anos 1970, que "reúne simbolicamente", observa Rufino,"os grupos indígenas do continente aos operários da indústria, aos camponeses e agricultores desterrados, aos negros vitimados pelo preconceito, aos marginalizados dos centros urbanos e quem mais coubesse no amplo conjunto de excluídos".


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Cai em declínio o modelo religioso de conversão. "A nova idéia de converter o índio é apoiá-lo em suas lutas políticas. O missionário é agora o convertido, só que nas questões de sobrevivência do índio", nota Paula. O pontificado de João Paulo II marcou um ponto de inflexão nesse movimento "ortoprático" de reunião de fé e práxis. Um crítico severo (ao lado do então cardeal Ratzinger), João Paulo II defendeu um novo ideal missionário sob a forma da "inculturação", um mergulho não nos problemas sociais, mas na alteridade. O missionário é reinventado e a Igreja pretende ser absorvida nas muitas diversidades. "João Paulo colocou a questão cultural no centro do seu pontificado. Daí a importância de suas viagens, em que a Igreja imergia nas diferenças para tentar encontrar um de0 PROJETO Missionários cristãos na Amazônia brasileira MODALIDADE Projeto Temático COORDENADORA PAULA MONTERO - Departamento de Antropologia da USP

INVESTIMENTO R$ 274.968,00

nominador comum. As peregrinações passam a ser elemento de unificação das diversidades", diz a pesquisadora. Dessa maneira, João Paulo II foi mesmo o grande missionário. Espiral - O dilema do religioso dos dias de hoje é reverter o passado, numa curiosa e inusitada espiral do tempo: para que o índio possa ser salvo é preciso que ele volte a recuperar os traços que tragam novamente a sua alteridade como índio. Assim, os novos missionários caminham no sentido inverso de seus antecessores, que trouxeram a civilização aos nativos. Agora é preciso ensiná-los novamente o que é ser indígena. Esse é o novo discurso do novo momento do movimento. Mas o refluxo do catolicismo trouxe à cena outras religiões (protestantes, universais, batistas, Assembléia de Deus etc.) que também resolveram "cuidar" do índio. São as chamadas "missões transculturais", que, nota Ronaldo de Almeida (também da equipe), "anunciam o Evangelho às culturas, remodelando o universo de valores, rituais e comportamentos segundo os parâmetros da religiosidade evangélico-fiindamentalista". Intervencionistas, elas acabam por se aproximar do modelo jesuíta colonial e, ao contrário da inculturação católica, não se interessam em auxiliar na luta política dos indígenas, mas apenas no aspecto religioso em si.

"Muitos missionários tendem a se transformar em assistentes sociais, em funcionários de organizações humanitárias, talvez até apóstolos de revoluções políticas. Eles silenciam quanto ao anúncio do Evangelho como esperança de vida eterna, nada falam da necessidade do batismo para participar dessa promessa. Chegamos a desencorajar as conversões ao cristianismo, invertendo o papel do missionário": palavras do então cardeal Joseph Ratzinger. "Creio que a chegada de Bento XVI coincide com o fim do ciclo das potencialidades do Concilio Vaticano II. Ele é um teólogo e já avisou que não pretende correr o mundo, como o antigo papa. O desenvolvimento da questão cultural continua central com o novo pontífice, mas ficará no plano da reflexão, da doutrina, e não no do ritual, como ocorreu com João Paulo II, que foi ao encontro de outras culturas", avalia Paula. Ele se mostra disposto a se abrir ao outro, diz, "mas buscando uma universalidade ética da condição humana para além das diversidades culturais". Nada leva a pensar o contrário do homem que, em Dominus Iesus, documento escrito por ele em 2000 como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, negava que outras religiões do mundo, que não a cristã, pudessem oferecer a salvação aos povos. "Converter os povos ao catolicismo é um dever urgente", conclamava então. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 85


I HUMANIDADES

ECONOMIA

Estudos revelam a relação entre Legislativo, Executivo e os grupos de pressão de interesses

oi de um prosaico "cháde-cadeira" do século 19 que nasceu o hoje tão mal-afamado "lobby": representantes de agricultores do Estado de Virgínia, nos EUA, se plantavam nas ante-salas {"lobby", em inglês) do Congresso para, na pressão da conversa, influenciarem as decisões dos políticos. Por aqui, alguns entreviram sua presença ainda incipiente na tramitação de leis como a criação da Petrobras ("O Petróleo é nosso!") ou o Estatudo do Trabalhador Rural. Mas o lobbying cresceu mesmo em outra época. "O seu desenvolvimento ocorreu em meados dos anos 1970, quando o país estava sob o regime militar, que centralizou o processo de tomada de decisões no Executivo, fragilizando o Legislativo", conta Andréa Cristina de Jesus Oliveira, autora da pesquisa Lobby e representação de interesses, realizada na Unicamp. Longe de mera espera para pressionar, o lobbying do Executivo nacional se baseava na compra de acessos e resultados, por meio de corrupção e tráfico de influência. Não se esperaria nada melhor de uma ditadura e a prática se transformou num jargão popular para "negociatas". O curioso é que o "mal" que crescera nos corredores do Planalto com os generais teve o seu o apogeu com a democratização do país. "A partir de 1985 houve o fortalecimento do Congresso Nacional como poder político e, logo, dos grupos de pressão, que retomaram 86 • MAIO DE 2005 • PESQUISA FAPESP111

seu lugar no processo democrático", diz. Daí, uma inusitada verdade: "A atividade do lobbying, independentemente do formato que assuma, é essencial em sociedades democráticas, porque os tomadores de decisão são confrontados com uma complexa rede de interesses e a informação técnica que os lobistas levam a eles é fundamental, ao subsidiar sua análise sobre o melhor caminho a seguir. Ele se transforma em força social de aproximação entre a sociedade civil e o Estado", acredita a pesquisadora. Andréa, no entanto, reconhece que não é fácil extrair o estigma da prática. "A corrupção, o lobbying não-legítimo, sempre existiu e continuará existindo enquanto não houver um sério debate envolvendo sociedade e governo sobre os limites da atuação dos lobistas no Brasil" avisa. Nos EUA, por exemplo, o lobby, atividade prevista pelo exercício de liberdades previstas pela Primera Emenda, é regulamentado desde 1946. Aqui, em 1983, o então senador Marco Maciel apresentou o projeto de lei 6.132, ainda não votado, que dispõe sobre o registro de pessoas físicas ou jurídicas que exercem qualquer atividade que influencie o processo legislativo. "Ela não passa, porém, de uma tradução da lei americana de 1946.0 nosso lobbying tem peculiaridades de que ela não dá conta", afirma. Entre essas, a concomitância do foco de atuação: a via do tráfico de influência ou da informação. "O caminho da corrupção é caro e sem garantias. O grupo de pressão está sujeito, toda


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vez que o assunto voltar a apresentar riscos ou oportunidades, a ter que retomar relações espúrias e mais dinheiro será gasto. Além disso, no Brasil, o Executivo hoje compete em poder com o Legislativo: 85% dos 5 mil projetos são propostos por ele. Nada garante que uma conquista do lobbying de hoje caia por terra com a chegada de um medida provisória do governo", conta. Já, avalia a pesquisadora, a escolha pelo lobbying legítimo, que leva informações para o agente político, cria um canal positivo de comunicação com o governo e há grandes chances de ele ver sua pressão transformada em lei, de forma segura e duradoura. "A maioria dos lobistas que entrevistei é favorável à regulamentação do lobbying ç. há mesmo iniciativas, em face do desinteresse dos parlamentares, em criar uma auto-regulamentação da prática. Para eles, um debate sobre a realidade do lobby porá fim ao estigma e esclarecerá o seu real significado junto à opinião pública", considera. Os contrários a uma legislação são apenas mais pessimistas quanto aos resultados. "Eles argumentam que não há forma de garantir o fim da corrupção e que lei só traria menos liberdade à atuação legítima." Executivo - A grande questão, então, é o desinteresse dos parlamentares. "Não há vontade política para a regulamentação, tanto no Executivo como no Legislativo. Afinal, os próprios parlamentares, muitas vezes, cumprem o papel de lobistas ao intermediar a liberação de verbas para estados e municípios ou defender setores que representam ou de que fazem parte", diz Andréa. "Há, no Congresso, parlamentares que são donos de convênios médicos, universidades, agronegócios, indústrias etc. A lei do lobbying iria tirar a liberdade de ação que eles têm hoje", explica. Foi a Assembléia Constituinte que trouxe os grupos de pressão de volta ao Legislativo. "Muitos dizem que, na época, havia mais lobistas do que congressistas durante os debates da Constituição. Havia 383 grupos de pressão credenciados, entre esses o 'lobby do batom', grupo que defendeu causas feministas e questões como licença-maternidade, aborto, pátrio-poder, entre outras, que foram encaminhadas, com a ajuda dessa equipe, de forma decisiva", lembra. 88 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Segundo a autora, outros projetos foram aprovados com a participação decisiva de grupos de pressão, ao longo dos anos 1980, como o aumento da contribuição previdenciária, a reserva de mercado na informática, o estatuto da microempresa etc. O lobby nem sempre é "do mal". Ainda que essa teoria funcione várias vezes, nem sempre é perfeita. "Qualquer grupo de interesse pode se associar e montar uma estratégia de lobbying no Congresso. Porém uma ação dessas implica investimentos de porte e nem todos têm condições financeiras e estrutura para a prática. Só isso já leva a um desequilíbrio na esfera da representação de interesses. Um bom exemplo é a disparidade entre o lobbying da Confederação Nacional da Indústria (CNI), com vastos recursos, e o

do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que depende da mensalidade de seus associados para se manter", observa Andréa. Essa diferença, aliás, é o tema de outra pesquisa, o Lobby da indústria no Congresso Nacional, de Wagner Pralon Mancuso, da USP, que contou com o apoio da FAPESP. Segundo dados apurados pelo professor, as classes produtoras, desde 1996, fizeram chegar à Câmara e ao Congresso 233 propostas de alterações legais, das quais 67,8% foram aceitas pelos parlamentares. Dentre as leis e emendas constitucionais aprovadas, 85% delas foram ao encontro do desejo dos grandes industriais brasileiros. Ao se analisar a estrutura das vitórias, percebe-se bem o poder de fogo do grupo de pressão empresarial: 79,3%


delas foram em questões ligadas à infra-estrutura; 74% sobre legislação trabalhista; 62,5% no quesito financiamento; 61,4% de sucessos sobre a regulamentação da economia; mesmo na questão tributária, em que têm menos influência, eles venceram em 56,4% das questões votadas. E fazem, pessoalmente, um bom número: há 100 parlamentares que se apresentam como empresários e, ao se juntar outros 150 políticos que se alinham com eles, a bancada empresarial consegue um lobbying e tanto: 250 parlamentares ante 50 políticos da bancada de sindicalistas. "Minha tese vai de encontro aos que sustentam a posição da debilidade política da indústria no Brasil, que representam os empresários do setor como inábeis para a ação coletiva e que atribuem isso à presença do sistema cor-

porativista de representação de interesses", avalia. Sucesso - "A indústria não somente tem sido capaz de identificar projetos de lei referentes ao custo Brasil e de definir e defender seu ponto de vista em relação a eles, mas também tem obtido um índice de sucesso elevado", observa. As várias correntes históricas e sociológicas por décadas denunciaram a incapacidade do setor industrial de liderar um projeto de desenvolvimento econômico independente para o país, já que viveriam cindidos por visões de mundo e interesses incompatíveis. A partir dos anos 1990, no entanto, com a inflexão liberal e a retração do Estado, analisa Mancuso, o empresariado nacional tomou a bandeira da redução do custo Brasil (conjunto de fatores que prejudicam a com-

petitividade das empresas do país ante as estrangeiras: leis trabalhistas, falta de infra-estrutura, tributos elevados, entre outros fatores) como forma de se transformar num ator político eficiente. A chegada de produtos importados ao mercado, com a nova onda liberal, acabou causando essa inusitada reunião de interesses do setor industrial, que passou a buscar com mais ênfase a competitividade por meio do lobbying junto ao Executivo e ao Legislativo. "Assim, mesmo reconhecendo os limites estruturais da burguesia industrial brasileira, minha pesquisa sustenta que os produtores realizaram uma atividade política intensa, e muitas vezes bemsucedida, ao longo de todas as fases do processo de industrialização e, hoje, continuam atuando e colhendo sucessos importantes", nota o autor. Por meio de uma CNI profissionalizada (na Constituinte ela se saiu mal em seu lobbying) para a pressão, os industriais passaram a realizar um trabalho constante de identificação e monitoramento de proposições legislativas que teriam impacto no custo Brasil. "É importante compreender que o clamor dos industriais pela redução do custo Brasil não foi motivado apenas pelo anseio de enfrentar os concorrentes estrangeiros. O interesse pelo mercado interno também desempenhou o seu papel. Para os empresários industriais, a conquista dos novos mercados no exterior não pode prescindir dos desdobramentos benfazejos que a redução do custo Brasil exerceria sobre a competitividade das suas empresas." A CNI, em sua Agenda Legislativa de 2000, assume "a prática de um lobby aberto e permanente", cujo alvo prioritário, nota Mancuso, é o Executivo. À proporção que as decisões empresariais determinam em grande medida o perfil da economia, há, nota o autor, "nas decisões do Estado deferência e atenção especiais às necessidades do empresariado. Assim como os políticos, a população percebe que a própria sorte está ligada à sorte dos empresários", diz. "A lei de falências e a alteração da MP 232 são dois bons exemplos que parecem sugerir que o sucesso político do empresariado industrial se mantém sob o governo Lula", afirma Mancuso. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 89


I HUMANIDADES

MUSICA

Esse danado do samba Academia tenta entender como gênero transformou-se no mais importante da música brasileira no século 20 GONçALO JúNIOR

nunciaram e garantiram que o samba ia se acabar. Assim diria Assis Valente (1911-1958), numa paródia moderna à sua famosa composição sobre o fim do mundo, cantada por Carmen Miranda nos idos de 1930. Disseram até que o gênero fora morto pela bossa nova e, mais adiante, pelo tropicalismo. Décadas depois, nos anos 1990, o carrasco teria sido o pagode romântico de estúdio feito com sintetizadores. Embora tenha enfrentado a concorrência de vários modismos nos últimos vinte anos e apareça pouco na mídia hoje, o samba é o mais popular e duradouro ritmo musical brasileiro do século 20, além de uma das mais 90 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

expressivas manifestações culturais do país - indissociável do Carnaval. Assim como o ]azz e o blues na América, o samba atravessou um século com mutações, fusões, adesões e experimentos. Um ritmo que se reacende a cada ano na folia de momo e nos discos de seus mais vigorosos representantes hoje: Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre ou Luis Carlos da Vila, entre outros. Como explicar tantas mortes anunciadas e renascimentos e compreender tamanha popularidade que ainda desfruta? Ou por que o samba se impôs nos primórdios da indústria fonográfica e radiofônica ou foi adotado por Getúlio Vargas para estabelecer uma identidade cultural? Esses e outros temas são discutidos em três teses de doutorado das mais

importantes porque ajudam a redimensionar os papéis histórico e cultural do samba. O curioso é que os autores são todos paulistas, fato que parece ter ajudado a dar um útil distanciamento para que fossem feitas leituras coincidentemente complementares e reveladoras de uma música tão marcante como sendo carioca, embora tenha vindo da Bahia e se instalado também em São Paulo. Em Abençoado e danado do samba, Ricardo José Duff Azevedo recorreu a um extenso acervo de 7 mil letras de samba para mostrar valores da tradição oral brasileira. Ele explica por que canções do gênero fazem parte do imaginário popular. Apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do


Samba elegante: cultura popular desprezada pela elite, mas fonte de criação erudita

Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a dissertação partiu do princípio de que as letras de samba representam um extraordinário acervo de algo que poderia ser chamado de "discurso popular". Azevedo destaca que as culturas populares e suas manifestações tendem a se processar por meio de "padrões de longa duração". O fenômeno seria contrário ao das culturas moderna, de massa e erudita, que seguiriam "padrões de curta duração" - quase mecanicamente em busca do "novo", da "nova forma" etc. Assim, nos sambas, por estarem vinculados aos processos de longa duração, os procedimentos com a linguagem e muitos temas seriam recor-

rentes no decorrer de todo o século 20 até hoje. Alguns deles: a família, o trabalho, a festa, o envelhecimento, a morte, a religiosidade, o "nós", entre outros assuntos ligados à vida concreta e cotidiana. Malandro - A tese de fôlego de Azevedo - ainda sem editor - reúne cerca de 500 letras de samba, recolhidas de um universo de mais de 7 mil músicas, das quais fez uma pré-seleção de 4,8 mil. Em vez de recortar períodos históricos, ele procurou demonstrar recorrências num espectro amplo, o que permitiu uma outra compreensão da importância do samba. O autor considera um equívoco, por exemplo, o fato de muitos estudos localizarem o "malandro" nas décadas de 1930 e 1940 e falarem de

seu "desaparecimento". O que pode ter desaparecido, explica, é uma certa versão do malandro. "O samba fala de malandragem e adota um 'tom malandro' desde o primeiro samba gravado até agora." Na verdade, o malandro nunca existiu, isso sim, num discurso mais culto, também presente nas letras da música popular brasileira. Ao mesmo tempo que as culturas populares costumam ser solenemente desprezadas pelas elites culturais, têm marcado e sido fontes de parte significativa da cultura erudita brasileira através de todo tipo de apropriação. "Defendo a idéia de que as letras de samba só podem ser compreendidas e avaliadas quando vistas como expressão de um determinado modelo de consciência. No âmbito da música poPESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 91


pular brasileira vejo o tropicalismo como a representação mais acabada e nítida de um modelo que chamei de oficiar." O autor utilizou várias letras tropicalistas de forma comparativa para ressaltar as características das letras de samba. Enquanto as composições tropicalistas tendem a pressupor leitura, releitura e interpretação da realidade vista por seus autores, as de samba costumam ser criadas para o compartilhamento, a comunicação imediata e a memorização, sempre por meio de temas amplos, capazes de gerar grande identificação entre as pessoas. Daí sua popularidade e massificação. Dentro dessa lógica, trata-se de uma produção para a qual a música convida a comunidade a participar, "uma vez que sua função como espectador não é aceitar passivamente sua obra, mas repeti-la novamente para si mesmo". No caso do tropicalismo, por exemplo, esses temas tendem a desaparecer do discurso escolarizado e oficial, que optou por temas mais específicos de uma forma muitas vezes distanciada, analítica e impessoal, como se propusesse uma "teoria". "Não pretendo criticar o tropicalismo, dizer que o samba é melhor ou pior, mas, sim, ressaltar que as letras do tropicalismo foram criadas a partir de um modelo construtivo e de padrões éticos e estéticos diferentes daqueles utilizados pela maioria dos sambistas, sejam eles alfabetizados ou não." Indústria - Cada vez mais o samba deixou de ser, nas primeiras décadas do século 20, uma música tradicional para se tornar um produto da assim chamada indústria de diversões. A possibilidade de profissionalização do músico popular, a chegada do rádio comercial - em busca de novidades - e o projeto nacionalista do governo de Getúlio Vargas mostraram o envolvimento de boa parte da sociedade brasileira na criação do "samba nacional", um misto de tradição e modernidade. Essa é a síntese da tese de José Adriano Fenerick, Nem do morro, nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural 92 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

1920-1945 - também defendida na FFLCH da USP.

enerick viu na modernização do Rio de Janeiro nos primórdios do século passado, em sintonia com o surgimento de novos meios de comunicação, um cenário propício para que o samba sofresse inúmeras transformações. Assim, a partir da década de 1920, com a difusão da indústria fonográfica, o ritmo começou a se transformar e a se modernizar. Deixou de ser apenas uma festa feita em casas de mães-de-santo para ganhar outros significados. Num primeiro momento tornou-se gênero musical, identificado com a população negra do Rio de Janeiro. Logo após passou a ser um misto de música e dança, identificado com o Brasil. "O samba se acariocava e tomava a frente pelo fato de o Rio ter sido pensado, na época, como uma espécie de cartão-postal' do país", explica o pesquisador. A indústria do disco teve grande influência no surgimento desse novo tipo de música, que Fenerick denomina de "samba moderno". O samba de pagode, praticado como partido-alto, que era composto de improvisos a partir de um tema, podia durar um dia inteiro. Com sua gravação em disco não se pôde mais improvisar, ao menos na letra, pois se estabeleceu uma versão definitiva, registrada em acetato e que passou a ser difundida pela sociedade também através do rádio para todo país. Além disso, o sambista ganhou status de músico profissional, principalmente os cantores, já que os compositores tiveram inúmeros problemas para se estabelecer. Nesse aspecto, um dos tópicos tratados por Fenerick foi a ainda pouco investigada venda de sambas - quase sempre abordada como folclore por biógrafos e historiadores de música popular. "A necessidade de mostrar a música em um mercado tacanho gerou o 'jabá' ou, pior ainda, a famosa 'compra e venda' de samba." O aspecto sociológico do

samba foi investigado também. Se no imaginário popular ficou a lembrança de Francisco Alves e Carmen Miranda, entre outros, a do morro estava associada a algo ruim - representado como lugar de negro, de malandro, de vadiagem e de violência. Tudo de modo muito pejorativo. Essa imagem viria a se perpetuar desde, pelo menos, o fim da escravidão. O rádio também foi visto pelo governo, e por boa parte dos intelectuais, como um meio "nobre" de "educar o povo". Segundo o pesquisador, o discurso era potencializado, enfatizando o perfil ideológico que intelectuais e mesmo o governo Vargas queriam levar a cabo. Não por acaso, veio desse período a invenção do samba-exaltação, cujo maior símbolo foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964). Criou-se uma mitologia de que o "samba puro" vinha do morro, mas Fenerick concluiu que, tanto o samba do morro como o do asfalto (da cidade) estiveram, e ainda estão, interligados. "O sambista de rádio ia até o morro para comprar um samba para gravar, do mesmo modo que o sambista da escola descia até a cidade para desfilar no Carnaval." Varguismo - O aspecto político destacado por Fenerick aparece de modo mais aprofundado no estudo do músico e historiador Magno Bissoli, autor de Caixa preta: samba e identidade nacional na era Vargas - impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945, outra tese sobre o tema defendida na FFLCH da USP. Bissoli afirma que Getúlio Vargas, enquanto estava no poder, pegou uma carona na aceitação popular desse gênero musical e deu um impulso considerável à sua difusão e afirmação como ícone do país. "O processo de popularização do samba era iminente, mas certamente a política de Vargas contribuiu para a sua consolidação no panorama nacional", explica. A exemplo das doutrinas fascistas da Europa, o governo pós-1930 sempre se caracterizou pela exaltação ao nacionalismo. Mas como difundir, pergunta o pesquisador, uma identidade nacional num Brasil com apenas quatro séculos de história e cuja maior parte da população era composta de descendentes de escravos e pessoas marginaliza-


Sambando sob o olhar de Gegê: usando artifícios semelhantes a Mussolini

Emoção pura: música que convida a comunidade a participar ativamente

das, principalmente negros e mestiços? O varguismo então teria tentado forjá-la com bases na cultura, ao lançar mão de artifícios semelhantes aos usados por Benito Mussolini na Itália. Seus métodos iam desde a projeção de filmes em paredes de casas e a instalação de autofalantes em praças interioranas e em favelas à estatização de veículos de comunicação e censura da imprensa. O Estado Novo, deflagrado por um golpe em 1937, investiu nesse propósito por meio do controle cultural e midiático. Na verdade, já em 1931, o presidente Vargas criou o Departamento Oficial de Propaganda, que depois seria transformado no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, que se tornou responsável pela censura à imprensa e pela propaganda ufanista da ditadura. Com seu crescente e promissor poder de influência, o rádio se tornou fundamental nesse processo. Em 1940, a Nacional passou a ser controlada pelo Estado e a apresentar programas musicais de conteúdo popular. Um destaque dessa onda ufanista que tomou conta do país foi o compositor e radialista Henrique Foréis Domingues (1908-1980), o Almirante. Conhecido como "a maior patente do rádio brasileiro", ele se tornou "uma figura importante para a propagação, pelo rádio, da idéia de uma nacionalidade". No mesmo período foi criada a Orquestra Brasileira, com o maestro Radamés Gnattali (1906-1988), que, na onda nacionalista, interpretava a música brasileira com o mesmo tratamento destinado à estrangeira. Nessa época, narra Bissoli, surgiram diversas composições, algumas de sambistas famosos, que apoiavam Vargas e o Estado Novo. Nomes como Ataulfo Alves, João de Barro (Braguinha) e Moreira da Silva compuseram e interpretaram algumas dessas composições, num claro exemplo de que o samba estava, cada vez mais, atingindo a grande massa. Outro ponto levantado pela pesquisa foi o de que para ser aceito pela sociedade, principalmente pela elite, o samba devia "embranquecer" - ao ser adotado por cantores e compositores brancos. Como Noel Rosa, cuja obra deixou a certeza de que o samba não morreria nunca. Mais que isso, seria eterno. • PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 93


LIVROS

A verdade da metrópole inventada Ele deixou de ser capital federal, mas ainda é capaz de atuar como centro de "brasilidade", de como seria o país e a nossa "realidade": em resumo, o Rio de Janeiro continua lindo e continua a moldar o nosso imaginário. Em especial, por causa das telenovelas e do mundo criado pela Globo, ao mesmo tempo um êmulo e uma ilusão do que seria o Rio real do Brasil real. O estudo de Muniz Sodré e Raquel Paiva (dupla que foi bem-sucedida no estudo do grotesco na nossa telinha) é leitura obrigatória para quem quer entender o poder da televisão, capaz de construir uma cidade de fantasia, sem contradições

Cidade dos artistas Muniz Sodré e Raquel Paiva

*Ft^*S^

Editora Mauad 172 páginas / R$ 34,80

de classe, sem diferenças urbanísticas, onde toda uma comunidade é recriada de forma apaziguada e sem conflitos. A cidade vira, ao mesmo tempo, metáfora e cenário. Metáfora, já que a TV transforma o Rio em símbolo de Brasil, e cenário, já que todos os problemas reais apare-

cem resolvidos nos pequenos espaços e nas pequenas tramas que fazem o discurso noveleiro. "Os conflitos econômicos, se os há, são resolvidos na imaginária conciliação urbanística. A segregação espacial do Rio, a que a violência da delinqüência parece dar uma resposta simbólica, não se faz presente no discurso televisivo", observam os autores. A nova metrópole criada pelos autores de novela acaba, por ironia, em coincidir com o ideal moderno do "produto cultural à venda". Fim de cena e de novela. Um estudo que se lê com prazer. Editora Mauad (21) 2533-7422 www.mauad.com.br

Um maroto genial Os seus muitos críticos adoravam dizer que ele fora responsável pelo surgimento do charlatanismo da arte moderna com seus ready-made, seu urinóis e rodas de bicicleta que, ao avisarem que tudo podia ser arte, contestavam a própria idéia de que ainda era possível fazer arte. Pintor mediano que odiava os chamados "pintores de retina", com seus quadros bem executados, Mareei Duchamp preferiu chacoalhar o mundo artístico com suas idéias, mais do que com virtuosismo. Duchamp mostrou, nesse movimento, que o significado da arte não dependia apenas dos seus componentes específicos, mas também da sua utilização espe94 • MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Duchamp: uma biografia Calvin Tomkins Editora Cosac Naify 588 páginas / R$ 59,1

ciai, do seu "mau uso" irônico ou até mesmo de sua completa inutilidade. Mesmo com toda essa carga polêmica, muitos especialistas não hesitam em afirmar que, se a primeira parte da história da arte do século 20 pertence a Picasso, a segunda parte, sem dúvida, é um patrimônio do irreve-

rente Duchamp. A biografia de Tomkins é um clássico e chega ao Brasil numa edição caprichada, com projeto editorial e capa 3 de Waltercio Caldas. O livro inicia-se, de forma genial, com uma longa análise de O grande vidro, a obra mais famosa de Duchamp, motivo para o biógrafo desvendar para o leitor toda a galáxia de idéias contida nos painéis com formas enigmáticas. Pode não ser o centro do livro, mas há ainda a revelação, algo charmosa, da paixão do artista pela mulher do embaixador brasileiro nos EUA, também uma artista. Mas não se espere uma biografia de fofocas. Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br


LIVROS

O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império Fraya Frehse Edusp 272 páginas / R$ 59,00

A antropóloga Fraya Frehse partiu de uma extensa pesquisa em jornais, periódicos, crônicas, atas da Câmara, charges, fotos, entre outros documentos de época, para propor ao leitor uma visita imaginária pela São Paulo das décadas de 1870 e 1880, desvendando como se dava, nas ruas e esquinas, a chegada da modernidade. O problema é que com o novo ainda existia o passado e se dava, nesse movimento, o desencontro entre o que a cidade queria ser e o que era no real. Edusp (11) 3091-4149 www.edusp.com.br

Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha Tais Morais e Eumano Silva Geração Editorial 656 páginas / R$ 59,00

Não se sabia, mas havia um imenso manancial de documentos sobre o movimento comandado pelo PCdoB no Araguaia, nos anos 1970, e este livro é fruto de uma minuciosa análise das mais de 1.160 páginas dos 112 documentos que contam a história do que houve em detalhes inéditos. Geração Editorial (11) 3872-0984 www.geracaobooks.com.br

rn

A partilha do sensível Jacques Rancière Editora 34 72 páginas / R$ 20,00

A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 EvakSo Cibui di Mello

A outra Independência

Evaldo Cabral de Mello Editora 34 264 páginas / R$ 42,00

Mais um livro do notável historiador pernambucano, que, nesta obra, revela o pouco conhecido esforço de seus conterrâneos em conseguir a independência do Brasil a partir do ideário americano de liberdade federalista, alternativa ao conservadorismo de Pedro I. Editora 34 (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Nietzsche: civilização e cultura Carlos A. R. de Moura Martins Fontes 290 páginas / R$ 39,00

Um dos filósofos mais conhecidos do público em geral é, ao mesmo tempo, um grande desconhecido. De nazista anacrônico a libertário, ele já foi classificado de todas as formas. O que este livro nos mostra é a construção do real pensamento de Nietzsche e de como ele questionava o valor real da nossa civilização. Rejeitando a modernidade limitada pela moral cristã, "domesticada", ele queria um retorno grego. Martins Fontes (11) 3241-3677 www.martinsfontes.com.br

Antologia do negro brasileiro Edison Carneiro Editora Agir 592 páginas / R$ 54,00

A política da estética repensa a re a ão en "^ ^£^\ ' Ç tre arte e política, ^JL-JLrr I . ' thando a primeira categoria de seus limites estreitos para revelar a sua importância na experiência contemporânea. O professor da Universidade de Paris desenvolve aqui uma estética crítica que vai além dos paradigmas do moderno e da pós-modernidade.

Um clássico de 1950 que volta às livrarias trazendo 157 textos sobre a presença dos negros em todas as áreas do conhecimento e da história brasileiras. A organização é do folclorista Edison Carneiro e reúne artigos de Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Afonso Arinos, Mário de Andrade, Raul Bopp, Jorge Amado, entre outros.

Editora 34 (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Editora Agir (21) 3882-8200 www.ediouro.com.br

A partilha do sensível

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Os Nuer RODRIGO PETRONIO

Dissidentes de uma etnia semítica cujos fundadores estão perdidos há cerca de três mil anos, os Nuer, devido às estratégias que criaram para viver no deserto, não se assemelham em nada aos demais povos que já habitaram as margens do Nilo. Em termos de tecnologia, são inigualáveis. Não porque a tenham fartamente e em evolução; mas simplesmente porque não a têm. À exceção do fogo e da roda, de alguns medicamentos e paliativos para a dor, tudo o que não seja indispensável à manutenção de sua vida simples é não só desprezado, mas perseguido. Partem do princípio de que cada criação do homem é uma tentativa artificial de imitar da natureza aquilo que não lhe foi dado por princípio, e há um ser que, segundo eles próprios, fulmina qualquer um que queira emulá-la, dando a sua devida conseqüência: um homem que desenvolveu um sistema de asas que lhe possibilitasse voar foi visto cruzando os ares e desaparecendo. Depois souberam que ele tinha se transformado em uma grande avestruz: tinha enfim as asas das aves e o andar do homem, concluíram em sua sabedoria, já que seria abuso e absurdo, para os Nuer, que um homem, já tendo uma série de benefícios em relação aos pássaros, queira também ser pássaro. Esse pode parecer um lado moralista desse povo. Mas orna-o uma estranha inteligência: a vida no deserto os ensinou a respeitar cada qual os limites de que dispõem, e a ter sempre na consciência que estão nus no mundo e que um mísero adorno só pode ser conquistado em questão de milênios. Não a técnica em si, no caso a arte de voar, mas o seu merecimento. Segundo os Nuer, os homens só voarão de fato dentro de milhares de anos, quando enfim terão asas. Cada vez que vêem um avião cruzar o céu azul límpido riem até às lágrimas e ao desfalecimento; sabem que o vôo daquelas pessoas é uma mentira, e acham graça que tantas pessoas juntas acreditem juntas em uma única mentira e compartilhem conjuntamente uma única ilusão. Esse fato talvez tenha a ver com a concepção metafísica dos Nuer, que é muito interessante. Não crêem em Deus nem em deuses, não têm heróis nem mitos, não têm templos nem orações. Acreditam em algo bem mais complexo. Para eles, há o que podemos traduzir muito mal em nossas línguas por estado de graça. É uma espécie de transcendência ultra-radical. Descrêem da consciência individual; aquilo que nossos filósofos doutos chamam de imagem mental geraria náusea em um Nuer, ao passo que a simples hipótese de que o mundo seja a representação sensível de um mundo supra-sensível os faria corar de vergonha e tomar o autor dessa crença como um homem doente ou imbecil. O fato de cada um de nós apreender o mundo de uma maneira soa para eles como algo, em si, tedioso e sonífero. Eles desprezam o que nós chamamos de psicologia: crêem que as criaturas só são belas e vivas se as olhamos em seu abismo, ou seja, naquilo que elas têm de irredutível, de exclusivamente seu, e sempre que olham uma pessoa ou coisa, não procuram perceber essa pessoa ou essa coisa, mas olhá-la como se ela estivesse ausente. Se dois Nuer estão conversando, há um pacto segundo o qual cada um só perceberá o outro como uma encenação, um tipo de fantasma, imaginando todo o tempo que o verdadeiro interlocutor está, na verdade, naquele exato momento, sozinho andando em círculos no deserto sem lastro de ser vivo ou de gente. Essa é a maneira que os Nuer encontraram de matar a consciência pessoal: vêem tudo como um grande teatro e uma animação, e, ao contrário do que se imagina, não o fazem porque desconfiam que a realidade não exista, e que talvez sejamos, nós e todo o universo, apenas a sombra 96 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111


pálida de uma outra realidade verdadeira, mas sim para preservar todas as coisas ilesas em seu estado de graça, ou seja, na sua realidade intocável, intangível e intraduzível. Isso os Nuer chamam de Coisa: os objetos e os seres, quando em seu perpétuo estado de graça, encarnam a Coisa: uma pedra sob o sol em um banco de areia só pode ser aquela pedra, sob aquele sol daquela fase do dia e sobre aquela areia. Os Nuer imaginam o mundo, e evitam a sua carne: essa é sua estratégia e é assim que eles fazem as coisas pertencerem à grande Coisa. Para nós tudo isso se resumiria aos pobres conceitos de realidade, imaginação e representação. Quanto às artes, talvez possamos dizer que felizmente os Nuer não as tenham. Ou melhor, devido a essa concepção que narrei acima fica difícil querer que eles sequer suponham que exista alguém que leve a sério a idéia de imitação da natureza ou da realidade. Um dos aspectos mais interessantes dos Nuer é sua concepção de tempo. Desconhecem o que entendemos por história, e uma das poucas ciências que possuem é a história natural: medem a vida a partir do que, para nós, eqüivaleria à eternidade, e para eles o nosso conceito de milênio se aproxima de algo que imaginam ser equivalente a um suspiro ou a uma flatulência. Não concebem o tempo como círculo, nem como espiral e muito menos como uma linha reta. Para eles o tempo simplesmente não existe. Afinal, só para quem concebe vários cacos de instante como partes de uma unidade transcendente o tempo é possível, assim como o espaço e a extensão só existem para quem já está acostumado a ver o mundo em sua continuidade, que não deixa de ser uma bela invenção à qual nos acomodamos e nos dedicamos, em uma burocracia de milênios. Já o espaço é outro caso curioso: crêem que o espaço celeste onde a constelação se desloca e a terra onde movemos nossos corpos estão dentro de um grão de areia, uma espécie de pequeno ovo que repousa no vazio. Assim, nunca conseguirão experimentar as noções de distância e proximidade; o homem que está a quinze quilômetros está ao lado de quem está ao meu lado, e andam diariamente dentro desse universo compacto sem desconforto ou mal-estar. Apenas andam. Quanto às curiosidades e hábitos, é comum os Nuer elegerem objetos a esmo para serem, durante tempo indeterminado, seus companheiros. Houve o caso de uma mulher que arrastou consigo um tronco de árvore durante duas semanas, e o de um homem que dormiu com a sua sandália até o leito de morte. Uma criança casou-se com um tatu, se é que se pode chamar a essa aliança de casamento. Há alguns anos o exército britânico passou pelo Egito e dizimou os últimos representantes dos Nuer. O general fez um discurso alegando como imperativo a urgência do progresso e da história. Os Nuer não existem mais: arrojados definitivamente em direção ao supremo estado de graça e para fora da grande encenação da vida, habitam agora a flutuação indefinida da Coisa. O mais curioso de tudo, e o que, por sua vez, pode ser entendido como a mais inocente vingança possível, é que, onde quer que eles estejam e onde quer que se situe essa dimensão, com certeza não estarão dando a mínima para isso.

é escritor e pesquisador. Faz pós-graduação em Literatura Espanhola na Faculdade de Letras da USR Autor de História natural (poesia) e Transversal do tempo (ensaios).

RODRIGO PETRONIO

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 97


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