Ciência e Tecnologia
e no Brasil
Outubro 2005' N° 116
PARTíCULAS SOB O OLHAR BRASilEIRO CORTINA ANTICAlOR
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•
A
IMAGEM
DO
MÊS
VOAN DO NA CH I NA Duas novas espécies de pterossauro foram identificadas no nordeste da China. Os fósseis dos répteis voadores foram descobertos por paleontólogos da Academia de Ciências Chinesa, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Museu de Ciências da Terra do Departamento Nacional de Produção Mineral. O nome de um dos fósseis, o Nurhachius ignaciobritoi (a/to), relembra o paleontólogo brasileiro Ignacio Brito, professor de paleontologia da UFRJfalecido em 2001. O outro, o Feilongus youngi (abaixo), homenageia o paleontólogo chinês C. C. Young, pioneiro da pesquisa de pterossauros em seu país.
PESQUISA FAPESP 116 • OUTUBRO DE 2005 • 3
PeiqeT~nüisa
www.revistapesquisa.fapesp.br
FAPESP
40 45
14
CAPA
ENTREVISTA O neurocientista
Brasileiros participam
Miguel Nicolelis fala
da descoberta da mais antiga explosão de uma estrela
dos avanços no uso do cérebro para mover próteses e robôs
Observatório
Pierre
Auger capta raios cósmicos de alta energia
REPORTAGENS POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA
30
CI~NCIA
50
IMUNOLOGIA
7°
MEDICINA NUCLEAR Cristal desenvolvido no Ipen detecta tumores
PATENTES
e auxilia cirurgias
Proteção da propriedade intelectual amplia
72
benefícios sociais da pesquisa
34
TECNOLOGIA
ENGENHARIA DE MATERIAIS
BIOSSEGURANÇA Decreto regulamenta
Butantan testa novo
lei e permite a retomada das atividades da CTNBio
soro e uma pomada contra as picadas da aranha-marrom
35
FINANCIAMENTO Regulamentação de fundo reforçará
54
GEOLOGIA
atuação da pasta
Rio Taquari muda de curso e inunda permanentemente
de Ciência e Tecnologia
6 mil km2 no Pantanal
4 • OUTUBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 116
1-----------------------------------------------------
Filme plástico aplicado em cortina bloqueia raios solares e reduz consumo de energia
z v
46
MEDICINA A descoberta de marcadores biológicos está
26
ajudando a ampliar
DIFUSÃO
o resultado de
Biblioteca SciELO Brasil
terapias contra
ganha visibilidade e novos patrocinadores
a artrite reumatóide
64
FíSICA Velocidade na internet e centenas de computadores são o passaporte brasileiro para estudo de partículas subatômicas
90
BIOQuíMICA
SOCIOLOGIA
SEÇÕES
Novo tipo de proteína vegetal tem ação mais eficaz no combate a pragas agrícolas
HUMANIDADES
80
A IMAGEM DO MÊS
3
CARTAS
6
CARTA DO EDITOR
9
MEMÓRIA
10
CIÊNCIA POLíTICA
ESTRATÉGIAS ...........•.........
20
Como o Partido dos
LABORATÓRIO
Trabalhadores passou a enfrentar problemas
SCIELO NOTíCIAS
internos e grandes polêmicas
LINHA DE PRODUÇÃO
36 58 60
ao chegar ao poder central RESENHA························94
86
95
LIVROS .............•.......•....
CIÊNCIA POLíTICA .
6
FICÇÃO··························9
ENTREVISTA
98
CLASSIFICADOS
Leôncio Martins diz que a crise de hoje teve início há tempos, quando o PT
Consulta popular sobre
Capa: Hélio de Almeida
passou a conquistar
armas pede debate de mentes desarmadas
Foto: Nasa/GSFC/Dana
Berry
Tratamento
José Roberto Medda
pedaços
do aparelho do Estado
de imagem:
PESQUISA FAPESP 116 • OUTUBRO DE 2005 • 5
CARTAS cartas@fapesp.br
As águas vão rolar A edição 112 de Pesquisa FAPESP traz reportagem sobre o projeto de transposição do rio São Francisco, na qual fui um dos entrevistados. Na edição 114 o geólogo José do Patrocínio Albuquerque apresenta críticas àquela entrevista, concluindo sobre o teor do que não foi dito, de forma descortês e enviesada. Razão pela qual rebato os argumentos do ilustre professor para melhor informar os leitores desta revista. 1. Alcançar 37% da população do Polígono das Secas com um único projeto, ao contrário de ser limitado, é algo incomum, que demonstra a relevância do projeto de transposição para o país. Nenhum outro empreendimento hídrico no ordeste pode influenciar positivamente uma população tão expressiva, daí ser ele um projeto estratégico; 2. O professor reclama pelo destino de 2 milhões de trabalhadores, que sofrem com as secas da região do semi-árido, considerando que a criação de 540 mil empregos na região pelo projeto de transposição é insuficiente. Também diz que não há um programa de mitigação dos efeitos das estiagens sobre a produção agrícola. Será que a criação de mais de 500 mil empregos não constitui um efeito expressivo para essa mitigação? 3. Concordo que as cisternas são obras paliativas, emergenciais, que não vão solucionar o problema da sustentabilidade da população do semi-árido. Entretanto, o sentido do que afirmei na entrevista foi o de que é preciso implementar projetos estruturantes, como a transposição, pois não basta ter água para beber em alguns meses do ano. É preciso água para produzir! 6 • OUTUBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 116
4. Realmente afirmei que só uns cem açudes valem a pena no Nordeste porque eles dão garantia de água para a população, em especial para os 80% que residem nas cidades, mesmo na ocorrência das grandes secas. Os pequenos açudes são necessários
Espero que o professor Patrocínio possa refletir sobre essas colocações e colaborar para que o empreendimento que critica seja otimizado em benefício daqueles a quem visa trazer melhores condições de vida. JOÃo URBANO
CAG
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Engenheiro de Recursos Hídricos Brasília,DF EMPRESA APESQUISA
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QUE APÓIA BRASILEIRA
N OVART I S TroplNet.org
para distribuir a água no meio rural, mas não garantem a sustentabilidade da produção nas secas plurianuais, comuns na região. A proliferação de pequenos açudes, grandes evaporímetros, retira água dos açudes que ficam rio abaixo e que são responsáveis pelo abastecimento da área mais populosa da região. A produção hídrica das bacias decrescerá com a proliferação dos pequenos açudes; 5. Jamais afirmeique os pequenos produtores e os minifúndios serão desapropriados. Muito menos onde indica o professor, pois os canais do projeto não atingirão as áreas por ele mencionadas, apenas colocarão água nos rios que abastecem boa parte da produção da agricultura familiar da área. O Inera só fará desapropriações ao longo da faixa dos canais, onde houver latifúndio e terras aptas à agricultura, evitando que uns poucos se beneficiem de um investimento pesado da sociedade.
Getúlio e Juscelino Em nome do CPDOC/ FGV agradeço a nota "Getúlio por inteiro na internet" (edição 115), sobre a digitalização dos documentos do arquivo pessoal de Getúlio Vargas. Só tenho a informar que o CPDOC não possui o acervo do ex-presidente Juscelino Kubitschek, mas artigos de pesquisadores sobre o período. De ex-presidentes, além de Getúlio Vargas, o CPDOC possui os arquivos de Wenceslau Brás, Café Filho, Eurico Dutra, João Goulart, Ernesto Geisel, Costa e Silva (somente fotos) e Tancredo Neves. SUELY
BRAGA
CPDOC/FGV Rio de Janeiro, RJ
Reciclagem correta Na reportagem "Aproveitamento total" (edição 114), a informação de que o processo de reciclagem da embalagem longa-vida aproveitava apenas o papel e direcionava para os aterros sanitários os dois outros componentes (plástico e alumínio) não corresponde à realidade. Bem antes da tecnologia de plasma, à qual se refere a reportagem, a Tetra Pak já havia desenvolvido no Brasil outras formas de reciclagem do plástico e do alumínio das embalagens longa-vida. O plástico e o alumínio das embalagens pós-consumo são usados desde
PesqeTecnülia l'APESP
1999 na fabricação de utensílios, como telhas, placas para construção civil, canetas, brindes e até móveis. CARLA COELHO
Diretora de Comunicações - Tetra Pak São Paulo, SP
Acupuntura Na reportagem "A quuruca da acupuntura" (edição 113) afirma-se que a acupuntura "já se mostrou eficiente no combate à dor e às intensas náuseas provoca das pelo uso de medicamentos contra o câncer ... um potente aliado no tratamento da asma, do acidente vascular cerebral e do uso abusivo de drogas': A afirmação não é verdadeira. Não existe evidência clara em favor da acupuntura para nenhuma dessas condições (veja o site www.jr2.ox.ac.uk/bandolier /booth/booths/altmed.html). Mesmo em relação ao freqüentem ente citado "P6 para náusea e vômito» (e.g. [Lee et al. Anesth Analg 1999 88: 1362-9]), a evidência existente não é satisfatória, pois a grande maioria dos trabalhos no tópico não se utilizou de controles adequados (não controlou por "acupuntura falsa"). Além disso, recente estudo de alta qualidade não foi capaz de detectar esse efeito [Streitberger et aI. Anesthesia 2004 59: 142-149]. É interessante que a reportagem cite um excelente trabalho, publicado no fama [Linde et al. fama 293(17) 2005], que não foi capaz de detectar efeitos específicos para a acupuntura para tratar cefaléia. Isso ilustra uma característica que a acupuntura partilha com a homeopatia: trabalhos em que um maior cuidado é tomado em relação à randomização e blinding em geral têm resultados negativos. RENAN
M. V. R.
ALMEIDA,
PH.D.
Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ
o texto publicado indica, de fato, que "a acupuntura já se mostrou eficiente': Esta afirmação pode ser encontrada no site http://nccam.nih. gov/health/acupuncture/#work dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Dentro dessa linha, a argumentação daquela frase não foi cabal, mas indicativa, baseada em informações da agência do governo norte-americano, o maior centro de pesquisa médica em todo o mundo. A parte mais expressiva dos experimentos relatados na matéria foi realizada em animais de experimentação em estudos com grupos de controle bem constituídos, eliminada dessa forma a perspectiva de explicações baseadas em efeito placebo.
• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11)3038-1438
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• Opiniões ou sugestões
Correções Na reportagem "Laços estreitos» (edição 115) foi atribuída equivocadamente a Ricardo Baeza Yates a declaração segundo a qual para competir com um bom programa de pós-graduação brasileiro precisaria unir-se a outro importante grupo de seu país. Na verdade, comentários sobre a produtividade da pesquisa brasileira em computação foram feitos por outros latino-americanos presentes no evento da Microsoft. Em "Médicos ou monstros?" (edição 110) a frase "os manuais ensinaram comandantes de negreiros a se abastecer com verduras e sucos de frutas cítricas para evitar a doença (escorbuto)" está errada. Só na primeira década do século 20 provou-se que sucos de frutas cítricas trataram com sucesso a doença. Silvia Lara, supervisora do projeto, integra o Departamento de História da Unicamp e não da USP como foi publicado.
Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio Xl, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESPna íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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Resposta do pesquisador Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mel/o:
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o que a ciência brasileira praduz você encontra aqui
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PESQUISA FAPESP 116 • OUTU BRO DE 2005 • 7
Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Toda semana, em meia hora, você tem: • Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos da ciência
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Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE
CARTA DA EDITORA
Uma explosão estelar
CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, I OS É ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR. VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO). CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM j. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLÜ DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOU N EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACST), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÂO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CE5AR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ADILSON AUGUSTO. ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ. EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), LAURABEATRIZ, LAURA TEIXEIRA, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, PENHA ROCHA, SÍRIO |. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE), TONY MONTI E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX; (li) 3038-1418
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FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
No início de setembro, a pequena mas aguerrida comunidade de astrofísicos brasileiros comemorou um feito que atesta mais uma vez sua alta qualificação: no dia 4, menos de sete horas depois de um satélite da Nasa ter enviado um alerta para todos os astrofísicos de plantão sobre possíveis indícios de uma explosão de raios gama nos confins da constelação de Peixes, o jovem pesquisador paulista Eduardo Cypriano, ligado ao Soar, captou as primeiras imagens do que adiante se verificaria ser uma explosão estelar muito mais importante do que se supunha. Na verdade, tratava-se simplesmente como se constatou a partir das medições do Soar, observatório do qual o Brasil é um dos sócios majoritários e que conta com um apoio importante da FAPESP - da mais antiga e distante explosão de uma estrela já captada na Terra. E toda essa história está muito bem contada pelo editor especial Marcos Pivetta, a partir da página 40. Aliás, há mais nesta edição sobre esse tipo de participação importante de pesquisadores do país em grandes projetos científicos internacionais: o editor de tecnologia, Marcos Oliveira, conta como físicos brasileiros estão envolvidos num gigantesco estudo de partículas subatômicas, a partir da página 64. O Partido dos Trabalhadores também é objeto de reportagem de Pesquisa FAPESP, e por uma razão muito simples, seja do ponto de vista jornalístico, seja do ponto de vista acadêmico: é que desde o seu nascimento em 1980, o partido que agora protagoniza uma crise que atrai os olhos da nação inteira para Brasília, foi uma das instituições políticas do país mais estudadas por sociólogos, cientistas políticos e filósofos, daqui e dalhures. A propósito, ainda lembro do pensador francês Felix Guattari, no auditório do Ceas, Centro de Estudos e Ação Social, em Salvador, numa noite no começo dos anos 1980, saudando a fundação do partido como um fato efetivamente novo na história da esquerda, mais ain-
da, na história da política, se é que podemos dizer assim, em nível mundial. E explicando, explicando incansavelmente, essa sua visão a um auditório lotado de rostos ansiosos em torno dos 30 anos que queriam, depois de tanto sofrimento imposto pela ditadura militar, recuperar a fé na capacidade transformadora da ação política. Mas volto ao trilho da exposição: se tem sido tão estudado, imaginamos, talvez a academia tenha alguma luz nova a jogar sobre a natureza, as razões imediatas e mais profundas dessa crise, e seus possíveis desdobramentos. De fato - tinha... E é exatamente isso que se poderá conferir na irrepreensível reportagem do editor de Humanidades, Carlos Haag, a partir da página 80. Há muitas outras reportagens desta edição que mereceriam destaque neste espaço. No entanto, desta vez vou usálo para destacar uma parte essencial da identidade desta revista que quase sempre permanece na sombra: a arte. Sugiro um olhar mais atento que de hábito ao visual de Pesquisa FAPESP, que tem no comando um finíssimo artista, Hélio de Almeida, nosso diretor de arte, apoiado por uma equipe competente formada por Tânia Maria dos Santos, a chefe da arte, mais Tose Roberto Medda e Mayumi Okuyama, mais os fotógrafos Miguel Boyayan e Eduardo César. Reparem, por exemplo, nas fotos das entrevistas pingue-pongue, em preto-e-branco, nas páginas 15 e 87. Elas não criam uma atmosfera diferente nessas páginas? E o que dizer das ilustrações da reportagem sobre o desarmamento, nas páginas 91,92 e 93? São verdadeiras esculturas criadas pelo próprio Hélio para esta edição e depois fotografadas. Bem perto, nas páginas 81, 82 e 85, um olhar demorado nas ilustrações de Laurabeatriz vai com certeza acrescentar fruição estética à leitura da revista. Enfim, Pesquisa FAPESP é pensada para oferecer leitura relevante sobre a ciência, a tecnologia e a pesquisa de humanidades em nosso país, num suporte de indiscutível plasticidade estética. MARILUCE MOURA
- DIRETORA DE REDAçãO
PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 9
MEMóRIA
Tecnologia e arte Há 511 anos, o italiano Aldo Manuzio começava a reinventar o livro impresso
TAAE ENfcSTI ÉN TH.AETO BjBAíV OtoWTVV (tiSiMietfvnSJfAiUfO. TM*M*.m j»\f eu>*T9v T\9ôt QiBtZÂêJ fxe\U)4 i*H íLOVXOXJx.a>r* I rojiLtcuí^rf* tn><pct>v-
NELDSON MARCOLIN
Manuzio e trecho de Églogas, de Teócrito, edição bilíngüe em grego
e latim, de 1497
10 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
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os seus primeiros 50 anos de história o livro impresso pouco mudou. O alemão Johannes Gutenberg inventou os tipos móveis em 1442 e publicou, em 1455, provavelmente com Peter Schoffer, a Bíblia, tida como o primeiro livro impresso do Ocidente. Até 1494 foram publicados milhares de outras obras, mas foi o tipógrafo, editor e livreiro italiano Aldo Manuzio o responsável por inovações que mudaram a forma de fazer livros no mundo nos 500 anos seguintes. Como editor, foi o primeiro a imprimir os clássicos greco-latinos, indicados por um conselho editorial algo também inovador, que ganhou o nome de Academia Aldina -, com alguns dos proeminentes espíritos da
época, como Erasmo de Rotterdam. Esses eruditos não só escolhiam os melhores textos da Antigüidade para publicar como faziam a tradução, quando era o caso, os comentários e colaboravam na edição. Participavam da academia 32 intelectuais europeus escolhidos e convidados por Manuzio. Como tipógrafo criou o tipo cursivo - igualmente conhecido como manuscrito, itálico, inclinado ou aldino -, o formato de bolso, a página dupla como unidade formal e a lombada plana. Nas capas, substituiu a madeira pelo cartão, passou a usar pergaminho de cabra como revestimento e a gravar nele o título do livro com ouro aquecido. Por fim, como livreiro, fez o primeiro catálogo com a relação de obras publicadas e respectivos preços e criou o então inédito agrupamento de livros dentro de séries ou coleções. A maioria dessas inovações conserva-se ainda hoje na rotina da produção editorial em todo o mundo.
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Aldo Manuzio nasceu por volta de 1450, em Bassiano di Sermonetta, e morreu em 1515, em Veneza. Em pleno Renascimento, as principais cidades italianas brilhavam com a renovação nas artes plásticas, letras e arquitetura, com os olhos voltados para modelos greco-romanos. Nesse ambiente repleto de escritores, pintores, escultores, filósofos, cientistas e - não menos importantes - mecenas, "Veneza toda era ciência e sabedoria", no dizer de John Ruskin, crítico de arte, pensador e escritor inglês do final do século 19. Foi lá que Manuzio se estabeleceu e onde freqüentava a oficina tipográfica de
Andréa Torresani em 1492, seu futuro sogro. Sob o incentivo do amigo e protetor, o nobre Giovanni Francesco Pico delia Mirandola, Manuzio tornou-se editor e imprimiu suas primeiras edições em 1494. Os dois amigos, apaixonados pela língua e literatura gregas, detestavam as péssimas traduções, impressões e edições daquele tempo, conta o catalão Enric Sauté, historiador das artes gráficas, no recém-lançado Aldo Manuzio: editor, tipógrafo, livreiro (Ateliê Editorial, 253 páginas). Foi esse tratamento rústico dado aos clássicos que levou o então tipógrafo a considerar seriamente uma velha idéia -
No alto, o excepcional Hypnerotomachia, de 1499. Acima, o logotipo da casa editorial: pioneirismo
a de oferecer a estudantes e estudiosos produtos literários e lingüísticos de primeira qualidade. Além da efervescência cultural de Veneza, havia dois motivos especiais para Aldo se estabelecer na cidade. O primeiro é que o local se tornara a capital mundial da tipografia, com centenas de profissionais na cidade e suas respectivas oficinas. Por volta de 1480, 410 cidades de seis países europeus tinham tipografia, a maior parte na Itália, "como se o país houvesse usurpado a invenção da Alemanha", comenta Sauté. O segundo motivo era que ali se estabelecera numerosa colônia de exilados gregos, algo muito conveniente para Manuzio, dada a PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 11
maior facilidade para se encontrar revisores, calígrafos, tipógrafos, impressores e encadernadores para os textos originais que pretendia editar nessa língua. Antes de mergulhar em edições ambiciosas, Aldo teve o cuidado de editar tratados de gramática, vocabulários e opúsculos de iniciação para o estudo das línguas clássicas. Finalmente, para imprimir os gregos, era preciso, primeiro, conseguir os manuscritos disponíveis, porém dispersos por toda a Europa. Ler, entender e corrigir possíveis falhas em cópias manuscritas de textos milenares era tarefa árdua, especialmente porque a paleografia não estava desenvolvida. Itálico - Determinado, Manuzio venceu um a um os obstáculos e imprimiu a obra completa de Aristóteles entre 1495 e 1498, em cinco volumes. E mais à frente, em 1513, fez o mesmo com Platão, além de publicar os demais pensadores, dramaturgos, historiadores e poetas da Antigüidade como Xenofonte, Eurípedes, Heródoto, Esopo, Plutarco, Homero, Teócrito, entre tantos outros. Tal produção impulsionou os estudos helenísticos na Itália renascentista e se disseminou pelos demais países, que passaram a publicar os clássicos gregos. Manuzio imprimia também muitos livros em latim e poucos em italiano. No primeiro caso, Ovídio, Virgílio, Cícero, Horácio, para ficar apenas em alguns. No último caso, basicamente Dante Alighieri e Petrarca. O holandês Erasmo de
(ou itálico, como é mais conhecido hoje) foi inventada por Manuzio em 1500, já pensando no lançamento das edições de bolso, projeto feito especialmente para sua adaptação ao formato pequeno. O sucesso do cursivo foi tão grande que suscitou imitações imediatas. Uma provável influência ocorreu num setor distante da tipografia. O violino de quatro cordas surgiu por volta de 1550, segundo todos os indícios, em Cremona ("a cidade dos lendários Amati, Guamieri e Stradivarius", lembra Sauté). O instrumento tem dois arabescos simétricos e característicos em ambos os lados da ponte, perfurando a tampa harmônica para obter a ressonância acústica correta. Esses arabescos têm a forma inconfundível de uma letra cursiva: os "efes do violino".
"Efes do violino", a mais que provável influência da letra cursiva inventada por Manuzio para os livros de bolso
Rotterdam, o mais famoso humanista de seu tempo, por exemplo, escrevia em latim e chegou a ser seu contratado exclusivo por mais de um ano, algo totalmente inusitado para aquele período. Antes que os livros da casa editorial de Manuzio criassem um novo padrão de excelência na edição e impressão, os tipos de imprensa mais comuns eram moldados sobre alfabetos de tipologia gótica, "em variantes
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pesadas e angulosas, de difícil leitura", explica Enric Sauté em seu estudo. Os primeiros tipos que Manuzio mandou entalhar foram do alfabeto grego, feitos por calígrafos e artesãos gregos radicados em Veneza. Quando começou a editar em latim, o melhor gravador de Aldo, Francesco Griffo, criou um tipo inédito, redondo, longe da tendência de engrossar os traços da letra para tentar obter o peso visual correto. A tipologia cursiva
Êxito - As coleções de bolso com suas letras cursivas foram o maior êxito de Manuzio. As primeiras saíram em 1501, com três livros de Virgílio: Bucólicas, Geórgicas e Eneida. Foram mais de 50 títulos, o que significa que ele colocou na praça, entre 1501 e 1506, um título de bolso a cada 60 dias. O preço máximo era de 1 ducado (cerca de R$ 50) e a tiragem inicial de mil exemplares - sem contar as freqüentes reedições. "Era uma proeza, considerando-se que se trata de fenômeno cultural e comercial acontecido há mais de 500 anos", espanta-se Sauté em seu livro. O mesmo espanto com a qualidade das obras de Manuzio, que colocou em alto patamar o padrão
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Edição de As rimas (1533), de Petrarca, com marcas de nanquim. Hoje é possível ler através da tinta: censura efêmera
Vctr.
tipográfico, gráfico e editorial do livro, ainda se mantém entre os apaixonados pelo objeto livro. "Manuzio foi um gênio ao unir tecnologia e arte para melhorar o livro e torná-lo atraente e funcional", diz Cláudio Giordano, tradutor do texto de Sauté e criador da Oficina do Livro, entidade paulistana que procura preservar, recuperar e manter vivos obras, jornais e documentos esquecidos por editoras, críticos e
leitores. Giordano se refere aos primeiros livros impressos, grandes e pesados, difíceis de carregar e ler com capas de madeira revestida com couro. Tempo e censura -
O bibliófilo José Mindlin, dono do principal acervo particular de livros raros do país e grande admirador do editor e impressor, é talvez o dono do único exemplar do Hypnerotomachia poliphili, de Fernando Colonna, de 1499, no Brasil
{foto na página 11), a edição mais primorosa já feita por Manuzio. "Se fosse publicado hoje, esse livro ainda seria um sucesso, tal a clareza da leitura, a beleza das ilustrações e a qualidade da edição", acredita. Mindlin mostra uma reedição de 1533 de As rimas, livro de poemas de Petrarca em italiano - cuja primeira edição, de 1514, é de Manuzio -, com parte das linhas manchadas. "Como tem alguns sonetos contra
o papa, os editores da época foram obrigados a cobrir os versos com tinta nanquim. Ocorre que hoje é perfeitamente possível ler através da tinta desbotada", observa. Durante a ditadura brasileira, Mindlin usava a história desse livro como um pretexto para alertar: "O tempo venceu a censura". Como no livro de Petrarca, o tempo tratou de preservar a relevância da extensa obra inovadora de Aldo Manuzio.
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ENTREVISTA: MIGUEL NICOLEUS
O homem das múltiplas conexões MARCOS PIVETTA
Referência mundial na neurociência, o irrequieto Miguel Nicolelis, um paulistano que há mais de 15 anos mora nos Estados Unidos, se prepara para desfrutar seu primeiro ano sabático. Será um ano e tanto. E a programação dos próximos meses já está pronta. Vai passar um tempinho em Natal, à beira-mar. Ficar uns dias em Lausanne, na Suíça. Visitar rapidamente São Paulo. E, quando sentir saudades de casa, voltar para a Carolina do Norte, estado que abriga a Universidade de Duke, onde chefia um laboratório com mais de 30 subordinados e algumas dezenas de milhões de dólares de orçamento. Ninguém pense que Nicolelis vai a todos esses lugares a passeio, embora a estada na capital paulista seja sempre uma oportunidade para visitar seus pais e, se possível, ver ao vivo um jogo do Palmeiras, uma de suas paixões. Aos 45 anos, o neurocientista tirou um ano sabático para ter mais tempo para trabalhar por seus projetos, em especial a construção do Instituto de Neurociências de Natal. "Vou ficar na ponte área Estados Unidos, Brasil e Suíça", afirma o pesquisador, pai de três garotos e casado com a médica Laura, espécie de gerente administrativa das iniciativas do marido. Na terra dos relógios e do chocolate o brasileiro vai montar, a pedido dos helvéticos, um novo centro de neurociências. Nesta entrevista, concedida durante uma recente passagem por São Paulo, Nicolelis fala do início de sua carreira, ainda no Brasil, da mudança para os Estados Unidos e dos progressos de suas pesquisas, que abriram caminho para a criação de modernas interfaces cérebro-máquina. No futuro próximo, esses dispositivos, movidos por sinais extraídos do cérebro do próprio pa14 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
ciente, talvez permitam que pessoas deficientes se locomovam com o auxílio de robôs. "Queremos que seja um brasileiro o primeiro ser humano a se beneficiar dessa tecnologia", afirma ele. ■ Quando você começou a pensar em ser pesquisador? — Foi depois de ter acabado o terceiro ano na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP), onde eu era diretor esportivo do clube dos alunos. Queria fazer algo diferente, e não a medicina tradicional. Gostava de medicina, ainda gosto, mas não achei o dia-a-dia da parte clínica tão excitante quanto havia imaginado. Então comecei a procurar um trabalho em pesquisa. Fui falar com o professor César TimoIaria [neurofisiologista que trabalhava no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP], que faleceu recentemente e foi o meu grande mentor. E pedi uma bolsa de iniciação científica da FAPESP para trabalhar com computação. Era 1982 e a primeira geração de microcomputadores estava chegando ao Brasil. Eu me interessava por epidemiologia, por modelos matemáticos de interação bacteriana. Mas já tinha curiosidade muito grande de pensar no cérebro como um grande computador. Quanto mais eu estudava computação, mais percebia que o interessante realmente era estudar o cérebro. Quando terminei a faculdade, em 1984, fui um dos dois alunos da minha turma que optaram por não fazer exame de residência. Fui fazer doutorado direto. ■ De que tratava o doutorado? — Era uma tese estranha. Metade dela era um projeto de computação, de análise de conexões neurais. No término do doutorado, cheguei à conclusão de que a neurociência estava num dilema. Não dava mais para olhar para um neurônio só de cada vez. Era preciso ver vários ao mesmo tempo. Foi essa sensação que tive lendo toda literatura científica da área. Uma vantagem de estar
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no Brasil era que, se havia dificuldades de fazer coisas experimentais, era possível ler pra burro. Havia tempo para isso. ■ O que você fez depois? — Terminei a tese em 1988 e comecei a procurar no mundo algum lugar onde existisse alguém que tivesse pelo menos alguma idéia parecida com a minha. Depois de conversar com o dr. César, comecei a escrever para um monte de gente. Acho que recebi umas 40 cartas de rejeição. Essa era a norma. E de repente encontrei na revista Science dois anúncios interessantes. Um era de um cara da Universidade Yale, o Gordon Shepherd, e o outro de John Chapin, da Universidade Hahnemann. Ambos me aceitaram, mas acabei indo para a Hahnemann. Yale queria que eu fizesse algo mais tradicional, interessante, mas não era o meu sonho mesmo. O John, da Hahnemann, uma universidade pequena da Filadélfia, tinha a mesma idéia que eu. Ele chegou à conclusão de que o caminho era esse mesmo, registrar centenas de células nervosas ao mesmo tempo. O John me pediu para ir lá fazer uma entrevista e eu fui. E, no final do dia, me ofereceu um pós-doutorado na universidade. Três meses depois fui para a Filadélfia. Anos mais tarde, após a minha saída da Hahnemann, essa universidade foi comprada, mudou de perfil e hoje é parte do que se chama MCP (Medicai College of Pennsylvania-Hahnemann University). Mas, durante um período, ela investiu pesado em neurociência e pôs muito dinheiro na área. ■ Como era a vida na Hahnemann? — Por seis meses, deixei minha família no Brasil, minha mulher Laura e meu primeiro filho, o Pedro, que tinha 6 meses. Eu tinha apenas uma bolsa da FAPESP de pós-doutorado (só mais tarde fui contratado pela universidade). Foi uma loucura. Cheguei sozinho num mundo diferente e estava aprendendo a falar inglês. Mas sempre fui muito bem tratado. Ter ido primeiro para um lugar pequeno, sem a pressão de Yale ou Harvard, foi ótimo. Afinal, não era um lugar em que se esperava que você fosse, de cara, fazer alguma coisa importante. Mas, para mim, o fracasso não era uma opção. Ou eu dava certo, fazia a coisa direito, ou não ia ter chance alguma de 16 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
fazer o que eu queria no Brasil. Era tudo ou nada.
difícil. Levou quatro, cinco anos para eu conseguir ter uma idéia.
■ Mas era bom fazer pesquisa lá? — Era um paraíso. O John abriu a porta de um laboratório, que já era um dos centros de ponta em neurofisiologia do mundo, e me falou "é seu". Me deu uma Ferrari na mão e falou "aprende a dirigir". Na América é assim. O chefe não fica em cima de você todo o dia. Ele quer resultado, mas a liberdade é total. Ele dá os meios, dá tudo, mas o negócio é o seguinte: "Se vira, meu amigo". E foi exatamente o que o John fez. Só consigo trabalhar desse jeito. Com liberdade. Aqui no Brasil, no laboratório do dr. César, eu tinha isso. Mas na USP, na época, não era possível ter.
■ E qual foi a sua idéia? — Estava interessado em entender as leis fisiológicas que regem a interação entre grandes populações de neurônios. Se entendermos isso, entenderemos tudo. Poderemos entender como o cérebro funciona, explicar a consciência e até como as doenças neurológicas destroem essa noção. Isso é o Santo Graal da neurociência. Hoje sinto que estamos muito perto de criar uma teoria unificadora que una tudo isso numa única base mecanicista.
■ Por quê? — As posições eram muito mais hierárquicas, fixas. Tive um chefe na patologia da USP que era um cara muito duro. Tinha de fazer do jeito dele ou ir para a rua. Não havia alternativa. Não se podia questionar nada. Na América um aluno de High School (ensino médio) questiona o que eu falo. E ele está certo em questionar. Só porque eu falo não quer dizer que seja verdade. Aqui não se pode questionar o chefe. Ele é deus. Essa postura mata a ciência. Não é só falta de dinheiro que mata a ciência. Quem está em pesquisa e não consegue ter autonomia vai virar técnico. Não vai virar um pesquisador-chefe. Na Hahnemann também aprendi a gerenciar meu tempo. Tinha que dividir o meu dia entre fazer experimento e ler. Posso dizer que fiz um curso de neurociência em três anos na Hahnemann como jamais teria feito na minha vida. Estava tudo lá: literatura científica, livro e a internet, que começava a aparecer. Acho que nunca li tanto na minha vida como de 1989 a 1993. ■ O que você aprendeu nesse período? — Sabia o que estava acontecendo na neurociência de trás para a frente. Conheci todo mundo que estava na vanguarda da área. Foi quando descobri o que tinha acima das nuvens. Esse é o grande problema da ciência. Não é chegar nas nuvens, mas ver o que está acima, qual é o horizonte. Descobrir qual é a pergunta fundamental que tem que ser feita em sua área. Isso é muito
■ Como você se transferiu da Hahnemann para a Universidade de Duke? — Um dia apareceu na Hahnemann um cara que era o chefe de um novo departamento de neurobiologia da Duke, Dale Purvis, que era famoso e eu conhecia de nome. Dale tinha ouvido falar do meu trabalho porque eu tinha dado uma palestra, uma das primeiras da minha vida, num congresso e porque um grande amigo dele conhecia um dos professores da Hahnemann que estava trabalhando comigo. Ele, que estava ali para dar uma palestra, falou que queria conversar comigo. Para minha surpresa, o cara passou três horas comigo, vendo meus experimentos. Um mês depois recebo um convite dele para dar uma palestra na Duke. Nunca tinha dado uma palestra fora de congresso, dessas em que você é convidado para falar. Achei demais. Dei minha palestra na Duke e passei o dia falando com esse professor. ■ Nessa época você já fazia referências ao futebol brasileiro em suas palestras? — Já. Mas ainda não havíamos ganho a Copa de 1994. Dei a palestra e fiquei conversando o dia inteiro com um monte de professores do departamento. O último encontro do dia era com o Dale. Então ele me disse que o pessoal havia gostado muito da palestra e que ele estava ali com as impressões de todos. Achei estranhíssimo. Mas o Dale prosseguiu e disse que as impressões eram excelentes e me ofereceu um emprego. ■ Era um processo de avaliação? — Era. É o que eles chamam áejob talk ou job interview. Mas não me falaram
nada sobre isso porque acharam que eu ia ficar nervoso, que eu ia tentar impressionar as pessoas na entrevista. E eles queriam me ver ao natural. Quando terminou o dia, eu tinha uma oferta de emprego num dos maiores departamentos de pesquisa do país com coisas que nem sabia que existiam. Por exemplo: quando você consegue um emprego na América, eles dão uma verba para você criar o seu laboratório. Uma quantidade de dinheiro que eu nunca tinha visto na minha vida. E dão xis anos de suporte. Pagam a sua mudança e o que for necessário para você se instalar. ■ Eles fazem um grande investimento na pessoa. — Brutal. Eles selecionam bem as pessoas. Não contratam por concurso. Não há essa coisa de banca examinadora. Eles varrem o país em busca do cara que case perfeitamente com o que eles querem. Isso é feito olhando o currículo e a produção do candidato, pedindo carta de recomendação das pessoas que interagem com o candidato e entrevistando-o, é claro. É assim que funciona. E, aliás, funciona muito bem. Quando cheguei na Duke, eu e a Laura, que imediatamente virou minha manager de laboratório, havia apenas o chão das salas que ocuparíamos, um escritório e muito dinheiro para equipamentos. E mais nada. Gosto de falar que montar um laboratório é como criar uma padaria. Você é um homem de negócios. Tem de fazer tudo, ir atrás de aluno, de pós-doc, de técnico, de equipamento, de animais de laboratório. E conseguir dinheiro. A universidade investe em você, faz uma espécie de empréstimo, mas quer retorno. A pressão é muito grande. Eu não sabia como era. No começo levei pedradas. Na Hahnemann eu estava num ambiente quase familiar, com seis pessoas no meu laboratório.
quais são suas idéias. Você rotineiramente dá seminários para a universidade. Quando cheguei na Duke, era realmente um cucaracha. Os caras me perguntavam: "Você estudou na Universidade de São Paulo? Em que lugar da Califórnia fica isso? Perto de San José, Santa Barbara? São Paulo fica onde?". Eu falava que era mais ao sul. É verdade. Tive de enfrentar isso.
■ Como era essa pressão? — Você passa seis anos sendo revisado e avaliado continuamente. Depois desse prazo, ou você fica lá, ou eles o mandam embora.
■ Foi na Duke que começaram os implantes de eletrodos em animais? — Não. Foi antes, ainda na Hahnemann. Minha idéia era desenvolver uma técnica cirúrgica e um método que, desde o início, permitissem o registro de múltiplos lugares do cérebro. Fiz isso primeiro em ratos. Como o espaço na cabeça do animal é muito pequeno, tinha que criar técnicas para pôr múltiplos conectores nos roedores. Na época os conectores eram grandes. Hoje temos microconectores. Quando saí da Hahnemann, já tinha feito experimentos que renderam um artigo para a Science. Mas foi na Duke, depois de 1995, quando publiquei meu segundo artigo na revista, que o meu trabalho explodiu. Nesse artigo apresentamos pela primeira vez o registro total de uma via neural sensorial, desde o primeiro neurônio no gânglio trigeminal até o córtex. Nunca ninguém tinha visto essa imagem. É como mirar um telescópio para uma galáxia nunca observada.
■ Não há cobrança em termos de publicação de artigos científicos? — Claro. Cobram publicação. E sempre perguntam o que você está fazendo e
■ Qual foi a repercussão desse trabalho? — Acho que até hoje é o meu trabalho mais citado na literatura científica. Foi uma revolução. Ele mostrou que a di-
nâmica do circuito cerebral como um todo não podia ser prevista pelos registros de um único lugar. E que, na realidade, todos os componentes do circuito contêm informação das outras estruturas. Ou seja, todas as estruturas estão conectadas, e com múltiplas fibras. Uma informação que aparece numa estrutura é rapidamente disseminada para as demais do circuito. Em vez de ser um processo hierárquico, onde cada estrutura desempenha uma função, é um processo compartilhado. Todas as estruturas têm funções compartilhadas. Foi um trabalho que me abriu as portas. Evidentemente, quando fizemos um negócio desse porte, metade da neurociência falou que era loucura. ■ E outra metade achou sensacional. — A outra metade ficou de queixo caído e começou a investir na área. Mas foi um período muito difícil. Meu primeiro aluno no laboratório da Duke era um americano filho de pais paquistaneses, Asif Ghazanfar. De brincadeira, eu e ele chamávamos nosso laboratório de laboratório de lugar nenhum. Isso porque o orientador era brasileiro e o aluno era paquistanês [hoje há mais de 30 pessoas no laboratório de Nicolelis, das quais 8 brasüeiras]. Só que o Asif foi um moleque - hoje ele é professor de Princeton - que comprou o sonho. Ele me ajudou muito. Nossa produção foi muito grande. Mas em 1997 reparei que não adiantava ficar só na área tátil, sensorial, que é a minha especialidade. Para mostrar que esse conceito de como o cérebro funciona era geral e fundamental, tínhamos que ir para outras áreas. PrePESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 17
cisávamos de uma demonstração visual, concreta, dessa idéia. Criamos então uma interface cérebro-máquina. ■ No que vocês pensavam exatamente? — Naquele momento, ainda não tinha a noção de que esse trabalho iria gerar uma possibilidade de terapia clínica. Não dava para prever. Eu queria era demonstrar que era possível ler sinais elétricos do cérebro, extrair um código motor e usar esse sinal para controlar um braço mecânico, que reproduziria um movimento que o animal fazia. Esse era o conceito a ser demonstrado. Voltando à Hahnemann, ainda com o John Chapin, quando fizemos o primeiro experimento em rato, vimos que estávamos diante de algo gigantesco, muito maior do que uma simples demonstração de uma teoria. Podíamos estar realmente abrindo uma comporta. E foi realmente isso. Logo em seguida eu fiz o primeiro trabalho com macacos, na Duke, e os bichos conseguiram controlar um braço mecânico com a interface cérebro-máquina. Então a coisa realmente explodiu. Havia um potencial não só em pesquisa básica, que continua a ser uma área quente, mas também em termos de aplicações clínicas. ■ Quais são as perspectivas de aplicação da interface cérebro-máquina no homem? — Há uns dois anos testamos a interface em 11 pacientes humanos enquanto eles eram submetidos a uma cirurgia para aliviar sintomas do mal de Parkinson. Ela funcionou bem. Implantamos temporariamente 32 microeletrodos numa região do cérebro e captamos atividade elétrica suficiente para mover uma prótese. Mas existem várias possibilidades de aplicações. Temos de investir em múltiplas direções ao mesmo tempo, inclusive em mais pesquisa básica. Depois que demonstramos o potencial dessa abordagem, vários grupos de pesquisa nos Estados Unidos começaram a trabalhar na área. Mas algumas pessoas já querem ganhar dinheiro com isso e essa é uma postura que eu abomino. Há duas ou três companhias que dizem abertamente que não é necessário fazer mais pesquisa, que basta colocar o implante, com fios e tudo, nas pessoas. Isso é uma loucura. Há várias perguntas para as quais ainda não temos respostas. Como o cérebro vai res18 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
ponder a um implante que dure anos? Nós, por exemplo, temos lá nos Estados Unidos dois macacos-coruja que estão há quatro anos com o implante. Os animais estão bem e o implante continua funcionando. Estamos publicando um trabalho sobre esse experimento. ■ Um dos maiores problemas da interface cérebro-máquina ainda é miniaturizar todos os seus componentes? — Sim, mas miniaturizamos boa parte do que usei no primeiro experimento com seres humanos. Agora quase tudo está num chip, uma plaquinha menor que um cartão de crédito, que no futuro teoricamente o paciente vai usar na cintura, como se fosse um celular. Estamos agora implantando por seis meses em macacos uma série de equipamentos. Pode até não ser a versão da interface que vai ser usada por um ser humano, mas é muito próxima dela. Agora tudo é wireless, sem fio. Os sinais captados no cérebro vão ser transmitidos por onda de rádio. Tudo vai para essa placa, que manda os sinais, como um celular, para o robô, que está do lado do paciente. Fora isso, também começamos a testar um exoesqueleto, uma veste de metal que botamos no macaco para ele se mexer numa esteira. ■ Como é esse projeto do exoesqueleto? — É uma veste completa, de corpo inteiro, que carregaria a pessoa deficiente. Já existem exoesqueletos, só que eles são muito pesados e complicados e ninguém nunca pensou em controlálos com sinais vindos do cérebro. Na realidade, o que já existe é um robô que anda, mas que não faz a curva nem pára quando você quer. Ou seja, uma pessoa, por exemplo, tetraplégica entra num aparelho e é ele que anda. Minha idéia é adaptar esse robô, que foi criado para ser usado em Marte, onde um astronauta não teria forças para andar devido ao desgaste da viagem. Ninguém duvida de que conseguiremos tirar os sinais do cérebro necessários para controlar as articulações desse robô. O que ninguém sabe é como vamos manter essa pessoa dentro desse exoesqueleto. Isso porque quando o robô anda o equilíbrio é perturbado e ele não consegue mais manter a postura erétil de quando está parado. Esse é um grande desafio de controle, um problema de
engenharia. Nessa situação, o cérebro também vai ter que prover sinais de equilíbrio para o robô. E ninguém nunca fez isso. ■ A pessoa tem que reaprender a andar, só que por meio do robô? — Exatamente. E o robô também tem que reaprender. Será preciso criar uma engenharia adaptativa, modelos adaptativos que aprendem como uma criança. A idéia é exatamente essa. Foi isso que me motivou a conversar com pesquisadores da Suíça e do Japão, onde estão os deuses da robótica em certas áreas. Também foi isso que me fez ter a idéia de criar uma rede internacional de institutos de neurociência, com sede na Suíça, da qual o projeto de Natal fará parte. A neurociência cresceu tanto hoje que está quase na mesma situação da física 40 anos atrás. É impossível fazer algo de enorme impacto num único lugar. É preciso um grupo de pessoas das mais diversas especialidades, de onde for necessário. ■ Aliás, como surgiu a idéia do Instituto de Neurociências de Natal? — Surgiu em 2002 de três brasileiros, eu, o Sidarta Ribeiro, da minha equipe na Duke, e o Cláudio Melo, da Oregon Health and Science University. Chegamos à conclusão de que o Brasil tinha que investir em ciência de ponta feita dentro de um modelo diferente, mais ágil, e com uma visão social. O modelo universitário de pesquisa brasileira é tradicional, complicado e enfrenta muitos problemas. Queríamos criar algo como os Institutos Max Planck, da Alemanha, que formam uma rede de institutos dentro do país em áreas vitais. ■ Não é uma idéia megalomaníaca? — Claro. Sem dúvida nenhuma. Mas a minha avó sempre me dizia, e vou repetir isso até morrer, que sonhar pequeno e sonhar grande tomam o mesmo tempo. Só que o produto final do sonho pequeno é muito pequeno comparado com o sonho grande. Por isso é melhor sonhar grande. Não tenho a ambição de concretizar essa rede em dois ou três anos. É um projeto para uma geração, que está começando agora com o Instituto de Natal. Esse modelo não existe em lugar nenhum. A ciência pode ser um agente de transformação so-
ciai, educacional, de prestação de serviços clínicos. O cérebro tem a ver com esporte, ciência, arte, é uma coisa revolucionária. Hoje essa visão não é só minha. Outras pessoas em outros países começaram a olhar para essa idéia como algo avassalador, de tal maneira que hoje a maior parte dos recursos de porte para o projeto de Natal está vindo de fora do Brasil. ■ O que há de recursos até o momento? — Primeiro, recebemos algumas fontes de recursos do governo federal, provenientes de convênios com diferentes ministérios. Algo entre R$ 4,5 milhões e R$ 5,5 milhões. Parte dos recursos já está em Natal, parte ainda estamos esperando receber. Mas, de repente, por exemplo, nós estabelecemos uma importante parceria com o Hospital SírioLibanês, de São Paulo, que vai fazer parte dessa rede internacional de institutos em neurociência. O Sírio será o centro clínico por excelência da rede e, em contrapartida, fez uma doação de US$ 1 milhão para a parte social do projeto em Natal. Também consegui levantar, lá nos Estados Unidos, contratos de pesquisa para o Brasil da ordem de US$ 2 milhões para os próximos dois ou três anos. Há pouco tempo fizemos um leilão beneficente de obras de arte em São Paulo e conseguimos numa noite R$ 350 mil. Quando levei o projeto de Natal para o pessoal da Suíça, eles me disseram o seguinte. Se eu criasse um instituto de neuroengenharia em Lausanne e fixasse a sede da rede internacional de neurociência lá, eles me ajudariam a levantar US$ 6 milhões para o projeto de Natal. Topei. Até agora, acho que conseguimos um total de US$ 10 milhões para Natal. ■ Está tudo certo com o terreno em Macaíba, nos arredores de Natal, onde vai funcionar a sede do instituto? — Está e já temos um outro terreno, doado pela prefeitura de Macaíba, onde vamos construir a escola e o centro de saúde mental ligados ao instituto. Mas, enquanto não iniciamos as obras da sede definitiva do projeto, ao lado do qual também funcionará um complexo poliesportivo, não ficamos parados. Decidimos alugar um prédio em Natal para abrigar os primeiros laboratórios do instituto e também o pri-
meiro componente social de nosso projeto, que serão aulas de educação científica para o público infanto-juvenil. O Sidarta já está se instalando em Natal para começar a tocar o instituto. ■ Qual será o papel de Natal e do Brasil nessa rede de pesquisas? — Quero fazer aqui a parte final dos testes clínicos, com o apoio da Duke. Por que aqui? Assim que o projeto de Natal começou a andar, chegamos à conclusão de que precisaríamos de um centro clínico para trabalhar com essa rede internacional. Apesar de a Duke ter um centro clínico de grande porte, queríamos fazer essa parte da pesquisa clínica no Brasil. Queremos fazer história aqui. Daí a parceria com o Sírio. Queremos que seja um brasileiro o primeiro ser humano a se beneficiar dessa tecnologia a ponto de voltar a andar ou mexer os braços. ■ Em quanto tempo isso será possível? — É difícil prever, mas planejamos ter condição de fazer isso nos próximos três anos. Não posso descartar a hipótese de alguém ter sucesso antes de nós.
De repente aparece uma descoberta revolucionária. Mas nosso prazo é esse. O importante é que haja um benefício real durante os testes clínicos. Quero que os primeiros pacientes possam ao menos sentir a restauração motora e realizar tarefas. Um tetraplégico, por exemplo, usaria um robô para pegar um copo ou um garfo. Ninguém vai sair da cama andando logo de cara. ■ O Instituto de Natal estará aberto à participação de pesquisadores das universidades brasileiras? — O instituto é um projeto privado, mas aberto à colaboração com todo mundo. Tenho sido procurado muito por uma nova geração de neurocientistas. Recebo e-mail do Brasil inteiro. Mas a visão da geração mais sênior de cientistas brasileiros é muito feudal. Acha que os territórios são impenetráveis. Cada um tem seu feudo e não quer que apareçam outros feudos, porque, desse modo, haverá mais competição. Sentir que isso ainda existe no Brasil foi uma decepção muito grande. Não preciso de nenhum feudo no Brasil. Minha intenção nunca foi essa. Nunca quis disputar recursos com os pesquisadores brasileiros no CNPq, na FAPESP ou na Finep, de forma alguma. ■ Você sente que esse foi o tom dominante da reação ao seu projeto em Natal? — Houve um medo totalmente exagerado, em especial no começo do projeto. Se houve uma grande decepção, foi ver que pessoas com altas posições na hierarquia científica brasileira mostraram ter uma mentalidade muito pequena. Isso é da natureza humana e nunca me influenciou. Mas também houve o oposto, a reação de pessoas que me receberam com entusiasmo. ■ Como são as reações hoje? — Acho que as pessoas não têm muito o que falar. No começo achavam que o Instituto de Natal era uma utopia muito bonita, mas que eu iria tirar o time de campo assim que provasse da realidade brasileira. Mas não tirei. A atitude que eu tenho é a mesma que tive quando fui para a América: falhar é inconcebível. Pode demorar 20 anos. Nunca disse que iria fazer isso em dois, três ou quatro anos. Mas a palavra desistir não consta do meu vocabulário. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 19
I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
■ Sob o céu da Argentina China e Argentina acabam de estabelecer uma cooperação na pesquisa em astronomia. O Observatório Nacional da Academia de Ciências da China vai instalar um equipamento astronômico de precisão na Universidade San Juan, na Argentina. Trata-se de um Satellite Laser Ranging (SLR, na sigla em inglês), cuja função é medir com precisão, por meio de emissões de raios laser, distâncias entre telescópios em terra e refletores de satélites em órbita. O tempo de viagem de ida e volta é medido e serve para calcular a distância. Além de mostrar a órbita exata do satélite, o equipa-
mento permite, por exemplo, monitorar a rotação do planeta, tomando-se medidas de diversas estações na superfície terrestre. A tecnologia existe desde a década de 1950.0 aparelho construído na China pertence à terceira geração dos SLR e tem precisão maior do que a maioria dos equipamentos existentes, boa parte deles instalada no hemisfério Norte. A Província de San Juan, nos Andes argentinos, é local privilegiado no hemisfério Sul para abrigar o instrumento. Técnicos chineses passarão uma temporada na Argentina, para ajustar o instrumento. Os resultados científicos serão compartilhados pelos dois países. {Xinhuanet, 9 de setembro) •
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Gente que faz... satélites Sessenta universidades de vários cantos do mundo uniram-se num objetivo comum: povoar a órbita terrestre com centenas de minissatélites de baixo custo, próprios para realizar experiências científicas. Sob a liderança de Robert Twiggs, professor do Departamento de Aeronáutica e Astronáutica da Universidade Stanford, constróem protótipos dos CubeSats, minissatélites em forma de cubo, com apenas 10 centímetros de lado e 1 quilo de peso, capazes de trabalhar em baixas órbitas, entre 400 e 600 quilômetros da superfície terrestre. "Somos um grupo internacional devotado a compartilhar publicamente informações e aprimorar uma tecnologia", diz Twiggs. "Somos, para os pequenos satélites, o equivalente ao que a comunidade Linux representa para os sistemas operacionais de computadores." No final de agosto, a comunidade aumentou com a visita a Stanford de um grupo
de cinco estudantes da Universidade de Bucareste, capital da Romênia. Twiggs coordenou uma semana de treinamento que mostrou aos jovens como construir CubeSats - que prometem ser os primeiros satélites lançados pelo país do Leste Europeu. Os estudantes romenos planejam realizar vários experimentos com seus CubeSats, como a detecção de poeira de meteoros e a medição de radiações. Esperam lançar os artefatos em 2007. "Coordenar uma missão completa de um satélite, passando pela construção e o lançamento, é um excelente desafio para jovens pesquisadores, com ímpeto de seguir carreira tecnológica", diz Marius-Ioan Piso, chefe da Agência Espacial da Romênia. O objetivo da comunidade CubeSat é estimular estudantes de graduação e pós-graduação a iniciar-se na tecnologia dos satélites. A construção de cada protótipo custa US$ 25 mil, uma barganha perto do
■ Esforço concentrado preço de grandes satélites, que saem por até US$ 400 milhões. O baixo custo é premissa importante. "Há liberdade para falhar", diz Twiggs. Em junho de 2003, os primeiros seis CubeSats foram lançados ao espaço a partir de uma base russa, a bordo de um foguete alemão. Até o final deste ano, outros três devem ser lançados. Cada pequeno cubo pode carregar dois instrumentos científicos. Participam do projeto, além dos Estados Unidos, instituições de países como o Canadá, Japão, Suíça, Austrália, Dinamarca, Coréia do Sul, Alemanha, Colômbia, Portugal, Taiwan, Noruega, Turquia, Argentina, Malásia, África do Sul e China. O Brasil também participa da comunidade, por meio de um grupo da Universidade Norte do Paraná (Unopar). (Stanford Report, 7 de setembro) •
O governo da Tailândia planeja criar um superministério da Pesquisa e Desenvolvimento, por meio da fusão dos atuais ministérios da Ciência e Tecnologia e da Tecnologia de Informação e Comunicação. A mudança busca ajudar a indústria do país a alcançar um novo perfil com o desenvolvimento massivo de produtos inovadores. De acordo com o governo, as duas principais agências de fomento do país financiaram mais de 2 mil projetos entre 1998 e 2003. Outra estatística mostra que, quase no mesmo período, entre 1998 e 2002, apenas 122 inovações foram patenteadas. No primeiro semestre de 2004 a Tailândia gastou US$ 9 bilhões com a importação de produtos com tecnologia agregada. "O desafio para o novo ministério consiste em fazer com que o investimento público se traduza em benefícios concretos e dê uma direção clara ao futuro da nossa pesquisa", diz Tossaporn Sirisampan, autoridade tailandesa envolvida na fusão dos ministérios. As agências de fomento passarão a funcionar sob um
mesmo comando e um grupo de propriedade intelectual será criado para estimular e proteger as inovações. Pairash Thajchayapong, secretáriogeral do Ministério da Ciência e Tecnologia, diz que a reforma vai também desburocratizar a estrutura dos laboratórios e permitir que os pesquisadores trabalhem com mais flexibilidade. (SciDev.Net, 12 de setembro) •
Alejandro Toledo, concedeu o reajuste na forma de abono especial, que não pode ser incorporado às aposentadorias. A grande reivindicação dos professores, não atendida pelo governo, era a regulamentação de uma lei de 1983 que estabelece paridade entre o salário dos docentes e o dos juizes federais. Se a velha lei saísse do papel, o aumento chegaria a 332%. (SciDev.Net, Io de setembro) •
■ 0 primeiro reajuste em 22 anos Cerca de 22 mil professores de universidades públicas do Peru receberam em setembro um aumento de salário entre 10% e 12%, no primeiro reajuste salarial dos últimos 22 anos. Para conseguir o aumento, foram necessários quatro meses de negociação e 40 dias de greve, o que provocou um atraso no segundo semestre acadêmico. O salário médio de um professor universitário peruano com dedicação exclusiva e dez anos de experiência é de 1.550 sóis (cerca de US$ 470). Um professor com a mesma experiência numa boa universidade privada recebe entre US$ 2 mil e US$ 3 mil. O presidente do Peru, PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 21
ESTRATéGIAS
MUNDO
A responsabilidade de cada um
O olho do Katrina: a ciência previu, mas ninguém fez nada
A tragédia do furacão Katrina, que inundou a cidade de Nova Orleans e matou mais de 800 pessoas, havia sido prevista pela ciência. Um documento de 1998 alertava para a necessidade de restaurar manguezais que protegiam a zona costeira, consumidos a uma razão de 60 quilômetros quadrados por ano. Também era sabido que o sistema de diques que mantinha Nova Orleans seca não suportaria furacões de categoria superior a 3 na escala Saffir-Simpson (o Katrina alcançou a categoria 5, a mais destrutiva). Em 2004, outro levantamento mostrou que 21% da população da cidade, sobretudo os mais pobres, não sairia de lá na passagem de um furacão. Mas, se as autoridades agora fazem a autocrítica - a mais comum dá conta de abandonarem a prevenção de catástrofes naturais para se preocupar apenas com o terrorismo -, os pesquisadores não se sentem isentos no balanço da tragédia. Roger Pielke, diretor do Centro de Pesquisa em Políti-
cas de Ciência e Tecnologia da Universidade de Colorado, argumenta que o papel dos cientistas não pode limitar-se a produzir informações para quem quiser usá-las. Eles precisam direcionar suas investigações também para necessidades práticas. "Esse é o desafio, mas as universidades não estão preparadas. Torço para que, após o desastre, os responsáveis pelas políticas públicas exijam mais dos cientistas", afirma. De todo modo, pesquisadores que anteviram a tragédia não escondiam a frustração. Nedra Korevec, da Universidade do Estado de Louisiania, já havia analisado os efeitos devastadores de um furacão categoria 4 em Nova Orleans. Na iminência da chegada do Katrina, conseguiu convencer familiares a deixar a cidade e fugir para sua casa em Baton Rouge, onde chegou a hospedar dez pessoas. "Tentamos fazer as coisas acontecerem, mas tudo esbarra na lentidão das autoridades", afirma. (Nature, 8 de setembro) •
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Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
http: / /www. revista macrocos mo.com A edição de setembro da revista eletrônica de astronomia trata, entre outros temas, da detecção de planetas extra-solares e da Estação Espacial Internacional.
http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/ A Biblioteca Virtual Adolpho Lutz disponibiliza a produção científica de um dos fundadores da medicina tropical e sua correspondência - são 4 mil cartas.
Wíl&PMDZTi f/iapping the Worlcfs Spscies
\tm% http://www.worldwildlife.org/wildfinder/ 0 banco de dados do WWF (Fundo Mundial para a Natureza) mapeia a distribuição geográfica de 30 mil espécies de anfíbios, répteis, mamíferos e pássaros.
Para melhorar o SUS
■ Segredos dos lepidópteros Estão abertas até o dia 15 de novembro as inscrições para um programa de fomento a estudantes de graduação e pós-graduação que realizam pesquisas sobre lepidópteros, ordem de insetos que reúne as borboletas e mariposas. O programa, recém-criado pela Lepidoptera Research Foundation e pelo Journal of Research on the Lepidoptera, vai distribuir inicialmente US$ 5 mil (cerca de R$ 11,5 mil) para cinco projetos selecionados. Será dada prioridade a candidatos de países em desenvolvimento. Segundo os organizadores do programa, a decisão de apoiar jovens pesquisadores resultou da alta qualidade dos estudos apresentados no Encontro sobre Lepidoptera Neotropicais (I Elen), realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em abril. Três membros da Lepidoptera Research Foundation estiveram nesse evento. "É gratificante saber que
O programa Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde receberá propostas de projetos de pesquisa até 18 de outubro. Lançado pela FAPESP em parceria com a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, o programa é uma iniciativa conjunta do Ministério da Saúde, do Con-
nossos esforços em realizar o encontro criaram oportunidades para uma nova geração de especialistas em lepidop-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do governo paulista. O objetivo é financiar projetos interdisciplinares sobre os temas Qualificação da Atenção à Saúde (estudos comparativos de custo e efetividade entre as ações de saúde) ou Gestão Des-
terá", diz Marcelo Duarte, jovem pesquisador da FAPESP, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos organizadores do Elen. Outras informações podem ser obtidas com Rudi Mattoni no e-mail mattoni@ucla.edu. •
■ Inserção na pesquisa ambiental
Mariposa: fomento
Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi escolhido para comandar entre 2006 e 2008 o Programa Internacional Geosfera-Biosfera (IGBP, na sigla em inglês),
centralizada do SUS (análise de compromissos assumidos pelos gestores e a divisão de poder entre eles). O valor global para financiamentos é de R$ 2 milhões - cada projeto receberá, no máximo, R$ 250 mil. Os escolhidos serão anunciados até o início do mês de dezembro. •
que reúne estudiosos de todo o mundo em investigações interdisciplinares sobre mudanças ambientais globais. "Será uma excelente oportunidade para articular políticas científicas e estimular uma maior inserção dos países em desenvolvimento nas pesquisas ambientais", diz Nobre. Um escritório regional do IGBP será instalado na sede do Inpe, em São José dos Campos. Uma das metas de Nobre é criar um escritório também na China. "Esses dois escritórios, adicionados à secretaria do programa, na Suécia, darão a verdadeira cobertura e dimensão global do IGBP." •
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Bichos e plantas da Mata Atlântica A Fundação Biodiversitas e o Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan) lançaram o edital de 2005 do Programa de Espécies Ameaçadas, que vai oferecer R$ 320 mil a pesquisas sobre proteção e manejo das espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção da Mata Atlântica. As
■ Conselho Superior tem novo membro Giovanni Guido Cerri, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), é o novo membro do Conselho Superior da FAPESP. A nomeação foi anunciada no dia 22 de setembro. Professor titular do Departamento de Radiologia da FMUSP, Cerri é doutor e livre-docente pela USP e tem especializações pela universidade norte-americana do Alabama e pelo Centre Hospitalier et Universitaire SaintAntoine, na França. Ele irá complementar o mandato de Carlos Henrique de Brito Cruz, que deixou o conselho para assumir a diretoria científica da Fundação. O Conselho Superior é formado por 12 membros com mandato de seis anos. Seis vagas são de livre escolha do governador
do estado - a de Cerri é uma delas. As demais são também preenchidas pelo governador, a partir de listas tríplices eleitas pelas universidades estaduais paulistas e por instituições de ensino e pesquisa, públicas e particulares, sediadas no Estado de São Paulo. •
■ Reconhecimento à divulgação O presidente da FAPESP, Carlos Vogt, recebeu o Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação, concedido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, no dia 8 de setembro, em cerimônia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A Fundação foi premiada na categoria Instituição Paradigmática pela iniciativa de instituir programa especial de comunicação científica e tecnológica por
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propostas, orçadas em até R$ 25 mil, podem ser apresentadas por professores e pesquisadores de universidades e outras instituições, estudantes de pós-graduação, organizações não-governamentais ligadas à conservação ambiental e empresas privadas. O prazo para a inscrição de propos-
meio de veículos como a revista Pesquisa FAPESP e Agência FAPESP. "No meio próprio das atividades acadêmicas, esse prêmio significa um destaque e o reconhecimento do cumprimento da missão estatutária da Fundação, que é dar ampla divulgação social às pesquisas produzidas em São Paulo e no país", afirma Vogt. •
Prêmio Luiz Beltrão
tas vai até 28 de outubro. É o terceiro ano consecutivo que o programa seleciona projetos. Ao todo, já foram aprovadas 32 pesquisas, que contemplam 39 espécies em perigo da Mata Atlântica em 13 estados brasileiros. Mais informações podem ser obtidas no site www.bio diversitas.org.br. •
■ Quinhão restabelecido A FAPESP decidiu reduzir para 15% a parcela da reserva técnica calculada sobre o valor das concessões em moeda estrangeira previstas nas várias modalidades de auxílios. A regra vale também para as importações em andamento. Em agosto de 2002, em função da crise cambial, a FAPESP passou a utilizar uma parte da reserva técnica para cobrir custos de importação. Esse contingenciamento, equivalente a 25% do valor concedido para bens ou serviços importados, tinha como objetivo garantir a cobertura das despesas em compras externas sem a necessidade de suplementações administrativas. "O restabelecimento dará aos pesquisadores apoiados pela FAPESP melhores condições para cuidar das
despesas referentes à infraestrutura de pesquisa", afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. •
■ Luzes sobre os imigrantes Brasil e Portugal se reaproximam em iniciativas de suas instituições de pesquisa. Entre os dias 7 e 11 de novembro, 12 pesquisadores portugueses irão ao Rio de Janeiro participar de um encontro sobre a emigração lusitana para o Brasil, que reunirá especialistas do campo da história e da documentação na Universidade Federal Fluminense. Entre os nomes lusitanos já estão confirmados Eugênio dos Santos, da Universidade do Porto, e Fernando Souza,
diretor do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (Cepese). O congresso é um dos primeiros frutos de um convênio celebrado em julho entre a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e o Cepese, vinculado à Universidade do Porto. O objetivo da cooperação, programada para durar os próximos dois anos, é aproximar as comunidades científicas dos dois países em pesquisas relacionadas com a população, economia e sociedade. Também está prevista a organização de um portal na internet, que reunirá uma base de dados sobre a imigração portuguesa a partir de documentos de ambos os países. Pesquisadores lusitanos já levantam da-
dos nos distritos que emitiam passaportes entre os séculos 19 e 20. No Brasil, começam a ser trabalhados documentos datados até 1842, já tratados no Arquivo Nacional. •
■ Limites do jornalismo científico O jornalismo científico é o tema do terceiro volume da coleção Formação & informação - Jornalismo para iniciados e leigos (Summus Editorial, R$ 24,00). A obra discute os conhecimentos de que o comunicador necessita para produzir jornalismo de qualidade sobre ciência dirigido a públicos de vários tipos. Organizado por Sérgio Vilas Boas, o livro traz artigos dos jornalistas Alicia Ivanissevich, Eduardo Geraque, Martha San Juan França, Maurício Tuffani, Verônica Falcão e Vinícius Romanini. Os textos abordam os riscos do sensacionalismo no tratamento de temas científicos, assim como os perigos do excesso de encantamento dos repórteres com os assuntos que cobrem. Também estão contempladas discussões sobre os limites entre divulgação científica e jornalismo, as formas possíveis de cooperação entre comunicadores e acadêmicos e a história do pensamento científico, entre outros. •
■ Refinamento da prática acadêmica O Conselho de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo (USP) lançou o primeiro número da Revista de Cultura e Extensão. A publicação, que será editada semestralmente em papel e em meio eletrônico, será
fCULTtlRi
um "espaço para a discussão de idéias, de narrativas de experiências e práticas, em que diferentes pontos de vista encontram diálogo", diz Adilson Avansi Abreu, pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária. O primeiro número da revista traz uma entrevista com Alfredo Bosi, artigos e comentários sobre projetos e programas desenvolvidos pela universidade. De acordo com Abreu, a revista "contribuirá para o refinamento doutrinário da prática acadêmica e aperfeiçoamento metodológico da interação entre universidade e sociedade". •
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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
DIFUSÃO
Artigos na vitrine Com 134 revistas científicas, a biblioteca SciELO Brasil ganha mais visibilidade e atrai novos patrocinadores
FABRíCIO MARQUES
O
programa SciELO Brasil, biblioteca eletrônica criada em 1997 com a função de reunir as melhores revistas científicas do país, está alcançando um novo patamar de importância entre os pesquisadores brasileiros. Numa reunião realizada em São Paulo no final de agosto, representantes de várias instituições assumiram o compromisso de fortalecer, com ajuda financeira e institucional, a operação da coleção publicada em linha na Internet, confirmando sua vocação de projeto de âmbito nacional. O SciELO Brasil (a sigla significa Scientific Electronic Library Online) surgiu graças a uma parceria entre a FAPESP e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), vinculado à Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) e à OMS (Organização Mundial da Saúde). Nos últimos anos já havia ampliado o leque de patrocinadores, atraindo o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agora há o compromisso de participação também da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), das fundações de amparo à pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) e do Rio de Janeiro (Faperj), da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), do Ministério da Saúde e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação. O formato do apoio será definido em novas rodadas de conversas. Para entender o interesse dessas instituições pelo SciELO Brasil é preciso enumerar algumas marcas do programa. Criado há oito anos com uma coleção de apenas dez títulos piloto, que serviram para desenvolver uma metodologia de indexação, o SciELO hoje alcança uma seleção de 134 periódicos cujo conteúdo é disponibilizado gratuitamente pela internet. A coleção abrange todos os campos do conhecimento, inclusive as ciências humanas, que ostentam mais de 30 títulos. Esse conceito de acesso aberto, na contramão do mercado editorial científico dos países desenvolvidos, garantiu uma visibilidade que as revistas brasileiras jamais tiveram antes. "Foi notável como aumentou a oferta de artigos para nossa revista depois que ela ingressou no SciELO. Mais pesquisadores interessaram-se em publicar conosco atraídos pela visibilidade que a coleção con-
fere", diz Renato Procianoy, editor do Jornal de Pediatria e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Também percebemos que, como o SciELO tem divulgação internacional, a revista passou a ser mais bem vista lá fora." A publicação, de periodicidade bimensal, é editada desde 1934. José Renato Zanini, editor da revista Engenharia Agrícola, diz que ingressar na biblioteca virtual tornou-se questão de sobrevivência para um periódico científico. "Quem está fora do SciELO está fora do padrão internacional", afirma Zanini, professor do Departamento de Engenharia Rural da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Jaboticabal. "Nossa inclusão serviu para colocar a casa em ordem e nos dá ferramentas importantes para avaliar o impacto de cada trabalho publicado", afirma. A revista Engenharia Agrícola existe desde 1972 e foi admitida na coleção há cerca de dois anos. Outro efeito benéfico foi o aperfeiçoamento dos títulos. Para ser admitido e depois se manter na coleção cada periódico precisa cumprir uma série de
exigências rígidas, em relação à qualidade de conteúdo, à originalidade das pesquisas, à regularidade da publicação, à revisão e aprovação por pares das contribuições publicadas e à existência de um comitê editorial de composição pública e heterogênea. Também devem seguir certas formalidades, como por exemplo a apresentação, em inglês, de resumo, título e palavras-chave, quando esse não é o idioma do artigo. Um comitê consultivo monitora o cumprimento dessas exigências e já excluiu publicações que perderam qualidade. Para honrar o lugar que ocupam no SciELO, os periódicos tiveram de fazer a lição de casa. Alguns títulos ganharam consistência graças ao empenho de grupos ou sociedades científicas, que passaram a prestigiar a publicação com artigos de peso em vez de dispersarem esforços em revistas diferentes ou disputarem espaço em revistas internacionais. O efeito observado foi uma progressiva reorganização dos periódicos. "Se o país quer ter boa ciência, deve ter boas revistas", diz Abel Packer, diretor da Bireme e coordenador operacional do SciELO Brasil. "Essa é a essência do PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 27
que acontece lá fora. O Brasil quase fechou o ciclo de fazer ciência de bom nível. Falta fazer boas revistas, mas estamos começando a mudar isso." Uma análise feita por Rogério Meneghini, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e coordenador-geral do SciELO, dá a dimensão do salto de qualidade. Ele analisou a trajetória de sete títulos que participam tanto do SciELO quanto da base norte-americana Thomson ISI (Institute for Scientifíc Information), a mais importante do mundo científico, que congrega cerca de 8 mil publicações. Meneghini observou que, entre 1998 e 2004, os fatores de impacto dessas revistas, que eqüivalem ao número de citações que seus artigos tiveram em outros periódicos, cresceram em média 2,15 vezes. "Esse salto, não tenho dúvidas, foi provocado pela visibilidade do SciELO", afirma Meneghini. "Agora se constrói um círculo virtuoso. As revistas são mais reconhecidas e cuidam mais de sua qualidade", diz. A interface do SciELO proporciona acesso a mais de 60 mil artigos de sua 28 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
coleção de periódicos. "Fazemos um grande e contínuo esforço para sintonizar o SciELO com o estado da arte internacional e evitar qualquer tipo de isolamento", diz Abel Packer. "Se você entra em qualquer base de dados e encontra um artigo ou revista do SciELO terá um link para o texto completo. É a filosofia de colocar a produção brasileira em contato com os fluxos internacionais", afirma. Os organizadores acreditam que a coleção brasileira está chegando a seu limite, reunindo o núcleo de publicações com excelência para integrar o acervo. "Temos indicadores de que a coleção é representativa das publicações de qualidade", diz Packer. Em cienciometria, área de pesquisa que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência, esse princípio é conhecido como a Lei de Bradford, segundo a qual existe um núcleo de revistas que abrange o grosso dos artigos de repercussão. Outras publicações até podem acrescentar al-
go, mas não de modo significativo. "É preciso ser cuidadoso para manter a qualidade e evitar gastos desnecessários", diz Meneghini.
ma grande utilidade da base SciELO é reunir dados empíricos sobre o desempenho das revistas indexadas. A metodologia adotada dá ao editor de cada publicação e também ao estudioso de cienciometria ferramentas para ver o quanto cada artigo é acessado, quem cita, qual a repercussão. Esses instrumentos, vitais para nortear a política editorial das publicações, permitiram evidenciar a existência de dois tipos de título. Um deles, mais centrado no campo da ciência básica, é mais reconhecido em citações de revistas internacionais. Alguns exemplos são o Journal ofthe Brazilian Chemical Socie-
ty, o Brazilian Journal of Medicai and Biological Research, o Brazilian Journal of Physics, Genetics and Molecular Biology ou os Anais da Academia Brasileira de Ciências, que freqüentemente são citados na base Thomson ISI. E há uma segunda categoria de publicações, no campo da agronomia, da veterinária, da medicina tropical e da saúde pública, que são pouco citadas no exterior, mas têm notável impacto no Brasil e em países em desenvolvimento. São exemplos a Pesquisa Veterinária Brasileira, as Memórias do Instituto Oswaldo Cruz ou a Pesquisa Agropecuária Brasileira. O achado coincide com a tese de W. Wayt Gibbs, que em 1995, num artigo na revista Scientiftc American, pontificou sobre a existência de uma "ciência perdida do Terceiro Mundo", não indexada em bases de dados internacionais, mas de interesse para os países pobres. Com o advento do SciELO, a ciência perdida já não é tão invisível. O paradigma do SciELO já rendeu frutos em outros países, que se inspiraram na experiência brasileira. Adotaram a mesma metodologia, fornecida pela Bireme com apoio de agências de
fomento locais, e passaram a compor uma rede internacional de mais de 300 revistas científicas franqueadas ao público. Cuba e Chile foram os que mais investiram na idéia, a ponto de terem coleções certificadas. Outros países entraram mais recentemente e têm coleções ainda em desenvolvimento, caso da Argentina, Colômbia, Venezuela, México, Portugal e Peru. A Espanha participa, por enquanto, com uma coleção na área da saúde pública, mas promete ingressar no sistema em outros campos do conhecimento, o que deverá conferir uma nova escala à biblioteca. Os espanhóis publicam duas vezes mais artigos científicos do que o Brasil, atual líder da rede e responsável pela metade da produção de toda a América Latina. O modelo SciELO tem três componentes. Um deles é o desenvolvimento de metodologia para editar, armazenar, criar hyperlinks na internet, publicar, divulgar e avaliar revistas científicas. O segundo é a aplicação da metodologia para operacionalizar as coleções de revistas eletrônicas. O terceiro é o desenvolvimento da rede de sites através da promoção de parcerias e comunicações
científicas - autores, editores científicos e técnicos, instituições e agências financiadoras, com o conseqüente melhoramento da comunicação científica. Embora não tenha nascido com essa marca, a biblioteca virtual tornouse um exemplo para um movimento que ganha corpo na comunidade científica: o open access, que propõe o acesso livre e gratuito à informação científica. O movimento contrapõe-se às regras do mercado editorial dos países desenvolvidos, que cobram tanto do pesquisador que consegue publicar seu artigo quanto do usuário para ter acesso a ela. "Não é apenas um movimento econômico, é ético", diz Rogério Meneghini. "A ciência é um bem da humanidade e seus achados devem ser compartilhados para o bem de todos." O Brasü paga US$ 30 milhões por ano para que seus pesquisadores e universidades tenham acesso a 8 mil revistas da base Thomson ISI - a conta salgada é bancada pela Capes. "O SciELO Brasil é open access de nascença, pois a FAPESP e a Bireme, evidentemente, não aplicariam recursos no projeto se fosse para cobrar dos usuários", afirma Meneghini. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 29
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
PATENTES
Proteger para
multiplicar Proteção da propriedade intelectual amplia benefícios sociais da pesquisa CLAUDIA IZIQUE
T
rês anos antes de o Congresso Nacional aprovar a lei brasileira de patentes, a Empresa Brasileira •JL_ de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) começava a elaborar um conjunto de regras de proteção do conhecimento gerado nas mais de 500 linhas de pesquisa desenvolvidas ao longo de 32 anos. Tratava-se de um cuidado especial com o seu patrimônio científico, prática na época bastante incomum entre as instituições públicas de pesquisa. Quando o Brasil aderiu ao acordo Trips (Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights) condição imposta para o país integrar a Organização Mundial do Comércio (OMC) - e quando foram editadas as leis de propriedade intelectual e de cultivares, a partir de 1996, a Embrapa já tinha criado um núcleo de inovação, elaborado as normas de proteção de seu material genético e definido as condições de relacionamento com parceiros públicos e privados para o desenvolvimento de novas variedades de plantas, lembra Elza Cunha, diretora da área da Propriedade Intelectual da Embrapa entre 1993 e 2002. A preocupação de proteger o conhecimento e de criar regras para o relacionamento com parceiros públicos e privados não foi exclusiva da Embrapa. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) iniciou a implantação de suas regras no final da década de 1980 e formalizou-as em 1994. Desde então os 63
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projetos protegidos resultaram em 64 patentes já concedidas - 14 no Brasil e 50 no exterior - e 118 solicitadas - 54 no Brasil e 64 no exterior -, conta Maria Celeste Emerick, coordenadora de Gestão Tecnológica e Inovação da Fiocruz. No caso da Embrapa, a política adotada gerou 129 patentes, sendo 89 delas no exterior. Esses resultados, além de dar a medida da dinâmica e da qualidade das pesquisas nas duas instituições, podem contribuir para a avaliação do papel estratégico da proteção da propriedade intelectual na difusão do conhecimento. Controle de preço - O registro de uma patente exige a publicação detalhada da tecnologia. Em se tratando de invento original e com aplicação industrial, o produto do conhecimento ficará protegido no país de origem ou no exterior por um prazo determinado, em média de 20 anos, durante o qual o inventor poderá explorá-lo comercialmente ou licenciá-lo em troca do pagamento de royalties, antes que caia em domínio público. "Todos têm acesso à fórmula e isso ajuda no avanço do conhecimento", argumenta Sérgio Salles Filho, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além de contribuir para a disseminação de novas tecnologias, os exemplos da Embrapa e da Fiocruz demonstram que a patente pode ser uma ferramenta crucial para dar suporte a políticas
públicas. A proteção de cultivares - uma modalidade de patentes sui generis -, por exemplo, conferiu à Embrapa uma posição estratégica no mercado brasileiro de sementes. A empresa detém, por exemplo, 23% das cultivares protegidas de soja e, se computadas as parcerias firmadas com dez fundações de produtores de sementes, esse porcentual chega a 36%. A presença forte da Embrapa nesse mercado limitou o processo de desnacionalização e privatização do setor, deu fôlego e competência aos produtores nacionais de sementes e ainda tem contribuído para o controle de preços. Não fosse a política de patenteamento, as grandes empresas multinacionais prevaleceriam neste mercado. No caso da Fiocruz, a política de patenteamento qualificou a instituição para transferir tecnologia a parceiros, licenciar o desenvolvimento de pesquisa e produzir imuno biológicos em suas duas fábricas e, com isso, garantiu o abastecimento de uma parcela do mercado de vacinas, diagnósticos e medicamentos, permitindo ao país negociar preços com grandes indústrias farmacêuticas. Avaliado nessa perspectiva, o impacto social das políticas de propriedade intelectual contradiz argumentos de alguns setores da academia para os quais a política de patenteamento é incompatível com o caráter público do conhecimento produzido nas universidades e institutos de pesquisa. "Conhecimento é poder. Se publicado sem proteção, à guisa de aumentar os benefícios sociais, quem o usará de forma mais rápida e eficiente? Certamente serão aqueles mais bem posicionados para o uso desse conhecimento que, em geral, não são os mais necessitados", afirma Salles Filho. É função do setor público, ele diz, oferecer tecnologia, protegê-la, criar e ampliar negócios para gerar riquezas e não para "alimentar desigualdades" de uso do conhecimento. "A questão fundamental é a da apropriação do valor gerado pelo conhecimento e não a apropriação do conhecimento per si." 32 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
No caso da Embrapa, a política de proteção à propriedade intelectual teve efeitos também sobre a receita. Não existem restrições ao compartilhamento de patentes de invenção com parceiros públicos ou privados, mas a Embrapa não divide titularidade de cultivares com empresas. Concede, nesse caso, licença de uso com exclusividade para a exploração comercial por um período de oito a dez anos, mediante pagamento de royalties. A regra vale para os contratos firmados com as dez fundações de produtores de sementes, como a Monsanto, e valerá para os contratos em negociação com a Basf, Syngenta, Bayer e Delta Pine.
s cultivares protegidas geraram, em média, 2 mil contratos por ano e resultaram em wyalties com valor entre R$ 11 milhões e R$ 13 milhões, um quinto do orçamento de custeio da empresa entre 1993 e 2002. "Adotamos uma política agressiva de licenciamento", lembra Elza Cunha. "E a Embrapa ainda não começou a licenciar produtos transgênicos. Dá para imaginar o que a empresa vai ganhar com isso?", indaga. A Fiocruz iniciou a revisão das normas de proteção da propriedade intelectual. Maria Celeste quer implementar regras mais rígidas de procedimento de operações padrão por reconhecer uma certa "informalidade" na relação com pesquisadores. "Vamos aprimorar a entrevista com o inventor e transformá-la em notificação para a invenção e os mecanismos gerenciais", exemplifica. A fundação já criou uma comissão para avaliar projetos que serão patenteados. "Temos oito patentes negociadas, mas algumas não têm licença de uso exclusivo." São patentes de baixo valor agregado que, do ponto de vista financeiro, têm resultados irrisórios, ela admite.
A Fiocruz também investe na qualificação de seus quadros. A pesquisa e desenvolvimento ganhou status de disciplina no curso de pós-graduação da Fiocruz e já existe um curso sobre Propriedade Intelectual e Interesse Público ministrado em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Temos ainda três projetos de pesquisa com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj): Propriedade Intelectual em Genômica, Proteômica e Informática; Propriedade Intelectual em Nanotecnologia; e Propriedade Intelectual e Células", conta Claudia Chamas, coordenadora da disciplina Biociência, no Instituto Oswaldo Cruz. Salles observa que os institutos públicos de pesquisa não devem adotar políticas de patenteamento apenas como uma forma de geração de receita. "Mas têm obrigação de trabalhar com a proteção do conhecimento gerado nas pesquisas, caso contrário estarão desperdiçando dinheiro público. O licenciamento gera receita, aumenta a capacidade de investimento e, sobretudo, traz benefícios sociais maiores do que se simplesmente houvesse a liberação indistinta do conhecimento", ele diz. A patente é também uma ferramenta estratégica para a transferência de conhecimento gerado nas universidades e institutos de pesquisa para dar suporte ao desenvolvimento da inovação empresarial. O Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), em São Paulo, e as universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande Sul (UFRGS) e a Estadual de Campinas (Unicamp) estão entre as instituições que já adotaram políticas de proteção da propriedade intelectual e criaram núcleos ou agências de inovação para estreitar o relacionamento com parceiros estratégicos. A Unicamp, por exemplo, criou a sua Agência de Inovação (Inova Unicamp) há dois anos. Com 400 patentes depositadas - 46 já concedidas -, a Unicamp manteve o primeiro lugar entre
Cultivares protegidas geraram cerca de 2 mil contratos de licenciamento que renderam à Embrapa recursos equivalentes a um quinto do orçamento de custeio
os 20 maiores depositantes de patentes no Estado de São Paulo entre 1994 e 2001. Pelo menos 41 tecnologias já foram licenciadas em diferentes setores do mercado durante os 25 meses de atuação da Inova, entre elas anestésicos; um sistema de tratamento de efluentes industriais; um receptor de radiofreqüência, entre outras, de acordo com Rosana Di Giorgio, diretora de Propriedade Intelectual. "Todos os contratos firmados entre as universidades e o mercado - e não apenas os de licenciamento - não representam receita significativa. Atingem, no máximo, 7% do orçamento das universidades", estima. Os resultados financeiros registrados pela Unicamp corroboram a idéia defendida por Salles de que as instituições públicas de pesquisa não devem assentar sua política de patentes na expectativa de receita. "A missão estratégica da universidade é difundir o conhecimento, e a patente é um dos instrumentos para essa difusão", sublinha Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Utilizando dados das universidades norte-americanas, Brito estima que a patente acadêmica exige investimentos médios de US$ 1 milhão, em comparação com a média de US$ 100 mil para a patente industrial, que, na maior parte das vezes, é incrementai e defensiva. "Nos Estados Unidos, não mais que dez universidades ganham mais com propriedade intelectual do que gastam", diz. Para cada uma das 281 patentes depositadas pela Universidade da Califórnia em 1999, por exemplo, foi necessário investir em pesquisa e desenvolvimento, em média, US$ 6,6 milhões. E cada uma das 715 tecnologias licenciadas na mesma universidade gerou, em média, US$ 102,6 mil ao ano, de acordo com estatísticas de 1999. "A patente acadêmica deve ser inovadora porque derivada de descobertas científicas, enquanto as industriais, em geral, são incrementais. Pelo seu caráter potencialmente revolucionário, as patentes acadêmicas são estratégicas para o avanço da inovação e essenciais para a proteção do investimento público que as gerou", lembra Brito. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 • 33
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
£&tx*&j&Çfo& BIOSSEGURANÇA
A fila vai andar Decreto regulamenta lei e permite a retomada das atividades da CTNBio eis meses depois de sancionada a Lei de Biossegurança, a Casa Civil da Presidência da República concluiu a sua regulamentação. A expectativa era que o decreto presidencial fosse publicado no início de outubro. A regulamentação permitirá a recomposição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e a retomada de suas atividades, suspensas em maio. A nova comissão terá pela frente uma tarefa árdua: colocar em movimento uma fila de espera com 398 processos: sete pedidos de liberação comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs), quatro novos projetos de pesquisa e outros 52 pedidos de liberação de pesquisa da casa de vegetação para o ambiente exterior e 41 solicitações de im34 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
portações, entre outras solicitações ainda não analisadas. A CTNBio será composta por 27 membros, 12 deles especialistas de notório saber científico, três de cada uma destas áreas: saúde humana, animal, vegetal e ambiente. Regulamentada a lei, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, constituirá uma comissão ad hoc- formada por representantes de sociedades científicas, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC) - que terá 30 dias para elaborar listas tríplices de titulares e suplentes. Também integram a comissão representantes de nove ministérios e outros seis especialistas nas áreas de defesa do consumidor, saúde, ambiente, biotecnologia, agricultura familiar e saúde do trabalhador. Serão indicados pelos ministros das diversas pastas e escolhidos em listas tríplices elaboradas por organizações da sociedade civil.
Todos terão mandato de dois anos, renovável por mais dois. Órgãos e entidades da administração federal poderão solicitar participação nas reuniões da CTNBio para tratar de assuntos de seu especial interesse, sem direito a voto. O quorum das reuniões é de 14 membros, incluindo um representante de cada uma das áreas de especialização. As decisões serão tomadas por maioria absoluta. O decreto também regulamenta o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), formado por 11 ministros, que será acionado pela CTNBio para decidir sobre aspectos de conveniência e oportunidade socioeconômica da liberação comercial de OGMs ou avocar processo para análise e decisão no prazo de 30 dias contados da avaliação técnica da comissão. O conselho também arbitrará ações impetradas por órgãos e entidades de registro e fiscalização. • CLAUDIA IZIQUE
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
FINANCIAMENTO
Gestão modernizada Regulamentação do FNDCT reforçará atuação da Ciência e Tecnologia
missão original do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) será restabelecida: voltará a ter natureza contábil e será formado por recursos orçamentários, incentivos fiscais, entre outros. A novidade é que o FNDCT também vai dispor de receitas dos fundos setoriais para o financiamento de ações integradoras, independentemente da origem dos recursos. "Estamos aperfeiçoando a forma de gestão dos fundos", explicou Sérgio Rezende, ministro da Ciência e Tecnologia, em visita à FAPESP, no dia 26 de setembro. O novo modelo passará a valer tão logo o Senado aprove o projeto de lei que regulamenta o FNDCT, já chancelado pela Câmara. O FNDCT foi criado em 1969, extinto pela Constituição de 1988 e restabelecido em 1991. Nos anos 1990, com a crise fiscal, o FNDCT praticamente desapareceu e, em 1999, passou a alocar 15 fundos setoriais formados com receitas de contribuições incidentes sobre a exploração de recursos naturais pertencentes à União, parcelas do Imposto sobre Produtos Industrializados de setores da produção, entre outros. Desde o ano passado, as receitas dos fundos passaram a ser utilizadas para apoiar programas estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), conhecidos como ações transversais, relacionados à política industrial, tecnológica e de comércio exterior. Os projetos da área de petróleo, por exemplo, são
apoiados com recursos do CT-Petróleo; os de biotecnologia, com verbas do CT-Biotec; e assim sucessivamente. As áreas de pesquisa e desenvolvimento sem vínculo com fundos setoriais são financiadas com recursos do CT-VerdeAmarelo, de integração universidadeempresa. "Mas precisamos dar um passo à frente", afirmou o ministro. Para isso, a lei que regulamenta o FNDCT prevê que os recursos destinados pelos comitês gestores dos vários fundos para as ações transversais não precisam ter vínculo com a fonte de receita. A lei de regulamentação também amplia a destinação dos recursos do FNDCT: poderão apoiar programas e
Rezende: aperfeiçoamento de gestão
projetos de ciência, tecnologia e inovação, transferência de tecnologia para empresas até o desenvolvimento de novas tecnologias de produtos e capacitação de recursos humanos. Serão utilizados, por exemplo, para apoiar a inovação empresarial. "Isso não podia ser feito até a aprovação da Lei da Inovação", lembrou o ministro. O FNDCT também vai subvencionar 50% das despesas de empresas com a contratação de pesquisadores com grau de mestre e doutor, autorizada pela Medida Provisória 252, conhecida como MP do Bem. A programação orçamentária do FNDCT prevê uma liberação gradativa das receitas dos fundos setoriais atualmente contigenciada por conta das exigências de superávit primário. Em 2006, a expectativa é contar com 70% das receitas dos fundos; em 2007, 80% e assim sucessivamente, até que em 2009 não haja mais limitação de empenho. No próximo ano, no entanto, essa expectativa já foi frustrada: o Congresso bem que previu, na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO), a liberação de apenas 60% da receita para o orçamento do FNDCT. "Mas o presidente Lula teve que vetar tudo porque esse porcentual valia para outras receitas", disse o ministro que negocia com o Ministério do Planejamento o restabelecimento desse porcentual no orçamento do próximo ano. "Se tudo der certo, isso vai representar um aumento de recursos do FNDCT de R$ 850 milhões para R$ 1,350 bilhão", calculou o ministro. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 35
CIÊNCIA
■ Os demônios da floresta Na Amazônia há clarões dominados por uma só espécie de árvore, a duróia (Duroia hirsuta). São os chamados "jardins do diabo", cultivados por espíritos maus da floresta, segundo a crença dos nativos. A bióloga Deborah Gordon, da Universidade Stanford, Estados Unidos, expôs uma explicação mais concreta na Nature de 22 de setembro: esses jardins são criados pelas próprias formigas que os habitam. Na Amazônia peruana, as formigas Myrmelachista schumanni, que fazem ninhos no caule oco da duróia, matam as outras árvores liberando nas folhas ácido fórmico, que funciona como herbicida. Crescem assim apenas duróias e as próprias colônias, algumas com até 800 anos. • 36 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
Volta para casa: problemas psicológicos e físicos
As dores de quem sobrevive Não se passa impunemente por um campo de batalha. Mesmo quem volta aparentemente ileso pode sofrer conseqüências psicológicas ou físicas. Um em cada quatro veteranos de guerra norte-americanos sofre de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com medos e lembranças intensas de uma situação de perigo que enfrentaram. Joseph Boscarino, da Academia de Medicina de Nova York, avaliou a saúde de 18 mil veteranos do Vietnã e verificou que a probabilidade de morrer por causa de acidentes ou pelo uso abusivo de drogas é maior entre os que desenvolveram TEPT em decorrência da guerra. Os ex-soldados também correm risco maior de ter doenças cardiovasculares e tumores. Em Israel, Yael Benyamini constatou que os veteranos da Guerra do Líbano apresentam propensão duas vezes maior de ter pressão alta, úlcera ou diabetes e cinco vezes maior de ter problemas cardíacos. Pode ser que o estresse excessivo da guerra cause alterações duradouras nos níveis de substâncias associadas ao comportamento de luta ou fuga, como cortisol e dopamina {NewScientist, 27 de agosto). Estima-se que 18% dos soldados no Iraque possam desenvolver TEPT.
■ Tumor de próstata flagrado mais cedo O PSA, exame de sangue usado na detecção precoce do câncer de próstata, pode ganhar um reforço: um teste com 22 proteínas que, analisadas em conjunto, distinguem com mais precisão os homens com tumor em estágio inicial daqueles sem a doença (New England Journal of Medicine). A eficiência do teste de PSA foi questionada em 2004 quando foram identificados casos de homens com tumor, mas com níveis normais de PSA. Se usado em associação com o PSA, o exame desenvolvido nas universidades norte-americanas de Michigan e Harvard e no Centro Médico Diaconisa Beth Israel poderá reduzir a necessidade de biopsias para confirmar a doença. •
■ Placebo aciona analgésicos naturais Uma injeção inócua de água e sal não deveria amenizar a dor, mas a alivia quando quem a recebe imagina que ela pode ter ação analgésica. Acreditava-se que essa resposta - o efeito placebo - fosse apenas psicológica. Pode não ser. Jon-Kar Zubieta, da Universidade de Michigan, Estados Unidos, confirmou que um composto sem atividade farmacológica reduziu a dor por aumentar a liberação de analgésicos naturalmente produzidos pelo cérebro, as endorfinas. O pesquisador aplicou em 14 homens uma injeção dolorida e, em seguida, outra injeção de um composto que dizia ser capaz de aliviar a dor. Após a segunda injeção (uma solução de água e sal), os voluntários afirmaram sentir menos dor. Tomografias do cérebro dos participantes revelaram que os níveis de endorfina em áreas ligadas à percepção da dor foram mais elevados que o normal após a injeção placebo (Journal of Neuroscience). Segundo Zubieta, esses dados mostram que fatores cognitivos como a expectativa de alívio da dor podem modular estados físicos e emocionais ativando grupos específicos de neurônios do cérebro. •
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nico do Ártico está derretendo mais rapidamente do que consegue se reconstituir no inverno. Se os dados se confirmarem, o clima no hemisfério Norte pode ter atingido uma fase de aquecimento irreversível que deve acelerar ainda mais a perda de gelo oceânico e das geleiras, responsável pelo equilíbrio climático no planeta nos últimos milhares de anos. Seria o início de um círculo vicioso de aquecimento e mais perda de gelo. Os efeitos mais imediatos seriam alagamento de regiões costeiras, além de tempestades e furacões mais intensos como o Katrina e o Rita, que castigaram recentemente os Estados Unidos. •
■ Correr descalço reduz lesões nos pés
Ártico: derretimento acelerado altera o clima do planeta
■ Geleiras menores a cada inverno Nunca as geleiras do oceano Ártico encolheram tanto. Em agosto, imagens de satélite mostram uma redução na cobertura de gelo do hemisfério Norte 18% superior à média para esta época do ano. A expectativa era que em setembro a cobertura de gelo oceâ-
nico na região - cerca de 7 milhões de quilômetros quadrados - atingisse valores próximos ao mínimo já registrado: 5,2 milhões de quilômetros quadrados, segundo Mark Serreze, do Centro de Informações sobre Gelo e Neve, nos Estados Unidos (The Independent, 16 de setembro). Para Serreze, esse é um sinal de que o gelo oceâ-
O que é melhor para evitar as lesões das corridas: um tênis com amortecimento no calcanhar ou outro que aumenta a estabilidade do pé? Tanto faz. Estudos indicam que os tênis, independentemente da tecnologia que incorporam, não reduzem as lesões. "As lesões não apenas persistem, mas, em alguns casos, são até agravadas pelo uso dos tênis", afirma Martin Schwellnus, da Unidade de Medicina do Esporte da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. Segundo ele, a saída é alternar períodos de corrida calçado com outros descalço, sempre que possível em pisos diferentes. "Isso dá ao corpo a oportunidade de fazer os ajustes necessários para se adaptar ao terreno", diz Schwellnus. Ao analisar os movimentos do corpo nas corridas, ele constatou que os pés fazem movimentos de rotação que diminuem o impacto com o solo. •
PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 37
Araçari-de-narizamarelo: desde o México até o oeste do Brasil
Arco-íris de penas e sons ■ Perigo nas ruas de Londrina A cidade paranaense de Londrina registra um dos mais elevados índices de acidentes de trânsito do país: 1.500 para cada grupo de 100 mil pessoas por ano. No Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma e às Emergências, pouco mais da metade das 26.954 pessoas atendidas entre 1997 e 2000 havia sofrido acidente de trânsito. Três de cada quatro eram homens e 54% com 20 a 40 anos, segundo Yara Bastos, Selma Andrade e Darli Soares, da Universidade Estadual de Londrina. Possíveis explicações: os adolescentes e adultos jovens são mais inexperientes e impulsivos, buscam emoções fortes e abusam do consumo de álcool e drogas. Mais motociclistas usam capacete, mas ainda 40% dos motoristas dirigem sem o cinto. • 38 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
Há-ú... há-ú... Embora pareça o chamado de alguma rã, é o som típico da araçaripoca-de-natterer (Selenidera natterei), uma espécie de araçari de bico quase todo vermelho com manchas. Raac... raac... raac pode lembrar um papagaio, mas na verdade é o som característico do araçarimulato (Pteroglossus beauharnaesü), outra espécie que parece ter se banhado num arco-íris. Tanto nestas páginas quanto, melhor ainda, no livro Tucanos das Américas (Editora M. Pontual) pode-se perceber quão variados são os tucanos e os araçaris, aves exclusivamente neotropicais: as 44 descritas pelo ornitólogo Herculano Alvarenga e ilustradas por Eduardo Brettas impressionam pela diversidade de cores, a começar pelos bicos - alguns com refinamentos como uma faixa amarela ou azul na base, como no tucano-de-bico-preto (Ramphastos vitellinus teresae), que faz uííí... uííí... uííí. Há espécies mais discretas, como o araçaride-nariz-amarelo (Aulachorhynchus prasinus dimidiatus), que vive em florestas a até 3.500 metros de altitude e pode ser reconhecido pelo seu uét-uét-uét. Já o araçaripocade-bico-riscado (Selenidera maculirostris) vive na Mata Atlântica, da Bahia ao Rio Grande do Sul, e faz ogô, ogô, ogô. Alvarenga é detalhista como todo cientista, mas não deixa de escrever apaixonadamente sobre as aves cujo comportamento também varia: os tucanos vivem em bando em florestas, mas alguns, como o tucano-toco {Ramphastos toco), preferem os campos abertos, solitários ou em poucos casais. •
Tucano-de-bicopreto (acima) e um casal de araçaripocade-natterer: na Floresta Amazônica
■ Polinizadores nas escolas do Pará Morador da comunidade paraense de Piquiatuba, Fernando é um menino curioso que vive contando histórias fantásticas. Misturando ficção e realidade, o garoto conduz seus amigos pela floresta e conversa com "enormes criaturas e minúsculos voadores" - são aves, morcegos e insetos que espalham o pólen das árvores. Essa é idéia central de Polinizadores, escrito e desenhado por D'Arcy Albuquerque e que faz parte do projeto Dendrogene, coordenado pela Embrapa Amazônia Oriental. Destinado ao público infanto-juvenil, o livro será distribuído em escolas da rede oficial do Pará. É o segundo título lançado pelo projeto. O primeiro, Piquiá, sobre a árvore homônima, saiu em 2003. •
■ No Sul, a gripe das galinhas Há uma nova bactéria nas granjas: é a Ornithobacterium rhinotracheale, que se espalha facilmente e causa uma doença respiratória em galinhas, patos, gansos e perus. Não ameaça os seres humanos, mas é sinônimo de prejuízo econômico: as aves infectadas crescem menos e põem menos ovos, algo nada desejável em um país que é um dos maiores exportadores de frango do mundo. A Ornithobacterium rhinotracheale, que já havia sido encontrada nos Estados Unidos, na Europa, na África e no Japão, foi identificada no país pela equipe do veterinário Cláudio Canal, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade
Araçari-mulato: Brasil, Bolívia e Peru
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e com o Centro de Diagnóstico Veterinário Brasil Sul. Em todos os 50 lotes de frangos de nove empresas avícolas gaúchas havia indícios de contaminação pela bactéria. Um artigo publicado na Avian Diseases descreve essa contaminação e outro na Research in Veterinary Science caracteriza a bactéria encontrada no Rio Grande do Sul, o maior produtor de frangos do país. A confirmação abre a possibilidade de o Ministério da Agricultura autorizar a importação de vacinas, já usadas em outros países. •
■ Como fazer um bom café Prefere um café naturalmente adocicado e encorpado ou saboroso e cheiroso? No primeiro caso, peça um expresso; no segundo, peça um feito calmamente em coador de papel tradicional ou em cafeteira elétrica. Depois, delicie-se. O prazer depende não só da sensibilidade de cada um, mas também do modo de preparo: quanto maior a temperatura e menor o tempo de filtragem,
menor a quantidade de açúcares, de acordo com um estudo realizado no Instituto de Botânica de São Paulo. Os amantes do café não suspeitam, mas a bebida mais consumida no Brasil contém até 60% de açúcares. Não se preocupe porque são açúcares não-calóricos, como a galactose, a manose e a arabinose - são eles que dão um toque levemente adocicado ao café. Boa parte desses açúcares espalha-se no café na forma de cadeias longas, os polissacarídeos - galactomananos e arabinogalactanos -
Duas araçaripocas-de-bico-riscado: a fêmea é vermelha
que não são aproveitados pelo sistema digestivo, mas ajudam a reduzir a absorção de colesterol. O café expresso, feito com água bem quente (até 130°C), extrai 3,5 vezes mais açúcares, proteínas e lipídeos (gorduras) que a cafeteira elétrica e 1,8 vez mais que o coador de papel - é, portanto, o mais concentrado, mesmo com menos polissacarídeos, que ajudam a dar corpo à bebida. "Por causa do tempo maior de filtragem e da menor temperatura da água", diz Marcos Buckeridge, pesquisador do Instituto de Botânica e um dos orientadores desse estudo, realizado por Marina Câmara Martins, "o café de coador preserva mais as moléculas e contém mais açúcares livres do que polissacarídeos". O tempo de filtragem mostrou-se mais decisivo que a temperatura para extrair os dois tipos de açúcares (soltos e em cadeia): o coador de papel, cuja filtragem levou 17 minutos, retira 60% mais polissacarídeos por grama de pó que a cafeteira. Vem daí o sabor suave desse café. •
CAPA
í Brasileiros vêem a mais antiga e distante explosão de uma estrela MARCOS PIVETTA
s 3 horas, 7 minutos e 21 segundos do dia 4 de setembro, o satélite Swift, da Nasa, a agência espacial norte-americana, mandou um alerta para os astrofísicos de plantão: aparelhos a bordo da espaçonave tinham acabado de captar indícios do que poderia ser uma explosão de raios gama nos confins da constelação de Peixes. Podia ser um evento estelar importante ou mais uma ocorrência sem maiores predicados. Telescópios baseados em terra, situados nas mais diversas latitudes, deram uma pausa em suas observações de rotina e voltaram rapidamente seus espelhos para as coordenadas cantadas pelo Swift (equipamentos profissionais não dispõem de lentes, mas de espelhos). Oitenta e seis segundos após o aviso, o Tarot, um observatório na Cote d'Azur, já registrava a região indicada pelo satélite. Um esforço em vão. Suas imagens não mostravam explosão alguma e, às 7h23, os astrônomos franceses soltaram um informe do que haviam visto. Nada demais. Trinta e cinco minutos mais tarde, nova resposta negativa, agora do pequeno telescópio Palomar, na Califórnia. O cenário começou a mudar às 10 horas, sempre no horário de Greenwich. Operado por um jovem astrofísico paulista, Eduardo Cypriano, o Southern Observatory for Astrophysical Research, ou simplesmente Soar, um telescópio localizado no começo do deserto de Atacama, mais precisamente no Cerro Pachon, uma montanha de 2.700 me40 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
ARIES
tros de altitude dos Andes chilenos, soltou um informe alvissareiro: tinham captado as primeiras imagens do possível estouro estelar. Ainda não dava para dizer há quanto tempo o misterioso fenômeno havia acontecido, nem precisar exatamente de que se tratava. E o evento só era avistável nos comprimentos de ondas equivalentes ao infravermelho, mas não nas freqüências ópticas, de luz visível. Por isso havia incertezas em torno de sua natureza. "Podia ser poeira cósmica ou uma explosão com alto redshift (em português, deslocamento para o vermelho, jargão para designar eventos siderais muito longínquos)", diz Cypriano, que contou com a ajuda de outra astrofísica de São Paulo, Elysandra Figueredo, sua mulher, no trabalho de processamento das imagens. A pedido de Daniel Reichart, da Universidade da Carolina do Norte, caçador de explosões de raios gama, a dupla de brasileiros redirecionara os espelhos do telescópio, que tem o Brasil como um de seus sócios majoritários, para a constelação de Peixes na esperança de obter algum registro. Como se veria logo depois, esse movimento rendeu dividendos. No dia 12 de setembro, após uma série de medições e observações fei tas de forma pioneira pelo Soar e ratificadas posteriormente por outros telescópios, houve o anúncio formal: a explosão de raios gama GRB 050904, assim chamada pelos pesquisadores, ocorrera a 12,7 bilhões de anos-luz da Terra (um ano-luz eqüivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros), "apenas" 1 bilhão de anos após o Big Bang, o evento primordial que provavelmente deu origem ao Universo. Era o mais distante e antigo estouro cósmico já detectado pelo homem, que sinalizava a morte de uma estrela com massa dezenas de vezes maior que o Sol e o nascimento de um buraco negro a partir de seus despojos. "Estamos entrando em território não mapeado", disse Reichart, na entrevista coletiva que divulgou a descoberta. "Finalmente estamos vendo os remanescentes de alguns dos objetos mais velhos do Universo." O recorde anterior pertencia a uma explosão 500 milhões de anos mais nova que a GRB 050904. 42 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
Imagens captadas pelo Soar: três registros do brilho residual da mais distante explosão cósmica (acima) e dois registros do cometa Tempel 1, antes e depois da colisão com espaçonave
morte de uma estrela massiva provoca uma explosão de raios gama extremamente fugaz, que dura em geral não mais que dez segundos. O GRB 050904 foi uma exceção à norma: prolongou-se por 200 segundos. Alguns astrofísicos estimam que, em pouco mais de três minutos, a explosão confirmada pelo Soar gerou 300 vezes mais energia que o Sol liberará ao longo de seus prováveis 10 bilhões de anos de vida. A rigor, não foi esse rápido e descomunal evento que os espelhos dos telescópios de todo o planeta perseguiram, mas, sim, os remanescentes da explosão. O seu brilho residual, que, em sua longa jornada cósmica, demorou os tais 12,7 bilhões de anos para chegar até nós. Durante três noites seguidas, de 4 a 6 de setembro, Cypriano, um dos integran-
tes do time internacional de astrônomos residentes no Chile que opera o Soar, observou o brilho residual da explosão se esvaindo. "Estava no lugar certo, na hora certa", diz esse paulistano de 34 anos. As imagens originais do fenômeno, feitas em vários comprimentos de onda, não são tão nítidas como as publicadas nesta reportagem. Antes do anúncio público da descoberta da mais antiga explosão cósmica, Elysandra passou uma semana removendo ruídos instrumentais de informação que dificultavam a análise dos registros obtidos do remoto colapso estelar, num esforço conjunto com os pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte. "Por ser muito brilhante no infravermelho, o céu é a parte mais difícil de tratar nas imagens", comenta Lys, como gosta de ser chamada essa paulista de 32 anos, nascida em São Vicente. No final do trabalho, deu tudo certo. O flagrante da mais antiga explosão cósmica é uma luz num período marcado pelas trevas. Há menos informações sobre as estrelas que surgiram na infância do Univer-
so do que sobre o próprio Big Bang. Mesmo sem estar totalmente operacional, as imagens do GRB 050904 produzidas pelo Soar, uma alta aposta da astrofísica nacional, fizeram história. Inaugurado em abril de 2004, após ser projetado e construído por mais de uma década, o observatório possui um espelho principal de 4,1 metros de diâmetro, 6,6 vezes mais potente que o maior dos telescópios instalados no Brasil. Embora situado numa zona desértica, não está sozinho na montanha. Divide o Cerro Pachon com um vizinho ilustre, a unidade sul do Observatório Gemini, localizada a 400 metros de distância e que também foi utilizada nas observações do GRB 050904. O Soar custou US$ 28 milhões, valor rateado pelos quatro parceiros do empreendimento. Três sócios são dos Estados Unidos - a Universidade da Carolina do Norte, a Universidade de Michigan e a National Optical Astronomy Observatories (Noao) - e o outro é o Brasil, que investiu na iniciativa US$ 12 milhões. O Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entrou com US$ 10 milhões e a FAPESP com US$ 2 milhões. Acesso privilegiado - O montante alocado ao Soar facultou à comunidade científica nacional o acesso a 30% da escala de uso do telescópio, a maior fatia entre os participantes do empreendimento. Algo como 127 noites de observação por ano. Em nenhum outro empreendimento astrofísico de primeira linha o Brasil dispõe de tanto tempo. Ao lado de seis nações, o país, por exemplo, faz parte do consórcio Gemini, que conta com dois telescópios de 8,1 metros, maiores que os do Soar, um no Chile e outro no Havaí. Mas o Brasil só tem à disposição os equipamentos do Gemini por menos de 3% de seu tempo de uso. "Entre as grandes infra-estruturas recém-criadas para a ciência brasileira, o Soar e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (em Campinas) são as de maior relevância", afirma o astrofísico João Evangelista Steiner, da Universidade de São Pau-
lo (USP), presidente do consórcio e do conselho diretor do Soar. "Esse telescópio será a ferramenta mais valiosa para a astronomia nacional", comenta Albert Bruch, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Itajubá, Minas Gerais. A rigor, o uso do verbo no futuro se justifica. Apesar de já ser capaz de produzir resultados espetaculares, como a detecção em primeira mão da mais antiga explosão de raios gama, passando a perna em telescópios de todo o mundo, o Soar funciona atualmente a meio pau. Sua maior contribuição à ciência (nacional) ainda está por vir. Hoje a maior parte do tempo de operação de seus equipamentos é consumida em ajustes de engenharia. Uma fração das horas de trabalho é dedicada à obtenção de dados para projetos científicos. Depois de ser inaugurado, todo telescópio passa por essa fase de testes e refinamentos, em que o tempo direcionado para a pesquisa científica aumenta gradativamente à medida que os problemas de engenharia são resolvidos. Se PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ «
não houver atrasos em seu cronograma, o telescópio brasileiro-norte-americano estará totalmente operacional no segundo semestre de 2006. As observações feitas pelos espelhos do Soar servem a variadas linhas de pesquisa astronômica tocadas por brasileiros. Por ora, os achados não são tão espetaculares como o flagrante de uma explosão de raios gama em razão do colapso de uma estrela supermassiva. Nem por isso são desinteressantes. No início de julho, por exemplo, a pedido de Enos Picazzio, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAGUSP), o telescópio captou imagens do cometa Tempel 1, uma massa de gelo, rocha e poeira, com idade estimada em 4,6 bilhões de anos, que passou a 133 milhões de quilômetros de distância da Terra. Os registros foram feitos antes e depois de esse corpo celeste ser atingido por um projétil lançado pela sonda norte-americana Deep Impact (Impacto Profundo). "Pudemos ver que antes da colisão o cometa tinha uma estrutura com quatro zonas ativas (jatos de gases) e depois do choque apresentava somente três", comenta Picazzio, que também avistou o Tempel 1 do Observatório do Pico dos Dias, onde há o maior telescópio em funcionamento em solo nacional. Situado a 1.860 metros de altitude, em Brasópolis, Minas Gerais, onde o céu não é tão límpido e sem nuvens como o dos Andes, o Pico dos Dias tem um espelho principal com 1,6 metro de diâmetro, modesto se comparado ao do Soar. Ápice de uma missão que custou U$ 333 milhões à Nasa, o momento do choque entre o Tempel 1 e o projétil disparado pela sonda Impacto Profundo ocorreu, conforme fora programado, na noite de 4 julho, não por acaso a data nacional dos Estados Unidos. A colisão, portanto, não pôde ser vista por telescópios localizados fora da América do Norte. Ainda assim, a passagem do cometa, que viaja pelo espaço a 37 mil quilômetros por hora, era uma boa chance para se testar o Soar num trabalho de observação de um objeto que se desloca a uma velocidade aparente muito maior que a das estrelas e galáxias (movimento sideral). Foi a primeira vez que o telescópio foi usado para perseguir um alvo com movimen44 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
to não-sideral. "Com o Soar, também podemos ver cometas de elevada magnitude aparente, com pouco brilho", diz Picazzio. "Temos muito mais oportunidades de observação." A olho nu, um observador da Terra, num dia com excelentes condições para observação, consegue enxergar no máximo estrelas ou planetas que tenham brilho equivalente à magnitude 6. Com o Soar, é possível produzir imagens de objetos celestes de magnitude 26. Quanto maior a magnitude de um astro, menor a quantidade de luz que chega a nosso planeta emanada desse corpo. Anãs brancas pulsantes - Outra linha de pesquisa em que o Soar já se mostra bastante útil é o estudo de um tipo raro de objeto astronômico, as ZZ Cetis, também chamadas de anãs brancas variáveis ou pulsantes, que podem ser encaradas como fósseis de estrelas que, no passado remoto, foram exuberantes. Em artigo a ser impresso na edição de dezembro da revista científica Astronomy&Astrophysics, a equipe do pesquisador Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), reporta a descoberta de 14 novas anãs brancas pulsantes com o auxílio do telescópio brasileiro-norte-americano situado nos Andes chilenos. Num outro trabalho, ainda não publicado, Barbara Castanheira, aluna de doutorado de Kepler, identificou, com os espelhos do Soar, outras três ZZ Cetis (e mais sete com o telescópio do Pico dos Dias, em Brasópolis). São números consideráveis, ainda mais quando se leva em conta que, até agora, são conhecidas cerca de cem anãs brancas pulsantes. Mas esse tipo de objeto sideral é exatamente o quê? No crepúsculo de sua existência, quando deixam de produzir as reações termonucleares que lhes fornecem energia, estrelas pequenas ou medianas, de pouca massa, mais ou menos como o Sol, encolhem de tamanho, tornam-se corpos densos e mais frios. Viram anãs brancas. O destino final de 98% das estrelas é, um dia, se transformar num astro senil com esse perfil acanhado. Se durante o processo de contração e perda de calor uma anã branca exibe instabilidades periódicas - em outras palavras, emite
pulsações a intervalos fixos, que alteram o seu brilho —, ela é classificada como uma ZZ Cetis. Para captar essas tênues mudanças de luminosidade, os astrofísicos fazem várias séries de fotos das estrelas candidatas a serem anãs brancas pulsantes. "Essas variações são as únicas pistas que temos sobre a composição interna das estrelas", explica Kepler, que este ano está morando no Chile, onde é um dos astrônomos responsáveis pela operação do Soar. "Da mesma forma que se analisam as ondas dos terremotos para estudar o interior da Terra, podemos usar as variações das anãs brancas para medir seu interior." Antigas e longínquas explosões de raios gama, velozes cometas que cruzam a órbita da Terra, os cambiantes e fracos pulsos das anãs brancas variáveis - esses e outros fenômenos do Cosmos agora estão mais ao alcance dos pesquisadores brasileiros com o acesso privilegiado que o país tem ao Soar, um telescópio de primeira linha. Ainda que pequena, a participação em outros grandes projetos internacionais também é, sem dúvida, importante, bem como a manutenção de equipamentos mais modestos instalados em território nacional. Mas nada se compara a ser sócio do Soar. "Podemos, de fato, jogar na primeira divisão do campeonato da astrofísica", afirma Steiner. "E marcar gols, mostrando que podemos fazer ciência de fronteira." Como fizeram Eduardo Cypriano e Elysandra Figueredo. •
Chuva de partículas Observatório Pierre Auger capta raios cósmicos de alta energia
ocalizado na desértica Malargüe, cidade de 20 mil habitantes próxima aos Andes argentinos, o Observatório Pierre Auger, maior projeto internacional concebido para captar raios cósmicos de alta energia, um tipo raro de partícula subatômica que viaja quase na velocidade da luz antes de cair sobre a Terra, acaba de mandar as primeiras notícias. Animadoras, por sinal. Apesar de estar funcionando com pouco menos da metade de sua ca-
pacidade total, o empreendimento registrou, entre janeiro de 2004 e julho deste ano, 3.525 eventos em que os raios cósmicos tinham energias colossais. Em 20 ocasiões, as partículas exibiam níveis de energia próximos ou superiores ao chamado corte GZK, de 5 x 1.019 elétrons-volts (eV). O GZK marcaria o limite máximo de energia que os raios poderiam apresentar ao chegar a nosso planeta. Teoricamente, seria impossível flagrar partículas com energia acima desse teto. Teoricamente. Mas o Auger, do qual o Brasil é um dos sócios, e outros experimentos menores já mediram eventos com raios mais energizados que o corte GZK. Isso não dizer que o limite não faça mais sentido. Longe disso. Até porque essas ocasiões foram tão pouco freqüentes que não geraram dados com relevância estatística para formular julgamentos definitivos. As informações fornecidas pelo Auger foram apresentadas em julho à comunidade de físicos, num congresso sobre raios cósmicos na índia. "Daqui a dois anos, quando o observatório estiver totalmente pronto, vamos ter uma quantidade de dados sete vezes maior que hoje", comenta Vitor de Souza, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), um dos pesquisadores brasileiros que participam do projeto internacional. "Nossa margem de erro será bem menor e podere-
Detector de fluorescência do experimento montado nas cercanias dos Andes argentinos e mapa dos arredores do centro de nossa galáxia, com fluxos de raios cósmicos mais quentes em vermelho e mais frios em azul: primeiros resultados animadores
mos responder as questões que dizem respeito à natureza dessas partículas." Uma das indagações que mais intrigam os físicos é a polêmica sobre a existência (ou não) de fontes pontuais de raios cósmicos, objetos siderais, como um buraco negro, que emanariam enormes quantidades de partículas energizadas. Quando se registra sistematicamente numa determinada região do céu raios com muito mais energia do que em outras partes do firmamento, essa medida pode indicar que naquela direção do Cosmos, a milhões de anosluz de distância, existe um corpo celeste emitindo as partículas. Por ora, o Auger ainda não detectou nenhuma fonte pontual. Aparentemente, os raios cósmicos captados pelo experimento em Malargüe vêm de todas as direções do Universo, e não de pontos específicos. Essa percepção, no entanto, pode ser ilusória. A direção original das partículas pode ter sido alterada durante a viagem a caminho da Terra. Projeto de US$ 47 milhões, que envolve instituições de 18 países, o observatório nos Andes argentinos é o primeiro a juntar dois métodos de observação de raios cósmicos de alta energia: detectores de superfície, chamados tecnicamente de tanques Cerenkov, e de fluorescência, um tipo especial de telescópio. Assim que estiver concluído, o empreendimento, no qual o Brasil por meio da FAPESP e do Ministérios da Ciência e Tecnologia investiu cerca de R$ 2,5 milhões, vai contar com 1.600 tanques, espalhados por uma área de 3 mil quilômetros quadrados, e 24 telescópios abrigados em quatro prédios. Hoje, 700 detecto res de superfície e 18 de fluorescência estão funcionando. Tudo para tentar entender a natureza dos raios cósmicos, fenômeno cuja compreensão pode alargar o conhecimento sobre a constituição da matéria e a formação do Universo. "Nenhum experimento futuro com essas partículas poderá ser menor ou igual ao Auger", comenta o físico Carlos Escobar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), supervisor da equipe brasileira no empreendimento. "Para se justificar, terá de ser maior." • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 45
CIÊNCIA MEDICINA
Freio na corrosão A artrite reumatóide não tem cura, mas a descoberta de marcadores biológicos está ajudando a ampliar o resultado dos tratamentos FABRíCIO MARQUES
o início, os sintomas são vagos. Despontam dores, cansaço e emagrecimento. Em seguida, as articulações das mãos inflamam. Progressivamente, o incômodo compromete juntas em todo o corpo. Pode haver deformações e, na parcela de casos mais graves, incapacidade física. Para uma em cada dez vítimas da artrite reumatóide, tarefas singelas como sair da cama ou se vestir são estações de um calvário particular. A doença, que atinge um exército de 1,8 milhão de brasileiros, resulta de um processo inflamatório corrosivo nas articulações desferido pelo próprio sistema imunológico do paciente. Conforme avançam na compreensão da moléstia, os pesquisadores constatam que o quebra-cabeça tem mais peças do que se calculava. Sabe-se que há uma contribuição genética importante e que fatores ambientais também são necessários para desencadeá-la, mas não se conhece ao certo a seqüência de eventos que deflagra a agressão. Na ausência de respostas sobre as causas, uma linha de investigação prolífica tem sido a identificação precoce das vítimas que vão apresentar evolução mais grave - e que merecem ser tratadas com remédios que podem custar até R$ 5 mil mensais - e aquelas cujos sintomas são controláveis por drogas mais simples. Pesquisas realizadas em várias universidades do país dedicam-se a procurar sinais genéticos ou biológicos que permitam antever a eclosão da doença ou mostrar quem sofrerá a forma mais agressiva. Manoel Bértolo, professor de Reumatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), está concluindo um estudo que rastreará marcadores genéticos da artrite reumatóide em brasileiros com ascendência 46 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
africana. O estudo deve ser concluído até o final do ano, mas a equipe de Bértolo já observou que os marcadores são diferentes dos encontrados numa amostra de 60 pacientes de ascendência européia, analisada em 1996. Ambos os estudos pesquisam a classe de genes ligada à histocompatibilidade imunológica que, sabe-se há décadas, tem um papel no surgimento de diversos males reumáticos. Polimorfismo - Tais genes, situados no braço curto do cromossomo 6, codificam as moléculas HLA (antígeno leucocitário humano). Estas moléculas são altamente polimórficas, ou seja, podem apresentar-se com várias configurações (seqüências de aminoácidos) diferentes. A literatura internacional indica que o alelo HLA-DR4, uma dessas configurações, está vinculado à doença em diferentes populações e etnias, mas em outros grupos também observou-se um aumento de freqüência do alelo HLA-DR1 nos pacientes. Em 1993 encontrou-se uma seqüência de aminoácidos na região 70-74 da molécula do HLA-DR que seria comum a todos os alelos vinculados à artrite reumatóide - entre eles, os mais comuns são o DRB1*0101, *0404 e *0401. Este pequeno trecho recebeu o nome de epítopo compartilhado e é alvo de intensa pesquisa para compreender sua associação com a doença. Mas, em populações africanas, essa seqüência não está ligada à moléstia, abrindo a suspeita de que existem outros genes envolvidos. A incidência da artrite reumatóide varia entre grupos populacionais diferentes. Certas tribos indígenas norte-americanas têm prevalência de 10%. No Brasil, os estudos encontraram uma prevalência de 0,2% até 1,0%. As pesquisas de Bértolo buscam, de forma pioneira, as raízes genéticas do problema nos brasileiros. "Não adianta mirar-se em estudos de polimorfismo feitos em outros países, pois os mar-
cadores genéticos variam segundo o grupo populacional", diz Bértolo. No estudo feito com os brasileiros descendentes de europeus a equipe de Bértolo concluiu que os alelos HLA-DRB1*0101 e *0102 estavam associados com a suscetibilidade da artrite reumatóide, enquanto os alelos HLA-DRB 1*0401 e *0404 estavam vinculados às formas mais graves da doença. Já na pesquisa feita com os afro-brasileiros, dados preliminares sugerem que o HLA-DRB 1*09 é que está vinculado à suscetibilidade da moléstia. A investigação das origens genéticas da artrite reumatóide será alvo de uma pesquisa nacional, prevista para iniciar-se em 2006. Equipes das universidades de Brasília, Federal do Rio Grande do Sul, Federal do Ceará, Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, vão acompanhar 300 pacientes. Cada centro estudará pelo menos cinco genes polimórficos relevantes na compreensão dos mecanismos da doença. "O objetivo é conjugar genes com influência parcial para obter um painel que dê respostas de maior utilidade clínica", diz Luis Eduardo Coelho Andrade, professor de reumatologia da Unifesp, que vai coordenar o estudo. Consórcios de pesquisadores de várias partes do mundo tentam desvendar o intricado processo que conduz à doença. No caso dos países em desenvolvimento, a procura de marcadores tem importância extra. Como o custo das terapias tem um peso crescente no PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 47
orçamento de saúde, conhecer o tratamento adequado para cada tipo de paciente é uma forma de racionalizar gastos e oferecer assistência a mais vítimas. Há uma classe de medicamentos que bloqueia uma proteína chamada fator de necrose tumoral, causadora de grande parte da inflamação e da dor nas articulações. Pesquisa da Universidade de Nebraska revelou melhora de 20% dos pacientes graves que não respondiam à cortisona. O tratamento custa R$ 5 mil mensais. Apenas uma parcela das vítimas precisa de drogas como essa. Ministradas precocemente, elas evitam a evolução mais dramática da doença. Os pesquisadores buscam ferramentas que distingam esses pacientes da imensa maioria que consegue controlar os sintomas recorrendo a antiinflamatórios e corticóides. Estudo realizado pela Unifesp calculou em R$ 1.100,00 o custo anual por paciente de artrite reumatóide atendido pelo SUS. O levantamento levou em conta, entre outros, gastos ambulatoriais e de internação, além do custo dos remédios, que corresponde a 70% do total. Os R$ 1.100,00 parecem pouco
quando comparados aos custos dos pacientes em outros países. Na Inglaterra e na França esse gasto chega a US$ 9,3 mil (cerca de R$ 22,3 mil). Mas se trata de um gasto considerável no limitado orçamento de saúde brasileiro.
ão se sabe ao certo quantas das 900 mil presumíveis vítimas brasileiras da doença têm acesso a tratamento adequado, mas um cálculo feito pela Unifesp analisou dois cenários. Num deles, 20% dos pacientes estariam recebendo tratamento no SUS. Nesse caso o custo seria de R$ 92 milhões por ano, ou 0,2% do orçamento para uma única moléstia. Num outro cenário, o índice dos bem atendidos chegaria a 70%. O custo seria de R$ 300 milhões anuais, ou 0,63% do orçamento de saúde. "É essencial racionalizar gastos", diz Marcos Bosi Ferraz, diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde (CPES), da Unifesp, que orientou a pesquisa, defendida como dissertação de mestrado do médico Gustavo Chermont.
A artrite reumatóide costuma ser denominada impropriamente apenas de artrite e, às vezes, é confundida com outra doença, a artrose. Mas artrite é um nome genérico de qualquer inflamação que acometa as juntas. Há, por exemplo, artrites provocadas por lesões traumáticas, pela gota ou por bactérias. Essas são pouco comuns e atingem com maior freqüência os homens. Já a artrite reumatóide é uma moléstia autoimune, que não distingue sexo, mas tem picos de incidência em mulheres entre 50 e 70 anos. A artrose, por sua vez, é um desgaste das juntas relacionado sobretudo à idade avançada. O papel de um outro tipo de marcador da doença foi o objeto de uma tese de doutorado defendida em julho passado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) pelo reumatologista Charles Lubianca Kohem. O marcador é o CCR5, um receptor de proteínas que leva os leucóticos a sair do sangue e rumarem para as articulações. Algumas pessoas têm uma mutação genética que as leva a não expressar esse receptor. A pesquisa de Kohem comparou 92 vítimas da artrite reumatóide com 160 pessoas saudáveis para saber se os portadores dessa mutação estariam imunes à doença ou a desenvolveriam de forma mais branda. Não foram, contudo, observadas diferenças
Destruição precoce Há três mil anos, um terço das populações adultas de pescadores, coletores e caçadores que viviam no litoral do Rio de Janeiro poderia sofrer de artrose, a destruição progressiva dos tecidos das articulações que pode prejudicar os movimentos. Atualmente o desgaste da cartilagem das mãos, braços, coluna vertebral, quadril, joelhos ou pés costuma se manifestar com maior freqüência a partir dos 50 anos, mas naqueles tempos seus primeiros sinais poderiam aparecer bem mais cedo, antes dos 30 anos. A artrose precoce era um resultado do desgaste das articulações promovido pelas atividades cotidianas desses grupos pré-históricos, de acordo com os estudos conduzidos por Claudia Rodrigues Carvalho, bioantropóloga do
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Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em seu trabalho de doutorado desenvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro. "Essa pesquisa demonstra que a artrose não é um problema exclusivo do homem contemporâneo", diz Claudia. Seu trabalho, que se baseia na análise de 78 esqueletos mantidos no museu da UFRJ, indica que os problemas articulares eram mais comuns nos homens que nas mulheres. "Não significa que as mulheres trabalhassem menos", ressalta. Mas os padrões de artrose e os indicadores de desenvolvimento muscular observados nos esqueletos sugerem que os homens cuidavam das ta-
refas que exigiam mais esforço físico, como remar, moer, triturar, raspar, arrastar redes, carregar objetos pesados ou fazer longas caminhadas. Hoje é o inverso: também chamada de osteoartrose, osteoartrite ou doença articular degenerativa, é mais comum nas mulheres. Por sorte, diferentemente daqueles tempos, atualmente se pode contar com analgésicos, antiinflamatórios, derivados de cortisona ou mesmo cirurgias para aliviar a dor que se intensifica à medida que a cartilagem uma espécie de almofada entre os ossos - desaparece, causando atrito entre os ossos, que então entram em contato direto. Havia diferenças também entre as diversas populações estudadas. As arti-
entre os dois grupos. Na pesquisa também foram analisadas amostras do líquido sinovial, que lubrifica a cartilagem das articulações, de oito pacientes com artrite reumatóide. Esse líquido é produzido pela membrana sinovial, o revestimento da parede da cápsula que envolve a articulação. Quando a moléstia eclode, a membrana passa a fabricar uma agressiva substância inflamatória. Constatou-se que havia mais receptores CCR5 no líquido sinovial do que no próprio sangue dos pacientes, sinal de que eles têm um papel na evolução da doença. Trata-se do primeiro estudo desse tipo na população brasileira. Outro campo de pesquisas é a busca de marcadores de diagnóstico sorológicos, capazes de detectar a existência de anticorpos que agridem o organismo e levam à artrite reumatóide. Em 1948 foi descrito o primeiro auto-anticorpo (anticorpos que atacam o próprio organismo) vinculado à doença. Batizado de fator reumatóide, ele era,
no entanto, pouco específico - aparecia num vasto espectro de patologias. Nas décadas seguintes foram identificados dois auto-anticorpos, contra proteínas epiteliais, relacionados ao ataque às articulações. Nos anos 1990 descobriu-se que os dois anticorpos tinham algo em comum: reagiam contra uma proteína chamada filagrina. Depois constatouse que a região da célula reconhecida pelo auto-anticorpo era rica num aminoácido, a citrulina. Fechou-se o elo: a filagrina é rica em citrulina. Identificado este alvo, o peptídeo citrulinado, a indústria pôde desenvolver kits com controle de qualidade para pesquisa dos anticorpos. O teste é conhecido como Anti-CCP (peptídeo citrulinado cíclico, na sigla em inglês) e consegue identificar a doença em estágios iniciais, permitindo o controle dos danos. Essa evolução deu-se nos últimos cinco anos. Tais anticorpos têm sensibilidade de 70% e especificidade de até 95% para artrite reumatóide.
pPPp
A tese de doutoramento do médico Alberto Max Colônia Nieto, defendida em 2004 na Unifesp, procurou um elo entre a presença dos anticorpos antipeptídeos citrulinados e as vítimas mais graves. Constatou-se que a presença dos anticorpos, isoladamente, não é capaz de diferenciar a evolução grave e a benigna. "Mas o tema é polêmico", diz Coelho Andrade, da Unifesp, orientador da tese. "Estudos fora do Brasil sugerem que pacientes com anticorpos têm evolução mais grave." Numa dissertação de mestrado defendida neste ano a médica Renata Trigueirinho Alarcón investigou se os doentes apresentavam mais proteína filagrina do que as pessoas sadias. Viu-se que, ao contrário, eles têm menos filagrina. Parece paradoxal que a proteína alvo da agressão apareça em quantidade diminuída nas vítimas, mas há outras formas de interpretar esse dado. "O sistema imunológico, quando tem antígeno que se expressa muito, fica tolerante a ele. Mas, quando a expressão é diminuída ou inadequada, pode ocorrer um favorecimento da resposta auto-imune. Pode ser também que o verdadeiro alvo seja uma outra proteína citrulinada e que a filagrina seja uma pista fortuita", diz Coelho Andrade. Ainda há muitas peças faltando no quebra-cabeça das causas da artrite reumatóide. •
Populações antigas do litoral fluminense sofriam de artrose já a partir dos 20 anos
culações dos braços e das pernas - em especial o joelho - começavam a se degenerar relativamente cedo, entre os 20 e 29 anos, nas populações pré-históricas de Ilha Grande e Guaratiba, no litoral sul, e um pouco mais tarde, entre os 30 e 39 anos, nas comunidades de Saquarema, na Região dos Lagos, hoje o paraíso dos surfistas, com suas ondas fortes e águas cristalinas. Tais conclusões sugerem que os antigos mo-
radores de Ilha Grande tinham uma vida mais árdua, com mais exigências físicas - de fato, ainda hoje se trata de uma ilha de difícil acesso e navegação do litoral do Rio. "O grupo que habitou Ilha Grande deve ter navegado com muito mais freqüência em águas agitadas que os de Saquarema", diz a pesquisadora. Hoje o esforço físico repetitivo dirigir muito ou passar muitas horas
digitando no computador, por exemplo - também pode lesar tendões e articulações. Pouco comum antes dos 40 anos, mas freqüente a partir dos 60 e predominante nos octogenários, essa doença pode ser agravada por uma peculiaridade do mundo moderno, a obesidade, já que o excesso de peso força o desgaste das articulações, especialmente dos joelhos. "Esses resultados confirmam que opções sociais e comportamentais refletem na nossa qualidade de vida", diz ela. "Tudo que o homem faz tem um custo biológico." PENHA ROCHA,
do Rio de Janeiro
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CIÊNCIA IMUNOLOGIA
O veneno sobre longas pernas dentro de casa Equipe do Butantan testa novo soro e pomada contra lesões causadas pelas picadas de aranha-marrom
ALESSANDRA PEREIRA
ez anos atrás, ao começar a estudar as aranhas-marrons, as espécies mais venenosas do Brasil, a bióloga Denise Tambourgi ficou três noites em claro, morrendo de medo de levar uma picada. É que ela havia encontrado uma delas escondida no baú ao pé de sua cama, durante uma expedição de coleta realizada em uma fazenda no município de Telêmaco Borba, no Paraná. Hoje ela ainda não se acostumou com esses animaizinhos de pernas longas e finas, às vezes tão pequenos a ponto de quase não serem vistos. Mesmo que não sejam agressivos e só ataquem quando tocados, causaram cerca de 8 mil casos de envenenamento por ano em 2003 e 2004 no Brasil, com duas mortes, uma em Santa Catarina e outra em Goiás. Mas nesse tempo Denise avançou bastante na pesquisa dessas aranhas. Com sua equipe do Laboratório de Imunoquímica do Instituto Butantan ela decifrou os principais componentes do veneno, descobriu como agem e desenvolveu dois novos tratamentos capazes de
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neutralizar a ação das toxinas no corpo humano. Um deles é um novo soro, já em fase de testes in vitro e em animais, específico contra o veneno de espécies de aranha-marrom encontradas no Brasil. Produzido à base de esfingomielinase, a proteína que realmente provoca os danos no corpo humano, descoberta em 1998 pela equipe do Butantan, o novo soro antiloxoscélico poderá se tornar uma alternativa ao atualmente usado, o antiaracnídico, preparado apenas com o veneno extraído de uma delas, a Loxosceles gaúcho, e empregado também contra a picada de escorpiões e aranhas-armadeiras. O outro tratamento é uma po mada para as lesões provocadas pelo veneno dessas aranhas no local da picada e que podem demorar até oito meses para curar - dependendo da extensão da necrose é necessário implante de pele. O estrago pode ser ainda maior: ao cair na circulação sangüínea, alguns microgramas da substância são capazes de destruir as células vermelhas do sangue - as hemácias -, comprometer o funcionamento dos rins e levar à morte. A pomada do Butantan contém tetraciclina, um antibiótico que age como inibidor das enzimas acionadas pelas toxinas da aranha, e reduziu em 75% o desenvolvimento de necrose da pele, de acordo com testes feitos em coelhos. Atualmente a lesão é tratada por meio da aplicação de soro e medicamentos específicos como os corticosteróides. "O tratamento ideal contra a picada da aranha-marrom será um soro bastante específico e polivalente para neutralizar a ação do veneno de várias espécies, somado a antiinflamatórios e a um inibidor de protease (enzima capaz de quebrar proteínas)", afirma Denise. Os soros atuais neutralizam as toxinas em circulação no organismo humano, mas não são muito eficazes para tratar as lesões na pele. A razão é que, como a picada da aranha-marrom é indolor e a reação local não se manifesta imediatamente, as pessoas só procuram ajuda quando a lesão na pele já se encontra instalada. Então a necrose dos tecidos não é mais uma conseqüência do veneno, mas das reações do próprio organismo. Como a equipe do Butantan verificou, uma proteína do veneno 52 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
da aranha-marrom, a esfingomielinase, exerce um papel-chave na morte dos tecidos da pele. Essa toxina aciona outras proteínas no interior das células da pele, que destroem as próprias células e, conseqüentemente, o tecido, de acordo com um estudo conduzido por Danielle Paixão Cavalcante, integrante da equipe de Denise, publicado em maio deste ano no Journal of Investigative Dermatology.
tualmente, o soro antiaracnídico não consegue impedir completamente a ação do veneno das três espécies de aranha-marrom que mais causam acidentes no Brasil: a Loxosceles intermedia, a L. laeta e a L. gaúcho. E há outro problema, que dificulta sua produção: a quantidade de veneno extraído de uma Loxosceles é muito pequena, em torno de 30 microgramas - para imunizar um cavalo durante a preparação do soro é preciso aplicar cerca de 20 miligramas, uma quantidade quase 700 vezes maior. O farmacêutico Matheus Fernandes Pedrosa, em colaboração com Paulo Lee Ho e Inácio Junqueira, do Centro de Biotecnologia do Butantan, resolveu esse problema em 2002 ao clonar o gene que contém a receita de proOS PROJETOS Mecanismos moleculares da hemólise induzida pelo veneno da aranha Loxosceles intermedia e Loxosceles na área cárstica do Vale do Ribeira: Identificação da fauna, caracterização biológica e imunoquímica dos venenos, estudo dos mecanismos de ação das toxinas COORDENADOR DENISE VILARINHO TAMBOURGI
- Instituto
Butantan INVESTIMENTO
R$ 162,221,96 e R$ 251.402,01 FAPESP R$ 500.000 Wellcome Trust
dução da proteína esfingomielinase de L. laeta, uma espécie encontrada no sul do Brasil, em diversos países das Américas do Sul, Central e do Norte, cujo veneno é o mais tóxico entre todas do gênero. O trabalho, publicado naquele ano no Biochemical and Biophysical Research Communication, foi a primeira clonagem do gene de esfingomielinase no mundo. No ano passado, Denise, colegas de sua equipe e da Faculdade de Medicina da Universidade de Wales, em Cardiff, Reino Unido, deram mais um passo importante para aumentar a produção de toxinas e de soro: conseguiram copiar o gene de duas proteínas esfingomielinase de Loxosceles intermedia, responsável por mais de 95% dos casos de envenenamento no país, a maioria deles no Paraná - nesse estado, essa espécie está em toda parte: nas casas e nos edifícios. Descrito na Molecular Immunology, esse processo de clonagem ampliou a produção de veneno em 5 mil vezes: cada litro de solução com as bactérias geneticamente modificadas, a cujo genoma se acrescentou o gene da esfingomielinase, rende em torno de 15 miligramas de proteína. Testado em coelhos, o soro feito a partir das proteínas das espécies L. laeta e L. intermedia funcionou. O próximo passo é obter um antídoto que reúna as esfingomielinases de vários tipos de aranha-marrom. "Um soro polivalente é a maneira mais eficaz de neutralizar o veneno de cada uma das espécies", afirma Denise. Sua equipe, associada ao grupo de Hisako Higashi, da Divisão de Produção do Butantan, já começou a comparar o grau de eficiência do novo soro polivalente com o antiaracnídico tradicional, produzido no Butantan e distribuído para o país todo. São esses estudos que vão indicar se realmente vale a pena substituir o atual e fabricar o novo composto em larga escala. Contra as hemácias - Foi também com a colaboração de uma equipe da Universidade de Wales que Denise, Rute de Andrade e Fábio Magnoli, do Butantan, desvendaram há cinco anos o mecanismo pelo qual a esfingomielinase causa a destruição das células vermelhas do sangue. A esfingomielinase, que havia sido identificada por Denise dois anos antes, faz com que as hemácias se-
jam percebidas como um agente estranho no organismo e, por essa razão, eliminadas pelo sistema imunológico, de acordo com artigo publicado em 2000 na revista Blood. Quando uma pessoa sofre uma picada da aranha-marrom, a esfingomielinase do veneno se liga às hemácias, quebra um lipídio - um tipo de gordura -, chamado esfingomielina, e altera o funcionamento dessas células. Essa bagunça química coloca em ação algumas enzimas, que cortam outras proteínas, as glicoforinas. Ao serem quebradas, as glicoforinas perdem ácido siálico, que faz com que um dos mecanismos de defesa do organismo, o chamado sistema complemento, veja as hemácias como invasoras e as destrua. "Todas as proteínas consideradas importantes na regulação de um componente do sistema imune, o sistema complemento, estavam intactas na superfície das hemácias", comenta Denise. A descoberta desse mecanismo redimensionou o papel das glicoforinas nas hemácias e no controle dessa parte do sistema de defesa do organismo. Ao entender o mecanismo de ação do veneno e clonar o gene de diferentes esfingomielinases, ficou mais simples obter a estrutura molecular dessa proteína, que se apresenta em forma de barril. A equipe de Denise, em colaboração com o grupo chefiado pelo biofísico Raghuvir Arni, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto, fez um cristal da proteína obtida a partir de Loxosceles laeta. Por meio desse trabalho, publicado em abril deste ano no Journal Biological Chemistry, pode ser possível identificar os pontos ativos da proteína e, daí, projetar outros medicamentos capazes de combater o veneno da aranha-marrom. A gravidade do envenenamento varia de acordo com o tipo de aranha e da própria vítima da picada. As aranhas adultas costumam provocar acidentes mais graves do que as mais jovens porque o volume e a concentração de toxi-
nas no veneno aumentam com o tempo de vida. O veneno dos machos tem menos poder de ação do que o das fêmeas, em geral mais robustas. Os casos mais brandos são causados por machos da espécie L. gaúcho e os mais sérios por
fêmeas de L. laeta. Por parte das pessoas, o grau de envenenamento varia de acordo com a idade da vítima, sua constituição genética e local atingido. Por motivos ainda não totalmente entendidos por especialistas, algumas pessoas apresentam reações generalizadas, como coagulação disseminada e ruptura das hemácias, que podem resultar em falência renal e até morte. Na América Latina, a maior parte das vítimas fatais é formada por crianças, em especial as picadas pela L. laeta. No Brasil, a mortalidade parece ser menor e geralmente é causada pela aranha-marrom da espécie L. intermedia. "Cerca de 80% dos acidentes do Paraná são provenientes da cidade de Curitiba", diz Marcelo Santalucia, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saúde que recebe os casos notificados pelos municípios. "Depois de realizada a investigação, metade dos casos é descartada, mas não é feita a limpeza no banco de da-
dos, que só o município pode fazer." Denise Tambourgi, no entanto, acredita que os sintomas provocados pela picada da aranha-marrom muitas vezes são confundidos com os causados por infecções bacterianas ou por reações alérgicas. "Em muitas regiões", diz ela, "os casos de envenenamento provavelmente são tratados como uma infecção bacteriana". Diferenças à parte, ninguém que conheça as aranhas-marrons põe em dúvida seu potencial tóxico, que os moradores de Curitiba e de outras cidades do Paraná já aprenderam a respeitar. Mas os turistas e guias do Parque Estadual e Turístico do Alto Ribeira (Petar), no sul do Estado de São Paulo, não sabiam que aquelas cavernas também eram habitadas por essas aranhas. Os pesquisadores do Butantan não sabiam se o veneno da Loxosceles adelaida, que vive em ambientes silvestres, como as cavernas, era tão perigoso como o das outras espécies de ambientes urbanos. A bióloga Rute de Andrade confirmou que havia, sim, aranhas dessa espécie no Petar, após percorrer 22 cavernas desse parque e encontrar exemplares de L. adelaida em todas. Ela e o zootecnólogo Fernando Pretel confirmaram que seu veneno é tão tóxico quanto o das demais aranhas do mesmo gênero. Foi uma descoberta importante que os pesquisadores do Butantan trataram de espalhar, com o apoio, no próprio instituto, da equipe do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), um dos Centros de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepid) financiado pela FAPESP. No ano passado, os biólogos alertaram sobre o perigo conversando com guias turísticos e distribuindo folhetos nas prefeituras, nas pousadas e nos hotéis do próprio parque, cujas cavernas recebem 16 mil turistas por ano. "As Loxosceles adelaida têm um comportamento diferente das outras aranhas-marrons. São extremamente ativas e entram nas mochilas e nas roupas", alerta Denise. "É importante fazer o trabalho científico chegar à sociedade." • PESQUISA FAPESP 116 • OUTUBRO DE 2005 ■ 53
CIÊNCIA
GEOLOGIA
Nômade invasor O rio Taquari muda de curso e inunda permanentemente uma área de 6 mil quilômetros quadrados no Pantanal
Até o final da década passada, a fazenda Aguapé, uma propriedade de 15 mil hectares dedicada à pecuária e situada na _ região de Paiaguás, no norte do Mato Grosso do Sul, estava em paz com o regime de cheias e secas que caracteriza o Pantanal, a maior planície úmida do mundo. De novembro a março, época mais chuvosa, uma parte de suas terras era inundada pelas águas que transbordavam do Taquari, um dos grandes afluentes do rio Paraguai, o maior corpo de água do Pantanal. Entre abril e outubro, período de estiagem, a pluviosidade diminuía e as parcelas da Aguapé que tinham tomado um banho prolongado e revigorante estavam secas novamente. Ano após ano era assim, ali e em tantas outras fazendas pantaneiras, onde a fauna, a flora e o homem estavam acostumados ao cíclico vaie-vem das águas. Ao chamado pulso de inundação do Pantanal. Há uns oito anos, as águas vieram na estação de cheia e não mais saíram de 3.200 hectares da fazenda. "Essa área agora está permanentemente alagada", afirma Emilio César Miranda de Barros, dono da Aguapé e presidente do Sindicato Rural de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. O culpado pelo desastre: o rio Taquari, que não pára mais em seu leito principal devido ao acúmulo de sedimentos e mantém submersa, agora durante os 12 meses do ano, uma área de 6 mil quilômetros quadrados de sua bacia, equivalente a quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Não se trata apenas de um caso de rio assoreado que escapa de seu curso e causa estragos temporários e localizados. É mais do que isso: em razão do material acumulado no fundo de seu canal, o Taquari, cuja extensão total é de cerca de 800 quilômetros, praticamente deixou de ser navegável em sua porção de planície há duas ou três décadas, tem cada vez menos peixes e suas águas rompem em inúmeros pontos as margens de contenção de seu leito, invadindo impor54 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
tantes segmentos de terra destinados à pecuária ou que servem de morada para a fauna. Nos últimos 30 anos houve uma retomada na intensidade das chuvas que caem sobre a parte de planalto da bacia do Taquari, condição climática que torna ainda mais difícil manter as águas do rio em seu trecho mais baixo, dentro do Pantanal, circunscritas ao seu curso atual. Mudança na foz - No momento, a destruição mais expressiva das bordas do rio ocorre nos arredores das fazendas Santa Luzia e Coronal, trecho do canal do Taquari com maiores níveis de assoreamento. Nesses setores, uma parte das águas do rio permanece em seu leito principal enquanto outra, de volume nada desprezível, escorre pelos buracos abertos nas margens do Taquari, cai nas terras baixas da região de Paiaguás e dá origem a uma sucessão de novos e extensos canais {veja mapa na página 57). Na prática, a partir da fazenda Coronal, o rio se dividiu em dois. Com o tempo, restará apenas um Taquari. O outro, provavelmente o que corre por seu leito atual, vai secar. No passado recente, rompimentos nas margens do rio perto da região chamada Zé da Costa fizeram a foz do Taquari, que deságua no rio Paraguai, mudar de lugar. Em 1973, a desembocadura era próxima à localidade de Porto da Manga, no sudoeste da região conhecida como Nhecolândia. Hoje está 30 quilômetros acima e, segundo certas previsões, pode se deslocar mais uma centena de quilômetros ao norte nas próximas décadas, rumo à Lagoa de Mandioré. A obstrução progressiva do canal do Taquari, que corta de leste a oeste o coração de uma região única no mundo, é considerada por alguns estudiosos o maior problema ambiental do Pantanal, com repercussões negativas também sobre o agronegócio e o turismo local. Um problema federal e complexo. Federal, porque a área integral da bacia do Taquari, de aproximadamente 79 mil quilômetros quadrados, se espalha por dois estados, o Mato Grosso do Sul, em 95% de sua totalidade, e o Mato Grosso, nos restantes
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Áreas do Pantanal alagadas durante todo o ano devido à mudança de direção do Taquari: problema é causado por fatores naturais e pela erosão decorrente da ocupação humana nas terras altas da bacia
5% - e qualquer intervenção no destino do rio precisa do aval de Brasília. Complexo, porque há fatores naturais e humanos contribuindo para que o rio tenha uma índole irrequieta e suas águas estejam sempre à procura de um novo leito. "Devido às características físicas de sua bacia, o Taquari é um rio nômade por natureza, cujo leito historicamente muda de lugar de tempos em tempos, em algumas centenas ou milhares de anos", diz o geólogo Mario Luis Assine, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, que estuda essa questão num projeto patrocinado pela FAPESP. "Mas a ação do homem na área de planalto do rio, situada fora da planície sedimentar que caracteriza o Pantanal, acelera esse processo." Por ação, leia-se o desmatamento e as atividades de agricultura e sobretudo de pecuária que se iniciaram nessas terras altas desde os anos 1970. "A criação de gado não tem cultura de manejo das pastagens e isso favorece a desagregação e a erosão do solo", explica o pesquisador Carlos Padovani, da Embrapa Pantanal, de Corumbá, coautor de estudos com Assine e coordenador de um amplo diagnóstico da situação do Taquari. "Esse material acaba indo para o rio." Na região de Coxim, ainda no planalto, cerca de 36 mil toneladas de sedimentos são descarregados diariamente no curso d'água. Errante por natureza - Uma pincelada de história e geografia ajuda a entender por que o Taquari, um rio essencialmente sem leito fixo, se torna ainda mais errante nas últimas três décadas. Aproximadamente um terço do curso d'água, justamente a sua porção inicial, da nascente no Mato Grosso até um pouco depois da localidade de Coxim, no Mato Grosso do Sul, atravessa terras de planaltos. Nesse trecho, em torno do qual se forma a bacia do Alto Taquari, a altitude do terreno varia de pouco menos de 900 metros a cerca de 200 metros. O rio se encontra bem contido em seu leito, mas o desmatamento e a erosão das terras que compõem sua bacia, um indesejável subproduto da nova fronteira agropecuária, produzem toneladas de sedimentos que, levados pela correnteza do Taquari, vão acelerar o processo de assoreamento do curso d'água. Depois de vencer a escarpa que 56 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
Mudança de curso: surgem novos braços e canais do Taquari
marca o fim do planalto e o início da planície sedimentar, o rio entra em sua porção pantaneira, em seu médio e baixo cursos que representam dois terços de sua extensão. Essa porção menos elevada da bacia - que forma o chamado megaleque aluvial do Taquari, uma feição geológica lapidada pelo transporte de sedimentos do rio e facilmente reconhecível em imagens de satélite (exibe, de fato, o formato de um grande leque) - cobre 50 mil quilômetros quadrados, 37% do território do Pantanal em terras brasileiras. Aqui o Taquari é um sistema frágil, carregado com muiO PROJETO Dinâmica sedimentar atual e evolução quaternária do leque aluvial do rio Taquari, Pantanal Mato-Grossense MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR MARIO LUíS ASSINE
- Unesp, Rio Claro
INVESTIMENTO R$39.205,00 e US$ 4.450,00
to sedimento vindo do planalto, que corre num canal principal ladeado por margens apenas ligeiramente mais altas que suas águas. Para complicar ainda mais a situação, as terras em torno do atual leito do rio são mais baixas que a calha do mesmo. É como se, a exemplo de um aqueduto, o Taquari fosse um rio que corresse por um canal suspenso. Isso faz com que, depois de romper as margens do rio, as águas do Taquari tomem conta rapidamente dos terrenos vizinhos, de altitudes menos elevadas, iniciando assim uma busca sem fim por um novo e mais cômodo leito. Esse processo acontece há milhares de anos - e a prova disso é a existência de uma rede de antigos canais do Taquari impressos na paisagem pantaneira, leitos por onde o rio fluiu um dia e hoje não flui mais. "O Taquari é um rio realmente instável", afirma Padovani. Qualquer mudança, de ordem natural ou humana, ou uma conjunção de ambas, rompe o delicado equilíbrio do rio. Essa, aliás, é uma das principais conclusões apresentadas num artigo científico de Assine, recentemente publicado na revista internacional Geomorphology.
Trecho assoreado do rio: força das águas rompe as margens
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Caminhos alternativos: o rio saiu de seu leito e invadiu a região de Paiaguás, e sua foz, que era em Porto da Manga em 1973, subiu 30 quilômetros
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De seminários e conversas com a população local e outros interessados no assunto, a Embrapa Pantanal, o Instituto Alterra, da Holanda, e o Sindicato Rural de Corumbá formularam doze diferentes propostas para tentar minimizar as inundações permanentes decorrentes do assoreamento do Taquari. Algumas sugestões não são excludentes e, se aprovadas, podem vir a ser adotadas concomitantemente. Há quem defenda, por exemplo, a idéia de que o rio deveria ser dragado, tarefa que poderia custar entre R$ 70 milhões e R$ 180 milhões e demoraria de dois a dez anos para ser concluída. Outros acham que deveria ser construída uma barragem na área de planalto do Taquari para evitar que os sedimentos das terras altas chegassem até a porção pantaneira e baixa do rio. Reflorestar as margens do Taquari em sua porção de terras altas também é uma alternativa lembrada, bem como adotar um melhor manejo do solo no planalto a fim de diminuir a erosão. Para alguns ambientalistas, uma medida interessante seria desapropriar as áreas hoje permanentemente inundadas pelas cheias do Taquari e transformá-las em parque nacional. Existem até proposições diametralmente opostas: uma linha de pensamento advoga a reconstrução dos pontos estourados das margens do Taquari, em especial perto da fazenda Coronal, para que o rio deixe de fluir para os seus canais alternativos e volte ao seu leito central; outra preconiza que o homem deveria adotar medidas no sentido de facilitar, e não dificultar, a tendência natural do rio de mudar de trajeto de tempos em tempos, fazendo com que o Taquari se conforme mais rapidamente ao seu novo leito em terras mais baixas. Argumentos contra e a favor a cada uma das idéias não faltam. "Para mim, o único jeito de resolver o problema é reduzir a erosão na área de planalto por meio do manejo adequado da terra, ou talvez acelerar o processo de acomodação do rio em seu novo leito", diz Rob Jongman, do Instituto Alterra. "Seria importante adotar essas medidas, mas elas não vão acabar com as inundações do Taquari", pondera o geólogo da Unesp. "Rios em leques aluviais mudam constantemente de curso." •
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MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 116 • OUTUBRO DE 2005 ■ 57
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
A partir dos critérios para certificação de sites SciELO, dois deles ganharam nova classificação. SciELO Venezuela, anteriormente classificado como "em desenvolvimento", foi certificado como "em operação regular". O site SciELO Uruguai passou a ser classificado como "iniciativa em desenvolvimento" e sua coleção de periódicos encontra-se disponível a partir da Rede SciELO (www.scielo.org). Nos dois casos, a certificação representou a elevação da qualidade de apresentação e operação dos sites.
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■ Saúde
Epidemia de cesáreas
■ Saneamento
Conseqüências da privatização
O artigo "Parto normal ou cesárea? O que toda mulher deve saber (e todo homem também)", de autoria da pesquisadora Daphne Rattner, do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, do Ministério da Saúde, reflete sobre os números de partos normais e cesáreas realizadas em todo o mundo. O estudo mostra que a cesariana é a cirurgia de grande porte mais efetuada nos Estados Unidos e também a mais freqüente operação feita sem necessidade. "Muitas dessas operações, que apresentam riscos de complicações maternas, inclusive morte, são medicamente desnecessárias", diz a pesquisadora Daphne. "É impensável que a cirurgia cesariana desnecessária seja realizada em milhares de mulheres, esbanjando valiosos milhões de dólares dos serviços de saúde, enquanto quase 40 milhões de americanos não têm acesso aos serviços básicos de saúde", afirma. Se no hemisfério Norte valores assim elevados de cesarianas são considerados ultraje ao bom exercício da obstetrícia, que podemos dizer do Brasil? A autora do artigo responde: "Infelizmente, a situação brasileira é ainda mais grave: já há algumas décadas essa epidemia contagiou nosso país, e pesquisas mostraram que a prática obstétrica em nossos hospitais não é nada exemplar. No Estado de São Paulo alguns hospitais chegam a praticar taxas de até 100%", diz. A autora ressalta que, apesar das medidas adotadas pelo governo federal e até por alguns segurossaúde para coibi-las, o número de cesáreas desnecessárias continua a crescer, alertando que outras estratégias se fazem necessárias. "É inquestionável que a indicação de cirurgia é atribuição dos médicos. Mas até que ponto as mulheres não foram involuntariamente cúmplices, por absoluto desconhecimento de como seu corpo funciona ou por terem embarcado na moda de que cesárea é parto "tecnologicamente avançado"?
Concessões privadas de saneamento no Brasil: bom negócio para quem? O estudo de autoria de Marcelo Coutinho Vargas e Roberval Francisco de Lima, da Universidade Federal de São Carlos, procura analisar o papel que a iniciativa privada pode desempenhar no abastecimento de água e no esgotamento sanitário das cidades brasileiras. Segundo o artigo, a atividade pode contribuir para melhorar a qualidade e expandir a oferta dos serviços e aumentar a exclusão dos mais pobres. Foram apresentados estudos de caso sobre privatizações ocorridas nesse setor na Região Sudeste: a concessão dos serviços de água e esgotos de Limeira (SP), Niterói (RJ) e cinco cidades fluminenses da Região dos Lagos a grupos nacionais e estrangeiros. "A idéia é analisar as conseqüências da privatização sobre a qualidade, o alcance social, os custos e o impacto ambiental desses serviços, enfatizando os arranjos institucionais e os mecanismos de regulação que permitem (ou não) aos poderes públicos e à sociedade exercer algum grau de controle sobre o desenvolvimento do setor durante a vigência da concessão", dizem. Os estudos de caso apresentam resultados ambivalentes, que permitem estabelecer limites e condições para a sustentabilidade social, econômica e ambiental do envolvimento de operadores privados neste setor nos países em desenvolvimento. Com relação à política nacional de saneamento, os estudos de caso contribuem para demonstrar que a participação privada neste setor, sob determinadas condições, pode contribuir para ampliar a cobertura e melhorar a qualidade dos serviços.
INTERFACE - COMUNICAçãO, SAúDE, EDUCAçãO VOL. 9 - N° 17 - BOTUCATU MAR./AGO. 2005
AMBIENTE E SOCIEDADE NAS - JUL./DEZ. 2004
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si4i432832oo50oo20oo20&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si4i4753X20040002oooo5&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
VOL. 7 - N° 2 - CAMPI-
■ Ambiente
Impactos da mineração As atividades de extração mineral são de grande importância para o desenvolvimento social, mas igualmente responsáveis por impactos ambientais negativos, alguns muitas vezes irreversíveis. Nesse sentido, o estudo "Perfil ambiental qualitativo da extração de areia em cursos d'água", escrito por Leandro Camillo de Lelles, Elias Silva, James Jackson Griffith, Sebastião Venâncio Martins, da Universidade Federal de Viçosa, teve como objetivo central avaliar os impactos ambientais decorrentes da extração de areia em cursos d'água no Brasil. "Cerca de 2 mil empresas se dedicam à extração de areia no Brasil, na grande maioria pequenas empresas familiares, gerando cerca de 45 mil empregos diretos", aponta o estudo. Porém, a mineração de areia possui baixo valor econômico devido ao transporte. A atividade torna-se problemática por se constituir na busca de matéria-prima de baixa relação preço/volume, sendo seu principal fator limitante a distância do mercado consumidor. Desse modo, as mineradoras procuram áreas próximas dos centros de consumo, o que potencializa situações de conflito entre a mineração e o uso urbano do espaço. Os pesquisadores identificaram e caracterizaram qualitativamente os impactos ambientais utilizando o método do check-list. Os resultados possibilitaram identificar 49 impactos, sendo 36 negativos (73%) e 13 positivos (26%). A principal conclusão é que os resultados podem ser utilizados como referencial teórico para subsidiar o processo de licenciamento ambiental desse tipo de empreendimento. REVISTA ARVORE
- VOL. 29
N°
3 - VIçOSA - MAI./JUN.
2005 www. scielo.br/scie Io. php?script=sci_arttext&pid=Soioo676220050003000ii&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Cardiologia
Risco de sobrepeso Estabelecer a prevalência de hipertensão arterial, risco de sobrepeso, sobrepeso, sedentarismo e tabagismo em jovens da cidade de Maceió (AL). Este é o objetivo do estudo "Prevalência de fatores de risco cardiovascular em crianças e adolescentes da rede de ensino da cidade de Maceió", escrito por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de Alagoas (UFAL). "Em todos os estados brasileiros, considerando-se o conjunto de todas as faixas etárias, as doenças cardiocirculatórias são responsáveis pelo maior contingente de óbitos, decorrentes de doença arterial coronariana, doenças cerebrovasculares e insuficiência cardíaca", justificam os autores. Foram analisadas crianças e adolescentes entre 7 e 17 anos, de ambos os sexos, da rede pública e privada de ensino de Maceió. O projeto de pesquisa foi
aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário da UFAL. Ao todo, dos 1.253 estudantes que participaram do estudo, 1.172 não praticavam atividade física. Além disso, foi verificado risco de sobrepeso e sobrepeso em 116 e 56 indivíduos, respectivamente. "Os dados obtidos com o estudo reforçam a necessidade da obtenção de informações individualizadas nas diferentes cidades brasileiras, em razão da grande heterogeneidade apresentada pelo Brasil nos mais diversos aspectos, que determinam modificações incontestáveis no perfil de saúde dos grupos populacionais." ARQUIVO BRASILEIRO DE CARDIOLOGIA ■ VOL. SãO PAULO
84 - N° 5 -
- MAIO 2005
www. scie lo.br/scielo. php?scri pt=sci_arttext&pid=Soo66782X200500050ooo7&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Sociedade
Saúde desigual Evidências empíricas nas áreas de educação, trabalho e justiça indicam que a discriminação racial é fator importante das desvantagens econômicas e sociais enfrentadas por minorias étnico-raciais no Brasil. Apesar disso, as desigualdades étnico-raciais, no âmbito da saúde, têm sido pouco investigadas. Este é o pano de fundo do artigo "Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil", que apresenta indicadores que demonstram como as categorias raciais predizem, de forma importante, variações na mortalidade. "A mortalidade precoce predomina entre indígenas e pretos, os níveis de mortalidade materna e por doenças cerebrovasculares são mais elevados entre as mulheres pretas, além de que no capítulo das agressões os homens jovens pretos apresentam ampla desvantagem", apontam as autoras Dora Chor, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, e Claudia Risso de Araújo Lima, da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde. Entre as possíveis causas das desigualdades étnico-raciais em saúde, destacam-se as diferenças socioeconômicas que se acumulam ao longo da vida de sucessivas gerações. O artigo propõe que a análise do impacto, na saúde, das inter-relações entre classe social e raça é um campo promissor para a investigação e intervenção nas desigualdades de saúde. CADERNOS DE SAúDE PUBLICA JANEIRO - SET./OUT. 2005
- VOL. 21 - N° 5 - RIO DE
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio23iiX20050oo500033&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 • 59
I TECNOLOGIA
Hélice nanometnca
Perfeição nas formas e estrutura para compor vários nanoaparelhos
■ Parceria cria luz solar híbrida O governo norte-americano anunciou que uma nova empresa da cidade de Oak Ridge, no Estado do Tennessee, a Sunlight Direct, lançou um sistema híbrido de aproveitamento da energia solar, em parceria com a estatal federal Tennessee Valley Authority. O sistema usa um coletor de 1,22 metro de diâmetro e fios de fibra óptica para transferir a energia solar captada para uma instalação híbrida que alimenta lâmpadas elétricas. A vantagem do invento, destinado basicamente a instalações comerciais ou públicas, é a economia proporcionada por um dispositivo de controle: quando faz sol forte, a luz das lâmpadas é automaticamente enfraquecida, de modo que a luminosidade se mantém sempre a mesma. Chamado de HSL 3000, o sistema, que também pode alimentar condicionadores de ar, foi criado com o apoio do La-
Uma nanoestrutura em forma de hélice que lembra a configuração do DNA é o novo material que poderá ser usado para a produção de sensores, transformadores elétricos e outros aparelhos envolvidos em conexões eletromecânicas no âmbito dos nanômetros (1 milímetro dividido em 1 milhão de vezes). Baseado em uma treliça composta de tiras de cristais com poucos nanômetros de largura, a nanoélice é produ-
boratório Nacional de Oak Ridge e o Departamento de Energia dos Estados Unidos. A empresa vendeu os primeiros seis sistemas experimentais para prédios comerciais nas cidades de Mineápolis, Nova York e San Diego. Segundo um estudo do Programa de Tecnologias de Energia Solar do país, 1 milhão de unidades de sistemas híbridos desse tipo deverão estar em uso por volta de 2020. •
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zida com oxido de zinco e argônio sob condições de vácuo e alta temperatura e sobre um tubo de alumina. A forma de crescimento do oxido de alumínio policristalino, nome do material desse tipo de nanofita, foi publicada na revista Science de 9 de setembro. A pesquisa foi conduzida por pesquisadores do Instituto de Tecnologia Geórgia (Geórgia Tech), dos Estados Unidos, e teve o financiamento da Fundação
■ Marcadores para sinalizar doenças O Centro de Nanotecnologia Biológica e Ambiental da Universidade de Rice, em Houston, no estado norteamericano do Texas, revelou ter criado um tipo de sinalização celular que identifica certas doenças. Centenas de vezes menor que uma célula humana, o sinal luminoso só aparece na presença de
Nacional de Ciência, NSF na sigla em inglês, da Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) e do Departamento de Defesa, Pesquisa e Engenharia (DDR&E), além da Academia Chinesa de Ciência. "Essa estrutura vai disponibilizar uma nova forma de construir nanoaparelhos", disse o professor Zhong Lin Wang, em um comunicado do Geórgia Tech. "A nanoélice é perfeitamente uniforme", disse Wang. •
certas enzimas catalisadoras (que aceleram as reações químicas), as proteases. Alterações na expressão dessas enzimas indicam a ocorrência de câncer, aterosclerose e outros males. O projeto foi comandado pelas pesquisadoras Jennifer West e Rebekah Drezek. Elas desenvolveram uma nanoestrutura inteligente que é escura na forma original, mas brilha intensamente na presença de ativi-
BRASIL De Campinas para a França
Marcador vermelho brilhante indica célula cancerosa
dade enzimática associada a determinado processo inflamatório e patológico. •
■ Formigueiro de microrrobôs Um formigueiro de mil microrrobôs capazes de inspecionar dutos de petróleo ou combustíveis, pontes e verificar possíveis problemas dentro de motores, além de desempenhar tarefas como diagnósticos e procedimentos médicos dentro do corpo humano. Esse é o objetivo do projeto I-Swarm, que reúne pesquisadores de oito países europeus e é coordenado por uma equipe de micromecatrônica
e microrrobótica da Universidade de Karlsruhe, na Alemanha. Desenhados em computador, os microrrobôs são chips com sensores e detectores que exercem, cada um, uma função diferente. Quando um robô identifica um objeto, por exemplo, ele se comunica com o outro que está ao seu lado, e esse, por sua vez, envia a mensagem para outro mais próximo e assim por diante até uma central de monitoramento. O projeto, de € 4,4 milhões financiados pela União Européia, já possui dois protótipos: Jasmine e Micron. Eles já demonstraram ser possível a comunicação entre eles. •
Montagem final dos componentes e do amplificador no LNLS
Componentes para amplificadores de radiofreqüência produzidos em Campinas pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) já começaram a ser instalados no Synchrotron Soleil, o novo laboratório desse tipo de radiação que está sendo construído na cidade de Saint-Aubin, a 20 quilômetros de Paris, na França. "O Soleil vai entrar em funcionamento no primeiro trimestre de 2006 e será o primeiro do mundo a utilizar amplificadores de alta potência com transistores no lugar de válvulas", diz Cláudio Pardine, coordenador do laboratório de radiofreqüência do LNLS. Os amplificadores têm a função de fornecer energia ao feixe de elétrons usado na composição do espectro de luz utilizado por pesquisadores em experimentos que buscam um melhor entendimento das características biológicas, físicas e químicas de moléculas e de átomos. "Foram entregues cinco combinadores de potência de
200 kilowatts (kW)", diz Pardine. O domínio dessa tecnologia, que começou com estudos teóricos dos engenheiros do Soleil, em 1998, permite que a equipe técnica do LNLS futuramente construa os seus próprios amplificadores para substituir as atuais válvulas do equipamento em Campinas. A equipe do laboratório Soleil optou por desenvolver e empregar a tecnologia de transistores porque ela proporciona vantagens em matéria de economia de energia e em durabilidade, se comparados aos amplificadores valvulados utilizados atualmente em todos os outros laboratórios síncrotrons do mundo. O Synchrotron Soleil é mantido pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica, CNRS na sigla em francês, e pela Comissão de Energia Atômica (CEA) francesa. Ele vai se juntar a outros 42 síncrotrons existentes no mundo e deixar de ser um dos 30 em construção ou em planejamento. •
PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 61
BRASIL De Campinas para a França
Marcador vermelho brilhante indica célula cancerosa
dade enzimática associada a determinado processo inflamatório e patológico. •
■ Formigueiro de microrrobôs Um formigueiro de mil microrrobôs capazes de inspecionar dutos de petróleo ou combustíveis, pontes e verificar possíveis problemas dentro de motores, além de desempenhar tarefas como diagnósticos e procedimentos médicos dentro do corpo humano. Esse é o objetivo do projeto I-Swarm, que reúne pesquisadores de oito países europeus e é coordenado por uma equipe de micromecatrônica
e microrrobótica da Universidade de Karlsruhe, na Alemanha. Desenhados em computador, os microrrobôs são chips com sensores e detectores que exercem, cada um, uma função diferente. Quando um robô identifica um objeto, por exemplo, ele se comunica com o outro que está ao seu lado, e esse, por sua vez, envia a mensagem para outro mais próximo e assim por diante até uma central de monitoramento. O projeto, de € 4,4 milhões financiados pela União Européia, já possui dois protótipos: Jasmine e Micron. Eles já demonstraram ser possível a comunicação entre eles. •
Montagem final dos componentes e do amplificador no LNLS
Componentes para amplificadores de radiofreqüência produzidos em Campinas pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) já começaram a ser instalados no Synchrotron Soleil, o novo laboratório desse tipo de radiação que está sendo construído na cidade de Saint-Aubin, a 20 quilômetros de Paris, na França. "O Soleil vai entrar em funcionamento no primeiro trimestre de 2006 e será o primeiro do mundo a utilizar amplificadores de alta potência com transistores no lugar de válvulas", diz Cláudio Pardine, coordenador do laboratório de radiofreqüência do LNLS. Os amplificadores têm a função de fornecer energia ao feixe de elétrons usado na composição do espectro de luz utilizado por pesquisadores em experimentos que buscam um melhor entendimento das características biológicas, físicas e químicas de moléculas e de átomos. "Foram entregues cinco combinadores de potência de
200 kilowatts (kW)", diz Pardine. O domínio dessa tecnologia, que começou com estudos teóricos dos engenheiros do Soleil, em 1998, permite que a equipe técnica do LNLS futuramente construa os seus próprios amplificadores para substituir as atuais válvulas do equipamento em Campinas. A equipe do laboratório Soleil optou por desenvolver e empregar a tecnologia de transistores porque ela proporciona vantagens em matéria de economia de energia e em durabilidade, se comparados aos amplificadores valvulados utilizados atualmente em todos os outros laboratórios síncrotrons do mundo. O Synchrotron Soleil é mantido pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica, CNRS na sigla em francês, e pela Comissão de Energia Atômica (CEA) francesa. Ele vai se juntar a outros 42 síncrotrons existentes no mundo e deixar de ser um dos 30 em construção ou em planejamento. •
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LINHA DE PRODUçãO
BRASIL
Biorreator na produção de mudas Multiplicar plantas em laboratório com mais higiene, segurança e economia é o que promete o biorreator desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Lgropecuária (Embrapa). O equipamento funciona por meio de um sistema de ascos de vidro interligados por tubos de borracha d< que recebem ar e solução utritiva para o cultivo de células ou embriões de plantas. O biorreator acelera o ciclo de produção e aumenta a produtividade, sendo importante para empresas de fruticultura, na produção de plantas ornamentais e no reflorestamento. Ele é adaptável a várias espécies vegetais, útil na uniformização da produção de
Ô
■ Resíduos do campo para a construção Cinzas de casca de arroz e de bagaço de cana-de-açúcar, devidamente tratadas, podem ser utilizadas em substituição parcial da areia fina e mesmo do cimento utilizados na con-
Variedades híbridas de café validam novo equipamento da Embrapa
mudas e na geração de espécimes isentos de pragas e doenças. O novo equipamento já se mostrou eficaz na clonagem de híbridos de café arábica conforme ficou demonstrado em experi-
fecção de argamassas, compósitos e solo-cimento destinados à fabricação de placas, painéis, blocos e tijolos de construção. Pesquisas conduzidas na Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a coordena-
62 ■ OUTUBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 116
mentos realizados na Embrapa Café, com sede em Brasília. O produto surgiu nos laboratórios da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, unidade localizada também na capital
ção do professor Wesley Jorge Freire, mostraram que corpos-de-prova elaborados com diferentes misturas de cimento, areia e cinza e tijolos confeccionados com solo, cimento e cinza apresentaram satisfatório comportamento físicomecânico depois de ensaiados
federal, e já foi patenteado. A estatal espera agora firmar uma parceria de transferência tecnológica com uma empresa privada interessada na produção e comercialização do biorreator.
em condições de laboratório, indicando a possibilidade de substituição parcial da areia por até 20% de cinza de casca de arroz ou de bagaço de cana-de-açúcar, sem prejuízo da resistência à compressão simples e da capacidade de absorção de água. •
Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br
Tratamento para PET reciclado
■ Diagnóstico nacional para hantavirose Um kit para diagnóstico da hantavirose, doença transmitida por roedores silvestres, desenvolvido pelo Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), órgão ligado à Fiocruz, já foi testado e validado em laboratórios de referência brasileiros. A estimativa do Ministério da Saúde é que até o final do ano os kits nacionais comecem a ser distribuídos em todo o país. Além de identificar anticorpos produzidos em todas as fases da doença nos seres humanos, ele também detecta o vírus em seus reservatórios naturais. Uma das vantagens do nacional em comparação com o concorrente norteamericano, que está no mercado, é ser 17% mais sensível no diagnóstico de IgG, anticorpo presente em uma fase mais tardia da doença. •
■ Informações sobre a produção de bebidas O setor de produção de bebidas alcoólicas e não-alcoólicas é retratado em amplo leque de temas por 30 autores, entre pesquisadores e profissionais originários de universidades e de empresas. São textos que tratam desde a produção de cerveja, de cachaça
e de vinho até a água-de-coco, refrigerantes e sucos, relacionando temas como legislação, matéria-prima, industrialização, microbiologia, mercado e bibliografia. A coordenação é do professor Waldemar Gastoni Venturini Filho, da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp). •
■ Celulares com música regional Imagens e músicas com temas regionais, produzidas por artistas da praia da Pipa, a 85 quilômetros de Natal (RN), poderão ser vistas e ouvidas em telefones celulares do Brasil e do exterior. A Rede Pipa Sabe, inaugurada em 2003 com a criação de um telecentro, é o primeiro projeto, fora de São Paulo, da Cidade do Conhecimento, ligada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Depois de dois anos de incubação, surgiu o Pipa Móvel, projeto que conta com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e tem como objetivo reinvestir parte da receita gerada pelos ãownloads das imagens e das músicas na comunidade local, principalmente em projetos de capacitação em tecnologias de informação e de comunicação. •
Um novo processo para tratamento de garrafas plásticas descartadas após o consumo e recicladas permite a descontaminação dos flocos de PET, como a resina poli (tereftalato de etileno) é mais conhecida, para remoção de substâncias perigosas absorvidas quando os vasilhames, antes de serem descartados, são reutilizados para acondicionar combustíveis, pesticidas, produtos químicos e de limpeza. Desenvolvido por pesquisadores do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o novo método utiliza um fluxo de ar seco quente durante 15 minutos, em temperaturas que variam de 130° a 220°C. O oxigênio contido no ar atmosférico interage com o PET e, pelo seu alto poder de di-
fusão, facilita a remoção dos contaminantes, com alta produtividade e baixo custo. Antes de aplicar o fluxo de ar seco quente, é necessário separar as embalagens pela cor. Em seguida, elas são prensadas, moídas em flocos e, depois de passar por uma máquina de extrusão, transformadas em grânulos. Só então é aplicado o novo processo, que viabiliza o retorno dessa matéria-prima reciclada para aplicações como embalagens em contato direto com alimentos. Título: Processo de descontaminação de poliéster reciclado e uso do mesmo Inventores: Amélia Severino Ferreira e Santos, José Augusto Marcondes Agnelti e Sati Manrich Titularidade: UFSCar e FAPESP
Grânulos descontaminados: de volta às garrafas
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TECNOLOGIA
As ferramentas dos pesquisadores brasileiros para participar do gigantesco estudo de partículas subatômicas
MARCOS DE OLIVEIRA
m dos grandiosos, complexos e custosos experimentos científicos da atualidade, junto com a exploração espacial e os projetos genoma, é o estudo das menores partículas que constituem toda e qualquer matéria. Por mais paradoxal que pareça, os quarks e os léptons, por exemplo, formadores dos prótons, dos nêutrons e dos átomos e tudo o que mais existe no Universo, exigem instrumentos imensos chamados de aceleradores, além de avançados sistemas de computação com alta capacidade de transmissão e de armazenamento de dados. Só mesmo uma cooperação internacional, presente, por exemplo, na construção da estação espacial ou na transcrição
Resultado da colisão de partículas em simulação artística. Criação e espalhamento de novas partículas
dos genes, pode também concretizar a obtenformação dessas partículas. É um conjunto de operações que também conta com dois grupos de pesquisadores brasileiros, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Eles estão finalizando um complexo computacional que vai reunir o equivalente a 380 computadores trabalhando em conjunto e a mais rápida conexão via internet do país. Tudo isso para estar tantes aceleradores de partículas subatômicas do mundo, o Fermilab, sigla de Fermi National Accelerator Laboratory, situado próximo à cidade de Chicago, nos Estados Unidos, e o Cern, Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, com sede em Genebra, na Suíça. Eles devem gerar 100 milhões de gigabytes (GB) de dados nos
próximos dez anos. Esse número eqüivale à capacidade total de 2,5 milhões de discos rígidos com memória de 40 GB, os mais usados nos computadores atuais. Ultima geração - Na capital paulista já está montado o Centro Regional de Análises de São Paulo, Sprace na sigla em inglês. Ele possui 114 unidades centrais de processamento (CPUs), ou processadores, e está finalizando, com financiamento da FAPESP, a instalação de mais 64, num total que deverá ter o equivalente a 178 processadores de última geração funcionando dos no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, na capital paulista, num acordo com a Unesp, que possui o professor Sérgio Ferraz Novaes, do Instituto de Física Teórica (IFT), como coordenador do projeto. Novaes, que traba-
lhou no Fermilab por dois anos, entre 2000 e 2002, lidera uma equipe de quatro pesquisadores: Eduardo de Moraes Gregores, Sérgio Morais Lietti e Pedro Galli Mercadante do IFT, vinculados ao projeto Jovem Pesquisador financiado pela FAPESP, e Rogério Luiz Iope, estudante de pós-graduação da Escola Politécnica da USP. No Sprace, a equipe possui, para armazenar os dados, discos de memória com capacidade de 12 terabytes (TB), o equivalente a 12 mil GB e a mais de 18 milhões de CDs. No Rio de Janeiro, sob a coordenação do professor Alberto Santoro, da UERJ, junto com 20 pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em colaboração também com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ), foram instaladas, num projeto da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), 200 CPUs com 7 TB de disco. Santoro, que é um veterano nesse tipo de pesquisa, trabalha com os dois grandes laboratórios de aceleradores há mais de 20 anos. Ele estava na equipe que descobriu, em 1995, no Fermilab, a partícula quark top, o último dos seis quarks previstos pela teoria que descreve as partículas elementares e suas interações. O Sprace e o grupo do Rio de Janeiro formam o High Energy Physics (HEP) Grid Brasil, com atuação tanto nos experimentos do Cern como do Fermilab. As duas instituições adotaram recentemente uma das grandes inovações da área de informática surgidas nos anos 1990, que é o sistema Grid, um formato computacional que começa a se tornar uma ferramenta cada vez mais presente no processamento de dados científicos. No conceito grid, vários computadores estão em conexão num mesmo local, formando agrupamentos, também chamados de clusters, que podem estar ligados a outros grupos de computadores localizados tanto em um prédio ao lado como do outro lado do planeta. 66 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
Construção de um dos detectores do novo acelerador de partículas europeu. Ele mede 21 metros de comprimento e 15 de diâmetro, além de pesar 12 toneladas
os Estados Unidos, a Fundação Nacional de Ciência (NSF na sigla em inglês) investirá US$ 150 milhões nos próximos anos para completar a ligação em forma de grid de todas as comunidades científicas e de engenharia do país. Chamado de TeraGrid, o sistema oferece uma série de recursos de hardware e de software que começa a ser usado na decodificação de genomas e de proteínas, no diagnóstico de doenças e na previsão do tempo e de terremotos. Na Europa, o governo alemão anunciou em setembro um investimento de € 17 milhões para a formação de infra-estrutura nacional baseada na estrutura grid. A DGrid Network vai levar a todo o país a possibilidade de resolução de complexos experimentos científicos a distância. Estão incluídos
aí física de altas energias, que estuda as partículas produzidas nos aceleradores, a observação da Terra, astronomia, pesquisas em medicina e aplicações em engenharia. O sistema grid deve assim superar o conceito de supercomputador, equipamento caro e com pouca flexibilidade para aumentar ou diminuir a capacidade de processamento. No grid é só acoplar ou retirar um ou mais computadores. "No sistema grid tudo funciona de forma automática e transparente, com as tarefas sendo direcionadas para os diferentes clusters que estejam com capacidade de processamento livre em um determinado momento", explica Novaes. Todos trabalham com softwares abertos de forma que cada grupo possa também contribuir para o aperfeiçoamento do sistema. O grid da física de altas energias irá utilizar no Cern, quando um novo acelerador for inaugurado em 2007, uma arquitetura hierárquica que irá funcionar a partir de uma central, chamada de Tier 0, localizada na sede do laboratório, de onde
No interior do Compact Muon Solenoid (CMS), sensores vão captar o resultado das colisões entre prótons para tentar detectar o bóson de Higgs, provável responsável pela massa de outras partículas
os dados serão distribuídos por redes de alta velocidade para vários centros nacionais de nível 1 (Tier 1). A partir de cada Tier 1 os dados são distribuídos para centros nível 2 (Tier 2) a eles associados e destes para os de nível 3. O HEPGrid Brasil está na categoria Tier 2. "A evolução do nosso trabalho, junto com mais investimento, permitirá, dentro de alguns anos, transformar nosso grupo em uma Tier 1", acredita Santoro. Velocidade essencial - A conexão com os laboratórios de aceleradores de partículas exige uma excelente comunicação entre os vários grupos espalhados pelo mundo. Para isso a transmissão é toda feita por meio de fibras ópticas. Tanto os laboratórios da USP como os da Uerj recebem e enviam os dados via fibra óptica até os Estados Unidos, por meio de cabos submarinos. Estão previstas para os próximos anos, com a inauguração do novo acelerador do Cern, o Grande Colisor de Hádron, LHC na sigla em inglês, transmissões
de pelo menos 2,5 gigabits por segundo (Gbps). "Comparando-se com uma transmissão oferecida pelo sistema comercial de banda larga, com 256 kilobits por segundo (Kbps), poderíamos dizer que os pesquisadores estarão transmitindo numa velocidade 10 mil vezes maior ou que a mesma quantidade de dados levaria um segundo para ser transmitida para o Cern enquanto pela banda larga comum levaria três horas", calcula Luis Fernandez Lopez, coordenador do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) da FAPESP. Hoje toda a comunicação que sai do laboratório do Sprace segue via laser por meio de fibras ópticas encapsuladas em cabos submarinos até Miami. Atualmente o Sprace já opera em 622 megabits por segundo (Mbps), embora já esteja equipado para se conectar a 2,5 Gbps. "Em breve, com a entrada em operação do LHC, essa velocidade de transmissão será essencial para a continuidade das pesquisas nessa área", diz Novaes.
As exigências futuras fizeram a FAPESP, que mantém a Rede Acadêmica de São Paulo (Ansp) e o Tidia, firmar um acordo com a NSF para financiamento do projeto Western Hemisphere Research and Educational Network (WHREN) - uma rede para ligar pesquisadores de todo o continente americano -, que deve ser inaugurado em dezembro deste ano com um cabo de fibra óptica para fazer a ligação São Paulo-Miami-Nova York com velocidades de 2,5 Gbps. Essa conexão vai suprir tanto a necessidade dos pesquisadores da área de física de altas energias como a de outros laboratórios. Na WHREN, a FAPESP entra com US$ 1 milhão e a NSF com mais US$ 1 milhão. O link com Nova York vai proporcionar velocidades de 10 Gbps dentro dos Estados Unidos e uma conexão com a Europa em velocidade de 40 Gbps. No Rio de Janeiro, o grupo de Santoro já dispõe de 1 Gbps de velocidade de transmissão com São Paulo, em rede experimental mantida pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 67
(RNP) do MCT e também com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A RNP estuda ainda uma conexão externa em 10 Gbps num acordo com a Rede Clara, sigla de Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas. Até o final do ano, uma interligação, na mesma velocidade, entre São Paulo e Rio de Janeiro, vai beneficiar todas as instituições de pesquisa.
oda a estrutura que permite a busca do conhecimento e do entendimento das partes mais íntimas da matéria começa a funcionar quando duas partículas, como dois prótons, por exemplo, são levadas a colidir dentro dos aceleradores. É como se dois objetos quaisquer fossem acelerados a altas velocidades dentro de um anel metálico e se encontrassem e se aniquilassem no meio de um detector recheado de sensores que funcionam de forma semelhante a câmeras fotográficas. A destruição provoca como resultado a criação de um monte de estilhaços, ou, no caso, de partículas. O que os pesquisadores fazem é, comparativamente, analisar o tipo, a curvatura da trajetória dessas partículas produzidas e a energia que elas depositam nos detectores. No mundo das partículas existem comportamentos "estranhos" para o nosso macro mundo, como o fato de que algumas possam conter partículas ainda menores que se transformam em outro tipo de partícula até então impensável. Um dos problemas para os pesquisadores é que existem partículas raras e por isso os experimentos necessitam de bilhões de colisões para estudá-las. "Dentro dos aceleradores circulares os prótons usados nos experimentos são impulsionados por radiofreqüência e por eletroímãs supercondutores, instalados ao longo do círculo", explica Novaes. "As partículas viajam nas cris68 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
tas das ondas eletromagnéticas como surfistas", diz Santoro. O trabalho dos pesquisadores é identificar tanto as raras como as mais comuns partículas nas informações captadas pelos sensores depois das colisões. "Recebemos do Fermilab e do Cem um conjunto de dados para identificar as partículas, fazer as análises das interações e apresentar as conclusões", explica Novaes. Hoje ainda existem partículas previstas na teoria e ainda não detectadas, como o bóson de Higgs, partícula que pode ser responsável pela massa de todas as demais. Outra possibilidade é a verificação experimental de modelos alternativos tais como os modelos supersimétricos, com novas partículas que levam o nome de gluínos, squarks e sléptons, ou aqueles que prevêem a existência de dimensões extras. Todo esse esforço resulta em pesquisa sobre a formação e interação das partículas, mas também colabora no entendimento da formação do Universo, das estrelas e numa série de conhecimentos que são transportados para
tecnologias usadas no dia-a-dia. Uma delas foi a criação da World Wide Web, a conhecida www. Justamente para tornar mais amigável a interação entre os diversos pesquisadores que trabalham com partículas em vários países foi que o pesquisador do Cern, Tim Berners-Lee, criou o sistema web, em que bastava clicar num link, por exemplo, para ter acesso às informações. Os cientistas já trocavam dados por computador, mas isso era muito complexo, como lembra Santoro, que foi um dos primeiros brasileiros a usar o sistema www. Imagens em pósitron - Na área médica, o estudo da física de altas energias levou ao aprimoramento do tratamento de tumores por meio de feixes de partículas e à tomografia por emissão de pósitrons (PET), cujo princípio fundamental é a emissão pósitron (ou antielétron, que são partículas com a mesma massa do elétron, porém com carga positiva) e oferecer imagens de alta definição do interior do corpo humano. O avanço tecnológico de circuitos inte-
A colaboração científica reúne 18 países, além dos Estados Unidos e Brasil, como Canadá, Inglaterra, Argentina, Coréia do Sul, China, França, Rússia, Holanda e Alemanha. São 83 instituições, sendo 36 dos Estados Unidos, congregando 664 físicos, cerca da metade deles norte-americanos.
Ao lado, simulação em computador do resultado da colisão entre prótons. Acima, telas metálicas que serão inseridas dentro da tubulação do anel do novo acelerador do Cern
grados para aquisição e processamento de dados e o uso da fibra óptica, que mais tarde se tornou generalizado nas telecomunicações, também tiveram grande contribuição no estudo das partículas. Obter ganhos no conhecimento científico e, de quebra, incentivar inovações tecnológicas fazem dos aceleradores um experimento caro. Somente no funcionamento do Fermilab é gasto US$ 1 milhão por dia, que é suprido pelo Departamento de Energia norte-
americano e administrado por uma associação de universidades. Enquanto o LHC europeu não começa a funcionar, o Tevatron do Fermilab é o maior acelerador de partículas em operação. O anel de colisão possui 6,3 quilômetros (km) de circunferência e 1 km de raio. O grupo brasileiro trabalha com dados de um dos dois detectores, o Dzero. Com uma estrutura de cinco andares de altura e 20 metros de comprimento, ele pesa mais de 5 toneladas e tem mais de 800 mil canais de leitura eletrônicos.
OS PROJETOS Física experimental de anéis de colisão: SP-Race e HEP Grid-Brasil MODALIDADE
Física experimental de altas energias: os experimentos Dzero do Fermilab e CMS do Cern MODALIDADE
Projeto Temático
Programa de Apoio a Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes
COORDENADOR
SéRGIO FERRAZ NOVAES
- Unesp
COORDENADOR
EDUARDO DE MORAES GREGORES INVESTIMENTO
R$ 709.342,00 (FAPESP)
INVESTIMENTO
R$ 73-963.15 (FAPESP)
- Unesp
Era do exabyte - Com a entrada em funcionamento do LHC, em 2007, o número de pesquisadores envolvidos nessa área em todo o mundo deverá crescer. Em apenas um dos quatro detectores do LHC, o Compact Muon Solenoid (CMS), onde será produzido um montante de dados por segundo equivalente ao de 10 mil enciclopédias britânicas, já estão trabalhando mais de 2 mil pessoas, oriundas de 165 instituições dos 36 países participantes. Todos os pesquisadores do Cern vão operar com o equivalente a 50 mil computadores interligados no processamento das informações que ele vai gerar. No período de cinco a oito anos, o laboratório vai inaugurar a era do exabyte (EB), com a produção de 1 EB em dados digitais, ou 1 quintilhão de bytes. Se fosse possível armazenar essa cifra fabulosa em CDs, que possuem capacidade para 700 megabytes (MB), teríamos cerca de 1,4 bilhão de disquinhos. Outra comparação é que esse 1 EB eqüivaleria a 20% de todo tipo de informação transformada para a via digital gerada no ano de 2002 no mundo, entre internet, revistas, jornais, livros e filmes. O CMS será o detector que os pesquisadores brasileiros ligados ao HEPGrid Brasil irão trabalhar. Mas outros três detectores, o Atlas, o Alice e o LHCb, também vão ter a colaboração de pesquisadores brasileiros do CBPF, da UFRJ e da USP. Como instrumento de trabalho, nos seus 27 km de circunferência, o LHC do Cern vai proporcionar colisões com sete vezes mais energia que o Tevatron do Fermilab. O norteamericano funciona com 2 trilhões de electronvolts (TeV) e o LHC vai operar com 14 TeV. Como ensina um texto no site do Cern:" 1 TeV é comparável à energia que um mosquito usa para voar. O que faz o LHC tão extraordinário é que essa energia pode ser comprimida num espaço milhões de vezes menor que um mosquito". • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 69
I TECNOLOGIA
a aparência, o cristal de brometo de tálio lembra o âmbaramarelo, a bela resina fóssil proveniente de pinheiros pré-históricos extintos. A semelhança, no entanto, é só aparente, porque o cristal desenvolvido no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), colocado na ponta de uma sonda cirúrgica, auxilia o cirurgião na incisão precisa dos tecidos afetados por células cancerígenas e na identificação de linfonodos - os pontos de confluência da rede linfática - durante a cirurgia. Os vasos linfáticos fazem parte do sistema circulatório do corpo humano e distribuem fluidos como água e células. No procedimento cirúrgico é necessário injetar, de duas a 24 horas antes, uma substância radioativa no local do tumor, como o radiofármaco tecnécio-99. "O radiofármaco emite radiação gama, que é captada pela sonda", explica o professor Renato Santos de Oliveira Filho, da disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que vai coordenar os estudos clínicos com a nova sonda. Outras aplicações para o cristal de brometo de tálio estão sendo pesquisadas pelo Ipen para utilização na indústria como controladores de espessura de folhas de papel ou plástico, por exemplo, e na astrofísica como rastreadores cósmicos de emissores de raios X. Os grandes centros de medicina nuclear do país dispõem de sondas radioguiadas feitas com outros cristais, como o iodeto de césio e o telureto de cádmio, mas elas são importadas e custam entre US$ 20 mil e US$ 40 mil. A estimativa é que o preço da sonda de brometo de tálio desenvolvida pelo Ipen fique em torno de US$ 6 mil, com o mesma qualidade. "O alto preço dos equipamentos importados e a falta de assistência técnica foram os motivos que levaram alguns médicos a nos procurar para desenvolver uma sonda nacional", diz a coordenadora da pesquisa, Margarida Mizue Hamada, do Laboratório de Desenvolvimento de Sensores de Radiação do Ipen. No laboratório trabalham vários grupos na área de crescimento de cristais e na preparação e caracterização desses materiais como detectores de radiação para diversas aplicações. Cristais perfeitos - Os cristais de silício e germânio são reconhecidos como excelentes detectores semicondutores de radiação, mas necessitam de baixas temperaturas para funcionar. Por isso os 70 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
pesquisadores envolvidos no projeto decidiram trabalhar com o cristal semicondutor de brometo de tálio, que funciona à temperatura ambiente. Fazer os cristais crescerem com perfeição foi um desafio transposto com o desenvolvimento de uma nova metodologia para a purificação do sal de brometo de tálio. A primeira etapa desse processo é colocar o sal em um tubo de quartzo selado, que vai ao forno em temperatura de 500 a 555°C, para a purificação do material por um processo denominado refino zonal. "A pureza é um fator determinante na qualidade do cristal para atuar como detector de radiação com alta resolução energética", diz Margarida. Na seqüência o material vai para um outro forno, para o crescimento dos cristais. Depois o cristal é cortado em fatias de diferentes espessuras com uma serra de diamante e, em seguida, polido. Contatos elétricos são colocados nessas fatias para que funcionem como detectores de radiação. MEDICINA NUCLEAR A radiação contida no radiofármaco injetado no organismo excita o detector de radiação e produz um pequeno sinal elétrico. Esse sinal é amplificado, quantificado e transformado em um sinal sonoro, para orientar o cirurgião na localização da área afetada sem precisar recorrer à monitoração visual. A sonda é encapsulada em uma montagem cilíndriSonda detecta ca de aço inoxidável, para tumores e auxilia garantir a assepsia. Conectada à unidade eletrôem cirurgias nica de contagem - uma caixa metálica - e acoplada a um computador, ela DlNORAH ERENO mostra a medida de radiação em cada foco do tumor. A técnica de utilização da sonda cirúrgica radioguiada, difundida mundialmente na última década, tem sido empregada em vários hospitais brasileiros. A avaliação é feita a partir do linfonodo sentinela, o primeiro a receber a drenagem da rede linfática. "O método apresenta alta eficácia para identificar metástases ocultas nos tumores de disseminação inicial preferencialmente pela via linfática, como no melanoma cutâneo e no câncer de mama", diz Oliveira Filho. "A grande vantagem dessa técnica é minimizar a intervenção cirúrgica, porque só será retirada toda a cadeia de linfonodos se houver um efetivo comprometimento." Por enquanto tem sido utilizada principalmente para melanomas e câncer de mama. Estudos experimentais estão sendo conduzidos para estendê-la para outros tipos de tumor. No projeto financiado pela FAPESP foram desenvolvidos dois protótipos de sondas cirúrgicas. Em um deles foi utilizada a tecnologia dos detectores semicondutores com o brometo de tálio e, no outro, a dos detec-
Na mira do,
r
cristal
Cristal de brometo de tálio desenvolvido no Ipen interage com radiofármaco injetado em tumor e ajuda a identificar metástases
tores cintiladores com o iodeto de césio dopado com tálio. Os dois protótipos apresentaram bons resultados. A grande vantagem em utilizar o brometo de tálio é que ele não necessita de um componente fotossensor (fotodiodo) para converter a luz em sinal eletrônico, enquanto o iodeto de césio precisa desse material, classificado na lista de aplicações nucleares e, portanto, com restrições para ser obtido. E o que torna mais vantajoso o uso do brometo de tálio em comparação com o telureto de cádmio é o cristal possuir um número atômico elevado e, conseqüentemente, alta densidade de elétrons na rede cristalina. Isso propicia alta eficiência na produção de cargas no interior do detector devido ao aumento da probabilidade de interação da radiação com o meio material do detector. Com isso, mesmo cristais bem pequenos são suficientes para interagir com o radiofármaco injetado. Isso possibilita reduzir as dimensões da sonda radioguiada, tornando-a de mais fácil manuseio para os cirurgiões. A metodologia para purificação e crescimento dos cristais de brometo de
tálio é tema de uma tese de doutorado de Icimone Braga de Oliveira, orientada pela professora Margarida e também financiada pela FAPESP. Toda a tecnologia para criar a parte eletrônica do cristal, o módulo de processamento, de contagem da radiação, exibição e sistema de alarme sonoro faz parte da tese de doutorado de Fábio Eduardo da Costa. "Os testes técnicos, que antecedem os estudos clínicos, mostraram que a sonda de brometo de tálio apresenta as 0 PROJETO Desenvolvimento do cristal semicondutor de brometo de tálio para aplicações como detector de radiação e espectrômetro de cintilação MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADORA
MARGARIDA MIZUE HAMADA-
INVESTIMENTO R$ 93783.75 (FAPESP)
Ipen
mesmas características físicas das outras existentes no mercado", diz Oliveira Filho. A implantação no Ipen da tecnologia de crescimento de cristais cintiladores e sua caracterização como detectores de radiação teve início em 1992 com a vinda do professor visitante Shinzou Kubota, da Universidade de Rikkyo, no Japão, por quatro meses, com auxílio da Fundação. Hoje o instituto fornece cristais para aplicações diversas, como detectores para medidas de traçadores de mercúrio em organismos aquáticos marinhos e de radiação de origem cósmica. Com o desenvolvimento da sonda de brometo de tálio o Ipen responde a uma demanda profissional e espera contribuir com a nova tecnologia para disseminar o uso da sonda radioguiada nas cirurgias oncológicas. O protótipo que será utilizado na Unifesp foi produzido pelo instituto, mas assim que os testes clínicos forem realizados a tecnologia deverá ser repassada para empresas que demonstrarem interesse na produção da sonda. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 71
I TECNOLOGIA
ENGENHARIA DE MATERIAIS
Uma cortina econômica Filme plástico desenvolvido em incubadora da Unicamp bloqueia raios solares e reduz consumo de energia
ma cortina capaz de bloquear em 94% a passagem da radiação solar incidente sobre um edifício totalmente envidraçado mostrou ser possível reduzir os gastos com energia elétrica dos aparelhos de ar-condicionado em até 60% no verão. Essa avaliação é resultado de testes de simulação realizados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) com o novo produto desenvolvido pela VacuoFlex, empresa instalada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A inovação da empresa foi aplicar um filme plástico metalizado sobre uma cortina, fabricada a partir de lona plástica ou tecido. "O custo de aplicação industrial do nosso produto nas cortinas é pago pela economia obtida em três meses de verão", diz o engenheiro civil Antônio Sérgio Assunção Tavares, sócio e diretor da empresa. Para produzir o filme metalizado, foi utilizada a tecnologia RCF (Filmes de Controle de Energia Radiante, do inglês Radiant Energy Control Films), desenvolvida na década de 1960 pela Nasa, a agência espacial norte-americana, para o controle térmico de satélites e das roupas 72 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
dos astronautas. Baseada no uso de filmes plásticos com deposição de alumínio para refletir o calor incidente e impedir sua emissão no ambiente, a tecnologia, depois de guardada a sete chaves por duas décadas, tornou-se de domínio público no início dos anos 1990. A simples deposição do alumínio não confere durabilidade para produtos destinados a usos terrestres, expostos à umidade e abrasão. Para garantir que sejam duráveis, é necessário fazer a deposição a vácuo utilizando o processo de pulverização catódica (sputtering) - um método físico de metalização que usa o gás argônio ionizado -, empregado na Europa e nos Estados Unidos em alguns produtos rígidos, como espelhos retrovisores de automóveis e lentes de óculos com propriedades anti-reflexo e antiembaçante. Aqui no Brasil seu uso ainda está restrito aos laboratórios de pesquisa. E foi do Laboratório de Filmes Finos do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, que surgiu a solução tecnológica para a fabricação dos filmes plásticos flexíveis com propriedades de reflexão e emissão de radiações, que, de acordo com a aplicação, podem ser tanto metalizados, e portanto opacos, como transparentes. Desde 1979, quando entrou na Unicamp para fazer iniciação científica, o físico e sócio da
PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 73
VacuoFlex, Carlos Salles Lambert, estuda a tecnologia de deposição em alto vácuo por pulverização catódica, que é a técnica de produção do filme plástico metalizado. Esse estudo foi essencial para transformar a idéia inicial de Tavares de produzir uma cortina que bloqueasse a radiação solar em um produto com várias aplicações. Isolante térmico - A tecnologia RCF desenvolvida pela VacuoFlex incorporou os avanços da deposição de filmes finos ao conceito original de isolamento termorrefletivo. E já resultou em um contrato de licenciamento, assinado em abril com o grupo Rentank, instalado em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, líder no segmento de galpões de lona, que atua também no transporte e armazenagem de produtos quími cos e no setor de agronegócios. A empresa está fazendo investimentos iniciais da ordem de R$ 500 mil para aplicar o isolante térmico na lona de vinil de galpões de grande porte, utilizados em aviários e por empresas dos setores alimentício, siderúrgico, de operações logísticas e eventos, tanto por pequenos como para longos períodos. A eficiência do filme RCF foi testada pelo IPT em galpões de lona, constatando redução da temperatura interna de até 7,5°C. Dessa forma, haverá uma significativa diminuição no consumo de energia utilizada para climatização do ambiente e nas perdas de produtos do setor alimentício, por exemplo. A lona plástica com o filme isolante também está sendo testada para cobrir caminhões abertos que transportam bebidas e hortifrutigranjeiros "Com a aplicação do isolante na lona, a parcela de calor irradiada para a carga é praticamente eliminada, reduzindo significativamente as perdas ocorridas no transporte de produtos", diz Tavares. Além das cortinas e lonas de galpões, o filme plástico que controla as radiações solares ou térmicas pode ser empregado em telhados, caminhões frigoríficos, estufas agrícolas e capacetes. A obtenção das diferentes propriedades depende da quantidade e dos materiais empregados. Nanopartículas de metais, óxidos e outros materiais são depositadas a vácuo em um filme 74 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
plástico, em camadas com espessura que varia de 5 a 70 nanômetros - unidade que corresponde a 1 milímetro dividido por 1 milhão. Para conseguir produzir os filmes em rolos, uma máquina de uma empresa instalada em Campinas foi adaptada para trabalhar no processo de pulverização catódica com alto vácuo. "Nesse processo os átomos ou as moléculas penetram no substrato de filme plástico devido à energia cinética das partículas, por um processo físico e não químico", diz Lambert. Dessa forma é possível a união de materiais que por processos tradicionais não se juntariam.
cortina termorrefletora, destinada a barrar a radiação solar, foi o primeiro produto desenvolvido pela VacuoFlex no âmbito do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), financiado pela FAPESP. Para avaliar a eficácia da cortina com filme RCF foi escolhido um andar inteiro de um edifício comercial recém-construído, todo envidraçado, localizado na Zona Sul de São Paulo. "O teste feito pelo IPT mostrou que as cortinas conseguem barrar a radiação solar incidente muito mais do que qualquer alternativa conhecida", diz Tavares. "Trabalhamos inicialmente na determinação da emisO PROJETO Otimização do desempenho térmico de cortina termorrefletora, visando ô redução de energia consumida em condicionamento térmico MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)
COORDENADOR ANTôNIO SéRGIO ASSUNçãO TAVARES
VacuoFlex INVESTIMENTO
R$ 74.900,00 (FAPESP)
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sividade do filme, propriedade que mede quanto de calor é irradiado por um produto", diz Fúlvio Vittorino, do Laboratório de Conforto Ambiental do IPT. No caso da cortina, quanto mais baixo esse índice, menos calor é transferido para dentro do edifício. Condições brasileiras - Nos testes foram feitas medições da temperatura do ar e da radiação solar incidente. "Os dados foram passados para um software que faz esse tipo de análise", diz Vittorino. Ele se refere à última versão do programa Energy Plus, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, utilizado para simulação de consumo de energia de edifícios. O processo de validação do software, necessário para verificar se pode ser aplicado às condições climáticas brasileiras, foi feito pelo IPT durante dois anos com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Os testes de avaliação de desempenho têm como objetivo determinar quanto um produto, aplicado em condições reais, vai melhorar o conforto térmico das pessoas e reduzir o consumo de energia elétrica do ar-condicionado. A próxima etapa da pesquisa será estender as medições a outras regiões brasileiras, para verificar como a cortina metalizada se comporta sob outras condições climáticas. "No Nordeste principalmente, onde há muito calor e se usa intensivamente o ar-condicionado", diz Vittorino. A cortina de algodão com filme metalizado pode ser usada em salas de reuniões e em quartos de hotéis, colocada entre a vidraça e as cortinas decorativas. Uma outra versão, que está em estudos para uso em escritórios e residências, terá faixas translúcidas para deixar passar pelo menos uma quantidade mínima de luz, com pequena perda do rendimento energético. Além da cortina termorrefletora e da cobertura para galpões, outros usos estão em testes. Um segmento que também poderá contar com o novo produto é o de criação de aves. Nas regiões mais quentes do país, nos galpões de galinhas matrizes já se utilizam telhas térmicas fabricadas com duas chapas de aço intercaladas com espuma de poliuretano expandido. Essa cobertura, que custa cerca de R$ 60,00 o metro quadrado, proporciona diminuição de
Placa de filme pode ser empregada em lonas de galpões, cobertura de caminhões e estufas agrícolas
temperatura, com aumento da produtividade, e redução da mortandade de aves a menos de um quarto. Teste de campo feito na Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp em dezembro de 2004 comparou o desempenho da telha metálica com aplicação RCF na face inferior com outros dois tipos de telha, a metálica simples, sem isolamento térmico, e a térmica, feita com duas chapas de aço e recheio de 50 milímetros de espuma de poliuretano, todas colocadas em galpões de dimensões idênticas. "Vimos que a telha com RCF teve um desempenho até um pouco melhor que o da espuma de poliuretano, sem contar que o preço cai pela metade", diz Tavares. A redução no custo de aplicação do termoisolante despertou o interesse de um fabricante de telhas térmicas, fornecedor de um projeto que prevê construir mais de 1 milhão de metros quadrados de galpões para aves no Brasil Central. Testes de campo estão sendo feitos para avaliar a viabilidade de empregar o produto nos aviários das galinhas comuns.
Filtro óptico - Foi a percepção das várias possibilidades de aplicação da tecnologia, em distintos setores, que serviu de estímulo para que Tavares e Lambert criassem a VacuoFlex. E todas as alternativas estudadas até agora têm se mostrado promissoras, como a de produzir um plástico transparente para estufas agrícolas. No caso, o produto funciona como um filtro óptico, já que impede a entrada do infravermelho da radiação solar, diminuindo a temperatura interna, ao mesmo tempo que permite a passagem da luz. Testes preliminares feitos com o filme indicaram 30% mais de luz e 30% menos de calor em relação ao plástico com tela de sombreamento, usado, por exemplo, em Holambra, cidade produtora de plantas e flores na região de Campinas. "A indústria química pesquisa há décadas, por meio do uso de aditivos, um plástico frio que deixe passar a luz necessária à fotossíntese, mas que bloqueie o infravermelho da radiação solar", diz Tavares. "Mas os resultados obtidos até agora pelos meios químicos foram mo-
destos." Em países de clima quente como o Brasil, o aumento da temperatura em estufas agrícolas diminui a produtividade do cultivo. Para que isso não ocorra, são utilizados sistemas evaporativos de resfriamento, que consomem energia elétrica, além do recobrimento plástico com mantas de sombreamento para reduzir as temperaturas. Mas esse sistema também reduz a iluminação e retarda o crescimento das plantas. Como no Brasil ainda não existem equipamentos para fazer as deposições a vácuo por pulverização catódica em filmes plásticos, Lambert está adaptando uma máquina para trabalhar exclusivamente com essa tecnologia, já que a importada custa cerca de US$ 2 milhões. Por enquanto, a idéia dos sócios é fornecer os filmes plásticos tratados para as empresas que licenciarem os produtos desenvolvidos pela VacuoFlex. No futuro, eles poderão fabricar as máquinas, por encomenda, para as empresas licenciadas. • DlNORAH ERENO PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 75
I TECNOLOGIA BIOQUÍMICA
Inseticida de proteína Nova toxina vegetal é eficaz no combate às pragas da agricultura YURI VASCONCELOS
gricultores de todo o mundo perdem bilhões de dólares anualmente com o ataque das mais diversas pragas às suas lavouras. Alguns estudos revelam que, no Brasil, cerca de 30% das principais plantações são dizimadas por insetos e outras pragas, como ácaros e fungos. Para debelar o problema, os agricultores têm à disposição um vasto arsenal de inseticidas químicos, bioinseticidas e, mais recentemente, as chamadas proteínas pesticidas. Quando inseridas no material genético das plantas - que, por isso, passam a ser organismos geneticamente modificados -, elas atuam como biopesticidas, matando determinados tipos de insetos, fungos e até vírus. As toxinas protéicas mais empregadas hoje são produzidas por bactérias da espécie Bacillus thuringiensis. Conhecidas como toxinas BT, elas são largamente utilizadas em culturas de milho, algodão e batata nos Estados Unidos e em outros países que permitem o uso de transgênicos. Apesar de eficientes no controle das pragas, as toxinas BT têm ação limitada, porque oferecem proteção apenas contra um número restrito de insetos, às vezes uma única espécie de besouro, mariposa, borboleta, mosca ou mosquito. 76 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
O avanço nas pesquisas com esses biopesticidas levou um grupo de pesquisadores do Laboratório de Proteínas Tóxicas (Laprotox) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a descobrir um novo tipo de proteína inseticida com ação muito mais ampla e segura do que a toxina BT. Trata-se de um grupo de proteínas, conhecidas como ureases e produzidas pelas próprias plantas, com atividade inseticida contra besouros do tipo carunchos, percevejos e pulgões, insetos imunes à toxina BT. Esses animais são pragas importantes na agricultura brasileira. A soja, por exemplo, é atacada pelo percevejo verde (Nezara viridula), o algodão pelo percevejo-manchador {Dysdercus peruvianus) e o feijão-de-corda pelo caruncho Callusobruchos maculatus. "Os pulgões, além de se alimentar das plantas, são vetores de doenças", afirma a biomédica Célia Carlini, coordenadora do Laprotox e pesquisadora responsável pela novidade. A toxina protéica também é eficiente no combate a pragas urbanas, como cupins e baratas. Para esse fim, o produto pode ser pulverizado nos ambientes desses insetos ou estar disponível em armadilhas. Nas lavouras, a proteína precisa ser inserida numa planta que se tornará geneticamente modificada. Para isso, os pesquisadores desenvolveram um gene
artificial que codifica apenas o pedaço da proteína que é tóxico para o inseto. Após ingerir a urease, enzimas do tipo catepsinas do próprio inseto quebram a proteína e um fragmento atravessa a membrana das células intestinais, atingindo tecidos ainda não identificados pelos pesquisadores e levando o animal à morte. "Nossa proteína apresenta uma grande vantagem relacionada ao aspecto da biossegurança quando comparada à toxina BT", afirma Célia. "Ela está presente em alimentos que são consumidos diariamente pela população, como feijão e plantas da família das curcubitáceas, como melão, melancia, abóbora e pepino. Isso é uma sinalização de que ela não faz mal ao nosso organismo." Assim, plantas como a soja modificada geneticamente, com a proteína inseticida, não causaria mal aos seres humanos. Duas patentes - As pesquisas do grupo gaúcho resultaram em duas patentes, ambas associadas ao processo de produção do fragmento da proteína com ação tóxica. Esse fragmento é um peptídeo, caracterizado assim por ser um composto formado por uma cadeia de 81 aminoácidos. Os pesquisadores deram a ele o nome de jaburetox, palavra formada por jack bean, nome em inglês do feijão-de-porco - vegetal em que a
proteína foi identificada pela primeira vez -, mais urease e toxina. Como o grupo sabia que o poder tóxico da proteína estava no fragmento formado durante a digestão do inseto, a decisão seguinte foi tentar produzir essa molécula em laboratório. O resultado foi surpreendente: estudos mostraram que o jaburetox agiria numa variedade bem maior de culturas agrícolas e contra muitos outros insetos, inclusive aqueles imunes à toxina BT. "Nossas duas patentes cobrem todos os processos de produção desse peptídeo, seja por meio da purificação das ureases e das enzimas do inseto, seja por meio da construção de um gene artificial, que ensina a célula a fabricar esse peptídeo. Esse gene artificial pode ser introduzido numa bactéria ou levedura, para produção do peptídeo em tubo de ensaio, ou numa planta, num processo de transgenia", explica Célia. A descoberta do peptídeo jaburetox, que poderá se transformar em um importante aliado no combate às pragas do campo, é o coroamento de mais de duas décadas de pesquisa da biomédica Célia Carlini, especialista em biologia molecular com ênfase em química de proteínas. "Nossas pesquisas tiveram início em 1981 com o estudo da proteína canatoxina (CNTX), encontrada no feijão-de-porco (Canavalia ensiformis). Esse tipo de feijão não é comestível,
mas largamente utilizado na adubação verde. Altamente produtivo e com elevado valor protéico, ele é plantado em lavouras com a finalidade de incorporar nitrogênio ao solo", explica a pesquisadora. De 1998 a 2005, Célia recebeu financiamento de R$ 295 mil oriundo de vários programas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). Família conhecida - "Durante o mestrado, isolei a canatoxina e passei a estudar seu mecanismo de ação. Em 1997, durante meu pós-doutorado, no Centro de Ciência de Insetos da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, descobri que ela tinha atividade inseticida." Em um estudo com oito diferentes insetos, ela mostrou-se eficaz no combate ao caruncho do feijão-de-corda e ao barbeiro Rhodnius prolixus. Foi apenas em 2001, no entanto, que a pesquisadora e sua equipe descobriram que a canatoxina pertencia a uma família de proteínas bastante conhecida nas plantas, chamadas ureases. "Foi uma descoberta importante, pois constatamos que existe uma oferta muito maior de genes, já que a urease é encontrada em vários
vegetais. Ao mesmo tempo, ficamos s mais confortáveis quanto à sua biosse- § gurança, porque essas plantas são co- 1 mestíveis, ao contrário do feijão-de-porco, fonte original da canatoxina." Os testes laboratoriais, segundo a pesquisadora, já revelaram que o peptídeo não é tóxico em ratos e camundongos. "As primeiras plantas transgênicas já se encontram em testes no laboratório e os resultados devem sair até o final do ano. Estamos testando tabaco transgênico e estudando a ação da toxina sobre lagartas Manduca sexta e pulgões da espécie Trips tabaci, que são pragas do tabaco." Ao mesmo tempo, o grupo, que já publicou mais de 50 artigos em periódicos nacionais e internacionais, está em contato com pesquisadores da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e da UFRGS especializados em transgenia de algodão e de soja, para a realização de experimentos com o peptídeo nessas culturas, e com pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (SP), para testar a descoberta em cana-de-açúcar. Caso o resultado dos testes demonstre que a proteína tem ação tóxica contra pragas que atacam essas lavouras, o próximo passo será encontrar um parceiro para iniciar a produção comercial do novo biopesticida. • PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 77
FOLHA DE S.PAUL( DA SUCURSAL DE BRASíUA
Foi, para um deputar a "Noite de São Bar [massacre de protestant ses no século 16]. Pars "noite das facadas". A madrugada foi de corre-corre para os líde: nistas, que tentavam e esfarelamento da candi Luiz Eduardo Greenhalj fiança do dia de antec substituída pelo deses primeiras horas da madi Às 2h30, o anúncio dE nas 207 deputados v01 Greenhalgh no primei contra a previsão de 27 conclusão inevitável de processo de traição õ' ~ curs~ ~a base ~iad~ ~ ~ ~l no, ~ rOOífWcWã~JM- :3.0
((
O derrotado
GOVERNO
SÓ 1
se a não quiser", dizia aqui de domingo. A oposiçã muitos governistas q ' também, só assim se ex os 300 votos que na me de ontem entregaram a j cia da Câmara dos Dep figura sempre secundá nunca inofensiva, de Cavalcanti. A óbvia composição ( vencedores não reque exame para invalidar a ,-e ~ c§: '6:.fkejante no comentari: (') [~O, de que o "baixo !intingente amorfo do! 8 ~.~. ~tZVs marginalizados, .im. raIRíli~~~i r-. 9- t:; o liiieranças e aos domina do 'twu1oé'm:l~Mfiw~pínovo poder na Câmarc put.@tirR~~~dijunto vencedor é muito I P~~~ ~Ff,1You neo, o que faz com que se 'lY'!F~PtilJ..Cgn~m::nflfs~~ ~ nos um lado vencedor d, '~~~Te:J.N'iUe:!'!!J!!pl'E-ve., d (pr~~ 9 ~~te lado derrota o-o gove ChiMgJiã&SJU~ <ã<tufiDerrota muito desmo o I'f~~e tq~<ft'erra, já por si mesma, COl CuMfjil (5P)?~8 ~J!ffu:za do-se quanto o goverr EdW~8B~.wffóçzlf{m.Clanhou em cargos público. so reagir rápido. O ar promessas, em pressões que os ruralistas fechar, nobras baixas dentro I de Severino Cavalcanti t partidos, para ao final t nico, pois o PT dava cor ra e quase debochadam. apoio da bancada após < do. Mas derrota sobretu. dos sem-terra Greenhe tadora, em uma conu ser contra "baderna" no mais ampla da política, Alvos foram identific rando-se que se segue a deles era a parte do PF grande peso e em que ~ Antônio Carlos Magali PT também jogava"! tu (BA). Genoino foi o en. rota de Marta Suplicy, da missão. A passos rá} nh~da 1'or outras de
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HUMANIDADES CIÊNCIA POLÍTICA
O outono
da estrela
PT chega ao poder para cair em "purgatório político". O que aconteceu? CARLOS HAAG
lhando o caos, ao fim da batalha de Waterloo, Wellington lamentou: "Quase tão triste quanto uma batalha perdida, só mesmo uma batalha ganha". A frase pode ser reciclada para se tentar entender o "purgatório" político do Partido dos Trabalhadores ao chegar, enfim, ao poder. De "o fato político mais importante no Brasil das últimas décadas" (como foi saudado por analistas políticos no seu surgimento), amarga, hoje, dizem pesquisas, um descrédito crescente, em especial naquilo que fazia dele a "grande novidade eleitoral": uma nova forma de ação política, com uma conduta ética, participativa, voltado para a luta contra as desigualdades e pela democracia. "A crise de hoje é um reverso negativo do aspecto 'virtuoso' do caráter inicial ideológico do PT: sectarismo e arrogâncias nascidos de mistificações ideológicas. Se cabe festejar o realismo eleitoral e a administração econômica, o 'esquemão' revelado mostra o destempero do realismo, comprometendo o capital ético do PT, numa espécie de 'maquiavelismo tosco'", avalia o cientista político Fábio Wanderley dos Reis. Algo deu errado? Talvez a resposta seja o mote machadiano de que "o menino é pai do homem". "A eleição de Lula foi a conclusão de um processo iniciado em 1995, com a retomada da hegemonia interna pelos grupos mais moderados do PT, reunidos em torno da Articulação, após apenas dois anos de poder das correntes de esquerda", diz Pedro Ribeiro, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que está desenvolvendo uma pesquisa sobre partidos de esquerda em ambientes governativos, tomando o governo Lula como referência. "Devemos evitar esse maniqueísmo simplista atual de que tudo foi feito tendo em vista um 'projeto de poder', o que, aliás, 80 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
é lícito para qualquer partido político. Outros fatores mais importantes agiram sobre o PT: crescimento eleitoral, fortalecimento organizacional, burocratização da máquina partidária, aproximação excessiva das esferas estatais, distanciamento das bases, aumento da participação de mandatários eleitos e ocupantes de cargos de confiança entre os dirigentes partidários, falta de renovação de quadro e dirigentes, desmoronamento da agenda da esquerda nacional e busca por maior competitividade eleitoral", analisa. "Nisso, as vitórias pesaram mais do que as derrotas para a moderação e pragmatização do partido." Pragmatismo, centralização e moderação como problemas do PT? Essas características não confirmam o senso comum que costuma ver o partido como ideológico, radical, um "saco de gatos" de tendências de esquerda. Efetivamente o PT não é assim, se é que já o foi, há muito tempo. O ano de 1995, no entanto, é visto pelos analistas como um ponto de inflexão num longo processo de transformação que fez com que o PT saísse da categoria sartoriana de partido anti-sistema (a oposição apriorística e permanente contra o Estado) a uma postulação pragmática de comandar o Estado, aceitando para isso a união com outras forças políticas não limitadas aos aliados tradicionais do partido. O paradoxo notável é que esse "desvio" de caminho só pôde acontecer graças a uma virtude do partido, vista, em geral, como a sua fragilidade: as lutas e divisões internas e a união de várias tendências. Lula - "O que distinguia o PT de outros partidos era o alto grau de participação da militância ante uma baixa autonomia das lideranças. Assim, antes de 1995, embora Lula e seu grupo favorecessem uma moderação da linha do partido, eles, por causa dessa democracia interna, não puderam impor sua visão. Depois disso, o peso dos pragmáticos cresceu porque, entusiasmados com os resultados positivos nas urnas, a base do partido resolveu dar poder a eles", explica o brasilianista Da-
PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 81
vid Samuels. "Se, posteriormente, houve um aumento na autonomia da liderança isso só ocorreu porque os moderados tiveram apoio geral e escolheu-se dar a Lula e seu grupo uma liberdade adicional." Vítima de sua riqueza? "Esse é um cenário experimentado por partidos de esquerda na Europa, que se tornaram partidos eleitorais convencionais, com total independência de movimentos de mobilização. Assim, o movimento de adaptação estrutural do partido para o poder nacional gerou a aceitação de que o executivo partidário detivesse um grau de poder discricionário para as lideranças, isolando-se do controle mais firme pelos corpos partidários de base. Definiu-se, dessa forma, uma autonomização do grupo partidário no governo ante a estrutura geral e as bases partidárias", avalia Rachel Meneguello, da Unicamp. Em suma, o próprio partido escolheu, no momento em que se decidiu chegar ao poder, abrir mão de sua autonomia para o grupo que o dirigia, o que, no limite, gerou uma elite interna. Fracasso - O catalisador dessa mudança foi uma batalha perdida: o fraco desempenho na sua primeira prova eleitoral, em 1982, que só elegeu oito deputados. "O slogan 'Vota no 3, que o resto é burguês' refletia uma postura eminentemente ideológica, que encobria a precariedade de sua formulação programática. Dificuldades que não passaram despercebidas ao núcleo dirigente do partido e, em 1983, iniciava-se um processo de rearticulação interna que procurava sanar a questão se o PT era uma 'frente' de organizações ou um partido", avalia Marco Aurélio Garcia, assessor de política externa do governo Lula. O fracasso nas urnas deu força à esquerda do PT, que não via com bons olhos a participação dentro do sistema, visto como um "desvio eleitoreiro". A resposta veio com a criação da Articulação dos 113, em 1983, o grupo de Lula, com forte predomínio de sindicalistas do chamado "neo-sindicalismo", de orientação pragmática. "Os sindicatos (no caso petista, eram geralmente sindicalistas do setor estatal, que não sofriam tanta pressão como seus colegas da iniciativa privada) e os movimentos sociais da época estavam todos voltados para uma política menos ra82 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
dical e de maiores resultados, o que incluía uma antes impensada relação com o Estado. Como eram uma força interna importante dentro do PT, e o partido tinha bases democráticas, deram impulso gradual a que a moderação de Lula ganhasse mais espaço", nota Samuels. Estava chegando a vez do "PT de resultados". "As derrotas de Lula em 1989,1994 e 1998 são importantes, porque fizeram com que ele e a cúpula do chamado Campo Majoritário (união de centro-direita do partido em oposição ao campo minoritário esquerdista) exigisssem carta branca do partido para ampliar o arco de alianças, para se aproximar de setores do empresariado e para construir uma campanha eleitoral competitiva e moderna", diz Pedro Ribeiro. Para isolar a esquerda, o Campo Majoritário instituiu eleições diretas na escolha dos dirigentes, confiando na moderação do petista médio, ganhando ainda mais espaço para mudanças internas. A centralização decisória se deu na concentração de poderes na executiva, e não no diretório. A idéia era agilizar as decisões do partido e refrear o impulso "assembleísta" que o caracterizava. "Houve uma enorme concentração de poder na direção, sem controle de outras instâncias partidárias, e o Campo Majoritário ganhou um peso desproporcional nos últimos anos", confirma Paulo Leal, autor do recente O PT e o dilema da representação política (Editora FGV). "Mas não nos esqueçamos de que tudo isso aconteceu dentro de normas democráticas, atendendo o desejo da maioria dos filiados que apoiaram essa guinada para o centro pragmático, que lhes permitiria ganhar eleições e poder", ressalta Samuels. "Concordo que as posições moderadas nunca foram minoritárias, mesmo em 1993, quando a esquerda fez a maioria da direção. Afinal, ela nunca conseguiu, mesmo guiando o partido, impedir que a lógica do mercado eleitoral se consolidasse no partido", nota Leal. Mas a autonomização da Executiva Nacional trazia as sementes de futuros problemas. Basta lembrar que até a eclosão da crise atual a corrente tinha sob seu comando os seis principais cargos do PT: presidente e vice, secretarias
geral, de finanças, de organização e de comunicação, ocupados pelos principais envolvidos nos casos de corrupção. E o processo tem até mesmo uma definição na Ciência política: a lei de ferro, de Robert Michels, que mostra como organização leva à oligarquização. O crescimento de um partido traz complexidades que exigem profissionalização de alguns quadros, o que faz surgir uma elite de burocratas partidários, distanciada da massa, não submetida ao controle do resto do corpo partidário. "O interessante é que, se a crise petista confirma claramente a lei de Michels, não se observa, como esperado, uma burocratização nos procedimentos partidários, o que, somado ao surgimento de superburocratas, contribuiu para a permeabilidade do partido à corrupção", nota Ribeiro.
omo alertou Tarso Genro, não se observaram os preceitos de formalismo, hierarquia de autoridade, documentação de processos e delimitação de jurisdições, para usar jargões weberianos. Na centralização, houve uma informalidade e pessoalidade no trato das questões e decisões partidárias, observa o pesquisador da UFSCar, bem como no relacionamento com membros do governo Lula. "Não por acaso, as ações da direção que detonaram a crise ocorreram exatamente quando o Campo Majoritário tinha tanto poder e as oposições externas estavam enfraquecidas. O que mostra o pluralismo como uma tendência saudável. O que veio abaixo foi a tese do PT de que o partido tinha construído um sistema que dificultaria ou impediria a ação de oportunistas. Mas ele não foi capaz de coibir Delúbios", lembra Leal. Ao deixar o partido, no mês passado, o petista histórico Plínio de Arruda Sampaio reclamou: "No atual PT, a minoria está reduzida à inglória tarefa de legitimar as decisões da cúpula". "Creio que o partido nunca foi capaz de construir um projeto simultanea-
mente socialista e democrático. Quando era democrático, era social-democrata; quando era socialista, não era democrático. O PT, em síntese, sempre foi leninista, uma concepção autoritária do fazer político", acusa Clóvis Bueno, da FGV, autor de A estrela partida ao meio. Isso se refletiu, em especial, na experiência petista de administrar cidades e no Parlamento. "É preciso instrumentalizar o partido para que dirija a política exercida pelos petistas nas administrações. Sem um trabalho nesse sentido, buscando afirmar o caráter dirigente do partido, o que veremos será a ampliação da distância entre o partido e as administrações", preconizava uma resolução do Sétimo Encontro do PT, em 1990. "A questão que se colocava era se o mandato era do titular ou do partido. A medida que o partido se institucionalizava, o ingresso em seus quadros constituiu-se numa chance de se candidatar e alcançar um padrão de salário e status social muito superior", nota Eloísa Winter, autora do doutorado PT: impasses da esquerda no Brasil. Segundo ela, não é acidental que o partido exiba um grande número de eleitos que entram em confronto com o programa e os princípios do partido, em total incompatibilidade. Um problema sério, já que o "jeito PT de governar" é uma de suas maiores bandeiras, responsável por seus sucessos administrativos, como as gestões participativas, uma das maiores inovações petistas. Pragmatismo - "Isso também reforçou o pragmatismo e a centralização do PT em detrimento do ideológico. Ninguém se reelege com plataformas ideológicas: você precisa mostrar que é capaz de melhorar a vida das pessoas, o que se configura em política de resultados", avalia Samuels. Se o que é sólido se desmancha no ar, era preciso o novo discurso, algo moralista, da "ética na política e eficiência na administração". "Assim, não me espantou esse Lula quase neoliberal que é tão criticado como se surgisse do nada. Ele sempre foi o tipo de político que procurou jogar pelas regras. Não é um Chávez que não quer mudar apenas as regras, mas o jogo todo", diz o brasilianista. "Não se pode negar que a nova dinâmica econômica mundial tem imposto a governos de esquerda a necessidade de coPESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 83
locar em prática políticas econômicas realistas, atentas para as dificuldades do keynesianismo velho no mundo novo e ninguém sabe como conciliar essas imposições com o compromisso social em termos afins ao ideário de esquerda", lembra Fábio Wanderley. Seja como for, esse pragmatismo, consolidado pelas eleições passadas, foi um bom teste para que Lula pudesse se defrontar com o modelo presidencialista de coalisão que estruturou vários governos anteriores. Em 2002, o PT só possuía 18% da Câmara. "Num Congresso fragmentado, governar só com a esquerda seria impossível e a costura com outros partidos foi inevitável sob pena de bloquear a agenda do Executivo", lembra Ribeiro. "O governo Lula buscou um apoio no varejo, atraindo PTB e PP por acordos e inflando o PTB e o PL. Mas tudo isso gerou enormes tensões na bancada petista e em setores do governo que não viam esses acordos como legítimos." Daí, a lógica da facção, o "racha" do partido. Não faltou indignação pelo fato de a executiva fechar alianças sem consultar as bases, efeito indesejável da centralização, concedida pelos filiados aos líderes de forma democrática. "O PT, desde o início do governo, sofre um purgatório ideológico: o confronto das posições historicamente defendidas pela legenda com as restrições e pressões a que se submete um governo que é responsivo perante a sociedade como um todo, não apenas com seu partido ou sua base", diz Ribeiro. Uma repetição, em escala federal, dos dilemas de várias administrações, desde a experiência pioneira de Diadema. Nesse ponto, a virtude das várias tendências internas pode virar um transtorno sério. "O pluralismo de idéias e posições impede a mumificação do partido, mas, por vezes, há um direcionamento muito grande de energia em disputas internas por causa disso. Como oposição, isso é contornável. Mas, na hora de governar, a lógica do partido se transforma em lógica de facção e fica difícil governar sem a certeza de contar com o apoio de seus partidários", fala Ribeiro. "Ao chegar à fase madura da vida, em que detém o poder 84 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
nacional, o PT mostra que não é imune às imposições do jogo entre partidos, da competição política e do exercício do poder. A experiência do partido no governo está mostrando os limites claros daquela inovação partidária original e, para além das irregularidades cometidas por lideranças nesta crise, põe fim ao ciclo original de vida petista", assegura Rachel Meneguello. Expondo, talvez, como afirma Gianpaolo Baiocchi (da Universidade de Massachusetts), que o "PT claramente ainda não tem o know-how necessário para dirigir o país, muito menos levar adiante um projeto que traga a marca do partido". Há também, talvez, um outro tipo de inexperiência. "A administração falhou em dividir o poder com os partidos aliados e o PT ficou com bem mais do que merecia. Por exemplo, se Lula tem o apoio de partidos com 60% dos assentos no Congresso, o seu partido deveria ficar com apenas um terço do total de cargos. Mas não se fez isso, o que deixou os aliados insatisfeitos", avalia Samuels, para quem também faltou substância ao governo.
a raiz dessa crise está também a falta de políticas às quais os aliados poderiam aderir e, dessa forma, colher benefícios políticos. Isso teria facilitado a construção de uma coalizão a FHC. Vale lembrar que a administração do expresidente comprou seu apoio no mercado 'no atacado', ganhando o apoio sólido de partidos inteiros", explica o americano. "Lula preferiu comprar 'no varejo' e o tal mensalão é apenas um sintoma dessa estratégia. Comprava-se o apoio em nível individual e quando alguém de um partido se sentiu, leia-se Roberto Jefferson, menos 'mimado', levantou questões e criticou todo o processo." Para Samuels, a crise se explica pela estratégia do governo de tratar aliados e oposição não como um grupo de partidos, mas como uma coleção de indivíduos. "Se a crise fosse só o mensa-
lão, não teria grandes repercussões. Mas é um problema profundamente enraizado na estrutura administrativa do PT e que infectou assim partido e governo. Acho que houve também um erro de cálculo: na medida em que a administração FHC tinha grande apoio da classe política, acusações de corrupção não eram exploradas seriamente. Penso que os líderes do PT acreditaram que iriam receber um tratamento igual." "É claro que a corrupção governamental precede, em muito, o governo de Lula. O que diferencia petistas como agentes de corrupção é a sua inexperiência. Isso me recorda o caso Collor: por que ele caiu com tão poucos? Porque ele era um outsider político. Como pessoas como ACM ou Jefferson estão há tanto tempo na política?", pergunta Baiocchi. "Se olharmos de forma não apaixonada para a natureza do Estado e da política do Brasil, o que chama a atenção nesse escândalo não é só a corrupção, mas que ela tenha sido feita por pessoas não acostumadas às regras informais do jogo." O mesmo não pode ser dito sobre a tão apregoada "fome"de cargos do PT. "O partido se aproximou demais do Estado e se afastou demais da sociedade civil. Com o fortalecimento do partido no espaço estatal surgiu um exército de quadros partidários com uma grande intercambialidade no desempenho de funções comissionadas, ou seja, eram pessoas convocadas a participar de vários governos petistas em tempos diferentes", conta Ribeiro. "A formação desses quadros está ligada a concepções que diferenciam o PT dos demais partidos: a importância dada à formação política de seus militantes e uma tentativa de criar um 'modo petista de governar' com a sistematização de experiências e práticas, levadas de uma administração a outra." Em outros termos, o "partido-filtro" idealizado por Umberto Cerroni, do PC italiano. Logo, segundo o pesquisador, descontados os exageros da oposição e da imprensa, o PT realmente ocupou um grande número de cargos federais, num processo intenso de patronagem partidária. "O partido era o único que poderia ocupar com quadros próprios, experimentados em gestões anteriores; daí o espanto das outras legendas, acostumadas com a indicação de 'apadrinhados' e
identificados com um determinado líder, e não com esta ou aquela legenda." O problema é que, como grande parte do PT não via as alianças feitas pela liderança partidária como legítimas, continua o cientista político, também não via legitimidade na divisão do poder. "Assim a briga pelos mesmos espaços estatais com líderes de legendas aliadas mais acostumadas com essa ocupação institucional, como o PTB e o PMDB", diz. "O cruzamento da tênue linha que separa patronagem da corrupção foi um dos fatores que levou a essa crise." O que se pode esperar do futuro? Um Lula fora do PT? "Embora um petista certamente vote em Lula, alguém que goste dele não é necessariamente um petista. Isso indica que Lula é maior que o partido, mas também que ele não é essencial para o crescimento e sobrevivência do PT", pondera Samuels. "Ele não pode sobreviver sem o partido, a não ser como uma estrela sem rumo", avalia Clóvis Bueno. "Durante muito tempo, os petistas definiam seu ethos a partir da recusa ao personalismo. 'No PDT há brizolistas, no PT há petistas', dizia-se. É um paradoxo o que ocorre hoje: em nome de salvar o seu mandato e a reeleição, Lula ajuda a inviabilizar o PT", critica Paulo Leal. Deve-se festejar a desgraça petista? Força política - "Só se alegra com a 'decadência' do PT quem não tem compromisso com a democracia. Pois, apesar das ambigüidades, contradições, falta de clareza e mesmo a 'lambança' atual, o PT é o fato político mais importante do país em décadas", defende Clóvis Bueno. "O que se ganha com o PT é a força política que enfatiza a participação popular na política, num país em que a maioria não sabe diferenciar ideologias de direita das de esquerda. O PSDB e o PFL podem até oferecer um modelo de competência administrativa, mas nunca conseguiram oferecer nada no campo emocional da política, que não se deve desprezar", pondera Samuels. "O eleitor brasileiro vai ficar mais cínico, pois o PT supostamente era a alternativa não-cínica, mas esperançosa. Agora não está claro o que o partido pode oferecer aos eleitores em termos de razões emocionais para apoiá-lo." Waterloos diferentes, mas com o mesmo final. • PESQUISA FAPESP 116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 85
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E fácil ser ético na oposição
Ele foi o primeiro a mostrar que os reis não andavam nus, mas até se vestiam bem. O cientista político Leôncio Martins Rodrigues estudou qual era a composição social dos partidos brasileiros e descobriu que o partido podia ser dos trabalhadores, mas, em sua maioria, seus afiliados eram mesmo da classe média em busca de ascensão social. O ex-professor titular da USP e da Unicamp acompanhou as greves que levariam ao surgimento do PT e é um crítico feroz da voracidade de muitos militantes do partido, que "vieram mais de baixo e estão se lambuzando mais com o poder". Afinal, explica, "as novas elites, por mais que se apresentem como radicalmente diferentes das antigas, tendem a reproduzir a conduta dos grupos dominantes anteriores". Nesta entrevista o pesquisador adverte que a crise de hoje iniciou-se há tempos, quando o PT começou a ganhar pedaços do aparelho do Estado até chegar ao poder central. ■ Quais as causas da crise atual por que passa o PT? Elas são atuais ou refletem erros passados do partido? — Respondendo de um modo ao mesmo tempo ingênuo e cínico: a crise atual só aconteceu em razão da descoberta do esquema de corrupção. Se não, se o esquema não tivesse se tornado público, provavelmente tudo estaria muito bem, obrigado. Mas acho que a crise não reflete "erros" passados 86 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 116
da trajetória partidária. Os atos que, eufemisticamente, denominamos de "erro" só começaram a acontecer quando o PT passou a ganhar pedaços do aparelho do Estado, culminando com a tomada do governo federal. Portanto, foram efeitos colaterais do crescimento do partido e da conquista do poder. ■ Por que o senhor classifica de eufemismo o uso do termo "erro"? — Entendo que o uso do termo "erro" serve, de um modo semiconsciente, para atenuar a gravidade da conduta da alta direção do partido. Alguém diria que Maluf cometeu um "erro" ao enviar ilegalmente dinheiro ao exterior? Não creio que se possa falar de "erros" para designar casos de corrupção ou de conduta eticamente condenável. Ações erradas são aquelas que não se mostram adequadas para atingir um determinado objetivo. Dizem respeito a fins, e não a meios. No caso, o PT errou quando agiu de modo inepto permitindo que os atos ilícitos fossem descobertos. Os erros são habitualmente ações ou julgamentos que não são desejados pelos autores, que acontecem contra a sua vontade. Não foi o caso da liderança petista, que sabia muito bem o que queria. ■ Então, o passado do partido mais à esquerda não responde pelos atos do presente? — Entendo que as concepções doutrinárias socialistas e as explicações teóricas do PT, desde a sua fundação, estavam equivocadas teoricamente mas não eram eticamente condenáveis. ■ Como entender a entrada tão intensa
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da corrupção nos quadros históricos do partido? — Primeiramente, é preciso salientar que sempre existiu na política brasileira um campo propício à corrupção. Se ele não existisse, a nova elite política que ascendeu por meio do PT teria se comportado de outro modo. Geralmente as novas elites, por mais que se apresentem como sendo radicalmente diferentes das antigas, tendem a reproduzir a conduta dos grupos dominantes anteriores. ■ Há chance de o partido conseguir espaço nas eleições de 2006 ou será uma derrocada geral? — É difícil um vaticínio mais preciso. Muitas variáveis devem ser levadas em conta. O prognóstico mais seguro, mas, por isso mesmo, mais vago e próximo do óbvio ululante, é que o PT deve perder muitos votos e muitos dos seus atuais parlamentares, na Câmara dos Deputados e outras instâncias do sistema político, não serão reeleitos. Mas, no que toca ao partido enquanto organização, o estrago está feito e dificilmente será recomposto. A máquina partidária já foi afetada e o partido está mais dividido do que nunca. Pior ainda: Lula e a liderança petista perderam legitimidade. Já a extensão do estrago nos resultados eleitorais do PT em 2006 é mais difícil predizer. Dificulta qualquer prognóstico a fratura da base de sustentação do Executivo no Congresso e da decomposição do governo Lula enquanto governo petista. ■ Como assim? — O governo passou a depender, mais do que nunca, do PL, PP e PTB e de
parte do PMDB e de lideranças políticas como os senadores José Sarney e Renan Calheiros. Os pequenos partidos de esquerda, como o PCdoB e o PSB, continuam com o Lula, mas a composição do governo nem de longe lembra a de um governo de esquerda ■ Haveria outra forma de o PT sobreviver sem optar pela lógica eleitoral? — A via revolucionária nunca foi uma opção nem poderia ser num partido cujo lançamento se deu à luz do dia no Colégio Sion, no elegante bairro de Higienópolis em fevereiro de 1980, tendo a reunião de fundação se efetuado logo depois no Instituto Sede Sapientiae em São Paulo entre os dias 31 de maio e Io de junho do mesmo ano. A tendência majoritária do PT, a começar pelos diretores de sindicatos, sempre optou pela via eleitoral, embora a desconfiança com relação às instituições da democracia representativa existisse em alta dose em muitas facções que vieram dos pequenos grupos leninistas. Por isso, o PT foi ao mesmo tempo um partido de militância, de rejeição da ordem burguesa (geralmente mais de palavras do
que de atos) e um partido eleitoral de ideologia nacionalista, antiliberal, colorida com pinceladas de um socialismo que mesclava cristianismo e marxismo. Excluído o caminho revolucionário, a lógica eleitoral se impõe. Ninguém entra numa disputa eleitoral com a intenção de perder sempre. Disputas eleitorais, nas democracias, custam caro. Segue-se daí que, não tendo o PT conseguido se transformar no partido majoritário, cumpria fazer alianças. E elas não podiam ser estabelecidas só com partidos de esquerda. Incongruente, porém, do ponto de vista programático, foi a coligação com o PL, quer dizer, esquerda com direita. Uma aliança com o PMDB, centro-direita, seria menos incongruente, mas ela, caso se realizasse, custaria mais caro ao PT porque o PMDB é um partido muito mais forte do que o PL. ■ A grande pergunta que se coloca hoje é como e por que se deu a transformação do partido, sua burocratização, profissionalização e pragmatismo eleitoral. — O simples crescimento numérico impõe mudanças em qualquer organi-
zação, seja uma empresa, um sindicato ou um partido. Aumenta o número de funcionários, de departamentos, de níveis hierárquicos. Aumenta também a divisão de tarefas e, com isso, a estratificação interna. O cientista político italiano Ângelo Panebianco assinala que as variações no tamanho não apenas afetam a coesão interna mas o estilo político dos partidos. Um partido grande tende a ser mais pragmático e acomodatício nas relações com outros partidos. Além disso, entendo que uma variável importante é a idade dos principais dirigentes. Os jovens mais radicais e contestadores da formação do PT, além de envelhecerem, conservaram a direção do partido e/ou transformaram-se em parlamentares e ascenderam socialmente. Usando um jargão meio fora de moda: aburguesaram-se. ■ Isso pode explicar a institucionalização do PT, mas não o envolvimento em atos ilegais e a corrupção de alguns de seus principais dirigentes... — Tem razão, mas a explicação para esse aspecto que você aponta não é fácil. Talvez tenha havido uma combinação de vários elementos. Um deles parece ser o projeto de reeleição de Lula em 2006. Para a efetivação desse projeto era necessário muito dinheiro "não contabilizado", para usarmos o saboroso eufemismo que o ex-tesoureiro petista popularizou. Talvez as vantagens materiais que a conquista dos altos postos da administração pública oferece tenham contaminado muito rapidamente os petistas que, em comparação com políticos dos outros grandes partidos, vêm mais de baixo, das classes médias assalariadas ou das classes populares (proPESQUISA FAPESP 116 • OUTUBRO DE 2005 ■ 87
fessores da rede pública, bancários, alguns trabalhadores industriais, alguns lavradores, todos eles ex-sindicalistas). Mas não quero dizer com isso que "rico não rouba", mas sim que os que vêm de baixo não são incorruptíveis e podem ser mais suscetíveis de ceder à tentação. ■ O PT mudou para sobreviver ou por oportunismo político, com vistas a um projeto vantajoso de poder no futuro? — Eu inverteria a relação de causa e efeito. Se observarmos bem, a profissão de fé socialista do PT não foi obstáculo para seu crescimento. Ao contrário. Serviu para atrair uma militância jovem que acreditava que todos os males do mundo vinham do capitalismo e do mercado. O PT mudou porque cresceu. Mais precisamente: o PT foi mudando à medida que crescia. Basta olhar as transformações nos programas de governo do partido, cada vez mais moderadas. O PT se tornou ainda mais moderado em 2002 porque tinha crescido e a ocupação do Palácio do Planalto estava à vista. Uma aliança com o PL seria inimaginável se as chances de eleição do Lula fossem mínimas. ■ Qual a relação entre a transformação gradual do PT e a atual crise ética do partido e as ondas de denúncia? — Julgo que a atual crise ética do partido não tem relação com a moderação política. A crise ética atual vem da conquista da Presidência e dos esforços para repetir a dose em 2006. Pela primeira vez as tentações do demônio foram oferecidas aos dirigentes petistas. Ser ético na oposição é fácil. O difícil é continuar a ser quando se está no poder. ■ Havia, no início da vida do partido, uma inegável democracia interna. De que maneira essa democracia contribuiu para o atual estado do partido? — Primeiramente, é bom que se diga que partidos são instrumentos necessários para a democracia, mas não são internamente democráticos. Os mesmos dirigentes tendem a se eternizar no comando de qualquer partido porque faz parte da atividade política a existência de lideranças e um partido não pode a todo o momento mudar seus dirigentes. Dito isso, é preciso ver mais de perto a questão da democracia interna petista. Se formos medir a democracia 88 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
pela rotatividade na direção partidária, a liderança petista mudou pouco, da fundação aos tempos atuais, embora houvesse mudanças na ocupação da presidência e na secretaria. Mas o dirigente máximo e único sempre foi o Lula. Já na questão do colégio eleitoral, a direção petista expulsou os deputados que votaram em Tancredo Neves. Mas, para ir mais diretamente à sua questão: entendo que a maior ou menor democracia interna não é uma variável significativa na determinação dos índices de corrupção. ■ A forma de atuação quase neoliberal do governo de Lula é uma surpresa ou já se podia prever isso ao se observar o desenvolvimento do partido? — Se seguirmos as mudanças nas propostas petistas de governo nas várias campanhas presidenciais, veremos um partido progressivamente mais moderado, de acordo aliás com o que acontecia com todos os partidos socialistas, social-democratas, trabalhistas e comunistas e ex-comunistas do mundo capitalista desenvolvido. Além disso, se mais não for, somente os militantes mais crentes e ingênuos poderiam crer que o PT, com menos de 20% das cadeiras na Câmara dos Deputados e ainda menos no Senado, sem controlar os três principais estados da Federação, iria adotar uma orientação de tipo socialista. Ademais, cabe uma pergunta mais cínica mas não menos realista: por que os dirigentes petistas iriam se arriscar a pôr em prática medidas de tipo socialista se já estavam no poder? ■ Qual foi o impacto das derrotas políticas iniciais do partido na sua transformação em partido pragmático e centralizador? — É preciso matizar o que aparece como derrotas iniciais do PT. Elas parecem particularmente fortes nas disputas majoritárias por cargos executivos, especialmente para a Presidência da República, como as derrotas para o Collor e depois para o Fernando Henrique. Mas, se as examinarmos melhor, foram "derrotas vitoriosas", que estimulavam em lugar de desanimar. Nas eleições solteiras de 1989, para a Presidência, Lula obteve 17,2% de votos no primeiro turno. Foi derrotado por Collor, que teve 30,5%, mas chegou à fren-
te de grandes nomes da política nacional. Convém relembrar: nessa ocasião, Lula venceu Brizola, por pequena margem é certo, mas chegou bem à frente de Covas, Maluf, Afif Domingos, Ulysses Guimarães, Roberto Freire e Aureliano Chaves, para não falarmos de outros nomes menos conhecidos. [Nessa ocasião, 16 candidatos concorreram.] Nas duas eleições seguintes [1994 e 1998], Lula foi derrotado por Fernando Henrique no primeiro turno, mais ficou muito à frente dos demais candidatos. Na Câmara dos Deputados, o PT que só havia elegido oito deputados em 1982 pulou para 16 em 1986, para 35 em 1990, passando a integrar o clube dos grandes partidos e se transformar, em 2002, no maior partido da Câmara, com 91 deputados. Assim, o pragmatismo e a centralização do PT me parece mais associados ao êxito do que ao malogro. A famosa Carta aos Brasileiros só aconteceu porque o PT percebeu que tinha chances de "chegar lá". ■ Podemos, talvez, pensar que o afastamento das lideranças petistas das bases, a centralização exacerbada das decisões no Diretório Nacional se deve à necessidade de negociar alianças, como a que fez com o PL sem consultar os filiados? — Consultas às bases são raras nos partidos. Não me lembro de ver o PSDB, o PMDB, o PFL, por exemplo, "consultando as bases". As decisões importantes, sempre, são adotadas pelos "grandes chefes" com auxílio de alguns assessores. A massa de filiados e simpatizantes engole (ou não engole) o que seus líderes decidem. Não se deve deduzir daí que os dirigentes façam o que querem. Os líderes sempre têm que ter alguma sensibilidade para as expectativas dos liderados. Mas sempre, se deixarmos os discursos mistificatórios de lado, decisões são conchavadas por pequenos grupos. Mesmo nas assembléias, o que é levado à votação "democrática" é o que foi decidido nos bastidores. Em alguns casos, a assembléia opta por alguma proposta das lideranças. Entendo que tem que ser assim. De outro modo, o partido (ou qualquer outra organização de massas) perde eficiência. No caso do PT, acho até que a atual votação para a escolha do Diretório Nacional, inspirada no modelo norte-americano das primárias, foi bastante democrático. Mas é
um procedimento caro e demorado. De todo jeito, aos filiados só coube votar por um dos líderes das tendências. ■ Se o PT tivesse ganho a eleição de Collor, naquele momento do partido, teríamos um governo diferente do atual? — Não sei. Mas, considerando o espaço ocupado pelo PT naquela ocasião na política brasileira, provavelmente teríamos uma forte crise partidária resultante da necessidade de composição e alianças, por um lado, e as expectativas mais radicais da militância, de outro. ■ O pluralismo de tendências internas ao partido é apenas ruim ou pode ter efeitos benéficos à agremiação? — O pluralismo de tendências é um fato que se liga às origens do partido. O PT começou assim. Apesar de as divergências entre elas parecerem de caráter ideológico e programático, as tendências servem de ponto de apoio para lideranças menores na disputa de poder local. No final, acho que a existência das chamadas tendências acaba sendo positivo para o partido porque dá espaço para as lideranças emergentes que sempre começam muito radicais, mas vão se tornando mais moderadas quando ascendem ou quando ocupam algum cargo público. ■ A história do PT parece seguir a famosa frase de Lula, de que o "socialismo do PT era construído no dia-a-dia". Esse eterno improviso ou "espontaneidade" é a causa da atual deficiência de governança que se percebe no governo Lula? — Não me parece. A frase do Lula, a meu ver, vem do fato de ele ter muito pouca informação sobre o socialismo e ter pouco interesse em debater esse tema com os intelectuais do partido. Já deficiência administrativa, ao meu ver, tem duas causas principais. A primeira vem da inexperiência do próprio Lula que nunca exerceu qualquer cargo administrativo de governo antes de chegar à Presidência da República. Lula sempre foi um líder de massas de oposição, função na qual as palavras raramente são para valer. A segunda vem do grande número de ex-sindicalistas e de outros dirigentes petistas que estão no governo federal e outros cargos de alto escalão. Alguns tiveram experiência em governos estaduais (caso do Olí-
vio Dutra, por exemplo), mas não tiveram experiência de governo federal. Outros nem isso. ■ Podemos entender o processo de corrupção também em relação com esse predomínio de "sindicalistas pragmáticos" na direção do partido e no governo? — Efetivamente, alguns ex-sindicalistas da alta direção petista estão (ou estiveram) muito ligados aos "recursos não contabilizados" e pareceram muito deslumbrados com os encantos do poder e do dinheiro. Mas outros que não tinham um passado sindical também estiveram, como o ex-deputado Genoino. É possível que — comparativamente às pessoas intelectualmente mais sofisticadas e com mais tempo de vivência nas classes altas — os que vieram mais de baixo e que ascenderam socialmente através do sindicalismo e da política tendam a ficar mais deslumbrados com o novo status e as novas posições de poder. É uma hipótese que necessitaria ser mais bem trabalhada de modo a controlar algumas variáveis, tais como o tipo de sindicalismo, os valores dominantes no próprio meio sindical, no novo meio político em que adentraram, na sociedade nacional... Uma hipótese pertinente seria que em sociedades com índices elevados de corrupção, mas de mobilidade social elevada, como a brasileira, os recém-chegados ficam mais predispostos a imitar os grupos dominantes tradicionais, mais estimulados a subir na vida. ■ Lula hoje parece desejar se isolar do PT: como entender isso? Será uma manobra política? — Poderia ser. O prestígio do Lula sempre foi maior do que o do PT. Um cenário, que não é de todo impossível
embora difícil de acontecer, seria Lula tentar a reeleição apoiado por uma coligação de partidos nos quais o PT não entraria ou, caso entrasse, não seria o partido dominante. Mas para que isso acontecesse o presidente precisa manter sua força eleitoral. Mas são apenas cogitações. Muita água ainda vem pela frente. ■ Que futuro há para o PT e o que ele precisa fazer para se renovar e retomar seu espaço? — No momento, relativamente poucos parlamentares e personalidades abandonaram o partido. Alguns porque suspeitam que a legenda do PT é ainda a mais segura para tentar a reeleição. Outros porque temem não ter em outras legendas o mesmo espaço que têm no PT. (Uma alternativa não exclui a outra.) Ideologia conta secundariamente. O elemento principal é a possibilidade de reeleição e ascensão na classe política. ■ O fim da crença na política com ética, que se esperava do PT, pode gerar um amadurecimento no eleitor brasileiro ou um ceticismo que permita ascender ao poder um populista? — Provavelmente mais a primeira do que a segunda alternativa. A confiança com relação aos políticos, que nunca foi alta, declinou mais ainda. Mas o corpo eleitoral é heterogêneo. Em suas camadas mais pobres e desprotegidas, a desilusão pode levar à crença no homem providencial. Junto com o repúdio aos políticos pode vir também a descrença com relação à democracia representativa, o que poderia levar à aceitação, passiva ou entusiasmada, de um governo autoritário. Mas, no momento, parece mais provável que a democracia resista. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 89
■ HUMANIDADES
SOCIOLOGIA
Cada cabeça uma sentença Referendo sobre armas pede debate de mentes desarmadas CARLOS HAAG ESCULTURAS HéLIO DE ALMEIDA
O
referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo para civis acontece neste mês, mas o dilema da decisão é bem mais antigo. "Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma as pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim?", já se perguntava Hamlet. Mesmo que pesquisas, como a da Unesco {Mortes matadas por armas defogo), revelem que há algo de podre no reino do Brasil, onde, entre 1979 e 2003, mais de 550 mil pessoas morreram vítimas de armas de fogo (índice de mortalidade que supera os óbitos no trânsito), a questão se apresenta como um palíndromo às avessas, em que cada cabeça tem sua sentença: mais armas, menos crimes; menos armas, mais crimes. "No Brasil, vem ocorrendo um aumento de demanda por armas de fogo, pois a população buscou na arma uma resposta a uma solução de insegurança", explica Maria Fernanda Tourinho, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP) e coordenadora da pesquisa Violência por armas de fogo no Brasil. "A proibição deve ser acompanhada de incentivo à redução da demanda por armas e não só a redução da oferta", avisa. O estoque privado de armas de fogo no país é considerável: 15,1 milhões. Dessas, estima-se que 6,7 milhões estão registradas, 4,6 milhões estão na informalidade e 3,8 milhões no crime, afirma Pablo Dreyfus, coordenador do Projeto Controle de Armas Viva Rio/Iser. Internamente, porém, o sucesso das empresas de armas teve um alto custo. "O Brasil consegue exterminar
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mais cidadãos pelo uso de armas de fogo do que muitos conflitos, como a Guerra do Golfo ou as várias intifadas", revela Júlio Jacobo Waiselfisz, autor do relatório da Unesco. Entre 1979 e 2003, as vítimas cresceram 461,8%, enquanto a população cresceu 51,8%: as principais causas de morte no Brasil são, em ordem: doenças do coração, cerebrovasculares e armas de fogo. Das 550 mil mortes, 44,1% foram de jovens entre 15 e 24 anos: de cada três jovens mortos, um foi por arma de fogo. O Brasil, com uma taxa de 21,6 óbitos em 100 mil habitantes, perde dos Estados Unidos, que, com a "cultura de armas", tem uma taxa de 10,3 mortes em 100 mil habitantes. Os números impressionam, mas o controle de armas tem eficácia? O relatório "Vidas poupadas", dos ministérios da Saúde e da Justiça, avalia que sim. Os dados foram obtidos após o recolhimento de armas de fogo iniciado em 2004 (foram recebidas 450 mil armas). "A estratégia de desarmamento não só anulou a tendência, anual de crescimento de 7,2% preexistente, mas também originou uma queda de 8,2% no número de óbitos registrados em 2003. A ação gerou uma redução de 15,4%' nas mortes por armas de fogo, evitando, só em 2004, 5.563 mortes", diz a pesquisa. Defensores da proibição são menos otimistas. "Devemos ter cautela com os indicadores do desarmamento. A redução da criminalidade é para longo prazo", nota Fernanda. Segundo ela, a proibição isolada é insuficiente. "É preciso agir nos determinantes da demanda, fazer com que a população se sinta segura, capacitar os policiais e bloquear o mercado ilegal de armas." Eis um ponto importante. "As autoridades não sabem onde está metade das armas de fogo do país, nem quem as possui", avalia Dreyfus. Assim, há uma divisão social sobre o desarmamento. "Os defensores de armas dizem que o ideal seria que as
'pessoas de bem' estivessem armadas e os bandidos não, e vêem uma inversão no processo, uma divisão entre armas do bem' e armas do mal'", o que é uma falácia, analisa Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo os antiproibição, o desarmamento eliminaria as "armas do bem", sendo inócuo com as "armas do mal". Para Cano, o ponto é o fluxo de armas do circuito legal para o ilegal. "99% das armas de fogo são legalmente produzidas e um terço das armas apreendidas na ilegalidade saiu do mercado legal", diz a pesquisadora Josephine Bourgois.
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unte-se a isso o tato de que mais de 70% das armas apreendidas em ^B V 2002 eram produzidas ^^^^r no Brasil. "Hoje somos o único produtor latinoamericano importante de armas de pequeno porte", afirma Dreyfus. Assim, as armas são produzidas por indústrias conhecidas e não vale a tese de que criminosos usam armas importadas. "Só no Rio de Janeiro, entre 1951 e 2003, de cada três armas apreendidas na legalidade, uma tinha sido comprada por gente de 'ficha limpa'", observa Josephine. "Nesse Estado, a cada cinco horas uma arma legal é roubada e, em 27% dos casos, nos assaltos a residências. Em São Paulo, das 77 mil armas apreendidas em 1998, 71.400 foram roubadas e 5.500 extraviadas", conta. "Uma 92 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
sociedade que se arma para se defender pode estar armando seus agressores", avisa Cano. Ou, na ironia de Millôr, chegamos ao ponto em que "estão apreendendo com militares armas de uso exclusivo dos traficantes". Cada militar ou PM tem direito a comprar livremente seis armas a cada dois anos, direto da indústria."Daí a importância do Estatuto do Desarmamento, que, para além da questão do referendo, regula isso, pois, até então, os registros de armas das Forças Armadas e das polícias eram de controle restrito do Exército. Agora esses dados serão partilhados com a Polícia Federal, que vai poder, ao apreender uma arma do Estado, roubada ou vendida ilegalmente, descobrir o responsável", diz Dreyfus. O pesquisador conta que a impunidade é tão grande que armas do Estado encontradas com bandidos às vezes estão com número de série e carimbos oficiais. "Armas adulteradas passarão por uma peritagem da PF, que pode detectar, mesmo com registros 'raspados', o número de série. O controle dessas armas no Ministério da Justiça vai minorar o problema." O mesmo controle será feito em munições, cujos lotes serão numerados. "Daí o valor da aplicação da parte repressiva do estatuto, que prevê, enfim, penas pesadas para tráfico e venda ilegal", diz. O volume de armas do Estado pegas com criminosos pode ser pequeno em quantidade (no Rio, de 50 mü armas, 60 eram do Exército e 900 da polícia), mas são as que têm alto poder de destruição. E nem tudo é só corrupção. Muitos policiais são mortos apenas pelas suas armas. Além disso, afirma Dreyfus, é preciso controlar os chamados estoques excedentes do Estado (armas velhas
etc), que são as que acabam nas mãos dos criminosos. É preciso não só discutir o referendo, mas conhecer o estatuto, pois ele tem mais mecanismos contra o crime do que sonha nossa vã filosofia. E não será a primeira vez que o país fará uma legislação para controle de armas leves, embora a indústria doméstica de armas brasileira seja um fenômeno recente, nascido nos anos 1930 com a substituição de importações. No Sul e Sudeste, os primeiros produtores privados de armas foram imigrantes, como as empresas Boito, Rossi e a Fábrica Nacional de Cartuchos (hoje CBC) e, em 1937, a forja Taurus, atualmente uma das maiores produtoras mundiais de armas curtas. A primeira lei data de 1934, assinada por Getúlio Vargas, que apenas controlava a produção de armas e munições de guerra, deixando total liberdade para as armas de uso civil. Foi no esteio da Doutrina de Segurança Nacional que a indústria interna de armamentos cresceu, já que a indústria de defesa era vista pelos militares do pós-64 como catalisadora para o desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como uma forma de estabele-
cer o poderio nacional. Os novos dirigentes logo editaram um decreto (1965) que dava primazia ao Exército na fiscalização das armas. "A ditadura militar concentrou o controle da circulação de armas no Executivo e incentivou abertamente a indústria armamentista nacional", nota Carolina Dias, do Viva Rio/Iser. Bastava ser "cidadão idôneo" para poder ter um arsenal. Não havia preocupação em controlar as armas e seus donos, mas garantir a expansão da indústria. Ator global - Com o fim da ditadura, quebrou-se a parceria entre Estado e indústria privada de armas, incluindose os subsídios antes concedidos a essas empresas. Ainda assim, em 1990, o Brasil estava estabelecido como um ator global médio no mercado internacional de armas de pequeno porte. Mas a legislação andava devagar: em 1980 promulgou-se a primeira norma nacional do registro de armas. Não existia, porém, um controle efetivo, o que ocorreu apenas em 1997 com a lei 9.437, que estabeleceu controle e cadastro de armas produzidas e importadas no Ministério
da Justiça, criando também o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), setor da Polícia Federal que congregaria as informações sobre as armas de civis. O próximo passo veio em 2003 com o Estatuto do Desarmamento. "Com isso, o Brasil é o país com a legislação mais avançada de controle de armas de fogo e munição", afirma Carolina Dias. Se Hamlet falava em "palavras, palavras, palavras", a questão do desarmamento é movida a "números, números, números". Há pesquisas para todos os gostos: quais são as chances de ser atacado portando uma arma; quais as chances de morte quando alguém é atacado e se defende com uma arma; os homicidas são ou não pessoas conhecidas; muitas armas geram ou não mais crimes; suicídios e acidentes são ou não diretamente ligados ao número de armas. Em que estatísticas deve-se confiar? Uma pesquisa feita na Universidade de Yale revela que a posição de aceitar ou não o controle das armas depende muito pouco de se afogar nesses números e ainda menos se o cidadão é homem, mulher, branco ou negro, liberal ou conservador. "A posição dos indivíduos sobre o tema deriva basicamente de sua visão cultural. As pessoas vão aceitar ou rejeitar evidências empíricas dependendo se elas confirmam ou entram em conflito com seus valores culturais", assegura Dan Kahan, autor do estudo e professor da Yale Law School. Na base do survey está a teoria cultural do risco, ou seja, do quanto de risco aceitamos segundo nossos valores. A sociedade poderia então ser dividida, em três perfis: igualitários (a favor de ações coletivas que equalizem riqueza, status e poder), individualistas (que privilegiam autonomia individual e rejeitam
interferência coletiva) e hierárquicos (para quem o Estado sabe o que faz e tem deferência pelas formas tradicionais de autoridade). Se o primeiro tipo apoia o controle de armas (pela aversão ao arquétipo individual do "macho" racista que usa armas e pela visão dessas como uma celebração da auto-suficiência individual em detrimento da solidariedade social), os dois outros são contra. Individualistas e hierárquicos vêem o controle, ou seja, a sociedade desarmando o cidadão para sua própria proteção, como um gesto de impotência individual. Ou, como diria o ator Clint Eastwood: "Sou a favor do controle de armas. Se há uma arma por perto, quero estar no controle dela". Sintomaticamente, na pesquisa, 79% das pessoas que favoreciam o controle de armas concordavam com a afirmação: "Mesmo que a posse irrestrita de armas reduzisse a criminalidade eu não quero viver numa sociedade onde as pessoas se armam". E 87% dos que rejeitam o controle afirmaram que seria errado banir armas, mesmo que a sua proibição reduzisse a criminalidade. "Logo, fatos sobre armas não vão gerar um consenso sobre como e se regular a posse de armas por civis. A visão que cada um tem sobre o que é uma boa sociedade vai modificar explicitamente a sua avaliação dos riscos implícitos no debate sobre as armas", diz Kahan. Assim, segundo o estudo, tudo depende da visão pessoal que se tem sobre os riscos de se ter ou não armas. O debate ainda é a melhor arma. "Em vez de ouvir radicais de um lado ou outro, ou de ser engolido pelas estatísticas, que por si têm grande valor, a melhor questão a se colocar é em que tipo de sociedade eu prefiro viver'", aconselha o pesquisador. • PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 93
RESENHA
Um papel de enorme envergadura Coletânea de artigos aprofunda visão crítica da relação entre mídia e minorias MARILUCE MOURA
O que são, de fato, minorias? Aí se encaixam enormes e já bem visíveis contingentes da população mundial, como as mulheres, os homossexuais e os negros, mas a palavra também abarca grupos de ativistas políticos que se visibilizam por ações espasmódicas, crispações de violência freqüentemente nomeadas terrorismo, como observa Raquel Paiva, organizadora, junto com Alexandre Barbalho, de Comunicação e cultura das minorias. Raquel vale-se de uma expressão do pensador francês Jean Baudrillard, de que o terror desponta como a fratura visível da sociedade contemporânea, para ressaltar em seguida que "ele é marcado pela tônica midiática, razão pela qual os atos são cada vez mais espetaculares, numa tentativa incontrolável de superação, por atos de crueldade, da linha que separaria ficção e realidade" {página 19). Esse encontro essencial com a mídia, sem o qual o terror não encontraria a dimensão espetacular a que se alçou na sociedade contemporânea, é apenas um, em meio a muitos possíveis, entre minorias e mídia. E são esses encontros/desencontros, na verdade, a questão investigada, teorizada e analisada de modo consistente na coletânea de artigos, mais reflexivos e menos factuais, que compõem Comunicação e cultura de minorias. Seus autores são pesquisadores conhecidos da área de comunicação, ligados a instituições de diferentes regiões do país e, em um caso, de Portugal (Universidade de Coimbra). Mas voltando à indagação original, logo no primeiro capítulo do livro, "Por um conceito de minoria", Muniz Sodré propõe que "o conceito de minoria é o de um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder", depois de afirmar que "o que move uma minoria é o impulso de transformação", o que está, aliás, inscrito na idéia de "devir minoritário" dos franceses Giles Deleuze e Felix Guattari. Trata-se da "minoria não como um sujeito coletivo absolutamente idêntico a si mesmo e numericamente definido, mas como um fluxo de mudança que atravessa um grupo, na direção de uma subjetividade não capitalista. Este é na verdade um 'lugar' de transformação e passagem, assim como o autor de uma obra é um 'lugar' móvel de linguagem" {página 12). Pensada assim, a minoria também tem uma intencionalidade ético-política dentro da luta contra-hegemônica, segundo ele. E um partido político ou um sindicato, ainda que de oposição a um regime dominante, não se enten94 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
Comunicação e cultura das minorias
dem como minorias "porque ocupam um lugar na ordem jurídicosocial instituída". Em outras palavras, Muniz conclui que "minoria Raquel Paiva é uma recusa de consentimento, é Alexandre Barbalho uma voz de dissenso, em busca de (orgs.) uma abertura contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias". E acredita, auspiPaulus ciosamente, que seu conceito deve 219 páginas / R$ 29,00 ser incluído "no capítulo da reinvenção das formas democráticas". Essa visão percorre como uma espécie de luz de fundo os demais artigos do livro: os de Raquel Paiva, Alexandre Barbalho, Maria João Silveirinha, Márcio Gonçalves e Eduardo Coutinho, que tratam, como resume Raquel na apresentação geral do volume, de questões fundamentais das minorias, especialmente em sua relação com a mídia, sem cuidar especificamente de algum de seus movimentos; e os de Ângela Prysthon e Jeder Janotti Jr., relativos a movimentos juvenis, de Ana Carolina D. Escosteguy e Juliana Gonzaga Jayme, referentes a gêneros, e, por fim, os de Angela Schaun, Mohammed Elhajji e Liv Sovik, centrados na problemática étnica. Entre esses vários textos de grande interesse para a pesquisa em comunicação no país, chama atenção a abordagem muito nova de Elhajji relativa aos grupos étnicos e confessionais recém-estabelecidos no Brasil (japoneses, libaneses, coreanos etc). Tratando de delinear um novo campo de estudo e investigação sociocultural que articula comunicação, cultura e conflitos, ele propõe, entre outras coisas, medir os movimentos e oscilações nos quadros simbólicos desses grupos, "tais como são refletidos por sua mídia comunitária" {página 198). E sugere que a comunicação seja colocada no centro mesmo dessa linha de estudos, e não num lugar periférico, na medida em que se admite que "o papel central da comunicação na nova ordem sociotecnológica criou uma base material e discursiva tão inédita para o desenvolvimento das atividades humanas no sistema social e tão específica historicamente que acabou impondo a sua própria lógica à maioria dos processos sociais e condicionando, de maneira fundamental e irreversível, toda a estrutura da sociedade humana" {página 199). O que se demonstra à exaustão em Comunicação e cultura das minorias é que a voz e o movimento destas, essenciais a um conceito contemporâneo de democracia, jogam-se na mídia num jogo singular de aparecimento e ocultamento. E fundamental é entender de fato o lugar que aí a mídia assume, o seu papel, como diz Raquel Paiva, "de tamanha envergadura" que é capaz de "definir de maneira cabal todas as antigas mediações sociais".
LIVROS Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia
Alexandre Wollner e a formação do design moderno no Brasil
Valério Cruz Brittos e César Bolãno Paulus 376 páginas, R$ 33,00
Os 40 anos da Rede Globo merecem mais do que mera comemoração. Merecem também um estudo crítico como se propõe este livro, uma coletânea de artigos de acadêmicos analisando os pontos altos e baixos da história da emissora e de como ela se confunde com a construção da democracia nacional. Boa parte dos artigos, portanto, fala da relação delicada da emissora com os vários governos e de como ela construiu os parâmetros de comunicação no país.
André Stolarsky Cosac Naify 112 páginas, R$ 36,00
Um livro-documentário que traz a história da vida e da obra do homem que foi o grande pioneiro do design moderno brasileiro. O texto discute aspectos do desenvolvimento de seu trabalho e é resultado de longas entrevistas com o designer, que, aliás, participou do belo projeto gráfico do estudo. Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br
Editora Paulus (11) 5087-3734 www.paulus.com.br
0 pacto imperial: origens do federalismo no Brasil Miriam Dolhnikoff Editora Globo 336 páginas, R$ 39,00
Partidos e coligações eleitorais no Brasil Silvaria Krause e Rogério Schmitt (orgs.) Editora UNESP/ Fundação Konrad Adenauer 144 páginas, R$ 29,00
Neste momento de crise institucional, em que se fala a todo momento da necessidade de uma reforma política dos problemas das coligações entre partidos, a Fundação Konrad Adenauer reuniu um grupo de pesquisadores para discutir o tema em profundidade. Entre os tópicos, a lógica das coligações, a análise comparativa das estratégias eleitorais nas eleições majoritárias etc. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Um estudo histórico profundo e invovador sobre a passagem política do Império para a República. Na contramão de antigas interpretações, Miriam Dohlnikoff mostra que a consolidação do Estado nacional brasileiro resultou de uma negociação, antes não explorada pela historiografia, entre as elites políticas das províncias e o poder central, então a Corte no Rio de Janeiro. Assim, segundo a pesquisadora, o arranjo institucional determinou a forma da Federação até a proclamação da República, em 1889. Editora Globo (14) 3767-1000 www.globolivros.com.br
Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional Gilberto Agostino Mauad/Faperj 272 páginas, R$ 38,90
A frase que dá título ao livro foi dita por Mussolini em 1938, não na frente de batalha, mas pouco antes de uma partida de futebol da Azurra. A pesquisa mostrar de que forma o jogo se integrou com os modelos e sistemas políticos, bem como sua participação nos processos de construção de identidades nacionais, em especial no Brasil. Editora Mauad (21) 2533-7422 www.mauad.com.br
Sortilégios do avesso: razão eloucura Ckr/ na literatura brasileira !
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Luzia de Maria Escrituras Editora 320 páginas, R$ 16,00
Uma análise fascinante de como a loucura perpassa, em diversos momentos, a literatura brasileira. Passando por Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Coelho Neto, Lima Barreto, Autran Dourado, Renato Pompeu etc. entendemos a loucura ficcional. Editora Escrituras (11) 5082-4190 www.escrituras.com.br PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 95
Sono TONY MONTI
Dentro das gaiolas, as calópias dormem. Perkins, nos Procedimentos gerais, recomenda que se aproveite o tempo livre, quando quase nada acontece, para fazer as reflexões sobre o contexto e o observador. Tenho dormido pouco. As calópias estão mais previsíveis. Dormem, comem e, cada dia menos, se reproduzem. De noite, separadas por grades, já não gritam como faziam meses atrás. O campus é enorme. As salas de aula, as bibliotecas e os restaurantes estão vazios e fechados. Um ou dois carros por hora. Poucas janelas iluminadas, não a minha. Há uma sala ao lado para o caso de precisar de mais luz. Aqui, penumbra, escuro para as calópias dormirem e claro o suficiente para eu tomar nota da evolução do treinamento. O Procedimentos recomenda alongamento e pequenas caminhadas durante a noite. O Handbook diz que, na idade em que estão as calópias, abandoná-las por mais de quinze minutos é correr risco de perder o eventual momento em que o doppelt aparece (fascinante, sem dúvida). As caminhadas tornam-se então bem curtas. Devido também ao sono, deixo de lado os exercícios. Sei, por experiência, que resisto bem com café e coca-cola. Dormirei às oito, em casa. O que me desagrada é que os turnos deixam pouco tempo para minha vida social. Quando entro, às dez, há quem esteja saindo para um bar, entrando no cinema, trepando ou, se assim escolher, dormindo. O sono me pressiona fisicamente, me deixa cansado e de mau humor. Mas amanhã, quando acordar, é a vida social que me fará falta. Enquanto dormem, é pouco provável que as calópias se sintam oprimidas pelas grades que as isolam. Durante o dia, o gradil todo aberto, circulam pelo viveiro. Algumas ficam paradas por horas, olhando, olhando. Não quero insistir demais no assunto, as calópias têm dormido muito, às vezes também de dia. Não há nada no Handbook sobre elas sonharem ou não. Dois artigos alemães recentes dizem que sim, mas a interpretação das medidas da atividade cerebral não convenceu toda a comunidade. Preciso acordar, preciso comer. Na copa há um microondas. Coloco para esquentar, juntos, café e uma torta pré-cozida. Volto ao meu posto de observação. É onde acabo o lanche. Passo os olhos em todas, uma a uma, como instrui o Handbook. A calópia do cubo dezessete está de olhos abertos. Por que acordada? Seis meses sem nenhum doppelt. Pouco razoável que apareça um no meio dessa noite cansada. "... interrompe a cadência a nota mais tensa... a novidade da descoberta se manifesta tantas vezes no susto", lembro desse trecho do mesmo Perkins num ensaio polêmico, tão inspirador quanto pouco científico. Manter os olhos abertos, mesmo nas noites mais paradas (num tom mais próximo ao do Procedimentos). Ela não se mexe. Nunca vi uma calópia dormir de olhos abertos. Se ela notar o pouco espaço e as grades, poderá gritar e acordar todas as outras. O preto dos olhos brilha na penumbra, é como se ela me olhasse. Se está mesmo acordada, é provável que me olhe, que me procure, apesar da visão fraca desses bichos. Devo torcer para ela voltar a dormir ou, pelo menos, ficar em silêncio. Sinto-me estranho. Aguardar que algo aconteça não me parece, agora, tão científico. Nas últimas duas ou três horas do turno meu humor vacila um pouco. Costumo me concentrar para não menosprezar os detalhes enquanto repito para mim que, depois de dormir, a vida volta a ter sentido. De olhos fixos na gaiola dezessete, reconheço que é estranho que a calópia não seja, como eu, um animal de olhos abertos na frente do qual passa um mundo (que ela seja mais mundo e eu mais consciência). Torço pelo seu silêncio, torço pelo seu sono, não há o que fazer, apenas 96 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP116
ficar sabendo, anotar, organizar, classificar. "Dopadas e com quatro dos cinco sentidos diminuídos, suas unhas afiadas ainda apontam rápido para a região do corpo que for tocada' (do Handbook). Observo e anoto. Escrever bastante ajuda a ficar acordado, atento ao que se escreve. Duas horas para o fim do turno, vou perdendo a curiosidade pelo doppelt improvável e ganhando curiosidade pelos motivos da minha espera. Será que não há mesmo o que fazer? A calópia me observa enquanto escrevo. Percebi um movimento acoplado de olhos e de cabeça quando virei uma página. A fêmea da gaiola doze está doente há dias. Nada específico, está velha. Uns suecos, na festa de encerramento do último congresso, disseram que a carne das calópias tem seus apreciadores no meio acadêmico. Invento um personagem, que não sou eu, para dizer que poderia experimentar a fêmea doze, que vai mesmo morrer em uma ou duas semanas. E imagino, agora eu mesmo, que seria menos estranho comê-la que observar sua morte. Observar e tomar nota. As coisas acontecem, uma fêmea morre, alguém abre os olhos durante a noite, mas não grita, e assim não assusta quem dorme - e eu fico sabendo. Comer a carne seria mais ativo que esperar um doppelt, que ninguém sabe se acontece mesmo ou se meia dúzia de nórdicos beberrões o inventaram durante uma noite sem dormir. Me perdi de cabeça baixa olhando o papel por dois minutos. Os olhos pretos da calópia me acompanham. Quinze minutos, é o que diz o Handbook. Melhor eu me exercitar, em menos de dez minutos retomo caneta e papel. Retiro a camiseta e inicio a seqüência curta de alongamentos. Sentado no chão, busco as pontas dos pés enquanto, tenho certeza disso, a calópia me olha. É bom sentir o chão gelado na pele nua das costas. Tendo sempre a interromper a série. Hoje o que eu penso é que eu queria levantar para perguntar baixinho para a calópia o que é que ela está esperando. Cada dia tenho um motivo. Eu não falaria mesmo com ela, mas a vontade de perguntar é verdadeira. Ou eu falaria, mais uma vez inventando um personagem, sem esperar de verdade uma resposta. Quero muito uma resposta. Porque quando eu olho a calópia da gaiola dezessete, eu espero, apenas espero, que ela faça alguma coisa nova. É como se o mundo se mexesse de uns modos, às vezes de outros, e eu apenas olhasse, anotasse, organizasse, sem que tivesse escolhido muita coisa, sem que eu matasse uma calópia que vai morrer em duas semanas. Minha mão corre e guarda umas linhas no papel porque não é possível guardar tudo apenas na própria memória, e assim o papel e meu cérebro se assemelham, e também minha mão que corre o papel com uma caneta. E é como se eu observasse minha mão correndo, como se ela também estivesse do lado de lá, no mundo, em frente aos meus olhos e aos olhos da calópia sem que eu escolha demais o modo como tudo se move. Ainda assim, sei que em algumas horas, logo depois de dormir, terei a sensação de poder escolher e a vontade de continuar organizando, classificando e selecionando como se as minhas mãos se movessem por minha exclusiva escolha e como se eu não estivesse apenas esperando que algo interessante apareça do nada. TONY MONTI é autor de O mentiroso (7 Letras, 2003), coletânea de contos vencedora do Projeto Nascente (USP) em 2002. É mestrando em Literatura Brasileira e escreve regularmente em www.monti. blogger.com.br PESQUISA FAPESP116 ■ OUTUBRO DE 2005 ■ 97
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REGIÃO CENTRO-OESTE • Direito de crescer. Girassolidário. MS. • Humus sapiens - aproveitamento de dejetos para produção de humus. Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado - IPEG. GO.• Mobiliário adaptado para pacientes com disfunção neuromotora confeccionados em PVC. MSMT Universidade Católica Dom Bosco. MS. Projeto integrando gerações "Informática na terceira idade". MACE Moderna Associação Campograndense de Ensino.MS.• Prosa rural - O programa de rádio da Embrapa. Embrapa Informação Tecnológica. DF: REGIÃO NORDESTE • Agroindústria de extração de óleos vegetais acessível aos agricultores familiares: gerando renda, novas relações de trabalho e ambiente saudável. Fundação de Formação, Pesquisa e Difusão Tecnológica para uma Convivência Sustentável com o Serni-Arido CE • Banco Palmas Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira. CE. • Biodigestor coletivo para atividades produtivas sustentáveis em assentamento. Winrock International Institute for Agricultural Development. BA. • Cabrito ecológico da caatinga: uma opção promissora para o seml-árido. Embrapa Semi-Árído. PE. • Projeto Barriga Cheia. Prefeitura Municipal de TeotônioVilela. AL. REGIÃO NORTE • Confecção de órteses e adaptações em PVC tubular e materiais de baixo custo. Universidade do Estado do Pará. PA. • CredlSelva - Microcrédito para manejadores florestais. Associação Andiroba. AC. • Manejo comunitário de camarão de água doce. Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas - ATAIC. PA. • Manejo de açaizais nativos de várzea para comunidades ribeirinhas do estuário amazõnico. Embrapa Amazônia Oriental. PA. • Viver e produzir na Amazônia. Associação dos Pequenos Agrossilvicultores do Projeto Reca. RO. REGIÃO SUDESTE • A conciliação para a solução de conflitos familiares. TriPunal de Justiça de Minas Gerais. MG. • Café com floresta Criando suficiência alimentar e biodiversidade ecológica. IPt: - Instituto de Pesquisas Ecológicas. SP • Computação para deficientes visuais. Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ. RJ. • Conquista de terras em conjunto: a experiência dos agricultores e agricultoras familiares de Araponga - MG. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araponga. MG.• Empório Solidário. Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento. MG. REGIÃO SUL • Cultivo do camarão-rosa Farfantepenaeus Paulensis: Uma alternativa para geração de emprego, renda e produção de alimento no sul do Brasil. Fundação Universidade Federal do Rio Grande. RS. • Farmácia comunitária. Associação Paranaense de Ensino e Cultura. PR. • FootScanAge: um sistema computacional para apoio a neonatologia. Universidade Federal do Paraná. PR. • Metodologia Themis de acesso à justiça. Themis Assessoria Jurldica e Estudos de Gênero. RS. • Tatames especiais destinados a pessoas portadoras de deficiências múltiplas. Pequeno Cotolengo do Paraná - Dom Orione. PR. RECURSOS HIDRICOS • Implantação de um consórcio intermunicipal para realização da gestão ambiental utilizando a microbacia hidrográfica como unidade de gestão. Consórcio Intermunicipal de Gerenciamento Ambienta!. SC.• Lago de múltiplo uso para proteção ambiental. Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. MG.• Rio Ecobarreira. Fundação Getúlio Vargas. RJ.• Sistema de captação e armazenamento de água. Instituto de Permacultura e Ecovílas do Cerrado - IPEC. GO.• Sistema de reuso de água de lavagem de roupa em descargas domésticas. Universidade Federal de Mato Grosso. MT. EDUCAÇÃO • Coleção de educação ambiental "Cartilhas dos jogos ambientais da ema". Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. SP • Conexões de saberes. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. RJ. • Educação para os direitos - Escritórios populares de mediação. Juspopuli Escritório de Direitos Humanos. BA. • Pedagogia da roda. Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento. MG.• TV Janela. Instituto de Desenvolvimento Social. CE. DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE • Acolhida, acompanhamento e reinserção familiar da criança com direitos violados e prevenção do abandono. Creche Comunitária Jardim Felicidade/Casa de Acolhida Novella. MG. • Educação para a cidadania. Fundação Cidade Mãe. BA. • Escola ambulante. Associação Beneficente Santa Fé. SP • Jovens comunicadores - O estatuto da criança e do adolescente pelas ondas do rádio. Centro das Mulheres do Cabo. PE.· Rádio novela educativa em defesa do direito da criança e adolescente. Centro Artístico Cultural Belém Amazônía - CACBA. PA.
Apoio:
Realização:
~ 1$ FUNDAÇAo
PETROBRAS
BANCO DO BRASil
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