Ciência e Tecnologia
Novembro 2005' N° 117
NA CAMA COM OS ÁCAROS UM PIGMENTO QUE DEU CERTO
Histeria de volta à cena
e no Brasil
FAPESP
+
+.(.+~)x~
Invente um jeito de ganhar. São mais de 700 mil reais em prêmios para os melhores projetos nas áreas de petróleo, gás natural e energia. Se você é estudante de graduação ou pós-graduação, acesse www.petrobras.com.br. leia o regulamento e participe. Prêmio Petrobras de Tecnologia. Desafio mesmo é ganhar.
x
xIx ~
-=-= ---=-= ----=;;= =-
x _
PRÊMIO PETROBRAS . DE TECNOLOGIA
-
•
o MElHOR DO BRASIL É O BRASILEIRO
-
~ o
PETROBRAS
DESAFIO
É
A NOSSA
ENERGIA
Ministério de Minas e Energia
11: ~ UM"
'S
GOVERNO
••
TO'
fEDERAL
o
S
Peiq·T~niiisa FAPESP
www.revistapesquisa.fapesp.br
12
ENTREVISTA Especialista em
42
CNPq seleciona 34 projetos para o programa
microscopia eletrônica, o engenheiro agrônomo
CAPA
Institutos
Elliot Kitajima, da Esalq,
Histeria é o verdadeiro diagnóstico de um
do Milênio
fala da importância das imagens para a ciência
em cada quatro casos classificados como epilepsia
REPORTAGENS
22 FOMENTO
32
POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA
DIVULGAÇÃO Artistas plásticos reconstituem fauna pré-histórica
52
ENTOMOLOGIA Ácaros espalham-se
pelos
colchões e causam crises de asma e rinite
que habitou
o Rio Grande do Sul
27
LEGISLAÇÃO Decreto de regulamentação coloca em vigência a Lei de Inovação
28
CIÊNCIA
50
55
GEOLOGIA
GENÉTICA
NOMENCLATURA Interesses conflitantes acirram debate sobre nova Tabela das Áreas do Conhecimento
Há 630 milhões de anos a Amazônia era um deserto debaixo de geleiras
31 PUBLICAÇÕES
De forma unilateral,
revista cancela trabalho de brasileiros sobre a doença de Chagas
4 • NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 117
É desvendado o mistério de abelhas rainhas que não conseguem se reproduzir
58
FíSICA Champanhe borbulha de quatro maneiras distintas
68
BIOLOGIA MOLECULAR Camundongos transgênicos
produzem
proteína humana
48
responsável pela coagulação do sangue
NEUROFISIOLOGIA Estudo dimensiona
a
à
luz o dilema
de Ernesto Nazareth entre o popular e o erudito
TECNOLOGIA
SEÇÕES
NOVOS MATERIAIS Plástico que absorve e,emite
ARTICULAÇÕES ARTIFICIAIS
luz é produzido
Novo processo de tratamento para próteses de joelho
A IMAGEM DO MÊS
pela mistura
de óleo de buriti a polímeros
M ETEOROLOGIA
em menor atrito e desgaste
Empresa paulista desenvolve radar meteoro lógico inédito no Brasil
QUíMICA
SCIELO NOTíCIAS
16 38 62
LINHA DE PRODUÇÃO
64
LABORATÓRIO
86
9 10
MEMÓRIA ESTRATÉGIAS
HUMANIDADES
6
CARTAS···························7 CARTA DA EDITORA
e quadril resulta
74
MÚSICA Tese traz
tensão muscular gerada por imagens violentas
72
82
ANTROPOLOGIA Estudos sobre o corpo da mulher colocam em xeque
RESENHA························94 LlVROS··························95
as diferenças entre gêneros
90
FICÇÃO··························96
SOCIOLOGIA Fonte de identidade
futebol agora é visto como
entre universidade
precursor da globalização
e empresa
98
CLASSIFICADOS nacional,
Pigmento para a indústria de tintas é fruto de parceria
Capa e ilustração:
Hélio de Almeida
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 • 5
A IMAGEM DO MÊS
o VERDE
SECOU
A Amazônia amargou em 2005 sua pior estiagem em 40 anos, com igarapés ressecados, mortandade de peixes e barcos encalhados, como se vê na foto da comunidade Nossa Senhora de Fátima, próxima ao rio Tarumã-Mirim, no Amazonas. O fenômeno ultrapassa a escassez pluviométrica de períodos como os de 1969 e 1998, até então considerados os mais intensos da história recente. Mais de 250 mil pessoas padeceram com problemas de locomoção e de falta de alimentos. Há evidências de que o aumento da temperatura na região tropical do Atlântico Norte, que levou à formação de grandes furacões como o Katrina e Rita, alterou a circulação do ar sobre a Amazônia e inibiu as chuvas. A água do Atlântico fica mais quente de tempos em tempos e os cientistas não têm elementos para avaliar a hipótese de que o aquecimento global teria amplificado o fenômeno. Existe a suspeita de que a destruição progressiva da floresta tenha um papel na estiagem. Há trabalhos científicos mostrando que a fumaça das queimadas dificulta a formação das nuvens.
6 • NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 117
CARTAS cartas@fapesp.br
Nos confins do Universo Após ler a matéria "Nos confins do Universo" (edição 116), onde é relatada a descoberta dos pesquisadores Eduardo Cypriano e Elysandra Figueredo, quero deixar registrados alguns sentimentos acerca dessa descoberta. É de fato algo incrível para mim saber que existem pessoas, desconhecidas da maioria dos que habitam esse mundo tão cheio de atribulações, que estão interessadas em assuntos que nos remetem às nossas origens. Deve ter sido uma emoção muito grande para eles esse momento, como foi para mim saber dele, mesmo sem poder ter visto. Amo a vida e é vital para mim observar o céu - especialmente à noite -, onde podemos ver com mais clareza que estamos a bordo de uma "nave" que nos
leva para ... Não importa, o que vale é o esforço e a dedicação de jovens brilhantes como esses. Tenho orgulho de ser da mesma nação que eles! Obrigada pela dedicação, pelo "olhar" incansável direcionado a um tempo que só apenas 12 bilhões de anos depois - é isso mesmo? - podemos "capturar': Gostaria que essa mensagem pudesse ser encaminhada a eles. ROSALICE LOPES
São Paulo, SP
Tietê Lendo a edição 114 de Pesquisa FAPESP, um artigo me chamou muito a atenção: "Em busca do Tietê perdido". Gostaria de saber como faço para ter acesso à tese de doutorado do professor Ianes Jorge do Departamento de História da Universidade
ACQUllY UPLC™ uattro Premier XE: A combinação exata para oti.mização de análises quantitativas.
Impado significativo em resolução, sensibilidade e produtividade para análises de resíduos em matrizes complexas.
ACQUlTY UPLCM
de São Paulo (USP), cujo título é "O rio que a cidade perdeu - O Tietê e os moradores de São Paulo 1890-1940". EDIL PEDROSO DA SILVA
Historiadora e pesquisadora, autora do livro Cotidiano - dos viajantes nos
caminhos fluviais de Mato Grosso. Cuiabá, MT
Resposta: O e-mail do autor da tese é jjanes@yahoo.com.br. Pesquisadores da USP podem ter acesso à tese na biblioteca do Departamento de História da instituição.
Pesquisa Brasil Escutei o programa de vocês e achei muito interessante. Parabéns! Como sempre, uma sugestão: transmitir em horários mais nobres! JUAN CARLOS COLUNA
CARTAS
PesqeTecnülsa 'FAPESP
ros importados, praias particulares, pagando muito bem por tudo isso, e se recusa a pagar salário justo aos Sobre a reportagem "Uma cortina seus empregados. Estão esquecendo econômica" (edição 116), desejamos que seus filhos e netos terão (aliás, agradecer pela excelente matéria efejá têm) a companhia desses miserátuada, tanto pela sua ótima redação veis sem instrução, sem emprego e (sabemos como é difícil transmitir sem nada a perassuntos técnicos der. Os governos para um público sempre tiveram não-especializaEMPRESA QUE APóiA culpa mas, sem do) como pelo A PESQUISA BRASILEIRA sombra de dúvicuidado com a da, as elites brasiparte gráfica (tileiras contribuíveram a preocuram (em muito!) pação de montar para a desigualdaum exemplo da de se acentuar. cortina com pa-
Cortina térmica
As reportagens de
Pesquisa FAPESPretratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038·1438
• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um Fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: Fapesp@teletarget.com.br
• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo Fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.Fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESPna íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
• Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008
o que a ciência brasileira produz você encontra aqui
8'
NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 117
dronagem atual). SÉRGIO TAVARES
VacuoFlexTecnologias Refletivas
lJ)
ANTONIO
NOVARTIS TroplNet.org
ARMANDO AMARO
São Paulo, SP
Ficção
Parabéns Em nome do Centro Acadêmico de Matemática da Universidade Estadual de Maringá, queremos parabenizar a FAPESP pela edição de Pesquisa FAPESP, referência no gênero no país. Quem sabe, no futuro, possamos colaborar com a revista. • OTAVIO MMINSKI
Maringá, PR
Ricos Li a edição 115 de Pesquisa FAPESP e parabenizo a todos pelos belos artigos. Em especial "Reverso da fortuna': Depois de mais de 500 anos, o Brasil continua .a ser cada vez mais "casa-grande e senzala" - uma minoria superculta, super-rica e "supercruel" (com raras exceções). Não dá para aceitar um país com o melhor clima do mundo, terras férteis, os recursos mais generosos do planeta ... e o nível de pobreza que nós temos. É sim culpa dessa elite insensível, que se dá ao luxo de ter seguranças particulares para as suas mansões, car-
É com duplo prazer que leio o texto "Getsêmani" (edição 113): ficção saborosa e escrita por um irmão. Ele deve estar numa alegria só e com toda razão. Parabéns. ALCINA MAGALHÃES
Rio de Janeiro, RJ
Correções Na reportagem "Da quaresmeira ao jerivá" (edição 115), duas espécies de árvore foram denominadas de forma errada: o nome correto da quaresmeira é Tibouchina granulosa e o da aro eira-salsa é Schinus molle. Na nota "Entre paredes mais estreitas" (edição 115), o nome de Elvira Viveiros, da Universidade Federal de Santa Catarina, foi grafado incorretamente como Elvira Medeiros.
Cartas para esta revista devem ser enviadas o e-mail cartas@fapesp.br.
para
pelo fax (11)3838-4181
ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE
CARTA DA EDITORA
A polissemia da resistência
MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINI5TRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO. RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTERCOLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACftT). HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÂO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA ELISA RIBEIRO, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS {BANCO DE DADOS), ROGÉRIO ANTUNES, BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (n) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (u) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP RUA PIO XI, Ne 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181
http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Ahisteria está nas fundações da psicanálise. O olhar e a escuta sensíL veis de Freud às personagens histéricas - e não apenas a seus sintomas e discursos - o levaram aos poucos a descortinar o inconsciente, mais adiante a perceber a resistência das pacientes ao tratamento, e em seguida lhe deram poderosas indicações sobre a eficácia do fluxo das associações livres, que abriu o caminho para a análise de sonhos - ato inaugural e pedra de toque da psicanálise. Mas há uma impressão mais ou menos generalizada de que a histeria pouco teria sobrevivido a Frãulein Anna O., paciente de Breuer, e às pacientes de Freud, Frau Emmy von N., Miss Lucy R., Kataharina e Frãulein Elisabeth von R., todas elas mulheres de cujas histórias tomamos conhecimento no relato de fino labor literário dos Casos clínicos, que integram os Estudos sobre a histeria, publicados em maio de 1895, cerca de dois anos depois da Comunicação preliminar, o primeiro relato científico de Freud e Breuer sobre o tema. A histérica, exibindo simbolicamente em seu corpo as marcas de uma pesada repressão sexual da qual mal se dava conta, aparentemente era uma personagem do século 19 que se desfaria ao tempo em que a psicanálise avançava pelo século seguinte. O caminho do século 20 por entre guerras de todo tipo, morte das grandes utopias e notáveis avanços técnico-científicos, que mudariam profundamente a sociedade e a sociabilidade humanas, parecia levar a outros males da mente e do espírito, mais adequados aos pavores desse tempo, como a síndrome do pânico, a bulimia e a anorexia. Ora, o que a bela reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP informa é algo totalmente diferente: não, a histeria não morreu, apenas encontra-se hoje encoberta por diagnósticos incorretos de epilepsia. Como relata o editor de ciência, Carlos Fioravanti, a partir da página 42, com base em pesquisas do Hospital das Clínicas de São Paulo e de outros centros médicos especializados em Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul, além de São Paulo, um em cada quatro casos diagnosticados como epilepsia no Brasil é, na verdade, histeria. E mais: apesar de seu nome, que remete à palavra útero, a histeria não é
um distúrbio psíquico que acomete apenas as mulheres, mas afeta homens também. Vale realmente a pena conferir. Mas esta edição joga luz sobre outros elementos ocultos. Expõe outras zonas de sombra. Em geral, imaginamos todos que estamos tranqüilos e na maior paz quando depois de um dia agitado, trabalhoso, podemos enfim relaxar na cama entre lençóis aconchegantes, cobertas cheirosas, travesseiro macio, e esperar o sono chegar. É um doce engano: um batalhão inacreditável de minúsculos parentes de aranhas e carrapatos, de aparência tão feia que se pudéssemos ver justificariam os mais terríveis pesadelos, aninha-se ali mesmo na cama, junto ao nosso corpo. Falo dos ácaros, o terror contemporâneo dos alérgicos de todo o mundo, claro, porque são um eficientíssimo disparador de crises de rinite, asma, conjuntivite e outros males. A reportagem do editor assistente de ciência, Ricardo Zorzetto, conta a partir da página 52 como esses bichinhos encontraram nas casas e particularmente nos quartos seus paraísos particulares. Mas não há razões reais para desespero: a reportagem também explica como se livrar dos monstruosos aracnídeos. Mais luz, ou melhor, refração da luz. Um novo pigmento branco, cujo desenvolvimento Pesquisa FAPESP acompanhou desde os primeiros passos, há oito anos, dentro de alguns meses deverá estar presente na formulação de tintas pelo mundo afora. O Biphor - é esse o seu nome - resulta de uma parceria entre a Unicamp e a Bunge, e é produzido a partir de nanopartículas de fosfato de alumínio, conforme relata o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, nas páginas 80 e 81. Esse pigmento vai competir com a matéria-prima atual das tintas brancas, o dióxido de titânio. Para encerrar completando um círculo, o que é movimento sempre sedutor, vale a pena ler o conto deste mês, de Ana Elisa Ribeiro, na página 96, que conta um pouco mais sobre mulheres. As que escrevem e as que lêem, sabe onde aprenderam isso? "Na implicância da alma com o mundo, na resistência belíssima dos textos que produziam." MARILUCE MOURA
- DIRETORA DE REDAçãO
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 ■ 9
MEMóRIA
A invisível radiação reveladora Há 110 anos Wilhelm Rõntgen descobria os raios X
NELDSON MARCOLIN
Wilhelm Conrad Rõntgen era reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha, e um físico experimental interessado no estudo de fenômenos delicados. Pesquisava, por exemplo, eletricidade em cristais, propriedades elásticas da borracha, efeito da pressão na viscosidade de líquidos. Ao fazer experiências com raios catódicos em tubos de vácuo, em outubro e novembro de 1895, descobriu um novo tipo de radiação, que se propagava em linha reta, era invisível, 10 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
Na página ao lado, Rõntgen observa a primeira radiografia; acima, o modesto laboratório e, ao lado, os tubos de Crookes usados por ele
atravessava grandes espessuras de matéria e sensibilizava chapas fotográficas. "Por brevidade, utilizarei a expressão 'raios' e, para distingui-los de outros com o mesmo nome, eu os chamarei de 'raios X"', escreveu na ocasião. Em fins de dezembro, Rõntgen redigiu o artigo sobre a descoberta e convenceu a Sociedade Física e Médica de Würzburg a aceitá-lo
e publicá-lo rapidamente. Também imprimiu dezenas de separatas e as despachou para cientistas importantes acompanhadas por radiografias de objetos e da mão de sua mulher, Anna Bertha. Em algumas semanas a novidade era discutida nas academias e comentada até na imprensa mais popular. No ano de 1896 cerca de mil artigos foram publicados sobre o assunto. Mas logo ele se
sentiu vítima da própria ação. "Em poucos dias eu estava enojado com a coisa toda. Já não conseguia reconhecer meu próprio trabalho nos relatos. Para mim, a fotografia era um meio para um fim, mas foi transformada na coisa mais importante", disse em carta ao amigo Ludwig Zehnder. O efeito prático foi imediato: a medicina começou a usar os raios X em diagnóstico. Mais tarde,
outros setores passaram a utilizá-lo em grande número de aplicações. A descoberta ocorreu quando Rõntgen estudava o fenômeno da luminescência produzida por raios catódicos (hoje interpretado como um feixe de elétrons de alta velocidade) num tubo de Crookes. Quando ligava o tubo a uma fonte de alta voltagem, ele emitia radiação que tornava certas substâncias luminosas. Depois descobriu que a radiação também velava chapas fotográficas próximas. Rõntgen colocou então entre o dispositivo e a chapa vários objetos opacos e notou que os raios atravessam esses corpos. Fez o mesmo com a mão de sua mulher e produziu a primeira radiografia da história. Os raios X aparecem em razão da rápida desaceleração de uma carga elétrica, que por sua vez provoca a emissão de radiação eletromagnética. "Há numerosos autores que alegaram ter antecipado a descoberta dos raios X, de um modo ou de outro, mas nunca foi apresentado qualquer autor que tivesse realizado e publicado um trabalho semelhante ao de Rõntgen antes dele", afirma o professor Roberto de Andrade Martins, do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em história da física. O trabalho rendeu a Rõntgen o primeiro prêmio Nobel de Física, em 1901. Ele preferiu doar o dinheiro à Universidade de Würzburg.
PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 11
ENTREVISTA: ELLIOT KITAJIMA
Imagens para a ciência brasileira
MARCOS PIVETTA
m esteta contra os patógenos de plantas. Assim, de forma talvez reducionista, poderia ser definido o trabalho do pesquisador paulista Elliot Kitajima, que há mais de quatro décadas se dedica ao registro de imagens em microscopia eletrônica de agentes que atacam os vegetais, em especial os vírus. Nissei nascido há 69 anos em Registro, no Vale do Ribeira, região com forte presença da colônia japonesa, Kitajima formou-se em agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, de Piracicaba, em 1958. Em sua longa carreira, trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e na Universidade de Brasília (UnB), onde se aposentou depois de 23 anos de serviços prestados, e fez três pós-doutorados no exterior, dois nos Estados Unidos e um na Holanda. Desde o final da década passada, voltou à Esalq, onde, como 12 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
professor visitante, continua na ativa, dando cursos de microscopia eletrônica - e produzindo belas e importantes imagens dos pequenos inimigos das plantas. Algumas dessas fotos, que os leitores cativos desta revista já viram com certeza, são flagrantes da bactéria Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais e causa a clorose variegada dos citros (CVC), doença popularmente conhecida como amarelinho. As dramáticas imagens da Xylella em ação, entupindo os canais condutores de seiva nas entranhas da planta, foram usadas no famoso artigo publicado na revista Nature em 2000 pela rede de pesquisadores paulistas que seqüenciou o genoma do patógeno. "Tive muita sorte e a imagem foi bastante divulgada", afirma Kitajima. Mas esse não é seu único trabalho de peso. Seus outros feitos de relevância são em geral com vírus que causam males à laranjeira, como o da leprose e o da tristeza dos citros. Apesar do reconhecimento ao seu trabalho, o especialista em virologia vegetal diz que os morfologistas da ciência, como ele, estão em declínio. "Na minha área, da microscopia eletrônica, sou pratica-
mente um dinossauro, uma raça em extinção", reclama, sem perder o bom humor. Abaixo, os principais trechos da entrevista concedida por Kitajima à Pesquisa FAPESR m Na biologia, quando um vírus ou um outro patógeno qualquer é bonito e dele se consegue um bom registro, essa imagem também vale por mil palavras, como se diz? — De certa maneira, sim. Eu sou suspeito para falar sobre isso, porque meu trabalho baseia-se em imagens. Não tenho nenhuma pretensão de ser um Sebastião Salgado, mas admiro uma pessoa como ele, que procura colocar um pouco de estética e dramaticidade nas imagens. Sempre que possível, procuro fazer assim também. Ao meu jeito. Não tenho obviamente a sensibilidade e o feeling dele, mas procuro sempre a imagem que seja um pouco mais bonita, como aquela da Xylella fastidiosa. Tive muita sorte e a imagem foi bastante divulgada. ■ O senhor concorda que, às vezes, a biologia atual parece não dar o devido reconhecimento às imagens?
— Na verdade, está desaparecendo o morfologista na ciência. Antigamente, quando essa parte morfológica estava mais em voga, eu abria uma revista [científica] e reconhecia pelo tipo de imagem quem era o seu autor. O desprezo à visão morfológica tem resultado em ilustrações medíocres nas publicações. Com boa experiência, é possível, na minha área, distinguir em meio às organelas celulares, em uma secção de célula infectada, as presumíveis partículas dos vírus, ou células bacterianas ou fúngicas. É claro que entre o ser e o parecer há um abismo. Mas, nesses casos, podemos recorrer a técnicas mais sofisticadas para ter a certeza da identificação. Na microscopia eletrônica, sou praticamente um dinossauro, uma raça em extinção. Hoje o aluno de graduação só quer fazer biologia molecular e esquece os fundamentos. É certo que a biologia molecular e a biotecnologia prestam inestimáveis serviços à humanidade. No entanto, costumo dizer que, se eu der um pedacinho de ácido nucléico, o aluno faz maravilhas, mas não sabe nada sobre o organismo que gerou esse DNA ou RNA. Quer dizer, falta a eles essa visão
mais holística. Nunca trabalhei com técnicas moleculares, mas tenho a convicção de que, se fosse necessário, eu o faria um dia. Biologia molecular é em geral uma série de receitas. Tendo os reagentes, a coisa funciona. Até um bom aluno de graduação faz seqüenciamento. Fico preocupado com as pessoas que só aprendem a rotina. Elas não aprendem a pensar no porquê de seus atos e a criar. Felizmente, está havendo agora uma confluência entre técnicas moleculares e morfológicas, de sorte que tem sido possível visualizar moléculas em ação no interior da célula. ■ Como surgiu a oportunidade de trabalhar no projeto da Xylella? — Embora houvesse trabalhado na década de 1970 com uma Xylella que ataca a ameixeira, em colaboração com um grupo argentino, nunca havia trabalhado com a da CVC. Mas acabei me envolvendo por causa de um de meus filhos [João Paulo Kitajima, que, na época, estava na bioinformática da Unicamp e hoje trabalha na empresa de biotecnologia Alellyx]. Ele estava montando o site do projeto e disse "ah, pai, me arruma uma imagem boa da
Xylella". Mandei algumas, ele gostou daquela que ilustrou o site do projeto e que acabou saindo na Nature, e o resto é história. Realmente a imagem ficou muito bonita, dramática. Essa é a razão por que me envolvi tanto. Mas foi algo marginal no meu trabalho. ■ O senhor sabe quantas imagens depatógenos de plantas já fez com a microscopia eletrônica? — É difícil fazer uma estimativa. Certamente foram milhares, mas nunca fui suficientemente organizado para manter um portfólio decente. Além disso, como trabalhei em instituições diferentes, aqui e no exterior, a maioria dos negativos ficou arquivada nesses locais. Hoje, com a digitalização, a tarefa ficou mais simplificada. A maioria daquelas que podemos considerar as melhores se encontra nos artigos científicos que publiquei. Diria que algumas das minhas pequenas glórias foi ver algumas delas reproduzidas nas capas de revistas científicas. ■ Por que o senhor se interessou por virologia de plantas, e mais especificamente por microscopia eletrônica? PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 13
— Fui contratado pelo IAC em 1959 para fazer microscopia eletrônica em vírus de planta. Por que o microscópio eletrônico é importante para a virologia? Ao contrário de fungos e bactérias, os vírus não podem ser vistos no microscópio comum. Às vezes, vemos um agregado de vírus no microscópio comum, mas não conseguimos visualizar individualmente cada vírus. A virologia sempre foi o poço de ignorância. Quando não se conseguia isolar o agente que causava uma doença numa planta ou animais, o bode expiatório eram os vírus. Muitas doenças que hoje sabemos que são causadas por bactérias, fitoplasmas/espiroplasmas [bactérias sem parede celular] ou por viróides [patógenos menores que os vírus, compostos de pedaços de RNA] foram consideradas como de origem viral. Gradativamente, o homem foi desfazendo esses mal-entendidos. Salvo raras exceções, viroses de planta não destroem extensivamente as culturas, embora possam causar pequenas mas consistentes perdas, que acabam sendo ignoradas. Daí a razão de os produtores e os leigos desconhecerem a relevância da virologia vegetal. ■ O senhor poderia citar um caso relevante de perdas ou custos extras causados por vírus na agricultura? — A leprose dos citros, por exemplo, é uma das doenças mais importantes que atacam os pomares. No Estado de São Paulo não tem causado danos maiores aos laranjais, mas isso se deve a investimentos da ordem de US$ 80 milhões por ano em acaricida, para controlar o ácaro Brevipalpus phoenicis, vetor que transmite o vírus da doença para a planta. Controlando o ácaro, controlase a doença. Se o citricultor não fizer isso, o custo para ele - e para a sociedade - vai ser muito maior. Aliás, meu Projeto Temático na FAPESP se baseia no grupo de vírus ao qual pertence o da leprose. ■ A resolução de um microscópio eletrônico atual é muito maior do que quando o senhor iniciou seus trabalhos, há mais de 40 anos? — De lá para cá, em termos de resolução, não mudou muito. O que mudou foi a facilidade de operar. Nos aparelhos antigos os ajustes eram manuais. 14 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
Nos de hoje tudo é eletrônico e informatizado. Os microscópios mais velhos eram projetados para americanos grandões de braços longos. Sou baixinho e sofri muito para operar esses equipamentos. Mas, de tanto insistir, aprendi a contornar tais dificuldades. No início da minha carreira, por volta de 1961, recebemos o primeiro microscópio eletrônico usado em pesquisa agronômica no IAC. Como não tínhamos muitos recursos, na maioria das vezes fazia eu mesmo a manutenção do instrumento. Aprendi com o técnico da empresa a montar e desmontá-lo. A parte eletrônica era bem mais simples, pois se usavam ainda válvulas. Era fácil saber quando havia um problema. Era só procurar pela válvula queimada e trocá-la. A complexidade dos aparelhos de hoje requer conhecimentos de eletrônica. Por isso não me atrevo mais a tentar fazer reparos. ■ Quais são os seus trabalhos mais importantes na área de microscopia eletrônica? — Minha primeira realização relevante foi em 1963 ou 1964, quando fomos os pioneiros em visualizar o vírus da tristeza dos citros e a publicar um artigo sobre o patógeno. Quer dizer, é até possível que alguém tenha visto o vírus antes de nós, mas fomos os primeiros a associar as partículas longas encontradas em extratos de plantas doentes ao patógeno. Foi meu único artigo na Nature, na verdade, uma pequena nota. A tristeza quase acabou com a citricultura no Estado de São Paulo na década de 1940 até que se descobriu que bastava substituir o porta-enxerto da laranjeira por tipos tolerantes ao vírus. Posteriormente, um programa de "vacinação" usando formas brandas do vírus para evitar a infecção das formas severas foi muito bem-sucedido e manteve os pomares sem os problemas da tristeza. Aliás, nessa história da "préimunização", o doutor Álvaro Santos Costa [um dos pais da virologia de plantas na América Latina e eminente pesquisador do IAC, falecido em 1998] teve um importante papel. Ele descobriu que, se inoculássemos na laranjeira uma cepa fraca do vírus da tristeza, a raça forte, que causava o problema, não infectaria a planta. É como se a gente tivesse um resfriadinho em vez de pe-
gar uma gripe, porque o resfriadinho impede que o vírus da gripe se multiplique. Santos Costa foi meu pai intelectual e à sua competência, caráter e exigência devo toda minha carreira científica e profissional. Gostaria de mencionar outros cientistas que tiveram influência na minha carreira, como Adolpho Brunner Jr., que, com enorme paciência e competência, me iniciou em microscopia eletrônica no Instituto Butantan, e Wladimir Lobato Paraense, na UnB, um guia moral e intelectual. ■ O senhor fez três pós-doutoramentos no exterior, que, imagino, também devam ter rendido trabalhos interessantes. — Fiquei na Universidade de Chicago entre 1968 e 1969. Embora a instituição fosse fantástica, não apreciamos muito a cidade. Tivemos um ano complicado. Meus trabalhos se centravam em citoquímica no Instituto de Biologia Celular, orientados por Hewson Swift, onde nada havia sobre fitopatologia ou vírus de plantas. Por sorte, a duas horas de lá, em Urbana, na Universidade de Illinois, havia um excelente grupo de virologia vegetal dirigido por Lindsay Black. Fui até lá e fiz amizade com Dick Peters, um virologista holandês que também fazia pós-doutoramento. Ele estava trabalhando com um rabdovírus, o SYW, mas não conseguia imagens boas de seu material. Um dia ele me pediu para examinar o material no microscópio eletrônico em Chicago e aí entrou a lei de anti-Murphy. Tirei uma das melhores fotografias da minha vida. Os resultados foram publicados na revista VIrology, num artigo do qual fui co-autor. Desde então, essas imagens têm sido reproduzidas diversas vezes. ■ O que era exatamente esse vírus? — Trata-se de um vírus sem importância econômica, infectando a serralha, uma erva daninha, mas de interesse acadêmico. Como outros rabdovírus, o SYW tem uma estrutura peculiar, elegante, e foi um dos primeiros a ser purificados a partir de tecido vegetal. Como conseqüência desse trabalho, eu e Dick nos tornamos amigos e continuamos nossa cooperação. Ele se tornou especialista em um grupo de vírus de planta conhecido como tospovírus, que causa em tomate, pimentão, fumo e alface uma doença chamada vira-cabeça.
Fiz inclusive um pós-doutorado com seu grupo da Universidade de Wageningen, em 1989 e 1990. Foi provavelmente a fase científica mais produtiva da minha carreira, pois fui autor ou coautor de 12 artigos em nove meses!
das produzem frutos impróprios para exportação. Recentemente detectou-se nos nossos pomares de citros o greening, doença causada por uma bactéria. Potencialmente, ela pode provocar enormes perdas em nossa indústria citrícola. Viroses em tomateiro, transmitidos por mosca-branca, os chamados begomovírus, também estão causando preocupação.
■ Que outros estudos seus o senhor destacaria? — Em 1972, com ajuda da microscopia eletrônica, vimos em tecido de laranjeiras partículas parecidas com as do vírus da leprose dos citros. Publicamos um artigo sobre isso e ajudamos a reforçar a teoria de que era realmente um vírus que causava essa doença. Esse foi, de fato, um trabalho importante, pois durante muito tempo se achava que a leprose pudesse ser causada por um fungo e, depois, por uma toxina de um ácaro. O primeiro a ter evidência de que a leprose era mesmo provocada por um vírus foi um americano através de ensaios de enxertia e nosso trabalho contribuiu para confirmar essa teoria. ■ Quais são os desafios para o Brasil na área de fitossanidade? — Certamente há vários, como formar equipes competentes e preparadas para resolver os problemas existentes e enfrentar futuros desafios. Há necessidade de técnicos em todas as frentes, desde pesquisas básicas, algumas de fronteira, até pessoal do campo. Temos um contingente razoável de pesquisadores, mas há áreas deficientes. As instituições de pesquisa como a Embrapa e similares em nível estadual têm dado contribuições importantes, em cooperação com universidades, em especial as oficiais, mas poderiam ter sido mais eficientes. Sente-se falta de um planejamento estratégico, um grupo pensante que possa ajudar a estabelecer as ações do ministério e das secretarias estaduais de Agricultura, das agências financiadoras, das associações de produtores e das instituições de pesquisa. Outro ponto importante é contribuir não só para melhorar a produtividade, mas fazer isso sem agredir o meio ambiente. Temos de lutar contra o desmatamento indiscriminado e o uso abusivo de agrotóxicos. Desenvolver tecnologias de controle biológico, voltadas às nossas necessidades, me parece um excelente caminho. De órgãos como Ibama espera-se maior rigor, mas também bom
senso. As dificuldades interpostas por essa agência, por exemplo, no caso da febre maculosa, devido à existência no campus da Esalq de capivaras com o carrapato que transmite a doença, estão atrasando a tomada de medidas óbvias de controle, como o manejo desses roedores. Essa postura coloca em risco toda a comunidade do campus e da cidade. ■ Falando especificamente de fitopatógenos, existem vírus, bactérias ou fungos emergentes que podem representar grandes ameaças às culturas agrícolas? — Há uma doença de coqueiro, amarelo letal, causada por um fitoplasma, que está provocando sérios problemas no Caribe, na América Central, e que pode chegar até nós. Nos bananais do Brasil, há agora o perigo do fungo Mycosphaerella fijiensis, que provoca a sigatocanegra. A ferrugem asiática vem causando danos ao cultivo da soja e sua presença na lavoura vai aumentar o custo de produção. Seu controle é fácil, mas caro. Há outros exemplos. A ameixeira terá de enfrentar uma virose chamada em inglês plum pox que já chegou ao Chile e à Argentina, procedente da Europa, e provavelmente virá para cá. Há uma nova doença, de provável etiologia viral, atacando o melão no Rio Grande do Norte, o amarelão. As plantas ataca-
■ A globalização, que encurtou as distâncias entre as pessoas, não favorece a disseminação de novas doenças para as culturas agrícolas de todos os cantos do mundo? — Certamente. Muitas das doenças que temos hoje são trazidas pelos próprios produtores, que viajam para o exterior, e trazem escondidos em sua bagagem sementes ou materiais vegetativos, muitas vezes com os patógenos. Embora haja legislação e alguma fiscalização, raramente há uma vigilância rigorosa no Brasil. Mesmo nos Estados Unidos, com todo o receio de bioterrorismo, nunca fui revistado. Além disso, com o enorme número de viajantes é praticamente impossível fazer uma fiscalização individualizada. Mesmo em materiais fiscalizados as deficiências nos métodos de detecção e a falta crônica de pessoal e recursos deixam enormes brechas para a entrada de pragas e patógenos em nosso território. Some-se isso à ganância e a tradicional "lei de Gérson" e temos todos os ingredientes para a importação de problemas. ■ Que doença entrou no país assim, por exemplo? — O cancro cítrico, na década de 1960, foi trazido do Oriente em material introduzido ilegalmente. Entre as orquídeas, há uma doença, causada pelo vírus do orchidfleck, que está distribuída no mundo inteiro. E é fácil entender por que isso ocorreu: os colecionadores e comerciantes mantêm um intenso intercâmbio de material vivo, legal ou ilegalmente, e terminam por disseminar o vírus e o vetor. Felizmente é um patógeno sem muita importância. Seus danos são cosméticos, ele provoca manchas na folha das plantas. Mas serve bem para ilustrar como patógenos e pragas podem rapidamente se disseminar em todas as partes do mundo nos dias de hoje. • PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 15
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Os vencedores do Nobel 2005
i inimigo revelado A descoberta de que uma bactéria - e não apenas o estresse, como se imaginava - causa úlceras e gastrites rendeu o Nobel de Medicina aos australianos Barry Marshall, 68 anos, e Robin Warren, 54. Graças a eles a úlcera perdeu o status de doença crônica e « atada com cirurgias para ser debelada a poder de antibióticos. Foi Warren o primeiro a notar a existência da bactéria Helkobacter pylori na parte inferior do estômago de pacientes com úlcera. Marshall interessou-se pelo achado e chegou a se infectar para evidenciar a relação com a moléstia."0 trabalho produziu uma das mudanças mais radicais e importantes
dos últimos 50 anos na percepção de uma condição médica", disse Lord May, presidente da Sociedade Real da Grã-Bretanha. •
■ Cada um à mercê de si mesmo O dramaturgo britânico Harold Pinter, 75 anos, vencedor do Nobel de Literatura, é autor de 29 peças teatrais, entre elas A volta ao lar, Festa de aniversário, A mulher do tenente francês e O zelador. A Academia Sueca justificou a escolha argumentando que a obra de Pinter "devolveu ao teatro seus elementos básicos: um espaço fechado e um diálogo imprevisível e realista, em que cada um está à mercê de si mesmo e as pretensões se desmoronam". Suas peças
16 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
partem de personagens e situações aparentemente normais, mas mergulham numa atmosfera ameaçadora, em que é marcante sua preocupação com as relações entre opressores e oprimidos. •
Como lidar com a ameaça nuclear A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e seu diretor-geral, o egípcio Mohamed El Baradei, foram agraciados com o Nobel da Paz "pelos esforços destinados a impedir que a energia nuclear seja utilizada com fins militares", disse Ole Mjoes, presidente do Comitê Nobel. A AIEA é um órgão das Nações Unidas sediado em Viena. Seus objetivos são prevenir a proliferação de armas
nucleares e melhorar a segurança das instalações atômicas. El Baradei defende uma combinação de inspeções rigorosas e diplomacia para solucionar crises como a do Irã, acusado de desenvolver armas nucleares. Sua postura foi criticada pelos Estados Unidos, que defendem estratégia mais agressiva. •
Opôquerde cada conflito O israelense Robert Aumann, 78 anos, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, e o norte-americano Thomas Schelling, 84 anos, da Universidade de Maryland, conquistaram o Nobel de Economia por um conjunto de estudos que utilizou a teoria dos jogos na análise
de conflitos variados, das disputas comerciais à corrida armamentista. A teoria é uma ferramenta matemática que descreve a interação entre agentes com interesses opostos. Na Guerra Fria, Schelling mostrou que a capacidade de represália nuclear era mais eficiente que a capacidade de resistir a um ataque. •
■ A coerência da luz Os norte-americanos Roy Glauber e John Hall e o alemão Theodor Haensch foram agraciados com o Nobel de Física em reconhecimento aos trabalhos que utilizam a teoria quântica para estudar os fenômenos ópticos. Glauber vai receber a metade dos R$ 3 milhões do prêmio, pela descrição teórica de comportamentos de partículas de luz. Hall e Haensch, que levaram a teoria à prática, dividirão a outra metade. Eles desenvolveram um espectroscópio de precisão baseado em raios laser, que permite determinar a cor da luz de átomos e moléculas. Haensch, 63 anos, é professor da Universidade Ludwig-Maximilian, de Munique. Glauber, 80 anos, é professor da Universidade Harvard. Hall, 71 anos, trabalha na Universidade do Colorado. •
■ A dança das moléculas O Nobel de Química foi concedido ao francês Yves Chauvin e aos americanos Robert H. Grubbs e Richard R. Schrock, pelo desenvolvimento do chamado "méto-
■ Aliança pela competitividade
do metatísico na síntese orgânica", que abriu caminho para a criação de remédios inovadores. A metátese é uma reação em que cadeias duplas de átomos de grupos similares se trocam entre si. "É comparável a uma dança de grupo em que os casais ficam mudando de par", resumiu o comunicado da academia. Chauvin, 74 anos, foi o primeiro a explicar o funcionamento dessas reações. Schrock, 60 anos, conseguiu em 1990 produzir um composto metálico com a função de catalisador na metátese. Dois anos mais tarde, Grubbs, 63 anos, desenvolveu um catalisador mais eficaz. A reação, hoje uma das mais relevantes da química, é aplicada no desenvolvimento de remédios e de materiais plásticos. •
de universidades e de centros de pesquisa, mas também de consórcios formados por essas instituições com empresas privadas e agências governamentais. Também está prevista a criação de um sistema de difusão do conhecimento científico e o fortalecimento do sistema de propriedade intelectual do país. No primeiro trimestre de 2006 será convocado um concurso de projetos de ciência e tecnologia que serão avaliados segundo a qualidade e a prioridade para o desenvolvimento do país, o que, espera-se, irá estimular o setor privado a apostar em inovações tecnológicas. O programa vinculase à presidência de Conselho de Ministros e será dirigido por representantes da comunidade científica, do governo e do setor privado. (SciDev.Net, 14 de outubro) •
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concedeu ao Peru um empréstimo de US$ 25 milhões com o objetivo de melhorar seus níveis de competitividade por meio do fortalecimento da estrutura de pesquisa em áreas prioritárias. "É a primeira vez que o Estado peruano tenta desenvolver a ciência e tecnologia recorrendo a endividamento externo" comentou Jorge Zavaleta, porta-voz do BID no Peru, ressaltando que a entidade está sempre disposta a lastrear esse tipo de iniciativa, desde que as propostas sejam viáveis. O governo peruano investirá uma contrapartida de US$ 11 milhões. A novidade é que os US$ 36 milhões servirão para financiar projetos não apenas
Pesquisas risíveis O Prêmio IgNobel, paródia do Nobel que homenageia achados inúteis ou absurdos de pesquisadores, chegou à 15a edição sem perder a verve. Concedido pela revista Annals oflmprobable Research, o prêmio foi entregue no dia 6 de outubro no Sanders Theatre, na Universidade Harvard, em Cambridge. Benjamin Smith, da Universidade de Adelaide, na Austrália, venceu na categoria Biologia, graças a um trabalho que estudou os odores exalados por uma centena de espécies de sapos submetidos a estresse. Conclusão: alguns recendiam a castanha, outros a alcaçuz, outros a peixe estragado... Um estudo
da Universidade de Minnesota venceu na categoria Química. Os ganhadores buscaram comprovar se as pessoas poderiam nadar mais velozmente numa solução à base de xarope que em água. O IgNobel de Medicina coube ao empreen-
dedor Gregg Miller, que inventou próteses de testículos para cães castrados - e faturou US$ 500 mil com a inovação, vendendo 150 mil próteses. John Mainstone e Thomas Parnell, da Universidade de Queensland, na Austrália, levaram o IgNobel de Física. Há oito décadas, a instituição acompanha o gotejamento de piche num funil, que produz um pingo a cada nove anos. O Prêmio Ig Nobel da Paz foi concedido a pesquisadores da Universidade Newcastle, na GrãBretanha, que monitoraram a atividade cerebral de gafanhotos enquanto assistiam a clipes do filme Guerra nas estrelas.
•
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 ■ 17
ESTRATéGIAS
MUNDO
A agonia de uma boa idéia Biólogos do mundo inteiro comemoraram a fundação, dezesseis anos atrás, do Instituto Nacional da Biodiversidade (INBio) da Costa Rica. Embora a instituição nascesse modesta - suas primeiras instalações ficavam num armazém vazio -, tinha objetivos ambiciosos: inventariar cada uma das espécies da Costa Rica, país conhecido pela riqueza de sua biodiversidade, e encontrar meios sustentáveis de usar e preservar essa riqueza. O alicerce do INBio foi o inventário de espécies. Numa abordagem inovadora, foram treinados dezenas de parataxonomistas nas comunidades locais para coletar espécies país afora. Logo o INBio acumulou enormes coleções. Desafiando a tradicional dificuldade de levantar dinheiro para a taxonomia, aventurouse em negócios de bioprospecção e de ecoturismo, cujos lu-
Espécies da Costa Rica: biodiversidade mapeada
cros foram investidos em conservação. Agora o projeto vive sérios problemas. No mês passado, a direção do INBio começou a dispensar um terço do time de 50 taxonomistas. Isso porque estão deixando o projeto os dois principais patrocinadores que bancaram o trabalho nos últimos sete
anos: o Banco Mundial e o governo holandês. Os responsáveis pelo INBio dizem que o problema é temporário, mas já se teme que o desfalque da equipe restrinja as atividades a ponto de comprometer o trabalho de conservação. No ano passado, o INBio já abandonara seu plano ambicioso
de inventariar tudo e se desfizera de suas coleções de moluscos e nematóides, centrando esforços em insetos e plantas. O instituto negociou acordos favoráveis com empresas farmacêuticas para procurar novas moléculas e a idéia de cultivar talentos científicos nativos num país em desenvolvimento teve apelo entre a comunidade de pesquisa. Mas os royalties de descobertas garantem apenas a metade do orçamento do instituto, enquanto a outra metade era bancada pelos dois patrocinadores. "A direção do instituto está contra a parede", diz Daniel Janzen, ecologista da Universidade da Pennsylvania, na Filadélfia. O impasse coloca em xeque a utopia que norteou a fundação do instituto, segundo a qual a exploração responsável da floresta tem viabilidade econômica. {Science, 7 de outubro) •
Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
www.santosdumont.14bis.mil.br 0 portal divulga a obra de Santos Dumont como parte da comemoração do centenário do vôo do 14 Bis.
18 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
nlm.nih.gov/hmd/americas/americashome. html A biblioteca disponibiliza cópias digitais de livros médicos do século 17 ao 20.
cba.cpmc.columbia.edu 0 atlas do cérebro da Universidade Columbia é ferramenta de pesquisa para mapear a origem de doenças psiquiátricas.
Medidas de prevenção
2SL
■ Instituições ao alcance do mouse As instituições de ensino e pesquisa do Estado de São Paulo podem ser conhecidas com apenas alguns cliques no mouse. A Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico disponibilizou na internet o Mapa da Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo, com informações sobre universidades estaduais, institutos, museus, observatórios astronômicos, bibliotecas e faculdades. O levantamento, fruto de uma parceria entre o governo e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), já reúne 350 instituições. Para chegar até elas, o usuário tem várias possibilidades. As pesquisas podem ser realizadas por regiões, municípios ou por meio de buscas cruzadas, de acordo com seleção. O resultado é um resumo da instituição procurada. A navegação também pode ser feita por meio de árvore hiperbólica, recurso que permite uma visualização mais ampla das
Ê53
Laboratório do Instituto Butantan: verba para desenvolver imunizante O Instituto Butantan recebeu do Ministério da Saúde um aporte de R$ 3,1 milhões para acelerar a construção de uma unidade de produção de vacinas de gripe e engajar-se na busca de um imunizante contra o vírus da gripe do frango, caso surja uma epidemia em humanos. Tal vacina ainda não existe, porque não se sabe qual
regiões do estado. Outra alternativa para o usuário é percorrer com o mouse uma árvore que abre chaves a partir de 15 municípios. Tome-se o caso da cidade de Sorocaba.
será a variação do vírus H5N1 que se tornará epidêmica. Desde 2003, a doença já atingiu mais de cem pessoas, matando a metade delas. Isaías Raw, diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico do Butantan, vai receber da Organização Mundial da Saúde (OMS) uma cepa de um subtipo do vírus. A intenção do Butantan é fa-
Ao arrastar o apontador sobre o nome da cidade, vários outros links vão aparecer. A lista tem desde os hospitais que existem no próprio município até as unidades de
bricar uma vacina da gripe do frango antes mesmo da vacina da gripe comum, que será lançada em 2007. A previsão é que, já em 2006, 20 mil doses sejam produzidas. O Ministério da Saúde estimou em R$ 1 bilhão o custo para enfrentar uma pandemia. Além da imunização, também serão gastos R$ 193 milhões com medicamentos. •
pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do campus de Botucatu. As regiões, por estarem na mesma área do estado, ficaram agrupadas. O mapa tem ainda uma ferramenta de busca que leva mais rapidamente às fichas com serviços prestados e informações completas sobre bibliotecas, arquivos, observatórios astronômicos, laboratórios e outras unidades envolvidas com C&T&I em São Paulo. Pode ser consultado no endereço www.ciencia.sp.gov.br/ciencia/mapa/ •
PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 19
ESTRATéGIAS
BRASIL
O Brasil festeja a ciência Um balanço da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2005 mostra que o evento cresceu significativamente nessa sua segunda edição. Contaram-se 6.700 atividades (o triplo de 2004) distribuídas por 333 cidades. Mais de 800 instituições de pesquisa, universidades, empresas, escolas e órgãos governamentais participaram. O evento foi realizado entre os dias 3 e 9 de outubro. Vá-
rias atividades desenvolveram-se em espaços públicos inusitados, como rodoviárias, uma estação de trem, shopping centers e tendas em praças públicas em diversas cidades. No Rio de Janeiro houve grande número de eventos, promovidos por mais de uma centena de instituições e marcados por uma boa presença de público. Com o mote "Brasil, olhe para a água!", ocorreram
■ A estrutura das proteínas
■ Canteiro de obras no gelo
O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) realiza em Campinas, entre os dias 23 e 25 de novembro, o curso Investigação de Estruturas de Proteínas por Ressonância Magnética. O objetivo central é apresentar os conceitos básicos necessários para propiciar o uso de espectrômetros de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) disponíveis no LNLS em estudos de estrutura e dinâmica de proteínas. Serão mostradas outras aplicações de RMN em Biologia, normas de segurança e regras para o uso dos equipamentos. Instalados em meados de 2001, os equipamentos fazem parte de uma infra-estrutura disponível para pesquisadores de outras instituições. •
Passa por uma reforma de emergência a Estação Comandante Ferraz, base brasileira erguida em 1984 na ilha Rei George, na Antártica. Estão sendo gastos R$ 2,7 milhões do orçamento da Marinha para reconstruir o piso da estação, tirar a ferrugem das paredes, consertar o siste-
20 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
atividades em todos os estados, em particular nos da Amazônia, no Rio Grande do Sul, em Rondônia e em São Paulo. No município alagoano de Delmiro Gouveia o destaque foi um debate sobre a transposição do rio São Francisco. O evento avançou sobre o interior do Brasil. No Estado de Rondônia, 27 municípios do interior integraram-se à iniciativa. No Ceará, 59 municípios
ma de aquecimento e reaparelhar as instalações - resolvendo problemas que se acumulam há anos e ameaçavam inviabilizar as pesquisas científicas feitas na base. A reforma começou agora para aproveitar o clima menos frio e seguirá até março. O Ministério da Marinha decidiu bancar a reforma, apesar de não ser a única pasta envolvida no Programa Antártico Brasilei-
promoveram eventos. A Bahia estendeu a comemoração para todo o mês de outubro, com atividades itinerantes, levadas pelo Ônibus Espacial e pelo Caminhão da Ciência a vários municípios. A Semana de 2006 estará vinculada ao centenário do vôo do 14 bis. Deverá ter início no dia 23 de outubro, data em que se comemora o centenário da proeza de Santos Dumont. •
ro (Proantar). Mas o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), também engajado no programa, acenou com a possibilidade de usar recursos de fundos setoriais para ressarcir a Marinha e investir mais nas pesquisas. A expectativa é liberar R$ 10 milhões anuais até 2008 para continuar a reforma. A partir de 2009 seriam destinados R$ 6 milhões por ano, para manu-
tenção. Construída de forma modular interligada a partir de contêineres navais de aço galvanizado, a estação pode hospedar cerca de 40 pessoas durante o verão e 12 durante o inverno. O MCT também planeja substituir o Ary Rongel, navio do Proantar, cuja manutenção custa R$ 2 milhões por ano. •
■ Ponte entre empresas e pesquisadores O Portal Inovação, plataforma interativa para troca de dados entre universidades, empresas e institutos de pesquisa, foi lançado no final de outubro pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O serviço foi desenvolvido pelo MCT, em parceria com os setores público e privado, a partir do modelo da Plataforma Lattes, que reúne uma base de dados de pesquisadores e grupos de pesquisa. "O sistema brasileiro de tecnologia é muito recente. As pesquisas estão muito concentradas nas universidades e nos institutos de pesquisa, e não nas empresas, o que dificulta a geração de patentes", disse o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Resende. "O Portal Inovação é mais um instrumento do governo para promover e facilitar a cooperação entre universidade, empresa e instituto de pesquisa." O setor empresarial pode apresentar suas demandas à
comunidade científica. O portal, que funciona no endereço www.portalinovacao. mct.gov.br, viabiliza o envio de propostas e buscas por oportunidades de cooperação. •
■ Reviravolta em Sergipe O governador de Sergipe, João Alves Filho, cedeu à pressão da comunidade acadêmica e propôs a recriação da Fundação de Amparo à Pesquisa de Sergipe. O órgão passará a chamar-se Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação de Sergipe (Fapi). A proposta será enviada à Assembléia Legislativa. Em dezembro de 2004, a fundação deixara de existir em meio a uma reforma administrativa determinada por Alves Filho. Sua estrutura fundira-se a uma autarquia, o Instituto
Tecnológico e de Pesquisas do Estado de Sergipe, perdendo a autonomia que caracteriza as fundações estaduais de amparo à pesquisa, as FAPs. A incerteza sobre o futuro da fundação sergipana foi abordada no documento oficial do Fórum Nacional das FAPs, realizado no início de setembro, em Brasília. •
■ Data marcada para ir ao espaço O tenente-coronel Marcos César Pontes, que desde 1998 prepara-se para ser o primeiro brasileiro a ir ao espaço, finalmente tem data marcada para cumprir sua missão. Um contrato firmado entre as agências espaciais da Rússia e do Brasil permitirá que Pontes vá à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) a bordo de uma
nave Soyuz. A viagem está prevista para o dia 22 de março de 2006 e custará ao Brasil US$ 10 milhões, o equivalente a R$ 22,6 milhões. "Depois de sete anos de espera, parece que o projeto engrenou de vez", comemorou Pontes. O tenente-coronel deveria ir à ISS a bordo de um ônibus espacial da Nasa, a agência espacial norteamericana. Dois entraves inviabilizavam a viagem: o Brasil não investiu o que prometera em equipamentos da estação e, em 2003, os vôos das naves da Nasa foram interrompidos após a tragédia do ônibus Columbia. A solução russa fez o brasileiro, que vivia em Houston, mudar-se para a Cidade das Estrelas, próxima a Moscou. Pontes interrompeu o treinamento para participar de um encontro em Moscou entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente russo, Vladimir Putin, no dia 18 de outubro. •
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 21
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA FOMENTO
Mérito reconhecido CNPq seleciona 34 projetos para o programa Institutos do Milênio
CLAUDIA IZIQUE
os próximos três anos, centenas de pesquisadores em todo o país trabalharão em rede para desvendar questões complexas e de crucial interesse para a população. Entre elas estão a origem genética dos brasileiros; o roteiro percorrido pelos primeiros grupos humanos no Piauí; o impacto da violência na saúde mental; e as manifestações da intolerância. Novos fármacos e terapias genéticas para o tratamento de doenças, além de tecnologias de ponta para novos materiais, também se encontram no alvo desses pesquisadores. Eles integram grupos de excelência comprometidos com um total 34 projetos de pesquisas selecionados entre as 236 propostas que disputaram o segundo edital do programa Institutos do Milênio, criado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) para patrocinar pesquisas científicas em áreas estratégicas. Ao longo desse período, esses grupos contarão com R$ 90 milhões prometidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para financiar a infra-estrutura e a constituição das redes e de pesquisa. Entre projetos induzidos e propostas de pesquisa espontâneas a disputa foi acirrada. "O comitê teve 22 • NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
muito trabalho na seleção dos projetos, uma vez que um número muito grande de propostas era meritório", afirma Erney Camargo, presidente do CNPq. O resultado é que, neste edital, foram aprovados duas vezes mais projetos do que os 17 selecionados na primeira chamada do programa, em 2001. Como o valor total do programa foi idêntico nos dois editais devido a "limitações orçamentárias", como diz Camargo, a maior concorrência derrubou a média dos recursos destinados anteriormente a cada projeto. Propostas ousadas - Apesar de limitados, os recursos deverão dar forte impulso a propostas ousadas, como, por exemplo, o estudo dos ancestrais dos brasileiros, que vem sendo conduzido por pesquisadores de seis universidades de todo o país. O grupo inclui a equipe de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderada por Sérgio Danilo Pena, que já identificou a origem dos povos indígenas das Américas - dois povos siberianos cuja linhagem ainda sobrevive. Com R$ 1,4 milhão do CNPq o desafio da investigação será ampliado. Incluirá a análise da variabilidade genética de povos ameríndios, populações não-indígenas urbana e rural até chegar à origem genética de várias patologias. "Temos conhecimento de doenças causadas por fatores genéticos simples. Mas pouco sabemos sobre a obesidade
/^\
ou a tuberculose, que podem ser influenciadas por problemas genéticos ou fatores ambientais" diz Francisco Salzano, do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do projeto. Boa parte do material sobre esses grupos humanos - tema que Salzano estuda há 50 anos - já está estocada. As pesquisas, até agora, têm se concentrado em dois marcadores uniparentais: o DNA mitocondrial, do lado da mãe, e o cromossomo Y, do lado do pai. Esses marcadores já revelaram, por exemplo, que o homem pode ter chegado às Américas há 40 mil anos - e não 20 mil, como supõem as teorias vigentes/Agora queremos estudar de maneira detalhada os cromossomos não sexuais, conhecidos como autossomos", explica Salzano. Os recursos do CNPq serão utilizados para a compra de equipamentos que, segundo Salzano, "propiciarão um salto de quali dade nas pesquisas". O CNPq também vai destinar R$ 4,2 milhões para consolidar uma rede de estudos sobre o impacto da violência na morbidade psiquiátrica em São Paulo e Rio de Janeiro. "Será estudada a prevalência de transtornos mentais, especialmente do Transtorno do Estresse Pós-Traumático", explica Jair de Jesus Mari, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador de uma equipe de pesquisadores de 11 universidades brasileiras e cinco estrangeiras. As pesquisas vão se concentrar nos profissionais com maior exposição a risco, como equipes de resgate e tropas destacadas para a missão de paz no Haiti, e
nas vítimas de violência doméstica. Levantamentos realizados na cidade de Embu, na Região Metropolitana de São Paulo, entre 1999 e 2004, constataram alta prevalência de agressão contra crianças e adolescentes, identificando como principais fatores de risco problemas de saúde mental da mãe e abuso do álcool pelo pai, entre outros. "As agressões físicas por parte dos pais estiveram fortemente associadas a problemas de saúde mental nas crianças e adolescentes", afirma Mari. O resultado desse trabalho, ele sublinha, vai auxiliar na elaboração de um projeto nacional de capacitação de profissionais da saúde e na criação de uma rede de atendimento para vítimas de violência.
O museu vai divulgar as pesquisas realizadas no Laboratório da Intolerância, criado em 2002, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). A rede incluirá pesquisadores de cinco universidades, contará com o apoio do Centro de Comunicação e Hipermídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, do Laboratório de Cinema e Imagem da UFMG, do Ministério Público do Rio Grande do Sul e do Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais (Clacso). "Queremos dar novo significado ao conceito de tolerância e estimular o debate para novos campos de reflexões que permitam elaborar soluções compensatórias para as comunidades vitimadas", afirma Zilda Márcia Gricoli Iokoi, diretora científica do laboratório. O museu será instalado num prédio de 6 mil metros quadrados na Cidade Universitária de São Paulo, em terreno cedido pela USP. Contará com centro de documentação, biblioteca, sala de leitura, dez salas de exposição, um auditório com 400 lugares, uma sala de cinema com 200 lugares, salas de aula, café, loja etc. O CNPq destinará R$1,4 milhão para a compra de equipamentos, a produção de material em hipermídia, entre outros. A construção, orçada em R$ 10 milhões, será erguida com recursos de doações. O programa financiará projetos na área de biotecnologia, entre eles dois de fármacos e produtos naturais. O primeiro, coordenado por Luiz Hildelbrando Pereira da Silva, do Centro de Pesquisa em Medicina Tropical, investigará o uso da biodiversidade no tratamento da malária e tuberculose, e o segundo, liderado por Marcos Vinícius Gómez, do Instituto de Ciências Bioló-
violência manifesta no antisemitismo, na escravidão, no deslocamento de populações e até perseguições de caráter religioso, no período colonial, será o tema central de outro projeto do Institutos do Milênio: o Museu da Tolerância. O museu reunirá filmes, livros, teses e textos produzidos sobre cada um desses temas. "Vamos colocar em rede os resultados de pesquisas nacionais e internacionais", conta Anita Novinsky, presidente do museu, citando o exemplo do acervo dos estudos da intolerância na era Vargas e cópias digitalizadas de documentos da Inquisição no Brasil que integram o arquivo da Torre do Tombo, em Portugal.
Bolsas para a inovação O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) criou a Bolsa de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora (DT). "Trata-se de uma versão para a área tecnológica da bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ)", explica Erney Camargo, presidente. "No caso da
24 ■ NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP117
DT, a produtividade será medida pelo desenvolvimento tecnológico, pela inovação, produtos e patentes." Terá início com uma "chamada piloto" para 200 bolsistas, ainda em novembro. A bolsa terá duração de 36 meses e a mensalidade variará de acordo com o enquadramento da tecnologia.
Os critérios de classificação serão semelhantes aos da bolsa de Produtividade em Pesquisa, mas não haverá exigência de produção científica na área de atuação do bolsista, do qual é exigido o título de doutor, experiência no desenvolvimento de protótipos e na obtenção de patentes, entre outros.
/^\
gicas da UFMG, analisará o uso de neurotoxinas como agentes terapêuticos. "Estudamos, há dez anos, a neurotoxina da aranha, que é um bloqueador natural de canal de cálcio estimulado nos casos de isquemia cerebral e de dor. Essas neurotoxinas também apresentaram ação em arritmia cardíaca", explica Gómez. A pesquisa básica está concluída. "Tivemos contato com laboratórios estrangeiros interessados em fazer parceria, mas preferimos levar o projeto adiante sozinhos. Queremos royalties para o Brasil", afirma. O grupo conta com R$ 2,9 milhões do Institutos do Milênio para comprar equipamentos e iniciar testes com animais vivos. "Esperamos concluir a primeira fase de ensaio da droga em três anos." Terapia gênica - Os recursos do Institutos do Milênio também auxiliarão na constituição da Rede de Terapia Gênica, formada por 14 grupos de pesquisa liderados por Rafael Linden, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trata-se de uma área de pesquisa ainda pouco desenvolvida no país: diferentemente da terapia celular - que utiliza transplantes de células-tronco para o tratamento de doenças como as distrofias musculares e que pode, rapidamente, chegar a ensaios clínicos -, a terapia gênica é, fundamentalmente, pesquisa básica. "Atualmente, em todo o mundo, existem mil ensaios clínicos, nenhum no Brasil", conta Linden. Na UFRGS, por exemplo, os pesquisadores investigam terapias para a revascularização do miocárdio que poderão, no futuro, produzir respostas positivas no tratamento de doenças cardíacas. Os pesquisadores da rede locados na USP estudam formas de reparação do DNA associado ao câncer de pele; os da UFRJ, a retinopatia degenerativa, e os do Instituto Nacional do Câncer (Inca) desenvolvem terapias voltadas para a leucemia. São projetos de longo prazo, alguns já em fase pré-clínica e clínica, que deverão avançar significativamente com R$ 3,7 milhões do programa Institutos do Milênio. Além da infra-estrutura básica da rede de pesquisa, esses recursos vão financiar a implantação de três laboratórios para a fabricação de vetores virais - vírus enfraquecidos usados PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 25
para transportar trechos de material genético até as células danificadas fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa. Dez dos 34 projetos aprovados neste ano contam com o apoio do programa Institutos do Milênio desde 2001, tendo sido aprovados no primeiro edital. A renovação desses contratos, de acordo com Camargo, também explica a redução do valor médio dos recursos repassados a cada projeto. "São redes já consolidadas, nas quais o aporte de recursos pode ser menor. Neste caso o CNPq destina recursos para a manutenção e para alguns avanços", ele justifica, lembrando que as instituições envolvidas no programa participam com contrapartidas. É o caso da Rede TB, formada por 300 pesquisadores de mais de uma dezena de universidades e institutos de pesquisa, que investigam o desenvolvimento de vacinas de DNA e novos testes diagnósticos para a tuberculose, trabalho que, no seu início, contou com o apoio da FAPESP. O grupo estuda 20 testes diagnósticos e várias vacinas, uma delas pronta para ensaios clínicos, de acordo com Célio Lopes da Silva, da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, coordenador do projeto. Eles também testaram 2 mil extratos da 26 ■ NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 117
biodiversidade, que resultaram em 38 compostos com atividade para a doença. "Com os recursos do primeiro edital conseguimos levar alguns produtos a estágios clínicos que serão financiados com recursos do segundo edital", afirma. No primeiro contrato com o CNPq a rede recebeu R$ 6 milhões. Contará agora com R$ 2,5 milhões para continuar as pesquisas.
Rede de Nanociências, constituída em 2001, e que teve como foco a pesquisa básica, redirecionou suas atividades e transformou-se em Rede de Nanotecnologia. Reúne cerca de 80 pesquisadores das universidades federais de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e Fluminense, do Laboratório Nacional Luz Síncroton, do MCT e de outras dezesseis instituições. Parte das investigações se concentra no desenvolvimento de nanotubos de carbono. "Trata-se de um novo tipo de material com aplicação potencial em sensores de gases ou em medição de glicose", explica Hélio Chacham, do Departamento de Física da UFMG, vice-coor-
denador do projeto. Noutra linha de pesquisa, estudam-se aplicações de nanofios semicondutores e nanoestruturas associadas a medicamentos. "Trabalhamos com um leque amplo, utilizando experiência da Rede de Nanociências orientada para produtos", diz Chacham. O grupo solicitou R$ 6 milhões ao CNPq para financiar o projeto, mas obteve R$ 2,54 milhões, que financiarão a compra de equipamentos. "Ao final de três anos, teremos produto." Os 17 projetos do primeiro edital já receberam quase a totalidade de recursos contratados e os contratos se encerram no final de dezembro. "Dos R$ 90 milhões do programa, falta liberar apenas R$ 1,17 milhão", diz o presidente do CNPq. Esses projetos foram objeto de "extensa avaliação", como ele diz, que demonstrou que os objetivos do programa foram plenamente alcançados. "Houve um incremento substancial nos padrões de excelência e produtividade da ciência e tecnologia brasileiras, assim como sua inserção mais competitiva e integrada no cenário internacional." A primeira parcela dos 34 projetos aprovados no segundo edital deverá ser repassada ainda este ano. "Para 2005 e 2006 os recursos encontram-se assegurados", ele diz. Em 2005 somarão R$ 28 milhões e, em 2006, estão previstos mais R$ 34,5 milhões. Não há previsão para 2007. •
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
LEGISLAÇÃO
À espera de
resultados
\Ut^
Decreto de regulamentação coloca em vigência a Lei de Inovação
Lei de Inovação entrou em vigor no dia 11 de outubro, quando foi publicado o decreto com sua regulamentação. Dispensa as instituições públicas de pesquisa de realizarem licitação para a transferência ou licenciamento de tecnologia, autoriza o aporte de recursos públicos diretamente às empresas e permite que pesquisadores desempenhem atividades no setor privado, entre outras medidas de estímulo ao desenvolvimento tecnológico. "O decreto traz avanços importantes", reconhece Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. "Subvenção é um instrumento importante para o estímulo à pesquisa e desenvolvimento industrial por reduzir o risco da atividade e é praticada nos principais países para defender a capacidade industrial de fazer P&D." O licenciamento de patentes acadêmicas, na sua avaliação, pode gerar muitas oportunidades empresariais relevantes, como foi o caso do licenciamento da tecnologia de nanopartículas para pigmentos, o Biphor, desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (veja página 80). A regulamentação da lei também foi bem recebida nas universidades paulistas. "Precisávamos da dispensa de licitação para facilitar o licenciamento de patentes", comenta Luiz Nunes, pró-reitor de pesquisa da Univer-
sidade de São Paulo (USP). e a Inovacamp, respectivaA USP utiliza agentes esmente. A Universidade Especiais para promover suas tadual Paulista (Unesp) já patentes junto aos clientes começou a organizar a sua. antes da licitação e tem "Estamos criando um conproblemas para estabelecer selho de inovação tecnolóos valores do pagamento gica que vai ditar a política das comissões. Nunes tamde propriedade intelectual bém considera um "proda universidade", conta Jogresso" o fato de a universé Arana Varela, pró-reitor sidade poder, a partir de de pesquisa da Unesp. agora, conceder licença As empresas vêem o desem remuneração a pescreto com ceticismo. A Asquisadores interessados em sociação Nacional de Pesconstituir ou associar-se a quisa, Desenvolvimento e empresas inovadoras. "Ele Engenharia das Empresas dará resultados para a emInovadoras (Anpei) teme r(presa e para a universidapela descontinuidade da de." Preocupa-o, no entansubvenção, uma ameaça que to, o porcentual máximo já estaria antecipada no de um terço dos ganhos próprio decreto que atrieconômicos auferidos pela buiu aos ministros da Ciêninstituição ao qual o pescia e Tecnologia, do De.*.%>* quisador terá direito nos senvolvimento, Indústria e casos de transferência de Comércio Exterior e da tecnologia e de licenciaFazenda a tarefa de anualPjr mento. "Na USP, a prática mente definir os porcenV. é destinar 50%. Será um tuais dos recursos do Fundo retrocesso." Nacional de DesenvolviDaniel Pereira, pró-reimento Científico e Tecnotor de pesquisa da Unicamp, ressalva, lógico (FNDCT) que serão destinados no entanto, que a lei, por si só, não atinà subvenção econômica. Na avaliação girá seu objetivo básico, que é aumentar de Maurício Mendonça, coordenador a competitividade dos setores produtide Competitividade Industrial da Convos. "É preciso que o Estado desenvolfederação Nacional da Indústria (CNI), va políticas de incentivo ao desenvolvias empresas esperavam que o decreto já mento tecnológico que envolva todos fixasse um porcentual para a subvenos órgãos do governo." ção. "O MCT tem hoje um volume raA USP e a Unicamp já criaram um zoável de recursos nos fundos setoriais organismo para a gestão da inovação que permitiriam definir um valor", ele previsto na lei - a Agência da Inovação argumenta. • PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 27
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
NOMENCLATURA
Organograma cobiçado Interesses conflitantes apimentam reforma na Tabela das Áreas do Conhecimento FABRíCIO MARQUES
Adefinição da nova Tabela das Áreas do Conhecimento está provo_ cando intenso debate na comunidade científica e acadêmica do país. Uma versão preliminar da nova nomenclatura foi apresentada no final de setembro por uma comissão de 17 membros convocada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A ferramenta é adotada por todos os órgãos governamentais e agências de fomento li-
gados à ciência, tecnologia e inovação no Brasil, daí sua importância. Ela é vital para sistematizar informações sobre programas de pós-graduação e atividades de pesquisa, comparar os dados do Brasil com os de outros países e nortear políticas públicas. A comissão propôs uma extensa reorganização que, em linhas gerais, valoriza campos do conhecimento recentes e flexibiliza as barreiras entre disciplinas. A mudança começa pela alteração dos nomes das chamadas grandes áreas, aquelas que estão no topo da tabela. Com exceção das Ciências Biológicas e das Ciências Humanas, as demais serão todas rebatizadas, se a versão preliminar da proposta for confirmada. É o caso das Ciên-
cias Exatas e da Terra, que passam a se chamar Ciências Matemáticas e Naturais. O termo "exatas" foi banido por ser considerado pouco preciso. As Ciências Sociais Aplicadas são convertidas em Ciências Socialmente Aplicáveis. Isso resolve a velha discussão levantada pelos teóricos das Ciências Sociais que dizem não fazer ciência aplicada. "Outros" - No caso da grande área das Engenharias, renomeada como Engenharias e Computação, a mudança não foi semântica ou filosófica. Na prática, faz-se justiça à Computação, que, apesar da importância crescente e da grande produtividade científica, amargava papel de coadjuvante entre as Ciências
Exatas e da Terra. Ainda segundo o texto provisório, as Ciências da Saúde serão renomeadas como Ciências Médicas e da Saúde, as Ciências Agrárias como Ciências Agronômicas e Veterinárias e a grande área de Lingüística, Letras e Artes, como Linguagens e Artes. Alguns dilemas ainda não foram resolvidos. Não se chegou a um acordo, na proposta preliminar, sobre a idéia de criar a grande área de Ciências Ambientais. A favor da mudança pesa a existência de 196 periódicos voltados para assuntos do Meio Ambiente. E os programas de pós-graduação neste campo são os que mais crescem entre os designados como multidisciplinares. Contra a mudança há o fato de que as
disciplinas relacionadas às Ciências Ambientais estão muito bem encaixadas em outras áreas. A comissão voltará a reunir-se em meados de novembro para decidir sobre as dúvidas pendentes e analisar as críticas e sugestões à proposta preliminar. Encerrará suas atividades em 4 de dezembro, com a apresentação da versão final da proposta. Todos concordam com a necessidade de modernizar a Tabela das Áreas do Conhecimento. A atual terminologia está em vigor desde 1984. Há pelo menos uma década é considerada defasada, por conta do desenvolvi-
mento da ciência e da tecnologia, sobretudo na pesquisa e no ensino interdisciplinar. Vários remendos vêm sendo feitos. Não por acaso, a grande área denominada "Outros" não parava de crescer, com mais de cem tópicos relacionados. A desatualização é injusta com áreas e disciplinas emergentes. Há o risco de que um projeto de um campo do conhecimento desenvolvido recentemente, submetido a uma agência de fomento, seja analisado por um assessor não familiarizado com o assunto. "A ciência avança. Estão sempre surgindo novas teorias, metodologias e objetos. É preciso atualizar a tabela para reconhecer a importância de novas disciplinas", diz Manuel Domingos Neto, vice-presidente do CNPq e presidente da comissão encarregada de propor a mudança. Mas o consenso termina nesse ponto. Sabe-se que é preciso mudar a nomenclatura, mas já houve duas tentativas fracassadas de reformulação nos últimos dez anos, uma patrocinada pelas agências de fomento e outra em nível interministerial. Não se chegou a lugar algum porque surgiram divergências inconciliáveis acerca das mudanças. O malogro mostra o quanto a reorganização é tarefa delicada. "A comunidade acadêmica é muito desunida", diz Domingos Neto. "Cada pesquisador acredita que sua área seja a mais importante. Isso é natural. Não fosse esse PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 • 29
entusiasmo, a ciência não avançaria. Boa parte das críticas, segundo o presidente da comissão, é fruto de um equívoco. "Os pesquisadores acham que as mudanças podem prejudicá-los na busca por financiamento, mas a tabela não tem poder de distribuir verbas. Ela busca apenas organizar as informações. Cada agência tem suas prioridades e define seus investimentos", adverte. O antídoto para evitar um novo fiasco foi a criação de uma comissão ampla, com representantes do governo, das universidades, das agências de fomento, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e até do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Não adianta criar uma terminologia que desafie o pensamento da comunidade acadêmica", afirma. As discussões, que começaram em março, foram extensas. Mas havia concordância em relação a alguns parâmetros fundamentais. O principal deles foi a retirada de um dos níveis hierárquicos da nova tabela. Hoje a árvore tem quatro degraus de hierarquia: grande área (aglomeração de vários campos do conhecimento afins), área (conjunto de conhecimentos inter-relacionados), subárea (segmentação da área do conhecimento em função do objeto de estudo) e especialidade (caracterização temática da atividade de pesquisa e ensino). O último degrau, o da especialidade, continuará existindo, mas deixará de fazer parte do organograma principal. O objetivo é abrir espaço à interdisciplinaridade e ampliar o horizonte dos projetos. Um estudo sobre uma determinada planta poderá reunir pesquisadores de quaisquer áreas com interesse no tema, de médicos a economistas, de farmacêuticos a antropólogos. Hoje não há essa flexibilidade. Outro ponto de concordância diz respeito ao peso atribuído a cada campo do conhecimento. Mereceram posição de destaque na árvore as disciplinas com grande produção científica e formação de número expressivo de pesquisadores. Quem não se encaixou nesse critério ficou agrupado sob algum guarda30 ■ NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 117
chuva. As subáreas inflaram; eram 340, passaram a 475. Para evitar uma fragmentação ainda maior, muitas disciplinas, novas ou tradicionais, foram classificadas como especialidades, numa lista à parte da tabela que cresceu dos atuais 865 itens para 1.400.
ssas idéias, fáceis de concordar na teoria, causaram curtos-circuitos quando levadas à prática. Um exemplo: Jornalismo, Rádio e Televisão, Relações Públicas, Publicidade e Propaganda, Editoração e Cinema, que atualmente estão no terceiro degrau da hierarquia, como subáreas da Comunicação, foram reclassificadas como especialidades e desapareceram da tabela principal. Um protesto organizado por associações de jornalistas e pesquisadores na área congestionou o correio eletrônico dos 17 membros da comissão, pedindo mudanças. "No caso da retirada do status do Jornalismo, a medida contraria toda uma tradição legitimada ao longo de mais de 300 anos, quando da defesa da primeira tese de doutorado, em 1690, por Tobias Peucer, na Universidade de Leipzig, na Alemanha",
afirmou Elias Machado, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). "Com mais de quatro séculos de existência como prática profissional, 300 anos como objeto específico de pesquisa, cem anos como disciplina acadêmica, presença como área em todas as tabelas internacionais e mais de 30 anos como subárea na tabela em vigor, o Jornalismo, que deu origem à área de Comunicação, mesmo reconhecido com status de sete especialidades, desaparece da árvore principal, ficando relegado à condição de uma entre mais de 1.400 especialidades." É difícil harmonizar interesses. Sociedades de terapeutas ocupacionais e enfermeiros não gostaram da mudança de nome das Ciências da Saúde para Ciências Médicas e da Saúde. Queixam-se de que a Medicina foi supervalorizada. Em alguns campos, como o da Física, há a pressão para evitar a fragmentação, mantendo ramificações numa área comum. Em outras, como a Biologia, a pressão vai no sentido oposto, o da independência de áreas afins. Umberto Cordani, professor titular do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) e membro da comissão, afirma que todas as mudanças propostas tiveram uma justificativa. "Analisamos as mudanças feitas em países como a Itália, os Estados Unidos e o Canadá. E também saímos em busca de um equilíbrio razoável. Não faz sentido subdividir demais certas áreas e preservar a integridade de outras apenas porque há interesses em jogo", afirma. A comissão é receptiva às críticas, mas busca ater-se àquelas com representatividade. "Recebemos sugestões, algumas enfáticas, diretamente de pesquisadores, mas procuramos trabalhar as questões de forma institucional, dando prioridade às formuladas por sociedades científicas", diz Franco Maria Lajolo, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, também membro da comissão. A dificuldade de construir o novo organograma deixou uma lição - e a comissão não quer perder a chance de aproveitá-la. No relatório final será sugerida a criação de uma comissão permanente para o acompanhamento da tabela. Assim será possível corrigir periodicamente as defasagens, sem deixá-las tomar uma dimensão exagerada. •
I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
PUBLICAÇÕES
A polêmica do artigo De forma unilateral, revista cancela trabalho de brasileiros sobre a doença de Chagas Como às vezes acontece, o feitiço pode ter virado contra o feiticeiro. Se a revista Cell, um dos periódicos internacionais mais respeitados da área de ciências da vida, queria desacreditar o artigo publicado em sua edição de 23 de julho de 2004 pela equipe do médico Antônio Teixeira, da Universidade de Brasília (UnB), a forma de lidar com o caso talvez não tenha sido das mais transparentes, nem eficaz em seus propósitos. Pondo fim a uma negociação de meses com os autores brasileiros do estudo em questão, que havia fornecido as primeiras evidências de que trechos do genoma do parasita Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, poderiam se incorporar ao DNA de animais, inclusive do homem, o periódico cancelou a validade do artigo num comunicado de dois parágrafos e cerca de 120 palavras divulgado em 23 de setembro deste ano. Fez isso à revelia dos autores, sem apresentar razões inequívocas para seu comportamento. O procedimento unilateral acabou gerando críticas em relação à política editorial da Cell e jogou ainda mais luz sobre o estudo dos pesquisadores de Brasília. A revista argumentou que, "depois de cuidadosa e extensiva revisão dos dados (de Teixeira) por especialistas independentes da área", era forçada a retirar o artigo porque havia dúvidas sobre o local do DNA do hospedeiro em que o genoma do parasita teria se alojado. Mas não apresentou nenhuma evidência de fraude, deslize ético ou má
conduta da equipe brasileira que redigira o polêmico artigo, situações que normalmente são invocadas quando uma publicação resolve cancelar os escritos de um pesquisador. A comunidade científica, brasileira e internacional, estranhou o procedimento da Cell e reclamou publicamente em reportagens e artigos que saíram em meios de comunicação daqui e do exterior. A reação levou a editora da Cell, Emilie Marcus, a voltar ao assunto num texto maior, o editorial da edição de 21 de outubro passado, intitulado "Controvérsia da retratação". Resultado da polêmica: o artigo cancelado, aquele que não era boa ciência segundo o periódico, chegou a ser o segundo mais lido no site da pró-
pria revista e o editorial explicativo estava na 11a posição na mesma lista no final do mês passado. Baiano de 63 anos, Teixeira desenvolve a linha de pesquisa que redundou no artigo da Cell há mais de uma década e meia. Ele se diz perplexo com o desenrolar dos acontecimentos, inclusive com as reações de solidariedade que recebeu de colegas do Brasil e de fora do país. "Jamais poderia imaginar que a atitude arrogante da revista pudesse sensibilizar tantas pessoas no mundo", afirma o pesquisador da UnB, que defende a validade de seus dados. "Outros laboratórios estão tentando reproduzir os nossos resultados." O tempo, como sempre, dirá quem tem razão. •
Herítable Integration of kONA Minicircle Sequences from Trypanosoma cruzi into the Avian Genome: Insights into Human Chagas Disease Gomes. Ana de Cássia Rosa, Auit, Francisco Moreno. RoMM J. Nascim
A Cell e o escrito da UnB: discórdia sobre a incorporação do genoma do parasita pelo DNA humano
rpt M- rnirj/a ifi Arqonlina. whnro ho WJ '., i ííI •- I:,:; .: I'|- Ifl 'H-J-I }iu!| .1! Ill bug, «1 ■. ,?. now kntiwfi Kiloaie ... , i|,i.íly >i,V!I'> :!:, I.HOllOSClS H
>a-iii- fie. itltnmpifi.i KmhivHdoe) ili.it (.. d trn- {jtKntOvi- huls et llle potHiv inhot ita of Mume GWíI,!.. Brai-I IChiigas. ISH "1 toiio-' llnqottatoft r c.r'i trypo iJ-it-"
fouod amastigow lomn by tmary fiswyi in *anoui lia sues oi lhe mammaSan hosl. Mammais betonging lo •M* classes (marsupiaJs, erjortates, tagomofphí. roatflü. and ChlfOptOOWS) Brtt hasta í. Blrds are refraciory !o T. cmh intoctkM «1 TemeVa [19S7D. 10 tryfjínosonilBsis nifections span an eiien. stve geographical área betweeo At H in lhe United StttM 10 43 S io Argentina Human Chaga* düoase <s considarod IIMI most significant pa/aMtíc. (Moase m Latüi America It ia oslimated thal 16-18 million poople me mlecled by T. crua. As a consequence. soproximatoly 50,000 destlia oceur every year Toe acute infocIron usuais goos urvecogreied and enteia a chromt stage lhal peraim lh'oughout (ha twals We span. Ho*evor. roughly 30% of infocted indivWuaís evenluatfy wM iiiíve iop diaoaae * rth an anay o) posaiWe memlestaiions atfecting the heart. lhe d>goat™e tracl, and/of the penpnoral ncrvoui system {Prata, 2001). Tfio miiochondrion of T. cnm contains [ho largeat amouni ot eiifunucMw genetic mataria! of aoy eukaryolo. Th« kineiopiast DNA ftt»4A) contains a lew <JO*MI :na*>circloB(23Vb)andM»eraMhíM«andrnlnicirctes(1.« kb) caienateo into a targe and corople» networit (Knngboil o< »(., 2003, compfltung t0%-tS% of lhe total con DMA (Lukes et ai ÍO02). The maxieircle» ar* the (unelional equivaleni o( om mitochondnaí DNA bui contam so«er« gene» that reuuire sutrít*i(ial posUranjcrtplional oiotliticalion by RNA edttiog {Eatavel and Sunp•*>n. 1999). Ttw miniclfctea encode the guide RNAs that direct Ihis procoaa. condawtHie to the encimou* contont and hotrjíoganetty in themnochortdrtai DNA componenl of Iheae oiganisms ICampoeS et a)„ 2003). Porttapa the most in^ionam prootem m the fteki oi Chagas dtaeoaereeeaich is detennmaüon of iiie petix) gonesií of th» chionic (Saaaae. Variou» hypotheiea hav» been ptoposed, fangine from Oegradalion oi the aiíw,iwlii«i«»ovortJmeC»irteddtrrKtlybyth*pní(ience o' li» paraailo to lhe poeaibüity ot an autoênnuine response lhal tt nof depeodenl on the penvatence of hve intection {TO«BíTB et ai., 1996). OM prevoua siudie* have iridiçated lhal kDNA Hitegralion into tti host genome oceun fiequentry iTeijewa et thra roport, we document nunw íotegration into the genome» of pahents mtected with r cruíi. Fuiiliermon»,wadenTO(awtelrfflilhi6intB«faüon can Oícut in lhe fMDettmentaBy atcesaibie rabo>i modol system and fhal «DNA ifihKJfahOn can be perpet■MUd Ihrough lhe gemiimo in cluekona m the obeence of Inlection. The possrttRity oi genomic damage müicted ucsífi the host by the hofiiontat DNA trtmal» trom th.» parasite may hok> the key lo íhe dilíerential ai ' chrnic ^hap^a (ti- ,aae
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 31
1 POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
BESTAS DOS PAMPAS Artistas plásticos reconstituem a faunapré-histórica que habitou o Rio Grande do Sul 200 milhões de anos atrás
ma das mais singulares faunas da Pré-história nacional começa a ganhar vida novamente. Calma. Ninguém recriou em laboratório um animal extinto a partir de fragmentos de DNA. Dinossauros, tecodontes, dicinodontes, cinodontes, rincossauros e formas primitivas de prémamíferos que viveram no período Triássico, entre 250 e 205 milhões de anos atrás, estão voltando à cena na forma de desenhos, alguns em três dimensões. São crias de um projeto paradidático financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sob a supervisão dos paleontólogos César Schultz e Marina Bento Soares, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o professor de escultura Adolfo Bittencourt traceja, com a ajuda de softwares especiais, os contornos das criaturas que habitaram um momento-chave da Terra. Período imediatamente posterior ao término da Era Paleozóica, cujo epílogo é a megaextinção que matou 90% da vida no planeta, o Triássico reinaugura a diversidade de formas entre as espécies animais e vegetais. Dos grupos de vertebrados que sobreviveram ao cataclismo e repovoaram a Pangéia, o megabloco de terra que unia todos os atuais continentes, surgiram quase simultaneamente os primeiros dinossauros e os primeiros ancestrais 32 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
Guaibasaurus candelariensis Um dinossauro ágil e mais comprido que o Staurikosaurus. Não se sabe ao certo que tipo de alimentos consumia. Acima, reconstituição do animal em 2D e, à direita, detalhe da cabeça em 3D
Brasilitherium riograndensis Cinodonte de 10 centímetros semelhante a um roedor. Trata-se de um pré-mamífero, talvez com pêlos e sangue quente
dos mamíferos. No Brasil, só há vestígios geológicos do Triássico no estado mais meridional da Federação. O que eqüivale a dizer que muitos fósseis de bichos típicos desse período - como o carnívoro Staurikosaurus pricei, um dos mais antigos dinossauros do mundo, e o diminuto cinodonte Brasilitherium riograndensis, um pré-mamífero - não podem ser achados em outras partes do país, às vezes nem mesmo no exterior. "As pessoas querem saber como eram esses animais, mas quase não temos material ilustrativo deles", diz Schultz. "Para usar desenhos do exterior, que nem sempre existem, temos de pagar direitos autorais." A saída foi se juntar ao pessoal do Instituto de Artes da UFRGS e produzir localmente as reconstituições. Livro e filme - Por sorte, havia um profissional habilitado para fazer a ponte entre a paleontologia e o desenho. Doutor em Ciências da Arte pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne, Bittencourt tem sólidas noções de anatomia e já fazia esse tipo de trabalho para revistas internacionais. "Analiso a estrutura do esqueleto do fóssil e vejo onde se localizam as inserções musculares", afirma o artista plástico, que, com sua aluna de graduação Dorothy Ballarini, realizou uma dezena de recriações de bichos extintos encontrados no Rio Grande do Sul. "Assim consigo uma melhor noção do volume e da movimentação do animal." As ilustrações, algumas já usadas em exposições, vão rechear as páginas de um livro e de um site sobre esses seres vivos de outrora. As imagens em três dimensões, que precisam ser finalizadas (os bichos ainda estão sem a pele virtual), podem ser animadas e dar origem a um filme no estilo Andando com os dinossauros, produção da inglesa BBC.
34 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
Massetognathus ochagaviae Cinodonte herbívoro ou onívoro de cerca de meio metro, com formas que remetem a um felino. Contemporâneo do Dinodontosaurus
*sA
*t A i"ffl*fflrtrTSffffri
Dinodontosaurus turpior Grande dicinodonte herbívoro, encontrado na porção média da formação Santa Maria. Seu tamanho variava de 1 a 4 metros
Karamuru vorax Tecondonte carnívoro de 9 metros de comprimento. Foi o grande predador do Triássico Médio. Viveu antes do surgimento dos primeiros dinossauros. Lembra um crocodilo
Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Toda semana, em meia hora, você tem: • Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos da ciência
E o que não poderia faltar: sua participação nas seções
.
• Pesquisa Responde • Promoção da Semana Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h
Pesqe Tec·Üiiã FAPESP
www.revistapesquisa.fapesp.br
www.radioeldoradoam.com.br
lectuais pedem que se esqueça o que pensaram ou disseram e passam a atuar de forma pragmática. Assim, impedem o exercício da cidadania por parte de muitos e ficam à vontade para governar não em benefício da sociedade, mas em benefício dos mercados. A população segue como passageiro nessa jornada: coloca vidros fumês e blinda os carros, muda-se para condomínios fechados, empurra com a barriga esse problema, uma bomba-relógio que cedo ou tarde vai explodir se nada for feito.
PESQUISA RESPONDE 08.10.2005
• Luis Paulo Allegretti, publicitário - Por que os planetas são redondos como a Terra?
• Enos Picazzio, astrofísico da Universidade de São Paulo - A forma de um planeta depende de sua massa. Quando ela é muito elevada, a força gravitacional faz com que se distribua na forma de uma esfera. Por isso os planetas com massa elevada têm a aparência de uma bola de futebol. Quando gira, essa esfera começa a se tornar ovalada - e, num caso extremo, ficaria parecida com uma bola de futebol americano. Dos planetas do Sistema Solar, o mais ovalado é lúpiter, que completa uma volta em torno de seu próprio eixo em cerca de dez horas, ou seja, o dia em Júpiter tem aproximadamente dez horas. Já os planetas menores têm massa muito pequena e formatos variados. Muitos se parecem com grandes batatas.
PROFISSÃO PESQUISA 15.10.2005
• Eduardo Massad Eu sou professor titular de informática médica da Universidade de São Pau~. Quando estava no quarto ano de medicina, me sentia frustrado com o ensino médico da época e com a visão que se tinha da investigação científica. Decidi fazer um novo vestibular, concorrendo a uma vaga no Instituto de Física da USP.Naquele período comecei a tentar correlacionar tudo o que aprendia na física - como as técnicas matemáticas e computado-
Planetas de massa elevada: forma de bola de futebol nais - com os problemas médicos. Desde então trabalho com aplicações matemáticas em questões de espalhamento de doenças em populações. Após montar minha equipe, tive a oportunidade de participar de um projeto para o controle de uma infecção. Naquela época, o governo do Estado de São Paulo pretendia implantar a vacinação contra a rubéola. Usando técnicas matemáticas e computacionais, minha equipe e eu desenhamos uma estratégia ótima para o momento. Assim, conseguimos, em parceria com a secretaria de governo, implementar uma estratégia de vacinação que permitiu economizar dinheiro e de tempo. Quando se compara a história da epidemiologia nos Estados Unidos e na Inglaterra com a nossa, nota-se que o Estado de São Paulo precisou de dez anos menos que esses países para atingir os mesmos níveis de proteção observados hoje.
PROMOÇÃO DA SEMANA 08.10.2005
• Produção -
Qual sua opinião sobre a
concentração Brasil?
de renda
• Eduardo Britto - A concentração de renda é a base sobre a qual se assentam e crescem os demais problemas do país: saúde, educação, violência. Tudo isso resulta da absurda concentração de renda que, infelizmente, não é combatida pelo ambiente neoliberal, vigente mesmo após a chegada ao poder de quem mais o combatia. E nada indica que esse quadro vá se alterar no curto. ou no médio prazo, pois essa questão não integra a agenda dos políticos. Só os intelectuais costumam enxergar a raiz de nossos problemas sociais aí. Mas, quando chegam ao poder, esses inte-
Mudança de curso: Taquari deixa terras sob as águas
NOTA
no
08.10.2005
• Apresentadora - O acúmulo de sedimentos está alterando o curso do rio Taquari no Mato Grosso do Sul, que inundou 6 mil quilômetros quadrados - quatro vezes a área da cidade de São Paulo -, antes ocupados pela pecuária.
• Mario Luis Assine, geólogo da Unesp de Rio Claro O rio Taquari é diferente dos outros rios que costumamos ver pelo Brasil. Seu padrão de drenagem não é tributário. Em vez de rios menores desaguarem nele, formando um maior, o Taquari se divide e perde água em direção à sua foz. Essas inundações ocorrem atualmente nos arredores da Fazenda Caronal, no Pantanal, onde diques vêm se rompendo e deixando as águas do Taquari extravasarem para a planície de inundação. O homem contribui para esse processo ao aumentar a erosão nas cabeceiras do rio, no planalto da serra de Maracaju, e liberar sedimentos que deixam seu leito mais raso.
I CIÊNCIA
■ Devagar com o Prozac Num primeiro momento, nada de antidepressivo. A alternativa inicial para tratar a depressão leve em crianças e adolescentes deve ser a psicoterapia, segundo a mais recente orientação do Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (Nice), do Reino Unido. Os antidepressivos só devem ser indicados quando a psicoterapia não surtir o efeito desejado - e, mesmo assim, acompanhados de psicoterapia. É uma forma de reduzir o elevado índice de prescrições de antidepressivos, que passou de 13 milhões para 29 milhões de 1995 a 2004 (The Independent). Estima-se que 40 mil crianças e adolescentes britânicos, com idade entre 5 e 16 anos, tomem antidepressivos - e apenas metade faça psicoterapia. Diante de relatos de suicídio após o uso de antidepressivos, o Comitê de Segurança de Medicamentos do Reino Unido liberou apenas o uso da fluoxetina (Prozac) para menores de 18 anos. •
Idéia iluminada: estrutura de navio incendeia-se como no afresco de Giulio Parigi
Não despreze de antemão uma idéia antiga, por mais maluca que pareça. Em 212 a.C, durante a Segunda Guerra Púnica, o matemático grego Arquimedes criou um raio letal para combater as naus inimigas durante o cerco romano a Siracusa. Com um grande espelho côncavo, ele teria conseguido concentrar a luz do Sol no casco das embarcações, incendiando-as. Se de fato ele o fez, não se sabe. Mas até que seria possível. O engenheiro David Wallace, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que havia assistido a uma tentativa frustrada de reproduzir o experimento no programa de TV a cabo Caçadores de mitos (MythBusters), ficou intrigado com a possibilidade de criar o tal raio e apre-
38 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
sentou o problema a seus alunos. A maioria, claro, afirmou que seria impossível do ponto de vista técnico. Depois de alguns cálculos e uma tentativa também frustrada, em 4 de outubro Wallace e sua equipe tentaram recriar o raio letal de Arquimedes usando 127 espelhos quadrados, com 30 centímetros de lado, dispostos na forma de um semicírculo na cobertura de um estacio-
namento. Sob um céu limpo, os espelhos focaram a luz do Sol das 13 horas na réplica de uma quilha de uma embarcação romana, construída com carvalho. E funcionou! Em menos de dez minutos a madeira ardeu em chamas. "Não estamos tentando provar que Arquimedes tenha realmente feito isso", disse Wallace ao New York Times. Mas, ao menos, era possível. •
■ Um homem com 1,5 milhão de herdeiros Giocangga amava as mulheres: pode ter deixado cerca de 1,5 milhão de descendentes homens na China e na Mongólia, de acordo com uma pesquisa baseada na análise do cromossomo Y, exclusivo dos homens. A análise é similar a um estudo de 2003, segundo o qual cerca de 16 milhões de homens descendiam do conquistador mongol Genghis Khan. Giocangga viveu em meados do século 16 e seu neto fundou a dinastia Qing, que reinou na China de 1644 a 1912. Seus descendentes homens, tal qual os filhos e netos de Genghis Khan, espalharam-se e levavam uma vida extravagante, com muitas mulheres e concubinas. A pesquisa, publicada no American Journal ofHuman Genetics, sugere que essa seja uma boa estratégia de sucesso reprodutivo. Esse tipo de vantagem reprodutiva dos homens é talvez o traço mais importante da genética humana, segundo Chris Tyler-Smith, do Instituto Sanger, do Reino Unido, que coordenou os dois estudos. Geneticistas britânicos e chineses examinaram o cromossomo Y de cerca de mil homens e encontraram 3,3% de similaridade - sinal de que compartilhavam o mesmo ancestral masculino: Giocangga. Uma classe de nobres, descendentes diretos de Giocangga, reinou até 1912 - e mesmo o menos nobre deles tinha muitas concubinas e era presumivelmente um especialista em disseminar o cromossomo Y herdado de Giocangga. O Y de Gengis Khan é o que mais se aproxima dessa prevalência: é encontrado em cerca de 2,5% dos homens do leste da Ásia. •
fixou a massa de um quilograma com uma precisão de 99,999995%. Ainda não estão satisfeitos: querem trocar o 5 por um 8. •
■ O limite da paciência
■ Outra forma de medir o quilo Por 116 anos, um cilindro de platina e irídio guardado em uma redoma em Paris, de massa exatamente igual a 1 quilograma, representou a unidade de massa que conhecemos como quilograma ou, simplesmente, kg. É um conceito simples de entender, certo? Mas um grupo de físicos do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, dos Estados Unidos, anunciou uma outra forma de definir o que é um kg. E estão avançando na nova forma de medir o quilo, agora a partir da energia necessária para gerar um campo magnético que equilibra a força gravitacional de uma massa de 1 kg. O próprio Ri-
chard Steiner, que coordena a equipe dedicada a essa medição, reconhece que não se trata de um método simples: estão trabalhando na máquina do quilograma eletrônico há mais de uma década. Para que, então, criar esse método? Talvez a resposta seja a necessidade de quantificar e padronizar para organizar o mundo. Para os físicos, o desafio se justifica pela preferência em definir unidades de medida de acordo com as constantes universais da física, muito mais interessantes do que um mero cilindro descansando eternamente em uma redoma. Há também um problema: o cilindro pode ganhar ou perder partículas, por meio da contaminação ou da limpeza. A equipe de Steiner já
Todos os animais têm constantemente de optar entre uma recompensa pequena e imediata ou uma maior, mas depois de algum tempo. A impulsividade costuma triunfar sobre a paciência. Mas que fatores regulam essas respostas? Após comparar duas espécies de macacos, uma equipe da Universidade Harvard, Estados Unidos, concluiu que os animais são mais impulsivos ou pacientes de acordo com o contexto - por exemplo, se a tarefa que levaria à recompensa implica um esforço temporal (esperar por um prêmio) ou espacial (locomover-se para ganhar algo). As duas espécies estudadas - o sagüicabeça-de-algodão {Saguinus oedipus) e o sagüi-de-tufosbrancos (Callithrix jacchus) comportaram-se de modo impulsivo, esperando de oito a 20 segundos para receber uma recompensa. Mas havia uma diferença: o sagüi-detufos-brancos esperou quase duas vezes mais que o cabeçade-algodão para um prêmio que não seria imediato. A resposta é coerente com os estilos de buscar alimento: os tufos-brancos se nutrem da seiva de árvores, cuja coleta exige paciência, enquanto os cabeça-de-algodão comem insetos, cuja caça exige movimentos impulsivos. Em outro experimento foram os cabeça-de-algodão que se mostraram mais dispostos a se mover para conquistar uma recompensa espacialmente mais distante. •
PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 39
LABORATóRIO
BRASIL
Olhar refinado: nova técnica de análise de imagens de satélite mostra que corte seletivo e queima de madeira. A Amazônia voltou a chamar a atenção no mês passado, por duas razões: a seca mais intensa em quatro décadas e a constatação de que o ritmo do desmatamento nos últimos anos pode ser maior que o imaginado. O impacto da ação humana, provocado pelo corte seletivo de árvores,
■ Reforço desnecessário Aplicada logo após o nascimento, a vacina BCG reduz em crianças e em adultos o risco de contrair tuberculose. Mas a administração de uma segunda dose - recomendada pelo Ministério da Saúde desde 1994 e adotada por estados como Minas e Rio de Janeiro - não aumenta a proteção: o benefício da dose de reforço é tão sutil que sua aplicação não se justifica, do ponto de vista da saúde pública, de acordo com um estudo publicado na Lancet. Coorde-
chega a dobrar a perturbação ambiental na área. "Realmente, os dados causaram surpresa", informa José Natalino Silva, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental e um dos autores do artigo Selective logging in the Brazilian Amazon, publicado na revista norte-americana Science.
nado por Maurício Lima Barreto, da Universidade Federal da Bahia, é um dos maiores ensaios clínicos já realizados no mundo, com cerca de 300 mil crianças e adolescentes de Salvador e em Manaus. Entre 1996 e 1998, a equipe de Barreto aplicou uma segunda dose da vacina em 103.718 alunos. Outros 97.087 não receberam o reforço. A equipe de Barreto acompanhou os dois grupos por cinco anos. A cada ano, em média 29 pessoas em cada grupo de 100 mil que tomaram a vacina tiveram tuberculose; já entre as crianças não-vacinadas a taxa
40 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
"Nós já tínhamos algumas estimativas, calculadas pelo consumo de madeira retirada da floresta. Agora conseguimos desenvolver uma ferramenta eficiente e útil para estabelecer as políticas públicas da região", diz Silva. Os números gerados pela nova metodologia, que consegue en-
foi de 30 por 100 mil ao ano. A segunda dose mostrou-se desnecessária também porque a primeira protege por até 20 anos, o dobro do tempo que se imaginava. •
■ Novos hantavírus no Maranhão Foram identificados dois novos hantavírus suspeitos de causar uma infecção grave em Anajatuba, no Maranhão. Transmitidos pelo contato com detritos de roedores silvestres, foram encontrados por meio de um trabalho que reuniu pesquisadores do Ins-
xergar pelo meio das copas das árvores, impressionam. Entre 1999 e 2002, os dados analisados para os estados do Acre, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima mostram que a área atingida pelo método do corte seletivo variou de 12.075 a 19.823 quilômetros quadrados. Isso eqüivale
tituto Evandro Chagas, da Universidade Federal do Maranhão, do Ministério da Saúde e dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos. Em dois povoados de Anajatuba, a equipe de Pedro Vasconcelos, do Evandro Chagas, capturou 104 roedores, 21 infectados com um dos novos tipos de hantavírus. Batizados de Anajatuba e Rio Mearim, somam-se a outros três já identificados no Brasil. Seus prováveis transmissores são o rato-do-mato (Oligoryzomys fornesi) e o rato aquático Holochilus sciureus. •
... dobram área desflorestada na Amazônia
de 60% a 123% das áreas identificadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) como desflorestadas pelo corte intensivo de espécies de madeira, dentro do mesmo período. "Em algumas situações, o impacto realmente dobra", afirma Silva. A situação no Mato Gros-
so foi a mais grave. "Nosso estudo usou novas técnicas de análise de dados obtidos por satélite", explica Gregory Asner, do Instituto Carnegie da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e principal autor do artigo. "Compilamos essas informações com o que foi gerado por outros
três sistemas complementares de satélite. Com isso tudo, conseguimos mapear o corte seletivo." Segundo Asner, a metodologia está baseada em técnicas avançadas de processamento computacional. Apesar dos resultados impactantes, o pesquisador norteamericano não acredita que
■ Nas areias de Caraguatatuba O molusco ao lado representa uma espécie recém-identificada que foi encontrada em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo: a Macoma biota, assim chamada em homenagem ao programa BiotaFAPESP, que mapeia a flora e a fauna paulistas. Trata-se de um fíltrador poderoso: por suas brânquias podem passar até 10 litros de água por hora. É assim que esse molusco de até 10 centímetros de comprimento retira da água organismos microscópicos que
Macoma biota: capaz de filtrar até 10 litros de água por hora
lhe servem de alimento. Não foi fácil saber que se tratava de uma nova espécie. Outras espécies do mesmo gênero,
como a Macoma constricta, com a qual se confunde, compartilham tanto a forma como as cores da concha -
o método do corte seletivo de árvores, visto por muitos ambientalistas como o ideal para a exploração da madeira amazônica, deva ser deixado de lado. "Mas, se o corte seletivo for feito de forma descontrolada, os impactos negativos serão grandes tanto para a sustentabilidade das atividades humanas como para toda a ecologia da região", diz Asner. Silva, da Embrapa, concorda. "O problema não é o método, que é bom. O risco está na visão das pessoas. Se os agricultores, principalmente do setor da soja, e os pecuaristas, por exemplo, respeitarem os 20% de reserva legal já está muito bom", explica o pesquisador, que é especialista em manejo vegetal. "Coibir as ações ilegais é fundamental. Muitas das explorações detectadas pelo estudo revelam que o corte seletivo está sendo feito em reservas indígenas, por exemplo", conta. •
castanha nas bordas, por causa do revestimento de proteínas, e creme no centro, onde resta somente calcário. Apresentada na revista Zootaxa pelos zoólogos Eliane Arruda e Osmar Domaneschi, ambos da Universidade de São Paulo, a Macoma biota distingue-se por uma peculiaridade de sua anatomia interna: um músculo raro entre os moluscos bivalves, o adutor acessório, que auxilia no fechamento da concha. Encontradas em abundância, as dez espécies de Macoma do Brasil servem de alimento para as populações litorâneas. •
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 ■ 41
CAPA
SAÚDE MENTAL
As
máscaras da
histeria Distúrbio psíquico que ajudou a gênese da psicanálise é confundido no presente com epilepsia
CARLOS FIORAVANTI ILUSTRAçãO HéLIO DE ALMEIDA
42 ■ NOVEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP117
Na manhã de 21 de novembro de 2001, uma quarta-feira, a neurologista Carmen Lisa Jorge analisou as imagens e o eletroencefalograma de duas crises supostamente epilépticas que Visconde Oliveira havia apresentado na madrugada anterior. "Definitivamente, ele não tem epilepsia", concluiu. O homem de 47 anos estava havia dois dias em um quarto ao lado, diante de uma câmera que registrava sua imagem sincronizada ao eletroencefalograma. Os 29 eletrodos que permaneceram todo o tempo fixados em sua cabeça acompanhavam a atividade de seu cérebro, mas em momento algum registraram as descargas elétricas que caracterizam a epilepsia. A constatação livrou-o da cirurgia que os médicos do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo cogitavam fazer como forma de aplacar as convulsões que haviam começado 17 anos antes, duravam de meia a uma hora e só terminavam com um desmaio. Por sete vezes ele acordou amarrado a uma cama de unidades de tratamento intensivo, onde permanecia sedado por alguns dias. Três dias mais tarde, Luiz Henrique Martins Castro, o médico responsável pela unidade do HC em que se realizam esses exames, comentou: "Seu Visconde, o que o senhor tem é outro tipo de crise, de origem emocional. Suas crises podem resultar de algum conflito, recente ou não, que nem sempre é consciente. O senhor precisa agora de tratamento psicológico". Quando Castro disse que ele poderia parar de tomar os remédios contra epilepsia, Oliveira começou a chorar. Saiu de lá chorando, chegou em casa chorando e chorou convulsivamente por mais dois dias. "Eu estava livre, finalmente", contou Oliveira. Por causa das convulsões, havia perdido o emprego. A medicação - em doses crescentes, já que as crises não cediam - o fazia dormir quase o tempo todo e deixava-o com medo de sair de casa. Depois de começar o tratamento psicológico, nunca mais sentiu os fortes tremores que o jogavam ao chão e nos últimos tempos haviam se tornado diários. Em janeiro de 2002, a psicanalista Mara Cristina Souza de Lúcia, diretora da divisão de psicologia do HC que acompanhou seu tratamento, concluiu que as crises de agitação, os desmaios e mesmo a paralisia do braço esquerdo eram sintomas inequívocos de histeria, um distúrbio de origem psíquica cujos mistérios seduziram o neurologista austríaco Sigmund Freud e o levaram à criação da psicanálise. A histeria, que muitos acreditavam extinta, não morreu. Só estava escondida. No final do século 19, ainda era
vista como uma expressão da fragilidade e das carências exclusivamente femininas. Por sinal, a palavra histeria vem do grego hystera, que significa útero, de onde viria o sangue contaminado que, chegando ao cérebro, levaria às convulsões. Nessa época as mulheres com histeria viviam nos mesmos asilos que os epilépticos e os doentes mentais. Tanto nos asilos quanto em público, diante de uma platéia de médicos que se encantavam com o espetáculo, mulheres geralmente jovens e bonitas jogavam-se ao chão, se retorciam e rasgavam as roupas até, exaustas, perderem os sentidos. Supostamente, o isolamento que lhes foi imposto como forma de tratamento deveria ter resolvido o problema. Gradualmente, ao longo do século 20, a histeria deixou de atrair a atenção dos médicos. Em conseqüência das sucessivas reformulações dos manuais diagnósticos de saúde mental, perdeu-se como conceito. Mas não desapareceu. Apenas refugiou-se com outros nomes nos consultórios de psiquiatria, de neurologia e, em princípio, de qualquer outra especialidade médica. As convulsões, por exemplo, passaram a ser vistas como sinais de distúrbios psíquicos, como transtorno do pânico ou de ansiedade. Podem confundir-se também com uma epilepsia de difícil controle. No entanto, a epilepsia normalmente se origina de alterações nos neurônios do cérebro - guarda, portanto, uma origem física definida. E, pelo que se sabe até o momento, a histeria não se enraíza em nenhuma causa orgânica. Segundo a psicanálise, é uma expressão corporal inconsciente de conflitos psíquicos e de um sofrimento emocional intenso, como se o próprio corpo fosse um vulcão que deixasse a lava escorrer continuamente, à espera de uma erupção que parece que nunca vai se concretizar. Freud chamou de conversão esse mecanismo por meio do qual conflitos reprimidos e não-expressos verbalmente encontram uma expressão corporal. A conversão não se manifesta apenas como convulsões. Pode se expressar também por meio de sintomas como crises de falta de ar, paralisias, cegueira, 44 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
surdez, dores de cabeça, gravidez psicológica, dores musculares ou uma incapacidade de ingerir alimentos a que se dá o nome de bolo histérico. Tais sintomas tornam-se, eles próprios, os problemas a serem tratados, enquanto os conflitos que os originaram permanecem escondidos. A conversão é um mecanismo inconsciente de defesa que procura evitar o sofrimento.
ão é só no HC de São Paulo que estão sendo detectadas manifestações como essas, que os psicanalistas chamam de histeria, os neurologistas de distúrbio conversivo e os psiquiatras de transtorno dissociativoconversivo. Em oito centros médicos especializados de Goiás, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul que contam com a videoeletroencefalografia (V-EEG), um exame usado para diferenciar o que é epilepsia e o que não é, são diagnosticados por ano cerca de cem casos das chamadas crises não-epilépticas psicogênicas, segundo estudo publicado em 2004 no Journal of Epilepsy and Clinicai Neurophysiology. Além da histeria, essas crises podem também aparecer em outros distúrbios psiquiátricos como os transtornos bipolar, de pânico ou de ansiedade ou ainda em distúrbios alimentares como anorexia e bulimia. No HC paulista, porém, tem prevalecido a histeria, diagnosticada em 25 das 26 pessoas que terminaram o tratamento psicoterápico de um ano. A equipe de neurologia encaminhou 35 pessoas com crises psicogênicas à divisão de psicologia, mas algumas interromperam o tratamento e outras nem começaram. Predominam as mulheres, que respondem por 23 casos, com raros homens. Além de Oliveira, o primeiro a ser diagnosticado com histeria por esse grupo do HC, havia outro, também de 47 anos, que apresentava tanto as crises epilépticas quanto as de origem emocional. São elas, as mulheres com histeria, que contam: os ataques em geral começam com um calor que sobe pelo corpo
e rapidamente chega à cabeça. As convulsões fazem tremer o corpo todo e as levam ao chão. Logo depois não vêem mais nada, desmaiam e, ao acordarem, não se lembram de nada. A maioria tem as crises sempre perto do período menstrual, um dos momentos de maior oscilação dos níveis dos hormônios sexuais. Mas pode não ser uma simples relação de causa e efeito entre variação de hormônios e ataques histéricos. É também nesse momento, lembram os psicanalistas, que a natureza feminina se revela com mais clareza e dor. Falta de ar - "Freud já dizia que a histeria está associada à sexualidade, não só das mulheres, como ele próprio demonstrou, mas também dos homens, que não estão livres dos conflitos inconscientes", comenta Mara Lúcia. Ainda hoje, pessoas diagnosticadas com histeria muitas vezes relatam episódios de abusos físicos ou sexuais - nem sempre reais, como Freud descobriu ao notar que fantasias dessa natureza também provocavam sintomas histéricos em suas pacientes. Foi o que aconteceu com uma mulher de 39 anos - chamemos de Dolores -, encaminhada para avaliação médica no HC com suspeita de asma. Tinha crises de falta de ar, fechamento das cordas vocais, tosse e chiado na laringe, mas os exames não registraram nenhum sinal de asma. Ao longo do tratamento psicológico no HC, ela apresentou paralisia de uma perna, tosses intensas e a respiração entrecortada ao falar de momentos difíceis de sua vida para o psicanalista Niraldo de Oliveira Santos: ela acreditava que tinha sofrido abuso sexual do pai. Mais tarde, à medida que as sessões prosseguiam, ela própria concluiria que o abuso sexual que relatara não tinha sido real. "Para ela, ainda menina", concluiu Santos, "o abraço forte que o pai lhe dava, quando chegava alcoolizado e discutia com a mãe, significava um risco e a aproximava do desejo sexual". Surgia então o medo do desejo, censurado por meio do fechamento das cordas vocais. Ao fim do tratamento, Dolores recuperou a voz e hoje canta no coral da igreja que freqüenta. Ainda que se esconda por trás de muitas máscaras, a histeria se revela principalmente nas clínicas de neuro-
Revolução intelectual na Paris de 1795: o médico e psiquiatra Philippe Pinei ordena que fossem retiradas as correntes dos pacientes do hospital Salpêtrière, até então um depósito de loucos e malfeitores
logia. Estima-se que uma em cada quatro pessoas previamente diagnosticadas com epilepsia em centros médicos especializados tenha na verdade crises não-epilépticas de origem emocional e uma em cada três, os dois problemas. De acordo com o estudo do Journal of Epilepsy and Clinicai Neurophysiology, pelo menos 60 mil pessoas devem apresentar crises não-epilépticas de origem emocional no Brasil, ainda que sejam tratadas geralmente como epilépticas. Desatenção - "No mundo todo", comenta Luciano De Paola, diretor do programa de epilepsia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná e coordenador desse levantamento, "as crises não-epilépticas são muito mais comuns do que poderíamos imaginar, mas ainda ouvimos falar muito pouco delas no Brasil". André Luís Fernandes Palmini, professor de
neurologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, acredita que muitos equívocos seriam evitados com uma conversa um pouco mais longa e cuidadosa com o paciente e seus familiares. "Quando as consultas são muito rápidas, os médicos geralmente deixam de diagnosticar as crises não-epilépticas", diz ele. "Não podem achar que uma pessoa tem epilepsia só porque tem convulsões." A falsa epilepsia pode escapar de uma anamnese - entrevista - apressada com o médico, mas dificilmente não é detectada pela videoeletroencefalografia. Esse exame, que registra a atividade elétrica do cérebro simultaneamente às imagens da pessoa, começou a ser usado há poucos anos e está dando as reais dimensões desse problema, delineado também por meio de outras formas de diagnóstico, em especial a ressonância magnética.
Na videoeletroencefalografia, os pacientes, com eletrodos fixados na cabeça e sem medicamentos, ficam de um a sete dias em um quarto, em frente de uma câmera que filma seus movimentos. Consegue-se descobrir se as convulsões são de origem neurológica ou emocional acompanhando-se, primeiramente, o eletroencefalograma, que registra picos da atividade elétrica dos neurônios quando se trata de crise epiléptica e se mantém normal nas outras situações. Outro sinal importante é a duração da crise: convulsões epilépticas duram em média um minuto, enquanto as psicogênicas chegam a uma hora. Também se avalia o conjunto de movimentos: nas crises de origem emocional, a cabeça se move intensamente de um lado a outro, os braços tremem assimetricamente, a cintura pélvica se põe à frente - é a chamada impulsão pélvica - e o corpo se curva, formando o que se PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 45
denomina arco histérico. Mas não se recomenda confiar nas primeiras impressões: a impulsão pélvica, por exemplo, também pode ocorrer em um tipo de epilepsia que se origina na região frontal do cérebro, segundo Elza Márcia Targas Yacubian, professora de neurologia e chefe do ambulatório de epilepsia do Hospital São Paulo, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entre as 120 pessoas que passaram pela videoeletroencefalografia nos últimos dois anos na Unifesp, pelo menos 20 apresentavam crises não-epilépticas psicogênicas e ao menos seis de histeria. No hospital da Universidade Federal do Paraná e no Hospital XV, ambos em Curitiba, os neurologistas registraram outros 45 casos de crises não-epilépticas, embora sem estatísticas mais detalhadas. A experiência acumulada e o trabalho conjunto dos profissionais da saúde estão revelando o perfil de quem carrega essas formas de sofrimento que faz perder o controle dos movimentos. "As pessoas com crises psicogênicas têm dificuldade para verbalizar as angústias que sentem", comenta Gerardo de Araújo Filho, psiquiatra da Unifesp. "Suas relações pessoais são marcadas por chantagens e pela teatralidade." Enquanto as pessoas com epilepsia têm convulsões em qualquer lugar e a qualquer hora, até mesmo dormindo, homens e mulheres com histeria parecem intuir as circunstâncias mais adequadas, como se precisassem de platéia ou de atenção. Para o psicanalista Christopher Bollas, autor do livro Hysteria, "uma imagem indelével do sofrimento do histérico" são as moças desmoronando nos braços do neurologista francês JeanMartin Charcot, um dos pioneiros da pesquisa desse distúrbio, ao qual atribuía uma origem hereditária. Freud, discípulo de Charcot no Hospital Salpêtrière, em Paris, não se contentou com essa explicação e estudou febrilmente até concluir que as convulsões resultavam de processos inconscientes que desapareciam quando os conflitos se tornavam conscientes. Criando um novo método de tratamento, baseado na evocação de idéias que propiciava a 46 • NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
emergência desses conflitos, Freud aliviou os sintomas de histeria de uma mulher de 21 anos, Bertha Pappenheim, que ele chamou de Anna O. em seus relatos, fazendo-a reviver experiências desagradáveis, por meio da hipnose. Na época, a histeria era considerada um espetáculo essencialmente feminino. "É como se o sofá tivesse sido inventado para segurar o cadente corpo do histérico", escreveu Bollas.
) comparecerem diante do médico, mulheres e homens com histeria apresentam nas marcas do próprio corpo um enigma a ser revelado e que dá sentido à sua própria existência. Em abril de 2000, Milberto Scaff, professor de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ligada ao HC, sentiu-se desafiado ao tratar uma jovem de 16 anos da classe alta paulistana cujas crises duravam até uma hora. Sem detectar sinal de epilepsia nos exames, ele a encaminhou à divisão de psicologia. Antes de receber o diagnóstico de histeria, ela exibiu-se com o rosto malhado de mertiolate vermelho, embora tivesse feito só um pequeno corte, em mais uma de suas convulsões. "Podemos compreender as constantes visitas dos histéricos aos hospitais", escreveu Bollas, "como um contínuo apelo para que a mãe volte a cuidar deles e para que ela redescubra o corpo do bebê como algo agora desejável". Segundo a psicanálise, as origens da histeria não remetem apenas à mãe, mas também ao pai: ambos podem criar as condições para que se desenvolva na filha ou no filho uma identidade que não é a deles própria. "A histérica é filha de uma outra histérica que não conseguiu valorizar sua própria feminilidade e, em conseqüência disso, teria transmitido uma visão de menos valia com relação ao corpo", assinalam Silvia Alonso e Mário Fuks, professores do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, no livro Histeria. Fermenta-se também a histeria quando o pai se omite de suas funções e não impõe os limites que ajudam
a definir a identidade e os papéis sociais e sexuais dos filhos - deixa assim de realizar o que os psicanalistas chamam de castração simbólica. Pode agir desse modo por se assustar "com a possibilidade de que o reconhecimento da sexualidade de sua filha o conduza ao incesto". Freud mostrou que a origem da histeria encontra-se na repressão sexual. E hoje? "Continua sendo, como sempre foi, mesmo antes de Freud", diz o psicanalista Rubens Marcelo Volich, professor do Instituto Sedes Sapientiae. "As formas de repressão sexual apenas se transformaram." Segundo Freud, a sexualidade é mais ampla que a atividade sexual em si: transcende a função biológica de preservação da espécie e compreende todo o circuito de prazer e de desprazer que envolve o desejo e a experiência humana. Atualmente, conforme Volich, "apesar da liberalização sexual e da banalização do sexo e do erotismo, a sexualidade permanece sendo uma experiência potencialmente perturbadora". É justamente essa característica, segundo ele, que a torna uma fonte de conflitos e, portanto, passível de ser reprimida. Uma das conseqüências possíveis é a histeria. De acordo com a psicanálise, a organização histérica, entendida como um modo de funcionamento psíquico, caracteriza-se por uma busca permanente, incansável e inconsciente de uma pessoa em ser o objeto do desejo de outra. Por isso é que uma mulher ou um homem com histeria encontram-se freqüentemente envolvidos em triângulos amorosos, cuja configuração nem sempre é a mais óbvia. Segundo Volich, muitas vezes a mulher não deseja o homem de uma rival, mas sim o lugar que ele ocupa no desejo da mulher dele, apropriando-se assim do papel que ele tem para a rival: inconscientemente ela quer, portanto, que a rival a deseje. É por causa dessa relação que estabelece com o desejo do outro que os tremores e os desmaios das histéricas nos braços de Charcot podem ser compreendidos como expressões de uma entrega incondicional ou um supremo gesto de amor, ainda que à custa da renúncia da própria identidade ou de danos à saúde. "O que na histérica se apresenta como identidade é, na verdade, uma montagem ou uma caricatura do que
A lição clínica na Salpêtríère, de André Brouillet: Charcot exibe para uma platéia de médicos uma mulher com histeria, cujo erotismo despertava paixões e hostilidade
ela imagina que o outro espera", diz Volich. Uma pessoa com histeria vive sem um lugar próprio, atrelada ao suposto desejo de outra pessoa. A vida é um vazio insuportável. Silvia Alonso e Mário Fuks descrevem os mecanismos pelos quais se gera e se alimenta a histeria hoje. Nos homens, eles podem ser percebidos, por exemplo, por meio da preocupação excessiva em cultivar um corpo bem torneado e pela busca frenética por superar desempenhos. Ainda segundo essas vertentes da psicanálise atual, nas mulheres esses mecanismos se evidenciam por meio da ânsia em apresentar-se sempre impecavelmente belas, de acordo com as tendências mais recentes da moda. "A tentativa de corresponder a qualquer preço a um ideal de beleza", diz Volich, "pode ser uma forma de moldar a identidade e de tentar preencher um vazio existencial". A histeria masculina se manifesta também nas
compulsões para o jogo, nas crises de cólera ou nas brigas e na violência contra a mulher. "Enquanto as histéricas são encontradas nos consultórios", lembram os autores do Histeria, "os homens histéricos são freqüentemente achados nas delegacias". Manhã nublada - A histeria, que agora sai das sombras e volta a ser abertamente reconhecida, cria uma situação desconfortável para médicos, principalmente neurologistas e psiquiatras, que por tanto tempo e por diversas razões deixaram de enxergar a origem emocional das crises, acreditando que a histeria havia morrido. Há desconforto também para os pacientes, que convivem com a angústia, o descrédito social e a auto-estima debilitada à medida que peregrinam por serviços de saúde, passam por tratamentos desnecessários e tomam remédios que não funcionam. O psiquiatra e psicanalista
Fábio Hermann, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e membro da equipe do HC, vê nessa nova situação, porém, "uma oportunidade para desenvolver investigações em alta teoria, numa área estagnada por repetição teórica". Duas coisas parecem certas. A primeira é que só uma equipe multiprofissional, com neurologistas, psicólogos e psiquiatras, conseguirá encontrar as melhores formas de lidar com essas expressões do inconsciente. A outra é que a histeria ainda instiga, como se as pessoas com esse desequilíbrio emocional desafiassem os especialistas com um enigma cuja solução lhes libertaria a voz ou completaria um gesto. A paralisia do braço de Visconde Oliveira talvez espelhe as dores de um gesto contido: o de salvar um amigo que resolveu nadar no Riacho Grande, na Grande São Paulo, em uma manhã nublada de uma quinta-feira de 1980, e morreu afogado • PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 47
CIÊNCIA er um bebê dormindo ou um rosto feliz, que transmita paz, pode provocar relaxamento físico ou despertar o desejo de aproximação. Inversamente, imagens de mortos ou de corpos feridos causam tensão e acionam reações de defesa, como se estivéssemos diante de um perigo iminente, de acordo com um estudo coordenado pela neurobióloga Eliane Volchan, professora do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eliane e seu grupo chegaram a conclusões como essas após realizar um experimento no qual 48 homens observavam 72 imagens divididas em três categorias: a primeira era das cenas positivas, com pessoas nadando, correndo, jogando bola ou praticando esportes de modo geral; a outra era das neutras, com fotos de objetos inanimados como um telefone, um hidrante ou uma batedeira de bolo; e a terceira eram das imagens negativas, com corpos de pessoas sem braços ou pernas, mortas ou com ferimentos graves. Os participantes desse estudo permaneciam em pé, com os pés juntos e descalços e os braços estirados ao longo do corpo, sobre uma base metálica, chamada plataforma de força. Esse dispositivo, semelhante a uma balança, registra as oscilações do corpo diante das imagens, exibidas sucessivamente por três segundos na tela de um computador, sem nenhum intervalo entre elas. Neste trabalho, realizado por Tatiana Azevedo sob a orientação de Eliane, em conjunto com pesquisadores do Instituto de Biofísica e da Escola de Educação Física da UFRJ, os sutis movimentos do corpo registrados pela plataforma, somados à variação da freqüência dos batimentos cardíacos, revelaram as mudanças na postura corporal causadas pelos três grupos de imagens. Entre os resultados, publicados em maio na revista Psychophysiology, o que mais chama a atenção é que as cenas de desastres ou de mutilações provocaram imobilidade: diante delas os observadores oscilavam menos para os lados do que quando estavam em frente das imagens neutras ou prazerosas. Registrou-se também aumento da tensão muscular - o chamado freezing ou congelamento, já investigado em roedores e agora confirmado em seres humanos. "O período de imobilidade e tensão é caracterizado pelo aumento de atenção e de vigilância e pela redução da freqüência de batimentos cardíacos, como se o observador se sentisse diante de um perigo iminente", comenta Eliane. Instinto de sobrevivência - "Nós e outros animais temos uma reação de congelamento diante de ameaças distantes ou ainda não concretas", diz ela. 48 ■ NOVEMRBODE2005 ■ PESQUISA FAPESP117
NEUROFISIOLOGIA
0 impacto do horror Estudo dimensiona a tensão gerada por imagens violentas
Trata-se de uma resposta adaptativa: diante de um predador que ainda não detectou a presa, a melhor coisa a fazer, se fôssemos a presa, é ficar imóvel e não chamar a atenção. Segundo a pesquisadora, a visualização de fotos em laboratório poderia corresponder a esse contexto, por causar a impressão de que o perigo está ali, mas não é concreto. "Se o perigo se tornar concreto, provavelmente ocorrerá uma ação, como os movimentos de fuga, e a aceleração dos batimentos cardía-
variam entre as pessoas. Nesse experimento nem todos os observadores das imagens negativas mostraram plenamente as reações típicas de congelamento, que aparentemente dependem da habilidade de cada pessoa em lidar com os estímulos desagradáveis. Por meio de outro estudo, publicado em março do ano passado no Brazilian Journal of Medicai and Biological Research, Mirtes Garcia Pereira, atualmente na Universidade Federal Fluminense (UFF), Eliane e outros pesquisadores da UFRJ e da UFF já haviam verificado que as pessoas tornam-se mais lentas para detectar um círculo de luz depois de expostas a fotos de corpos mutilados.
cos", diz ela. "Ambas as reações, de congelamento e de fuga, fazem parte do nosso repertório ancestral de defesa, assim como do de outros animais." Outros estudos já haviam indicado que a apresentação de imagens de corpos feridos ou incompletos aumenta a liberação de hormônios como o cortisol e o reflexo de sobressalto - o susto. O cérebro humano parece ter preservado mecanismos ancestrais de defesa, que são acionados por situações específicas, mas essas respostas
0 medo represado - Com estudos como esses, Eliane e outro grupo com que trabalha em conjunto, coordenado por Ivan Figueira, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, estão particularmente interessados em conhecer melhor a variabilidade das respostas emocionais das pessoas em situações mais dramáticas, como o transtorno do estresse pós-traumático. Sabe-se que alguém que viveu uma situação aterrorizante envolvendo risco de morte, como um assalto, um acidente ou um estupro, pode ter dificuldade para livrar-se do medo ou das recordações que podem vir à tona com uma conversa ou um filme na televisão. A memória da situação traumática pode levar ao descontrole emocional, mas ainda não se sabe como exatamente a memória pode ser acionada nem quais as melhores alternativas para combater esse problema. Em uma linha de trabalho complementar, a equipe de Eliane chegou a outras conclusões interessantes sobre as mudanças na postura do corpo em situações que sinalizem segurança. Uma das pesquisadoras desse grupo, Lívia Facchinetti, sob a co-orientação de Claudia Vargas, do Instituto de Biofísica e uma das co-autoras desse estudo, verificou que a exposição de fotos agradáveis de bebês e de famílias mudou a postura corporal de um modo que surpreendeu os pesquisadores: o centro de gravidade do corpo deslocou-se um pouco para trás, indicando que as pessoas se afastaram ligeiramente. "Ainda que tensos, esses pequeníssimos mas significativos movimentos registram a predisposição para trazer algo ou alguém para perto", diz Eliane. Ela e outros especialistas em reações orgânicas causadas por imagens estão chegando à conclusão de que os seres humanos e mesmo outros animais vasculham constantemente o ambiente à procura de sinais de perigo ou de segurança. "A detecção de pistas de ameaça ativa o sistema defensivo", diz ela, "enquanto a detecção de pistas de segurança promove as interações sociais". • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMRBO DE 2005 ■ 49
CIÊNCIA GENÉTICA
Falsa majestade Genes explicam mistério de abelhas rainhas que não conseguem se reproduzir FABRICIO MARQUES
vida social das abelhas, como se sabe, depende da formação de duas castas do sexo feminino, as rainhas e as operárias. Esta distinção geralmente ocorre devido ao tipo de alimentação oferecido às larvas. O caso típico é o da Apis mellifera, da classe das abelhas com ferrão, a grande fornecedora de mel, cera e própolis. Algumas poucas eleitas são brindadas durante toda a fase larval com geléia real, superalimento composto por vitaminas, ácidos orgânicos essenciais e compostos protéicos. Dessa forma, tornam-se rainhas. Vivem até cinco anos e chegam a pôr até 2 mil ovos por dia. As demais recebem a geléia real só nos primeiros três dias de existência. Tornam-se operárias, vivem bem menos - algo como 45 dias - e passam a curta existência assoberbadas por tarefas compartilhadas na colméia. As abelhas sem ferrão, nativas do Brasil, têm características sociais similares, mas apresentam diferenças na forma como a cria é alimentada. As operárias preparam as células de cria de modo peculiar. As futuras rainhas são brindadas com 2,5 a 4 vezes mais alimentos do que as futuras operárias. A grande exceção à regra são as abelhas sem ferrão do gênero Melipona, encontradas em todos os biomas neotropicais. Nelas, todas as células de cria têm tamanho idêntico, assim como a quantidade de alimento é se50 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
melhante. Há quase um século a ciênticularidade. Em 1903, o brasileiro Helniut von Ihering observou que havia um excesso de rainhas na cria das melíponas - na razão de uma rainha para cada três operárias. No final dos anos 1940, o geneticista Warwick E. Kerr teorizou um modelo de genética mendeliana sugerindo que a razão observada nas castas poderia ter uma base genética. Mas isso nunca pôde ser devidamente comprovado, porque a oferta de alimentos também parecia ter um papel no desenvolvimento dessas abelhas. Quando faltava comida na colméia, o número de rainhas na cria diminuía. E, conforme observou na década de 1970 o pesquisador Lúcio Antônio de Oliveira Campos, da Universidade Federal de Viçosa, era possível produzir uma quantidade ainda maior de rainhas quando as larvas eram tratadas com hormônio juvenil sintético. Esse hormônio típico de insetos é produzido por glândulas associadas ao cérebro. Ainda assim, embora tivessem aparência de rainhas, a maioria delas não conseguia reproduzir-se - o que só fez aumentar o enigma.
Pois esse mistério cie um século começa a se desfazer com a ajuda da biologia molecular. A pesquisadora Carla Cristina Judice Maria debruçou-se sobre a Melipona quadrifasciata em sua tese de doutoramento no Departamento de Genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), orientada por Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp. Seu interesse, a princípio, resumia-se a comparar a programação dos genomas de rainhas e operárias de Melipona e de comparar o seu padrão de expressão gènica com as castas de Apis mellifera. Ao todo, foram anotados 1.278 ESTs, fragmentos de genes ativos que, em inglês, são denominados Expressed Sequence Tags. Esses pedaços servem para anotar genes que carregam a receita usada pelas células para fabricar suas proteínas. Ao validar os resultados, a pesquisadora resolveu não somente quantificar os níveis de expressão gènica para rainhas e operárias cria< turalmente, mas incluiu também um outro grupo de controle. Decidiu investigar rainhas produzidas por aplicação do hormônio juvenil sintético. Derperdício - A expressão dos genes nos três grupos evidenciou a possível origem do problema das rainhas induzidas por hormônio terem dificuldades em formar colônias. Embora tivessem aparência nobre, essas rainhas artificiais apresentavam genes ativos com uma configuração mais próxima das operárias. "As operárias tratadas com hormônio juvenil conseguiam mimetizar o sistema endócrino das rainhas, mas sua programação genética permanecia semelhante à das operárias", diz Gonçalo Amarante. Verdadeiras ou artificiais, as rainhas do gênero Melipona quadrifasciata não têm exatamente uma vida folgada. Como naturalmente há rainhas demais, a sina de grande parte delas é trágica. A ;uns dias após a sua emergência das células de cria. São poucas as rainhas virgens
Operária do gênero Melipona quadrifasciata colhendo néctar: origem genética da divisão de castas
saiam, geralmente com um só macho. E mesmo essas rainhas dependem de uma circunstância rara para sobreviver, a criação de uma nova colônia separada da colônia-mãe. Apenas poucas con-
seguem reinar em nova colônia. Esse oespercucio talvez explique por que as colméias da Melipona quadrifasciata sejam bem mais modestas em tamanho que as de outras abelhas sem ferrão. Enquanto Gonçalo Amarante, da Unicamp, acompanhou a busca dos genes expressos, o pesquisador Klaus Hartfelder, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, deu suporte à doutoranda Carla no campo da entomologia, ramo da zoologia que estuda os insetos. A descoberta de Carla, que se atem aos genes ativos em determinadas táses cie desenvolvimento, pode ser associada agora aos estudos em andamento na USP em Ribeirão Preto que procuram estabelecer marcadores genéticos para finalmente comprovar a tese de Warwick Kerr. O interesse dos pesquisadores brasileiros nesse campo transcende o desafio de desvendar o enigma das castas em Melipona quadrifasciata. A curiosidade consiste em descobrir as bases moleculares do desenvolvimento e do comportamento animal de modo geral. A tese de Carla rastreou a expressão de um conjunto de genes, os quais as abelhas compartilham com outras espécies. Um dos genes foi o dunce, com maior expressão nas operárias e nas rainhas artificiais do que nas rainhas. O mesmo gene é encontrado em moscas drosófilas e, nelas, está ligado ao comportamento cooperativo e ao acasalamento. "Provavelmente, comportamentos comuns a várias espécies têm uma base molecular comum", afirma Gonçalo Amarante. O achado ganha importância porque recentemente se observou que a Melipona quadrifasciata não é um caso isolado na determinação genética da formação de rainhas e operárias. Nos últimos cinco anos pelo menos quatro trabalhos internacionais evidenciaram pos de formigas. A iminente divulgação do genoma completo da Apis mellifera, a abelha do mel, deverá trazer mais elementos que permitam comparar diferentes espécies. "A Melipona é bom modelo para comparar com a Apis", diz Klaus Hartfelder. "Esse tipo de pesquisa é importante para tirar conclusões sobre passos evolutivos que geraram sistemas sociais tão complexos como os de abelhas", afirma. • PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 51
CIÊNCIA ENTOMOLOGIA
Um zoológico na cama Centenas de milhares de ácaros espalham-se pelos colchões e provocam crises de asma e rinite
RICARDO ZORZETTO
les estão em toda parte: na terra, no ar e até mesmo na água. Mas é em casa que os ácaros realmente incomodam. Mais precisamente, na cama. Com poucos meses de uso, os colchões abrigam de centenas de milhares a milhões desses animais aparentados das aranhas e dos carrapatos, quantidade suficiente para causar alergias e disparar crises de rinite, asma ou conjuntivite. Em geral menores que a ponta de uma agulha, os ácaros encontraram no quarto e em outras peças da casa o verdadeiro paraíso. Ali a temperatura é estável, o alimento é abun52 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
dante e a umidade do ar oscila pouco. Em condições tão favoráveis, em pouco tempo eles infestam cortinas, tapetes, sofás e, para o desespero dos alérgicos, a cama, como constatou a equipe do entomologista Ângelo Pires do Prado, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Com um aspirador de pó em mãos, Prado, a bióloga Raquel Binotti e o médico alergista Celso Henrique Oliveira partiram para uma faxina científica em salas, quartos e despensas de 58 residências da cidade de Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo. O objetivo era identificar quais das 20 mil espécies de ácaros conhecidas eram mais comuns por ali. Motivos não faltavam: estima-se que os ácaros encontrados na poeira domiciliar provoquem 90% das alergias respiratórias - rinite, faringite e asma - que atingem de 18 milhões a 30 milhões de brasileiros. "Embora essa
amostra não fosse representativa de toda a cidade, ela nos deu uma boa idéia da situação", diz Oliveira. E a situação não é nada boa. Vasculhando a poeira coletada, a equipe da Unicamp constatou que as residências abrigam um jardim zoológico acarino. Raquel identificou 18 espécies diferentes, que se espalham em quantidades variadas pelos diferentes cômodos. Os ácaros das espécies Dermatophagoides pteronyssinus e Dermatophagoides farinae - que se alimentam de fungos, bactérias e queratina, a proteína que dá resistência à pele - foram encontrados em 88% das amostras de poeira colhidas dos colchões. Cerca de 40% dos colchões estavam infestados pela espécie predadora Blomia tropicalis, que usa suas pinças avantajadas para sugar a hemolinfa - o fluido que faz as vezes de sangue - de outros ácaros até deixá-los secos como uvas-passas.
No quarto e na sala - Os ácaros estão em menor quantidade nas cortinas e nas despensas de alimentos. Havia em média 320 ácaros em cada grama de poeira da cortina da sala, 350 na do quarto e 450 na das despensas de alimentos, local preferido de ácaros como o Tyrophagus putrescentiae da página seguinte, fotografado pela equipe de Edna Haapalainen, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Já os tapetes abrigavam cerca de 570 ácaros por grama de poeira na sala e 750 nos quartos, concentrações suficientes para causar alergia. "Cerca de cem ácaros por grama de poeira deixam o sistema imunológico sensibilizado, ou seja, provocam alergia", diz Oliveira. "A partir de 500, as pessoas começam a apresentar crises alérgicas." Fica fácil entender por que às vezes se começa a espirrar só de mexer nos tapetes ou nas cortinas da casa.
Detalhados em uma série de artigos científicos publicados de 2000 para cá, os dados desse estudo indicam que os lugares preferidos dos ácaros são também os nossos: o sofá e a cama. Cada grama de poeira do sofá continha cerca de 900 ácaros. Mas o problema estava mesmo na cama. Na superfície do colchão em contato com o corpo essa concentração era de 950, enquanto junto ao estrado esse índice chegou a 3.900 - em um caso extremo, havia 40 mil ácaros em cada grama de poeira. Possivelmente é essa a razão por que quem sofre de rinite sente o nariz entupir e quem tem asma respira com mais dificuldade tão logo deita a cabeça no travesseiro. Não se sabe ao certo o motivo dessa diferença de concentração. A suspeita principal é que a parte inferior dos colchões concentre mais ácaros porque é mais protegida da luz e menos manipulada a cada troca de lençol. "Talvez se
conheça essa razão em breve, quando surgirem os resultados de estudos escoceses que tentam reproduzir em colchões em laboratório o ambiente em que os ácaros vivem", comenta Prado. Já a provável causa dessa preferência pela cama é a mesma que permite aos ácaros se proliferarem livremente no sofá: comida à vontade. O sofá acumula restos de alimentos e pele humana, enquanto a cama, onde se passa cerca de 8 horas por dia, é um celeiro de pele morta: a cada semana o ser humano perde cerca de 5 gramas de pele que se acumula no travesseiro e no colchão. Por esse motivo, o melhor é proteger o colchão com uma capa de tecido revestida com um material que impede a passagem dos ácaros. Sem esse cuidado, quatro meses são suficientes para que um colchão novo em folha tornese infestado, uma vez que cada fêmea produz cerca de 200 filhotes durante os PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 53
Como se livrar dos ácaros Trazidos para as residências provavelmente por pássaros, os ácaros se adaptaram bem ao ambiente doméstico, onde encontraram condições favoráveis à reprodução e ao desenvolvimento. Todos não é possível eliminar, mas medidas simples ajudam a reduzir - e muito - o número desses indesejados bichos em casa.
Habitantes indesejados: a espécie Tyrophagus putrescentiae (acima) consome restos de alimentos e a Dermatophagoides farinae, resíduos de pele
seus cem dias vida. No restante da casa, a maneira mais eficaz de eliminar esses bichos é a limpeza com aspirador de pó - manter o ambiente arejado e livre de umidade excessiva também ajuda. Alergias - Embora integrem com as aranhas e os escorpiões a classe dos aracnídeos, animais com oito patas e a cabeça e o tórax fundidos em um só órgão, o cefalotórax, os ácaros não são, por si sós, nocivos aos seres humanos - eles, aliás, têm um papel biológico importante no controle de insetos e na fertilização do solo. As reações alérgicas que provocam são disparadas por proteínas encontradas em seu esqueleto e suas fezes. Descoberta na década de 1980, por Thomas Platts Mills, da Universidade da Virgínia, Estados Unidos, uma dessas proteínas, a Der pi, aciona células do sistema de defesa do organismo e provoca inflamação das vias 54 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
aéreas. Por essa razão é utilizada em concentrações muito baixas em vacinas contra a alergia a ácaros, indicadas para quem não melhora com o tratamento à base de antialérgicos nem com o controle de ácaros no ambiente. Estudiosos desses animais desde a pós-graduação, quando se conheceram e casaram, Oliveira e Raquel mantêm hoje uma criação própria de ácaros. Em seu laboratório particular, o casal cultiva em garrafas plásticas especiais armazenadas em estufas quatro espécies: Dermatophagoides pteronyssinus, Dermatophagoides farinae, Tyrophagus putrescentiae e Suidasia pontifícia. Eles pretendem usar extratos de proteínas extraídas dessas espécies na produção de uma vacina mais eficaz que as nacionais já existentes. Em um estudo de 2004 na Revista Brasileira de Alergia e Imunopatologia, pesquisadores de São Paulo, Paraná, Pdo de Janeiro e Minas Gerais testaram oito vacinas antialérgicas produzidas a partir de extratos do ácaro D. pteronyssinus - sete delas fabricadas no país. Nenhuma das vacinas nacionais apresentou concentração de Der pi ou Der p2 comparável à do extrato importado. É um sinal de que não devem produzir a resposta imune mínima indicada pela Organização Mundial da Saúde. •
Deixe o colchão exposto ao sol por meia hora a cada 20 dias e, se possível, troque-o após cinco anos de uso. Proteja os travesseiros e o colchão com capas de algodão ou microfibra revestidas de látex ou vinil e troque a roupa de cama ao menos uma vez por semana.
Faça a limpeza diária da casa com aspirador de pó e panos umedecidos e prefira pisos cerâmicos a tapetes e carpetes.
Mantenha o ambiente ventilado por ao menos meia hora por dia e evite o uso de umidificadores de ar.
Evite o consumo de alimentos e a presença de animais domésticos, plantas ou bichos de pelúcia na sala e no quarto.
Armazene em sacos plásticos as roupas que permanecerão sem uso por longos períodos e prefira roupas de fibras naturais às de pele ou lã.
CIÊNCIA
GEOLOGIA
A Terra coberta de gelo Há 630 milhões de anos Amazônia era um deserto debaixo de geleiras
17 | ■
FRANCISCO BICUDO
m vez de florestas densas com I seringueiras, ^Ê castanheiras e —BBL———afldfl outras árvores com dezenas de metros de altura, a Amazônia de 630 milhões de anos atrás deve ter sido uma vasta planície coberta por uma camada de gelo de até 1 quilômetro de espessura, cercada por mares com geleiras e icebergs. Sua localização também parece ter sido diferente da que se imaginava. De acordo com a reconstituição da Terra apresentada há cerca de 30 anos pelo geólogo canadense Paul Hoffman, da Universidade Harvard, Estados Unidos, a Amazônia estaria próxima ao pólo Sul. Mas geólogos de São Paulo, do Amazo-
nas, de Pernambuco e do Pará questionam esse modelo clássico da geologia e revelam que a Amazônia estava, na verdade, bem próxima do trópico de capricórnio - distante da posição anterior pelo menos 4,5 mil quilômetros, quase uma vez e meia a distância de Manaus a São Paulo em linha reta - onde as temperaturas deveriam ser mais altas. "A Amazônia se encontrava em região intertropical, a 22° de latitude, em uma posição semelhante à atualmente ocupada pelo Estado de São Paulo", afirma Afonso Nogueira, geólogo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), um dos integrantes da equipe que contou com pesquisadores do Instituto de Geociências e do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas
da Universidade de São Paulo (USP), e das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e do Pará (UFPA). Mas como poderia haver gelo perto do trópico? Não foi difícil encontrar uma explicação para esse aparente paradoxo. "As descobertas em território brasileiro reforçam a idéia do snowball Earth, uma teoria que postula que por duas vezes, uma delas há cerca de 630 milhões de anos, toda a superfície terrestre ficou debaixo de gelo, fazendo da Terra uma imensa bola de neve", afirma o geólogo Cláudio Riccomini, coordenador da equipe do Instituto de Geociências da USP. Nessa época começava a se formar um supercontinente chamado Gondwana, que reuniu blocos rochosos conhecidos como crátons que correspondem PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 55
às atuais América do Sul, África, Antártica, Austrália e índia. Um desses, o cráton amazônico, que mudou de lugar, compreende os atuais estados de Rondônia, Amazonas, Roraima e Amapá, o norte do Mato Grosso e o oeste do Pará, além das Guianas, do Suriname e de parte da Bolívia. As pistas de que havia uma capa de gelo também no cráton amazônico fo■p ram dadas pelos diamictitos glaciais. Formadas por lama e areia, essas rochas em geral apresentam coloração acinzentada e incluem fragmentos de rochas mais antigas, provenientes de regiões remotas. Alguns desses fragmentos apresentam faces relativamente planas, por vezes polidas, que guardam as estrias de abrasão glacial - ranhuras paralelas na rocha causadas pelo atrito com outras rochas, adquiridas quando esses fragmentos estavam na base de geleiras em movimento. Havia diamictitos glaciais bem preservados em uma pedreira de 40 metros de altura e 70 metros de extensão no município de Mirassol d'Oeste, sudoeste de Mato Grosso. Os geólogos da USP, em colaboração com os grupos de Alcides Sial, de Pernambuco, e Cândido Moura, do Pará, examinaram os isótopos de carbono e de estrôncio das amostras colhidas e confirmaram: ali havia preciosidades com mais de 600 milhões de anos. Registros magnéticos - Com os registros da passagem do gelo pela região vindo à tona, os pesquisadores trataram de tirar da gaveta o mapa desenhado por Hoffman. Não hesitaram em levantar a dúvida: a Amazônia estaria mesmo no pólo Sul? A resposta conclusiva emergiu do emprego de uma técnica que tem sido útil na reconstrução da Terra primitiva, o paleomagnetismo. "Quando as rochas se formam, o campo magnético terrestre fica registrado nelas", explica Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. "Na pedreira de Mirassol d'Oeste, a cada 1 ou 2 metros, usávamos uma furadeira es56 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
i
it
fi V
.
^^.
1 ■MUIT'
MééHMIBHI
Kâ»"
^gjf
pecial para coletar cinco ou seis amostras de rocha", lembra Eric Font, que então começava seu doutorado sob a orientação de Trindade. Em uma sala blindada magneticamente, as amostras - pequenos cilindros de 1 polegada de diâmetro por 2 centímetros de altura passam por sucessivos aquecimentos, para eliminar os registros mais recentes de magnetismo. As informações sobre o magnetismo original são então comparadas com o campo magnético terrestre, que funciona como um enorme ímã cravado no centro do planeta. "Pode-se assim descobrir a latitude do bloco e a posição em que ele se encontrava, em relação ao eixo da Terra, naquele passado remoto", diz Trindade. Com as novas evidências e a concordância do próprio Hoffman, que esO PROJETO Estratigrafia de seqüências do grupo Alto Paraguai, neoproterozóico cambríano da faixa Paraguai, Mato Grosso MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADOR
CLáUDIO RICCOMINI
- IG/USP
INVESTIMENTO
R$ 54.392,98 (FAPESP)
''VÂ i\
^^fe^
<d
teve em Mirassol d'Oeste em setembro de 2003, o mapa-múndi da Terra primitiva está sendo redesenhado. Assumindo uma nova posição, relatada no final de 2003 na revista Terra Nova, a Amazônia saltou do extremo sul do globo para a região tropical. Ao norte está a Laurentia, o bloco de rocha que forma a atual América do Norte. A leste encontram-se dois outros crátons: o do Congo-São Francisco, correspondente à parte oriental da África e ao Nordeste brasileiro; o outro é o cráton do Rio da Prata, que hoje forma a Região Sul do Brasil e o Uruguai. O mosaico se completava com os crátons da África Ocidental, da Antártica e da índia. "Como todos os blocos estavam muito próximos, seria difícil imaginar que a glaciação fosse um fenômeno local, restrito à Amazônia", diz Nogueira. "O mais lógico é que fosse de fato um acontecimento global." Outros estudos reforçaram essa idéia. Diamictitos glaciais semelhantes aos de Mirassol d'Oeste haviam sido encontrados na década de 1990 no Canadá e na Namíbia. Em maio deste ano uma equipe da Universidade de Oxford, Inglaterra, descreveu na revista Geology depósitos de rochas com características parecidas em Omã, no Oriente Médio, para as quais os dados paleomagnéticos também indicam sedimentação em baixa latitude. Acrescentando outras peças ao quebra-cabeça, os brasileiros aju-
na Geology, a equipe brasileira revelou um detalhe importante dessas rochas: tanto os diamictitos glaciais quanto os dolomitos apresentavam deformações que ocorreram quando ainda estavam moles, não consolidados. "Essas deformações evidenciam que as mudanças de condições glaciais para climas quentes foram muito rápidas", afirma Riccomini.
Das geleiras à água: ao lado, capa de dolomito sobre rocha de diamictito {detalhe no alto) indica aquecimento rápido do planeta
dam a consolidar o cenário da snowball, apresentado em 1992 pelo geofísico norte-americano Joseph Kirschvink. Sua idéia nasceu da inesperada descoberta de rochas glaciais no sul da Austrália, também formadas em baixas latitudes. Kirschvink arriscou então um palpite ousado, que aos poucos se confirma: há pouco mais de 600 milhões de anos, por causa da colossal concentração da massa continental em um só supercontinente, o Gondwana, seria maior a capacidade da Terra de refletir a luz solar. Como a superfície absorveria menos calor, a temperatura do planeta cairia bruscamente. Outra causa desse resfriamento seria a decomposição de silicatos, os minerais mais abundantes na crosta terrestre, em um processo que absorvia gás carbônico da atmosfera, um dos gases que contribuem para o efeito estufa e ajudam a aquecer a Ter-
ra. Essas premissas levaram Kirschvink a ver o planeta como uma gigantesca bola de neve - a snowball. Há um relativo consenso sobre a existência da glaciação, mas restam dúvidas sobre o tempo que a Terra teria permanecido coberta de neve. Os estudos feitos pelos brasileiros na Amazônia mostram que em apenas 100 mil anos, um tempo geologicamente curto, a temperatura da superfície do planeta pode ter passado de 50°C negativos para quase 60°C positivos. A conclusão veio da análise dos dolomitos, rochas de carbonato de cálcio e de magnésio, que cobriam os diamictitos de Mirassol d'Oeste. Formados em águas quentes do mar, os dolomitos dali são tão antigos quanto os diamictitos - é um sinal de que o gelo que cobria a Terra já estava totalmente derretido quando surgiram. Em outro artigo, publicado
Sempre viva - Mesmo com o gelo cobrindo quase toda a superfície terrestre, Thomas Fairchild, pesquisador do Instituto de Geociências da USP e coautor desse trabalho, não acredita que a vida sobre a Terra tenha desaparecido. "É difícil imaginar que a evolução dos animais, que já havia começado, tenha sido interrompida para depois ser retomada", comenta. Para ele, o processo que gerou a snowball, apesar de intenso, não teria sido tão radical. Devem ter resistido bolsões de mares, principalmente nas proximidades do equador, com nutrientes para os primeiros seres pluricelulares - microscópicos, ainda com tecidos pouco definidos, parentes dos atuais corais e esponjas. Só muito mais tarde, quando as temperaturas começaram a subir, é que a vida se espalhou pelos continentes e surgiram novas linhagens de animais e plantas. "A ausência de fósseis dificulta os trabalhos", diz Fairchild, "mas estamos aprendendo muito sobre a vida remota no planeta por caminhos paralelos". Na mesma pedreira de Mirassol d'Oeste foi encontrado um tipo de petróleo primitivo, talvez o mais antigo do Brasil. É um betume preto, viscoso como o mel e de aspecto vítreo. Representa um dos últimos estágios de maturação da matéria orgânica, encontrado em poros, bolsões e fraturas nas rochas carbonáticas. Segundo Nogueira, é outro sinal claro de vida terrestre imediatamente após a glaciação, já que o hidrocarboneto se forma a partir da decomposição de seres vivos. Esse material está sendo estudado em cooperação com pesquisadores da Universidade de Nancy, na França, em busca de informações sobre os organismos que o formaram. "Provavelmente, trata-se de bactérias primitivas", acredita Nogueira. Como não é uma jazida, esse petróleo não tem importância econômica. Seu valor é puramente científico. • PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 57
CIÊNCIA FÍSICA
No embalo das
bolhas Brasileiros e franceses mostram que o champanhe borbulha de quatro maneiras distintas MARCOS PIVETTA
espocar de um champanhe precede a fumarola que se derrama da garrafa, inebria o ambiente com seu perfume de brioche, leveduras, frutas brancas e nozes e anuncia o O próximo movimento: verter a bebida dourada e nervosa numa taça estreita e alta, aflüte dos franceses, cujas bordas são tomadas pela erupção de pequenas borbulhas que avançam sobre a superfície do líquido. Passados alguns instantes, a cortina de espuma que agitava a parte superior da flüte se desfaz quase por completo. Mas, das paredes inferiores do copo, continua a brotar a assinatura do mais famoso e imitado vinho, as bolhas de dióxido de carbono (C02), o popular gás carbônico, um dos dois subprodutos da fermentação dos açúcares outrora presentes na bebida (o outro é o álcool). Servido na taça adequada, e desde que ninguém se atreva a tomá-lo, o champanhe mantém sua efervescência, ainda que de maneira decrescente, por até cinco horas, garantem alguns especialistas - um teste de resistência que raramente deve ter sido feito fora dos laboratórios de pesquisa. Aliás, é justamente 58 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
da área científica, não da gastronomia, que vem o relato de uma recente descoberta sobre a dinâmica de produção das pérolas gasosas da bebida: físicos brasileiros e franceses mostraram que o processo de formação das esferas de gás carbônico obedece a uma seqüência de diferentes ritmos de borbulhamento em função da passagem do tempo. Enfim, desvendaram a matemática que embala os berçários de bolhas do champanhe, ou quase isso. Parece conversa fiada, mas o achado é sério - e requereu a análise de aproximadamente 16 mil bolhas de gás, provenientes de uma centena de garrafas de champanhe cedidas pela Moét & Chandon, o maior fabricante da bebida. Apesar de representativa do que ocorre no tumultuoso interior do saboroso líquido, a amostra é uma fração ínfima do total estimado de bolhas contido numa única garrafa de 750 mililitros de espumante, da ordem de 20 milhões de unidades. Os resultados do trabalho, cuja parte experimental foi feita na França e cuja interpretação dos dados ficou a cargo dos brasileiros, saíram na edição de setembro da revista científica Physical Review E, publicada pela Sociedade Americana de Física. Os pesquisadores serviram champanhe a 20°C em taças (12 graus acima do recomendado), filmaram e fotografaram com uma câmera ultra-rápida por meia hora as cadeias de bolhas que nasciam em certos pontos dos copos e,
por fim, estudaram as informações do experimento à procura de padrões que pudessem estar por trás da gênese das pílulas de efervescência. Encontraram. No mínimo, quatro regimes distintos de borbulhamento, que os físicos chamam de períodos, foram identificados. "Mas, em alguns casos, percebemos até sete períodos distintos", comenta o físico Alberto Tufaile, da Universidade de São Paulo (USP), estudioso de sistemas caóticos em meios líquidos e um dos autores do trabalho. De qualquer forma, o relato formal dos pesquisadores deu conta, por ora, dos quatro principais padrões de borbulhamento do champanhe. Inicialmente, assim que as taças recebem o líquido, as bolhas surgem aos pares, formam-se em grupos de duas em duas e dessa maneira ascendem até o topo; depois, aparecem de forma mais ou menos desordenada, em levas com um número variável de unidades, como se estivessem numa fase de transição; em seguida, originam-se em trios, em bandos de três em três; e, finalmente, brota apenas uma bolha de cada vez, num movimento tão monótono como o tique taque de um relógio {veja imagens ao lado). As oscilações no ritmo da efervescência nunca fogem a essa seqüência circular de regimes: depois do período em que fabrica uma esfera de gás carbônico por vez, o champanhe volta a gerar contas gasosas em duplas e assim por diante. O tempo de duração de cada um desses quatro padrões de borbulhamento pode variar de alguns segundos — logo após a bebida ser colocada no copo, quando a quantidade de gás carbônico no espumante ainda é elevada e os regimes se sucedem em alta velocidade - a alguns minutos, à medida que os níveis de CO2 no líquido vão se reduzindo. "Depois de aproximadamente 15 minutos que o champanhe foi servido numa taça, a quantidade de dióxido de carbono dissolvida na bebida é muito pequena para provocar mais alterações nos padrões de formação de bolhas", afirma o físico Gérard-Liger-Belair, da Universidade de Reims Champagne-Ardenne, outro au60 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
tor do estudo e especialista em bolhas de champanhe e de outras bebidas carbonadas. Nos pontos do copo capazes de gerar as pílulas de gás carbônico, os tais berçários de efervescência, predomina então o regime de produção de uma bolha gerada por vez.
uando a diferença entre dois padrões sucessivos se resume ao acréscimo de apenas uma unidade no ritmo de produção do objeto em análise, os físicos descrevem esse fenômeno com o nome técnico de rota de adição de período. Também encontrado no movimento das ondas dos mares, nas respostas complexas de neurônios e em circuitos eletrônicos, para ficar em apenas alguns exemplos, a rota de adição de período indica, às vezes, que se está na ante-sala de um sistema caótico. No caso do champanhe, ainda não dá para afirmar se há ou não caos no processo de formação de bolhas. "Precisamos de mais dados para chegar a essa conclusão e de experimentos mais longos, nos quais possamos controlar a temperatura e a quantidade de dióxido de carbono dissolvido no champanhe, entre outros parâmetros", pondera o físico José Carlos Sartorelli, da USP, que participou da análise do comportamento das borbulhas no vinho espumante. Aqui o termo caos, que na acepção popular é sinônimo de desordem e confusão, é empregado no sentido adotado por físicos e matemáticos: para designar sistemas dinâmicos não-lineares que, embora pareçam funcionar de forma aleatória, são regidos por alguns parâmetros e passíveis de certa previsibilidade, sobretudo nos momentos iniciais de seu funcionamento. Portanto, em poucas palavras, sistemas caóticos podem ser entendidos e, em alguma medida, controlados. Compreender a dinâmica que leva a alterações no regime de produção de bolhas em meios fluidos ricos em gás, como é o caso dos vinhos espumantes
repletos de moléculas de C02, pode ser útil para o controle das mais diversas situações, muitas das quais sem nenhuma ligação com o mundo das bebidas fermentadas. O excesso de borbulhas em líquidos pode desencadear cenários de risco para animais e vegetais. Em plantas vasculares, o transporte de nutrientes pode ser interrompido devido ao surgimento de bolhas de gás no xilema, os tecidos que levam água da raiz para o resto do vegetal. "A principal causa de embolia em seres humanos (oclusão de um vaso sangüíneo por uma massa anormal de matéria proveniente de outra parte do corpo) também envolve a formação de bolhas a partir de líquidos supersaturados com gás dissolvido", afirma Tufaile. "Uma embolia gasosa pode ainda acontecer em mergulhadores que retornam à superfície muito rapidamente depois de terem respirado o ar com alta pressão contido nos cilindros de mergulho." Tragédias coletivas podem derivar de instabilidades provocadas em soluções líquidas que comportam muitos gases. Em agosto de 1986, um profundo lago do noroeste da República dos Camarões, o Nyos, que recobre a boca de um vulcão extinto e, por isso, recebe grande quantidade de dióxido de carbono em suas águas, expeliu uma nuvem desse gás e matou por asfixia 1.700 moradores dos arredores. O sujinho das taças - Uma vez identificados os diferentes ritmos com que pulsa a produção de bolhas no champanhe, faltava ainda explicar que fatores provocavam a troca constante de regimes. Afinal, por que um berçário de bolhas no fundo do copo deixa de produzir esferas gasosas aos trios e passa, abruptamente, a originá-las de uma em uma? Belair esbarrou nesse mistério há alguns anos, mas só agora, com a ajuda dos brasileiros, conseguiu formular uma hipótese consistente sobre o fenômeno. E a explicação tem a ver com uma descoberta feita nesta década pelo próprio francês, que desconcertou muitos gourmets: as bolhas de vinhos espumantes nascem majoritariamente em pontos da parede do copo aos quais aderiram diminutas impurezas, em geral fibras cilíndricas de celulose de 100 micrometros, que ali chegaram vindas do ar ou são subprodutos de copos mal-lavados. Uma sujeirinha, inofensiva à saúde, é a
0
0
o
o 0
w&. o
0 0
0
0 0
0
0 0
o ??
t
■ .
Itfl • f ■■^T,.: \ .■ ti
0 0
c
0 0
pvt -.y/íV^? . /r> /w> Os quatro regimes da efervescência: produção de esferas de C02 aos pares, de forma desordenada, aos trios e de uma em uma. À direita, detalhe do nascimento das bolhas nas microfibras de celulose
matriz das nobres bolhas do campanhe. Até então, muita gente acreditava que as bolhas brotavam exclusivamente de imperfeições, riscos e saliências, nas taças — crença que levava restaurantes a riscar suas próprias flútes na esperança de servir espumantes mais borbulhantes aos clientes. Tal gesto, dizem os cientistas, é tão ineficaz quanto enfiar o cabo de uma colher de chá no gargalo da garrafa para reter o gás da bebida. Voltando ao papel das impurezas na gênese da efervescência, as microfibras de celulose são ocas por dentro e possuem uma ínfima cavidade em uma de suas extremidades por onde o CO2 dissolvido no champanhe entra e sai. "Em razão da pressão, da temperatura e de outros parâmetros químicos do líquido, essas bolsas de gás funcionam como um motor e ditam os ritmos de produção das bolhas", explica Tufaile. Quando o interior da fibra atinge seu limite de
armazenamento de gás por difusão, esferas de dióxido de carbono se desprendem da cavidade. Em um segundo, ou no máximo cinco, as bolhas atingem a superfície, não sem antes aumentar de diâmetro, visto que ganham mais gás em seu movimento de ascensão. E, agarradas a elas, sobem as moléculas que carregam os aromas típicos do champanhe, que deliciam os consumidores. Lenda e marketing - Entender e controlar o processo de formação das contas gasosas que dão vida aos espumantes é um desafio que o homem persegue desde o final do século 17, quando, reza a lenda (e o marketing dos produtores), d. Pierre Pérignon, monge beneditino da abadia de Hautvillers, pequena localidade da região de ChampagneArdenne, "inventou" sem querer o primeiro vinho desse tipo, o champanhe. Embora não haja por ora nenhuma
comprovação científica de que os atributos de um espumante guardem alguma relação direta com as características de suas bolhas, degustadores profissionais interpretam a existência de pequenas, numerosas e duradouras borbulhas como um sinal de excelência. "Com certeza, é mais agradável aos olhos a presença de muitas bolhas diminutas num champanhe, mas não há conexão entre o tamanho das mesmas e a qualidade do produto", esclarece Belair. A influência da taça é muito grande na efervescência de um espumante. "Já provei produtos de excelente qualidade que apresentavam poucas borbulhas e de diâmetro relativamente grande", comenta o enólogo Mauro Celso Zanus, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. "Por isso é mais confiável avaliar a qualidade do espumante pela fineza e nitidez de seu aroma e paladar." • PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 61
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias A experiência da SciELO, iniciativa pioneira de acesso aberto, levou o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) a organizar o Seminário Internacional sobre Acesso Aberto em países em desenvolvimento, como atividade paralela ao 9S Congresso Mundial de Informação em Saúde e Bibliotecas, realizado em Salvador, na Bahia. O seminário teve como objetivo reunir iniciativas do movimento de acesso Aberto e discutir formas de aumentar a visibilidade, acessibilidade, qualidade e impacto de periódicos. Seu principal resultado foi a Declaração de Salvador sobre acesso aberto: a perspectiva dos países em desenvolvimento. O Acesso Aberto significa acesso e uso irrestrito da informação científica e, segundo o documento, "tem recebido apoio crescente em âmbito mundial e é considerado com entusiasmo e grande expectativa nos países em desenvolvimento".
■ Produção
■ Educação
Reforma do ensino para valer? O final da década de 1990 e o início do novo século reservaram ao ensino médio brasileiro uma grande turbulência estrutural e conceituai. O artigo "A reforma do ensino médio nos anos de 1990: o parto da montanha e as novas perspectivas", elaborado por Dagmar Zibas, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC), em São Paulo, descreve algumas imposições sociais, econômicas e pedagógicas que estavam exigindo uma reforma curricular do ensino médio durante aquele período. "A favor da reforma curricular deve-se registrar que o contexto da virada do século justificava um profundo repensar do currículo do ensino médio, em vista, principalmente, da explosão da demanda por matrículas, dos requisitos do novo contexto produtivo e da exigência de conhecimentos e valores para a construção de uma cidadania democrática", diz a autora. Outro fator que contribuiu para a proposta da reforma foi a exigência de aproximação entre currículo e cultura juvenil. "Em geral, os professores têm grande dificuldade de aproximar-se da cultura adolescente. Esse distanciamento afunila a cultura da escola, empobrece as trocas entre os sujeitos do mundo escolar e converte, muitas vezes, o conteúdo das disciplinas em elemento aversivo aos alunos", diz. A pesquisadora questiona as atuais perspectivas para uma reforma do ensino médio que favoreça o desenvolvimento dos alunos das escolas públicas. A nova conjuntura política é propícia a um projeto desse tipo? A inviabilidade de uma escola inclusiva será anunciada pela continuidade da diretriz que reservou, em 2003/2004, quase 10% do PIB para o pagamento dos juros da dívida externa e que, em 2005, continua restringindo investimentos nas áreas sociais? "Infelizmente, esses temas devem continuar freqüentando nossa agenda, se quisermos defender as bases para uma reforma do ensino médio para valer", avalia Dagmar. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAçãO DE JANEIRO - JAN./ABRIL 2005
■ N° 28 - Rio
http://www.sdelo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si4i324782005000ioooo3&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
62 • NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
Madeira tipo exportação A atividade florestal se intensificou em todo o mundo, o que se pode confirmar pelo crescente comércio de produtos florestais e pelo interesse de diversas organizações pelas florestas brasileiras. O artigo "Concentração das exportações no mercado internacional de madeira serrada" procurou analisar a dinâmica desse mercado internacional. "O crescente destaque do setor florestal para a economia brasileira mostra-se no PIB florestal, que esteve próximo de US$ 21 bilhões (4% do total) no ano de 2003", aponta o estudo assinado por Rommel Noce, Rosa Maria Carvalho, Thelma Soares e Márcio Lopes da Silva, pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. O artigo apresenta os indicadores da exportação de madeira serrada de coníferas e folhosas para 154 diferentes países, nos anos de 1997 e 1999. "A desaceleração da economia em mercados tradicionais como nos Estados Unidos e na União Européia reflete-se na redução do índice de crescimento do comércio mundial", diz o estudo. "Assim, as empresas brasileiras buscam mercados alternativos como Rússia, China, África do Sul e Emirados Árabes."
ítt'
REVISTA ARVORE MAIO/JUN. 2005
VOL.
29 - N° 3 - VIçOSA
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soioo67622oo50oo30ooio&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Museus
Consumo cultural Divulgar pesquisas que elucidem não só o perfil socioeconômico do visitante e do nãovisitante de museus, mas também seus hábitos culturais, interesses e percepções. Essa é a proposta do artigo "O contexto do visitante na experiência museal: semelhanças e diferenças en-
tre museus de ciência e de arte", de Adriana Mortara Almeida, pesquisadora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Quanto mais soubermos sobre o contexto pessoal do visitante, mais poderemos aperfeiçoar sua experiência museal, de modo a instigar sua ida e seu retorno aos museus", justifica Adriana. Segundo o artigo, é vasta a bibliografia estrangeira sobre estudos do público. Essas pesquisas consideram o visitante um participante ativo da relação museal. Por meio de observação, entrevistas, questionários, depoimentos e conversas telefônicas, esses estudos trazem a voz do visitante, na busca do aperfeiçoamento do processo comunicacional promovido pelas exposições. "As avaliações mostram que cada visitante constrói sua própria exposição ao selecionar seu percurso de acordo com seu desejo, suas motivações, suas necessidades e seus companheiros", acredita Adriana. Com isso, na elaboração de uma exposição, procura-se conhecer o perfil, os desejos e as necessidades dos possíveis visitantes. Porém, tal como os museus de arte, que deveriam conhecer melhor noções e interesses mais gerais sobre arte dos públicos brasileiros, os museus de ciência também carecem de estudos. "Ainda sabemos muito pouco das concepções sobre as ciências e as artes entre os brasileiros", diz. HISTóRIA, CIêNCIAS, SAúDE-MANGUINHOS SUPL. 0 - Rro DE JANEIRO 2005
VOL.12
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soi0459702oo5000400003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Saúde
Fumo passivo infantil O estudo "Tabagismo no domicílio e baixa estatura em menores de 5 anos" analisou o efeito das variáveis socioeconômicas e da exposição à fumaça do tabaco sobre o crescimento. Participaram do estudo 2.037 crianças menores de 60 meses, sendo 51% do sexo masculino e 49% do sexo feminino. Os pesquisadores Regina GonçalvesSilva, Márcia Lemos-Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso, Joaquim Valente e Rosely Sichieri, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mediram e pesaram as crianças atendidas nos postos de saúde da cidade de Cuiabá (MT) e submeteram os pais a um questionário sobre o tabagismo no domicílio. Em relação à exposição ao tabaco em casa, as crianças foram classificadas em expostas se morassem com pelo menos um fumante no domicílio. Do total de crianças estudadas, 37,7% eram fumantes passivas, ou seja, mo-
ravam em domicílios com pelo menos um fumante, sendo 11% expostas ao tabagismo da mãe, 24% expostas ao tabagismo do pai e 13% ao tabagismo dos demais moradores da residência. A prevalência de crianças com baixa estatura foi de 4,3%. A média do peso e do comprimento ao nascer foi menor para as crianças com mães fumantes do que para os bebês que tinham mães não-fumantes. "Foram observadas crianças de menor estatura nos níveis socioeconômicos mais baixos e com menor renda familiar, quando o pai não morava no domicílio ou quando os pais tinham menor escolaridade", diz a pesquisa. "O tabagismo durante a gestação é um dos responsáveis pelo menor peso e comprimento ao nascer. No entanto, a exposição à fumaça do tabaco, no período pós-natal, não tem sido explorada nos estudos de crescimento", indicam os pesquisadores. CADERNOS DE SAúDE PúBLICA JANEIRO - SET./OUT. 2005
- VOL. 21 - N° 5 - Rio DE
http://www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=Soio23iiX2005000500027&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Hortelã
Experimentos hidropônicos O crescimento normal e a formação de plantas com qualidade comercial dependem da produção de boas mudas. Para isso, faz-se necessário o uso de substratos adequados a cada espécie. Esse elemento influi não só na qualidade das raízes, como também no porcentual de enraizamento das estacas, possuindo ainda a função de fixá-las e manter o ambiente úmido. O artigo "Substratos na produção hidropônica de mudas de hortelã", escrito pelos pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Dalva Paulus, Sandro Medeiros, Osmar Santos, Cinei Riffel, Eliseu Fabbrin e Eloi Paulus, apresenta os resultados de experimentos feitos na produção das mudas de hortelã {Mentha x villosa) em cultivo hidropônico. Variedades da espécie têm sido investigadas tanto por suas atividades biológicas como pelos óleos essenciais produzidos por suas folhas. As mudas foram analisadas com substrato espuma fenólica, substrato organo mineral e sem substrato. Diferentes variáveis foram analisadas, como o número de folhas e a altura da planta nos dias seguintes e a fitomassa seca e fresca 35 dias após o início do tratamento. O substrato espuma fenólica apresentou os melhores resultados na produção da fitomassa. Segundo o artigo, a espuma fenólica pode ser utilizada para produção de mudas de menta em cultivo hidropônico. HORTICULTURA BRASILEIRA JAN./MAR.
- VOL. 23 - N° 1 - BRASíLIA -
2005
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soi02O53620050ooioooio&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 • 63
I TECNOLOGIA
LINHA DE PRODUçãO
MUNDO
Nova geração de GPS A mais avançada navegação por satélite foi lançada no final de setembro do cabo Canaveral, na Flórida, Estados Unidos. Essa é a primeira de uma nova frota do Sistema Global de Posicionamento, GPS na sigla em inglês, desenhada para ajudar usuários comerciais e militares norte-americanos a identificar, mesmo com pequenos receptores de mão, a localização em terra, com coordenadas de latitude e longitude. O satélite de US$ 75 milhões foi lançado pelo foguete Delta 2, fabricado pela Boeing. Ele se junta a uma rede existente de 28 satélites GPS. Mas o novo satélite, o primeiro de oito satélites GPS IIR, fabri-
■ Célula solar ultrafina Telhados de residências e edifícios cobertos com películas ultrafinas de semicondutores fotovoltaicos (que produzem corrente elétrica pela ação da luz) nanoestruturados poderão, no futuro, converter a luz solar em energia elétrica e preencher as necessidades de eletricidade dos moradores. Essa perspectiva está presente na produção de uma película ultrafina para compor células solares, produzida com cristais inorgânicos e polímeros. A novidade é dos pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (Berkeley Lab), do Departamento de Energia dos Estados Unidos
cado pela Lockheed Martin, de Maryland, tem como objetivo aprimorar a precisão do sistema GPS. O novo satélite carrega uma antena mais robusta, o que propicia aos usuários em terra um sinal mais forte, assim como três novos sinais. Dois deles ajudarão a força militar a evitar interferências nos sinais GPS de veículos terrestres, aviões e navios e também a melhorar a eficácia de "armas inteligentes" guiadas por GPS. O terceiro novo sinal terá uma segunda freqüência para usuários civis, reduzindo os erros causados pela camada de partículas com carga elétrica que estão na estratosfera. •
e da Universidade da Califórnia. Segundo comunicado à imprensa do Berkeley Lab, os pesquisadores, que também publicaram um paper na revista Science (21 de outubro), afirmam ter desenvolvido a mais fina película para células solares que poderão ser
64 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
Cabo Canaveral: Foguete Delta leva o novo satélite
produzidas facilmente e vendidas a preços baixos. •
■ Fundo do mar em alta definição Oceanógrafos usaram uma câmera de televisão de alta definição para obter imagens ao
vivo de uma área do fundo do mar que tem sido sacudida por terremotos e erupções vulcânicas. O grupo fez imagens de um dos pontos mais ativos do fundo do mar, situado a 200 milhas do litoral norte dos Estados Unidos, que representa um dos ambientes mais inóspitos da Terra. As transmissões são as primeiras do assoalho oceânico mostradas ao vivo em sistema televisivo de alta definição, de sete a dez vezes superior ao analógico. A expedição está estudando como a interação das placas tectônicas favorece as formas de vida microbianas primitivas. Instrumentos, câmeras e robôs estão sendo usados para estudar os microorganismos que florescem no
fundo. "Essas imagens darão ao público um raro olhar das maravilhas das profundezas do oceano", disse Marge Cavanaugh, diretor assistente de geociências da Fundação Nacional de Ciências (NSF), uma das financiadoras e divulgadora do projeto. •
■ 0 mundo da energia do vento Em 2005 a energia eólica vai completar 50 mil megawatts (MW) de capacidade instalada para gerar eletricidade no planeta. Como comparação, a usina de Itaipu possui 14 mil MW. Neste ano serão mais 2.683 MW em relação a 2004. A informação foi contabilizada e divulgada pelo Conselho Global de Energia do Vento, ou Global Wind Energy Council (GWEC), entidade que reúne associações do setor dos Estados Unidos, da Europa, do Canadá, da índia, do Japão e da China. Criada no início deste ano, a entidade fez um amplo estudo da situação da energia eólica do mundo. Os dados de 2004 mostram que a Europa
está largamente na frente com 34.466 MW, sendo a Alemanha, com 16.629 MW, a líder mundial nesse tipo de energia. Em segundo está a Espanha com 8.263 MW e em terceiro os Estados Unidos com 6.740 MW. Entre todos os continentes, a América Latina e o Caribe, juntos com 208 MW, e a África, 225 MW, disputam o último lugar. Entre os latinos, a Costa Rica está em primeiro com 71 MW e o Brasil, com 29 MW, em segundo. A GWEC considera que a tecnologia de produção de energia elétrica com o vento está pronta para ser expandida mundialmente e tornar-se uma opção para obter suprimento de energia renovável e seguro. Segundo a entidade, é possível ter no planeta uma capacidade instalada de 1.245.030 MW em 2020, o que provocaria a redução de 1,832 bilhão de toneladas de gás carbônico (CO2) jogadas na atmosfera pela queima de combustíveis derivados do petróleo, gás e carvão. O total, em 2020, representaria a produção de 12% de toda a energia elétrica do mundo. •
BRASIL Endoscópios sem contaminação
Rigorosa limpeza após o uso evita doenças infecciosas
Pessoas submetidas a endoscopias digestivas estão mais sujeitas a contrair o vírus HCV, responsável pela hepatite C. É o que aponta uma pesquisa realizada pela biomédica Thaís Tibery Espir, do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que analisou amostras do sangue de 253 doadores no Instituto Estadual de Hematologia do Rio de Janeiro. Do total, 54 estavam contaminados e 199 não eram portadores do HCV. Dos contaminados, 15,9% se submeteram à endoscopia digestiva anteriormente, enquanto 11,6% dos não-infectados já haviam feito o exame. Para evitar o risco de transmissão de doenças, é necessário adotar rigorosos procedimentos de limpeza e assepsia do equipamento. Nos casos em que durante a endoscopia é feita uma biópsia, com a retirada de fragmento de tecido para avaliação, as pinças utilizadas têm que passar pelas etapas de limpeza, desinfecção e esterilização para retirada dos resíduos orgânicos. "A desinfecção inade-
quada das pinças pode resultar na transmissão de infecção para os pacientes", diz Maria da Graça Silva, enfermeirachefe do Serviço de Endoscopia Gastrointestinal do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Para testar a eficácia da remoção de resíduos das pinças, Graça coordenou um estudo comparativo, apresentado em um congresso internacional em Chicago, nos Estados Unidos. No estudo foram utilizados três métodos de limpeza: apenas detergente neutro, detergente mais peróxido de hidrogênio e lavagem ultra-sônica. O que apresentou os melhores resultados com custo compatível foi a limpeza com peróxido de hidrogênio. "O composto libera radicais livres que penetram no corpo da pinça e na extremidade em concha, soltando todo o material orgânico", diz Graça. Ela explica que qualquer falha na etapa da limpeza compromete todo o processo de esterilização, uma vez que a matéria orgânica residual protege os microorganismos. •
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 65
fundo. "Essas imagens darão ao público um raro olhar das maravilhas das profundezas do oceano", disse Marge Cavanaugh, diretor assistente de geociências da Fundação Nacional de Ciências (NSF), uma das financiadoras e divulgadora do projeto. •
■ 0 mundo da energia do vento Em 2005 a energia eólica vai completar 50 mil megawatts (MW) de capacidade instalada para gerar eletricidade no planeta. Como comparação, a usina de Itaipu possui 14 mil MW. Neste ano serão mais 2.683 MW em relação a 2004. A informação foi contabilizada e divulgada pelo Conselho Global de Energia do Vento, ou Global Wind Energy Council (GWEC), entidade que reúne associações do setor dos Estados Unidos, da Europa, do Canadá, da índia, do Japão e da China. Criada no início deste ano, a entidade fez um amplo estudo da situação da energia eólica do mundo. Os dados de 2004 mostram que a Europa
está largamente na frente com 34.466 MW, sendo a Alemanha, com 16.629 MW, a líder mundial nesse tipo de energia. Em segundo está a Espanha com 8.263 MW e em terceiro os Estados Unidos com 6.740 MW. Entre todos os continentes, a América Latina e o Caribe, juntos com 208 MW, e a África, 225 MW, disputam o último lugar. Entre os latinos, a Costa Rica está em primeiro com 71 MW e o Brasil, com 29 MW, em segundo. A GWEC considera que a tecnologia de produção de energia elétrica com o vento está pronta para ser expandida mundialmente e tornar-se uma opção para obter suprimento de energia renovável e seguro. Segundo a entidade, é possível ter no planeta uma capacidade instalada de 1.245.030 MW em 2020, o que provocaria a redução de 1,832 bilhão de toneladas de gás carbônico (CO2) jogadas na atmosfera pela queima de combustíveis derivados do petróleo, gás e carvão. O total, em 2020, representaria a produção de 12% de toda a energia elétrica do mundo. •
BRASIL Endoscópios sem contaminação
Rigorosa limpeza após o uso evita doenças infecciosas
Pessoas submetidas a endoscopias digestivas estão mais sujeitas a contrair o vírus HCV, responsável pela hepatite C. É o que aponta uma pesquisa realizada pela biomédica Thaís Tibery Espir, do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que analisou amostras do sangue de 253 doadores no Instituto Estadual de Hematologia do Rio de Janeiro. Do total, 54 estavam contaminados e 199 não eram portadores do HCV. Dos contaminados, 15,9% se submeteram à endoscopia digestiva anteriormente, enquanto 11,6% dos não-infectados já haviam feito o exame. Para evitar o risco de transmissão de doenças, é necessário adotar rigorosos procedimentos de limpeza e assepsia do equipamento. Nos casos em que durante a endoscopia é feita uma biópsia, com a retirada de fragmento de tecido para avaliação, as pinças utilizadas têm que passar pelas etapas de limpeza, desinfecção e esterilização para retirada dos resíduos orgânicos. "A desinfecção inade-
quada das pinças pode resultar na transmissão de infecção para os pacientes", diz Maria da Graça Silva, enfermeirachefe do Serviço de Endoscopia Gastrointestinal do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Para testar a eficácia da remoção de resíduos das pinças, Graça coordenou um estudo comparativo, apresentado em um congresso internacional em Chicago, nos Estados Unidos. No estudo foram utilizados três métodos de limpeza: apenas detergente neutro, detergente mais peróxido de hidrogênio e lavagem ultra-sônica. O que apresentou os melhores resultados com custo compatível foi a limpeza com peróxido de hidrogênio. "O composto libera radicais livres que penetram no corpo da pinça e na extremidade em concha, soltando todo o material orgânico", diz Graça. Ela explica que qualquer falha na etapa da limpeza compromete todo o processo de esterilização, uma vez que a matéria orgânica residual protege os microorganismos. •
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 65
Empreendimentos de sucesso
A formulação de um softwarepara controlar a produção de suínos é o produto principal da Agriness, empresa que ganhou o título de Melhor Empresa Incubada de 2005 concedido pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec). A empresa está instalada, desde 2001, no Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Avançadas (Celta), em Florianópolis, Santa Catarina. A Agriness desenvolveu um sistema para
■ Imagens de exames na rede catarinense Novas ferramentas de auxílio ao diagnóstico médico, desenvolvidas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), já estão instaladas em hospitais públicos catarinenses. Uma delas, chamada Cyclops Medicai Station (CMS), permite que o médico acesse de qualquer computador imagens de exames radiológicos, tomografia e ressonância magnética. "O profissional tem auxílio para o diagnóstico, processamento de imagens e medições que normalmente ele só teria com uma estação de trabalho de alto custo", diz o professor Aldo von Wangenheim, coordenador do Projeto Cyclops. Participam do projeto cerca de 30 pesquisadores do Laboratório de Telemedicina e do Laboratório de Integração Software e Hardware do Departamento de Informática da UFSC. A outra ferramenta é a Sala de Laudos Virtual
(SLV), que utiliza o CMS como base tecnológica. "A SLV implementa um sistema de comunicação e compartilha um conjunto de imagens médicas", diz Von Wangenheim. "Duas pessoas na internet
66 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
gerenciamento de manejo e controle zootécnico de granjas suínas que já conquistou 12% do mercado. Neste ano a empresa espera faturar R$ 1,5 milhão também com softwares para a bovinocultura e em parcerias com as empresas Sadia, Seara e Nutron. Na categoria Graduada - empresas que já deixaram a incubadora - a vencedora do ano é a Trilha, do Rio de Janeiro (RJ). A empresa, que atua na área de engenharia de produção e deixou a Incubadora do Instituto Nacio-
podem discutir o mesmo exame." Como as imagens são replicadas, o que uma pessoa faz com a imagem, como medir a estrutura, é visto do outro lado. E o outro também faz suas intervenções. •
nal de Tecnologia (INT) em 2002, desenvolveu simuladores para apoio ao planejamento de fábricas, sendo o mais importante o que leva o nome de See-The-Future, já exportado para o México. No âmbito das incubadoras, a grande vencedora é o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel). A instituição, localizada no pólo tecnológico da cidade de Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais, ganhou os prêmios de Melhor Projeto da Cultura do Empreende-
■ Regras para a própolis Os produtos à base de própolis, a resina produzida pelas abelhas para vedar e esterilizar as colméias, contam desde setembro com algumas regras que devem ser seguidas antes de serem colocadas no mercado. Entre os requisitos mínimos para o controle de qualidade de novos produtos, indicados em nota técnica publicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), constam informações como características sensoriais, que incluem aspecto, cor e odor, contaminantes, determinação de teor alcoólico, atividade antioxidante,
Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br
Vidro com boa memória
dorismo Inovador e Melhor Incubadora Orientada para o Uso Intensivo de Tecnologias. Além de atuar na área de ensino e pesquisa em telecomunicações, a incubadora do Inatel possui dez empresas incubadas e já graduou 24, sendo 22 em operação. A escolha da Melhor Incubadora Orientada para o Desenvolvimento Local e Setorial foi para a Incubadora de Empresas de Botucatu, em São Paulo. Ela promoveu a criação de 208 empregos diretos em 17
marcadores, teor de fenóis totais, de flavonóides, de compostos voláteis, de ceras, além de informação sobre a espécie da abelha e as espécies da flora presentes no local da colméia. Um estudo de tipificação da própolis brasileira realizado pela professora Maria Cristina Marcucci Ribeiro, da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), financiado pela FAPESP (veja Pesquisa FAPESP n° 83), contribuiu para a elaboração da nota técnica da Anvisa. "Esse trabalho resultou em um mapa, feito segundo os grupos de substâncias químicas mais comuns encontradas na própolis brasileira", diz Maria Cristina. •
empresas graduadas e cerca de 120 produtos inovadores. Segundo dados da Anprotec, foram contabilizadas 297 incubadoras no país em 2005, um aumento de 5% em relação ao ano anterior. Ainda existem 25 em fase de projeto e 92 em implantação. Das 297, 67% têm vínculos formais com universidades e centros de pesquisa. No total, incluindo as incubadas e as graduadas, já são 5.618 empresas envolvidas no movimento brasileiro de incubação. •
■ Genoma para resistir à seca Os genes que conferem à soja, ao feijão, ao caupi (tipo de feijão) e ao amendoim resistência à seca serão estudados em uma parceria entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, a Universidade Católica de Brasília, a Universidade Federal de Pernambuco e o Centro de Energia Nuclear na Agricultura. Serão usados os bancos de dados públicos sobre as quatro espécies. Depois, em mapas genéticos de referência, serão desenvolvidos marcadores moleculares comuns a elas. •
Um cubo de vidro capaz de armazenar grandes quantidades de dados digitais foi desenvolvido no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, em colaboração com o Instituto de Estudos Avançados (IEAv) do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), de São José dos Campos. Ele é produzido com alta concentração de oxido de tungstênio (WO3). O material recebe gravações em três dimensões, tanto na altura como na largura e na profundidade. O vidro é sensibilizado por feixes de laser ultravioleta (de luz invisível), laser infravermelho ou laser visível. Outra característica é a possibilidade de regravação por meio de tratamento térmico ou por lasers apropriados para essa função. A utilização do material pode ser na for-
ma de cubo ou em filme com alguns nanômetros de espessura, possibilitando uma interação com vários equipamentos eletrônicos, entre computadores e chips, além de servir para a fabricação de dispositivos que armazenam música ou filmes, como os CDs e os DVDs. A capacidade de armazenamento pode chegar a 1,6 terabyte ou 1.600 gigabytes (GB) por centímetro cúbico, equivalente a 40 discos rígidos de computadores de 40 GB ou mais de 1.600 CDs. Título: Fotossensibilidade reversível no ultravioleta e visível de vidros à base deW03 Inventores: Gaél Poirier, Marcelo Nalin, Younes Messaddeq, Sidney José Lima Ribeiro, Rudimar Riva e Carmen Lúcia Barbosa Titularidade: Unesp e FAPESP
Em poucos centímetros, o material é ca de armazenar dados eqüivali - - ^-oCDs
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 ■ 67
TECNOLOGIA BIOLOGIA MOLECULAR
Fábrica de camundongos Roedores transgênicos produzem proteína humana responsável pela coagulação do sangue YURI VASCONCELOS
ü _
possuam no leite a proteína humana responsável pela coagulação do san_IIIJBL_I gue, chamada de fator IX, vai representar um grande avanço para os portadores de hemofilia. Ao ser isolada do leite, essa proteína poderá se transformar em um produto mais barato e mais facilmente disponível para os doentes que hoje controlam a doença com medicamentos derivados do sangue de doadores sadios. A hemofilia é uma doença genética caracterizada por problemas na coagulação do sangue e sem o fator IX, os pacientes podem ter hemorragia em qualquer corte na pele, por exemplo. Os estudos para essa nova possibilidade de tratamento da hemofilia foram iniciados por meio de uma parceria entre pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Empregando recursos da biologia molecular, os pesquisadores dessas duas instituições estão trabalhando para desenvolver vacas e cabras geneticamente modificadas capazes de produzir o fator XI no leite. O primeiro passo para criar essas "biofábricas" foi desenvolver na Unifesp uma linhagem
68 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
de camundongos transgênicos que possuem em seu código genético o gene codificador dessa proteína humana. Amostras do leite dos roedores transgênicos contendo a proteína da coagulação estão sendo avaliadas por uma equipe do Hospital de Apoio de Brasília. "Nós estamos coletando o sangue de pacientes portadores de hemofilia para avaliar in vitro o efeito de coagulação e compará-lo aos produtos comercializados hoje", afirma o pesquisador Elíbio Rech, coordenador do projeto na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. "Em seguida, vamos partir para a produção de um bovino transgênico. Como já dominamos essa tecnologia, nossa expectativa é conseguir produzir um animal com o gene humano do fator IX até 2007", diz o cientista. A criação dos camundongos geneticamente modificados, pontapé inicial da pesquisa, foi feita há cerca de um ano. Os trabalhos foram coordenados pelo químico João Bosco Pesquero, vice-diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais em Medicina e Biologia (Cedeme) da Unifesp, e contaram com as participações do professor Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello, diretor-geral do centro, da bióloga Heloísa Allegro Baptista, responsável pelo
Camundongo transgĂŞnico da Unifesp possui o gene humano que codifica a proteĂna chamada de fator IX
laboratório de animais transgênicos, e da biomédica Fabiana Louise Teixeira Motta. Os camundongos apresentam, além da semelhança de funcionamento com o organismo humano, uma série de vantagens sobre outros animais. "O custo da manutenção do camundongo é dezenas de vezes mais baixo do que o de cabras e de vacas e o tempo de gestação e desenvolvimento do animal é muito mais rápido, o que nos permite saber se a experiência foi ou não bem-sucedida. Em três meses, o filhote já nasceu, desmamou e está pronto para procriar" diz Pesquero. A constatação de que os filhotes são ou não transgênicos é feita um mês após o nascimento. Pequenos pedaços da orelha ou da cauda dos animais são submetidos à análise de DNA para avaliar se os genes exógenos estão ou não presentes em seus genomas. Criado em 1996, em substituição ao Biotério Central, o Cedeme é o único laboratório nacional e um dos dois da América do Sul - o outro fica na Universidade de Buenos Aires, na Argentina - com capacidade para produzir localmente modelos de animais transgênicos para outros pesquisadores. Esses camundongos produzidos a partir da retirada de um gene qualquer (mode Io nocaute) ou por meio do acréscimo de um gene exógeno (modelo de adição gênica) têm diversas aplicações científicas e biotecnológicas. "Na área médica, criamos modelos animais para estudar doenças humanas, como hemofilia, hipertensão, diabetes, mal de Alzheimer e câncer, e desenvolver drogas e terapias para combatê-las", conta Pesquero. "As restrições éticas e de custo são muito menores para a realização de experimentos nesses animais." Os camundongos geneticamente modificados da Unifesp têm menos de 10 centímetros de comprimento e são ideais também para estudar a função dos genes humanos. "Com o recente seqüenciamento do genoma humano, pudemos verificar que não conhecemos a função da maioria dos genes presentes em nosso genoma. Dessa forma, os animais transgênicos são ferramentas importantes para se obter informações sobre a função desses genes." 70 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
lém disso, a tendência atual da indústria farmacêutica mundial é fazer uma "humanização dos camundongos" para a utilização desses modelos no desenvolvimento de novas drogas contra várias doenças. Nesse processo um gene do roedor é retirado do genoma do animal pela técnica de nocaute e um gene humano é inserido pelo processo de adição gênica. Esse processo deve facilitar muito o desenvolvimento de novos medicamentos, barateando os custos e diminuindo o tempo para a nova droga chegar às farmácias. "Outra grande vantagem do nosso trabalho para o país é a independência tecnológica. A longo prazo, ele também resultará em economia para pesquisadores que precisam importar os modelos animais por valores altíssimos. Nossos camundongos custam cerca de US$ 5 mil o par, enquanto se forem importados o preço pode chegar a ser dez vezes mais alto", diz Pesquero. Para ele, há um bom mercado para es-
ses animais no país. "Existem cerca de 50 a 100 grupos de cientistas brasileiros fazendo pesquisas com animais transgênicos e muitos não sabem que temos esse know-how. Além disso, nossos modelos poderão ser vendidos para cientistas de outros países." O primeiro transgênico criado pelo grupo foi o camundongo Vítor, nascido no dia 24 de dezembro de 2001 (veja Pesquisa FAPESP n° 75). O roedor foi produzido com a duplicação do receptor B2 das cininas, uma substância associada a processos inflamatórios e hipertensivos. Embora não tenha sido o primeiro camundongo geneticamente modificado desenvolvido no Brasil, o laboratório da Unifesp é o único do país que hoje está estruturado para fornecer animais transgênicos pela técnica de microinjeção pronuclear, a mais usada por cientistas no mundo. "A grande vantagem desse método em relação aos outros é a eficiência na produção. O índice de animais positivos, que contêm o gene inserido em seu genoma, é bem superior ao de outros métodos", diz Pesquero. Por essa técnica, o óvulo fecundado é coletado momentos depois da cópula. Antes que os núcleos celulares do espermatozóide e do óvulo, chamados pronúcleos, se fundam, é injetado
Embriões de camundongos, à esquerda. Depois a microinjeção com o gene humano e o embrião pronto para ser implantado em uma roedora
num deles uma solução com cópias do DNA exógeno, que podem ser de indivíduos de mesma espécie ou de outras (por exemplo, genes humanos). O passo seguinte é transferir o embrião para o útero de uma fêmea procriadora hospedeira, a chamada "mãe de aluguel", onde o filhote será gestado. Outra vantagem dessa técnica é que ela permite obter animais que expressem o gene exógeno em todas as suas células, inclusive nas germinativas (óvulo ou espermatozóide), garantindo a prole transgênica. "Embora mais eficaz, a técnica de microinjeção pronuclear é também mais cara e exige equipamentos especiais, como microscópios de luz invertida e micromanipuladores, além de pessoal altamente qualificado", explica Pesquero. Depois do nascimento de Vítor, a equipe da Unifesp já conseguiu produzir com sucesso outros dois roedores com alterações genéticas, além daquele com o gene da proteína do fator IX. Um desses animais, um camundongo (Mus musculus), recebeu a adição de um gene de rato (Rattus norvegicus), produtor da enzima tonina, que, acreditase, está relacionada a processos hipertensivos. Esse animal foi gerado para o pesquisador Jorge Luiz Pesquero, irmão
de João Bosco e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Mogi das Cruzes (UMC). "Em experiências in vitro, a tonina participa do processo de liberação da angiotensina II, uma substância que produz vasoconstrição (redução do calibre dos vasos sangüíneos). Para saber com segurança se ela está realmente envolvida na gênese e na manutenção da hipertensão arterial, uma alternativa é estudar animais transgênicos que tenham essa enzima produzida numa escala amplificada", afirma o cientista. Hipertensão e memória - "Depois de dois anos de trabalho, obtivemos informações muito interessantes. Nossos dados apontam para uma direção ligeiramente diferente da que esperávamos. Os animais com os genes exógenos de tonina são levemente hipertensos, mas não por causa da liberação de angiotensina II. Agora nosso desafio é descobrir que substâncias estão envolvidas nesse processo hipertensivo", afirma Jorge Pesquero. Os resultados da pesquisa são importantes porque poderão auxiliar no tratamento de milhões de portadores de hipertensão existentes no planeta. O outro camundongo transgênico nascido na Unifesp recebeu uma
seqüência de DNA para produzir uma grande quantidade de uma proteína que pode estar envolvida na regulação de aspectos do comportamento alimentar e da memória. Esse estudo está sendo realizado pela pesquisadora Beatriz Castilho, da mesma instituição. "Nossas pesquisas estão ainda bem no início. Recebemos o primeiro animal transgênico do Cedeme há quatro meses", diz a pesquisadora Desde a criação do primeiro camundongo transgênico, há quatro anos, os cientistas do Cedeme conseguiram aperfeiçoar seu método de trabalho. Prova disso é que para a criação do primeiro foi necessário inocular 500 embriões. Hoje o índice de acerto é muito maior, da ordem de 1%. Assim para cada animal produzido são inoculados cem embriões, em média. O domínio da técnica também tem agilizado a produção dos modelos animais. Além da produção desses roedores, o Cedeme também trabalha com criopreservação, técnica que consiste no armazenamento de espermatozóides ou embriões dos transgênicos para preservar suas linhagens (ou descendentes). "Essa é uma área importante porque é muito mais barato manter esse banco de germoplasma do que conservar os animais vivos em cativeiro." • PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 • 71
■ TECNOLOGIA
odos os anos são feitas no Brasil cerca de 14 mil cirurgias para colocação de próteses de joelho e quadril pelo sistema público de saúde. Afinal, elas são fundamentais para recuperar movimentos perdidos em decorrência de acidentes, doenças degenerativas como artrose e artrite ou tumores ósseos. A busca por articulações artificiais cada vez mais parecidas com as originais levou pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a aplicar um novo processo de tratamento em uma liga de titânio, usada em aplicações ortopédicas, que resultou em um revestimento biocompatível com alta resistência ao desgaste. "É o revestimento com o mais baixo atrito já obtido para esse tipo de aplicação", diz a pesquisadora Emília Tieko Uzumaki, responsável pelo estudo, apresentado e premiado em dois congressos interna72 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
cionais realizados em setembro, um no Congresso da Sociedade Européia de Biomateriais na Itália e outro no Congresso de Superfícies, Revestimentos e Materiais Nanoestruturados em Portugal. Na pesquisa, realizada durante a sua tese de doutorado na Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp orientada pela professora Cecília Zavaglia, a liga de titânio foi recoberta com carbono tipo diamante, também conhecido como DLC, do inglês Diamond-Like Carbon, material biocompatível que possui propriedades como alta dureza, baixo atrito, resistência ao desgaste e à corrosão. "A liga de titânio é a melhor liga biocompatível", diz Emília. No entanto, para ser utilizada em articulações, ela tem de passar por um tratamento de superfície, para resistir ao desgaste. Para aplicar o DLC foi utilizado um processo de imersão em plasma desenvolvido pelo pesquisador Carlos Salles Lambert, do Instituto de Física da Unicamp, que está em fase de patenteamento. Essa técnica de deposição utiliza um plasma de um hidrocarboneto gás como o metano ou o acetileno - para envolver, por inteiro, as peças e reves-
ti-las com o carbono tipo diamante. Isso possibilita o revestimento uniforme de grandes áreas - até 1 metro quadrado ou mais, dependendo do tamanho do equipamento utilizado -, com baixo custo em comparação com outras técnicas de deposição a plasma. "As técnicas convencionais, além de não terem boa aderência, não permitem que o filme de carbono seja depositado em grandes áreas e em formas complexas", diz Lambert. Elas são utilizadas principalmente para pequenas superfícies planas. Materiais biocompatíveis - Atualmente o material mais utilizado entre as articulações metálicas das próteses de joelho e de quadril é o polietileno de ultra-alto peso molecular com características especiais, que atua como "amortecedor" e é o melhor polímero conhecido para essa aplicação. Mesmo assim, ele é o limitador do tempo de vida útil da prótese, que pode variar de cinco a 15 anos. O que significa que, de tempos em tempos, as próteses têm de ser revisadas e substituídas total ou parcialmente. Por isso a procura por novos materiais biocompatíveis para as
dir que a artéria volte a se fechar, revéstidos com DLC estão sendo testados em animais. Resultados preliminares mostraram que o novo processo ajuda a reduzir a formação de coágulos. A possibilidade de aplicação do DLC em diversos produtos chamou a atenção de várias empresas que estiveram no Congresso Internacional de Nanotecnologia, realizado em julho, em São Paulo. Depois disso, algumas delas estiveram na Agência de Inovação (Inova) da Unicamp para iniciar os entendimentos que podem resultar em contratos de licenciamento.
Prótese de joelho (ò esq.) imersa no plasma e de quadril (acima) revestida com DLC
próteses ortopédicas que tenham maior tempo de vida útil não pára. E o interesse das empresas por produtos inovadores também. O revestimento da liga metálica com DLC diminui o desgaste da prótese e, com isso, aumenta o seu tempo de vida útil. Até agora três empresas demonstraram estar interessadas no novo material. Todos os testes para avaliar se o revestimento de DLC obtido por imersão em plasma pode ser utilizado no corpo humano, exigidos pelas normas brasileiras e pela agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos, a Food and Drug Administration (FDA), estão sendo realizados na Unicamp. No Departamento de Biologia Celular do Instituto de Biologia foram feitos os testes de biocompatibilidade in vitro - realizados com a cultura de células em laboratório -, como citotoxicidade, adesão e morfologia celular. O ensaio de biocompatibilidade in vivo, com implantes no tecido muscular e ósseo de animais, foi realizado no Núcleo de Medicina e Cirurgia Experimental com a colaboração do professor William Dias Belangero, do Departa-
mento de Ortopedia da Faculdade de Ciências Médicas da universidade. "Os estudos mostraram que a resposta celular foi melhor para a liga de titânio revestida com DLC do que para a liga sem revestimento", diz Emília. "Assim como a resistência à corrosão." Os filmes de DLC obtidos por processos convencionais começaram a ser estudados no Instituto de Física da Unicamp no início da década de 1980. A nova técnica de deposição, que começou a ser pesquisada por Lambert nos anos 1990, já foi utilizada para tratar peças destinadas à área médica, automobilística, aeroespacial, petroquímica e petrolífera. No setor automobilístico, engrenagens para motor, peças para rolamentos e parafusos já estão sendo revestidos com DLC para diminuir o atrito. No aeroespacial, o processo foi usado experimentalmente com sucesso em peças que compõem asas de avião. "O tratamento melhora a superfície, aumentando o tempo de vida, sem aumentar o peso da peça", diz o pesquisador. Na área biomédica, válvulas cardíacas e stents, utilizados durante cirurgias como sustentação mecânica para impe-
Bisturi cirúrgico - Em um trabalho conjunto, Lambert e Emília estudaram em condições reais de uso objetos sujeitos a desgaste abrasivo. Facas industriais e bisturis cirúrgicos com revestimento de DLC foram testados em uma fábrica de tecelagem em Jundiaí, no interior de São Paulo. A empresa utiliza o bisturi cirúrgico em várias máquinas para cortar grandes quantidades de tecidos e plásticos. Em cada uma delas são colocados de 100 a 200 bisturis emparelhados - o número depende da largura das tiras desejadas -, que têm tempo de vida útil de 20 dias, em média, considerando como parâmetro os tecidos mais abrasivos. Com o revestimento de DLC, os bisturis duraram 60 dias, três vezes mais do que o tempo normal, representando uma substancial economia para a empresa, que utiliza cerca de 500 deles por mês. As facas industriais, semelhantes a discos, também puderam ser usadas por um período três vezes maior depois do tratamento com plasma. Em vez de 30 dias resistiram por 90 dias. Das muitas aplicações já testadas, uma está bem próxima de entrar no mercado. Três empresas de Cordeirópolis, no interior de São Paulo, estão dispostas a aplicar o revestimento de DLC em utensílios domésticos e industriais, como panelas, frigideiras, assadeiras e fôrmas para bolo e pães, inclusive de panificadoras, em substituição aos antiaderentes convencionais. O processo de imersão em plasma dá ao material resistência ao desgaste e à abrasão, propriedades que garantem a aderência do revestimento mesmo quando em contato com palha de aço durante o processo de limpeza. . PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 73
| i § s °
I TECNOLOGIA QUÍMICA
Brancura reluzente Parceria entre universidade e empresa viabiliza produção de um novo pigmento para a indústria de tintas MARCOS DE OLIVEIRA
ão e exagero prever que dentro de alguns anos um novo pigmento desenvolvido em uma parceria entre o Instituto de Química (IQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a empresa Bunge esteja presente na formulação de tintas em várias partes do mundo. Biphor é o nome desse pigmento branco produzido a partir de nanopartículas de fosfato de alumínio que vai competir com a matéria-prima atual, o dióxido de titânio. As vantagens, segundo o professor Fernando Galembeck, coordenador do projeto no IQ e um dos descobridores do produto, são o preço menor, de 10 a 15% mais baixo que o dióxido, a durabilidade e a maior facilidade de aplicação da tinta, além de um processo de produção que não agride o ambiente e não gera resíduos. Anunciado no mercado mundial em setembro, o pigmento de fosfato de alumínio é destinado a tintas à base de água, as chamadas tintas látex, para acabamento de paredes. Atualmente a Bunge, uma multinacional de origem holandesa que está há mais de cem anos no Brasil e hoje atua na industrialização de alimentos e produção de fertilizantes, está operando uma linha de produ74 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
ção com capacidade para mil toneladas anuais na cidade de Cajati, na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, a 230 quilômetros da capital. Em 2007 a expectativa, não confirmada pela empresa, é que unidades maiores deverão produzir cerca de 50 mil toneladas anuais. Ainda é uma quantidade pequena se comparada aos 2 milhões de toneladas por ano de dióxido de titânio produzidos no mundo, que representam um mercado de US$ 5 bilhões. A substituição completa exige grandes investimentos e faz parte de um futuro distante. "Talvez venha a acontecer, mas o dióxido está na formulação das tintas desde o início do século 20, portanto possui uma cultura solidificada de uso." Embora a empresa não diga quanto está investindo no novo produto, sabe-se que há planos para vender o Biphor no exterior. Uma empresa de marketing O PROJETO Novos pigmentos inorgânicos e híbridos à base de fosfatos MODALIDADE
Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR
FERNANDO GALEMBECK
- Unicamp
INVESTIMENTO
R$ 25.915,30 e US$ 107.132,70 (FAPESP) R$ 67.340,00 (Serrana)
norte-americana foi contratada para divulgar o produto em outros países, começando pela América Latina. O novo pigmento traz como inovação a capacidade de melhor espalhar a luz refletida pela tinta. "Ele é composto por partículas nanoestruturadas ocas de fosfato de alumínio, preenchidas com ar em seu interior, capazes de espalhar luz em todas as direções", explica Galembeck. É uma situação semelhante à espuma da cerveja que é branca, embora o líquido seja amarelo, porque está cheia de bolhinhas de ar e devolve, ao ambiente, a luz de todas as cores incidentes sobre ela. Essa é a propriedade que as tintas devem ter, para cobrir as superfícies sobre as quais são aplicadas: a capacidade de devolver a luz ao ambiente. O mesmo princípio vale para o fosfato de alumínio, que também já foi testado em tintas coloridas. Na tinta líquida, as partículas ocas estão inicialmente cheias de água, mas quando ela vai para a parede as partículas secam e ficam cheias de ar, ganhando a capacidade de retroespalhar a luz. A função de retroespalhamento é bem executada hoje pelas partículas de dióxido de titânio dispersas na resina formadora da tinta, que é a substância branca com maior índice de refração. "Nossa idéia básica foi introduzir partículas que contêm vazios preenchidos com ar, com dimensões de centenas de nanômetros, utilizando o fosfato de alumínio", diz Galembeck. Com o desenvolvimento do novo pigmento, os pes-
Estudo inicial - O Biphor é um exemplo feliz de um projeto de pesquisa básica feito dentro de uma universidade que se transforma em produto e vai para o mercado. "Tudo começou em 1988, com o início dos trabalhos de três dissertações e teses de mestrado e doutorado, quando partimos para a elaboração, em laboratório, do pigmento básico. Até 1994, nossos estudos resultaram no de-
ara melhorias nos laboratórios e para a operação do laboratório de microscopia eletrônica", diz Galembeck. Entre 1997 e 1998, o desenvolvimento do pigmento teve o apoio de um projeto do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP. A partir de 1998, a Bunge começou a dimensionar o mercado e a fazer a avaliação do desempenho do produto. Mas, nesse período, ela vendeu duas empresas do grupo que atuavam no ramo químico: a Tintas Coral e a Quimbrasil. Isso resultou em um retardamento da tomada de decisão de fabricar o novo produto. A partir de 2003, o projeto vol-
pósito de três patentes e algumas publicações", lembra Galembeck. Nesse período, a novidade rendeu ao IQ da Unicamp três prêmios, dois da Associação Brasileira dos Fabricantes de Tintas e outro no exterior, da International Association of Colloid and Interface Scientists (lacis), entidade que reúne pesquisadores que estudam sistemas que formam as colas e os géis, por exemplo. Em 1995, a Serrana, empresa do grupo Bunge e fabricante de fertilizantes fosfatados, de fosfatos para nutrição animal e de ácido fosfórico, interessou-se pelos pigmentos de fosfato de alumínio. A partir desse interesse foi estabelecido um contrato para pagamento da exclusividade das patentes que rendeu cerca de R$ 600 mil para a Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp) entre 1996 e 2005. "O dinheiro foi usa-
tou a andar e uma nova patente foi depositada em 2004, com inovações incorporadas com a seqüência dos estudos. Em 2005, com a decisão de produzir o novo pigmento e lançá-lo globalmente, a patente de 2004 foi estendida para um grande número de países, cobrindo as inovações em produto, processo e aplicações. As negociações para a renovação do contrato inicial (de 1995) foram realizadas pela Agência de Inovação da Unicamp (Inova), que manteve os royalties de 1,5% sobre o faturamento líquido do produto por um período de 15 anos, tempo de validade das patentes no âmbito internacional. Dos royalties, um terço irá para a Unicamp, um terço para o Instituto de Química e um terço para o grupo de pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento do novo pigmento.
fosfato não catalisa nas resinas a oxidação provocada pelo oxigênio da atmosfera, oferecendo maior durabilidade à pintura ao longo do tempo.
A longa jornada de Galembeck, acompanhada por Pesquisa FAPESP nos números 16 (ainda como Notícias FAPESP), 58 e 97, torna-se uma referência nas relações universidade-empresa e na proteção das descobertas por meio de patentes. "Temos que piemos pesquisa em universidades públicas", diz Galembeck, que depositou sua primeira patente em 1978. "É possível fazer ciência, publicar trabalhos científicos e, ao mesmo tempo, preservar o patrimônio público. Para isso, é essencial o poder público proteger a propriedade do conhecimento gerado com recursos públicos e tomar as providências para o uso do conhecimento ser remunerado pelas empresas licenciadas, que transformam o conhecimento em riqueza." PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 75
■ TECNOLOGIA
NOVOS MATERIAIS
Plástico de buriti Óleo de palmeira misturado a polímeros produz material capaz de absorver e emitir luz
os frutos da palmeira buriti, encontrada em áreas alagadas da Amazônia e do Cerrado, é possível extrair um óleo que, misturado a polímeros, resulta em um plástico capaz de assimilar parte da radiação solar, inclusive os raios ultravioleta. O novo material mostrou em testes de laboratório que tem também as propriedades ópticas necessárias para ser empregado na fabricação de diodos emissores de luz (LEDs), utilizados, por exemplo, em computadores, celulares e semáforos. Os estudos foram conduzidos no Laboratório de Pesquisa em Físico-Química de Polímeros da Universidade de Brasília (UnB) por Jussara Angélica Durães, orientada pela professora Maria José Araújo Sales. A idéia de usar o óleo como um componente dos polímeros surgiu principalmente por causa de suas propriedades ópticas, como a de absorver luz visível e na faixa do ultravioleta. "O betacaroteno e o ácido oléico são os dois principais componentes, entre os vários presentes no óleo, responsáveis por essas propriedades", diz Jussara. Cabe ao betacaroteno, um pigmento amarelo-avermelhado presente na cenoura e em outros vegetais recomendado para uso na alimentação por com76 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
bater a deficiência da vitamina A, a propriedade de absorção da luz. "O buriti tem o maior porcentual de betacaroteno dentre todas as plantas conhecidas", diz Jussara. Já o ácido oléico, presente em 76% do óleo de buriti e principal componente do óleo de oliva, é o responsável pela emissão de luz. Processo contínuo - A pesquisadora explica que o tipo de ligação molecular do betacaroteno permite que os elétrons mudem facilmente de um nível de energia para outro. Quando uma luz incide sobre o material, os elétrons absorvem energia, mudam para um nível excitado e ganham mais movimento. Ao retornar para o nível original, eles devolvem a energia novamente na forma de luz. "O processo de absorver e emitir a luz é contínuo", diz Jussara. Como o processo deixa o óleo com cor bastante acentuada, na mesma tonalidade do betacaroteno, é possível enxergá-lo na região do visível." No entanto, quando o polímero recebe a adição do óleo de buriti, ele emite luz na região do verde. A descoberta de que o óleo de buriti absorve radiação ultravioleta é do professor Sanclayton Moreira, do Departamento de Física da Universidade Federal do Pará (UFPA), que estuda as propriedades físicas de óleos da região desde o início da década de 1990. Ele
verificou que o óleo de buriti, extraído tanto da polpa como da casca do fruto, é um filtro solar natural. Como estava interessado em fazer testes com plásticos, entrou em contato com o Laboratório de Pesquisa de Polímeros da Universidade de Brasília no início de 2002. O estudo, desenvolvido em parceria com a UFPA, foi o tema da dissertação de mestrado de Jussara e teve o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), resultando em um depósito de patente para os compósitos plásticos que absorvem radiação solar e funcionam como fotoprotetores. "O óleo natural faz com que o material absorva radiação solar na região do ultravioleta. Isso ocorre porque o plástico incorpora com facilidade as propriedades do óleo, permitindo também que o material se torne fotoluminescente, capaz de emitir luz na região do visível", explica a orientadora Maria José. O óleo foi adicionado ao poliestireno, material utilizado na produção de copos plásticos descartáveis, e ao poli (metacrilato de metila), matéria-prima para peças de acrílico, como as lentes de óculos escuros. Agora, em sua tese de doutorado, Jussara vai avaliar o tempo de degradação do compósito plástico. E também vai pesquisar mais a fundo a propriedade de emissão de luz do óleo de buriti para construir um dispositivo
Frutos do buriti: óleo extraído da polpa e da casca é transformado em plástico
emissor de luz (LED). O novo plástico fotoluminescente representa, possivelmente, uma alternativa mais barata aos LEDs existentes no mercado, feitos de substâncias inorgânicas como cristais de silício, o que encarece o processo. Outra característica do óleo de buriti é a capacidade, verificada em testes preliminares, de acelerar a degradação do polímero. "Ainda não dá para estimar com precisão quanto tempo seria necessário para ele se decompor na natureza, mas já temos fortes indícios de que é um material com degradação mais rápida que o polímero puro", diz Jussara. Quando descartados, os plásticos comuns levam cerca de 200 a 450
anos para se decompor na natureza, contribuindo para o aumento da quantidade de lixo e a redução das reservas de petróleo, matéria-prima da qual se obtém o produto. Outra linha de pesquisa que também está sendo desenvolvida no mesmo laboratório da UnB é a mistura do amido de mandioca com poliestireno e o óleo de buriti para fabricar plásticos corretos do ponto de vista ambiental. A biodegradação do material também está sendo estudada. Árvore-da-vida - Também chamado de palmeira-do-brejo, o buriti é encontrado em abundância em terrenos de várzea e brejos. Muitas comunidades ama-
zônicas vivem da extração da palmeira com grandes folhas dispostas em leque, chamada também de árvore-davida. Dela aproveitam-se as raízes, as folhas, o caule e os frutos para consumo e extração de óleo. Uma árvore produz anualmente oito cachos, com cerca de 500 frutos em cada um. Os frutos são semelhantes a coquinhos de cor marrom-avermelhado, com forma elíptica, revestidos por duras escamas brilhantes. Dentro encontra-se uma polpa de cor amarelo-ouro, com a qual se preparam doces, sorvetes, cremes, geléias e licores. É também da polpa, que possui uma semente comestível, de onde se extrai um óleo de cor vermelho intenso utilizado tradicionalmente pelas populações locais contra queimaduras e como cicatrizante. Das folhas da palmeira são feitos balaios, esteiras, redes de dormir e cordas. Se, além dessas aplicações tradicionais, o buriti ganhar as telas de computadores, celulares e as lentes de óculos escuros, não só a tecnologia brasileira vai ganhar novos produtos originados de um material tão insólito. As várias famílias de comunidades amazônicas serão as principais beneficiadas com a extração do produto da palmeira de forma sustentável, como também está previsto na pesquisa da UnB. • DlNORAH ERENO PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 77
Antena e prédio do radar meteorológico da Omnisys instalado no município de Mogi das Cruzes
78 • NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
■ TECNOLOGIA
METEOROLOGIA
Radar do tempo Empresa paulista desenvolve e vai fabricar equipamentos meteorológicos inéditos no Brasil
\
Y
N
e importador de radares meteorológicos, o Brasil está prestes a se tornar exportador, ingressando no grupo mundial de fabricantes desses equipamentos, dominado pelos Estados Unidos e Japão. O feito é resultado dos esforços da Omnisys, uma empresa de base tecnológica localizada em São Caetano do Sul, na região da Grande São Paulo. Em parceria com a empresa Atech Tecnologias Críticas, com sede em São Paulo, ela projetou e fabricou o protótipo de um radar meteorológico e está pronta para fornecer o equipamento para clientes no Brasil e no exterior. "Somos atualmente a única empresa no Brasil e na América Latina a desenvolver um radar meteorológico do tipo Doppler que opera na chamada banda S. O grande diferencial do nosso equipamento é o índice de nacionalização, próximo a 95%. Mesmo fora do Brasil, não existem equipamentos superiores em concepção ou soluções técnicas. Por ser competitivo em termos de preço, tecnologia e desempenho, acreditamos que ele possa fazer sucesso em outros países", afirma o engenheiro Luiz Henriques, presidente da Omnisys. Os radares meteorológicos têm uma função primordial no mundo moderno. Eles fornecem informações vitais sobre os fenômenos da natureza, como chuvas, nuvens, ventos, ciclones, furacões e formações de ar quente. São, portanto, fundamentais para diversas atividades humanas, como a agricul-
tura e a aviação. As informações fornecidas pelos radares também são importantes para a tomada de decisões da Defesa Civil - e os ciclones que atingiram a costa de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul nos últimos meses não deixam dúvida dessa aplicação. A diferença entre um radar Doppler, como o desenvolvido pela Omnisys, e um convencional é que o primeiro fornece informações muito mais abrangentes. Além de determinar a intensidade dos fenômenos meteorológicos, o Doppler também consegue medir a velocidade e a direção das nuvens e das chuvas. Um radar convencional determina apenas o volume de precipitação em determinada localidade. "O fenômeno Doppler está associado à mudança de freqüência do sinal em função do deslocamento do alvo, seja ele uma nuvem, um carro ou um avião. Os radares utilizados pela Polícia Rodoviária para flagrar veículos com excesso de velocidade, por exemplo, são do tipo Doppler", afirma Henriques. A tecnologia do novo radar está baseada na utilização da banda S, uma freqüência eletromagnética de operação compreendida entre 2,7 gigahertz (GHz) e 2,9 GHz. Sua vantagem sobre os radares banda X, que operam na freqüência de 10 GHz, é o maior alcance. Enquanto esses radares têm raio médio de 100 quilômetros, os da banda S atingem alvos localizados até 400 quilômetros. O desenvolvimento de um radar meteorológico Doppler nacional traz várias vantagens para o país. A independência tecnológica é a primeira delas. "Com isso, não precisaremos PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 • 79
mais comprar esses aparelhos de empresas estrangeiras e, conseqüentemente, economizaremos divisas. Um radar desse tipo, já instalado, custa em torno de US$ 2 milhões", diz Henriques. Outro benefício da nacionalização do equipamento é a redução dos custos de logística, como manutenção, reparos, além da agilidade no atendimento aos clientes. O desenvolvimento do novo radar traz ainda um importante ganho para o país. "Por uma questão filosófica, desenvolvemos a maior parte dos componentes utilizando a engenharia nacional e fazendo convênios de cooperação tecnológica com a Universidade de São Paulo (USP), a Universi dade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). Conseguimos capacitar mão-de-obra especializada e financiamos bolsas de mestrado de quatro engenheiros da Escola Politécnica da USP e da Unicamp", conta Henriques. Tem mais: parte da tecnologia criada para o radar meteorológico já foi utilizada no desenvolvimento de soluções para radares de trajetografia dos centros de lançamento de foguetes localizados em Alcântara, no Maranhão, e em Natal, no Rio Grande do Norte. Radares de trajetografia têm o objetivo de acompanhar a trajetória de foguetes durante o lançamento. Valendo-se dos conhecimentos adquiridos no projeto do radar meteorológico, a Omnisys já participou da modernização de quatro desses radares da Aeronáutica, trocando transmissores, receptores e processadores obsoletos por componentes e equipamentos de última geração. O radar meteorológico contou com apoio financeiro da FAPESP por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), finalizado no ano passado. Em agosto deste ano passou com sucesso por testes de aceitação em campo realizados pelo Comando da Aeronáutica, que deverá se converter no principal cliente da empresa. Por meio do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), a Aeronáutica utiliza radares meteorológicos na orientação dos aviões, identificando fenômenos que possam colocar em risco a segurança dos vôos. "Esta80 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
mos concluindo um contrato para fornecimento do primeiro radar para o Comando da Aeronáutica, que será instalado no aeroporto de São Luís, no Maranhão. A entrega está prevista para o primeiro semestre de 2006", afirma Henriques. A empresa também já está apresentando seus radares no exterior.
s perspectivas do mercado para esse tipo de radar no Brasil são excelentes, segundo o presidente da Omnisys. O país possui cerca de 25 radares meteorológicos em operação (16 para auxílio no controle de tráfego aéreo e os restantes para aplicações civis), enquanto nos Estados Unidos, país tão extenso quanto o nosso, são mais de 250. Por se mostrar um mercado tão promissor, a Omnisys e a Atech fizeram uma parceria e criaram, em 2004, uma nova empresa, a Atmos, para atuar somente no segmento meteorológico. A empresa já trabalha na montagem, ainda com peças e softwares importados, de um radar de banda X para o Sistema Integrado de Hidrometeorologia do Estado de São Paulo (Sihesp) (veja PesOS PROJETOS i. Conjunto de antena banda S para integrar sistema radar meteorológico Doppler 2. Transmissor banda S para integrar sistema de radar meteorológico Doppler 3. Receptor banda S para integrar sistema radar meteorológico Doppler MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADORES i. Luiz MANOEL DIAS HENRIQUES - Omnisys 2. JEAN CLAUDE LAMARCHE - Omnisys 3. JORGE HIDEMI OHASHI - Omnisys INVESTIMENTO 1. R$ 286.804,60 (FAPESP) 2. R$ 167.228,00 (FAPESP) 3. R$ 250.092,40 (FAPESP)
quisa FAPESP n° 108). Além de vender novos equipamentos, a Atmos também faz a modernização, parcial ou integral, dos radares já instalados no país. Emissor e receptor - O novo radar da Omnisys foi batizado de RMD700S1M e já está instalado em Mogi das Cruzes (SP). Ele é composto por cinco subsistemas: um conjunto formado pela antena e pelo pedestal, um transmissor, um receptor, um processador e um aparelho chamado BITE, sigla em inglês de Built-in Test Equipment, que serve para monitorar o funcionamento de todos os demais circuitos do radar. O processador é responsável pelo tratamento das informações recebidas pelo radar e pela apresentação das imagens. É composto por um hardware e um software criado pela Atech. Os outros três subsistemas foram desenvolvidos pela Omnisys. Além dos recursos da fundação, da ordem de R$ 700 mil, a empresa investiu mais de R$ 2 milhões no projeto. O conjunto antena-pedestal é o sistema que faz a interface do radar com o ambiente. A antena é do tipo parabólica, com 4 metros de diâmetro, e sua tecnologia foi totalmente desenvolvida no Brasil. O pedestal é o mecanismo encarregado de fazer com que a antena se movimente, segundo os comandos recebidos do processador. "A qualidade das informações recebidas pela antena depende de alguns fatores, como sua velocidade de rotação, a precisão de seu posicionamento e os parâmetros do pulso do radar, que precisam ser bem controlados", diz Henriques. O transmissor é o subsistema responsável pela geração e envio do sinal eletromagnético pulsado de alta freqüência para a antena. Para esse aparelho foram desenvolvidas soluções técnicas inéditas, sendo a principal um modulador de pulso em estado sólido. Esse equipamento gera o pulso de altatensão necessário para excitar a válvula osciladora, essencial para o bom funcionamento do radar. A novidade do modulador criado pelos projetistas da Omnisys é que ele é feito de componentes semicondutores, enquanto aparelhos similares mais antigos utilizam válvulas. Essa troca é vantajosa por vários motivos: aumenta a confiabilidade do transmissor, facilita o trabalho de
Tela do radar meteorológico instalado em Mogi das Cruzes. As nuvens, quanto mais estiverem representadas pelo vermelho, como na escala ao lado, estarão mais carregadas de chuva
manutenção e melhora a estabilidade na geração do pulso. O receptor, por fim, serve para receber os sinais dos ecos de alta freqüência provenientes dos alvos (nuvens, ventos, chuvas etc.) e gerar os sinais de vídeo correspondentes. Ele foi projetado com uma concepção modular, de forma a facilitar a manutenção e os ajustes necessários à sua perfeita operação, e foi construído com tecnologia de ponta, sobretudo o amplificador de baixo ruído, que determina a sensibilidade do radar. Quanto melhor for o amplificador presente no receptor, mais sensível e maior será o alcance do sistema. História de sucesso - A Omnisys foi fundada em 1997 por três engenheiros eletrônicos, Luiz Henriques, Jorge Ohashi e Edgard Lima de Menezes, que trabalharam durante alguns anos na Elebra, uma das maiores empresas brasileiras de eletrônica nos anos 1980. No início, o objetivo da Omnisys era atuar como provedora de sistemas para aplicações aeronáuticas, navais e meteorológicas,
tendo se firmado como prestadora de serviços. Em 2001 mudou sua natureza social e passou a agregar as atividades industriais de fabricação mecânica e eletrônica. Nos últimos cinco anos, teve um crescimento ascendente. Passou de 10 para 170 funcionários e seu faturamento, de R$ 700 mil em 2000, deve atingir R$ 23 milhões neste ano. Nos anos 1990 a empresa participou do processo de implantação do Projeto Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). "Por meio de um contrato com a Atech, fomos encarregados de realizar o levantamento em campo para instalação de 90 estações para troca de dados via satélite", diz Henriques. Essas estações, com cerca de 2 metros, eram destinadas a prover comunicação em lugares de acesso restrito na Floresta Amazônica, como aldeias indígenas e postos da Funai, por exemplo. Atualmente, a Omnisys atua nos mercados de defesa, aeroespacial, meteorologia e automação industrial e tem diversos contratos com o governo e instituições do Brasil e de outros países. Para o Ins-
tituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) a empresa está projetando e desenvolvendo o subsistema de coleta de dados dos satélites sino-brasileiros CBERS 3 e 4 e fornecendo os computadores de bordo do satélite CBERS 2B. Ainda na área espacial, está projetando e construindo uma estação de telemedidas destinada a monitorar condições como temperatura, velocidade etc. de foguetes durante as operações de lançamento no Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Com a companhia francesa Thales, principal grupo europeu na área de equipamentos e sistemas eletrônicos de' proteção ao vôo, a Omnisys está fazendo a modernização de um conjunto de radares de tráfego aéreo do Brasil. Também desenvolve sistemas para radares instalados pelo grupo francês em outros países. "Agora estamos trabalhando na modernização de um radar de controle de tráfego aéreo na Indonésia", conta Henriques. • YURI VASCONCELOS
PESQUISA FAPESP 117 • NOVEMBRO DE 2005 -81
■
HUMANIDADES
MUSICA
Entre dois corações e mundos Livro analisa a obra do compositor Ernesto Nazareth, autor de "Brejeiro", que aproximou o erudito e o popular na virada para o século 20 GONçALO JúNIOR
O
discurso político progressista do novo regime republicano, que marca as três primeiras décadas na virada para o século 20, pregava a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional e a negação de toda e qualquer forma de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da elite, como observou o historiador Nicolau Sevcenko. Estabeleceu-se, assim, com rigor, uma política de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, isolada à força para desfrute de uma minoria. Ao mesmo tempo, adotou-se um cosmopolitismo agressivo, muito identificado com o modo de vida parisiense. Num contexto marcado pela efervescência cultural popular do samba e de diversas formas de dança, viria se consagrar o músico e compositor carioca Ernesto Júlio Nazareth (1863-1934). Sua música seria o elo que dividia esses dois mundos. Pianista talentoso, com formação erudita, dava aulas e executava partituras para clientes interessados em música clássica. Tinha, no entanto, "um pé na cozinha". Em 1893 compôs o tango "Brejeiro", cujos direitos vendeu por causa de problemas financeiros. Quase 15 anos depois, como pianista de cinema, criou o tango "Odeon", sua música mais famosa. Na década de 1920 aderiu a ritmos da "moda", como foxtrotes, sambas e marchas carnavalescas. Em 1930 lançou a polca "Apanhei-te, cavaquinho". Pouco depois, surdo e com problemas mentais, foi encontrado morto por afogamento numa represa. A partir de então, suas composições se tornaram obrigatórias em tudo que se fez de choro no Brasil nos 70 anos seguintes. Além de recém-adquirir um representativo acervo do compositor, o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, manda
82 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
para as livrarias em maio do próximo ano o livro O enigma do homem sério Ambição e vocação de Ernesto Nazareth, do músico profissional e historiador Caca Machado. A obra é resultado da tese de doutorado em literatura brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), apresentada em 2004, com a orientação do professor e compositor José Miguel Wisnik. O autor analisa a obra de Nazareth sem desvinculá-la de sua trajetória de vida e acaba por formar um rico retrato da vida musical brasileira do período, com suas rupturas e continuidades históricas.
Nazareth na juventude e na velhice e a partitura de seu grande sucesso, o tango Brejeiro
Sonoridade - Caca Machado conta que seu interesse pelo compositor veio da infância. Além de ter a avó materna professora de piano - que fazia questão de incluir Nazareth no repertório, obrigatório a todo aluno de piano -, quando começou seus estudos musicais, a mãe colocava composições do autor de "Odeon" na vitrola, interpretadas por Arthur Moreira Lima. E seu interesse só aumentou vida afora. Ao tomar contato com a teoria musical, descobriu que o compositor também tinha uma sonoridade mais despojada ao ser tocada pelos regionais de choro. Veio também o gosto por Pixinguinha e pela música popular brasileira. O violão tomou o lugar do piano. Mas Nazareth permaneceu. Tornou-se o mais adequado e estimulante tema para desenvolver seu trabalho de graduação sobre o choro, não apenas porque tinha uma riquíssima e volumosa obra. A pesquisa - que partiu de um projeto de Iniciação Científica individual com bolsa da FAPESP entre 1993 e 1995 - começou a ganhar densidade e num determinado momento ele e Wisnik acharam que o trabalho teria fôlego para um Doutorado Direto. Por muito tempo o título da tese foi "O enigma do homem célebre: biografia musical de Ernesto Nazareth". O autor havia partido de um foco definido que seria a análise musical da obra do compositor. Para não criar expectativas de uma biografia histórica ou jornalística, poPESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 83
rém, optou por mudar para "O enigma do homem célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth". "Meu objetivo sempre foi o da obra e da sua interpretação crítica. Mas não podemos, evidentemente, dissociar a produção do autor." Os elementos biográficos e históricos, nesse sentido, passaram a fazer parte de um "círculo hermenêutico" no qual a "parte" e o "todo" se sobrepuseram em camadas de interpretação. Durante a garimpagem dos dados, ajudou o fato de que, em 1964, para marcar as comemorações dos 30 anos da morte de Nazareth, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro organizou uma exposição sobre o compositor. Resultou na criação de um arquivo com documentos diversos - partituras, fotografias, manuscritos, artigos de jornais - sobre o compositor que pertenciam à sua filha, Eulina de Nazareth, e ao musicólogo Andrade Muricy, entre outros. "Esse acervo é a base de qualquer pesquisa sobre o compositor e está concentrado num único local, o que facilita muito o trabalho." Caca Machado também descobriu Luiz Antônio de Almeida, que havia se apaixonado no início dos anos 1980 pela figura de Nazareth e decidiu fazer uma biografia. Entrevistou a última geração viva que teve contato com o compositor e ganhou da neta do compositor o que restou de documentos mais pessoais que não entraram para a Biblioteca Nacional. Luiz Antônio se tornou biógrafo "oficial" de Nazareth e colocou sua coleção à disposição do pesquisador paulista. No ano passado, por sugestão deste, seu acervo foi comprado pelo Instituto Moreira Salles. A tese de Caca Machado é muito cuidadosa quanto a contextualizar a música popular no começo do século 20. O texto é fluente e traduz com fidelidade os anos que antecederam a era do disco. Durante sua produção, ele trabalhou em três frentes ou campos de conhecimento: a música, a literatura e a história. "Tratei a partitura musical como fonte primária, assim como a literatura de Machado de Assis e os cronistas e memorialistas do período." 84 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
HUR NAPOLEÃO
INDADA EM 1S48 1üSTA BELECIM E NTO
DE PIANOS E MUSICAS
SAMPAIO ARAÚJO 6 #1 Avenida Rio Branco N? 122 RIO
o mesmo modo que para o crítico literário o texto de uma poesia ou de um conto é considerado fonte primária, na sua perspectiva de historiador da cultura, explica ele que a partitura musical também o deve ser. "Assim como o crítico literário deve dominar o discurso técnico sobre a teoria literária, ou as figuras de linguagem, por exemplo, como músico e historiador também precisei me aprofundar no discurso técnico-musical." Distante da musicologia tradicional, porém, sua interpretação da fonte primária, no caso a partitura musical, está sempre costurada pela história, até o ponto que isso seja possível. "É, na realidade, um processo muito sutil e frágil."
DE
JANEIRO.
O estudo defende um estilo musical único em Nazareth, que compôs clássicos no gênero tipicamente popular e, ao mesmo tempo, únicos. Para ele, o pianista sempre compôs dentro de um gênero definido - os sincopados do início do século 20, como choro, tango etc. -, assim como outros compositores. "Ele fazia música de dança, música para se dançar, só que, diferentemente de outros compositores, imprimiu um estilo muito próprio." Neste, de fato, elementos da linguagem do repertório pianístico romântico apareciam "saborosamente sincopados e 'recontextualizados' dentro de uma forma - gênero musical - amplamente difundida e recorrente". Reunia, portanto, singularidade ao gênero sem deixar de ser gênero. Embora o subtítulo do livro relacione "música, história e literatura", o autor afirma que não existiu uma relação direta entre Nazareth e o mundo dos livros, no sentido de que, como em ou-
ORCHESTRA FrfifSn
ria
CASA ARTHÜR NAPOLEÂO «AMOSÉMUMCAS
SAMPAIO ARAÚJO * Cí«.
tros compositores, a literatura poderia ser um campo de criação artística estimulante ou "inspiradora" para a criação musical. "Nazareth estava muito longe do interesse e do círculo literário. Aqui acontece o contrário. Machado de Assis demonstrou um olhar muito perspicaz sobre a música do período. Como ninguém, captou e comentou, entre outras coisas, o processo histórico de formação dos gêneros da música popular urbana sob o signo da figura rítmica da sincopa (em algumas crônicas)." O escritor também teria tocado no tema da singularidade musical brasileira em transitar pelos chamados espaços do "erudito" e do "popular", ao dramatizar no conto "Um homem célebre" a angústia de um compositor de sucesso popular que queria o reconhecimento do universo erudito. Caca Machado observa que, do mesmo modo que Pestana, o personagem do conto, Nazareth viveu esse dilema como angústia pessoal e como realização musical em seus
tangos. "Nesse sentido, foi a literatura que deu a chave interpretativa de uma questão musical e histórica: a formação dos gêneros de música urbana e as questões musicais e estéticas envolvidas nisso." Preconceito - Outro aspecto importante tratado pela tese foi o fato de o compositor ter trafegado entre o erudito e o popular, o que causou preconceito de ambas as partes em lhe dar o devido valor - apesar do reconhecimento quando ainda era vivo, em diferentes momentos. Caca Machado cita como exemplo o episódio ocorrido em 1922, quando aconteceu um protesto durante um recital de alunos do Instituto Nacional de Música porque foram incluídas peças de Nazareth, consideradas de valor menor e popularescas. Episódios assim, biográficos sob determinado aspecto, permitiram ao historiador chegar a um perfil psicológico e a compreender seu comporta-
mento. Nazareth era um melancólico, um homem que sempre viveu com a angústia do desejo de se tornar um concertista. "Talvez como uma nostalgia de uma experiência quase vivida, uma vez que no início de sua vida musical destacou-se com talentoso instrumentista, mas sua família não conseguiu recursos para o aperfeiçoamento na Europa" - então o caminho comum para formação dos concertistas no Brasil imperial. Tanto que, dois anos antes de morrer, quando apresentava sinais dos distúrbios neurológicos causados pela sífilis, Nazareth saiu no meio de uma apresentação da pianista Guiomar Novaes, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, dizendo para quem quisesse ouvir: "Porque eu não fui estudar na Europa, eu queria ser como Guiomar Novaes!" Sua vocação para compor polcas e tangos, por outro lado, fez dele uma das matrizes da música brasileira, seja popular ou erudita, que influenciaria de Villa-Lobos a Tom Jobim. Teve, porém, um fim de vida triste. "Numa época em que as rápidas transformações da cultura de massas, principalmente com o rádio e o disco, não deixaram mais lugar para sensibilidades como a de Nazareth." A música urbana, então, mudava com os sambistas e as primeiras escolas, que traziam um jeito mais coloquial e expressivo de se fazer música, principalmente canções. "No meio da década de 1930, a música de Nazareth já não era tão popular e soava antiga em comparação aos sambas de Noel Rosa e Ismael Silva, por exemplo." Mas, diz Caca Machado, Nazareth sempre despertou o interesse dos compositores da música erudita nacional por causa da sua sofisticada escrita e originalidade rítmica. Desse modo, o popular "rei dos tangos" da década de 1910 perdeu o seu reinado nos anos 1930. Ao mesmo tempo, compositores eruditos da chamada geração "nacionalista" elegeram sua música como referência de originalidade nacional. "Enfim, tudo isso, somado ao desejo de ter sido um concertista, imprimiu em Ernesto Nazareth uma personalidade melancólica, meio alheia aos acontecimentos ao seu redor e profundamente original." E o tempo teima em provar que ele escolheu o caminho certo. Virou um homem célebre. • PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 85
I HUMANIDADES
ANTROPOLOGIA
A mulher num mundo de homens Estudos do corpo feminino colocam em xeque velhas noções de gênero CARLOS HAAG COLAGENS HéLIO DE ALMEIDA
Durante anos, a visão de uma pena na cauda de um pavão irava Darwin. Para que, pensava ele, aquele ornamento "inútil", se as espécies só desenvolviam traços necessários a sua sobrevivência? Certo dia, o penacho ganhou sentido: o cientista percebeu que as aves com o "plus" atraíam mais parceiras e, logo, tinham mais chances de passar adiante seus genes. Com o mesmo darwinismo na cabeça, o zoólogo inglês Desmond Morris faz, em A mulher nua (Editora Globo), uma viagem pelo corpo feminino para tentar mostrar que a maioria das características das moças evoluiu com o fim de atrair homens. "À medida que o homem e a mulher percorriam o seu trajeto evolutivo, o homem se comportava de uma maneira cada vez mais infantil e mostrava menos mudanças físicas, enquanto a mulher desenvolvia mais atributos físicos e menos qualidades mentais infantis", explica o pesquisador. Os homens eram mais infantis em seu comportamento e as mulheres, em sua anatomia, a chamada neotênia, o que as fazia mais desejáveis para os machos: "Quanto mais características de bebê apresentassem, maior o interesse dos parceiros por elas e maior a proteção que recebiam". Uma pena numa cauda nem sempre é apenas uma pena numa cauda. "Ao longo da evolução desenvolvemos formas de atrair os parceiros para o prazer sexual, o que garantia o retorno dos caçadores às suas tribos e permanência das fêmeas nas suas ausências. Nossa espécie só sobreviveu e teve sucesso por causa da incrível re86 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
lação entre machos e suas parceiras. Não há guerra de sexos", diz Morris. A natureza diferenciaria os gêneros para que cada um necessitasse do outro. Por que os homens preferem as loiras? "Elas passam uma imagem mais juvenil e essa imagem, projetada por uma mulher adulta, aumenta seu poder de sedução, com fortes sinais de que ela deseja ser cuidada." O que faz os lábios tão sensuais e por que as mulheres vivem passando batom neles? "Em sua forma, textura e coloração, eles imitam os lábios vaginais." Cultivar unhas longas? "Em várias culturas isso mostrava que elas não precisavam fazer nenhum trabalho." A fixação masculina nos seios é um sinal de regressão masculina? "Isso não tem fundamento. As fêmeas de primatas emitem sinais sexuais com o traseiro enquanto caminham sobre quatro patas, atraindo os machos. A mulher caminha ereta e é vista, quase sempre, de frente. O par de falsas nádegas que traz no peito lhe permite continuar transmitindo o sinal sexual sem dar as costas ao interlocutor." Como entender a chamada "preferência nacional"? "A mulher tem as costas mais arqueadas do que os homens e, em posição de repouso, o traseiro se projeta mais para fora do que o do homem. Quando ela caminha, a estrutura óssea das pernas e quadris provoca uma ondulação maior da região glútea. Em outras palavras: ela rebola ao andar." Essas explicações biológicas, por mais que o pesquisador se desdobre em elogios à mulher, trazem a polêmica de uma discussão recente sobre um velho modelo: "A reprodução é um dos principais pilares do que se entende por feminino. A função materna
parece se constituir no núcleo central do ser mulher, e não ser mãe é ser vazio de sua potência, de sua importância. A feminilidade, ao mesmo tempo, no senso comum, possui ressonâncias de significados advindos de discursos científicos e religiosos que têm sua parcela de contribuição na maneira como deveria ser o comportamento feminino, o lugar e o papel da mulher", rebate Kimy Otsuka, autora da tese de doutorado "Travessias do feminino" (que teve apoio da FAPESP) Fica cada vez mais difícil fazer biquinho, como os franceses, e dizer com gosto: "Vive Ia dijferenceP' O corpo nu, historicamente, vem revestido de um caráter político. "Tanto o sexo biológico como o gênero cultural são idéias informadas por crenças científicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. sobre a 'natureza' dos seres humanos", analisa Jurandyr Freire Costa. "A obsessão por 'sexo e gênero' é irrelevante para reconhecer diferenças entre homens e mulheres ou julgar, do ponto de vista ético, os melhores e os piores." Afinal, faz apenas dois séculos que a humanidade aceitou que havia diferenças entre os sexos. Até fins do século 18 pensava-se que o sexo era um e o mesmo para homens e mulheres. Como observa Thomas Laqueur, em seu estudo, Inventando o sexo: "Durante milhares de anos, acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens, só que a delas ficava dentro do corpo e não fora. A mulher era essencialmente um homem imperfeito. Ser homem ou ser mulher era manter uma posição social, assumir um papel cultural e não ser organicamente de um ou outro de dois sexos incomensuráveis. Assim, antes da Revolução Francesa, o sexo era uma categoria sociológica, e não ontológica". Liberdade, fraternidade, igualdade e, portanto, dois sexos. "Essas novas formas de interpretar o corpo resultaram não da ciência em si, mas do rumo de seu desenvolvimento aplicado à política", lembra Kimy. A ideologia via melhor do que a anatomia e só houve interesse em buscar evidências para fundamentar dois sexos distintos, nota a pesquisadora, diferenças anatômicas e fisiológicas concretas entre homem e mulher, quan88 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
do essa diversidade se tornou politicamente desejável. O sexo biológico foi, e é, segundo Laqueur, uma construção social e o corpo é concebido como uma entidade natural que contribui para a explicação do gênero. "A anatomia finalmente se transformou em destino", observa. É quando o gênero se cola à idéia do sexo.
ssim, "a mulher é incessantemente 'naturalizada', ao contrário do homem, de modo geral associado ao domínio da cultura, da ação e do pensamento", avalia Fabíola Rohden, autora de Uma ciência da diferença. Segundo ela, a partir do século 19, iniciou-se um empenho por parte de médicos e cientistas para estabelecer claras diferenças de caráter biológico e predeterminado entre os sexos. Mais: o sexo passou a ser entendido como um elemento natural, responsável pelo destino social de homens como provedores e de mulheres como esposas e mães. "A medicina vai propor uma releitura do corpo feminino, quando do surgimento da chamada "ciência da mulher", cuja origem se encontraria no terreno do interesse pela diferença", nota Fabíola. A ginecologia viria, então, como forma de reforçar a suposta relação entre a "inferioridade" física, psicológica e intelectual da mulher em relação ao homem como uma realidade inscrita no próprio corpo. "É com base nessa visão biológica que se estabelecem os papéis sociais. As características anatômicas das mulheres as destinariam à maternidade, e não ao exercício de funções públicas." Rachel Soihet, organizadora de O corpo feminino em debate, vai além. Segundo a pesquisadora, a medicina apareceu como alicerce ideológico à cristalização dessas relações de poder, contribuindo para que as principais decisões políticas obtivessem sucesso ancoradas nas diferenças entre homens e mulheres. Em outras palavras, foi uma "ortopedia" quanto ao masculino e ao feminino, colaborando na reprodução
e manutenção dos aspectos positivistas-funcionalistas que a ordenação social exigia em determinadas épocas e contextos. A modernidade, no entanto, reserva surpresas ainda maiores sobre esta já diluída diferenciação de gêneros. Desenvolvida a partir das duas guerras mundiais, com seus inúmeros mutilados, a cirurgia plástica conseguiria, ao mesmo tempo, consolidar e solapar essa imposição política sobre o corpo feminino. "Numa primeira visão, a biomedicina teve, e tem, função de controle do social, contribuindo para um disciplinamento do corpo ou docilização, que determina as posturas esperadas e convenientes para a sociedade", observa a antropóloga Liliane Brum Ribeiro. Beleza - "A medicalização do corpo feminino, após décadas imersa num darwinismo que se preocupava em achar diferenças, agora, com as cirurgias plásticas, estéticas e corretivas, já não se legitima mais pelo mesmo discurso médico biologizante que, em séculos passados, determinou o que a mulher deveria fazer com o frágil e fragilizado corpo", afirma. Segundo dados obtidos pelo Projeto Temático apoiado pela FAPESP, Gênero, corporalidades (ainda em desenvolvimento), coordenado pela antropóloga Mariza Corrêa, da Unicamp, "o Brasil é, certamente, um país em que o culto da beleza, da juventude e da sensualidade aparece como uma das características mais marcantes de sua cultura, mas é também o país que conta com uma impressionante indústria da beleza". Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o país, no ano 2000, foi o campeão global em número de cirurgias plásticas por razões estéticas. Há nisso uma notável dualidade. "O corpo, hoje, é sujeito da cultura, possui agência (ação); é como tal que, pelas cirurgias plásticas, o gênero passa a marcar o corpo feminino. Pode-se pensar que o corpo siliconado ou construído pela plástica coloca em xeque os dualismos natureza/cultura, sujeito/objeto, mas também pode elucidar o modo como o sujeito contemporâneo possui seu corpo docilizado por aparatos de poder; informado por disposições estruturadas e estruturantes, mas também dotado de agência. Ou seja, o corpo passa a ser o espaço do ser entendido como devir", diz Liliane.
Daí o interesse do projeto da Unicamp em "investigar o que há de compartilhado em nossas sociedades quando se trata de pensar os corpos tendo em vista discutir a visão cada vez mais disseminada do corpo como matéria plástica capaz de burlar ou adiar as restrições que lhe são impostas no que ele tem de material, finito e frágil e, por outro lado, de ser adaptado e amalgamado a qualquer convenção culturalmente estabelecida". Isso pode ser verificado tanto em práticas como o turismo sexual, em que homens de países do Norte procuram mulheres de países subdesenvolvidos a fim de recriar padrões tradicionais de gênero no marco de relações extremamente desiguais, como nos chamados transgêneros. "Eles são um corpo em transformação e talvez nos façam pensar no corpo metamorfoseado não como uma substância acabada, mas algo orgânico, móvel, em processo. Mais do que um corpo, uma corporalidade, um devir que se refaz sempre em uma corporalidade", avalia Liliane. Saímos da visão darwinista para entrar na ciência futurista de Donna Haraway, autora do Manifesto cyborg, em que a pesquisadora afirma que "a imagística dos cyborgs pode sugerir uma maneira de sair do labirinto dos dualismos com os quais explicamos, a nós mesmos, nossos corpos". Em seu doutorado, recém-defendido na Universidade de São Paulo (USP), "Os dilemas do humano", Marko Synésio Monteiro trabalha justamente com esse novo conceito de corpo e de como as tecnologias da biologia molecular influenciam a nossa percepção do que é o corpo, o que ele representa na cultura e como nos relacionamos com ele. "Concordo com Haraway quando ela nos convida a aceitar a existência do cyborg não como o fim do natural, com máquinas tomando os nossos corpos. Ela reafirma que somos cyborgs na medida que estabelecemos relações estreitas com a tecnologia, o que, em vez de nos escravizar, é uma possibilidade de liberdade, já que as velhas visões do que significa ser humano podem ser recriadas e repensadas, de modo que não continuemos, por exemplo, a ser tão patriarcais", analisa Monteiro. Nesse dia, a "filosofia" de Marilyn Monroe fará todo sentido: "Eu não me importo de viver num mundo de homens, desde que eu possa ser uma mulher". •
Chagall
■
leaa ti
.■
■
.
■
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 89
■ HUMANIDADES
SOCIOLOGIA
A pátria pendurou as chuteiras? No Brasil, futebol é coisa séria, visto por especialistas como paradigma da globalização
p
arecia que assistir a todo tipo de CPIs pela televisão e falar da crise política havia se transformado no esporte nacional brasileiro. Mas a "máfia do apito" mostrou que a pátria ainda não pendurou suas chuteiras: a descoberta de -_JH_corrupção no esporte amado conseguiu fazer com que o país deixasse de lado Delúbios e Valérios para discutir assunto mais sério: o futebol. "Ele talvez seja o único item que chegou com o fluxo da modernização republicana, uma modernização autoritária, que deu certo. De todo mundo que se decepcionou com a democracia e o mercado, com o futebol o elo amoroso foi ficando cada vez mais profundo", explica o antropólogo Roberto Da Matta. "Esse episódio vai fazer o futebol ficar mais forte, porque, nesse esporte, as regras são claras e estão longe dos juizes que as manipulam com limitações. É o oposto do que ocorre no campo político, onde as pessoas fazem as regras, interpretando-as a seu bel-prazer", acredita. As chuteiras parecem mesmo imortais. "O futebol, gradualmente, se tornou um dos instrumentos brasileiros de pensar e de, sobretudo, classificar o mundo. A nação brasileira não é só metaforizada no futebol, ela passa a 'existir' como algo concreto e palpável por meio das imagens constituídas a partir desse esporte", diz o antropólogo Igor Machado. "O futebol é um discurso capital sobre a nacionalidade. Não é simplesmente um outro discurso sobre a brasilidade, mas fundamental para sua constituição. Não há dúvida de que o futebol é um mapa alternativo, mas é um mapa tão real quanto aquele da vida econômica ou política, pois possibilita o sentimento da nação. Mais: ele possibilita uma imagem da nação quase à revelia das condições econômicas e das imagens negativas do Brasil, mundo
90 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
alternativo que se apresenta como mais justo." Assim, o "mar de lama" do esporte afoga mais o brasileiro que o da política. "Só não podemos nos esquecer de que o futebol é uma caricatura (no sentido de que traz em si os traços essenciais) da sociedade brasileira. Nos momentos de glória ou crise, a história do esporte no país esteve sempre vinculada com a dinâmica sócio-cultural, econômica e política da nação. E às voltas com a tal modernização", lembra o economista da Unicamp, Marcelo Weishaupt Proni, autor de Metamorfose do futebol. Marketing - Torcedores não costumam ser levados sempre pela razão e é complexo tirar do brasileiro a eterna nostalgia pelo "futebol arte", corrompido pelo marketing e pela modernidade que tentam transformar, a contragosto de muitos, os fãs em consumidores. "Ao longo do século, são recorrentes as percepções do 'atraso' e as tentativas de
modernizar a sociedade brasileira. O problema é que, em geral, se adentrava na tal modernidade de forma parcial. Ficavam as raízes, a estrutura arcaica de poder, sobrepondo-se a ela uma roupagem nova, um invólucro de modernidade", observa Proni. "A evolução do nosso futebol se deu de forma análoga com a modernização da gestão econômica do esporte avançando na frente, em descompasso com a modernização da estrutura política." Colocar o futebol em compasso com a profissionalização dos clubes europeus, pensaram vários analistas, seria a forma ideal de libertar o esporte da relação, por vezes espúria e sempre arcaica, entre ele e governantes locais ou nacionais. O Estado, nesse mundo ideal, apenas fiscalizaria e impediria abusos de poder. Porém isso não se verificou, nota Proni. Reiterando, aliás, um modelo iniciado a partir da década de 1930: "A medida que o futebol se tornou um fenômeno popular de massa, não havia mais como ignorar,
como o Estado fazia até então, o esporte e sua influência", afirma Eliazar João da Silva, autor da tese de doutorado "A seleção brasileira de futebol entre 1930 e 1958: o esporte como um dos símbolos de identidade nacional", da Unesp. Esperto, ao assumir a Presidência da República, nos anos 1930, Vargas inclui no Programa de Reconstrução Nacional, com apenas 17 itens, um exclusivo sobre o futebol brasileiro, regulamentado a profissão do atleta de futebol. Se chegou ao país em fins do século 19 ainda elitizado e justificado por um discurso europeizado eugenista (a preparação da juventude sadia) de fins bélicos (sadia e pronta para a guerra), em pouco tempo, pela sua simplicidade, ele passou a fazer parte do cotidiano das regiões urbanas, em especial as mais pobres. "A constatação de que o futebol ocupava o tempo livre de diversas camadas sociais não passou despercebida pelos representantes do Estado Novo. E a interpretação do futebol coPESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 91
mo símbolo de identidade nacional contou com o apoio da imprensa e de intelectuais", conta Eliazar. Entre eles, Gilberto Freyre, que, se respaldando em seu elogio ao caráter mestiço da nação, afirmava que "esporte tinha uma alma brasileira, pelo encontro ideal entre brancos, índios e negros, base da democracia racial como ideologia". A pioneira Copa do Mundo de 1930 mostrou ao governo brasileiro o potencial do esporte bretão como forma de estimular o desejado sentimento de unidade nacional e racial. O futebol deveria estar a "serviço da pátria" e as vitórias em campo eram símbolos do sucesso do regime varguista. "A organização do Mundial de 1950 aumentou ainda mais esse sentimento, porque o sucesso do Brasil poderia propagandear um país supostamente empreendedor", diz Eliazar. O que não funcionou naquela Copa deu certo em 1958, com a vitória do escrete pátrio sobre a Suécia, o que "simbolizou a idéia de que a população brasileira estava preparada para os desafios da competitividade do pós-guerra". De JK aos militares, todos venderam a idéia do "país do futebol", a ponto de o esporte ser erroneamente colocado sob suspeita como forma de alienação, de controle dos regimes sobre o povo. "O futebol juntou, sem querer, o Estado nacional e o povo em seu universo popular, suas crendices e força criativa. Nesse sentido, ele foi um movimento popular que deu ao povo e ao Brasil um sentimento de potência, de crença nas possibilidades nacionais, porque, como esporte, ele permitia associar elementos burgueses como o mercado, o local desenhado para sua realização, o controle do tempo, o uso de uniformes, etc, mas, acima de tudo, a submissão a regras universais e a uma ética de viver a derrota como algo normal, não como humilhação, e a vitória como glória passageira e não definitiva", avalia Da Matta. Se, um dia, o esporte criou uma nação, hoje ele é visto como um arauto, um paradigma da globalização. "O futebol é uma chave para se interpretar o espírito do mundo. O futebol já havia 92 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 117
começado a circulação de mão-de-obra (ou 'pé-de-obra') de um país a outro, já tornava híbridos os torneios locais e contaminava as torcidas. Na Europa, as grandes seleções são híbridas. Isso prova que que o futebol se antecipou à realidade. A força de trabalho da bola se move com liberdade e chegou a todos os rincões antes da globalização econômica", analisa Antônio Negri, autor de Império. "Nessa perspectiva, o Mundial é anacronismo singular. Não existem mais nações quando as relações sociais e econômicas se desenvolvem em escala universal, onde as identidades se desvanecem. A Copa se apresenta como uma ficção da permanência das nações e nosso orgulho nacional é artificialmente revivado. O esporte antecipou a globalização de forma extraordinária."
sse jogo é definitivamente global: cerca de 250 milhões de pessoas estão ligadas diretamente a ele e outro 1,4 bilhão tem algum tipo de interesse no esporte. Finais de Mundiais chegam a atrair audiências de 3 bilhões de espectadores. "Nada é mais global do que o futebol. Mas, em muitas formas, ele revela mais os limites da globalização do que suas possibilidades", diz Franklin Foer, autor do recém-lançado Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização (Jorge Zahar Editor). O Brasil, pena, é um caso exemplar da tese do inglês: "A corrupção anacrônica rejeita a suposta liberalização que chegaria com o mundo global e coloca Thomas Friedman de cabeça para baixo". Assim, apesar da circulação mundial de nossos jogadores e das tentativas de se transformar clubes em conglomerados multinacionais, o futebol é um espinho no ideal do poder ilimitado da nova ordem mundial. "Em casos como o Brasil, a corrupção no futebol não permanece a despeito da globalização, mas por causa dela. Acho que os críticos e os defensores dessa ordem superestimaram a força de destruição das culturas locais pe-
lo mercado internacionalizado", nota Foer. Desde 1992, com a parceria entre a empresa italiana Parmalat e o Palmeiras, houve várias tentativas de aproximação entre o capital internacional e o futebol local, visto como de grande potencial por muitos conglomerados transnacionais: Hicks, Muse, Tate & Furst, todos jogaram milhões de dólares em times brasileiros. "Menos de três anos após chegarem triunfantes ao Brasil, os investidores estrangeiros saíram falidos. O problema era que esse movimento de modernização tinha de lidar com estruturas arcaicas, os cartolas, e essa mistura entre capital e corrupção não funcionou", acredita o inglês. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, um fã do esporte e quem sugeriu a parceria entre Parmalat e Palmeiras, discorda. "Temos a noção de que os investidores têm um conhecimento do mercado melhor do que o homem comum, e não têm. Eles fazem apostas que podem dar certo, como é o caso da Hicks no Corinthians e no Cruzeiro", diz. "No futebol, eles fizeram projeções que eram quase transpostas dos negócios da Europa e dos EUA. Nosso povo não tem esse poder aquisitivo e nosso capitalismo é ruim." "Glocalização" - "Há que se levar em conta que a globalização é um fenômeno relativo e que faz parte dela um elemento que chamei de 'glocalização', ou seja, o poder de assimilação do universalismo proposto pela nova ordem ao jeito particular de cada país", pondera o sociólogo Richard Giulianotti, autor de Sociologia do futebol. "O futebol vem experimentando a circulação transnacional de trabalho, informação e capital que podem abalar particularidades culturais. Há, por exemplo, cada vez menos diferenças táticas e estéticas entre o jeito de jogar de nações diferentes, embora vários países lutem para relativizar esse fenômeno por meio de competições bem-sucedidas." Seja como for, para Giulianotti, raízes locais do esporte esfriam o ímpeto de negação do particular pela globalização. "Nessa mistura de universalização do particular e particularização do universal, o futebol dá lições valiosas sobre como se entender melhor a nova ordem mundial e evitar erros." Para ele, há o perigo de se repetir, em escala
econômica, o que se vê nos gramados: países pobres virarem celeiros de atletas para times de países ricos, sem qualquer retorno. "É crível percebermos nossa posição subalterna nesse mundo globalizado, e o futebol, como fato econômico, retrata bem essa conjuntura e nossa posição como exportadores de craques. Mas essa é também uma visão simplista", critica o antropólogo Luiz Henrique Toledo. "O que eu percebo é uma expansão do nosso futebol, e não um recalque. Os jogadores estão lá, mas dinamizam uma economia simbólica aqui, agregando valor a nossa identidade. Aliás, o recente incremento da exportação de craques coincide com a posição do Brasil nas últimas Copas, por três vezes finalista e vitorioso em duas delas." Mas isso não interfere na tão bem construída identidade nacional por meio do futebol? "Identidade
não se constrói sozinha, apartada do mundo, mas em confronto com esse mundo. Só saberemos reivindicar e perceber a nossa identidade futebolística na medida em que contrastarmos com outros estilos e experiências", analisa Toledo, para quem o Brasil só passou a vencer no esporte quando estreitou suas relações esportivas com outras culturas e imprimiu uma marca identitária ou uma idiossincrasia cultural dentro do jogo, que está, lembra, sujeito e aberto a mudanças. Racionais - "Há que se reconhecer que a perda de jogadores para times ricos tem um impacto negativo no futebol local, pois sem ídolos nenhum evento de massa se sustenta. Mas, por outro lado, os jogadores estão mais preparados para as Copas, pois jogando fora obedecem a calendários racionais. Observe que, em 1970, bem antes da globaliza-
ção, a seleção brasileira foi a que melhor se preparou para o Mundial. Treinaram e muito. É como se falar em trabalho e esforço fosse desmerecer o talento, como se a ciência fosse macular a arte. Temos a mania de inventar heróis que nascem prontos", observa o sociólogo Ronaldo Helal, da Uerj. O economista Branko Milanovic, do Carnegie Endowment for International Peace, colega de Dani Rodrik, concorda. "O exemplo do futebol ilustra bem o tipo de globalização que desejamos: vamos em frente com a mobilidade da mão-deobra, vamos incrementar o output geral por meio da interação entre pessoas, usar do compartilhamento de talentos, mas sem deixar de assegurar que os ganhos sejam divididos também com aqueles que não têm poder econômico suficiente." Afinal, de que vale ter a pátria de chuteiras se elas estão furadas ou sujas de lama? • PESQUISA FAPESP117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 93
RESENHA
País feito de homens e livros Estudo clássico sobre impressão no Brasil é relançado
CARLOS HAAG
Ahistória do livro no Brasil ■Rír L. começa como uma curiosa piada de português. Antes da chegada da família real ao Brasil, em 1808, o zelo pombalino impediu a criação de uma indústria editorial na colônia, preocupado com as "más influências" da leitura para a metrópole. Um par de meses após desembarcar, d. João VI assinou uma carta regia autorizando a impressão em terras brasileiras. O documento foi confeccionado no Rio de Janeiro e, ironia, a arte de imprimir no Brasil começou com o uso de prensas com tipos móveis, importados por Lisboa da Inglaterra. As máquinas, que os governantes portugueses tanto se empenharam para não deixar chegar ao Brasil, acabaram por aqui, sem nunca terem sido usadas em Portugal, envolto, desde 1807, em turbulências políticas que culminaram com a fuga do monarca luso para cá. Essa é uma das muitas curiosidades deliciosas contadas em O livro no Brasil, do inglês Laurence Hallewell, um clássico de 816 páginas, originalmente uma tese de doutorado escrita em 1970, editada em inglês em 1982 e, no Brasil, em 1985. Ele ressurge agora numa edição revista e ampliada pelo autor, que incluiu novos capítulos: um prefácio sobre a Europa na época do Descobrimento, um prólogo sobre a invenção da tipografia, uma atualização sobre o estado do mercado na Nova República, bem como novos tópicos sobre livros infantis e para cegos. O estudo de Hallewell e a caprichada prensagem da Edusp mereciam capítulo à parte no livro, tamanha a importância da obra. A história contada pelo inglês revela as tentativas iluminadas dos holandeses de permitir a impressão no Recife em 1640, muito antes da primeira prova definitiva da existência de uma prensa ilegal em território brasileiro, no século 18, fechada tão logo Lisboa soube de sua existência. Assim, a história da impressão inicia-se, 94 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
0 livro no Brasil: sua história
em verdade, só mesmo a partir do século 19, tendo a Imprensa Regia, órgão ligado à Corte, o monopólio da ediLaurence Hallewell ção. Assim, às vésperas da Independência, enquanto em Paris exisEdusp tiam 480 livrarias e 850 816 páginas tipografias, o Brasil tiR$ 220,00 nha que se "contentar" com sete estabelecimentos. Hallewell narra a trajetória primorosa da Casa Garraux, de Plancher, de Paula Brito (admirado por Machado de Assis como o nosso primeiro editor), da Garnier e, mais tarde, da José Olympio, que, além de casa editora, era ponto de encontro de intelectuais e artistas modernistas. O grande personagem de O livro no Brasil, porém, é Monteiro Lobato, pela sua teimosia em levar adiante o credo de que "um país se fazia com homens e livros". Lobato foi o primeiro a perceber o gargalo da distribuição, que permanece até hoje, num país que, nos anos 1940 e 50, só possuía 30 livrarias em todo o seu território. Passou a vender seus livros em padarias, farmácias etc. Mas não em açougues, por medo de "manchar os livros com sangue". Além disso, revolucionou o mercado ao lançar novos autores, pagar direitos autorais dignos, melhorar a aparência interna e externa dos livros, entre outras renovações. Depois de Lobato, a grande novidade apareceria no Sul, com a Editora Globo, responsável pela divulgação da obra de Erico Veríssimo, também o editor da empresa, o primeiro a assumir o cargo sem ser o dono. Mas os grandes elogios de Hallewell ficam para José Olympio, que, segundo ele, foi o responsável pelos anos dourados da tradução no país. No fim de sua obra, o autor se dá ao luxo de deixar de lado a persona do historiador para refletir sobre a realidade do livro em nosso país, afirmando que "há indícios de que a cultura brasileira não estimula o hábito da leitura", até mesmo porque o país "continua a ser uma sociedade essencialmente oral". Tomara esses obstáculos não tirem leitores de um estudo essencial e saboroso.
LIVROS
DNA
DNA: o segredo da vida James D. Watson Companhia das Letras 472 páginas, R$75,00
O polêmico descobridor, ao lado do colega Francis Crick, do modelo do DNA, em abril de 1953, num pequeno artigo na revista Nature, conta como chegaram a perceber o funcionamento da estrutura da vida. Partindo dos estudos do abade Mendel e suas famosas ervilhas, Watson faz um saboroso retrato de como, "nos ombros" de outros cientistas, a dupla chegou à sua descoberta revolucionária. O livro fala de passado, mas também aponta dilemas do futuro, como a clonagem. Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br
Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke Editora Unesp 486 páginas, R$ 58,00
Arcádia nassoviana: natureza e imaginário no Brasil holandês George Rembrandt Gutlich Annablume/FAPESP 162 páginas, R$ 30,00
Essa é uma reflexão das mais originais sobre a dimensão simbólica dos elementos naturais do Brasil como retratados pelos artistas flamengos que vieram com o príncipe Maurício de Nassau ao Brasil, no século 17, quando da invasão batava ao Nordeste. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br
Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil de 1904 a 2004 Cristiane Costa Companhia das Letras 400 páginas, R$ 49,00
O grande sociólogo pernambucano vem ganhando, aos poucos, uma merecida reavaliação por parte dos meios acadêmicos que, por anos, desprezaram suas teorias sobre a mistura de raças no Brasil. Esse livro tem o mérito de ser uma biografia intelectual de Freyre, que traz à luz o seu mundo cultural, em especial o percurso de influências inglesas que moldaram o pensamento do recifense. Um guia para o mundo freyriano.
A partir de uma questão colocada por João do Rio, em 1904, sobre se a profissão de jornalista tinha algo a contribuir com a arte literária (algo que ele sabia fazer muito bem), Cristiane Costa partiu em busca de todos os escritores que, por necessidade econômica ou mera afinidade, exerceram o ofício em redações de jornal. Lá estão Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, João do Rio e, mais recentemente, Bernardo Carvalho e Marcai Aquino. Jornalista, a autora escreve com sabor de arte.
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br
Os italianos João Fábio Bertonha Editora Contexto 304 páginas, R$ 43,90
Os descaminhos do São Francisco Marco Antônio T. Coelho Paz e Terra 288 páginas, R$ 55,00
Todo mundo no Brasil parece ter um parente italiano. Quem afinal é esse povo que parece permear quase todas as culturas do globo e que, por aqui, está em todos os estratos sociais, com sua língua, sua cultura e seus costumes? O historiador João Bertonha é um especialista no assunto e o revela, de forma muito divertida e consistente, em todos os seus aspectos, da sua história até o que é ser italiano hoje.
Um assunto que está em todas as páginas dos jornais, a transposição do rio São Francisco ganha aqui uma extensa análise histórica, geográfica, social e, é claro, econômica. O estudo recupera o papel do Velho Chico na formação do Brasil e também discute quais seriam as conseqüências da mudança de seu curso na vida dos muitos habitantes que dependem do seu curso.
Editora Contexto (11) 3832-5838 www.editoracontexto.com.br
Paz e Terra (11) 3337-8399 www.pazeterra.com.br PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 95
Queimando homens que queimam livros e mulheres ANA ELISA RIBEIRO
Percorrendo uma livraria, detive-me na estante de literatura infantil para apreciar as capas de livros dedicados aos pequenos leitores. Impressionada pela beleza de certas obras, resolvi percorrer as estantes de adultos, onde se encontram livros mais belos por dentro do que por fora. Familiarizada com esse tipo de ambiente, não me privei de passar os olhos pelas revistas de vanguarda e nem pelos livros de arte. Subitamente, dei-me conta de que era uma mulher privilegiada. Pais, esposos e governadores tentaram impedir o acesso das filhas e esposas à leitura, à escrita e ao porte do livro. Sem opção, elas nascem, crescem, se casam e se reproduzem sem poder obter qualquer intimidade com o mundo das letras, de onde, segundo eles, saem grandes perigos que podem transformar uma indefesa mocinha num demônio de saias. Sem pesquisar muito, é fácil lembrar dos romances censurados para mulheres, das leitoras que liam escondido, dos colégios que triavam as obras para moças, dos "clássicos" para meninas e para a boa formação de uma jovem. Além disso, são conhecidas as histórias de loucas transformadas pela leitura, madames Bovarys do cotidiano, e de meninas que iam aos conventos ter a chance de estudar e fugir de casamentos (des)arranjados. Livros são armas. Livros devem ser incinerados, torrados e moídos. E quanto mais censurados e queimados, mais famosos. E as moças que os liam mereciam castigos e cativeiros. Nada como um bom marido para acalmar os ânimos de uma moça indomável. Das estantes pululavam à minha frente os romances de cortesãs escritos por José de Alencar. Também nessas obras, ao final, a prostituta bondosa sempre morre tísica, lição inesquecível para moças de bom comportamento. As mulheres que escreviam, até poucas décadas atrás, deviam assinar pseudônimos masculinos para não correr os riscos de uma perseguição política ou social. E assinar um texto era como expor o colo nas janelas dos sobrados. As marquises adornadas, as pilastras, os pés-direitos altos e as moças de má conduta emprestavam os lábios cor de carmim aos rapazes mais saudáveis da terra. Já as mulheres que liam abraçavam-se aos travesseiros enquanto liam beijos, sonhavam em silêncio com viagens ao redor do mundo e gostariam de completar os parcos estudos antes de se casar. Escondiam os livros de capa dura embaixo do colchão, liam no banheiro e mantinham as portas fechadas enquanto sublinhavam os trechos mais indecentes. Eu passeava pelas estantes, ia e vinha sem cerimônia, tocava os volumes e os abria em qualquer página, lia linhas, diagonalmente, tocava a tinta seca com a ponta dos dedos e gostaria de chupá-los. Sentia o timbre das letras dum escritor admirável. Um mineiro, um paulista, um curitibano, um mato-grossense, um amazonense e um poeta baiano. Um contista campista e um sertanejo de letras. E dava falta das mulheres que assinam seus nomes. Quantas serão as moças inéditas? Onde elas escondem seus originais? Quando deixarão de assinar os nomes dos maridos para terem nomes artísticos? A incendiaria Clarice. A virgem Adília portuguesa. A falecida Raquel. A pornográ96 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
fica Hilda. Sei de umas tantas mulheres poetas e contistas e romancistas. Fora as que adiaram suas publicações para comprar o enxoval. E eu desejo muito ler seus livros um dia. Sinto-me, então, num cabaré de dançarinas proibidas. Impressiono-me com o passado que ainda posso sentir, lembro-me das vozes idosas me dizendo, desde criança, "menina, não leia demais, senão você fica louca e perde a capacidade de ter filhos". E me organizei para não acreditar nessas lendas. E o que dizer dos editores "todos homens"? São as mulheres leitoras/escritoras que lêem com lápis na mão, bisturi entre os dedos e a história social sobre os ombros. Neste caso, sim, o pretérito. Maridos, pais e amantes podem ler juntos. Passeando pelas estantes da livraria, lembro-me de que li primeiro uns livros que empresto a Jorge, o marido-escritor. Assim como publiquei antes dele. E por isso nos sentimos tão donos do mesmo jardim. E o cultivamos. Certo historiador da leitura diz que "a leitura solitária de romances era vista como um perigo para as jovens, e mais ainda para as mulheres casadas, embora a estas fosse permitida uma maior flexibilidade". Também diz ele que a medicina reforçava que as mulheres tinham o cérebro mais leve que o homem, o que as tornava inaptas para tendências intelectuais. Também a ciência alertava: "Altos níveis de estímulo produzido pela leitura de romances seria prejudicial, causando histeria e perda da fertilidade". Mulher que lê, mulher infértil. Fraca, esquálida, feia. O retrato das moças que cursavam Letras: caricatura de menina magricela, míope e mal-amada. As belíssimas modelos, donas-de-casa cobertas de ouro, branquelas estudantes de Literatura. Mas não eram assim as belezas de Clarice e de Virgínia. Os narizes pontudos diziam setas. As mãos faziam dardos. E as míopes dispõem de lentes de contato, além do olhar de dentro. É a escrita que vê. É a leitura que alimenta e ilumina. Emma Bovary tinha consciência. As moças casadas que liam Emma Bovary ganhavam consciência. E o livro era, então, um abismo executor de casamentos. E a proibição da obra de Flaubert tornou-se marketing. E as moças cultas continuaram sua história de solidão, assim como as moças casadas que queriam ler continuaram sua história de guardar livros sob o colchão. E onde Adília, Adélia, Clarice e Raquel aprenderam a ler? Numa aldeia portuguesa, no interior de Minas, na Ucrânia, no sertão nordestino? Onde aprenderam a escrever? Onde a coragem de publicar? Na implicância da alma com o mundo, na resistência belíssima dos textos que produziam. Na próxima inquisição, mandaremos queimar os colchões colocados sobre seus papéis e exporemos todas as leituras e todas as almas das mulheres leitoras que lêem.
é escritora, autora dos livros de poesia Poesinha e Perversa, e doutoranda pela Faculdade de Letras da UFMG.
ANA ELISA RIBEIRO
PESQUISA FAPESP 117 ■ NOVEMBRO DE 2005 ■ 97
• Anuncie você também: tel. (11) 3838-4008 www.revistapesquisa.fapesp.br
CLASSIFICADOS
Pesquisa
ULTRAMAR
ESP
INTERNATIONAL
Importação direta para Universidades, Fundações e projetos de pesquisa: > Servidores, notebooks, projetores, monitores »Equipamentos médicos e laboratório > Componentes eletrônicos
(48)3224-5105
Rua Bocaiúva 1913. sala 22 86015-530. F1orian6polls/SC ultramar9ultrainar.caiTi.br
Faculdade de Odontologia de Bauru - FOB fob@edu.usp.br 01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto ao Departamento de Odontopediatria, Ortodontia e Saúde Coletiva Disciplina: Ortodontia. Inscrições abertas pelo período de 18/07/2005 a 13/01/2006. Diário Oficial de 16/07/2005.
www.ultramar.com.br Escola Politécnica - EP diretoria@poli.usp.br
#4
01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto ao Departamento de Engenharia de Produção, na especialidade "Engenharia de Produção".
UNICAMP
Inscrições abertas pelo prazo de 180 dias, no período de 01/09/2005 a 02/03/2006. Diário Oficial de 30/08/2005.
Área: FEAGRI FACULDADE DE ENGENHARIA AGRÍCOLA FEAGRI Inscrições 3/10/2005 a 2/1/2006, publicação DOE, 30/9/2005, pág.: 91 Disciplinas: Ambientes para Animais e Plantas Cargo: Prof. Titular Regime RTP Processo: 28-P-18498/2005 Contato (e-mail): atu@agr.unicamp.br (Mônica Rivigatti Gandolfi) Telefone: (19) 3788-1086
Centro de Energia Nuclear na Agricultura - CENA diretoria@cena.usp.br 01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto à Divisão de Funcionamento de Ecossistemas Tropicais. Inscrições abertas pelo prazo de 180 dias, a partir da publicação. Diário Oficial de 08/06/2005.
Área: Propriedades Físicas e Mecânicas dos Materiais Biológicos FACULDADE DE ENGENHARIA AGRÍCOLA FEAGRI Inscrições 17/8/2005 a 16/11/2005, publicação DOE, 16/8/2005, pág.: 71 Disciplinas: Comportamento Mecânico e Físico dos Materiais Biológicos Cargo: Prof. Titular Regime RTP Processo: 28-P-15473/2005 Contato (e-mail): atu@agr.unicamp.br (Mônica Rivigatti Gandolfi)
Telefone: (19) 3788-1086 Área: Pedagogia do Movimento FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO MOTORA Inscrições 29/8/2005 a 26/11/2005, publicação DOE, 26/8/2005, pág- 88 Disciplinas: Educação Motora II Cargo: Prof. Titular Regime RTP Processo: 01-P-16573/2005 Contato (e-mail): elizabeth@fef.inicamp.br (Maria Elizabeth Massaro Malagodi)
Telefone: (19) 3788-6603
98 ■ NOVEMRBO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP117
Ciência e Tecnologia 0 no BtasH
Pesquisa ™ FAPESP
Ligue 3838-4008 ou acesse www.revistapesquisa.fapesp.br
Por que investi um single quadrupolo, quando você pode ter um triploquadrupolo? API 2000™ LC/MS/MS
O Sistema API 2000™ LC/MS/MS Applied Biosystems/MDS Sciex possibilita o acesso à tecnologia mais moderna do mercado com baixo investimento. Ao contrário dos sistemas LC/MS (single quadrupolo), o API 2000 é desenvolvido com a tecnologia triploquadrupolo, que oferece melhor performance e sensibilidade. Confira no quadro abaixo:
(
Sistemas LC/MS) (Sistemas LC/MS/MS Caracterização e
quantificação de pequenas
por fragmentação e quantificação de
moléculas para um amplo
pequenas moléculas por MRM - ganhos de
espectro de aplicações.
j
Caracterização com confirmação de estrutura
especificidade e conseqüente sensibilidade para um amplo e efetivo espectro de aplicações.
Tudo isso por apenas US$ 100.000,00. (Science. Para melhor entender a complexa interação dos sistemas biológicos, cientistas da vida estão desenvolvendo abordagens revolucionárias para descobrir como unir tecnologia, informática e os tradicionais laboratórios de pesquisa. Em parceria com nossos clientes, a Applied Biosystems proporciona produtos inovadores, serviços e conhecimentos que fazem com que essa nova CIÊNCIA INTEGRADA seja possível.
Informações: 0800 704 90 04 Grande SP: (11) 5070-9662 abi-expert@appliedbiosystems.com
Applied Âfc Biosystems k
MDS SCIEX
A fórmula do nosso sucesso? Acreditar na pesquisa e nos pesquisadores A Novartis possui hoje o portfólio de produtos em desenvolvimento mais valioso* da indústria farmacêutica. Temos 75 moléculas em desenvolvimento e investimos, somente em 2004, US$ 4,2 bilhões na busca de novos produtos. Esse é o resultado de nosso compromisso com a inovação e, principalmente, com aqueles que trabalham diariamente na busca deste ideal. Somos uma das cinco melhores empregadoras do setor de biotecnologia em todo o mundo pela revista Science, no ano de 2005. Acreditar na pesquisa e nos V) N O VA RTI S pesquisadores é a fórmula do
nosso sucesso. —y 1111,11 ■ iuMMMAL*^mmmammmÊÊÊÊaÊÊmÊÊÊÊÊÊÊM
L*á