e no Brasil
Ciência eTecnologia
FAPESP·
Janeiro 2006· N° 119· R$ 9,50
UM ATAQUE MAIS EFICAZ ÀS CRISES DE ASMA
VIRA-LATA USA TECLADO PARA SE
COMUNICAR UM MOUSE CONTRA TENDINITE
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REVELADA A MEMÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO DURANTE A DITADURA
Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Toda semana, em meia hora, você tem: • Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos da ciência
E o que não poderia faltar: sua participação nas seções • Pesquisa Responde • Promoção da Semana Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura
Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h
Pesq,recnüisa FAPESP
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L.IDERANOD
TENDÊNCIAS
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-
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A floresta invadida Com 85% do território como área de preservação ambienta I e topografia acidentada, Petrópolis sofre hoje com a ocupação de suas encostas. Um vôo pela região serrana fluminense mostrou o avanço das construções urbanas sobre a Mata Atlântica. Na foto é possível ver um escoadouro de lixo e uma cachoeira de esgoto despejada no meio do corredor florestal Serra da Estrela, área de preservação ambiental.
PESQUISA FAPESP 119 • JANEIRO DE 2006
• 3
REPORTAGENS POLíTICA
CIENTíFICA
E TECNOLÓGICA
27
46
TECNOLOGIA
NEUROLOGIA Células embrionárias humanas incorporam-se ao cérebro
SAÚDE PÚBLICA
88
INOVAÇÃO
ANTROPOLOGIA
Língua eletrônica
Teses analisam a figura do homem
e analisador de alimentos são
de roedores
de Saúde suspende pesquisa sobre
48
malária no Amapá
ARQUEOLOGIA
Conselho Nacional
62 dois dos
no universo da prostituição
cinco equipamentos
feminina
licenciados pela Embrapa para empresas
e ajudam a entender o turismo sexual
72 ERGONOMIA Novo tipo de mouse proporciona
mais
conforto e evita dores musculares
74 METALURGIA
28
sobre a colonização
POLíTICAS PÚBLICAS
Américas
A IMAGEM DO MÊS ...••......
50
CARTAS
Orientação
Mais 31 crânios reforçam hipótese alternativa
SEÇÕES
das
triplica
índice de amamentação exclusiva de bebês
CIÊNCIA
CARTA DA EDITORA
ECOLOGIA
42 PNEUMOLOGIA Mensageiro químico do sistema de defesa regula reações alérgicas associadas às crises de asma
mecanismos a diversidade
ESTRATÉGIAS
que geram de árvores
e diferenciam as matas paulistas
LABORATÓRIO Técnica inédita permite soldar ligas de titânio e de aço para uso
54 ASTROFíSICA Estrela anã branca se comporta como o relógio óptico mais preciso que se conhece
.....•.......
SCIELO NOTíCIAS LINHA DE PRODUÇÃO
na indústria aeronáutica RESENHA HUMANIDADES
84
LIVROS FICÇÃO CLASSIFICADOS
CIÊNCIA POLíTICA Estudos analisam a influência de Cuba sobre a esquerda brasileira
4 • JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
10 18
MEMÓRIA
Biólogos identificam
3 6 9
Capa: Hélio de Almeida Foto: Reprodução
Enciclopédia
do cinema brasileiro
32 56 58 94 95 96 98
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24 EDUCAÇÃO Balanço de 40 anos mostra papel estratégico da pós-graduação
no país
CAPA
78 HISTÓRIA Site revela documentos de como a ditadura
•
militar censurou cineastas brasileiros
12
Luís Henrique Dias Tavares
fala sobre a quase desconhecida guerra da independência do Brasil na Bahia
68 ENGENHARIA DE MATERIAIS Cola
à
prova de água
tem alto poder de adesão em aplicações na construção civil
36
ETOLOGIA Vira-lata usa teclado para se comunicar com seres humanos e diferencia frases com dois termos
Cartas ca rtas@fapesp.br
Bernardo Galvão Cumprimento Pesquisa FAPESP pela iniciativa de publicar entrevista com o brilhante pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Bernardo Galvão sobre os trabalhos com o HIV (edição 118). WILSON
CHAGAS DE ARAÚJO
Pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa/Unigranrio Duque de Caxias, RJ
Parabéns a Bernardo Galvão. Acompanhamos o trabalho sério e o merecido reconhecimento da comunidade científica. FAMÍLIA LARANJEIRA BARBOSA
Vitória da Conquista, BA
atuação dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Ver ChurchiU, Memórias da Segunda Guerra Mundial, edição condensada (Nova Fronteira), e estudos recentes de historiadores ingleses de Oxford e da School of Economics; 3) recomendaria a esta revista que trouxesse resumos e análises de livros como: Colapso, como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso, de Iared Diamond (Record); Armas, germes e aço, Iared Diamond (Record); A riqueza e a pobreza das nações, de David Landes (Campus); A cultura importa, de Lawrence Harrison e Samuel Huntington (Record); Por que o Ocidente venceu, de Victor Davis Hanson (Ediouro); 4) essas leituras ajudariam os intelectuais a tentar compreender as causas endógenas das dificuldades da América Latina para o progresso tecnológico e social. Aliás, também explicariam as causas endógenas dos sucessos do Japão, Coréia, Hong Kong, Formosa, China, Índia, Chile, Espanha ...; 5) seria interessante saber se no Brasil existe alguém lúcido e irreverente como o jornalista e escritor [ean-François Revel, da Academia Francesa, que escreveu A obsessão antiamericana - causas e inconseqüências (UniverCidade). N. COZZOLINO Escola Politécnica/USP São Paulo, SP
VERA MARY
Moniz Bandeira A propósito das versões antiamericanas da história do século 20, a reportagem "Longe de Deus, perto dos EUA" (edição 118) não é a primeira a aparecer na revista Pesquisa FAPESP. Sobre o viés cultural e ideológico desses artigos, gostaria de comentar o seguinte: 1) seria útil apresentar aos leitores outras versões sobre o poder dos impérios nos séculos 16 ao 20; 2) são totalmente falsas as alegações na reportagem com referência à 6 • JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
Nota da Redação: Gostaríamos de esclarecer que Pesquisa FAPESP é uma revista jornalística de divulgação científica, e não uma publicação científica. Em função disso, seus textos são reportagens produzidas por jornalistas a partir de resultados de projetos de pesquisa considerados bem-sucedidos pela própria comunidade científica e de acontecimentos da área científica e tecnológica. No caso específico, a revista publicou uma reportagem sobre o livro
Formação do império americano, de Luiz Alberto Moniz Bandeira, e descreveu seu conteúdo. Esse conteúdo é de responsabilidade do autor. Por último, esclarecemos que todas as reportagens de Pesquisa FAPESP são revistas por um conselho editorial formado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento, como se pode constatar no expediente.
Revistas Original a pauta e interessante o resultado da reportagem "Deciframe ou devoro-te" (edição 118). Agradeço as citações. Mas meu nome não é Luiz Weiss, e sim Luiz Weis. Agradeceria a retificação. LUIZ WEIS
São Paulo, SP
Histeria Decepcionante a reportagem "As máscaras da histeria" (edição 117). O texto mostra que um problema sério e de difícil diagnóstico como as "crises pseudoepilépticas" tem origem "emocional" e propõe uma resolução simplista como a psicoterapia, que, na verdade, raramente ajuda nesses casos. A reportagem cita a obra de Freud como argumento científico e coloca como pano de fundo um dualismo cérebro-mente que é recusado por todos os neurocientistas sérios. Sou psiquiatra do sistema público de saúde e lido com esse problema com extrema dificuldade, pois o videoencefalograma é um exame dificílimo de ser realizado e a maioria dos usuários não entendem quando explicamos a origem da doença. A matéria chega a ser irônica quando aponta o caso do senhor Oliveira, mostrandoo feliz com o esclarecimento do problema. A realidade é completamente diferente e quando é feito um diagnóstico como esse as famílias e os próprios pacientes acabam por ficar
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As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11)3038-1438
muito mais angustiados, pois não existe remédio para tal problema e o tratamento psicológico é quase sempre maçante e não resolutivo. A psicoterapia muito raramente, mas muito raramente mesmo, ajuda em casos como esses. LEANDRO CAMILLE SANTOS GAVINIER
São José dos Campos, SP
Raio mortal Muito interessante o texto "O raio mortal de Arquimedes" (edição 117) pelo tema de que trata. Chama a atenção que um assunto tão citado e simples tenha demorado tanto em ser experimentado. Acho oportuno acrescentar que os que queimavam com espelhos eram os antigos americanos, mil anos antes que Arquimedes nascesse. Infelizmente poucas pessoas no mundo sabem que a melhor tecnologia óptica já esteve em mãos de nativos da América: uma crônica indica que os incas queimavam algodão em cerimônias religiosas por meio de espelhos metálicos que usavam no pulso, e os achados arqueológicos são concordantes com essa possibilidade. Isso pode ter acontecido há 4 mil anos e alguns séculos depois os olmecas, no México atual, podiam ter feito fogo por meio de espelhos de rocha polida que se conservam até hoje. Por minha experiência com espelhos de proprieda-
• Assinaturas. renovação e mudança de endereço Ligue: (11)3038-1434 Mande um fax: (11)3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br • Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br • Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. • Para anunciar Ligue para: (11)3838-4008
o que a ciência brasileira produz você encontra aqui
PESQUISA FAPESP 119 • JANEIRO DE 2006 • 7
ca rta s@fapesp.br
des semelhantes às dos olmecas, queimando pelo sol folhas secas e pedaços de algodão, considero perfeitamente viável que incas e olmecas tivessem a técnica de fazer fogo por meio de espelhos. Entende-se que não tenha sido usada no cotidiano porque os espelhos eram elementos muito sofisticados e difíceis de se possuir, além do que não permitem fazer fogo em dias nublados ou de noite.
crises alérgicas. Parabéns. Gostaria de apresentar uma sugestão de tema para pesquisas: doenças transmitidas por animais domésticos. CRISTIA
E APARECIDA TI
ETTI
REGINA BRAGA
Instituto de Botânica São Paulo, SP
Toxoplasmose
EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA
lJ)
N O V AR TIS TroplNet.org
Pesquisa Brasil Semanalmente escuto o programa Pesquisa Brasil na Rádio Eldorado AM e observo que é muito comum o tema musical que fecha determinados comentários de Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa FAPESP, ir sempre para o lugar-comum de cantores como Chico Buarque e Caetano Veloso. Por que não trazer canções de pessoas com outra visão do mundo e do Brasil? MARCOS
Li o artigo que nos alerta sobre estarmos dormindo com o inimigo ("Um zoológico na cama", edição 117). Faço parte do grupo de pessoas que mais cresce no Brasil, os alérgicos. Gostei muito do alerta sobre os cuidados com sofás e camas para que tenhamos uma qualidade de vida melhor quanto à manifestação das 8 • JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
BUCKERIDGE
Veneno de aranha
Elliot Kitajima
MARCIA
MARCOS
Instituto de Botânica São Paulo, SP
Marília, SP
JOSÉ J. Lu AZZI Instituto de Física/Unicamp Campinas, SP
Muito oportuna a entrevista com o professor Elliot Kitajima (edição 117). Além de sua reconhecida competência científica, é importante registrar a contribuição que tem dado a outras áreas de pesquisa, oferecendo cursos de microscopia eletrônica e disponibilizando as facilidades do NAP /Mepa da Esalq/ USP a estudantes e profissionais interessados em incluir análises ultra-estruturais em seus projetos. Com grande entusiasmo e simpatia, ele compartilha seus conhecimentos e presta um grande serviço à comunidade científica.
Universidade Metodista, sendo um projeto dentro do programa de iniciação científica daquela instituição.
DUARTE
São Paulo, SP
Café Gostaria de acrescentar que a pesquisa sobre o café noticiada na edição 116 (texto intitulado "Como fazer um bom café") foi realizada em conjunto com a professora Candida Vieira, da
Parabenizamos a pesquisadora Denise Tambourgi e o Instituto Butantan pelo desenvolvimento de um soro antiloxoscélico a partir de venenos obtidos por proteínas recombinantes, reduzindo a dependência da coleta de aranhas e extração de venenos (edição 116). Complementando, informamos que o Centro de Produção e Pesquisas de Imunobiológicos, órgão da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, desde 1998 desenvolve, produz e vem fornecendo ao Ministério da Saúde, para distribuição nacional, o único soro antiloxoscélico poliespecífico do Brasil. Esse soro é produzido a partir do veneno de três espécies de aranha que mais causam acidentes no país: Loxosceles interrnedia, Loxosceles laeta e Loxosceles gaucho, com eficiência comprovada e registro na Anvisa/MS. CLÁUDIO
XAVIER
Secretário de Estado da Saúde do Paraná Curitiba, PR
Correção
o nome científico correto do cinodonte de 10 centímetros que aparece na reportagem "Bestas dos pampas" (edição 117) é Brasilitheriurn riograndense. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br,
pelo fax OU3838-4181 ou
para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901.
As cartas poderão ser resumidas
por motivo de espaço e clareza.
Carta
Pesquisa MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE
da Editora
Um país visto por múltiplas vias e veredas
CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES D05 SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER. LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EOITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA CST), HEITOR SHIMIZU (VERSÀO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALBERTO MUSSA, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, DANILO VOLPATO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, THIAGO ROMERO (ONLINE) E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mall: fapesp@teletargetcom.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atenrJimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP
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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Esta primeira edição de 2006 de Pesquisa FAPESP, marcada por algumas inovações visuais criadas com o carinho e o rigor estético de sempre de nosso diretor de arte, Hélio de Almeida, oferece ao leitor algumas vias originais e muito estimulantes para pensar sobre aspectos cruciais da sociedade brasileira, sua formação e seu futuro. A bela reportagem de capa, por exemplo, sobre a censura ao cinema nacional exercida pela ditadura militar, revela a partir da página 78 a que ponto o obscurantismo e a ignorância protegidos pela força das armas investiram contra a capacidade de criação intelectual neste país, no período mais sombrio de sua história recente. Há trechos no texto elaborado pelo editor de humanidades, Carlos Haag, que, pelo absurdo da situação revelada, chegam a ser hilariantes, como aquele referente ao resumo que um censor faz de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, a meu juízo um dos grandes filmes do cinema brasileiro. Ou um outro relativo ao mesmo filme, em que o censor determina o corte de uma cena na qual a atriz Joana Fomm aparece com um vestido que teria as cores da Aliança para o Progresso, organização norte-americana vista com extrema desconfiança pelos militares do período. O velho autoritarismo vigente na vida política nacional, que emerge de cada linha da reportagem sobre a censura ao cinema, reaparece com outra roupagem na entrevista pingue-pongue que fiz com o professor Luís Henrique Dias Tavares, sobre a guerra da independência do Brasil travada na Bahia. Essa guerra, que tomou praticamente todo o ano de 1822 e se prolongou até 2 de julho de 1823, apesar de sua importância para a consolidação do Brasil como nação independente de Portugal, permanece como um episódio larga e injustamente desconhecido fora dos limites geográficos da Bahia - ela nem sequer aparece nos livros didáticos de História do Brasil. Vale a pena conferir a partir da página 12 as informações
mais novas a esse respeito oferecidas por um especialista do tema. Devo observar que o peso pouco freqüente, mas muito merecido, das humanidades nesta edição não é indicativo de prejuízo para os amantes de outras áreas do conhecimento. Pelo contrário. Assim, no campo da saúde, merece destaque uma reportagem importante sobre a asma, problema respiratório crônico que atinge de 150 milhões a 300 milhões de pessoas no mundo e, a cada ano, leva 15 milhões de portadores a perderem um ano de vida saudável. O editor assistente de ciência, Ricardo Zorzetto, conta, a partir da página 42, como uma melhor compreensão do papel desempenhado por moléculas mensageiras do sistema de defesa no controle da produção de substâncias que disparam as crises de asma pode levar a tratamentos mais adequados das insuportáveis crises da doença. No campo da etologia, isto é, dos estudos do comportamento animal, a revista traz uma reportagem que todos os leitores que curtem cachorros vão certamente adorar e os demais poderão achar fascinante. Nela, o editor especial Marcos Pivetta conta a partir da página 36 como Sofia, uma simpaticíssima vira-lata, entende e diferencia frases compostas por dois termos distintos e se comunica com seres humanos valendo-se de um teclado especial. E para finalizar, demonstrando que a pesquisa em nosso país está atenta ao bem-estar da população sob todos os aspectos, quero destacar o relato do editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, na página 72, sobre um novo tipo de mouse desenvolvido por um pesquisador da USP que proporciona mais conforto ao usuário e evita dores musculares. É notícia alvissareira para todos que no exercício diário de suas tarefas já se viram às voltas com uma persistente tendinite provocada pelo uso contínuo do computador. Um grande e feliz 2006 para todos. MARILUCE MOURA
- DIRETORA DE REDAçãO
PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 9
Ruptura na universidade Há 40 anos, 79% dos professores da inovadora UnB se demitiam em protesto contra a intervenção militar e a expulsão de docentes NELDSON MARCOLIN
m seu discurso de agradecimento ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Brasília (UnB), o físico Roberto Salmeron avisou à platéia que aquela data em que se realizava o evento era de uma extraordinária coincidência. Exatamente no dia em que foi agraciado, 19 de outubro de 2005, completava-se mais um aniversário de um acontecimento inusitado na vida universitária brasileira. Há 40 anos, 223 professores se demitiram em protesto contra a interferência do regime militar na vida acadêmica e a expulsão de 15 docentes. Com um
Fig. 1 - A invasão da universidade em abril de 1964. Soldados, fortemente armados, cercaram o catnpus
A primeira invasão, em 1964 (à esq.), e a terceira, em 1968: a violência recrudesce
(Cortesia do Correio Braziliense)
quadro de 305 professores, a UnB perdeu 79% de seus mestres em um único dia. A universidade havia começado as atividades em abril de 1962 e ainda estava em plena estruturação, com prédios em construção e sem que todos os cursos estivessem abertos. Embora Brasília tenha sido criada por Juscelino Kubitschek, o ideal de uma
10 ■ JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
universidade inserida na cidade sempre constou do projeto do urbanista Lúcio Costa, que reservou uma área específica para ela no Plano Piloto. "Lúcio Costa estava consciente de que uma universidade seria necessária para a germinação da vida intelectual na nova capital do país", diz Salmeron, ativo participante das discussões
sobre a UnB e, anos depois, coordenador dos seus Institutos Centrais de Ciência e Tecnologia e do Instituto de Física. Na França desde 1968, hoje aposentado da Escola Politécnica de Paris, em 1999 ele publicou A universidade interrompida: Brasília 1964-1965 (Editora da UnB, 476 páginas, esgotado).
Motivados pelo clima de mudança da época, os especialistas convidados a discutir e planejar a UnB pensaram num modelo mais avançado de universidade, que foi aplicado e posteriormente adotado por outras instituições de ensino. A UnB foi dividida em oito institutos centrais e faculdades. Cada um deles agrupava todas as atividades de ensino, pesquisa ou qualquer outra criação intelectual em sua área. Os alunos tinham uma formação básica por dois anos. Quem desejasse seguir carreira científica ou artística continuaria no instituto. Mas se escolhesse outra profissão seguiria para a faculdade adequada a partir do terceiro ano.
Pela primeira vez criou-se o sistema de créditos, pelo qual a aprovação em uma disciplina era reconhecida em toda a universidade - se o aluno mudasse de opção não precisaria cursar outra vez as disciplinas. A carreira docente deveria ser baseada na produção e criatividade com tempo integral. "Isso pode parecer trivial hoje, mas não era na década de 1960", conta Salmeron em seu livro. Foram extintas as ultrapassadas posições de catedrático e de assistente e criados os postos de instrutor, assistente, professor assistente, professor associado e professor titular. Desde o começo eram ministrados os cursos de graduação e também os de pós-graduação, algo muito
pouco comum no Brasil daquele tempo. Tudo caminhava bem e professores e estudantes trabalhavam com entusiasmo, apesar das condições precárias. Mas em 31 de março de 1964 ocorreu o golpe militar. O reitor Anísio Teixeira, que havia substituído Darcy Ribeiro, foi exonerado e Zeferino Vaz colocado em seu lugar pelos militares. Nove dias depois ocorreu a primeira das várias invasões na UnB pelo Exército sob a alegação de subversão a primeira em 1964 e a última em 1977. Após 15 meses, Vaz foi substituído por Laerte Ramos de Carvalho. Diante de uma greve de estudantes e uma paralisação de quatro horas dos professores
em 8 de outubro de 1965, o novo reitor pediu a presença de tropas militares na universidade e demitiu 15 docentes. Os professores reagiram: 223 deles se demitiram. Durante outra invasão, em 1968, a situação foi ainda pior, com a morte de um estudante. Mas mesmo com todas essas crises a universidade soube se reerguer e se tornou importante. O geneticista Antônio Rodrigues Cordeiro, coordenador do Instituto Central de Biociências, um dos 15 demitidos pelo reitor Carvalho, lembra daqueles dias com pesar: "A UnB teria se tornado maior e progredido muito mais rapidamente se não houvesse as brutais intervenções do regime".
PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 11
12 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Uma guerra na Bahia MARILUCE MOURA
Há uma grande festa popular em Salvador que não está vincula^^ da a santos ou orixás, não acontece no verão nem guarda, diferentemente de outros eventos do extenso calendário festivo da Bahia, maiores compromissos com a atração de turistas, fonte cada vez mais importante de receitas para o estado. De caráter cívico, essa festa repetida a cada 2 de julho data que os baianos conhecem como a da independência da Bahia - celebra, na verdade, a vitória conquistada pelos brasileiros na guerra travada pela independência do Brasil na província da Bahia, ao longo de 17 meses. Entenda-se: guerra, aqui, não é figura de retórica. É guerra mesmo, com sua triste substância de violência desenfreada, dores, legião de feridos, mortes, destruição de edificações, colapso dos serviços urbanos etc, travada nos moldes das guerras do começo do século 19, é claro, de fevereiro de 1822 a julho de 1823. Como outras, gerou seus heróis - neste caso, quase todos originários das camadas mais pobres da população e cultuados hoje ainda com carinho pelos baianos. Maria Quitéria, João das Botas e o Corneteiro Lopes são nomes inesquecíveis nesta saga inexistente nos livros didáticos de História do Brasil e, portanto, desconhecida da maioria dos brasileiros. Aliás, injustamente desconhecida, segundo o historiador Luís Henrique Dias Tavares, que neste 28 de janeiro completa 80 anos, boa parte dos quais dedicados à pesquisa incansável da participação baiana no processo de independência do Brasil. Em dezembro último ele lançou um novo livro sobre o tema, Independência do Brasil na Bahia (Editora da UFBA, 245 páginas, R$ 35), título que vem se somar a outros 22 que publicou, distribuídos
entre os estudos históricos e a ficção. Professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na qual se aposentou em 1991, depois de 38 anos de trabalho, entre 1977 e 1986 Luís Henrique Dias Tavares esteve algumas vezes em períodos de pós-doutoramento na Universidade de Londres. Natural de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo baiano, casado com dona Laurita, pai de dois filhos e uma filha, seis netos e uma bisneta, até agora, foi com uma infinita calma baiana, temperada com muita simpatia, que o professor Luís Henrique concedeu em novembro passado, a Pesquisa FAPESP, a entrevista da qual publicamos a seguir os principais trechos. ■ Professor, qual é a sua relação com a UFBA hoje? — Sou professor fundador do mestrado e doutorado em história e ciências sociais na Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas. Sou também orientador na Faculdade de Educação. E, a partir do final de 2003, componho uma comissão que está organizando os eventos direcionados aos 60 anos da universidade, que se realizarão em 2 de julho de 2006. ■ Já que será em 2 de julho, por essa data caímos logo no tema da independência da Bahia. E a pergunta é: por que quase ninguém fora da Bahia sabe que aqui houve uma guerra pela independência? — Por causa das deformações no ensino da história do Brasil e das diferenças regionais em nosso país. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ganharam uma posição de destaque por causa da proclamação da República e pelo desdobramento da chamada Revolução de 1930, que conduziu o país a uma nova fase, que tentou unir formas democráticas audaciosas e formas autoritárias, mesquinhas, ditatoriais, que atrasaram o Bra-
sil em pelo menos 50 anos. É o que está na base desse desconhecimento da luta pela independência do Brasil, e não só na Bahia. Essa província travou uma guerra que durou mais de um ano. Custou muitas vidas, sacrifícios e contribuiu também para o maior empobrecimento da província. ■ A guerra pela independência aconteceu em alguma outra província? — Da maneira como aqui se desenvolveu não. Há uma situação de luta permanente em Pernambuco, junto com as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, com uma certa extensão ao Piauí e provavelmente ao Maranhão. ■ Quer dizer, o Nordeste lutou pela independência. — Sim, há uma guerra no Nordeste pela independência, com características muito diferentes da forma como o Brasil se separou de Portugal no sul. A separação do Brasil de Portugal tem uma face de negociações complicadas no Rio de Janeiro, estendendo-se a São Paulo e Minas Gerais, e outra face de situações de luta armada e de negação da monarquia absoluta que Portugal voltou a ser nos primeiros meses de 1823. É a realidade que nosso querido colega e amigo o historiador Evaldo Cabral de Mello desenvolve em seu recente livro A outra independência. Ele chama assim aquela que se desenvolveu na província de Pernambuco e, pela proximidade, alcançou Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. ■ Quais são as características da guerra aberta na Bahia pela independência? — É diferente do que aconteceu em Pernambuco. Lá, processou-se o desenvolvimento das posições de 1817, ainda não aceitas e compreendidas pelos estudiosos de história do Brasil, que se encaminhavam em direção a um Brasil republicano PESQUISA FAPESP 119 • JANEIRO DE 2006 ■ 13
federativo. E a preocupação com o tráfico negreiro e com o trabalho escravo esteve nas cogitações dos mais proeminentes líderes de 1817 no Recife. Na Bahia desenvolveu-se uma situação de guerra, valendo todas as armas. Essa situação única sucedeu por causa da posse do general Madeira de Mello, pela força das armas, no comando da província da Bahia. A Bahia, assim como o Maranhão e o Pará, tinha aderido ao movimento constitucionalista em Portugal, a partir da revolução do Porto, de agosto de 1821. O meu inesquecível mestre José Honório Rodrigues colocou em questão a adesão da Bahia e ainda não conseguimos esclarecer a posição da província. Mas a própria monarquia constitucional portuguesa permanece um tema não resolvido na história de Portugal, há questões que não estão esclarecidas. Uma delas é que a revolução declarou reconhecer a autoridade do rei dom João VI, que, naqueles dias, estava no Rio de Janeiro, então um centro político do império português. Alguns historiadores portugueses acentuam que a partir de 1808 o Brasil se tornou o centro do império, com a vinda da família real para o Brasil, mas a minha colocação é a de que os auxiliares intelectualmente mais capazes do rei dom João VI na verdade deram uma nova forma à situação de colônia do Brasil. ■ Em sua visão, o Brasil apenas ganhou um status de colônia um tanto diferente. — Instala-se no Brasil uma situação ainda não compreendida. Não é aceitável para mim afirmar-se que o Rio de Janeiro se tornou o centro do império português. Menos ainda que o Brasil deixou sua condição de subalterno a Portugal. Há um novo destaque para o Rio de Janeiro, mas não ao limite de colocar na cidade o comando do império português. Não era do Rio de Janeiro que partiam as orientações e as decisões para Angola, Guiné, São Tome e Príncipe, Moçambique, Açores e Ilha da Madeira. ■ Mas, se parte substancial da corte tinha se transferido para cá, como Lisboa podia manter o comando do império português? — Mantinham um comando capenga, porém mantinham. Porquanto os governos que se estruturaram em Portugal sob a proteção da Inglaterra, ou melhor, do império unido Inglaterra, Escócia e Irlanda, eram interferentes. Não se pode de maneira muito segura declarar que os governos que representavam o rei dom João VI em Portugal eram altaneiros e 14 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
autônomos, porquanto sobre esses governos superintendia a autoridade maior dos representantes do império britânico, todos esses militares. ■ Era como se o Brasil estivesse num segundo grau de subalternidade. Havia o império britânico, Portugal sob certo controle desse império e o Brasil subalterno a Portugal. Uma situação bastante complicada. — Extremamente complexa e difícil de ser entendida, pois ainda não alcançamos as linhas claras para chegarmos à inteligência dessa fase da história de Portugal, que é também da história do Brasil. ■ Vamos voltar à Bahia. O general Madeira de Mello assume o comando da tropa portuguesa em março de 1822. E aí, como se instaura a situação de guerra? — Instaura-se antes de março, em fevereiro de 1822, com a decisão dos comandantes militares portugueses em Salvador de não abrir o comando da província para nenhuma autoridade militar brasileira. Decidiram que tinha de ser o general Inácio Luís Madeira de Mello. A nomeação veio de Lisboa, das Cortes, um nome antigo da monarquia absolutista que foi aplicado para a Assembléia Constituinte legislativa formada pela revolução de agosto de 1821. Essa assembléia não foi suficientemente clara nem suficientemente lúcida para estabelecer as condições de equivalência entre o reino de Portugal, o reino do Brasil e o reino de Algarves e, na minha avaliação, a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, determinada por dom João VI em 1816, é uma figura de ficção. Na avaliação de muitos respeitáveis historiadores portugueses é outra, ou seja, a de que o rei, com essa atitude, estabeleceu eqüidade entre Portugal, Brasil e Algarves. ■ Antes da revolução constitucionalista. — Sim. Devo dizer, de qualquer forma, que a colocação Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves construía uma nova situação política no quadro internacional - para ser exato, no quadro da Europa ocidental e oriental, pois a Rússia czarista está nessa fase histórica muito intimamente ligada a todas as decisões das organizações monárquicas, políticas e militares, que derrotaram Napoleão Bonaparte. Tudo isso é muito confuso porque é politicamente confortável transformar a proclamação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves no fim do vínculo colonial, no fim do vínculo de subordinação do Brasil a Portugal. Mas es-
sa subordinação é administrativa, é política, é cultural, é uma subordinação em todos os sentidos! Nem os brasileiros que tinham alcançado postos de comando no exército de Portugal nas terras do Brasil tinham sido ouvidos para a decisão de criar-se o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. ■ Mas como se organizam as forças brasileiras para a entrada em guerra na Bahia? — Organizaram-se da maneira possível na ocasião, com os militares brasileiros que participavam do exército colonial português, que tinham patentes mais avançadas e comando na cidade do Salvador. Eles tinham participado da adesão da Bahia ao movimento constitucional que se seguiu à revolução de 1821, sem considerar o equívoco em que estavam entrando. Aderiram a uma situação na qual enxergavam a possibilidade de independência, se não do Brasil, pelo menos de uma região do Brasil, por meio de uma carta constitucional elaborada também com a participação de deputados brasileiros na Assembléia Constituinte. ■ Como nada disso ocorreu, os militares desencantados resolveram entrar em guerra contra Portugal? — Partem para a ruptura completa com Portugal. ■ E quem são as lideranças no primeiro momento da guerra? — Têm várias, mas vou reuni-las no nome de Felisberto Gomes Caldeira, que nessa ocasião era tenente-coronel do exército colonial português no Brasil. Já em novembro de 1821, Felisberto Gomes Caldeira e outros militares subiram a Ladeira da Praça [no centro histórico de Salvador], invadiram a Câmara Municipal, tomaram a bandeira da câmara, que era símbolo do poder, e, com ela em mãos, foram depor a junta que governava a Bahia, que governava militarmente a cidade do Salvador. Esse militares estão com a junta, exigindo que ela se demita e formaram uma outra junta, quando os oficiais portugueses, com Madeira de Mello no comando, chegam ao centro da cidade e prendem esses manifestantes. ■ Entre novembro del821 e fevereiro de 1822, esses militares que tinham Felisberto na liderança ficam presos. Como então a luta começa em fevereiro? — Sim, eles foram mandados presos para Lisboa. Mas outros militares com a mesma posição ficaram no exército colo-
nial. E eles tomam a atitude de resistir quando Inácio Luís Madeira de Mello é nomeado pelas Cortes de Lisboa e pelo rei dom João VI comandante das forças armadas na Bahia. Esse é um decreto que ainda não está perfeitamente esclarecido na história de Portugal e na história do Brasil. Mas tratava da nomeação de generais portugueses para todas as províncias do Brasil, uma decisão que, em minha leitura, revelou que Portugal tinha decidido manter o Brasil subordinado pela força das armas. Essa lei ou decreto na verdade é de setembro de 1821, mas ele só chega na Bahia em fevereiro de 1822, com a nomeação de Madeira de Mello para governador das armas na província da Bahia. Os oficiais brasileiros que ainda estavam dentro do exército, assim como os milicianos brasileiros que representavam os brancos, os pobres, os pretos, os mulatos, não aceitaram essa nomeação. Preferiam que fosse um brasileiro e, nesse caso, provavelmente os equívocos da costura do Brasil ao Reino de Portugal e Algarves ainda durariam por algum tempo. Mas digo que a nomeação foi uma declaração de guerra porque foi de armas nas mãos que Madeira de Mello ocupou o posto de governador das armas na província da Bahia. ■ E aí começa a resistência. — Sim. Os municípios que formavam o Recôncavo, produtores diretos da riqueza da província, pois produziam açúcar, fumo e outras mercadorias para o comércio internacional, sem armas, declaram que não aceitam o general Madeira de Mello como governador das armas. E fecham o Recôncavo para as relações com a cidade do Salvador. Isso afeta toda a província, porque é de Cachoeira, no Recôncavo, que se estabelecem as relações comerciais com todo o chamado sertão, pela subida do rio Paraguaçu até a Chapada Diamantina, estendendo-se daí às áreas que produziam gado e o enviavam para a cidade do Salvador. Todos adotam a posição de resistência. E fracassam todas as ofensivas de Madeira de Mello para ter o reconhecimento do Recôncavo. Nenhum relacionamento ele consegue estabelecer com os donos de terras, de fazendas, de plantações, de escravos, no Recôncavo. Essa resistência passiva vai até junho de 1822. A ocupação do governo por Madeira de Mello em fevereiro estabelecera um corte entre brasileiros e portugueses. As relações de brasileiros e portugueses sempre foram muito distantes, sempre guardaram as conve-
niências das atividades que realizavam, mas sempre existiram estranhamentos. ■ O que acontece de junho em diante, que muda a situação? — Primeiro acontece a proclamação do município de Cachoeira contra Madeira de Mello, contra todos os demais oficiais militares, contra a Armada Portuguesa, que ocupava a Baía de Todos os Santos. Essa é uma situação ainda mal compreendida, mas em 28 de junho de 1822 forma-se em Cachoeira um governo que nega o governo que está na cidade do Salvador. No meu novo livro faço uma revisão do que aconteceu e daquilo que eu próprio narrei nas edições anteriores de Independência do Brasil na Bahia, publicadas pela Civilização Brasileira. Analiso as divisões regionais do Brasil, que eram muito profundas naquele momento. ■ Pelo panorama que o senhor desenha configura-se uma situação em que o príncipe regente tinha poder sobre o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A província da Bahia tinha uma situação singular. A maior parte das províncias do Nordeste não estava muito preocupada com as decisões do príncipe regente, enquanto Maranhão e Pará obedeciam diretamente a Lisboa. Já o Rio Grande do Sul, Paraná e tal... — ...estavam ainda muito distantes de tudo isso. ■ Enfim, em seu livro há um desenho muito interessante da formação da nação, depois dessas divisões profundas. — O querido amigo historiador Marco Morei acentua esse aspecto no prefácio do meu livro. Com a sua lucidez, sua autoridade e conhecimento da história do Brasil, ele acentua que havia essa falta total de perspectiva de unidade. Não havia um Brasil, havia Brasis. E existiam diferenças
na própria província. O município de Cachoeira não era como o de Santo Amaro, nem este como o de São Francisco do Conde. Estão muito próximos, são terras muito misturadas, mas têm interesses diferentes, formações diferentes. Voltando à guerra, a posição beligerante adotada por Cachoeira foi acompanhada pelos municípios de Santo Amaro, São Francisco do Conde e Maragogipe. E aí os deputados baianos nas Cortes enviaram uma consulta aos brasileiros desses municípios, que serviu de cobertura para estruturar a nova situação de guerra, agora reconhecendo a autoridade do príncipe dom Pedro, o governo estabelecido no Rio de Janeiro. Isso ocorreu em junho, julho, agosto de 1822, quando dom Pedro, José Bonifácio de Andrada e Silva e outros próximos já estão decididos pela separação do Brasil de Portugal. ■ O senhor diz que o 7 de setembro é uma data simbólica. Por quê? — Essa é também uma questão que ainda está exigindo muita pesquisa. O fato é que as conversações sobre a separação do Brasil de Portugal tiveram caminhos muito estranhos porquanto conduziam a uma forma autoritária, absolutista. Na província da Bahia há nesse momento uma situação de guerra incontornável, pois aqueles que estavam com armas nas mãos no Recôncavo eram brasileiros, que nada queriam mais com Portugal, e haviam decidido reconhecer o príncipe dom Pedro como a autoridade do Brasil; aqueles que estavam com armas nas mãos na cidade do Salvador eram militares do exército português que ocupava a cidade do Salvador, com apoio dos grandes exportadores e importadores das casas comerciais portuguesas, subordinados ao rei dom João VI. É uma situação absolutamente nova. O governo formaPESQUISAFAPESP119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 15
do em Cachoeira não chegou a ter de fato amplitude, mas quase em seguida forma-se o Conselho Interino. E aqui eu sou levado a lembrar que o tenente-coronel Felisberto Gomes Caldeira teve uma atuação decisiva para a formação de um governo autônomo na Bahia, esse Conselho Interino que passa a governar a província dessa altura em diante. ■ Mas como ele pôde ter essa influência toda se estava preso em Lisboa? — Ele já tinha voltado. Os deputados brasileiros nas Cortes conseguiram defender todos os militares que tinham sido presos e enviados para lá e eles foram libertados. Felisberto Gomes Caldeira voltou para Salvador, já sob o domínio de Madeira de Mello, e se comporta como um conspirativo. Apresenta-se ao general que o mandara prender como o soldado que voltou de uma situação injusta, ocupa seu posto, recebe os soldos e desaparece para reaparecer depois em Santo Amaro. Vai conversar com os senhores de engenho, de terras e de escravos, todos rompidos com Madeira de Mello. E daí ele vai de Santo Amaro a São Francisco do Conde, a Cachoeira, onde de novo, com uma manifestação que tem homens armados na porta da Câmara Municipal, é tomada a decisão de se formar um Conselho Interino, com representantes dos diversos municípios da província. ■ Quando essas milícias e tropas organizadas vêm para Salvador aí se estabelece a guerra que termina com a derrubada de Madeira de Mello? — Não. Antes, em agosto de 1822, eles declaram a guerra. Nesse momento eles não sabem absolutamente nada do que está sucedendo no Rio de Janeiro. O que fazem esses municípios da Bahia é buscar a cobertura autoritária do príncipe, porque esse é um dos focos permanentes na nossa história, o autoritarismo. Somos um povo conservador. O nosso comportamento tem sido repetidamente conservador. E também é de quem espera mais das autoridades autoritárias do que das autoridades democráticas constitucionais. É fácil localizar hoje as tendências que permitiram depois existir 1964,1968, e Deus permita que essas ocorrências não se repitam mais, porém não devemos desconhecer nunca duas coisas: primeiro, que tivemos trabalho escravo até 1888 e não fomos capazes de solucionar o fim da escravidão. Não fizemos nada para que o fim da escravidão fosse de 16 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
fato o fim da escravidão. As cabeças que pensaram a melhor solução foram o engenheiro André Pereira Rebouças, monarquista até morrer, mas de pensamento límpido, e Joaquim Nabuco, os dois únicos brasileiros que propuseram a doação de um lote de terra a cada escravo que estava sendo aparentemente libertado. E, voltando, em segundo lugar, que o autoritarismo está profundamente entranhado como tendência em nossa história. Quando o Brasil mais recentemente construiu as condições que levaram à suspensão da ditadura militar, na verdade uma ditadura militarizada de grandes empresários brasileiros e de grandes empresários internacionais que tinham dinheiro alocado na economia brasileira, foi feita uma enquete com os oficiais das Forças Armadas sobre o retorno à forma democrática que terminou com 85% deles votando contra. Portanto, o fantasma do autoritarismo está aí e precisamos estar muito alertas para que ele não volte a nos pisar como já pisou. ■ Vamos voltar a 1822? — Sim, em agosto os brasileiros do Recôncavo formam forças organizadas para não só resistir, mas também avançar e retomar a cidade do Salvador. Até chegar a se decidir pela independência, seus soturnos caminhos por instantes levaram o príncipe dom Pedro a pensar em trazer de volta o rei dom João VI e investi-lo aqui com a autoridade de rei do Brasil, de Portugal e de Algarves, fórmula essa que não encontrou a menor condição, toda uma situação muito peculiar, que ainda não está na consciência dos brasileiros. Quando o príncipe vai para São Paulo em agosto, faz isso para atender às conveniências políticas do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Ele vai equacionar as condições de liderança dos Andrada na província de São Paulo. De qualquer sorte, ele viaja decidido a separar o Brasil de Portugal e a se proclamar aquilo que os fluminenses tinham lhe dado como título, ou seja, defensor perpétuo do Brasil. E o 7 de setembro é então uma data simbólica, não é realmente a da independência do Brasil, mesmo porque um enorme pedaço do país ainda não era independente. A guerra que acontecia numa província como era a Bahia, que tinha artigos da maior importância no comércio internacional, além de um porto de fácil acesso para quem chegasse da Europa, da índia ou da África, criava uma situação muito especial para a manutenção da unidade do país.
■ Por quê? — O quadro econômico, de avanço do capitalismo industrial, que precisa de novos padrões tecnológicos para fazer avançar a produção, é favorável por uma transposição indireta. Mas o quadro político é diferente. Uma Europa monárquica absolutista tem o comando de milhões de europeus. Quem lidera essa Europa é a Áustria, a Rússia, a Prússia. E há uma situação de conflito econômico e político entre o Reino Unido da Grã-Bretanha e esses países. A Inglaterra, líder do Reino Unido da Grã-Bretanha, é o país da Revolução Industrial, que tinha chegado também à França e aos Estados Unidos. Esse quadro econômico não é liderante no mundo ainda, mas tem uma posição de grande importância e de certo poder de decisão no mundo inteiro. Então aqui no Brasil estão diplomatas ingleses, cônsules norte-americanos, eles estão no Nordeste, em Pernambuco, na Bahia... Enfim, um Brasil que ainda não era o Brasil tem nesse exato momento uma posição muito frágil, e é aí que tem que se entender que toda a nossa luta na Bahia, no Nordeste, foi decisiva para a independência do Brasil e a formação do Brasil como ele é. Tobias Monteiro enxergou isso e deu destaque em seu livro A elaboração da independência do Brasil. Nós aceitamos a linha de Tobias Monteiro pela lucidez e por sua autoridade de historiador. Mas continuamos trabalhando nisso, na verdade estou estudando a independência do Brasil na Bahia desde 1956. ■ Por que a independência da Bahia, no imaginário dos baianos, tem uma conotação popular tão forte? Por que a festa do 2 de julho, diferentemente do 7 de setembro, sempre foi uma festa mais ligada às causas populares? Por que as figuras de Maria Quitaria, Joana Angélica, o Corneteiro Lopes, João das Botas parecem falar de um imaginário totalmente diferente daquele que se tem sobre a independência do Brasil? — Essa é uma construção de muitos e muitos anos após o 2 de julho de 1823. A Bahia saiu muito pobre da guerra, pois durante longo período ficou sem possibilidades de continuar o seu comércio, enquanto gastava recursos para formar aquelas tropas, aqueles batalhões e apoiar o exército que afinal vai chegar do Rio de Janeiro. Assim, de mãos vazias, em 2 de julho de 1823 a única coisa que a Bahia tem é justamente o 2 de julho de 1823. Naquele quadro, que na época não se pode chamar de nacional brasileiro, pois o Brasil verdadeiramente não existe ainda,
o Brasil é uma demorada e castigada construção dos brasileiros, a Bahia está sem nada E é daí que os baianos orgulhosamente construíram o 2 de julho de 1823 como uma data da independência, que era da Bahia, mas que era também, e muito, do Brasil. A construção do 2 de julho é lenta e se faz com alguns equívocos, porque a Bahia continua até hoje homenageando o general Labatut no 2 de julho, e não há a menor razão para isso. Foram os brasileiros que de fato libertaram a cidade do Salvador de armas nas mãos. Primeiro foram os brasileiros de Santo Amaro, Maragogipe, Cachoeira, São Francisco do Conde, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe que formavam um exército de esfarrapados... Depois entraram os brasileiros que desceram lá de Catité e de outros pedaços do sertão e da Chapada Diamantina, formando um exército das mais diferentes cores, de brasileiros filhos de escravos, descendentes de escravos, brasileiros brancos pobres que nada tinham além de uma roça de cana plantada para o senhor de engenho... Foram meses e meses que eles ficaram em trincheiras cavadas nas terras de Santo Amaro, São Francisco do Conde, terras que com qualquer chuva viram lama, e que aí foram tomados de carrapatos, de bichosde-pé, da cabeça aos pés. Assaltados pela tuberculose, impaludismo, tifo, todas essas doenças tomaram os nossos soldados, vitimaram muitos deles. Avançaram para chegar à cidade do Salvador, tomaram os altos do Pirajá e avançaram na Baía de Todos os Santos, começando de Itapagipe, conquistando o Rio Vermelho, do Rio Vermelho alcançando a Barra, um exército de esfarrapados, de homens famintos. O quadro do general, na ocasião ainda coronel, Joaquim de Lima e Silva, o Duque de Caxias, sobre um cavalo alazão belíssimo, ovacionado por um exército de homens, todos muito contentes, alegres e gordos, não representa a verdade. ■ Quantos soldados estavam nessa guerra pelos cálculos disponíveis? -— De 9 mil a 10 mil soldados portugueses, somando aí o pessoal da Armada Portuguesa que ocupava a Baía de Todos os Santos. E do lado brasileiro cerca de 12 mil soldados, sendo que eram poucos os soldados profissionais mesmo, que vieram na primeira leva enviada pelo príncipe, já então aclamado imperador, e depois outros soldados brasileiros que vieram de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará lutar pela independência do Brasil na Bahia.
■ Ninguém quase tem essa noção da convergência de forças do país todo... — Não se tem, mas é aí que nós estamos nos aproximando da verdade histórica. Essa guerra fez muitas vítimas, registrou mortes heróicas de homens que se meteram em trincheiras que eram pura lama... Heróis enlameados, descalços... A mitologia baiana criou Maria Quitéria com um saiote escocês, com uma linda farda e com arma na mão. Ela esteve realmente em vários instantes de luta, mas esfarrapada, com o que restava em cima do corpo, porque foi parte desse exército brasileiro... ■ Ela não é um mito, é de fato uma mulher que lutou na guerra o tempo todo? — Sim, o tempo todo. Até o 2 de julho. Pelo menos desde agosto de 1822 ela está nesse comando de guerra para libertar a cidade do Salvador. ■ Vale a mesma coisa para o João das Botas? E para o Corneteiro Lopes? Vale a mesma coisa para João das Botas. Não vale para o Corneteiro Lopes, porque ele não é uma figura documentada na nossa história. É uma construção do Santos Titara e outros, sendo que não se deve esquecer como homenagem ao Corneteiro Lopes que Inácio Acioly Cerqueira e Silva o conheceu mendigo, pedindo esmolas na cidade do Salvador e relata isso em 1836, na primeira edição das Memórias históricas da província da Bahia. Como ele está ganho por essa ideologia do patriotismo baiano, ele construiu também a história de um cometa decidindo combates que estavam quase perdidos.
■ É verdade que Maria Quitéria morreu numa situação de prostituição em Cachoeira? — Não é verdade. Isso resulta do preconceito masculino, brasileiro e baiano contra a mulher. Os barões da Bahia jamais reconheceram Maria Quitéria e daí terem construído várias versões que a negassem. Ela realmente esteve em frente de combate. Partiu com o batalhão do avô de Castro Alves, dom Periquitão, e chegando a Salvador, sendo inteligente, finda a guerra, viu que as suas perspectivas não eram muito boas e foi ao Rio de Janeiro apresentar-se ao príncipe dom Pedro, que lhe deu o título de cadete. E aqui, para concluir, dê-me licença para dar notícia de que o general Inácio Luís Madeira de Mello voltou com o seu exército, com uma quantidade enorme de navios para Portugal e, em novembro de 1823, foi preso e passou a responder a um dos processos mais incríveis em Portugal. A prisão se deu por ordem direta do ministro da Guerra do rei dom João VI, o príncipe dom Miguel. E no processo Madeira de Mello é apresentado como único responsável pela derrota do exército e da marinha de Portugal. ■ Não posso encerrar sem saber algo sobre João das Botas. — É uma figura ainda muito desconhecida. Ele é um marinheiro português que adere à autoridade do príncipe dom Pedro e pelos seus conhecimentos instrui Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco do Conde a armarem barcos. A história da Baía de Todos os Santos é a história dos saveiros, das canoas e dos barcos. Os grandes barcos são armados, canhões são colocados nas proas e popas, e aí eles têm o comando de João de Oliveira Botas. Esses barcos assim armados foram decisivos na guerra. Não vamos dizer que foram vencedores porque não sabemos até agora por que motivo a Armada Portuguesa foi tão temerosa para realizar de fato combates, com as condições que possuía, de grandes naus com muitos canhões, com uma força belicosa muito maior do que aqueles barquinhos. ■ Esses grandes barcos da resistência bombardeiam a cidade do Salvador a partir da Baía de Todos os Santos? — Não. Eles não chegam até Salvador. Eles defendem Itaparica. Nos dias 5,6 e 7 de janeiro de 1823, a Armada Portuguesa fez mais uma tentativa frusta e, ao que tudo indica, sem grande interesse de tomar e ocupar a ilha de Itaparica. • PESQUISA FAPESP119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 17
©POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Estratégias
Mundo
Muçulmanos contra a estagnação
Um plano estratégico para os próximos dez anos, destinado à promoção da ciência e da tecnologia no mundo muçulmano, foi assinado por autoridades de 57 países islâmicos num encontro realizado em Meca, na Arábia Saudita, no início de dezembro. O objetivo central é aumentar o investimento em pesquisa para reduzir o fosso tecnológico entre boa par-
■ Academia virtual O projeto de criação de uma universidade virtual para treinar pela internet estudantes de países africanos foi apresentado no Encontro Mundial da Sociedade da Informação, realizado no dia 18 de novembro passado na Tunísia. A academia on-line, iniciativa do parque tecnológico tunisiano Borj-Cedria e da Universidade das Nações Unidas, tratará de temas como energias renováveis, conservação da água e biotecnologia. A iniciativa busca estrei-
te das nações islâmicas e o mundo desenvolvido. O documento define várias metas. Propõe, por exemplo, que até 2015 pelo menos 30% dos jovens entre 18 e 24 anos tenham oportunidade de ingressar numa universidade. Também estabelece que os países islâmicos farão esforços para, em dez anos, investir em ciência e inovação o equiva-
tar laços entre cientistas e institutos de pesquisa africanos, incluindo-se aí centros de treinamento pela internet, como a Universidade Virtual
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lente a pelo menos 1,2% do PIB. Para atingir tais objetivos é preciso dinheiro. O documento sugere que as nações produtoras de petróleo aproveitem a alta dos preços do produto para canalizar um quinhão dos lucros para a pesquisa. "É preciso romper a estagnação na ciência do mundo islâmico que já dura séculos", disse o presidente do Paquistão,
Africana, do Quênia, e o Centro de Aprendizado Virtual da Água, mantido pelas Nações Unidas. "Nunca é demais reforçar o quanto é importante
Pervez Musharraf. O documento foi construído nos últimos dois anos por um grupo de autoridades e cientistas. Cada país comprometeu-se em preparar um plano regional. "É um marco na busca dos países islâmicos para aperfeiçoar seus recursos humanos", disse ao site SciDev.Net Wardiman Djojonegoro, ex-ministro da Educação da Indonésia. •
para o continente equipar-se com centros dotados de tecnologia de informação e de comunicação, especialmente no treinamento de recursos humanos", disse ao site SciDev.Net Hans van Ginkel, reitor da Universidade das Nações Unidas. Outro destaque do encontro foi o anúncio de uma colaboração entre a gigante do software Microsoft e a Unesco, o órgão das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A parceria prevê a criação de um centro de treinamento que receberá jovens de mais de 200 cidades da Tunísia. •
■ Persona non grata
■ Os melhores da Science
Os Estados Unidos negaram visto de entrada no país ao engenheiro químico cubano Vicente Vérez Bencomo, que havia sido convidado a participar de um simpósio internacional em Boston, no qual seria homenageado e receberia dois prêmios oferecidos pelo Museu de Inovação do Instituto Tecnológico de San José, na Califórnia. Bencomo ajudou a desenvolver uma vacina sintética contra a Haemophilus influenzae tipo B, bactéria que provoca meningite, pneumonia e outras infecções e causa a morte de mais de meio milhão de crianças por ano no mundo. A vacina cubana, batizada comercialmente de Quimi-Hib, oferece 99,7% de proteção em longo prazo. Os dois prêmios conquistados pelo cubano foram disputados por 560 pesquisadores provenientes de 80 países. Sua vacina foi incluída no rol de 25 pesquisas mundiais que notavelmente beneficiaram a humanidade. Ele também foi um dos nove ganhadores na categoria Saúde Humana, com direito a receber US$ 50 mil. O cientista de 52 anos classificou como ofensiva a razão exposta pelo governo dos Estados Unidos para negar sua entrada: o de ser um indivíduo prejudicial para o país. "O que fiz nos últimos 15 anos de minha vida foi criar uma vacina para salvar vidas de crianças e não compreendo que o fato de divulgá-la seja prejudicial", afirmou ao site SciDev.Net. "Os Estados Unidos temem a presença de pesquisadores cubanos dentro de suas fronteiras porque demonstramos em nossas conferências que um país
A revista norte-americana Science fez um ranking dos dez maiores avanços científicos de 2005.0 destaque ficou por conta das pesquisas sobre a evolução humana - considerada pela publicação como o "fundamento" de toda a biologia - que experimenta extraordinários avanços à luz da genômica, biologia molecular, entre outras ciências. Em segundo lugar estão as expedições e investigações fora da órbita terrestre, em Marte, Vênus e Mercúrio. Em terceiro estão os resultados das pesquisas em biologia molecular que têm dado pistas importantes sobre a floração de plantas. Os estudos sobre as mudanças climáticas ficaram com a 8a posição. A revista comemora a decisão de instalar o International Thermonuclear Experimental Reactor (Iter), em Caradache, na França - um investimento de US$ 12 bilhões -, conferindo ao projeto o 10° lugar no ranking das empreitadas científicas publicado no volume 310, de 23 de dezembro. Neste ano, a Science acredita que ganharão destaque as pesquisas sobre a gripe aviaria, os estudos sobre raios cósmicos de alta energia - como os desenvolvidos no observatório Pierre Auger, na Argentina, entre outras. •
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com um regime político diametralmente oposto ao norteamericano consegue obter alta preparação cultural e técnica", disse. Por sugestão do professor da Escola de Medicina da Universidade John Hopkins, Ronald Schnaar, Bencomo gravou sua exposição, que pôde ser vista pela internet pelos participantes do simpósio de Boston. Ele voltará a pedir o visto para visitar os Estados Unidos. Afinal, foi convidado a fazer duas conferências em março, na Universidade do Sul de Illinois. •
■ Petróleo dá fôlego à Rússia O Parlamento da Rússia aprovou um orçamento de 23 bilhões de rublos, o equivalente a R$ 1,7 bilhão, para a agência espacial do país em 2006, 30% mais do que os recursos de 2005. A previsão de orçamento para os próximos dez anos alcança 305 bilhões de
rublos, ou cerca de R$ 22,5 bilhões. Os recursos, diz a revista Nature, virão dos lucros em alta da venda de petróleo, cuja cotação explodiu nos últimos meses. O reforço no orçamento permitirá à Rússia voltar a lançar missões espaciais científicas. Há vários projetos na fila. Um deles planeja coletar amostras do solo de um satélite de Marte. Engenheiros da Associação Lavochkin, de Moscou, querem enviar em 2011 uma sonda à Lua para realizar estudos geofísicos. •
■ Verbetes precisos A Wikipedia, megabanco de dados on-line e gratuito, é tão precisa em assuntos científicos como a Enciclopédia Britânica, revelou um estudo publicado na revista Nature. Textos das duas fontes foram avaliados por especialistas que não conheciam a origem dos verbetes. Oito erros sérios envolvendo interpretações de conceitos importantes foram detectados - quatro em cada enciclopédia. "Os revisores também encontraram erros factuais ou omissões, sendo 162 na Wikipedia e 123 na Britânica", informou a Nature. Fundada em 2001, a Wikipedia reúne na internet 1,8 milhão de verbetes em 200 idiomas. Seus textos são escritos ou reescritos por internautas. O mecanismo parece frouxo, mas funciona. Os usuários cuidam da correção de erros. A Wikipedia costuma ser atacada por vândalos. Num caso recente, a foto do papa Bento 16 foi trocada pela de um vilão dos filmes Guerra nas estrelas. O criador da enciclopédia, Jimmy Wales, planeja limitar a publicação de artigos a internautas cadastrados. •
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■ US$ 100 milhões contra o câncer Os Estados Unidos vão investir US$ 100 milhões num projeto de mapeamento genético do câncer. A meta é desvendar a relação entre as mudanças ocorridas no DNA humano e a eclosão de tumores. Numa primeira etapa serão estudados três tipos de tumor. O projeto Atlas do Genoma do Câncer foi lançado pelo Instituto Nacional de Pesquisa sobre o Genoma Humano e o Instituto Nacional contra o Câncer. •
A exagerada dependência de pesquisadores estrangeiros seria uma ameaça à estabilidade da pesquisa biomédica dos Estados Unidos, sustenta um estudo feito por Susan Gerbi, bioquímica da Universidade Brown, em Providence, Estado de Rhode Island, EUA. Se a importação de mão-de-obra de fora cessasse, alerta o trabalho, muitos laboratórios norte-americanos não
conseguiriam funcionar com a produtividade atual. Gerbi mapeou o número de pesquisadores em laboratórios biomédicos nos EUA entre 1972 e 2002. Constatou uma redução dos cargos permanentes e o avanço de funções temporárias assumidas por pós-doutorandos. Há três décadas o número de pósdoutorandos eqüivalia ao de investigadores fixos.
Hoje há dois temporários para cada pesquisador de carreira. E, desde 1998, os estrangeiros são maioria entre os recrutados. O problema, disse Gerbi à revista Nature, é que a dependência disfarça a escassez de norte-americanos qualificados. E mostra que os laboratórios podem entrar em colapso se os pós-doutorandos passagem a escolher outros destinos. •
Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
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www.mamiraua.org.br/uakari A revista do Instituto Mamirauá disponibiliza informes e pesquisas sobre desenvolvimento sustentável.
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http://www.socialpsychology.org/ A rede criada pela Wesleyan University, dos EUA, reúne 12 mil links do campo da psicologia social.
www.africancrops.net 0 portal mantido pela Fundação Rockefeller traz dados e pesquisas sobre a agricultura na África.
Estratégias
Brasil
Agência FAPESP chega a 50 mil assinantes Criada em junho de 2003, por proposta do professor Carlos Vogt, presidente da FAPESP, a Agência FAPESP envia por e-mail boletins diários e gratuitos a um público variado, formado por pesquisadores, dirigentes de órgãos de fomento, universidades e institutos de pesquisa do país, políticos, jornalistas e interessados em ciência e tecnologia. Em dezembro de 2005, o serviço eletrônico alcançou 50 mil assinantes. A marca revela como a Agência FAPESP tornou-se referência em divulgação científica rapidamente. Uma mostra do
■ Respeito ao meio ambiente O projeto Inventário Florestal do Estado de São Paulo, integrante do Programa Biota-FAPESP, foi o vencedor na categoria Natureza do Prêmio Ambiental Von Martius, instituído pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha em reconhecimento a iniciativas que promovam o desenvolvimento respeitando o meio ambiente. O projeto apresentou um levantamento em meio digital da cobertura vegetal natural remanescente de todo o estado. Coordenada pelo pesquisador Francisco Kronka, a equipe responsável teve representantes do Instituto Florestal, da Universidade Estadual de Campinas
alcance da agência são as reproduções e repercussões das notícias que ela publica em dezenas de veículos de comunicação. Além de divulgar notícias de ciência e tecnologia, outra vocação da agência é a cobertura de eventos como a Conferência Nacional de CT&I, a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e o Congresso Brasileiro de Genética. O conteúdo da agência está disponível em www.agencia.fapesp.br. •
(Unicamp) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq). O vencedor na categoria Humanidade foi a Fazenda Bimini, em Rolândia (PR), que mantém um programa de educação ambiental com 20 mil visitantes anuais. Na categoria Tecnologia a ganhadora foi a empresa Brasmazon, criadora de um modelo de extrativismo vegetal na Ilha de Marajó que comercializa óleos essenciais retirados a partir de ervas aromáticas. •
■ Cooperação em órbita O governo federal deverá oficializar no primeiro semestre deste ano a participação do Brasil no sistema europeu de
posicionamento de satélites Galileo, liderado pela Comissão Européia, conforme anunciou a Agência Espacial Brasileira (AEB). O programa disporá até 2010 de 30 satélites em órbita que permitirão registrar a localização de um objeto em qualquer lugar do planeta, nos moldes do sistema GPS, dos Estados Unidos. O Brasil vai receber dos responsáveis pelo Galileo uma lista dos temas possíveis de cooperação. O país poderá optar por ter acesso aos dados do satélite para estudos na área de ciência e tecnologia, sem investir no programa, ou alocar recursos no projeto e integrar sua direção. A decisão caberá a uma comissão presidida pelo presidente da AEB, Sérgio Gaudenzi. • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 21
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Compromisso para o futuro
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■ Fazendo rima com a ciência "E lá estava Oswaldo Cruz/ entre a febre e a espada/ que para ele apontada/ sem dúvida fazia jus/ àquela falta de luz/ que a imprensa semeara/ entre a gente que gritara/ seu não à vacinação/ que por decreto de então/ obrigatória se tornara..." dizem os versos do cordelista Edmilson Santini, natural de Belas Águas, Pernambuco. Intitulado Oswaldo Cruz, entre a febre e a espada, o cordel narra a Revolta da Vacina de 1904. Esse e outras dezenas deles, que abordam descobertas científicas, assuntos médicos ou a vida de grandes pesquisadores brasileiros e estrangeiros, foram compilados no livro Cordel e
Os países que integram a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima vão iniciar entendimentos para definir as medidas de redução de emissões e os novos compromissos a serem pactuados a partir de 2012, quando extingue o período de vigência do Protocolo de Kyoto. A decisão foi tomada ao final da 11a Conferência das Partes (COP), em Montreal, no início de
ciência - A ciência em versos populares (Vieira e Lent Casa Editorial), organizado por Luisa Massarani e Carla Almeida, do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz, e Ildeu de Castro Moreira, professor da Universidade Fede-
dezembro de 2005. As negociações para o futuro acordo ainda não começaram, mas há fortes expectativas de que países em desenvolvimento, como o Brasil e a China, sejam convidados a cumprir metas quantificadas de redução de emissões. Prevendo cobranças futuras, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, que participou do encontro no Canadá, propôs a criação imediata
ral do Rio de Janeiro. O objetivo do livro foi registrar as alusões à ciência de uma das formas mais populares de comunicação da cultura brasileira. Toda a literatura reunida no livro é de autoria de cinco cordelistas nordestinos. •
OSWALDO CRUS, ENTRE
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Ilustração dos
mote para cordelistas
de mecanismos de incentivo a fontes limpas de energia - o que colocaria o Brasil em posição favorável em relação aos demais países - e o apoio financeiro internacional para a preservação da Amazônia. "Isso implica, por parte da comunidade internacional, o reconhecimento de que a conservação das florestas tropicais é importante para o equilíbrio climático do planeta", disse. •
■ Novo edital para políticas públicas A FAPESP abriu a sétima chamada do seu Programa de Pesquisa em Políticas Públicas (PPPP). Os projetos deverão ser encaminhados até 30 de março. Lançado em agosto de 1998, o programa financia atividades de pesquisa que beneficiem a formulação e implementação de políticas públicas, cujos resultados tenham impacto no Estado de São Paulo. Podem participar institutos de pesquisa, universidades, organismos dos setores públicos estadual e federal e organizações não-governamentais. Os projetos aprovados terão sua execução prevista em três fases - a FAPESP financiará as duas primeiras.
Os recursos são de R$ 3,36 milhões, oriundos do orçamento da Fundação. Mais informações podem ser obtidas no endereço virtual www. fapesp.br/ppp. •
■ Os novos pró-reitores na USP O Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (USP) confirmou o nome de Mayana Zatz na Pró-reitoria de Pesquisa. Mayana é diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano e desenvolve pesquisas genéticas voltadas para o combate à distrofia muscular e teve atuação decisiva na aprovação da lei que autorizou o uso de célulastronco em pesquisas. O conselho também confirmou Selma Garrido Pimenta, para a Pró-reitoria de Graduação, Sedi Hirano, para a Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária, e Armando Corbani Ferraz, para a de Pós-graduação. •
■ Semente para inovação A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência de fomento do Ministério da Ciência e Tecnologia, lançou um novo programa que vai investir cerca de R$ 300 milhões em empresas nascentes de base tecnológica. Batizado de Inovar Semente, o programa irá apoiar nos próximos seis
anos cerca de 340 empreendimentos inovadores, cada qual com um aporte de recursos entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. O anúncio foi feito pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, no Fórum Brasil Capital de Risco, realizado em dezembro de 2005 em Curitiba. A intenção é criar 24 fundos, cada um com o montante inicial de cerca de R$ 12 milhões. Tais fundos serão organizados por cidades, privilegiando aquelas com vocação tecnológica, como Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Rita do Sapucaí (MG), Petrópolis (RJ), São José dos Campos (SP), Cam-
pinas (SP), Campina Grande (PB), Londrina (PR), Caxias do Sul (RS), São Carlos (SP), entre outras. Cada fundo apoiará entre 12 e 15 empresas. O capital será destinado a empresas nascentes, inclusive as que ainda estão dentro de incubadoras e universidades. Os recursos são dirigidos a ações como a construção de protótipo e a contratação dos executivos, entre outros. •
■ Registros sob nova direção O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) aprovou proposta de que as funções administrativas relativas ao domínio.br, como a execução do registro de nomes de domínio e a alocação de endereços IP (protocolo de internet), sejam atribuídas ao Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). A proposta foi encaminhada ao Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP e aprovada em reunião no dia 30 de novembro passado. O CTA da FAPESP ressaltou a importância de que fosse conduzida uma transição rápida da competência delegada à Fundação referente às atividades de registro ao NIC.br. No dia 5 de dezembro o NIC.br assumiu a gestão do registro.br. Num comunicado, o CGI.br manifestou agradecimento pelos serviços que a FAPESP sempre prestou no
estabelecimento da internet no Brasil. Desde a sua criação, em 1995, o Comitê Gestor tem compartilhado com a FAPESP muitas das responsabilidades de administrar recursos centrais para o desenvolvimento da internet, como é o caso do registro de nomes de domínio e a distribuição de números IP. •
■ Mais uma fundação Foi sancionada no dia 12 de dezembro de 2005 a lei que cria a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). A entidade, uma reivindicação de 30 anos da comunidade acadêmica regional, terá autonomia financeira e administrativa e receberá 0,75% da receita tributária do estado. Esse porcentual significará uma injeção anual de R$ 30 milhões, sendo que um terço deverá ser canalizado para a pesquisa na área do agronegócio. Com a criação do órgão, todos os estados do Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste integram a rede de fundações de amparo à pesquisa. •
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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA EDUCAÇÃO
Suporte para crescer Balanço de 40 anos mostra papel estratégico da pós-graduação no país
s percalços da educação brasileira têm um contraponto no sistema de pósgraduação, cujo desempenho nas últimas quatro décadas encontrou paralelo em poucos países do mundo. Hoje o Brasil dispõe de quase 3 mil cursos reconhecidos de pós-graduação. Eles formaram em 2004 27 mil mestres e 8 mil doutores e compõem o arcabouço de pesquisa que faz o Brasil responder por 45% de toda a produção científica da América Latina. Entre os anos de 1963 e 2004 o governo federal investiu R$ 11,1 bilhões, em valores atualizados, na concessão de bolsas de mestrado e doutorado. Cerca de 60% dessas bolsas foram financiadas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e outros 40% pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No mesmo período, o Estado de São Paulo, por
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meio da FAPESP, investiu US$ 724 milhões (cerca de R$ 1,6 bilhão) em bolsas no Brasil e no exterior. O número de cursos vem crescendo a uma taxa de 8,6% ao ano. Até o início dos anos 1960 os programas de pós-graduação resumiam-se a algumas dezenas de iniciativas isoladas e inspiradas em modelos diferentes. Destacavam-se os da Universidade de São Paulo (USP), que seguiam um modelo europeizado, e os da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com sotaque norte-americano. Foi há exatos 40 anos que um parecer do Conselho Federal de Educação organizou o sistema nos moldes vigentes até hoje. Adotou uma matriz flexível, similar à existente nos Estados Unidos, que divide a pós-graduação em duas categorias - stricto sensu, voltada para carreira acadêmica, e lato sensu, para quem trabalha em empresas e outras atividades - e estabelece as categorias de mestrado e de doutorado, sem que a primeira seja obrigatoriamente um requisito para a segunda. O marco legal ficou conhecido como Parecer Sucupira, alusão
a seu relator, o professor emérito da UFRJ, Newton Sucupira. Hoje com 85 anos de idade, Sucupira esteve presente num debate realizado no dia 2 de dezembro na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro, que reuniu autoridades e especialistas para discutir os 40 anos da pós-graduação no Brasil. "O Parecer Sucupira deu um norte para o crescimento ordenado da pós-graduação no Brasil", explica Fátima Bayma de Oliveira, professora da FGV e organizadora do debate. Se o Parecer Sucupira criou um pavimento legal, o crescimento da pós-graduação dependeu também de outros atores e circunstâncias. Aproveitou-se, por exemplo, a semente plantada na década de 1950 pelas fundações norte-americanas Ford e Rockefeller, que inauguraram de forma regular a distribuição de bolsas de pós-graduação, no Brasil e no exterior, segundo um critério meritocrático. Nos anos 1970 houve um pesado investimento do governo na Capes, a agência federal de financiamento e avaliação da pós-graduação vinculada
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ao Ministério da Educação (MEC). "O que o Brasil fez em 40 anos nenhum outro país fez tão rapidamente. O sistema norte-americano construiu-se ao longo de 300 anos", diz Cláudio de Moura Castro, presidente da Capes entre 1979 e1982. O impulso no sistema, diz ele, foi alimentado pelo interesse do governo militar em desenvolver tecnologia e pela disponibilidade de uma geração de pesquisadores que via dificuldades em construir carreira acadêmica nas universidades fechadas em cátedras. "Os militares almejavam o desenvolvimento tecnológico e sabiam que só se alcança a tecnologia com investimento em ciência. Apostaram num sistema meritocrático no qual os melhores pesquisadores brasileiros têm a chance de estudar nos melhores centros internacionais", afirma. "O curioso é que o Ministério da Educação teve participação secundária no processo. Os recursos vinham diretamente do Ministério do Planejamento e da então recém-criada Financiadora de Estudos e Projetos, a Finep", diz
Moura Castro. Um nome é bastante lembrado nessa caminhada: o de José Pelúcio Ferreira, assessor do ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso, que nos anos 1970 presidiu por oito anos a Finep. Ferreira transformou o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) numa ferramenta financeira a serviço da pesquisa. Na década de 1970 o FNDCT desembolsou cerca de US$ 1,2 bilhão, sendo cerca de 70% desse valor destinado à pesquisa nas universidades e institutos e à construção do parque de pós-graduação. Poder para crescer - A comunidade acadêmica compreendeu a importância do investimento público e, embora se opusesse ao governo militar, apropriou-se da iniciativa. O grande exemplo foi a adesão dos pesquisadores ao sistema de avaliação dos cursos de pósgraduação criado em 1976. Por meio dela, a Capes mudou de perfil e se converteu também numa agência de avaliação. Além de analisar a proposta de
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criação de novos cursos, passou a examinar os já existentes, conferindo-lhes notas, impondo metas e quantificando o desempenho de seus docentes. Os avaliadores são professores recrutados em outras instituições. "Se a comunidade acadêmica não aderisse à idéia, não conseguiríamos fazer a avaliação nesses moldes", diz Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da USP e atual diretor de avaliação da Capes. Atribui-se a esse sistema uma das chaves do aperfeiçoamento crescente do sistema de pós-graduação. Até meados dos anos 1990 as notas eram concedidas numa escala de cinco degraus, sendo os cursos nota A os melhores e os D e E passíveis de descredenciamento. Nos últimos anos passou-se a obedecer a uma escala de 7 degraus, sendo as notas 5, 6 e 7 o desdobramento da antiga nota A. Assim foi possível enxergar as nuanças dos melhores cursos e incentivá-los a melhorar cada vez mais. Numa estratégia conhecida como "podar para crescer", os avaliadores da Capes chegam a sugerir que o programa avaliado PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 25
desligue docentes com baixa produtividade. O comprometimento da comunidade acadêmica explica por que o sistema aperfeiçoouse, apesar dos solavancos da economia, da saída dos militares e do advento da democracia. Em 1990, o então presidente Fernando Collor anunciou a extinção da Capes, como parte de seu projeto de reforma administrativa que extinguiu empregos públicos e autarquias. Uma mobilização instantânea da comunidade acadêmica junto ao Congresso Nacional, liderada entre outros pelos professores Ana Lúcia Gazzola, hoje reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Jorge Guimarães, o atual presidente da Capes, ressuscitou a agência. O debate sobre os 40 anos da pós-graduação promovido pela FGV discutiu os desafios do sistema e pós-graduação para os próximos anos. Houve um consenso de que só a avaliação rigorosa não será suficiente para garantir o aumento de desempenho no mesmo ritmo dos últimos anos. Será preciso investir dinheiro novo. O professor Newton Sucupira criticou a falta de recursos nas universidades, o que as impede de implantar cursos de mestrado e doutorado em novas áreas. Também foi criticada a excessiva concentração do sistema no Sul e no Sudeste à do país. Cerca de 90% dos estu' dantes de doutorado estão nes^ tas regiões. E, entre as 163 uni- ^fl versidades brasileiras, não mais U do que uma dezena responde pela quase totalidade da produção científica. Outra questão, levantada no debate por Paulo Alcântara Gomes, reitor da Universidade Castelo Branco, é a tímida integração entre universidades e empresas. "O modelo de desenvolvimento econômico do país privilegia a ação dentro da universidade. Ainda não existem mecanismos de absorção dessas pessoas pelo setor produtivo", afirmou. Na década de 1990 os programas iniciaram uma aproximação com o se26 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
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tor produtivo, por meio da criação dos mestrados profissionais, voltados para aperfeiçoamento de alunos que não seguem carreira acadêmica, mas trabalham em empresas privadas e públicas. Hoje já existem 155 desses cursos. té o advento desses cursos, o aperfeiçoamento de profissionais das empresas era feito apenas por meio de cursos de pós-graduação lato sensu e MBAs, que não são avaliados pela Capes tampouco têm o rigor dos mestrados profissionais", diz Fátima Bayma, da FGV. Tais iniciativas, contudo, ainda estão longe de dar uma resposta consistente ao desafio de colocar recursos humanos dentro das empresas a serviço do aprimoramento da inovação. Hoje três em cada quatro doutores brasileiros trabalham em instituições de ensino superior. A meta, agora, é ampliar ainda mais o sistema. Apesar do desempenho cres-
cente, o Brasil formou 4,6 doutores por 100 mil habitantes em 2003. O índice da Coréia do Sul, um dos países que mais investem em inovação, foi de 14 doutores por 100 mil habitantes, o mesmo número obtido pelos Estados Unidos. Os planos da Capes são ambiciosos: pretende formar 16 mil doutores e 45 mil mestres em 2010, quase o dobro do contingente de formados em 2003. "Há quem diga que não há mercado para tanta gente, mas não conheço nenhum doutor com formação de qualidade que esteja desempregado", diz Jorge Guimarães, o presidente da Capes. "Tampouco é verdade que eles sejam cooptados por países desenvolvidos. Cerca de 95% dos bolsistas no exterior voltam." Para atingir o objetivo, a Capes sairá em busca de ajuda de empresas. "Já financiamos 60% dos bolsistas em pósgraduação e nossa capacidade está chegando ao limite. Afinal, o número de alunos de mestrado cresce 11% ao ano e o de doutorado, 8%", diz Guimarães. "Para o sistema crescer, faremos parcerias com grandes empresas", afirma. O Plano Nacional de Pós-Graduação para o período 2005-2010 prevê um reforço na concessão de bolsas nas áreas vinculadas às necessidades da indústria brasileira. Haverá mais investimento em cursos nas áreas de biotecnologia, semicondutores, softwares, nanotecnologia, fármacos, entre outros, considerados estratégicos na política industrial e de desenvolvimento tecnológico do governo federal. Isso sem alterar o arcabouço inaugurado pelo Parecer Sucupira. "Queremos dobrar o número de doutores até 2010, mas o mestrado não perderá importância como acontece na Europa", diz Guimarães. "O Brasil só perde para os Estados Unidos em experiência com cursos de mestrado e continuará apostando nesse modelo. Ele funciona bem e é alimentado pela iniciação científica, que seleciona na graduação bons candidatos para carreira acadêmica", afirma o presidente da Capes. •
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA SAÚDE PUBLICA
Padrões éticos sob suspeita Conselho Nacional de Saúde suspende pesquisa sobre malária no Amapá
A
pesquisa Heterogeneidade de vetores de malária no Amapá foi interrompida por decisão do Conselho Nacional de Saúde (CNS) depois que uma série de denúncias lançou suspeita sobre os procedimentos éticos do projeto. Conselheiros e representantes do CNS decidiram verificar in loco a acusação da promotoria do município de Santana de que pesquisadores estariam utilizando como cobaias humanas cerca de 40 moradores do município de São Raimundo do Pirativa em troca de um pagamento diário de R$ 12. A utilização de "iscas humanas" em pesquisa e o pagamento pelo serviço ferem a Resolução 196/96 do CNS que estabelece normas para investigações que envolvem seres humanos. As suspeitas surpreenderam: a pesquisa é coordenada pela ONG norteamericana Institutional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, e envolve pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP); do Instituto Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); e Institutos de Estudos e Pesquisas do Amapá. Além disso, o projeto havia sido aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Fiocruz e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do CNS. "Quando a pesquisa foi aprovada em 2001, não mencionava o pagamento a colaboradores nem a sua utilização como isca humana", diz Gisele Saddi Tanus, que
Projeto analisava os vários tipos de mosquitos transmissores de malária
representa o segmento de usuários no conselho. O projeto, que tem como objetivo analisar os vários tipos de transmissores de malária na região, deveria estar concluído em março de 2006, diz José Maria Soares Barata, da Faculdade de Saúde Pública da USP, consultor do projeto. Os resultados vão subsidiar medidas de prevenção. O protocolo da pesquisa prevê que os mosquitos sejam capturados vivos, marcados e depois liberados para que se possa avaliar o seu tempo de vida. "Temos coletores em três comunidades. Além de São Raimundo, também em São João e Santo Antônio", conta Mércia Arruda, pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães. Esses coletores todos adultos, alfabetizados e com mais de 18 anos - foram treinados para capturar o mosquito com o auxílio de um tubo de vidro. "Eles sabiam que o mosquito tinha que ser capturado antes de picar. Não aceitamos insetos com sangue." Todos assinaram termos de consentimento e, ela garante, sabiam do risco de exposição. Recebiam, na ver-
dade, R$ 20,00 à guisa de auxílio alimentação e transporte. A Resolução 196 reconhece que toda pesquisa com humanos envolve riscos. Não obstante é admitida quando permitir entender, prevenir ou aliviar problema que afete o bem-estar dos sujeitos ou da comunidade e quando os benefícios forem maiores que os prejuízos. "Em três anos, apenas cinco de nossos voluntários pegaram malária, ou seja, 8% do total de casos registrados na região", diz Alan Kardec Galardo, responsável pela pesquisa no Amapá. As denúncias, no entanto, dão conta de que, em 2003, 20 coletores foram convidados a alimentar com seu próprio sangue cerca de cem mosquitos para a marcação e a recaptura, o que não estava previsto no projeto. Robert Zimmerman, da Universidade da Flórida, um dos coordenadores do projeto, contou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que os coletores foram expostos às picadas de mosquitos por um breve período de tempo, com a intenção de avaliar a sobrevida dos insetos. "Percebemos que essa não era uma boa idéia", afirmou. Consta que nenhum dos 20 voluntários submetidos à picada teria contraído a malária. Zimmerman afirmou que não vê problemas em utilizar iscas humanas, que está surpreso e que as queixas são infundadas. "Trabalho com malária desde 1986", argumentou. Os pesquisadores brasileiros sentiram-se logrados. "O protocolo da pesquisa não previa isso." Cabe agora ao CNS e à Comissão de Direitos Humanos do Senado apurar a verdade dos fatos. • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 27
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA POLÍTICAS PUBLICAS
Pela via láctea Orientação de agentes da saúde triplica índice de amamentação exclusiva de bebês
pediatra Sônia Bechara Coutinho amamentou seus três filhos por pouco tempo. Foi contratada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1978, logo após o nascimento de Renata, a mais velha, e não teve direito à licença-maternidade. Quando nasceram os outros dois, também não conseguiu alimentálos exclusivamente no peito por mais de duas semanas, por causa do trabalho no hospital e na universidade. Mas a vivência abreviada desse gesto, símbolo da maternidade perpetuado nas telas renascentistas de Madonnas com seus bambini, não reduziu sua motivação em investigar os benefícios do aleitamento materno para os recém-nascidos. Também não abrandou a busca de formas de aumentar a proporção bastante baixa - apenas 14% - de brasileiras que oferecem a seus filhos apenas o leite materno durante os primeiros 6 meses de vida, como orienta a Organização Mundial da Saúde (OMS). Após quase três décadas de procura, Sônia chegou a uma fórmula simples e barata de estimular o aleitamento: a orientação de agentes comunitários da saúde em visitas domiciliares às mães de recém-nascidos. O modelo é semelhante ao adotado pelo programa de combate à desnutrição e à mortalidade infantil da Pastoral da Criança, organização social ligada à Igreja Católica. O programa da UFPE foi implantado ex28 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
perimentalmente durante dois anos em quatro municípios (Palmares, Joaquim Nabuco, Catende e Água Preta) da Zona da Mata, no interior de Pernambuco, uma das mais pobres regiões do país. Ali, de cada grupo de mil crianças, 77 morrem antes de completar 5 anos de vida. O programa revelou-se um sucesso: elevou de 13% para 45% a proporção de mulheres que alimentam os filhos exclusivamente no peito até o sexto mês de vida, segundo artigo publicado recentemente na revista Lancet. A divulgação desses resultados representa mais que o reconhecimento internacional ao programa: é a consagração do modelo de combate à desnutrição infantil que a Pastoral da Criança desenvolve no país há quase 20 anos. Nos 3.921 municípios brasileiros em que atua, em média, 76% das mães amamentam seus filhos exclusivamente no peito até o quarto mês de vida, índice muito superior à média do país. "A principal diferença é que na Pastoral o trabalho é feito por voluntários", diz Nelson Arns Neumann, coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança e filho de sua fundadora, a médica sanitarista Zilda Arns Neumann. Os dados da Pastoral e os da equipe da UFPE comprovam ainda que salvar a vida de recém-nascidos não exige orçamento polpudo: o essencial é divulgar a importância do aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida do bebê. Sônia treinou os profissionais da saúde das três maternidades para darem as primeiras orientações sobre aleita-
mento materno logo após o parto. Como as mães permanecem apenas de dois a três dias internadas, Sônia preparou também cinco moradoras da região para atuarem como agentes comunitárias da saúde e visitar periodicamente as 175 mulheres que haviam sido selecionadas para integrar o estudo. Nas dez visitas feitas a cada uma das mães as agentes apresentavam noções de aleitamento que constam de uma cartilha de 40 páginas desenvolvida pela equipe da UFPE. Seis meses mais tarde, depois de quase 2 mil visitas, 45% das mães continuavam a alimentar seus filhos apenas com leite materno. No grupo de controle, formado por 175 mulheres da região que haviam tido bebê no mesmo período, mas não receberam as visitas educativas, esse índice foi de apenas 13%. "Sem o apoio de Salvina, a agente comunitária da saúde que me visitava, talvez eu não tivesse tido paciência para amamentar minha filha por um ano e nove meses", diz a vendedora Girlaine Patrícia Félix Lins, que participou do estudo em 2001 quando nasceu sua filha, Ranyele. Concluído o trabalho em Palmares, a equipe da UFPE obteve um financiamento de cerca de R$ 100 mil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do programa Criança Esperança, da Rede Globo, para treinar agentes comunitários de dois dos seis distritos da saúde de Recife. De lá pra cá, 692 agentes da saúde já receberam habilitação para orientar o aleitamento materno. Um levantamento preliminar feito
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Fonte de proteção: leite materno auxilia o amadurecimento do sistema de defesa
com 200 famílias impressiona: a taxa de aleitamento exclusivo até o sexto mês de vida alcançou 32% - índice quatro vezes maior que o observado anteriormente (8%). "Essa é uma forma barata de salvar vidas", afirma Sônia Coutinho, da UFPE. A capacitação de cada agente sai em média por R$ 150 e poderia ser facilmente expandida para outras cidades, valendo-se da rede de 204 mil agentes comunitários do Programa de Saúde da Família, do Ministério da Saúde, espalhados por 94% dos municípios brasileiros. Em um estudo publicado em 2003 na Lancet, Gareth Jones, do Unicef, estima que haveria uma redução de 13% na mortalidade infantil no mundo se nove mães de cada grupo de dez dessem a seus filhos apenas leite materno até o quinto mês de vida. Em números absolutos, significa evitar anualmente a morte de 1,3 milhão de crianças menores de 5 anos por doenças infecciosas como diarréias e pneumonias. Embora se conheçam os benefícios do aleitamento materno exclusivo - tanto para a criança, que desenvolve melhor as defesas do organismo e corre menos risco de se tornar obesa, como para a mãe, que apresenta menor probabilidade de desenvolver câncer de mama -, falta levar esse conhecimento às comunidades e às famílias pobres, segundo Nelson Arns Neumann, da Pastoral da Criança. Além disso, é preciso combater crenças arraigadas na população, como a de que o leite materno é fraco ou que os chás ajudam a limpar o intestino do bebê. Na realidade, o uso PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 29
de água contaminada na preparação de chás e sucos é uma das principais causas de infecções em recém-nascidos. Três levantamentos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a situação no país está aquém da ideal: 60% das mães amamentam durante o primeiro mês de vida, mas só 14% delas oferecem aos filhos exclusivamente leite materno até o sexto mês. Por trás desses índices há mais do que desinformação. Na primeira metade do século passado, as campanhas de publicidade da indústria de produtos lácteos enalteciam as facilidades proporcionadas pelo leite em pó, como a participação mais ativa dos maridos na amamentação e a possibilidade de as mulheres deixarem a alimentação dos filhos aos cuidados das babás. Até a década de 1970 os próprios pediatras não achavam, e ainda hoje muitos não acham, necessário o aleitamento materno exclusivo durante o primeiro semestre de vida. Muitas vezes influenciados por campanhas da indústria alimentícia, recomendavam às mulheres complementar a dieta das crianças com alguns tipos de leite em pó antes mesmo dos 6 meses, medida hoje vista como condenável. A preocupação com o aumento da mortalidade infantil entre os recémnascidos levou a OMS a elaborar em 1981 o Código Internacional de Marketing dos Substitutos do Leite Materno e o Brasil a criar a Norma Brasileira para a Comercialização de Alimentos para Lactentes, em 1988. O objetivo é inibir propagandas consideradas antiéticas, como a distribuição de amostras grátis a médicos e nutricionistas, além da concessão de estímulos materiais ou financeiros aos profissionais da saúde. Mas nem sempre conseguem. Em um levantamento com 90 profissionais da saúde de 30 cidades brasileiras, Marina Ferreira Rea e Tereza Setsuko Toma, do Instituto de Saúde de São Paulo, constataram que esse comportamento antiético ainda prevalecia. Outro fator ajuda a compreender a falta de estímulo ao aleitamento. "A primeira recomendação internacional de amamentação exclusiva baseada em es30 ■ JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
tudos científicos, a Declaração Innocenti, surgiu em 1990", explica Marina. Um dos trabalhos que embasaram essa recomendação foi desenvolvido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, pelo- epidemiologista César Victora, da Universidade Federal de Pelotas. Coordenador do maior e mais longo estudo de acompanhamento de uma população feito nos países em desenvolvimento - desde 1982 sua equipe avalia a saúde de 6 mil pessoas -, Victora identificou evidências de que o aleitamento materno exclusivo protege os bebês. Crianças que recebiam outros tipos de leite apresentavam um risco quatro vezes maior de morrer em conseqüência de diarréia e 1,6 vez maior de morte por pneumonia, em comparação com as alimentadas apenas no peito, segundo os resultados publicados em 1987 na Lancet. mecanismo pelo qual o leite materno previne a ocorrência de diarréias foi investigado nos últimos anos na ^m Universidade de São Paulo (USP) pelas equipes da pediatra Magda Carneiro-Sampaio e do microbiologista Luiz Rachid Trabulsi, morto em maio de 2005. Tanto o leite produzido nos primeiros dias após o parto - o colostro quanto o leite maduro são ricos em imunoglobulina A, anticorpo que impede a bactéria Escherichia coli, uma das principais causadoras da diarréia, de aderir às paredes do intestino e ali se proliferar. A partir de uma proteína usada pela E. coli para aderir às células do intestino - a intimina -, os pesquisadores desenvolveram uma vacina antidiarréica oral que se encontra em fase inicial de testes em humanos. Em colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina e da USP, Marly Vannuchi, Carlos Augusto Monteiro e Marina Rea compararam o número de mulheres que alimentavam seus filhos exclusivamente no peito antes e depois da implantação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança em três maternidades de Londrina, no Paraná. O título de Hospital Amigo da Criança é concedido às maternidades que seguem os dez passos pró-aleitamento materno.
Durante a internação no hospital, a proporção de mães que alimentavam os bebês exclusivamente no peito subiu de 2% em 1994, antes da implantação do programa, para 42% em 1998. Pelo menos metade das mães deu a suas crianças apenas leite materno durante 45 dias em 1998, enquanto essa mesma proporção de mulheres amamentava por apenas 12 dias quatro anos antes. Em Palmares, Neusa Marques, da UFPE, havia observado resultados ainda mais insatisfatórios antes do início do programa de visitas às mães de recém-nascidos. Das 364 mulheres entrevistadas, nenhuma havia dado exclusivamente leite materno a seu bebê depois de deixar o hospital. Divulgado em 2001 na Pediatrics, esse trabalho mostra ainda que, na primeira semana em casa, 80% das mulheres ofereciam água ou chá aos recém-nascidos e 56% permitiam o uso de chupeta. "O treinamento oferecido aos profissionais da maternidade é importante, mas não basta", comenta Sônia Coutinho. "Para manter o aleitamento exclusivo por mais tempo, é preciso investir no apoio domiciliar." E esse apoio não deve se restringir à orientação de como segurar o bebê ou quando amamentá-lo. "Também é preciso ter disposição para ouvir as dúvidas e os medos das mães", afirma a psicanalista Regina Orth de Aragão, presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê. Depois do nascimento vêm as dúvidas. "Muitas mães têm medo de não conseguir amamentar", diz Regina. "Se não conseguem, podem sentir culpa ou achar que não são boas mães." "A amamentação favorece um bom desenvolvimento psíquico da criança", reforça o pediatra e psiquiatra Wagner Ranna, professor do Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto Sedes Sapientae. Açúcar em dobro - O certo é que o leite materno é o melhor alimento para o recém-nascido do ponto de vista bioquímico e fisiológico. O leite humano contém vitaminas, minerais e proteínas em níveis adequados para suprir totalmente as necessidades nutricionais da criança até o sexto mês de vida. Em sua composição há quase o dobro de açúcares e metade das proteínas do leite de vaca, além de uma enzima chamada lipase, que ajuda a digerir as gorduras. São os anticorpos que o bebê consome
Efeito duradouro: aleitamento exclusivo favorece desenvolvimento físico e intelectual
por meio do leite materno que lhe dão proteção imunológica, enquanto seu sistema de defesa não amadurece. Em parceria com a equipe de Ana Maria Segall Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marina Rea analisou a quantidade de calorias ingeridas por 118 crianças com menos de 1 ano sob quatro regimes de alimentação: o primeiro grupo recebeu só leite materno; o segundo tomava leite materno, água e chás; o terceiro bebia leite materno, outros tipos de
leite, água, chás, sucos e alimentos sólidos; e o quarto consumia apenas outros tipos de leite, água, chás, sucos e outros alimentos. Constataram que apenas os bebês alimentados exclusivamente com leite materno recebiam a quantidade de calorias preconizada pela OMS para os países em desenvolvimento. Os demais ingeriam de 30% a 50% mais calorias que o indicado, aumentando o risco de desenvolver obesidade e doenças crônico-degenerativas ao longo da vida.
Esse perfil de consumo de calorias é provavelmente o responsável pela diferença de crescimento entre as crianças que recebem apenas leite materno até o sexto mês de idade e as alimentadas com leite em pó desde o nascimento. Victora constatou que entre as crianças nascidas em Pelotas, em 1993, as que tomaram apenas leite materno cresceram e ganharam peso mais rapidamente até por volta do terceiro mês. A partir daí, passam a se desenvolver com menor velocidade, ainda que saudáveis. Como esse padrão de crescimento é diferente do daquelas crianças que tomam mamadeira, até bem pouco tempo atrás se acreditava que o leite materno fosse insuficiente para o desenvolvimento do recém-nascido - hoje, diferentemente, se acredita que os bebês que tomam mamadeira crescem mais rápido porque consomem mais calorias que o recomendado. Atualmente Victora trabalha na produção de uma nova curva do crescimento infantil que deve ser divulgada este ano pela OMS e se tornar um novo padrão para pediatras do mundo todo. O crescimento inicial mais lento proporcionado pelo leite materno não inviabiliza, porém, sua indicação para os recém-nascidos, até mesmo os prematuros. Não se sabe a razão, mas a composição do leite materno parece produzir efeitos benéficos sobre o desenvolvimento que duram a vida toda. Recentemente a equipe de Victora comparou o rendimento escolar de 6 mil crianças nascidas em Pelotas em 1982 - cerca de 60% delas haviam sido alimentadas com leite materno e 30% com mamadeira. Divulgados em novembro na Acta Pediatrica, os resultados mostram que quem só recebeu leite materno até os 6 meses de idade chegou aos 18 anos com quase um ano a mais de estudo do que os outros adolescentes, independentemente do nível socioeconômico da família ou do grau de escolaridade dos pais. • PESQUISA FAPESP119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 31
O CIÊNCIA
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Outras diferenças entre Dos mares inexplorados Deve ser nova pelo menos metade das 40 mil espécies de animais coletadas nas duas primeiras expedições do Censo de Vida Marinha, levantamento que reúne 1.700 especialistas de 73 países. Das profundezas oceânicas vieram seres como a Asbestopk esponja carnívora de cerca de 1 centímetro de diâmetro. Os pesquisadores também mapearam o deslocamento, o percurso e a distribuição de 21 espécies, como tubarões, peixes, tartarugas e leões-marinhos: um circuito integrado instalado nos animais emitia um sinal captado por satélite toda vez que subiam à superfície. Mas ainda há muito por fazer porque o número de espécies estimadas é seis vezes maior que o já coletado. E do assoalho marinho, que corresponde a uma área de 300 milhões de quilômetros quadrados, até agora só foi explorada uma área equivalente a poucos campos de futebol. •
■ Diante do espelho
■ Os riscos da bravura
Para os homens se sentirem bem com seu corpo, uma rápida olhada no espelho já causa bem-estar. Já as mulheres ficam felizes só com evidências reais: querem saber o quanto perderam de peso. Antes deste estudo da Universidade McMaster, Canadá, pensava-se que a imagem corporal das mulheres melhoraria mais que a dos homens à medida que avançasse um programa intensivo de treinamento físico, durante 12 semanas. •
As mulheres resistem com mais firmeza e tendem a amenizar a gravidade das doenças cardíacas em comparação com homens que apresentam os mesmos problemas, concluíram especialistas da Universidade de Michigan, Estados Unidos. Mas o que soa como bravura pode trazer problemas: se as mulheres não perceberem seus problemas cardíacos como graves, podem não ir atrás de tratamento. •
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Marrus sp., um hidrozoário Crossota millsaeare, uma medusa do Canadá Asbestopl, uma esponja carnívora
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Um peixe gelatinoso, Aphyonus gelatinosus
homens e mulheres Sono e amizades As mulheres mais velhas que dormem bem e mantêm relações sociais mais intensas e gratificantes apresentam também taxas mais baixas de uma proteína, a interleucina-6 (IL-6). Esse estudo, da Universidade de Wisconsin-Madison, Estados Unidos, verificou também que os níveis de IL-6 tendem a crescer com a idade e podem estar ligados a doenças como osteoporose, artrite reumatóide ou mal de Alzheimer. •
■ A sedução da arte
Cristais de buracos
Artistas e poetas têm duas vezes mais parceiros sexuais que as pessoas não criativas, concluiu um estudo da Universidade de Newcastle, Reino Unido. Pode ser resultado do fato de as pessoas criativas serem consideradas atraentes ou de um estilo de vida boêmio que lhes permite se deixar levar pelos impulsos sexuais. A evolução sai ganhando: a atração exercida sobre o sexo oposto permite a continuidade da espécie. •
Por definição, cristal é um conjunto regular de partículas como os átomos. Mas um grupo de físicos alemães mostrou como podem se formar cristais feitos inteiramente de buracos imersos em um mar de partículas {Physical Review Letters de 2 de dezembro). Um buraco, mesmo que seja a ausência de um elétron, pode agir como uma partícula por ser dotado de carga elétrica positiva e apresentar uma massa aparente, como os elétrons, que lhe
permite mover-se em um material semicondutor. Os buracos se formam quando um elétron salta de uma faixa energética para outra e duram microssegundos até os elétrons voltarem a suas posições originais. Para os cristais se formarem, o material deve estar muito frio e os buracos serem numerosos e pesados. Não se trata só de uma estranha curiosidade: os cristais podem se formar, por exemplo, no núcleo de estrelas de nêutrons. •
Eaugaptilis hyperboreus, um copépodo de águas profundas
0 pepino-do-mar Kolqa hyalina, abundante no fundo do mar
Espécie nova de ctenóforo do oceano Ártico
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Arquitetos com asas
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■ A memória éazul Uma fruta ainda pouco conhecida no Brasil, o mirtilo ou blueberry, chama a atenção por ser azul. De gosto agridoce, pode ser consumida in natura, em doces ou em salgados. Outra razão para ser admirada: faz bem para a memória. Maria Rosana Ramirez, em um estudo realizado com ratos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a participação de Ivan Izquierdo, constatou que essa fruta beneficia a memória de curto prazo, relacionada à capacidade de evitar situações de perigo, de acordo com o estudo publicado na Pharmacological Research. O mirtilo pode, assim, ajudar a prevenir a perda de memória que se verifica em doenças neurodenegerativas como o mal de Alzheimer. A explicação pode ser a elevada concentração de antocianinas, compostos do grupo dos flavanóides que já haviam sido associados a ganhos de visão e à proteção antitumoral. Há antocianinas também em amoras, morangos e uvas, além do feijão. •
Um beija-flor: ninho..
■ Pimenta contra esquistossomose A cubebina, substância extraída da semente seca da pimen-
Há ninhos construídos pelo macho, pela fêmea ou pelo casal; o sabiá os constrói no alto das árvores, a arara-azul-de-lear em barrancos, o beija-flor em lugares sombreados, as corujas em buracos de árvores e o quero-quero e o talhamar, diretamente no solo. Berços da vida - Ninhos de aves brasileiras, de Dante Buzzetti e Silvestre Silva, mostra as sutis variações dos hábitos reprodutivos entre 142 espécies de 48 famílias de aves de todas as regiões brasileiras. Conhecer as peculiaridades do ambiente em que as aves fazem os ninhos, que material empregam para os construir, como cuidam dos ovos e onde encontram alimento para o filhote pode ajudar a embasar medidas de conservação, em especial das espécies mais raras. •
ta asiática (Piper cubeba), pode ser a base para o desenvolvimento de um medicamento contra a esquistossomose, doença conhecida como bar-
Mirtilo: alta concentração de antocianinas
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em folhas de palmito
riga-d'água, que afeta 200 milhões de pessoas por ano, das quais cerca de 10 milhões no Brasil. Com a administração via injetável de um preparado de cubebina, a equipe do farmacêutico Márcio Luiz Andrade e Silva, da Universidade de Franca (Unifran), instituição privada do interior paulista, eliminou vermes do gênero Schistosoma, que causa a doença, em animais infectados. "Essa substância não apresenta toxicidade e pode ser uma alternativa ao praziquantel (principal droga hoje usada contra o parasita)", afirma Silva, que já entrou com o pedido de patente de sua descoberta no Brasil. Os estudos,
que contam com a participação de pesquisadores do campus de Riberão Preto da Universidade de São Paulo (USP), devem prosseguir com mais testes em animais e o início dos experimentos em seres humanos. A cubebina já havia se mostrado eficaz no combate à doença de Chagas em trabalhos anteriores de Silva. •
■ Visitas freqüentes contra a tuberculose Médicos paulistas conseguiram reduzir o abandono do tratamento, um dos maiores obstáculos para a eliminação da tuberculose. Sob a orientação de Nelson Gouveia, da Faculdade de Medicina da USP, Fernando Bergel, da Se-
cretaria Municipal de Ubatuba, implantou em Ubatuba, no interior paulista, uma alternativa ao modelo de tratamento supervisionado de curta duração, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que exige re-
forços na equipe de atendimento médico. Com uma equipe pequena, Bergel criou a estratégia de retornos freqüentes, descrita na edição de dezembro da Revista de Saúde Pública. Essa estratégia consiste em identificar os pa-
cientes com maior probabilidade de abandonar o tratamento e em oferecer-lhes retornos mais freqüentes ao serviço de saúde. Desse modo, há uma redução no tempo entre as consultas médicas: no primeiro mês de tratamento o paciente deve comparecer semanalmente à consulta médica, no segundo, quinzenalmente e do terceiro ao sexto mês, mensalmente. Em um estudo feito com 224 pacientes com tuberculose, o abandono caiu de 12,3% nos dois primeiros anos do estudo para 4,9% nos dois últimos anos, quando a estratégia de retornos freqüentes foi implementada. Aumentou também a taxa de cura: de 87,7% para 95,1%. •
Testemunhos dos gêiseres Ganharam valor científico os cones que ocupam as pastagens de uma fazenda do município paulista de Anhembi e chamavam a atenção só por parecerem cupinzeiros de pedra. Geólogos da Universidade de São Paulo (USP) demonstraram que são uma raridade, ainda que abundantes: são pelo menos 4.500, com até 2 metros de altura, espalhados em 1,5 quilômetro quadrado. Representam uma época em que eram comuns jatos de vapor superquente - os gêiseres -, há 250 milhões de anos, quando a região central do estado era uma área plana, como uma longa praia, à qual chegavam as águas do oceano e dos rios do interior do continente. "Só mesmo uma atividade geotérmica pode justificar uma
Os ex-cupinzeiros de pedra: resquícios de antiga praia
quantidade tão elevada de cones", comenta Jorge Yamamoto, do Instituto de Geociências (IGc) da USP e primeiro autor do artigo publicado na Nature com essas conclusões. Desse estudo participam Thomas Fairchild, Paulo Boggiani e
Sérgio Matos, do IGc, Tarcísio Montanheiro, do Instituto Geológico, Carlos Araújo, da Petrobras, Pedro Kiyohara, do Instituto de Física da USP, e Paulo Soares, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Constituídos quase inteiramente
por dióxido de silício, que forma o mineral quartzo, abundante nas areias de praia, os cones apresentam uma superfície lisa, uma parede externa espessa e um interior oco. Provavelmente resultam da atividade de gêiseres. A água teria se infiltrado nas fraturas das rochas e, encontrando uma fonte de calor - provavelmente uma rocha vulcânica se resfriando -, se aqueceria até virar vapor. As rochas teriam resistido até um certo limite, a partir do qual expulsaria o vapor. E então o vapor sairia das cavidades em jatos de até 30 metros de altura, carregando sílica das próprias rochas. Ao resfriar, o vapor voltaria a ser líquido, depositando a sílica, que rapidamente assumiria a forma de cristais organizados uns sobre os outros. •
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ft CIÊNCIA ETOLOGIA
O mundo de Sofia Vira-lata diferencia frases com dois termos e usa teclas para se comunicar com humanos MARCOS PIVETTA
ofia não é uma cachorra superdotada. Sem raça definida, de pequeno porte, com cerca de 5 quilos, passaria despercebida numa matilha de vira-latas. Mas desenvolveu, ao longo de 4 anos de vida e centenas de sessões de treinamento, uma ou duas habilidades que a tornam especial para um grupo de pesquisadores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) especializado em comportamento animal. Sofia entende e diferencia com razoável grau de acerto frases compostas por dois termos distintos, como "busca bola" e "aponta palito", e se comunica com seres humanos por meio de um teclado especial, no qual sinais arbitrários representam objetos ou ações almejados pelo animal. Impresso numa das oito teclas desse painel eletrônico, um conjunto de listas verticais pretas simboliza, por exemplo, o desejo de dar um passeio em companhia do dono. Em vez de apontar o portão da rua, como faz a maioria dos cachorros, a cadela, quando quer sair, aciona no painel eletrônico a casa equivalente a passeio e começa a fitar o seu instrutor, como que a dizer "Ei, quero dar uma voltinha". O gesto é feito apenas quando há um ser humano por perto, tendo, segundo os pesquisadores, o caráter de sinal comunicativo, não de simples resposta condicionada. Novos estudos, como os trabalhos com Sofia, sugerem que o processo cognitivo é mais refinado nos amigos de quatro patas do que se pensava. Os cães se situariam na tradição dos chamados animais "lingüísticos", como os chimpanzés, os bonobos, os golfinhos e os papagaios, capazes de, em contato com o homem, adquirir sistemas de comunicação por signos arbitrários. Eles não chegariam a ser tão "inteligentes" como os macacos, mas os superariam em certas habilidades co36 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
municativas, como a interpretação de gestos e olhares humanos. Quando uma cadela de 4 anos usa um teclado para mandar uma mensagem a seu treinador, ou quando responde apropriadamente a comandos múltiplos, esse ato denota uma capacidade de abstração e associação de idéias semelhante ao processo de aprendizagem de palavras por crianças. "O potencial dos cães de compreender a linguagem humana é freqüentemente subestimado ou tratado de forma folclórica", afirma César Ades, especialista em comportamento animal do IP/USP, que coordena as pesquisas com a vira-lata. "Os cachorros não são mais inteligentes que os lobos (Canis lúpus), do quais descendem. Eles apenas se comunicam melhor com a gente." A escolha de Sofia para um estudo de longo prazo sobre a cognição canina não foi aleatória. "Selecionamos um vira-lata justamente para fugir das raças que têm fama de ser mais inteligentes", explica o zootecnista Alexandre Pongracz Rossi, aluno de mestrado de Ades. "Não queríamos trabalhar com um cão prodígio." A cadela foi adquirida em outubro de 2001 com a finalidade específica de participar de um programa de pesquisa que visava replicar experimentos feitos com outros animais "lingüísticos". Ela foi separada de sua mãe e de seus seis irmãos quando tinha 50 dias de vida e passou a viver como animal de estimação na casa de Rossi. Seu treinamento foi feito nos laboratórios do IP/USP. Foi elaborado um roteiro complexo de condicionamento, com registro preciso e quantitativo de todas as etapas, visando avaliar dois domínios de competência comunicativa do animal: a capacidade de compreensão de sentenças de dois termos (ação/objeto e ação/lugar) e a capacidade de produção de sinais ao teclado. A primeira linha de trabalho foi toca38 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Sofia e as teclas: painel é interface para comunicar com humanos
da pelas alunas de mestrado Daniela Ramos e Léa Yuri Suenaga e a segunda, que terá continuidade com a mestranda Carine Savalli Redigolo, pelo próprio Rossi. s pesquisadores se surpreenderam com o desempenho da cachorra na maioria dos testes. Depois de devidamente treinada, Sofia respondia a um pedido verbal composto de dois termos com um grau de acerto superior ao acaso (essa capacidade se distingue da simples resposta a comandos unitários, como a ordem para sentar, geralmente usados no adestramento de cães). A primeira palavra do pedido designava o objeto que seria alvo da ação (bola, chave, palito ou garrafa) e a segunda, o comportamento esperado do animal (busca ou aponta). Combinando os dois termos havia, portanto, oito possibilidades distintas de comando. Inicialmente os pedidos eram feitos sempre na ordem objeto mais ação
{chave busca, garrafa aponta e assim por diante). Num segundo momento, a ordem dos termos foi invertida {busca chave, aponta garrafa etc.) para ver se a cachorra não respondia à combinação de sons como se fosse um comando unitário. A alteração não afetou a performance de Sofia. Também foram mudados o local dos testes, a pessoa que dava os comandos e os objetos ou ações envolvidos no experimento. Nenhuma modificação fez a cadela se portar de maneira distinta. "Acreditamos que Sofia retém as duas informações, a do objeto e a da ação, e consegue correlacioná-las", afirma Ades. "Seu comportamento não deriva de um condicionamento simples, do tipo estímulo-resposta." A cachorra ainda foi capaz de combinar as informações contidas em comandos em que um dos termos indicava uma ação e outro o local em que essa ação deveria ser executada (se à direita ou à esquerda). A exemplo da resposta a ordens verbais de dois termos, a boa performance de Sofia nos testes com o painel eletrônico também indica que o cão pode ser um animal mais "lingüístico" do que se imagina. A cachorra aprendeu a comunicar seu desejo de realizar sete ações diferentes - dar um passeio, ganhar um brinquedo, fazer xixi, ir para a casinha, pedir comida, tomar água e receber carinho - por meio do acionamento dos respectivos botões associados a tais comportamentos. O painel conta com oito teclas, sete delas foram associadas a sete atos distintos (uma casa ficou sem função). Os símbolos presentes nas casas eram arbitrários e não exibiam nenhuma ligação direta com a ação almejada pela cadela. Evitou-se assim representar carinho com o desenho de uma mão sobre um cão, tampouco o ato de brincar foi associado à ilustração de uma bola. A tecla alimento, por exemplo, continha apenas uma cruz de borracha preta e a de brinquedo, um pequeno círculo amarelo.
Rico: 200 palavras de "vocabulário"
A vira-lata, que era recompensada pelo acionamento correto de cada tecla com o atendimento de seu pedido, usou a nova interface de comunicação com desenvoltura. Em cerca de 300 ocasiões apertou com uma das patinhas o comando equivalente à ação que queria desempenhar, ato que dependia de auxílio humano, de seu treinador, para ser concretizado. Sofia olhava significativamente mais para o treinador depois de ter pressionado uma tecla do que antes, como se esperasse uma reação de sua parte. Freqüentemente também mirava algum objeto relacionado à ação desejada, como uma garrafa de água quando estava com sede ou o portão da rua quando queria passear. "Acreditamos que Sofia é capaz de aprender conceitos e evocá-los com o teclado", diz Rossi. "Ficamos surpresos quando ela acionou a tecla comida ao lhe apresentarmos pela primeira vez uma cobaia viva." Domesticação - A vira-lata ativava os botões do painel de forma espontânea - pressionava, por exemplo, a tecla comida após um passeio ou a de carinho na presença de Rossi - ou diante de um incentivo externo (o pesquisador lhe mostrava um brinquedo e o animal apertava o botão correspondente, ou havia comida e a cachorra acionava a tecla de alimento). Observações de controle mostraram que o desempenho de Sofia continuava significativo mesmo quando se mudou a posição relativa das teclas no painel. Para os pesquisadores, o comportamento da cadela não é fruto apenas do condicionamento a que foi submetida (Rossi é um renomado treinador de animais do país). Afinal, a cachorra só acionava o painel diante de uma pessoa. "É claro que as ações de Sofia refletem em parte o seu treinamento, mas em parte são esforços de comunicação com o homem", pondera Ades. "Agora queremos ver se Sofia é capaz de designar objetos ausentes, uma função típica da linguagem humana, e se o uso do teclado aumenta quanPESOUISA FAPESP119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 39
do percebe que uma pessoa está prestando atenção nela." Companheiro de caçadas, tocador de gados, guardião do lar e melhor amigo do homem, o cachorro foi o patinho feio dos estudos sobre cognição e inteligência animal durante décadas, sempre ofuscado por trabalhos feitos com golfinhos, baleias e primatas não-humanos, sobretudo os chimpanzés. Seria ele, ao contrário do que costuma pensar seu dono, burro demais por natureza ou pela domesticação humana? Com certeza não. Mas havia uma resistência central contra as pesquisas a respeito do comportamento dos cachorros que se manteve intransponível por décadas: a idéia de que não valia a pena estudar a comunicação de um bicho que perdera seu hábitat original e praticamente não existia mais em sua forma selvagem. Quer dizer, por essa linha de raciocínio, o Canis familiares era descartado como objeto nobre da etologia, o ramo da ciência que estuda o comportamento dos animais em seu ambiente natural, não porque era cão, mas porque era familiar demais ao homem. Um ser aculturado, fora de seu lugar na natureza.
Quadro de Gauguin: domesticação do cão ocorreu há pelo menos 15 mil anos
genoma do melhor amigo A ciência encontrou mais uma função para o cachorro: além de melhor amigo do homem, o Canis familiaris pode ser um ótimo modelo genético para se estudar, e quem sabe encontrar, as bases moleculares que levam à ocorrência de uma série de doenças nos seres humanos, como o câncer e outras 350 desordens presentes em mamíferos. A longo prazo, essa pode ser a maior contribuição da publicação do seqüenciamento praticamente integral (de 99%) do genoma do cão na edição de 8 de dezembro do ano passado da revista britânica Nature. O principal material genético usado no trabalho foi o de Tasha, uma boxer de 12 anos, que foi selecionada de associações de criadores e faculdades veterinárias por representar uma raça muito pura, com DNA bastante homogêneo e menos diferenças entre
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seus pares de cromossomos. Essa peculiaridade tornou mais rápida a tarefa de seqüenciar o genoma do animal. Por ser centrado no DNA de uma cachorra, o trabalho não traz informação sobre o cromossomo Y canino, presente apenas em animais do sexo masculino. Escrito por um grupo internacional de pesquisadores, liderados por Kerstin Lindblad-Toh, do Instituto Broad, dos Estados Unidos, o artigo da Nature informa que os 39 pares de cromossomos do genoma do cão contam com 2,4 bilhões de pares de bases nitrogenadas, as unidades químicas que compõem o DNA, e abrigam 19 300 genes. O homem possui 23 pares de cromossomos, cerca de 3 bilhões de pares de bases e aproximadamente 26 mil genes. O tamanho menor do DNA canino em relação ao de nossa
espécie se deve à existência de menos seqüências repetidas em seu genoma. Além do material genético de Tasha, o estudo também contém dados sobre o genoma de outras dez raças de cães e parentes selvagens do cachorro (como o lobo e a raposa), um tipo de informação molecular que será útil para estabelecer ligações entre a ativação de genes e o aparecimento de traços físicos específicos e o desenvolvimento dos problemas de saúde mais comuns nesses animais. "Centenas de anos de cuidadosos cruzamentos criaram as atuais raças que são um excelente modelo genético das doenças humanas", diz Hans Ellegren, do Centro de Biologia Evolutiva da Universidade de Uppsala, na Suécia. Com a seqüência genética do cão em mãos, os pesquisadores puderam fazer algumas comparações com ge-
esde os anos 1990 essa visão ficou para trás. O que era uma desvantagem virou hoje o grande diferencial dos trabalhos com cães. Afinal trata-se da única espécie animal, além do gato, que evoluiu ao lado do homem. Seu nicho natural é atualmente o mesmo do ser humano. Ninguém sabe ao certo quando ocorreu seu processo de domesticação, um evento que provavelmente se deu na Ásia entre 15 mil e 100 mil anos atrás (os dados são incertos e discutíveis). Essa mudança de visão sobre a inserção do Canis familiares no mundo aumentou em dez vezes a quantidade de artigos científicos sobre o comportamento da espécie nos últimos anos. Um dos trabalhos recentes que mais obtiveram repercussão, inclusive nos meios de comunicação, foi um artigo publicado em junho de 2004 na renomada revista norte-americana Sciencepor pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig.
nomas já mapeados de outras espécies de mamíferos. Num primeiro estudo com tal abordagem, descobriram que cerca de 5% do genoma humano parece estar conservado no cachorro e também no camundongo um indício de que esses trechos devem ser essenciais para os três animais. O artigo sobre o DNA de Tasha não é o primeiro esforço de seqüenciamento do genoma do cão. Em 2003, num trabalho publicado na revista norte-americana Science, outra equipe de cientistas mapeou 75% do material genético de Shadow, o poodle de Craig Venter, o cientista-empresário norte-americano que montou um programa privado de seqüenciamento do genoma humano. Ambos os genomas caninos, o de Tasha e o de Shadow, são úteis para a ciência, mas a seqüência da boxer é mais completa e refinada.
No estudo, a equipe de pesquisadores alemães descrevia as habilidades cognitivas do border collie Rico, uma raça com fama de inteligente. Alvo de extensivo treinamento, o cachorro, então com 9 anos, dominava um vasto "vocabulário": seu treinador dizia uma das 200 palavras conhecidas pelo cão e este buscava o objeto ou brinquedo designado pela voz humana. Rico também era capaz de associar uma nova palavra a um novo objeto. Essa forma de aprendizado, chamada tecnicamente de fast mapping, é comparável à maneira com que crianças de 2 ou 3 anos incorporam termos ao seu repertório. Pouca gente duvida hoje em dia que muito se pode aprender com os cachorros, não só na área da compreensão e da produção de sinais comunicativos, mas também no campo de estudos de genética comparativa {veja o quadro abaixo sobre o seqüenciamento do genoma do melhor amigo do homem). "O
maior desafio hoje é entender os limites das habilidades dos cães e como eles, com um sistema cognitivo provavelmente mais simples que o nosso, podem 'simular' comportamentos para interagir com os humanos", afirma o etólogo Adam Miklósi, da Universidade Eótvõs, na Hungria, um dos grandes estudiosos do tema. Como seu colega César Ades, da USP, Miklósi pertence à linhagem de etólogos para quem a capacidade de comunicação dos cães com o homem foi um elemento decisivo em seu processo de domesticação. Ele argumenta que os cachorros são bons em perceber sinais e pistas visuais dadas pelos humanos não porque tenham enormes habilidades mentais. Mas sim porque são mais interessados em nós. "O cão dirige seu olhar para o ser humano como nenhum lobo faz", comenta Ades. Isso talvez explique por que o cachorro, e não seu parente selvagem, tenha se tornado o melhor amigo do homem. •
A boxer Tasha: DNA do cão pode ser modelo genético para estudar doenças
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CIÊNCIA PNEUMOLOGIA
Combate a falta de ar Mensageiro químico do sistema de defesa regula reações alérgicas associadas às crises de asma
RICARDO ZORZETTO
ILUSTRAçõES LAURABEATRIZ
Só quem já acordou de madrugada com uma angustiante sensação de sufocamento ou viveu o incômodo das prolongadas crises de tosse após um pequeno esforço físico como subir de dois a três lances de escada conhece bem os transtornos que a asma impõe. Problema respiratório crônico que atinge de 150 milhões a 300 milhões de pessoas no mundo, a asma consome mais do que uma parcela importante dos recursos da saúde. Rouba a própria vida: estima-se que a cada ano 15 milhões de portadores de asma percam um ano de vida saudável. Descrita pela primeira vez em uma coleção de textos médicos egípcios de 3.500 anos, os Papiros de 42 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Ebers, a asma desafia ainda hoje os que se propõem a compreender os intricados mecanismos químicos que originam as crises súbitas de falta de ar. Esse é um quadro que começa a mudar. Descobertas recentes de pesquisadores do Brasil e do exterior estão desvendando o papel desempenhado por moléculas mensageiras do sistema de defesa no controle da produção de substâncias alérgicas que disparam as crises de asma. É cedo para saber, mas compostos que simulem ou bloqueiem a ação de algumas dessas moléculas, as interleucinas, podem gerar alternativas para o controle dessa doença inflamatória crônica que vem se tornando mais e mais freqüente nos países ocidentais. De 1980 pra cá, a ocorrência de asma cresceu 60% nos Estados Unidos, onde o problema consome US$ 6 bilhões por
ano em assistência médica e atinge 11% da população. É uma proporção semelhante à encontrada no Brasil. Calculase que 11,4% dos brasileiros tenham asma e um em cada três apresente alguns sintomas da doença, como respiração com dificuldade e com chiado. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o pneumologista Álvaro Augusto Cruz identificou o papel regulatório da interleucina-10 investigando a relação entre a ocorrência de determinados tipos de infecção e os sintomas da asma. São estudos para a avaliação de uma curiosa hipótese explorada pela alergista alemã Erika von Mutius: a hipótese da higiene. Na década de 1990 ela comparou as taxas de ocorrência de alergias e asma nas crianças da antiga Alemanha Ocidental com as das crianças da Alemanha Oriental. Sua expectativa
era que esses problemas fossem mais freqüentes no lado comunista, com cidades mais pobres, sujas e aparentemente menos saudáveis. Para sua surpresa, Erika encontrou o oposto e foi buscar a explicação para esse resultado na diferença de estilos de vida dos dois países antes da reunificação. Na Alemanha Oriental as famílias eram mais numerosas e desde cedo as crianças iam para as creches, onde se expunham mais a infecções causadas por vírus e bactérias. O contato com esse tipo de agente infeccioso geralmente aciona células do sistema de defesa que provocam uma forma de inflamação capaz de inibir o desenvolvimento de alergia, enquanto infecções causadas por vermes costumam disparar uma reação semelhante à alergia. Acreditavase que esse equilíbrio funcionasse como
uma balança de dois pratos, com as infecções que acionam respostas inflamatórias diminuindo os sinais da asma. Interleucina - Nem sempre é assim. A equipe da UFBA constatou que pessoas infectadas com o vírus HTLV1 realmente apresentavam respostas alérgicas menos intensas do que as pessoas sem esse vírus no sangue. Mas, diferentemente das expectativas, a redução nas taxas de infecções - tuberculose e sarampo - não elevou os índices de asma, constatou o grupo coordenado por Dirceu Sole, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ao analisar a atividade imunológica de portadores do Schistosoma mansoni, o verme causador da esquistossomose, o grupo da Bahia também observou que a resposta alérgica era paradoxalmente menos in-
tensa que o esperado. Uma molécula mensageira do sistema imunológico, a interleucina-10, liberada em maior quantidade nas pessoas com S. mansoni, atenua a resposta alérgica. Aparentemente essa interleucina ameniza os sinais da asma, segundo estudo publicado no Journal of Infectious Diseases. Com as equipes de Edgar de Carvalho e Maria Uma Araújo, da UFBA, e de Sérgio Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, Cruz procura justamente as proteínas do S. mansoni que estimulam a produção da interleucina10, que, espera-se, possam auxiliar no controle da asma. A essa busca somam-se avanços na compreensão do que é a própria asma. São mudanças de conceito que começam a reorientar a terapia dessa doença de modo a conduzir a uma prevenção mais eficaz das angustiantes crises de asfixia que deixam a sensação de que os pulmões estão prestes a serem esmagados. No Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, a equipe de Rafael Stelmach e Alberto Cukier comprovou que a melhor forma de prevenir as crises de asma é associar duas estratégias de tratamento usadas para combater problemas aparentemente distintos. Adotada no controle da inflamação que dispara a asma, a primeira estratégia consiste no uso de um antiinflamatório aplicado na boca por meio de um nebulizador e aspirado para os brônquios e os pulmões. A segunda é a aplicação desse medicamento no nariz com o objetivo de combater a rinite, inflamação do tecido que reveste esse órgão internamente. Durante quatro meses a equipe do InCor submeteu 59 pessoas que tinham asma e rinite havia dez anos a três formas de terapia com o antiinflamatório beclometasona. Separados em três grupos, todos os participantes receberam dois tipos de frasco. Em um deles havia um composto para aplicação nasal e no outro uma formulação para ser nebulizada na boca, a chamada via pulmonar. Um grupo recebeu o antiinflamatório por via nasal e um composto inócuo (placebo) para ser aspirado pela boca, enquanto outro grupo consumiu placebo por via nasal e o antiinflamatório por via pulmonar. Só os integrantes do terceiro grupo receberam beclometasona por via nasal e pulmonar. PubliPESQUISAFAPESP119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 43
cados em novembro passado na Chest, os resultados mostram que um mês após o início do tratamento os voluntários apresentavam menos sinais de asma e rinite, melhora que permaneceu estável nos três meses seguintes. A análise dos prejuízos que a asma e a rinite causam no dia-a-dia revelou, porém, que quem consumiu o antiinflamatório por via nasal e pulmonar teve de recorrer menos vezes ao atendimento de emergência, perdeu menos dias de trabalho e acordou menos vezes à noite em conseqüência de crises do que os integrantes dos demais grupos. ara Stelmach, asma e rinite precisam ser compreendidas como uma mesma inflamação que afeta áreas distintas do aparelho respiratório. Faz sentido. Afinal nariz, traquéia, brônquios e pulmões integram um mesmo sistema. "Deixar de combater a rinite pode prejudicar o controle efetivo da asma", diz Stelmach. Nem sempre se pensou assim. Sabese há cerca de três séculos que a sensação de asfixia típica da asma é provocada pelo estreitamento dos brônquios, os canais que levam ar aos pulmões. Mas os mecanismos químicos e biológicos que o disparam só foram identificados nos últimos 50 anos. A entrada no organismo de compostos estranhos - como proteínas de ácaros e de baratas encontradas na poeira domiciliar, componentes da fumaça do cigarro ou da poluição, ou mesmo medicamentos ativa uma complexa cadeia de reações químicas. Essas reações acionam a produção de anticorpos e liberam histaminas, substâncias que provocam a contração dos músculos que envolvem os brônquios e geram sinais de alergia como inchaço, vermelhidão e produção de muco no interior dos brônquios. Até a década de 1970 acreditava-se que esse fosse o único mecanismo por trás da asma, então vista como uma doença alérgica esporádica e, por essa razão, combatida apenas nos períodos de crise. Usavam-se medicamentos que provocam o relaxamento dos músculos ao redor dos brônquios - os broncodilatadores inalatórios, aplicados na 44 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
boca por meio de nebulizadores conhecidos como bombinhas - ou de potentes antiinflamatórios hormonais, os corticosteróides administrados por via oral ou endovenosa. Com ação em todo o organismo, esses corticosteróides não devem ser usados por longos períodos porque podem causar hipertensão, diabetes e fragilidade óssea. Nos últimos 20 anos o uso de um equipamento médico que permite observar o interior dos brônquios e coletar amostras do tecido alterou a compreensão da doença. Constatou-se que os brônquios dos portadores de asma se encontravam continuamente inflamados, e não apenas durante as reações alérgicas. Essa constatação alterou a forma de tratar a asma, hoje considerada uma doença crônica. Os broncodilatadores não foram abandonados.
Continuam sendo usados nos momentos de crise. A mudança mais importante foi a adoção de corticosteróides inalatórios, que agem principalmente nos brônquios e nos pulmões e são inativados pelo fígado quando alcançam a corrente sangüínea. "Praticamente não precisamos de novidades para tratar a asma", afirma o pneumologista Carlos Fritscher, da PUC do Rio Grande do Sul. "Os medicamentos existentes são seguros e controlam a doença em 90% dos casos." Se esses antiinflamatórios são bons assim, por que a asma continua uma das principais causas de internação no país? Na opinião de Fritscher, a resposta é clara: muitas pessoas não seguem o tratamento, que dura a vida toda, e usam os medicamentos apenas nas crises. Interessados em verificar se as pessoas com
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asma realmente seguem a prescrição dos médicos, Fritscher e José Miguel Chatkin realizaram um estudo com 151 portadores de asma moderada ou grave de 15 estados brasileiros. Orientação por telefone - Cada participante recebeu o antiinflamatório fluticasona e o broncodilatador salmeterol em quantidade suficiente para 90 dias de tratamento. Os pesquisadores telefonaram para cada voluntário no primeiro dia, para orientar como usar os remédios, e, três meses mais tarde, para verificar se haviam consumido as doses prescritas. Apenas metade dos participantes seguiu as orientações corretamente, independentemente da escolaridade, do estado civil, da idade, do sexo e do número de vezes que já havia sido internado por causa da asma. O
único fator que melhorou a adesão ao tratamento foi a gravidade da doença. Não é assim só no Brasil. Na América Latina, onde a prevalência do problema é superior à média mundial, o índice de pessoas que se tratam corretamente é mais baixo ainda. Fritscher participou recentemente de um estudo que analisou o controle da asma em 11 países latino-americanos. Das 2.184 pessoas entrevistadas, mais da metade (56%) apresentava sintomas de asma e já havia sido hospitalizada por causa da doença. Mas só 6% utilizavam antiinflamatórios corticosteróides no momento da pesquisa, de acordo com os dados publicados na Revista Panamericana de Salud Pública. Esse mesmo estudo sugere que o principal problema é a desinformação da população. Quase metade das pessoas com asma per-
sistente acreditava que sua doença estivesse sob controle, mas somente em 2,4% dos casos o problema podia ser considerado controlado do ponto de vista médico. Não é tão complicado nem caro modificar essa situação. Bastam alguns telefonemas para reforçar as orientações, comprovaram Chatkin e Fritscher. Eles distribuíram antiinflamatório e broncodilatador para três meses de terapia a 300 pessoas com asma, divididas em dois grupos: o primeiro recebeu dois telefonemas - um no primeiro e outro no último dia de tratamento - e o segundo foi acompanhado com uma chamada de reforço a cada duas semanas. Essa medida simples aumentou para 74% o índice de pessoas que se tratavam corretamente. "O tratamento é a melhor forma de conviver com a doença", comenta Ana Luisa Fernandes, pneumologista da Unifesp. Ela comprovou que programas educativos que ensinem a diferença entre antiinflamatórios e broncodilatadores - ou a maneira certa de usar esses remédios - reduzem as internações hospitalares. O resultado nem sempre é imediato. Ana Luisa avaliou 121 participantes desses programas e constatou que foram necessários ao menos dois meses de tratamento adequado para as pessoas com asma leve ou moderada começarem a controlar a inflamação. Nos casos graves, com crises diárias de falta de ar não controláveis por antiinflamatórios inalatórios, esse tempo aumentou para quatro meses. Na Bahia Álvaro Cruz desenvolve um programa que vem aprimorando o controle da asma grave. Sua equipe atende 1.500 pessoas em cinco centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) - quatro em Salvador e um em Feira de Santana. Quem adere ao programa recebe gratuitamente os medicamentos contra a asma e passa por consultas periódicas com médicos, enfermeiros e psicólogos. Já no primeiro ano de atividade plena essa estratégia reduziu em 40% as internações. Mesmo sendo mais completo que o atendimento normal do SUS, esse programa proporciona economia para o sistema público de saúde. Como há menos internações e consultas de emergência, economizam-se R$ 2.500 por paciente por ano. • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 45
O CIÊNCIA NEUROLOGIA
De ratos e homens Células embrionárias humanas incorporam-se ao cérebro de roedores
fode-se lembrar de Pink e de Cérebro, os camundongos inteligentes do desenho animado criado por Steven Spiel^^ berg, a partir do experimento coordenado pelo geneticista brasileiro Alysson Muotri no Instituto Salk dos Estados Unidos. Em meio a uma corrida mundial, Muotri conseguiu implantar células embrionárias humanas no cérebro de camundongos. O experimento - um dos primeiros feitos em animais - funcionou. As células embrionárias se diferenciaram em neurônio, entraram em contato com os neurônios naturais do roedor e responderam a impulsos elétricos, mas evidentemente os animais não deram nenhum sinal de quererem dominar o mundo, como Cérebro tenta em cada novo episódio do seriado da televisão. "O número de células incorporadas ao cérebro dos camundongos é menor do que 0,1%", diz Muotri, que trabalha sob a supervisão de Fred Gage, chefe do laboratório de genética do Salk. Sua intenção era verificar se é possível implantar células embrionárias humanas em animais - até agora, a maioria das pesquisas foi feita com células em cultura, in vitro. Esse trabalho, publicado no mês passado na PNAS, a revista da Academia de Ciência dos Estados Unidos, mostrou como produzir quimeras - animais que agregam características de outras espécies e, neste caso, podem se tornar um modelo para testar medicamentos em um organismo vivo, complementando as avaliações feitas em células humanas em cultura. "Nosso modelo pode servir para avaliar o potencial de terapias levando em conta todo o organismo, com muitas variáveis e interferências", diz ele. "Além disso, temos pela primeira vez um modelo para estudo das primeiras etapas do desenvolvimento humano, utilizando células normais ou células carregando mutações responsáveis por doenças específicas dos seres humanos, que ainda não contam com um modelo animal." Camundongos quiméricos já são usados para estudar algumas doenças neurodegenerativas, como a esclerose lateral amiotrófica. 46 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Para chegar a esses resultados, Muotri e a equipe do Salk, em colaboração com Kinichi Nakashima, do Instituto Nara de Ciência e Tecnologia, do Japão, primeiramente marcaram as células embrionárias humanas que iriam usar, adicionando em cada uma delas uma proteína fluorescente verde, que depois permitiria sua identificação. Só então as transplantaram no cérebro de quatro camundongos com apenas 14 dias de gestação, ainda no útero da mãe. Os animais sobreviveram à cirurgia e nasceram saudáveis, de parto normal. Em Roma como os romanos - Ao abrir o cérebro dos camundongos, meses depois, os biólogos verificaram que de 50 a 100 das cerca de 100 mil células humanas implantadas em cada animal haviam se diferenciado em células nervosas, tanto as de preenchimento quanto os neurônios, que recebem e conduzem as mensagens pelo sistema nervoso central. Constataram também que a maioria das células transplantadas migrou do ventrículo, a cavidade do cérebro em que foram injetadas, e se espalhou por outras regiões, como córtex, hipocampo, tálamo, cerebelo e corpo caloso. Em cada espaço em que se incorporaram, as células humanas ajustaram-se à arquitetura celular prévia, assumindo um tamanho, forma e orientação espacial similares aos das células que já estavam lá. Normalmente, os neurônios dos seres humanos medem 17 micrômetros e são 50% maiores que os equivalentes dos camundongos - ou das células embrionárias humanas que formaram neurônios no cérebro desses animais. A velocidade de crescimento das células humanas também acompanhou a dos neurônios dos próprios roedores - esse detalhe sugere uma notável semelhança entre os sinais bioquímicos que regem o amadurecimento das células nervosas no homem e no camundongo, ainda que as duas espécies tenham se separado de um ancestral comum há cerca de 20 milhões de anos. Esse e outros experimentos indicam que, ao menos no cérebro de outras espécies, as células embrio-
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nárias humanas fazem o que se espera delas, deixando-se modular pelo ambiente embrionário e sem causar problemas, já que não se encontrou nenhum sinal de rejeição mesmo no cérebro dos dois animais que foram sacrificados um ano e meio após o nascimento. Outros especialistas já haviam demonstrado que as células embrionárias humanas incorporaram-se harmoniosamente no cérebro de embriões de galinha com 1,5 a 2 dias de desenvolvimento. São demonstrações do potencial das células humanas em formar ligações - ou sinapses - com os neurônios de outras espécies, embora ainda não se saiba se podem também se diferenciar em neurônios humanos e contribuir para a recuperação de tecidos lesados caso fossem aplicadas diretamente nos próprios seres humanos. • CARLOS FIORAVANTI
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CIÊNCIA ARQUEOLOGIA
Primos de Luzia Crânios reforçam teoria de que povos de biologia distinta colonizaram as Américas
Não pára de crescer a família de Luzia, o crânio de uma jovem pré-histórica resgatado em Pedro Leopoldo, município dos arredores de Belo Horizonte, há 30 anos, que hoje figura como um dos mais antigos despojos dos colonizadores iniciais das Américas. A última leva de vestígios humanos incorporados ao clã são os 31 crânios achados 160 anos atrás pelo naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880) na caverna do Sumidouro, um dos sítios arqueológicos da região mineira de Lagoa Santa, a terra de Luzia. Bem preservados, os crânios, que se encontram no Museu de Zoologia da Universidade de Copenhague, foram examinados pessoalmente pelo bioarqueólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP) e classificados, com a ajuda de um modelo computacional, como pertencentes a paleoíndios com traços semelhantes aos de Luzia, cuja idade é de aproximadamente 11 mil anos: nariz e órbitas oculares largos, face projetada para a frente e cabeça estreita e alongada. "Com o material do Lund, temos agora dados sobre as características fí48 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
sicas de 81 crânios de Lagoa Santa, a maior amostra de esqueletos antigos das Américas", diz Neves, que, em 12 de dezembro de 2005, publicou um artigo sobre o tema na edição eletrônica da revista científica norte-americana Proceedings ofthe National Academy of Sciences (PNAS). Esse conjunto de ossadas da PréHistória brasileira, composto de 42 homens e 39 mulheres, com idade estimada ou datada entre 7.500 e 11 mil anos, desafia a teoria mais aceita sobre os primeiros habitantes do Novo Mundo. Os crânios da região mineira sinalizam que os desbravadores iniciais das AméO PROJETO Origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADOR WALTER NEVES
- Instituto de Biociências da USP
INVESTIMENTO
R$ 1.473.126,88 (FAPESP)
ricas tinham, como Luzia, feições que lembram as dos atuais aborígines da Austrália e negros da África, embora seja impossível saber qual era a cor de sua pele, se clara ou escura. De qualquer forma, eles eram muito diferentes dos povos de origem asiática, com traços orientais (mongolóides), normalmente descritos pelos antropólogos mais tradicionalistas como sendo os primeiros humanos a fincar pé em nosso continente. Para classificar essas oito dezenas de crânios mineiros como semelhantes, em termos de constituição física, aos habitantes atuais do Subsaara e da Oceania, Neves comparou, com a ajuda de vários modelos computacionais, cerca de 50 parâmetros morfológicos dos esqueletos com as medidas típicas dos principais grupos étnicos que compõem atualmente a população mundial. Desde 1989 o pesquisador da USP e seus colaboradores defendem a tese de que as Américas foram colonizadas por duas correntes migratórias de caçadores e coletores, ambas vindas da Ásia, provavelmente pelo estreito de Bering, mas cada uma delas composta por grupos biológicos distintos. A primeira teria ocorrido 14 mil anos atrás e seus membros teriam aparência semelhante
à de Luzia. Contudo, por razões ainda ignoradas, todos os seus descendentes parecem ter se extinguido depois de viverem aqui por alguns milhares de anos, não havendo hoje um só índio com traços semelhantes aos dos antigos habitantes de Lagoa Santa. O segundo grupo a entrar no Novo Mundo teria sido o dos povos mongolóides, aproximadamente há uns 11 mil anos, dos quais descendem atualmente todas as tribos indígenas das Américas. Conhecida como "Modelo dos dois componentes biológicos principais", a proposta de Neves, que desenvolve suas pesquisas com financiamento de um Projeto Temático da FAPESP, sempre foi acusada por seus críticos de ser baseada numa amostra reduzida de crânios. Seus detratores diziam que o brasileiro havia formulado uma teoria de colonização do continente calcada na análise de um único crânio, Luzia, cujos traços físicos seriam uma aberração, uma exceção, e não a regra entre os povos da Pré-História das Américas. "Mas hoje nossa hipótese se fundamenta em mais de 80 crânios de Lagoa Santa", explica Mark Hubbe, aluno de doutorado de Neves e co-autor do trabalho na PNAS. "É difícil continuar argumentando que nossa amostra é tendenciosa."
Crânio encontrado no sítio do Sumidouro por Lund há 160 anos: traços semelhantes aos de Luzia
Os habitantes pré-históricos da vizinhança da capital mineira não poderiam ser fruto de condições geográficas específicas dessa região, tendo forjado suas características físicas ali mesmo, sendo, nesse caso, pouco representativos da constituição biológica dos primeiros colonizadores que se instalaram em outras partes das Américas? Neves considera essa hipótese pouco provável. Além das terras mineiras - Para ele, os traços físicos presentes em Luzia e seus contemporâneos devem ter surgido antes de o Homo sapiens ter cruzado o estreito de Bering, ou seja, quando o homem ainda estava do lado de lá, na África e na Ásia. "Alterações no formato do crânio só acontecem de forma marcante em razão de mudanças ambientais extremas", afirma o pesquisador. Mais um dado favorável à teoria de que o povo de Lagoa Santa não estava confinado a terras mineiras: antigas ossadas humanas de idade e formas similares às dos "parentes" de Luzia já foram encon-
tradas em outras partes do território nacional, como em São Paulo e na Bahia, e até no exterior (Chile, Colômbia, México e mesmo nos Estados Unidos). Apesar das crescentes evidências de que os povos mongolóides não foram os únicos a colonizar nosso continente, e talvez nem tenham sido os primeiros a cruzar Bering, algumas questões sobre a chegada do homem ao Novo Mundo permanecem em aberto. Além das linhas mais conservadoras da arqueologia, em especial da norte-americana, que advoga a ocorrência de apenas uma onda migratória rumo às Américas há cerca de 11.500 anos, composta por caçadores de traços mongolóides, os dados da biologia molecular sobre o povoamento inicial do Novo Mundo também não batem com as teses de Neves. Análises do DNA das tribos hoje presentes do Alasca à Patagônia sugerem que os primeiros colonizadores chegaram aqui entre 12 mil e 35 mil anos, mais cedo do que propõe a maioria dos arqueólogos. Enfim, a despeito dos recentes avanços significativos, a discussão sobre a chegada do homem à América ainda está longe do fim. • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 • 49
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CIÊNCIA
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Por que as florestas são diferentes Biólogos identificam mecanismos que alimentam a competição entre as árvores e diferenciam as matas paulistas CARLOS FIORAVANTI FOTOS EDUARDO CéSAR
ão são só as onças que brigam por espaço. As plantas também estabelecem seu território, geralmente com sutileza: uma folha que cai pode afugentar outras espécies. "Viram que por aqui quase só tem guarantãs?" pergunta Flaviana Souza, botânica do Instituto Florestal, em uma reserva de Mata Atlântica no município de Gália, sudoeste paulista. Aqui os guarantãs, ou Esenbeckia leiocarpa - a espécie preferida pelo sabiá para fazer seus ninhos -, criam com seus troncos retos de até 60 centímetros de diâmetro e 20 metros de altura uma certa homogeneidade em meio à desordem das árvores tortas e esgalhadas da vizinhança. F,m laboratório, Flaviana verificou que as folhas do guarantá liberam substâncias que atrasam a germinação das sementes e provocam o apodrecimento de outras espécies. Mas a dominação do guarantã tem limites. "A floresta se refaz ponto a ponto, como uma colcha de retalhos", comenta Geraldo Franco, botânico do Florestal. Em alguns trechos, impõe-se um emaranhado de cipós que crescem sobre as árvores e entre elas. Maria Teresa Toniato, outra pesquisadora do Florestal, assegura que não perdeu o humor nenhuma vez sequer ao enfrentar essa teia de trepadeiras, ao lado do biólogo Tiago Barreto, para reencontrar e medir novamente cada uma das 13.053 árvores listadas quatro anos antes, quando um grupo de biólogos, agrônomos e engenheiros florestais deixou-se levar por uma tarefa ousada: descobrir como e por que as florestas paulistas são diferentes entre si. Mesmo que o gigantismo da Amazônia ofusque as outras florestas do Brasil, um olhar mais atento enconvai das exuberantes florestas do litoral às matas secas do n extremo e
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outro. E não é pouco: São Paulo abriga 15% do que resta da Mata Atlântica brasileira, cuja densidade de espécies de plantas e animais exclusivos eqüivale à da Amazônia. A área coberta pelos remanescentes de vegetação natural, correspondente a 13,9% do total do estado, é praticamente a mesma que a ocupada pelas plantações de cana-de-açúcar. A tarefa de descobrir as razões das diferenças entre as florestas paulistas reuniu especialistas em solo, vegetação e luz, capitaneados por Ricardo Rodrigues, Vinícius Souza e Sérgius Gandolfi, professores da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), e Alexandre Oliveira, do Instituto de Biociências, também da USP. De início, verificaram o alcance e os limites do projeto mais antigo de monitoramento de florestas, que ocupa 50 hectares de uma ilha do canal do Panamá - ali, há 25 anos, acompanha-se o crescimento de cerca de 300 mil árvores. Era um bom modelo, adotado em 13 países, mas esse grupo preferiu seguir trilhas novas. Demarcaram quatro áreas menores, mas que pudessem ser comparadas: uma amostra de Mata Atlântica do interior, o Cerradão, a restinga e uma amostra de Mata Atlântica da serra do Mar. Cada área tem 10,24 hectares e representa os principais tipos de vegetação natural do estado. Outra inovação foi investigar a influência do solo, da água e da luz sobre as plantas. "É a primeira vez que se tem uma amostragem tão grande das florestas paulistas, examinadas com a mesma metodologia, integrando especialistas de diferentes campos do conhecimento", comenta Oliveira. "Com o tempo, esperamos comparar as conclusões desse trabalho com as obtidas em projetos similares em andamento no Brasil e em outros países." Cada floresta se revelou um organismo único, dotado de profundas diferenças no modo de funcionamento. A diversidade e a distribuição de espécies e, num plano mais amplo, a própria fisionomia de
cada tipo de vegetação dependem de combinações muito peculiares de chuva mais escassa ou mais abundante, de temperaturas mais altas ou mais baixas, de luz mais intensa ou mais tênue e de solo mais fértil ou mais pobre em nutrientes, capaz de armazenar água por um tempo mais longo ou mais curto. Um dos resultados dessa combinação é que cada floresta abriga conjuntos únicos de espécies de árvores. Só cinco espécies - das 537 que os pesquisadores encontraram após identificarem o gênero e a espécie de 64.004 árvores - conseguem adaptar-se aos quatro ambientes, pouco importando a quantidade de nutrientes no solo, água ou luz.
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ara que tanto trabalho? Para entender como uma floresta se reorganiza, se diferencia e reage a fenômenos locais ou globais como as mudanças climáticas, que só podem ser avaliadas por meio de medições de longo prazo. "Se a temperatura do planeta continuar subindo, devem desaparecer primeiramente as espécies dos topos das serras, que são as mais sensíveis a variações climáticas", comenta Rodrigues, coordenador-geral desse projeto que começou com 15 integrantes e hoje reúne 104. "Já as florestas do interior, mais acostumadas à seca, devem se adaptar mais facilmente." Segundo ele, a perspectiva de uma extinção das plantas da Mata Atlântica é preocupante, em primeiro lugar, porque inutiliza o esforço de criação e manutenção da maioria das áreas de preservação ambiental, situadas ao longo da costa. Seria um ataque ao coração verde de São Paulo, representado pelos trechos de Mata Atlântica que escaparam à expansão urbana e agrícola justamente por ocuparem terrenos montanhosos e ajudam a manter amena a temperatura para os 18 milhões de habitantes da Grande São Paulo. Atenta ao futuro, mas fortemente enraizada no presente, a equipe paulista semeia práticas mais adequadas de conservação e de restauração de espaços naturais, em vista do conhecimento acumulado sobre as interações entre as espécies e de cada uma delas com o solo, a água e a luz. Segundo Rodrigues, a restauração será importante especialmente no interior paulista, onde a vegetação natural se encontra bastante fragmentada, em razão da contínua expansão das plantações e das pastagens. Ele próprio está utilizando esse conhecimento para recuperar matas próximas a rios em usinas de cana-de-açúcar: em cinco anos, sua equipe já conseguiu repovoar 2.500 hectares de matas ciliares. Germinam também algumas hipóteses sobre os mecanismos de sobrevivência próprios de cada tipo de floresta. Por que espécies do interior não chegam ao litoral? "Porque não conseguem viver com tão pouca luz", responde Sergius Gandolfi, professor da Esalq, que espalhou dezenas de sensores de luz para entender como as variações de luminosidade podem favorecer ou dificultar a sobrevivência das plantas. E por que as do litoral não che-
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gam ao interior? Dessa vez quem tem a resposta é Miguel Cooper, também pesquisador da Esalq, que coordenou os estudos de água no solo: "Porque não sabem viver com pouca água". As informações colhidas até agora indicam que, à medida que o solo se torna mais fértil, algumas espécies crescem mais do que outras, cai a densidade de árvores e aumenta a competição por luz, já que as árvores que crescem mais se impõem na mata, fazem sombra e eliminam as outras.
ram e mediram, identificaram e mapearam as que cresceram a ponto de atingir os 15,7 centímetros de perímetro mínimo exigido para se incorporarem ao levantamento.
Solo pobre, pouca água e muita luz - Ainda que próximo, a cerca de 80 quilômetros de distância, o Cerradão da Estação Ecológica de Assis, em Assis, município de quase 90 mil moradores, também no sudoeste paulista, é bem diferente - e agora se sabe por quê. Nesta mata, Solo fértil, áqua e luz vaque constitui a forma floriáveis - É principalmenrestal do Cerrado, crescem te a fertilidade do solo que muitas árvores porque há faz da Mata Atlântica do bastante luz - é o ambieninterior um cenário rico. te mais iluminado e seco Nesta área de estudo, intedos quatro. Foi onde se grada à Estação Ecológica encontrou a maior dende Caetetus, que pertence sidade de árvores: em 10 a Gália, município do suhectares, 23.495, quase o doeste paulista de quase 8 dobro da quantidade enmil habitantes, misturamcontrada nas outras áreas, se árvores finas e grossas, embora a diversidade seja Um caraguatá (Bromelia balanceae) do Cerradão: baixas e altas - as mais ala menor, apenas 122 espéo mais iluminado e seco das quatro áreas de estudo tas têm cerca de 30 mecies. Mas as árvores raratros, metade do que as mais espichadas da Floresta Amazônimente passam dos 15 metros por causa do solo pobre em nuca. "Uma das maiores árvores que encontrei aqui foi uma trientes. E, por ser arenoso, o solo deixa escoar a água da Gallesia integrifolia, um pau-d'alho, que emite um forte cheichuva e seca rapidamente. ro de alho sentido a metros de distância, com um caule de 1 Essas características do solo ajudam a entender por que o metro e meio de diâmetro", conta Franco. cenário é relativamente uniforme. As árvores do Cerradão, Para as plantas, não faltam nutrientes nem água, porque cujos troncos apresentam espessuras próximas, sem grandes o solo retém a chuva que cai entre novembro e janeiro. "É variações, em geral têm poucas folhas e ramificações, como como se chovesse o ano todo e as raízes contassem sempre se não quisessem chamar a atenção. São discretas até para com um estoque de água", diz Cooper. Mas não há só ganhos: morrer: morrem em pé. Perdem as folhas, os galhos caem e segundo Rodrigues, foi por causa da riqueza desse solo, sodepois são lentamente consumidas por cupins - diferentemado ao relevo plano, que muitas matas desse tipo do intemente das árvores da Mata Atlântica ou da Amazônia, que ao rior paulista foram derrubadas para dar lugar às pastagens, morrer caem ruidosamente, levando outras consigo: é quanao café, à cana ou à soja. Outra peculiaridade é que aproxido se formam as clareiras e surge a oportunidade para outras madamente a metade das árvores perde as folhas durante a espécies germinarem, explicando-se assim, em boa parte, a estação seca, de junho a agosto. É quanelevada diversidade de espécies das flodo a mata, iluminando-se, exercita um restas tropicais. mecanismo próprio de renovação. GanReconhecer árvores e caminhos no O PROJETO dolfi e Flaviana verificaram que as árCerradão exige um olhar apurado como vores que perdem as folhas funcionam o de Giselda Durigan, pesquisadora do Diversidade, dinâmica como clareiras sazonais, deixando pasInstituto Florestal que começou a exe conservação de árvores em sar a luz que durante três meses banha plorar as matas dessa região ainda meflorestas do Estado de São Paulo: estudos em parcelas permanentes as árvores que até então lutavam para nina. É ela quem apresenta as espécies crescer à sombra das outras. mais comuns como a copaíba {CopaifeMODALIDADE As clareiras geradas pela queda das ra langsdorffii), de tronco encorpado coProjeto Temático vinculado ao folhas e, ao longo de todo o ano, pelo berto de líquens e manchado de cinza e Programa Biota/FAPESP vento trazem a luz que alimenta a rede vermelho-escuro, que representa 27% de cipós e mantém a elevada diversidadas árvores identificadas nessa área de COORDENADOR de desta mata, onde convivem 151 espéestudo. A análise das espécies de árvoRICARDO RIBEIRO RODRIGUES cies, representadas por 13.053 árvores. res que crescem neste Cerradão revelou Esalq/USP Foi para saber como a mata está se refaum fenômeno curioso, que sugere como zendo que Maria Teresa e Barreto saíum tipo de floresta pode se transformar INVESTIMENTO ram atrás de cada uma delas. Durante R$ 1.785.067,39 (FAPESP) em outro: começam a predominar alguseis meses, verificaram quantas morremas espécies indiferentes à seca ou à umi52 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
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dade, que vivem também nas florestas atlânticas do litoral ou do interior, como a própria copaíba, a canela-do-cerrado {Ocotea corymbosa) e o limão-bravo (Siparuna guianensis). "O Cerradão pode ser uma forma de transição do Cerrado para a floresta atlântica", cogita Giselda, "ou da Mata Atlântica para o Cerrado, se a temperatura do planeta aumentar". áolo fértil, muita água e pouca luz - Se no interior a água é rara ou, ao menos, irregular, nas outras duas áreas de estudo, ambas próximas ao litoral, o que não É^ falta é umidade. "Choveu todas as vezes A que vim aqui", comenta Cooper, ofeganB te, sob uma chuva fria e incessante, en■ quanto escala as ladeiras da reserva de V Mata Atlântica que integra o Parque Es^r tadual de Carlos Botelho, compartilhado pelos municípios de Sete Barras, Eldorado e São Miguel Arcanjo. Esta floresta atlântica do litoral é a mais impressionante, com troncos de árvores cobertos de bromélias, e a mais rica das quatro áreas estudadas, abrigando 220 espécies de árvores, embora seja também a menos povoada: na área de estudo havia apenas 10.582 indivíduos taludos o suficiente para entrarem no levantamento. É também a mais escura. Gandolfi verificou que as folhas mais próximas à superfície do solo recebem apenas 1% da luz que chega ao topo da floresta. Solo pobre, pouca luz e muita água - Essa exuberância contrasta com o porte discreto da outra área de pesquisa que também se encontra no litoral, a cerca de 80 quilômetros de distância: a restinga do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em Cananéia, uma das mais antigas povoações brasileiras, hoje com cerca de 23 mil habitantes, no extremo sul do Estado de São Paulo. Quando Daniela Sampaio chegou à ilha pela primeira vez, em maio de 2001, recém-saída do curso de biologia, viu apenas uma massa verde. Quatro anos depois, após ter identificado 16.890 árvores de 177 espécies diferentes, caminha pela restinga como se estivesse em seu jardim, desviandose com naturalidade dos espinhos das palmeiras e das bromélias, cujas folhas de meio metro saltam do solo como lanças. Pouco a pouco, à medida que o levantamento que ela fez se somou aos estudos dos outros especialistas do grupo, pôde-se entender por que esta mata é assim. As árvores raramente passam dos 15 metros de altura por causa do solo pobre em nutrientes, como no Cerradão. Mas o solo arenoso tem outro problema: vive encharcado. Nas áreas mais baixas o lençol freático emerge e forma riachos de água acobreada - a cor se deve à concentração de ferro - que se movem com vagar entre margens de areia branca como uma folha de papel. Mas Cooper, argentino forte e alto de 40 anos, recomenda: é melhor ficar longe dessa água. Ele a revira com a bota e pergunta se os outros expedicionários sentem o cheiro cheiro de ovo podre, resultado do enxofre acumulado nas folhas e troncos em lenta decomposição. "Muito pior", diz ele, "seria desmatar e drenar essa água". O enxofre, reagindo com o oxigênio, pode transformar-se em sulfato, que, ao se combinar com a água, forma ácido sulfúrico, que pode deixar o solo estéril. •
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Restinga da Ilha do Cardoso: solo pobre e encharcado limita o crescimento das árvores
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CIÊNCIA ASTROFÍSICA
A estrela da hora Ana branca se comporta como o relógio óptico mais preciso que se conhece
Desde a Antigüidade, a observação do movimento dos corpos celestes fornece pistas para o homem quantificar a passagem do tempo. Por séculos, que se estenderam por toda a Idade Média e o início das Grandes Navegações, calcular as horas (e a posição geográfica) era possível com o auxílio de um astrolábio, instrumento astronômico que mede a altura das estrelas acima do horizonte. O advento de outros tipos de relógio, mais precisos, acabou transformando esse equipamento numa peça de museu. Mas isso não quer dizer que os astros deixaram de ser úteis para contar as horas, como mostra o trabalho recente de uma equipe de astrofísicos liderada pelo brasileiro Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os pesquisadores descobriram que os pulsos de brilho emitidos por uma pequena e moribunda estrela da constelação de Leão Menor, a G117-B15A, ocorrem a intervalos tão regulares, mas tão regulares, que podem funcionar como os ponteiros luminosos de um relógio estelar que nunca atrasa. Bem, nunca atrasa é força de expressão, uma hipérbole que, nesse caso, não é tão exagerada assim. Afinal, esse cronômetro sideral perderia um segundo a cada 8,9 milhões de anos. "É o relógio óptico mais estável que se conhece, mais preciso que os relógios atômicos", afirma Kepler, que publicou estudo sobre o tema na edição de dezembro passado da revista científica norte-americana The Astrophysical Journal. Foram necessários tempo e paciência para encontrar um objeto celeste com essa particularidade, mais precisamente 31 anos observando as tênues alterações de brilho da G117-B15A, um tipo raro de estrela, classificada tecnicamente como uma anã branca pulsante ou ZZ Ceti. O trabalho começou em 1974 com Edward Robinson e John McGraw, astrofísicos da Universidade do Texas e descobridores da 54 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
variabilidade da estrela. Cinco anos mais tarde, Kepler, que foi aluno de doutorado de Robinson nos Estados Unidos, assumiu a tarefa de registrar os pulsos de luz da Gl 17-B15A. Na ocasião, seu orientador o avisou de que demoraria 20 anos para talvez chegar a algum dado interessante com essa linha de pesquisa. Ainda assim, o brasileiro bancou a aposta. O esforço compensou. "Ninguém dizia que o projeto poderia dar certo", comenta o astrofísico Don Winget, da Universidade do Texas, co-autor do trabalho. Como a G117-B15A só é visível de dezembro a março e apenas no hemisfério Norte, as observações foram feitas nos Estados Unidos com telescópios do Observatório McDonald, ligado à Universidade do Texas. Desde 1979, uma vez por ano, Kepler ou algum pesquisador associado ao projeto passa oito horas seguidas registrando as emissões de luz da estrela, que pertence à nossa galáxia, a Via Láctea, e dista 150 anos-luz da Terra (um ano-luz eqüivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros). Neste início de 2006, registrar a anã branca pulsante será um dos encargos de Barbara Castanheira, aluna de doutorado do astrofísico da UFRGS, que passa uma temporada no Texas. "Se as condições meteorológicas permitirem, vou observar essa e outras estrelas em dois turnos durante o mês de janeiro, primeiro entre os dias 6 e 8 e depois entre 23 e 29 de janeiro", diz Barbara. Devido às suas peculiaridades, as anãs brancas pulsantes são candidatas a exercer o papel de relógios ópticos pendurados no espaço. Os astrofísicos estimam que 98% de todas as estrelas - em especial as pequenas e médias, com pouca massa, como o Sol devem se transformar um dia numa anã branca, um astro senil à beira da morte, que não produz mais energia por meio de reações termonucleares. A caminho do fim de sua existência, esses corpos celestes encolhem de tamanho e tornam-se bem mais densos e frios. Ao longo do processo evolutivo de contração e perda de calor, algumas dessas estrelas também apresentam instabilidades periódicas, ou seja, emi-
Pintura de Dali sobre o tempo e imagem da G117-B15A (ponto em azul): um segundo de atraso a cada 8,9 milhões de anos
tem a intervalos fixos, de forma ritmada, pulsações que alteram o seu brilho. Em razão dessa mudança cadenciada em sua luminosidade, são classificadas como anãs brancas pulsantes. No caso da G117B15A, estrela com idade estimada em 400 milhões de anos, o principal pulso luminoso é disparado a cada 215 segundos. Religiosamente. Como um relógio. O ritmo da emissão luminosa deve diminuir à medida que a anã branca pulsante for esfriando. Mas o ocaso da estrela é um processo tão arrastado, capaz de se prolongar por bilhões de anos, que não afeta a confiabilidade de suas informações. Há quem diga que outros tipos de estrela, como certos pulsares, que emitem ondas de rádio e raios X, podem ser cronômetros espaciais ainda mais precisos que a G117-B15A. Kepler, no entanto, discorda dessa visão por um motivo: os pulsares carecem de estabilidade e estão mais sujeitos a perturbações que alteram a sincronia de seu tique-taque sideral. Além de aumentar o conhecimento sobre a vida evolutiva das estrelas, a busca por um guardião estelar do tempo pode ter alguma serventia prática? "Alguns estudiosos já propuseram a criação de uma rede de relógios desse tipo para sincronizar as horas nas espaçonaves", comenta o pesquisador brasileiro. Estudar as anãs brancas pulsantes também pode render outros achados bastante concretos, como a localização de novos planetas. Seriam provavelmente mundos sem vida, visto que as ZZ Cetis não apresentam as características necessárias para manter em sua órbita um recanto ameno como a Terra. Ainda assim seriam planetas de fora do sistema solar, um dos temas mais fascinantes da astrofísica atual. Por ora, a equipe de Kepler já descartou a existência de mundos gigantes, do tamanho de Júpiter ou Saturno, na vizinhança da Gl 17-B15A. Talvez existam por ali planetas menores. Ninguém sabe. Só o tempo, sempre ele, trará a resposta definitiva. • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 55
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias No dia 9 de dezembro de 2005 aconteceu na Bireme/OPAS/OMS, em São Paulo, a primeira reunião com os editores das revistas que apoiam a iniciativa SciELO Ciências Sociais para a criação de um Comitê Consultivo e discussão das perspectivas futuras do projeto. Essa iniciativa representa o resultado de um esforço conjunto da SciELO e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Seu objetivo é contribuir para promover o acesso universal e integrado às revistas científicas em ciências sociais na América Latina, diminuindo as graves barreiras de distribuição e disseminação. 0 seu principal diferencial é a disponibilidade dos textos no idioma inglês, gratuitamente. Na primeira fase será desenvolvido um site temático em ciências sociais para revistas científicas da América Latina, com a participação inicial de 23 publicações: 10 do Brasil, 5 da Argentina, 3 do Chile, 2 do Uruguai, 2 da Bolívia e1 do Paraguai. Cada periódico produzirá uma edição especial anual com artigos de autores locais.
Saúde
Riscos da gravidez Além de revisar a literatura sobre os possíveis efeitos da gravidez no desencadeamento da osteoporose, os autores do artigo "Osteoporose e gravidez" apresentam uma breve discussão de algumas características da regulação do metabolismo do cálcio na mulher grávida. Os pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) Francisco Rocha e Francisco Saraiva Júnior abordam aspectos relacionados à fisiologia do metabolismo do cálcio, vitamina D e hormônio da paratiróide (PTH) na gravidez. Os estudos para determinar alterações do metabolismo do cálcio e da densidade mineral óssea durante a gravidez são importantes para avaliar o seu possível impacto, a longo prazo, no risco de fratura nas mulheres. Porém investigações da osteoporose na mulher grávida são limitadas pelo risco de exposição do feto à radiação. "A realização de medidas em ossos periféricos é uma estratégia para atenuar esse risco", apontam. Em um dos poucos estudos longitudinais realizados, feito em Hong Kong, mulheres de baixo risco obstétrico foram submetidas a três medidas da densidade mineral óssea, efetuadas antes de 18 semanas de gestação, entre 28 e 32 semanas e uma terceira medida entre 36 e 38 semanas. Avaliando 780 mulheres, os autores obtiveram uma média de queda na densidade mineral óssea entre os trimestres, sendo menor na terceira medida. O artigo também evidencia um estudo realizado em São Paulo, em que se procurou identificar fatores de risco associados a fraturas do fêmur proximal. Em linhas gerais, os autores concluem que, "aparentemente, a gravidez não parece afetar a densidade mineral óssea de forma permanente". REVISTA BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA - VOL. 45 - N° 3 - SãO PAULO - MAIO/JUN. 2005
■ Tecnologia
0 futuro da dermatologia O artigo "Teledermatologia: passado, presente e futuro", de Hélio Miot, Maurício Paixão e Chão Lung Wen, pesquisadores de telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mostra um panorama dessa área do conhecimento no Brasil. "A teledermatologia apresenta forte potencial de levar planejamento de saúde, pesquisa, educação, discussão clínica, segunda opinião e assistência dermatológica às populações com dificuldades de deslocamento para ações presenciais", acreditam os autores. O estudo revela que a redução de custos e a difusão das tecnologias de telecomunicação e informática têm viabilizado a implantação de sistemas de teledermatologia de larga abrangência para apoio à prática clínica em todo o mundo. O desejo de ampliar a cobertura assistencial, educar e emitir opiniões sem a necessidade da presença física dos pacientes é antigo. "O emprego de modelos de educação por fitas cassete, videoaulas ou opiniões emitidas a partir de fotografias tem sido comum na prática dermatológica, favorecendo a assimilação dos processos educacionais ou de avaliação clínica mediada por tecnologia", registra o artigo. Especialidades como a radiologia, patologia, dermatologia, cardiologia e psiquiatria têm representado as áreas de maior demanda desses programas. A facilidade do envio de dados clínicos, tanto como texto, imagens fotográficas digitais, som ou pequenos vídeos digitais, contribuiu significativamente para essa realidade. "A efetiva aplicação da teledermatologia permite a ampliação da cobertura dermatológica especializada, redução do tempo de espera pelas interconsultas, triagem prévia das doenças, promoção e coordenação de projetos em saúde coletiva de grande escala, além da realização de protocolos de pesquisa multicêntricos", concluem os autores. ANAIS BRASILEIROS DE DERMATOLOGIA - VOL. - N° 5 - Rio DE JANEIRO - SET./OUT. 2005
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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0482-
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0365-
50042005000300009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
05962005000600011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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■ Economia
Olha o peixe A maior parte da produção pesqueira do Estado do Amazonas é desembarcada em Manaus. Entretanto, segundo os pesquisadores Valdenei de Melo Parente e Vandick da Silva Batista, ambos da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as características de organização do apoio à produção e à comercialização do pescado na capital amazonense pouco têm sido avaliadas nas discussões para o desenvolvimento do setor. É isso que eles fazem no artigo "A organização do desembarque e o comércio de pescado na década de 1990 em Manaus". Para subsidiar o planejamento do setor, o trabalho pretende estabelecer um referencial histórico sobre a organização do desembarque pesqueiro em Manaus, destacando as figuras centrais da cadeia de intermediação entre o pescador e o consumidor final. O objetivo é mostrar a dinâmica operacional do setor comercial pesqueiro e sua importância para o manejo da atividade. Entrevistas foram efetuadas com diversos atores desse setor, de forma a cobrir o mosaico de alternativas que existem para o abastecimento de pescado. "Há quatro tipos de agentes de comercialização atacadista de pescado para Manaus: o barco de pesca, o despachante, o atravessador e os frigoríficos", explica o estudo. O despachante aparece como ator central no processo produtivo pesqueiro, seja por financiar as viagens e operações de comercialização, seja por executar a ligação entre os produtores-pescadores e os comerciantes de pescado. "A maior parte da produção de pescado em maior escala foi comercializada durante a década de 1990 pelo despachante. Esse papel-chave do intermediário é freqüentemente observado no escoamento da produção rural, incluindo a pesqueira, na Amazônia", diz o estudo. Exceção a esta regra ocorre com o "pescador ribeirinho autônomo", o qual pesca com seus próprios meios e comercializa sua produção com compradores sem intermediação. "A comercialização é elemento importante para a viabilização da atividade produtiva agrícola. É uma etapa que necessita ser realizada de imediato, devido à especificidade inerente a uma atividade geradora de produtos altamente perecíveis e com grande oscilação dos preços", destacam os pesquisadores. No comércio varejista, os feirantes são os mais importantes, sendo a Feira da Panair responsável por cerca de 20% do abastecimento do pescado in natura em Manaus. Os supermercados e pequenos comerciantes são os demais agentes varejistas, que disponibilizam produtos com valor agregado e preços maiores que os dos feirantes. O artigo mostra que o despachante atuou na década de 1990 como um agente central no processo de comercialização. O despachante apresentou domínio não só sobre os pescadores, porque financia a produção, mas também sobre a principal parcela dos co-
merciantes varejistas, os feirantes, através dos financiamentos simplificados. "Representaram, portanto, os agentes que aplicam maior volume de recursos financeiros na atividade, sendo os principais representantes do capital comercial na pesca em Manaus." ACTA AMAZôNICA
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2005 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S004459672005000300011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Esporte
Natação para a reabilitação Conhecer os efeitos da natação sobre habilidades funcionais de pacientes com lesão medular é o objetivo do artigo "Efeitos da natação sobre a independência funcional de pacientes com lesão medular", de Maurício Real da Silva, da Rede de Hospitais de Reabilitação Sarah Centro, em Brasília, Ricardo Jacó de Oliveira, Universidade Católica de Brasília (UCB), e Maria Inês Conceição, da Universidade de Brasília (UnB). Entre os benefícios relatados na literatura sobre o treinamento de atletas com lesão medular estão: melhora do consumo de oxigênio, ganho de capacidade aeróbica, redução do risco de doenças cardiovasculares e de infecções respiratórias, diminuição na incidência de complicações médicas, redução de hospitalizações, favorecimento da independência, melhora da auto-imagem, diminuição na probabilidade de distúrbios psicológicos e aumento da expectativa de vida. "A natação para pessoas portadoras de deficiência tem sido definida como a capacidade do indivíduo de dominar o elemento água, deslocando-se de forma segura e independente, sob e sobre a água, utilizando-se de sua capacidade funcional residual e respeitando suas limitações", define o artigo. O estudo envolveu 16 pacientes portadores de lesão medular, divididos em dois grupos: experimental e controle. Os grupos foram avaliados por meio da Medida de Independência Funcional, antes e após o procedimento que consistiu em sessões de natação realizadas duas vezes por semana durante quatro meses. "Os dois grupos apresentaram mudanças nos cuidados com o corpo", garantem os pesquisadores. A atividade de natação trouxe benefícios motores sobre as habilidades funcionais dos participantes. O novo paradigma reabilitador, explicam os pesquisadores, há muito preconiza o esporte terapêutico, muito embora observe-se, na prática, que a valorização da categoria profissional do professor de educação física hospitalar vem surgindo apenas embrionariamente no rol de profissionais que compõem uma equipe interdisciplinar de reabilitação. REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA DO ESPORTE
- VOL. 11
- N° 4 - NITERóI - JUL./AGO. 2005 www.se ielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=SI 51786922005000400010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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O TECNOLOGIA
Linha de Produção
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Nanoporos para o hidrogênio Um dos grandes desafios para viabilizar o uso das células a combustível, equipamento que utiliza o hidrogênio para produzir energia elétrica, é a produção de um material capaz de armazenar grandes volumes desse gás candidato a substituir os combustíveis derivados do petróleo. Um dos compostos mais promissores são as chamadas estruturas metalorgânicas, ou metal-organicframework (MOF), novo material nanoporoso formado por grupos de oxido de metais, o de zinco principalmente, conectados por moléculas orgânicas. Pesquisadores do
■ Músculos robóticos mais eficientes O avanço da tecnologia tem feito os robôs serem cada vez mais empregados em uma série de aplicações. Agora os estudos do engenheiro nuclear Sidney Yip, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), mostram que esses dispositivos poderão tornarse ainda mais úteis e eficazes. O pesquisador descobriu uma forma de acelerar o movimento dos "músculos artificiais", responsáveis pelo movimento dos robôs. Normalmente, os músculos robóticos são cem vezes mais lentos do que os nossos. As pesquisas desenvolvidas no MIT poderão deixálos mil vezes mais rápidos do que os músculos humanos.
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Molécula com hidrogênio: círculos vermelhos e verdes
Fabricados com um tipo de polímero especial, os músculos artificiais precisam receber um banho de íons (átomos carregados eletricamente) para adquirirem a propriedade de condutividade elétrica, essencial ao seu funcionamento. Acontece que esse banho também eleva o volume do polímero, tornando-o mais
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| Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, revelaram ter conseguido criar uma espécie de reservatório nanométrico utilizando um arranjo MOF com moléculas de zinco e oxigênio. A descoberta, relatada na revista Physkal Review Letters (16 de novembro), sugere que, no futuro, essas estruturas poderão melhorar o armazenamento e a liberação do hidrogênio, por meio de calor na estrutura metálica, para uso nas células a combustível instaladas nos veículos automotores. •
pesado e lento. Yip descobriu que a adição de íons poderia ser, teoricamente, substituída pela incidência de luz em uma determinada freqüência sobre o polímero. Dessa forma, sem o peso extra dos íons, os músculos artificiais ficariam mais flexíveis, elevando a agilidade dos dispositivos robóticos. •
■ Chip analisa proteínas Um novo sistema de análise de proteínas foi lançado mundialmente pela empresa norte-americana Agilent Technologies. Com um chip acoplado a um espectrômetro de massas, que desempenha as funções de um sistema de cromatografia líquida de alta resolução, é possível identificar os aminoácidos e as proteínas codificadas pelos genes de forma mais rápida, com menos gastos de reagentes e menor quantidade de amostras e de espaço físico. O novo sistema transforma conjuntos complexos de análise com válvulas, colunas e tubos num único chip, menor que um cartão de crédito. A novidade, segundo comunicado
da empresa, facilita e acelera os estudos com cânceres e o envolvimento celular dessa doença com medicamentos, entre outros benefícios para grupos de pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa, além da indústria farmacêutica. Celso Blatt, químico de aplicações da Agilent no Brasil, diz que o novo sistema reduz o tempo de análise de horas para poucos minutos. "No chip cabem de 8 a 40 microlitros de amostra e o fluxo da fase móvel é de 300 nanolitros por minuto contra 1
glaterra. Lançada no final de 2005 pela Isis Innovation, braço de transferência tecnológica da instituição, a empresa é a qüinquagésima unidade criada como fruto do esforço tecnológico da universidade. Desenvolvido inicialmente como um marcador de doenças cardíacas, o sensor possui várias aplicações. Pode ser usado para detecção de moléculas de poluentes de água potável e de agentes químicos usados na fabricação de armas biológicas, além de ser utilizado em pesquisas de se-
Brasil Descanso para os braços
Equipamento é adaptável a vários modelos de carros
Novo sistema redu: tempo de análise e facilita o estudo de medicamentos
milímetro por minuto do equipamento convencional", diz Blatt. "Outra vantagem é a diminuição de um problema cada vez maior que é o descarte de reagentes e solventes com o uso de amostras menores." •
■ Celeiro tecnológico na Inglaterra Um "nanolaboratório" em um chip. Assim pode ser definido o sensor desenvolvido pela Oxford Nanolabs, uma empresa que nasceu na Universidade de Oxford, na In-
qüenciamento genético. O "nanolaboratório" é baseado em cavidades protéicas porosas e nanométricas estabelecidas em finas membranas. A análise acontece quando a molécula se liga ao nanoporo e recebe um sinal elétrico. O equipamento é tão sensível que é capaz de identificar a presença de uma única molécula em um determinado composto. O objetivo da Oxford Nanolabs é desenvolver uma série de produtos de última geração a partir dessa plataforma tecnológica de biossensores. •
Motoristas que costumam fazer viagens longas ou dirigir por muito tempo já devem ter sentido o desconforto causado por essa atividade. Além de sofrer com dores no pescoço, resultado da imobilidade da cabeça necessária para manter a atenção no caminho, é preciso ainda encontrar um lugar para descansar os braços. Apenas automóveis e camionetas de luxo contam com apoios de braço instalados originalmente pelos fabricantes. O objetivo desse equipamento é diminuir o trabalho da musculatura cervical, evitando mais dores e desconforto que podem prejudicar o reflexo do condutor. Para minimizar o problema, o professor Jorge Sérgio Pérez Gallardo, da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolveu e está em processo de obtenção de patente de um braço de cadeira removível para automóveis, ônibus e caminhões.
O dispositivo é constituído por um tubo metálico que é encaixado entre o assento e o encosto do banco do motorista, e dois braços articulados. Na posição de utilização, eles ficam na horizontal e permitem ao motorista apoiar os braços durante a condução. Quando não quiser usar o equipamento, basta rebatê-los para uma posição semivertical, junto ao encosto do banco. "O invento é de fácil instalação e fica preso ao banco do motorista com uma correia de fio sintético ajustada na parte de trás por uma fivela", diz Gallardo. Para maior conforto do motorista, o tubo metálico pode ser recoberto com espuma plástica. "É um equipamento muito simples e eficiente. Eu testei numa viagem de 15 mil quilômetros até o Chile, em que cruzei a cordilheira dos Andes e durou um mês. Com os braços articulados instalados nos bancos do meu carro ficou muito mais confortável dirigir", lembra Gallardo. •
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Exportação do arroz preto O»
■ Finep premia seis vencedores Duas instituições e quatro empresas venceram o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica 2005, concedido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. Na categoria Média/Grande Empresa foi premiada a Ouro Fino, de Ribeirão Preto (SP), que desenvolve, produz e vende produtos veterinários e tem como parceiros a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal de Minas Gerais, entre outras instituições. A Pctel, de Goiânia (GO), escolhida como pequena empresa, desenvolveu equipamentos eletrônicos como o gravador telefônico que grava diretamente no disco rígido do computador. Na categoria Instituição de Ciência e Tecnologia o vencedor foi o Parque de Desenvolvimento Tecnológico do Ceará (Padetec), que conta com apoio da Universidade Federal do Ceará. A Bosch, de Campinas (SP), foi pre-
Acostumados com o branco na companhia do feijão, no sushi ou no risoto, todos os apreciadores de arroz têm agora a opção preta que começou a ser plantada no Brasil a partir de uma variedade desenvolvida pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Já com lavoura comercial em Pindamonhangaba (SP) e presente em pratos de alguns restaurantes de Campos do Jordão (SP), a variedade IAC 600 também começou a ser plantada no Estado do Variedade IAC 600: lavoura Texas, nos Estados Unidos. Num acordo entre o IAC e Tanto os Estados Unidos a Texas Rice Improvement como o Brasil consumiam Association (Tria), associa- apenas arroz preto imporção produtora de semen- tado. Pelo repasse das setes, a variedade brasileira já mentes, o IAC vai receber é plantada no solo texano, US$ 0,50 por cada saco de que possui características arroz vendido. A pesquisa climáticas semelhantes às foi iniciada em 1994, sob a do Estado de São Paulo. coordenação do pesquisa-
miada na categoria Produto, pelo desenvolvimento da tecnologia Flex Fuel, sistema que reconhece e adapta, automaticamente, o gerenciamento do motor de um carro para qualquer proporção de mistura de álcool e gasolina
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que esteja no tanque. A unidade da Braskem instalada em Triunfo, no Rio Grande do Sul, ganhou na categoria Processo, pelo modelo de negócio e produção de copos descartáveis. A Universidade Federal de Santa Catarina foi
no Texas
dor Cândido Ricardo Bastos. O arroz do IAC possui sabor e aroma acastanhado, consistência macia e boas qualidades nutritivas, como menos calorias e gordura que o branco, além de ser, para o agricultor, resistente a várias doenças. •
vencedora em Inovação Social, por um projeto de cultivo de ostras desenvolvido no Laboratório de Moluscos Marinhos, repassado para pescadores artesanais. •
■ Inovações ganhadoras Um sistema eletrônico para auxiliar a mobilidade de deficientes visuais, um aparelho para facilitar a automação em laboratórios e um transistor capaz de melhorar o desempenho de redes ópticas nas telecomunicações são os três vencedores da categoria Pesquisadores, respectivamente, do Io Prêmio Werner von Siemens de Inovação Tecnológi-
ca, em 2005. O primeiro lugar é do doutorando Mauro Conti Pereira e do professor Fuad Kassab Júnior, do Departamento de Engenharia de Telecomunicações da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Conti, também professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), desenvolveu um equipamento com uma câmara e sensores portáteis interligados a um processador que permitem a um cego ser informado, por meio de eletrodos colocados sobre a sua pele, se há obstáculos em uma sala, por exemplo. O segundo colocado é o
Pof), foi o terceiro colocado com o transistor óptico para amplificação, chaveamento e detecção de fontes de laser ultra-rápido usado em redes de fibras ópticas. O dispositivo aumenta a velocidade de transmissão em futuros equipamentos empregados nas telecomunicações. Os primeiros transistores desenvolvidos por Conforti foram mostrados em Pesquisa FAPESP n° 81. •
Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br
■ Microsoft recebe propostas A Microsoft anuncia mundialmente uma nova chamada de propostas de projetos
Kit educacional: em azul, a proteína ribonuclease
Proteínas em três dimensões
projeto bomba de fluxo piezoelétrica, do pesquisador Paulo Henrique Nakasone e do professor Emílio Carlos Nelli Süva, do Departamento de Engenharia Mecatrônica da Poli-USP. O efeito piezoelétrico torna o material capaz de converter a energia elétrica em mecânica e vice-versa. Esse princípio na bomba proporciona um controle mais fino da dosagem de reagentes e de sangue em processos biotecnológicos. O professor Evandro Conforti, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas, que participa também do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Ce-
na linguagem computacional Phoenix Shared Source Common Language Infrastructure (SSCLI): Compilation and Managed Execution. As propostas serão aceitas até o dia 17 de janeiro de 2006. O objetivo é encorajar pesquisas interdisciplinares que examinem as relações entre ferramentas, compiladores, ambientes e desenvolvimento de código gerenciado e sistemas operacionais. Trata-se de uma oportunidade para desenvolvimento de tecnologias-chave para arquitetura.NET. Para mais detalhes: http://research.microsoft. com/ur/us/fundingopps/ RFPs/Phoenix_SSCLI_RFP. aspx. •
Mostrar como é a estrutura das proteínas, compostos orgânicos constituídos de longas cadeias de aminoácidos codificados pelos genes e encontrados em todos os seres vivos, é o objetivo de um kit desenvolvido pelo bioquímico Richard Garratt, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP), que possui um pedido de patente internacional. O kit de proteínas é formado por fios e peças de plástico coloridos que simbolizam estruturas protéicas encontradas em proteínas como a hemoglobina, responsável pelo transporte de oxigênio no sistema sangüíneo, e a insulina, que controla os níveis de glicose no sangue. Um dos maiores problemas de pesquisadores e estudantes de biologia molecular e biologia estrutural é visualizar como essas proteínas se
ligam e interagem umas com as outras. Essa dificuldade deve-se ao fato de que as cadeias de aminoácidos são estruturadas em três dimensões. O entendimento da estrutura das proteínas é uma tarefa extremamente complexa, porém fundamental para a compreensão da atividade dessas moléculas nos organismos. O kit permite a montagem de estruturas de proteínas ou parte delas de forma rápida, didática e simples. Os modelos simulam tridimensionalmente uma das representações utilizadas em livros e publicações especializadas, as de cilindros e setas. Título: Modelo tridimensional para representar estrutura ou parte de estrutura protéica e kit Inventores: Richard Charles Garratt e Luciano Douglas dos Santos Abel Titularidade: USP/FAPESP
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Q TECNOLOGIA INOVAÇÃO
Texturas e sabores Da língua eletrônica ao analisador de pó de café, novos equipamentos são licenciados pela Embrapa DlNORAH ERENO
s consumidores de café serão os principais beneficiados com duas novas tecnologias que estão previstas para chegar ao mercado até o final deste ano. Uma delas é a língua eletrônica, aparelho desenvolvido para avaliar atributos da bebida, como acidez, aroma, sabor e consistência, e a outra é o analisador de alimentos, usado para detectar impurezas em amostras de café em pó. As duas tecnologias fazem parte de um pacote de cinco inovações desenvolvidas na Empresa Instrumentação Agropecuária, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária instalada em São Carlos (SP), licenciadas em dezembro para empresas criadas especialmente para transformá-las em produtos. As outras são um tomógrafo portátil para avaliação de solos e madeira, um fotorreator para o tratamento de resíduos de pesticidas em água e um processo de transformação do lodo de esgoto em adubo. A transferência das inovações faz parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento de Novas Empresas de Base Tecnológica Agropecuária e à Transferência de Tecnologia (Proeta), da Embrapa, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que teve início em abril de 2004, quando foi assinado convênio de parceria em incubação de empresas com a Fundação Parque Alta Tecnologia de São Carlos (ParqTec) para estimular a criação e o desenvolvimento de micro e pequenas empresas que utilizem tecnologias desenvolvidas ou adaptadas pela instituição. "Como são produtos novos, os empreendedores precisam de respaldo para enfrentar os desafios tecnológicos que têm de ser superados para chegar ao produto final", diz Ladislau Martin Neto, chefe-geral da Embrapa Instrumentação Agropecuária. Um traço que une os empreendedores escolhidos é o profundo conhecimento e envolvimento com as novas tecnologias. A trajetória do pesquisador Edson Roberto Minatel é bem ilustrativa. 62 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Formado em ciência da computação e com doutorado em física computacional, desde 1991 ele faz estudos na Embrapa na área de desenvolvimento de software. Em 1999 ele obteve o primeiro repasse de tecnologia de um sistema para análise de pulverizações agrícolas que desenvolveu na própria Embrapa em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e o Instituto Agronômico (IAC), órgão ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, com sede em Campinas. "Hoje o software é um caso de sucesso não só no Brasil como no exterior", diz Minatel, que exporta o produto para toda a América Latina e os Estados Unidos. Duas novas oportunidades surgiram com a abertura do processo de seleção para transferência tecnológica do analisador de alimentos e do tomógrafo portátil. "Já conhecia os trabalhos e vi o potencial das tecnologias como negócio." Para participar da seleção, ele abriu a empresa Whitepix, que vai cuidar dos aprimoramentos necessários para colocar os dois novos produtos no mercado e também desenvolver um projeto para análise de revestimento cerâmico totalmente automatizado. Efeito fotoacústico - O trabalho de pesquisa e desenvolvimento do sistema analisador de alimentos e café começou como um desafio para o pesquisador Washington Luiz de Barros Melo, físico que durante 13 anos trabalhou no Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira. Em 2000, o então chefe-geral da Embrapa Instrumentação Agropecuária, Paulo Cruvinel, queria saber se a técnica fotoacústica poderia ser usada para detectar adulterações no café em pó torrado e moído. Por essa técnica, utilizada em aplicações na física, química, engenharia, agricultura e medicina, o efeito fotoacústico surge quando um feixe de luz incide sobre uma amostra dentro de uma câmara fechada e cheia de gás. A luz é absorvida pela amostra, causando uma variação de pressão no gás resultante do fluxo de calor proveniente da própria amostra. Essa variação da pressão, re64 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
presentada por sons, é detectada por um microfone dentro da câmara fotoacústica. Cada som representa um comportamento estrutural distinto. Na década de 1980 o grupo do professor Helion Vargas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já havia feito algumas experiências com o café líquido, que resultou em publicações em revistas estrangeiras. Melo, por sua vez, havia estudado e testado a aplicação do método em polímeros condutores. a Embrapa, em 2002, Melo montou um equipamento básico para analisar amostras de café, mas diante dos vários problemas surgidos decidiu trabalhar com outra técnica, chamada fototérmica, que também utiliza luz e parecia mais promissora. Por esse método, a luz incandescente de uma lâmpada pequena incide no suporte onde é colocada a amostra de café, formado por uma pequena peça cilíndrica. A onda térmica gerada se propaga pela amostra até atingir um sensor pirelétrico, constituído de um filme fino polimérico e metalizado que transforma a variação do calor em tensão elétrica, repassada para os equipamentos eletrônicos e decodificada por um programa de computador. O programa transforma as informações em gráficos. "Quando vi que com o detector pirelétrico a situação prometia, entrei com um projeto na FAPESP", diz Melo. As peças que estão no equipamento foram construídas, em um trabalho meticuloso de artesão, pelo próprio pes-
quisador na oficina da Embrapa. Melo só chegou ao equipamento compacto, no formato atual, em agosto de 2004. De lá para cá algumas partes foram aprimoradas, como a peça em que a amostra de pó é colocada. "Ela foi modificada e, com isso, a pressão ficou distribuída e o sinal multiplicado por dez vezes", diz o pesquisador. Ele também desenvolveu e construiu um peneirador especial para café em pó, o que facilitou o seu trabalho na preparação das amostras para análise. Se a amostra analisada contém só café, sem nenhuma impureza, o sinal captado pelo detector e enviado ao computador corresponde apenas à estrutura e à composição do café. Quando o material está adulterado, com palha, milho, cevada, borra de café, açúcar queimado, o sinal muda completamente. "Dependendo da estrutura e composição do meio, o calor se propaga de maneira diferente." A pesquisa foi feita em parceria com a Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) e com o Sindicato das Indústrias de Café do Estado de São Paulo (Sindicafesp). A Abic é encarregada do programa Selo de Pureza, lançado em 1989, que garante a qualidade do café. Embora a legislação vigente, em prática desde 1938, considere puro só o pó de café com 1% de impureza, em algumas marcas esse porcentual chega a 85%. A metodologia utilizada atualmente para a identificação de adulterantes usa imagens fotográficas para analisar a superfície do pó, processadas digitalmente por um software. Em caso de suspeita de adulteração, as amostras são colocadas em clorofórmio para desengordu-
OS PROJETOS Caracterização de sensores poliméricos de interesse na agroindústria MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa
Desenvolvimento de metodologias usando as técnicas fototérmicas fotoacústica e fotopirelétrica para a determinação de impurezas adicionadas intencionalmente em alimento MODALIDADE
COORDENADOR Luiz HENRIQUE CAPPARELLI MATTOSO ■ Embrapa INVESTIMENTO
R$ 32.470,12 e US$ 31.794,55 (FAPESP)
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR WASHINGTON LUIZ DE BARROS MELO
Embrapa INVESTIMENTO
R$ 19.913,36 e US$ 27.950,00 (FAPESP)
-
Análise de alimentos em pó, como o café, é feita com luz e calor
pelo menos dois anos a associação vem fornecendo amostras e auxiliando no direcionamento do trabalho para atender às necessidades das indústrias", diz Figueira de Paula. O equipamento ainda precisa de alguns ajustes, como ficar mais compacto, antes de ser oferecido ao mercado. A Cooperativa Regional de Cafeicultores em Guaxupé (Cooxupé), no sul de Minas Gerais, com cerca de 9 mil cooperados, já entrou em contato com a Embrapa para saber detalhes do produto. Em período de safra a cooperativa, que exporta mais de 1 milhão de sacas por ano, chega a fazer a degustação de 2.500 xícaras de café por dia.
rar e, depois de secas, é feita a separação de partículas. "É um processo demorado e subjetivo", diz Melo. A Abic é a principal interessada na nova tecnologia. O interesse é, na verdade, de todas as empresas do setor cafeeiro que pretendem conquistar maior espaço no mercado tanto interno como externo. Afinal o Brasil é o segundo maior mercado consumidor do produto, com 15 milhões de sacas por ano, em comparação com 20 milhões de sacas anuais nos Estados Unidos. A principal aplicação no momento é café, pelo que ele representa para a economia brasileira, mas o equipamento também analisa impurezas na farinha de trigo, no leite em pó, na farinha de caju e em outros alimentos. A outra inovação repassada pela Embrapa, a língua eletrônica, é um
sensor de paladar construído com um filme nanoestruturado de apenas algumas camadas de moléculas poliméricas. A língua eletrônica não analisa impurezas do café, mas as características de cada tipo dessa bebida. As diferenças em outros líquidos, como a água e o vinho, também podem ser avaliadas pelos sensores do equipamento desenvolvido por um grupo de pesquisa coordenado pelo engenheiro de materiais Luiz Henrique Capparelli Mattoso. Mas o repasse feito para a empresa BR Sensor restringe a aplicação para o café. A frente da empresa está o engenheiro de materiais Gustavo Figueira de Paula, que participou do projeto durante o seu trabalho de mestrado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A Abic também é parceira no desenvolvimento da língua eletrônica. "Há
Exame acurado - A terceira tecnologia licenciada utiliza metodologia testada e aprovada pela Faber-Castell, empresa que produz 1,5 bilhão de lápis por ano. Trata-se do tomógrafo portátil, que emprega o mesmo princípio do equipamento usado na medicina em exames de tomografia para avaliar a densidade da madeira. Essa avaliação é necessária porque as madeiras de pínus, usadas para fabricação de lápis, são divididas em categorias diferentes, de acordo com o tipo do produto a que se destinam A seleção das matrizes para a clonagem é feita a partir de medidas tomadas no campo. Com a tomografia, o resultado é conhecido na hora. "O mapa de distribuição de densidades nas áreas do corte tomográfico em cada ponto da árvore mostra rachaduras ou falhas existentes na madeira", diz o pesquisador João de Mendonça Naime, coordenador da pesquisa. Pelo método tradicional, é necessário retirar um pedaço da árvore do tamanho de um lápis, que é levado para o laboratório e avaliado com um equipamento de raio X. Além de ser um método invasivo para a árvore, o exame fica PESQUISA FAPESP 119 • JANEIRO DE 2006 ■ 65
comprometido porque apenas um pequeno pedaço da madeira é analisado. "Sem essa avaliação, muitas vezes somente depois de três anos no campo sabe-se com certeza se aquela é a melhor matriz", diz Naime. Ataque de cupins - Além de avaliar a densidade da madeira no campo, o método serve para verificar as condições de árvores urbanas, muitas delas comprometidas pelo ataque de cupins. Para essa aplicação, é necessário utilizar fonte de radiação de maior energia por causa da diferença do diâmetro da árvore, plantada com finalidades industriais, mais fino se comparado com o das ornamentais usadas nas cidades. Para o pínus, por exemplo, a tomografia é feita com uma fonte de césio 137, radioisótopo que emite radiação gama. Já para árvores com diâmetro maior é preciso uma fonte radioativa como o cobalto 60. Empresas de papel e celulose já demonstraram interesse na inovação para controle da qualidade da madeira. O setor de frutas, principalmente para exportação, está entre os clientes potenciais do fotorreator para o trata-
mento de resíduos de pesticidas em água, uma das tecnologias licenciadas. Durante o processo de limpeza das frutas, a água utilizada fica contaminada com resíduos dos agrotóxicos aplicados. O grande problema que aflige as packing houses, como são conhecidos os galpões de embalagem que cuidam da seleção e empacotamento de produtos agrícolas, é como tratar essa água descartada. Como os equipamentos disponíveis atualmente para fazer esse tratamento são caros, os pesquisadores da Embrapa, orientados por Martin Neto, o chefe-geral da unidade da Embrapa, e Débora Milori, pesquisadora em óptica, começaram a procurar uma alternativa de baixo custo. Para isso desenvolveram um equipamento, em fase de protótipo, que utiliza um processo de fotodegradação para decompor o pesticida presente na água. A técnica conhecida como fotocatálise usa uma fonte de luz ultravioleta e um catalisador, no caso o dióxido de titânio, um semicondutor responsável por acelerar a reação química que quebra as moléculas de pesticidas, retirando-as da água.
"Nossa previsão é, nos próximos seis primeiros meses, fazer a adequação do produto, o que vai depender da quantidade de resíduo gerada e do volume de água, e até o final do ano estar com ele no mercado", diz José Roberto Garbin, da empresa Natureza Ativa, que vai cuidar do aprimoramento da tecnologia. Garbin participou do desenvolvimento do equipamento, feito durante a sua pesquisa de doutorado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Embrapa. O tema da tese era o estudo de mecanismos de reação na fotodegradação de pesticidas. Afora as packing houses, outros nichos de mercado que a empresa pretende atender são os produtores rurais, que têm de lavar diariamente as roupas de proteção e os equipamentos usados na aplicação de pesticidas, além das empresas que fazem a reciclagem das embalagens usadas desses produtos. Transporte caro - A reciclagem de resíduos provenientes do tratamento de esgoto residencial também está contemplada na tecnologia repassada para
Idéias vencedoras O processo de construção de lagos artificiais para fins ambientais e disponibilidade de água foi o vencedor na categoria Gestão de Recursos Hídricos do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social de 2005. A proposta é premiar projetos que aliem saber popular, organização social e conhecimento científico. O projeto dos lagos se baseia no revestimento do fundo desses ambientes com lona plástica. Ele foi desenvolvido pela Embrapa Trigo e Sorgo, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária instalada na cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais. Coordenado pelo engenheiro agrônomo Luciano Cordoval de
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Barros, os lagos lonados já são usados por frigoríficos, criadores de suínos e comunidades que possuem hortas comunitárias. Nos dois primeiros casos os lagos servem para depósito e limpeza da água com dejetos, por meio de tratamento via bactérias aeróbias e anaeróbias que consomem todo o material orgânico existente no líquido sujo, antes de ele ser aproveitado em outras funções nas propriedades ou despejado em rios ou córregos. No caso das hortas ou no uso em pesque-pague e piscicultura, a lona, que possui sobre ela uma camada de 25 centímetros de terra, não deixa a água
penetrar no solo e funciona como um reservatório, quando a captação de rios não é suficiente em determinadas épocas do ano. Além dos R$ 50 mil do Banco do Brasil, o projeto Lago de Múltiplo Uso para Proteção Ambiental também recebeu R$ 5 milhões da Petrobras, que foi parceira na organização do prêmio, para o financiamento da disseminação da tecnologia no Brasil. O banco contou, ainda, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a empresa de auditoria Price WaterhouseCoopers. O prêmio tem três categorias temáticas e a de recursos hídricos é uma delas. As outras
a empresa Aliança Orgânica. O processo de aproveitamento do lodo de esgoto começou a ser desenvolvido em 2003, sob a coordenação do pesquisador Wilson Tadeu Lopes da Silva, e contou com a participação do ex-pesquisador da Embrapa Antônio Pereira de Novaes. A idéia surgiu de uma demanda da construtora Sobloco, responsável por um condomínio na Riviera de São Lourenço, em Bertioga, no litoral de São Paulo. Depois de o esgoto do condomínio ser tratado por um processo físico-químico, no qual o sólido fica separado do líquido, a água ficava límpida, mas sobrava o lodo. Esse material tinha de ser
transportado em caminhões até o aterro sanitário de Mogi das Cruzes, cidade distante cerca de 60 quilômetros, o que encarecia o processo de tratamento. "Esse lodo tem matéria orgânica e nutriente para as plantas, que pode ser aproveitado na agricultura se for bem trabalhado", diz Lopes da Silva. O processo desenvolvido, que elimina os germes patogênicos e estabiliza a matéria orgânica para que seja incorporada ao solo como adubo, é composto de duas etapas. Primeiro é feita uma mistura do lodo com poda verde de árvore e grama em proporções adequadas, em leiras, montes retangulares. As
bactérias presentes naturalmente no meio entram em atividade e começam a se alimentar dos nutrientes. Dentro desses montes de matéria orgânica a temperatura chega a 65°C por conta dessa atividade microbiana. "Nessa temperatura os microorganismos patogênicos, como os coliformes fecais, não sobrevivem", diz Lopes da Silva. Na segunda fase do processo, chamada de etapa de maturação, é inoculada outra bactéria para melhorar o húmus, um tipo de adubo orgânico. O processo já foi testado com sucesso, mas caberá à empresa Aliança Orgânica, cujos sócios trabalham com saneamento básico e fertilizantes orgânicos, transformar a tecnologia em produto, porque o sistema precisa ser moldado para cada cliente, principalmente devido à análise da composição do lodo nos diferentes tipos de esgoto. Pelos planos das empresas que licenciaram as tecnologias, mesmo com os ajustes necessários nessa atual fase de transição, todas deverão estar no mercado em no máximo um ano. Os contratos assinados estipularam o pagamento à Embrapa de 5% de royalties sobre o faturamento. •
Tecnologia social: projetos que unem saber popular, organização social e conhecimento científico
duas foram a dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujo ganhador foi o projeto Escola Ambulante, da Associação Beneficiente Santa Fé, de São Paulo, e a da Educação, com o projeto Conexões de Saberes, do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. O primeiro é um sistema de apoio educacional e pesquisa da origem e das condições da família de crianças e adolescentes que vivem nas ruas das cidades. A proposta da Escola Ambulante é desenvolver uma escola em uma praça onde essas crianças e adolescentes freqüentem para que eles possam ser mais bem conhecidos e entendidos, inclusive em relação à situação familiar. Esse
trabalho deve ser feito a partir da análise etnográfica (características antropológicas e sociais) a ser realizada em áreas com 4 quilômetros quadrados em 40 dias. O objetivo do projeto Conexão dos Saberes é manter jovens de origem pobre nas universidades públicas por meio de uma rede constituída por estudantes, moradores de comunidades populares, professores, pós-graduandos, que, além de prover uma bolsa de pesquisa e extensão financiada pelo Ministério da Educação para o aluno, instigue a participação comunitária e a produção de conhecimento com rigor científico sobre as comunidades e a aproximação com a universidade.
As demais categorias são regionais. Os ganhadores foram, na região Centro-Oeste, a Moderna Associação Campograndense de Ensino, de Campo Grande (MS), na Nordeste, a Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira de Fortaleza (CE), na Norte, a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas, no município de Gurupá (PA), na Sudeste, o Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), da cidade de Teodoro Sampaio (SP), e na Região Sul, a Pequeno Cotolengo Paranaense, de Curitiba (PR). Outras informações sobre o prêmio podem ser encontradas no site. www.tecnologiasocial.org.br.
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O TECNOLOGIA ENGENHARIA DE MATERIAIS
Uma cola à prova cTágua Produto selante com alto poder de adesão tem várias aplicações na construção civil e no consumo
em nenhuma campanha publicitária, em apenas três meses de 2005 fo^^k ram vendidos 3 mil tu^^ bos do adesivo Pesilox, ^1 uma cola com alto poVV der de adesão e resistente à água. As compras chegaram a mais de R$ 100 mil e foram feitas principalmente por clientes que acessaram o site da empresa Adespec - Adesivos Especiais, em funcionamento nas dependências do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em São Paulo. As instalações resumem-se a duas salas modestas, uma ocupada pela diretora da empresa, a engenheira química Wang Shu Chen, e a outra pelo reator, equipamento onde as substâncias químicas que compõem a formulação são processadas até se transformar em um líquido branco viscoso, pronto para ser embalado. As duas são separadas por corredores em que as paredes funcionam como uma espécie de mostruário ocupadas com diversos 68 • JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
materiais, como gesso, madeira, espelhos, fórmica, colados com o adesivo. A história de sucesso da Adespec começou no princípio de 2001, quando iniciou suas atividades abrigada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), instalado na Cidade Universitária em São Paulo. Mas o que motivou a criação da empresa para desenvolver novos produtos foi um problema de saúde enfrentado por Wang alguns meses antes, quando ainda trabalhava como gerente de desenvolvimento de uma grande empresa fabricante de adesivos. Após se dedicar durante mais de duas décadas a centros de pesquisa de multinacionais do setor, ela foi trabalhar em uma empresa que produzia basicamente adesivos à base de solventes e viu sua carga de glóbulos brancos, células responsáveis pela defesa do organismo, cair 30% em apenas três meses em conseqüência da proximidade com os solventes, como o tolueno, o acetato de etila etc. "E isso apesar de eu não ter contato direto com
esses produtos, pela função que exercia", diz a pesquisadora. O problema de saúde fez com que começasse a estudar a relação entre os solventes e seus efeitos no organismo humano e no ambiente. "Constatei que existem leis em várias partes do mundo que restringem ou proíbem o uso desO PROJETO Desenvolvimento de adesivos e selantes à base de poliéteres silil-terminados para uso em indústrias e construção civil MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADORA WANG SHU CHEN
■ Adespec
INVESTIMENTO
R$ 345.424,00 (FAPESP) R$ 500.000,00 (Pappe-MCT)
ses produtos, enquanto no Brasil ainda são tímidas as iniciativas nesse sentido, apesar de avanços nos últimos anos", diz. Como cada quilo de adesivo à base solvente é composto por 800 gramas de solvente, isso significa que quando o produto é aplicado para colocar a fórmica em um armário, por exemplo, a substância química fica durante muito tempo evaporando no ar, com prejuízos ao ambiente e à saúde. Na mesma fase em que desenvolvia seus estudos sobre o tema, a pesquisadora teve contato com alguns clientes que estavam à procura de alternativas aos adesivos à base de solventes vendidos no Brasil. Essa conjunção de fatores foi essencial para o desenvolvimento de adesivos, impermeabilizantes e selantes de alta performance e custos competitivos, sem solventes ou qualquer outro composto orgânico volátil. O primeiro resultado concreto surgiu em 2003, quando a empresa lançou a cola Prego Líquido, que não utiliza solventes ou substâncias tóxicas em sua
e condomínios sem necessidade de esnove minutos a uma hora, dependenformulação e elimina a necessidade de vaziá-las. Basta mergulhar e colar a peça do da aplicação. Para desenvolver o Pefurar, parafusar ou pregar. O produto danificada. Uma das vantagens do Pesilox a Adespec entrou com um projepode ser empregado na construção cisilox em relação aos selantes encontrato na FAPESP, dentro do Programa vil para fixação de rodapés, molduras dos no mercado é que em contato com Inovação Tecnológica em Pequenas decorativas, quadros, espelhos e cona umidade e a água o produto aplicado Empresas (Pipe), que permitiu a comduítes de PVC. É usado ainda em panão aumenta de tamanho nem forma pra de um reator e o início da planta redes de gesso acartonado (dry wall), bolhas. A fórmula não é revelada pela piloto para a pesquisa de adesivos e seque são muito porosas e não aceitam pesquisadora, mas a base da composição lantes isentos de solventes e baseados buchas, parafusos e pregos para fixaé o poliéter modificado. Na formulação em polímeros de alta performance, os ção de pisos de cerâmica, madeira, colaentram ainda plastificantes, antioxidanpoliéteres siloxanos. gem de fórmica, isopor, paredes com tes, além de agentes estabilizadores e abazulejos. sorvedores de luz e um catalisador. ma amostra prática da resisEmbora a fixação ocorra imeComo o produto se solidifica ao entência do material são os diatamente após a aplicação, o trar em contato com a umidade do ar, milhares de pés que diariaprocesso de secagem completa, o ambiente onde é preparado tem que mente atravessam o piso do também chamado de cura, deestar seco. Por isso é preciso cuidado desembarque de trens na esmora de uma a três semanas porpara retirá-lo do reator, quando é colotação da Luz do metrô de que o produto é à base de água. A cado em um outro equipamento, fabriSão Paulo, onde foi aplicado. demora compensa. O Prego Lícado sob medida para separar o líquido Testes de comparação feitos quido resiste a temperaturas de com os selantes encontrados que será colocado na embalagem. O 200 a 250° sem nenhum probleno mercado mostraram que Pesilox pode também ser utilizado na ma. Os testes para comprovação o Pesilox cola metal, plástiindústria e na construção civil como das propriedades do produto, coco, madeira, tecido, granito selante e junta de movimentação de mo resistência à tração, impacto, e pedra, tudo cora eficiência. "É a única prédios existentes entre duas paredes envelhecimento e impermeabilidade, cola à prova d'água", diz Wang. Essa proou com o teto. Quando aplicado como foram feitos nos laboratórios do Instivedação na pia ou piso do banheiro, priedade permite o conserto de azulejos tuto de Pesquisas Tecnológicas e do Inspor exemplo, ele tem ainda a vantagem quebrados de piscinas de clubes, hotéis tituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). No mesmo ano em que lançou o Prego Líquido, a Adespec passou à categoria de graduada no Cietec e tornou-se uma empresa associada. Foi quando firmou Na curta trajetória desde a sua criaem parceria com o Banco ABN Amro um convênio de cooperação Real e a Natura. Atuando na América Lação em 2001, a Adespec recebeu muitos técnica com o IPT, que permite à empresa ocupar um prêmios. O último deles foi entregue no tina desde 1999, o programa premia emfinal de novembro durante o II Fórum preendimentos sustentáveis com a conespaço temporário em suas de Investidores em Negócios Sustentácessão de apoio técnico na formulação dependências. veis, promovido pelo Programa New de planos de negócio e o estímulo a inCom o lançamento coVentures Brasil, em razão do modelo de vestimentos privados no setor. Durante mercial do produto, a empreo fórum, os planos de negócio dos emsa passou a se dedicar integralnegócio apresentado e pela sua contribuição ao desenvolvimento sustentável preendimentos selecionados foram apremente ao desenvolvimento do Pesilox Fixtudo, um adesino Brasil porque as colas que produz sentados a um júri composto por especialistas, responsável pela escolha dos não agridem o ambiente e os consumivo selante mais avançado que substitui com vantagens o sidores. Outras duas empresas também vencedores. Ainda em 2005, a Adespec ficou entre licone e o poliuretano, agreforam premiadas, a Tramppo Lighting, os vencedores da etapa regional Sudeste gando propriedades adicioque atua na reciclagem de lâmpadas e é do Prêmio Finep de Inovação Tecnológinais. "O Pesilox serve para residente no Centro Incubador de Emca, categoria Pequena Empresa, concedipresas Tecnológicas (Cietec), e a Emprecolar todos os materiais, indo pela Financiadora de Estudos e Projesa Brasileira de Reciclagem, de Santos, clusive pisos sujeitos à lavatos do Ministério da Ciência e Tecnologia. gem e em áreas de alto tráfeque utiliza plásticos reciclados em subsEm 2004, um ano após sair da incubadotituição à madeira na construção civil. go de pessoas", diz Wang. O ra do Cietec, a empresa recebeu o Prêmio O Programa New Ventures Brasil é principal diferencial do adeNacional Anprotec de Melhor Empresa uma iniciativa do Instituto de Recursos sivo em relação ao Prego LíGraduada, concedido pela Associação Mundiais (WRI), executado no Brasil quido é o tempo de secagem, Nacional de Entidades Promotoras de pelo Centro de Estudos de Sustentabilimuito mais rápido. São várias Empreendimentos Inovadores. dade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) formulações, com intervalos de secagem que variam de
Carreira premiada
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de poder ser pintado. O produto pode ser aplicado com espátula ou pincel, e os excessos são facilmente retirados com um pano seco, papel ou mesmo com a mão. Novas formulações - Além das embalagens com 360 gramas do Pesilex, com o produto padrão, outras formulações estão a caminho de ganhar o mercado, com diferentes tempos de secagem do produto, dependendo da aplicação. Elas foram desenvolvidas com base em demandas de empresas e por enquanto só são fornecidas sob encomenda. Testes mostraram que o produto também pode ser empregado para colar tênis, tecidos, velcro e em vários usos domésticos. São aplicações que já atraíram a atenção de fundos de investimento de capital de risco e de uma multinacional de fórmica norte-americana, que está fazendo testes de colagem com o Pesilox. A planta piloto instalada no IPT conseguirá produzir a quantidade necessária para que o produto seja distribuído no mercado em outros formatos, como embalagens de alumínio com menor quantidade. Por enquanto saem diariamente do reator dois lotes de 52 quilos cada um, vendidos principalmente para construtores ou consumidores que procuram a Adespec. Para o ano que vem os planos incluem a distribuição comercial nas grandes redes varejistas. Para isso foi essencial a escolha da empresa para integrar o Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), realizada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em parceria com a FAPESP. O financiamento do Pappe, que é destinado à fase de produção do produto, foi utilizado para a compra de um reator capaz de produzir por dia dois lotes de 100 a 150 quilos cada um do Pesilox. O mercado promete. Levantamento feito pela pesquisadora mostra que no Brasil o consumo doméstico de colas é de cerca de 80 milhões de tubos por ano. "Pelas nossas contas, acreditamos que ocupar 10% desse mercado, ou 8 milhões de tubos por ano, é bastante viável", diz Wang. • DlNORAH ERENO PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 71
O TECNOLOGIA ERGONOMIA
Encaixe perfeito Novo tipo de mouse proporciona mais conforto e evita dores musculares MARCOS DE OLIVEIRA
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ores nas mãos, nos braços e até no pescoço provocadas pelos movimentos repetitivos e intensos no uso do computador levaram o médico Luiz César Peres a projetar um novo tipo de mouse para diminuir os impactos físicos relacionados ao modelo convencional desse pequeno aparelho. A forma de manipular o novo mouse desenvolvido e patenteado por ele é semelhante à usada na escrita, como uma caneta ou um lápis, proporcionando menor esforço físico e mais conforto. Os primeiros experimentos com os protótipos, feitos pelo próprio médico, mostraram efeitos bem menos nocivos para articulações, tendões e músculos. Peres é professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), responsável pela disciplina de Patologia Pediátrica, e adquiriu as dores durante o desenvolvimento de sua tese de livre-docência e na formação de um banco de dados sobre autópsias pediátricas, num período de dois anos, entre 1998 e 2000. "Durante o trabalho comecei a ter fortes dores na mão e no punho e resolvi
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fazer modificações no mouse convencional", conta Peres. A primeira tentativa foi grudar um tubo de cola em bastão em cima do aparelho de modo que a mão ficasse numa posição de alavanca, mais reta e sem se movimentar muito. "Minha intenção foi evitar, principalmente, que a minha mão ficasse dobrada para trás, com os músculos e tendões contraídos, diminuindo a fadiga e as torções musculares. Percebi que o bastão de cola no mouse melhorava a dor e não causava o posicionamento forçado da mão." Mas mouses com bastões de cola grudados em cima não são nada prátiO PROJETO Desenvolvimento de um mouse para computador ergonômico baseado na biomecânica da escrita MODALIDADE
Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi) COORDENADOR Luiz CéSAR PERES - USP INVESTIMENTO
R$ 6.000,00 (FAPESP)
cos. A partir dessa premissa, e a vontade de fazer essa idéia evoluir, Peres imaginou um mouse ergonômico que pudesse ajudar os milhões de pessoas que sofrem do mesmo mal, chamado de Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho (Dort) ou Lesão por Esforço Repetitivo (LER), uma das principais causas de afastamento do trabalho em todo o mundo. Só no Brasil são mais de 500 mil casos por ano. Com a idéia na cabeça, Peres, em 2001, pediu a um fisioterapeuta, então seu futuro aluno de mestrado e atualmente já no doutorado na mesma universidade, Paulo Roberto Veiga Quemelo, para que estudasse a confecção do novo mouse. Poleqar forte - Os primeiros moldes foram feitos com papel machê e massa até atingir a forma final com uma base e uma haste móvel, como um joystick de jogos eletrônicos, com o diâmetro de uma caneta. São dois botões de sinalização que ficam posicionados na haste e são acionados pelo polegar. "Esse dedo é o mais forte e o menos suscetível ao cansaço", explica Peres. A haste é móvel somente até o usuário ajustar a melhor posição de conforto,
0 novo mouse é manipulado como uma caneta
depois ela é travada. "Esse detalhe facilita o uso individual tanto para destros como para canhotos." O desenho da base é irregular e próprio para o encaixe da mão, que fica apoiada de forma lateral e mais adequada, com a parte mais gordinha, a chamada região hipotenar, sobre a mesa. As linhas finais do novo mouse foram obtidas com a colaboração do professor Carlos Graeff, do Departamento de Física da USP em Ribeirão Preto. "Ele possui um laboratório onde pudemos elaborar o modelo funcional do novo mouse em relação à parte eletrônica." Assim, Peres, Quemelo e Graeff resolveram pequenos problemas funcionais e finalizaram os primeiros protótipos. Atualmente eles já são dez e possuem tecnologia óptica. Podem funcionar com ou sem fio e o movimento do cursor na tela do computador é determinado por um sinal de luz na base do aparelho, aceso quando ele é movimentado, em relação à mesa. A próxima fase do desenvolvimento do novo mouse é a dos testes clínicos que serão realizados neste ano no setor
de neurofisiologia do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, sob a coordenação do professor Wilson Marques Júnior. Serão 50 pessoas sem problemas físicos que vão executar várias tarefas no computador usando mouses convencionais e o novo, em dias alternados. Movimento muscular - Sobre a pele dos braços, em cima dos músculos, serão instalados eletrodos para o registro do movimento muscular. "Vamos analisar a contração dos músculos de acordo com a corrente elétrica que os atravessa e ao sistema nervoso. Também vamos verificar os ângulos produzidos pelas mãos dos usuários quando estão utilizando os dois tipos de mouse'' Depois os voluntários vão responder questionários para avaliação do grau de adaptabilidade, conforto e segurança. Na segunda fase dos testes clínicos serão investigados pacientes com vá-
rios tipos de problema físico, desde pessoas com LER, Dort até aquelas que tenham dedos amputados. "Depois realizaremos outros estudos que ainda não estão definidos." Esse trabalho vai agrupar, principalmente, alunos do curso de graduação de fisioterapia da USP recém-criado em Ribeirão Preto. "Vale ressaltar que todas essas pesquisas têm caráter acadêmico porque o mouse já pode ser produzido e comercializado", diz Peres. Embora já tenha chamado a atenção de algumas empresas, nenhuma manifestou ainda interesse concreto para licenciar o produto. O custo final do aparelho, estimado pelos seus criadores, deverá ser igual ou semelhante aos mouses ópticos de mercado, entre R$ 30 e R$ 40. "Na fabricação não há grandes dificuldades em relação aos outros mouses. A parte mais sensível é a haste com os botões", explica Peres. O novo aparelho que ainda não tem nome definido é objeto de desejo de todos aqueles que o conhecem, principalmente de professores e funcionários da USP de Ribeirão Preto. • PESQUISA FAPESP 119 • JANEIRO DE 2006 ■ 73
O TECNOLOGIA METALURGIA
União selada Técnica inédita permite soldar ligas de titânio e de aço para uso na indústria aeronáutica
YURI VASCONCELOS
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fabricação de aviões e a produção de equipamentos para a indústria petroquímica ganharam uma nova tecnologia que vai permitir a soldagem do titânio e do aço, dois materiais importantes para essas áreas e, ao mesmo tempo, incompatíveis quimicamente. O novo método baseia-se no uso de uma liga de níquel entre esses dois materiais e no emprego de uma solda a laser. A inovação é importante porque permitirá ampliar o uso desses materiais na produção de peças da fuselagem, das turbinas e no trem de pouso de aeronaves, além de compor tubulações e tanques de armazenamento na área química e petrolífera. A novidade é resultado de uma parceria entre pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) que já depositou uma patente sobre o novo 74 ■ JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 119
processo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). "Trata-se, provavelmente, de uma inovação mundial. Até onde sabemos, nenhum grupo no Brasil ou no exterior conseguiu soldar com êxito esses dois materiais", diz o físico Milton Sérgio Fernandes de Lima, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) do CTA. Segundo o pesquisador, o titânio e suas ligas são cada vez mais usados como materiais estruturais em muitas aplicações industriais em substituição ao aço e ao alumínio. As vantagens do titânio estão, principalmente, no fato de ele ser um material inerte que possui uma camada superficial impermeável a várias substâncias ácidas, alcalinas, além de fluidos do corpo humano. Assim, ele se torna mais resistente à corrosão e é biocompatível. "O titânio possui também uma excelente relação entre resistência mecânica e peso e suas ligas têm substituído o alumínio quando a temperatura de operação situa-se acima de 130°, no momento em que esse material não
pode mais ser usado", diz ele. "No entanto, um obstáculo à ampla utilização do titânio como material estrutural reside na sua baixa resistência ao desgaste. Para suprir essa deficiência, é necessário o emprego de ligas com melhores propriedades relacionadas ao atrito, ao desgaste e à fadiga, como o aço." O níquel foi escolhido como material intermediário porque tem propriedades que o tornam metalurgicamente compatível com o aço e com o titânio. Até agora a única forma industrial de unir esses dois materiais era pelo uso de rebites, pequenas peças cilíndricas e metálicas semelhantes a parafusos. A junção mecânica com essas peças, no entanto, apresenta problemas sérios que resultam da perfuração da estrutura. Além de provocarem tensões no material, os rebites deformam a região em torno do furo. Isso faz com que ocorra uma redução do tempo de vida da junção. A nova técnica desenvolvida pelos pesquisadores brasileiros soluciona esses problemas. Com o uso de uma
beira feita com 1,27 cm de diâmetro de aço inoxidável e 0,6 cm de diâmetro de titânio para uso em indústrias dos setores químicos e petroquímicos. "Esperamos estar com os dois protótipos prontos no começo deste ano", afirma o físico Wagner de Rossi, do Centro de Lasers e Aplicações do Ipen.
fina lâmina de níquel, de 0,1 a 0,3 mm de espessura, entre as peças de aço e titânio, e a aplicação de um laser pulsado, desenvolvido no Ipen, é possível soldar os dois materiais. "Na verdade, a junção mecânica de titânio e aço com níquel já era conhecida. Nossa inovação foi usar uma fonte de alta energia, como o laser, para fazer a solda", conta o engenheiro mecânico José Roberto Berreta, do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo. "Com o laser, é possível controlar melhor os parâmetros de soldagem, como a focalização do feixe de luz e a taxa de aporte térmico, o que é muito difícil de fazer em outros processos." Depois de demonstrarem a viabilidade técnica de obtenção dessa solda em corpos-de-prova, os pesquisadores estão trabalhando no desenvolvimento de dois protótipos de interesse da indústria para comprovar o sucesso de sua descoberta. O primeiro demonstrador será um dispositivo de encapsulamento de um circuito eletrônico com-
posto de uma cúpula de aço inoxidável sobre uma base espessa (de 1 a 3 mm) de titânio. Esse dispositivo tem largo emprego na indústria aeronáutica e costuma ser fixado na fuselagem do avião. O segundo protótipo é uma tuOS PROJETOS 1. Transformações de fases no sistema ferro-titânio induzidas por lasers de potência 2. Processo de soldagem a laser entre aço e titânio MODALIDADES 1. Linha Regular de Auxílio à Pesquisa 2. Instituto Fábrica do Milênio
COORDENADOR MILTON SéRGIO FERNANDES DE LIMA
IEA-CTA INVESTIMENTO 1. R$ 33.275,00 e US$ 835,23 (FAPESP) 2. R$18.500,00 (IFM-MCT)
-
Transferência de tecnologia - O projeto para desenvolvimento dessa nova técnica de soldagem a laser contou com apoio da FAPESP e foi realizado no âmbito do Instituto Fábrica do Milênio (IFM), uma organização apoiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia que reúne 600 pesquisadores de 31 grupos de pesquisas, entre eles o Ipen e o CTA. O perfil de atuação do IFM é focado na pesquisa em manufatura voltada para as necessidades da indústria nacional. Segundo Milton Lima, do CTA, no início, as pesquisas para fusão do aço e do titânio eram puramente teóricas. "Eu queria estudar as reações metalúrgicas que ocorriam entre o ferro e o titânio. Era um trabalho científico, mas logo percebi que tinha um forte apelo comercial", diz ele. "Estamos otimistas quanto à aplicabilidade dessa nova técnica." Em maio de 2005 Lima apresentou os resultados do projeto no 38° Seminário Internacional de Sistemas de Produção do Conselho Internacional para a Pesquisa Tecnológica de Produção, Cirp na sigla em inglês, realizado em Florianópolis, Santa Catarina. "É um dos mais prestigiados congressos internacionais em processamento de materiais, e nossos estudos foram muito bem recebidos", diz Lima. O objetivo do grupo é licenciar uma ou mais empresas para que explorem essa tecnologia. "Pretendemos fazer a transferência para o setor industrial, mas ainda não iniciamos os contatos com empresas. Primeiro, vamos preparar os protótipos de demonstração. Imaginamos que os principais interessados no processo serão companhias dos setores químico, petroquímico e, principalmente, aeroespacial, uma vez que as fuselagens, provavelmente, terão sua matéria-prima trocada de alumínio para titânio." Essa é uma área em que as exigências de testes e certificações são extremas. "E a existência de um processo que solde com sucesso esse material ao aço será fundamental." • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 75
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Matou a Liberdade e foi ao cinema
S/te revela documentos de como a ditadura censurou cineastas brasileiros
que os olhos não vêem o coração não sente. Foi com esse espírito que o regime militar atuou sobre a cultura brasileira, mutilando e proibindo livros, filmes, peças e músicas, no longo período que vai de 1964 até 1988, quando, enfim, a nova Constituição aboliu de vez a censura no país. "Nosso esforço criador é imenso, mas a eficiência incrível, maravilhosa, racional que a censura faz para destruir tudo é maior ainda. Do serviço público, ela é uma das raras coisas que funcionam neste país", avisou o dramaturgo Zé Celso em 1968. A posteridade preferiu lembrar-se apenas do lado anedótico dos vetos de censores brucutus e analfabetos. "Esse é um erro grave. A censura afetou a formação de gerações inteiras e foi fundamental na manutenção do regime ditatorial, que não teria durado tanto sem ela. Para os militares, era uma estratégia fundamental destruir a identidade cultural do Brasil e substituí-la pela deles. E o lócus preferido dessa ação foi o cinema", explica Leonor Souza Pinto, autora da tese de doutorado "Memória da ação da censura sobre o cinema brasileiro", defendida na Universidade de Toulouse, e coordenadora do recém-lançado site homônimo (www.me-
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Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, de Hector Babenco
A impressão que fica no espectador é que polícia é causa de insegurança e temor"
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Os cafajestes, de Ruy Guerra
Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade
"Filme mostra lado delicioso de práticas imorais e viciosas'
"História de preto que vira branco e vai dar vazão aos seus instintos sexuais'
moriacinebr.com.br), que dá acesso gratuito e irrestrito aos processos de censura, incluindo pareceres dos censores, em edição facsimilar. Üartindo da proposta de que "é preciso expor para guardar", esse primeiro bloco do projeto disponibiliza 6 mil documentos sobre 175 filmes brasileiros, parte do acervo sobre a censura que, desde os anos 1990, está no Arquivo Nacional, em Brasília. "A pesquisa a esses processos derruba a idéia de que a censura era só tacanha, mal-informada e malformada, revelando-se um instrumento organizado, importante pilar de sustentação para a consolidação do regime militar", afirma. "A ditadura reconhecia o cinema brasileiro como o meio de formação de mentalidades e fortalecimento da identidade nacional e, por isso, não mediu esforços no investimento de uma censura cada vez mais eficiente que não 80 ■ JANEIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP119
só impediu cineastas de se expressar, mas também acabou por ajudar a afastar o público do cinema nacional." O crítico Inimá Simões, autor de Roteiro da intolerância, igualmente não subestima o poder do veto. "O cinema nos anos 1960 e 70 era um grande instrumento de mobilização e houve, por parte da ditadura, um claro projeto de controle da sociedade por meio dele. A censura não era, como se pensa, feita por um bando de idiotas." Toda regra, é claro, admite exceções. Como o censor que via nos filmes de kungfu um canal de difusão de teses maoístas. Ou um seu colega que definiu assim o enredo de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade: "História de um preto que vira branco e vai para a cidade dar vazão aos seus instintos sexuais, voltando depois para a selva". Em Como era gostoso o meu francês a censura podia ser motivada por brios nacionais ofendidos em sua macheza: "O pênis do francês é maior do que o dos índios brasileiros. Assim não dá", reclamou um policial para o diretor do filme, Nelson Pereira dos Santos.
O que começou comédia terminou como tragédia."A censura foi se adaptando às necessidades políticas da ditadura de forma gradativa. Até 1967 ela é moralista, em sintonia com anseios da sociedade conservadora brasileira e da Igreja, ambas simpatizantes e atores do golpe", conta Leonor. Nesses tempos, a proibição total era rara e o que abundava eram os cortes. A censura está mais ocupada em tirar da vista do povo o que julgava inapropriado. O que incluía exigir até mesmo de Zé do Caixão que mudasse o fim de seu protagonista ateu em Esta noite encarnarei no seu cadáver, obrigando-o a gritar: "Deus, eu creio em tua força". Eram os tempos da censura feita por esposas de militares, ex-jogadores de futebol, classificadores do Departamento de Agropecuária, contadores, apadrinhados, que passam a julgar o que os brasileiros podiam ou não assistir. Durante as sessões de censura, quando viam algo "impróprio", tocavam uma sineta e o projecionista colocava um papel no trecho a ser cortado. Ainda assim o cinema nunca deixou de ser visto pelos militares como um
O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha
A queda, de Ruy Guerra
"As cenas de violência são essenciais. Sugiro cortar as que têm pregação política"
"Ruy recebe muitas visitas e correspondência estrangeira e livros'
assunto sério. "O governo militar reconhecia o cinema como uma força transformadora importante. Prova disso foram os filmes do Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), responsáveis pela desmoralização da imagem de Goulart. Produzidos em 1962, já revelam a visão da direita sobre o potencial do cinema. São filmes de excelente qualidade técnica, mostrando um grande investimento, de capital e esforço, na sua produção." Segundo a autora, após reconhecer o potencial das telas, tornase uma obsessão da ditadura afastar o público do cinema autoral. Para sorte da nossa cultura, os cineastas insistiram em fazer filmes. "O crítico francês Georges Sadoul mandou, por meio de Roberto Farias, um recado para os diretores brasileiros: 'Façam seus filmes, como for possível. Não parem. Porque um dia isso vai passar e, nesse dia, os filmes estarão lá, para contar essa história'", lembra Leonor. Se não conseguiram fazer as obras com que sonhavam, os diretores deixaram um legado notável de resistência, em especial após o AI-5, em 1969.
Mas já a partir de 1966 a censura vai mudando seu foco e, aos poucos, se preparando para a repressão à expressão política. Censores fazem cursos na Universidade de Brasília, com o crítico Paulo Emilio Salles Gomes, e nos pareceres começam a aparecer, lado a lado, cortes de teor moral e ideológico. Em El justicero, de Nelson Pereira dos Santos, de 1968, "a análise dos censores indica a presença de cenas e frases de baixo calão misturadas aos chavões conhecidos da propaganda subversiva". Todas as cópias foram apreendidas e destruídas. Nelson só verá o filme novamente anos depois. "Em 1967, diretores e chefes de censura, até então funcionários civis, são aos poucos substituídos por militares e, ao final de 1968, quase todo o quadro de direção é militarizado. Com o AI-5, e a extensão da censura a todos os produtos culturais, entra em cena a proibição bem organizada, feroz e implacável", fala Leonor. Cada vez mais os censores são treinados a descobrir mensagens subliminares seja onde for. Em Macunaíma, por exemplo, um censor mandou cor-
tar as cenas em que a atriz Joana Fomm aparecia com um vestido que teria as cores da Aliança para o Progresso, organização americana odiada pelos militares. O parecer de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, mostra essa mudança de olhar da censura: "Glauber aproveita bem o tema que escolheu para fazer, de forma sub-reptícia, pregação política. Sugiro cortes para as cenas em que o diretor faz isso. Quanto às cenas de violência, apenas chamo a atenção da douta chefia para as mesmas, pois considero que num filme todo violento elas são essenciais". Sangue, sim. Idéias, não. Veneno - "Vejo, senhor chefe, a utilização de simbologia ardilosamente arquitetada para impressionar espíritos desprevenidos, que pode servir de perigosa arma dentro da estratégia da ação subversiva, tendo o escopo de transmitir mensagens revolucionárias através de imagens aparentemente ingênuas, mas que contêm, sublinarmente, o veneno insidioso da propaganda comunista", alerta o parecer de Cabeças cortadas, PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 81
também de Glauber. A mulher de todos, de Rogério Sganzerla, traz uma lista de cortes cuja ordenação é sintomática: "1. Cortar a cena em que aparece um jornal exibindo o título 'Delfim Neto diz que 69 será ano de ouro'; 2. Cortar a cena em que a mulher aparece dançando com os seios nus; 3. Retirar da trilha sonora a frase 'não existe liberdade individual sem liberdade coletiva' etc". A cada linha, a "dialética" entre moral e política. "Uma cena mostrando um jovem de punhos fechados contra a opressão e cantando a Internacional estava no mesmo patamar de outra cena em que um casal aparece envolvido em atividades sexuais. A censura se esforçava em ressaltar o ideal da época, que preconizava estar o comunismo internacional entranhado no todo da vida cotidiana. Para os teóricos da segurança nacional, mostrar sexo antes do casamento, críticas ao autoritarismo dos i pais, revolta dos adolescentes, tudo eram 'manifestações do comunismo' para destruir as famílias e as instituições. Era um vírus invisível a olho nu, só percebido pelas pessoas preparadas, como os censores se sentiam", explica Inimá Simões. Nos anos 1970, porém, o mesmo governo que reprimiu, uma década antes, as pernas com meias de Fernanda Montenegro em A falecida, de Leon Hirszman, foi conivente com a ascensão da pornochanchada. "Essa é a pergunta que me faço ao analisar o segundo bloco de documentos da censura, em breve no site. Minha intuição, ainda inicial, me faz pensar que o estímulo à pornochanchada foi mais uma forma encontrada pela ditadura para afastar os espectadores dos cinemas. Ainda não estou certa, mas que outro objetivo haveria em incentivar um tipo de cinema que obviamente iria provocar a ira da burguesia conservadora e formadora de opinião?", questiona Leonor. Para o crítico Inimá, a leniência com os filmes de mulher pelada também funcionou como forma de distanciar os cineastas dos assuntos sérios. Davam dinheiro sem provocar dor de cabeça. No campo político, a boa vontade era mais difícil. Ou melhor, a estratégia cabotina desenvolvida por alguns censores em liberar filmes que achavam 82 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
que o público não iria entender e, logo, seriam politicamente inócuos. "Partindo da ficção, Glauber consegue fazer do irreal uma idéia mais perfeita que o original. Contudo o tema não agradará ao público leigo pela sua complexidade e mais ainda pela montagem elíptica da narrativa. Trata-se de um filme destinado a uma elite intelectualizada, pois sua construção e expressão é por demais cartesiana, buscando algo abstrato para expressar um problema político", observou um censor sobre Terra em transe, de Glauber, sugerindo a liberação do filme. Poucos meses depois, um documento confidencial pedia "informar qual censor foi responsável pela liberação dos filmes A chinesa, Terra em transe, esclarecendo, outrossim, qual o conteúdo ideológico dos citados filmes e se houve irregularidades na sua liberação". É preciso proibir quem não proíbe. té 1966 eram raros os pareceres que pedem avaliação das instâncias superiores. Os censores se sentiam seguros com a sua avaliação. A partir de 1968 isso começa a acontecer com regularidade, o que denota a mudança de direção que se estrutura dentro da censura, de certa forma um reflexo da dubiedade do embate entre militares da linha dura e os mais abertos. Com o AI-5, qualquer erro traz punições. Os censores passam a temer liberar um filme." Apesar de dissecado pelos censores Os inconfidentes, de Joaquim Pedro, não se achou motivo para proibir o filme (até professores foram convocados para ajudar a descobrir mensagens ocultas). Com o filme já em cartaz, um documento confidencial de 1972 pede esclarecimentos sobre a liberação: "A revista Manchete publicou uma reportagem afirmando que o 'filme era a história de Tiradentes que os livros não contam'. Há suspeita, então, de que o filme apresente conotações subliminares de caráter subversivo". Mesmo ícones nacionais podiam estar sujeitos a problemas. Para que o trailer de Roberto Carlos em ritmo de aventura, de Roberto Farias, fosse liberado, Delfim Netto enviou um pedido para o ministro da Justiça: "Venho solicitar abrir uma exceção no caso do fil-
me, pois se trata de história cujo protagonista é o mais admirado artista popular brasileiro". O cerco se fechava. "Passa a ser comum os filmes serem ou não liberados pelo diretor-geral da censura, que pegava os pareceres e dava a decisão final a seu bel-prazer", conta Leonor. Como em Pra frente, Brasil, também de Farias. "A mensagem principal é uma chamada à conscientização, que leva a meditar na perniciosa insegurança em épocas de convulsão intestina. Entretanto, diante da abertura política, não há como negar sua desobrigação censória", diz um parecer. Chega-se mesmo a pedir ao diretor para inserir, na abertura do filme, um recado do regime: "Esse filme se passa em 1970, num dos momentos mais difíceis da vida brasileira, quando o governo se empenhava na luta contra o extremismo armado. Seqüestras, mortes, excessos, momentos de dor e aflição. Hoje uma página virada na história de um país que não pode perder a perspectiva do futuro". Tudo parecia em ordem e o filme foi liberado pelos censores. Farias, porém, recebeu uma nota curta: "Comunico a V.Sa. que esta divisão, após o devido exame, não liberou para exibição o filme Pra frente, Brasil. Cordialmente, Solange Maria Teixeira Hernandez, diretora da Censura". Dona Solange pensou diferente dos colegas. Se os cineastas sofreram, o público perdeu o seu cinema. A necessidade de recorrer às metáforas nos filmes, como forma de vencer a censura, fez com que diretor e espectador se separassem. "Nós dificultamos a comunicação conscientemente. Não havia outra opção. A censura era sofisticada, chegava a ser cínica. 'Ninguém vai entender esses filmes', sempre me dizia um censor", lembra Nelson Pereira dos Santos. Para Leonor, ao serem obrigados a mudar estilos e linguagens para continuar a trabalhar, os cineastas caíram num hermetismo cujo resultado foi a desconfiança do público com os filmes brasileiros, ainda hoje não superada de todo. Muitas vezes, porém, a complexidade não era proposital. Vários filmes sofriam vetos tão extremos que chegavam aos cinemas praticamente incompreensíveis. "Melhor proibir o filme, pois os cortes são tantos que a fita vai virar um curta-metragem sem sentido", observa um censor. Alguns diretores colocavam cenas
polêmicas para criar "gorduras" que permitissem ao censor cortar sem proibir. "Parece ser essa a intenção do autor, Neville d'Almeida, com Piranhas do asfalto. Mas por se tratar de cinema nacional, demonstrando assim a nossa compreensão cristã às insanidades humanas, sugerimos a liberação do filme desse estróina, cópia carbono de Godard", esbravejou um censor em seu parecer. Seja como for, se não fosse Mazzaropi ou Os Trapalhões, o público corria ao ouvir falar em cinema nacional. Por vezes, até exigia a censura deles. Há várias cartas pedindo proibição de filmes em cartaz, denúncias levadas a sério e anexadas aos processos. "É um caso de polícia. Tem cenas que nem mesmo os mais vividos dos mortais pode suportar. Não sou puritana, pois conheço a vida como ela é. Mas estou com nojo de ser mulher. Tenho vergonha de me olhar no espelho. É preciso proibir esse filme", desabafou uma espectadora em carta ao ministro da Justiça após ver A dama do lotação. Exageros, pois a polícia estava alerta. Relatórios minuciosos confirmam
que Glauber, Ruy Guerra e Joaquim Pedro, entre outros, eram vigiados pelo Departamento de Ordem Política e Social (Deops). Com Glauber, a revelação tem um sabor especial: o cineasta queixava-se muito de ser espionado e acabou ganhando fama, injusta, de paranóico. Embraf ilme - Se esse não era o caso do diretor, com certeza a esquizofrenia era a doença de que padecia a censura. Afinal, boa parte dos filmes que eram censurados ou cortados no Brasil recebia o indicativo de "boa qualidade", que os qualificava a ser exibidos, na íntegra, no exterior (fato que ajudou a salvar muitas fitas para a posteridade, já que ficaram longe da tesoura dos censores). "Daí a criação pelo regime, em 1969, início do AI-5, da Embrafilme, que começa como empresa distribuidora. Isso mostra que a censura reconhecia a qualidade do nosso cinema e sabia como ele ajudava a construir, no exterior, uma imagem de um Brasil democrático, onde o governo 'incentivava cineas-
tas', embora, por aqui, eles penassem para aprovar um filme", observa a pesquisadora. Com a democratização, a censura mudou o seu foco e, aos poucos, deixou o cinema livre para atacar o novo grande veículo de comunicação da ditadura, a TV. "Filmes eram liberados para a telona e dilacerados na telinha, quando não eram programados em horários tardios. A visão de que a censura cede com a abertura política é falsa. Na verdade, seu trabalho continua da mesma forma, só que agora controlando a televisão e só se encerra com o fim da censura em 1988", ressalta Leonor. Diretores passam por uma segunda via-sacra para conseguir a veiculação de seus filmes na televisão. Hoje quem censura é o mercado. "A TV não transgride, não passa dos limites impostos pelo mercado. Se não houve o beijo gay da novela América, com certeza as pesquisas feitas pela Globo mostraram que ela teria mais a perder com patrocinadores do que a ganhar em pontos do Ibope", diz Inimá Simões. A tesoura do mercado vence até pedra. • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 83
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HUMANIDADES CIÊNCIA POLÍTICA
Revolução à cubana Estudos analisam influência da ilha de Fidel sobre a esquerda brasileira e a luta armada
CARLOS HAAG
ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA
Já houve um tempo no Brasil em que sonhar com uma cuba libre era bem mais do que misturar duas colheres de sopa de suco de limão, uma dose de rum, meia lata de Coca-Cola, tudo batido com alguns cubos de gelo. "Dificilmente seria possível tratar da história das organizações comunistas brasileiras nos anos 1960 sem destacar o papel da revolução cubana na elaboração do programa político dos comunistas brasileiros daquele período", avalia o historiador Jean Rodrigues Sales, da Unicamp, autor da recém-defendida tese de doutorado "O impacto da revolução cubana nas organizações comunistas brasileiras". De Leonel Brizola a José Dirceu, passando por Carlos Marighela e Luís Carlos Prestes, a esquerda (e, por algum tempo, antes do alinhamento cubano com a antiga União Soviética (URSS), mesmo setores à direita da política nacional festejaram Fidel Castro) admirou o grupo de "barbudos" que, em 1959, pôs fim à ditadura de Fulgêncio Batista e se espelharia neles para fazer também aqui uma revolução. Afinal, o próprio Che Guevara não escrevera que "o Brasil é realmen84 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
te um lugar para se travar uma batalha e devemos considerar sempre, em nossas relações com os países americanos, que somos parte de uma única família"? Isso ganhou ainda mais força em 1961, quando Cuba se declarou socialista e passou a sofrer uma intensa pressão dos Estados Unidos. "Nessa situação, interessava imensamente aos cubanos que outras revoluções eclodissem no continente para que diminuísse a pressão que Washington fazia sobre a ilha. Ao mesmo tempo, as esquerdas nacionais, anteriores ao golpe, se apoiavam no exemplo de Cuba, que aparecia como um caminho revolucionário vitorioso nas condições latino-americanas", explica o pesquisador. Assim, antes do golpe de 1964, lembra Jean Sales, já havia setores da esquerda que queriam seguir o caminho da luta armada, como, por exemplo, as Ligas Camponesas, grupo surgido em 1955, em Pernambuco, dirigido por Francisco Julião, que, se de início desejavam uma reforma agrária dentro dos limites legais, após a passagem de alguns de seus líderes por Cuba, entre 1960 e 1961, modificam o seu projeto político, para incluir um possível enfrentamento armado. Entre 1960 e 1961, alguns de seus membros foram a Cuba para um treinamento guerrilheiro. "Os
campos brasileiros foram desbaratados pela polícia, mas sua existência serve para chamar a atenção para a presença de propostas de enfrentamento armado que antecedem o golpe", observa. Massas - O PCB (então chamado partido Comunista do Brasil) de Prestes saudou também com entusiasmo a vitória de Fidel, mas de forma distorcida, já que vista como a corporificação da teoria apoiada pelos comunistas de que uma revolução democrático-burguesa havia antecedido a chegada ao socialismo e o papel de destaque nesse sucesso caberia ao Partido Comunista Cubano. "Depois da revolução cubana, o questionamento sobre a necessidade de um partido coordenando as massas chegara ao ápice. Para toda uma geração que acabara de ingressar na militância não fazia sentido acreditar que a revolta do povo só ocorreria sob a tutela de uma direção política", observa André Lopes Ferreira, historiador da Unesp. "Cuba era o exemplo mais citado pelos que discordavam dos partidos comunistas tradicionais, ligados à URSS, pois a revolução fora iniciada por um grupo de guerrilheiros, sem apoio do partido cubano, prova de que a direção política era dispensável dian-
te do desejo de transformação." O PCB não via com bons olhos a luta armada e rejeitava o chamado "foquismo" castrista, ou seja, dar prioridade à luta armada, iniciada por um pequeno grupo, cujas ações criariam as condições objetivas para a tomada do poder. A revolução, segundo esse postulado, começaria com um foco guerrilheiro e se alastraria, escreveu Régis Debray em Revolução na revolução?, livro em que, diz o historiador Daniel Aarão Reis, "ele exacerbou o papel da vanguarda e obscureceu as complexas forças que deram a vitória à luta em Cuba". "A leitura da revolução feita pelo livrinho de Debray, com a metáfora da mancha de óleo se espalhando pelo país, é uma grosseira falsificação da revolução cubana. A proposta do foco foi deletéria para as esquerdas de Nuestra América. Derramada sobre uma juventude esquerdista sem muitas margens legais de atuação, impaciente com a ineficiência notória dos velhos partidos comunistas, com suas derrotas seguidas, teve efeito de fogo sobre gasolina: incendiou imaginações, estimulando assaltos sem apoio e sem fundamento, caminho certo para a derrota", analisa Reis. Efetivamente, Havana acabou por se transformar no pomo da discórdia entre as esquerdas brasileiras, em especial após o golpe, quando vários setores da esquerda responsabilizaram a política inepta do PCB pelo sucesso dos militares. "Nesse momento, o modelo revolucionário cubano foi visto por muitos militantes como um exemplo que poderia servir no Brasil, principalmente no uso da luta armada contra a ditadura", diz Jean. Centenas dentre eles resolveram deixar o partido para formar organizações de esquerda revolucionárias, que tinham em comum o uso do foquismo como motor de seus projetos políticos. O PCdoB (Partido Comunista do Brasil), constituído em 1962 como dissidência do PCB (que passou então a se chamar Partido Comunista Brasileiro), igualmente se interessou por Cuba, mas na contramão, apresentando a revolta de Fidel como um exemplo da falência dos partidos comunistas li gados a Moscou e optando pelo mode Io chinês. Ainda assim, alguns historia86 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
dores, como Jean, vêem no ápice da ação armada do PCdoB, a guerrilha do Araguaia, não uma luta nos moldes maoístas (a guerra popular prolongada), mas um inusitado exemplo de foquismo à cubana. "Mesmo fazendo a defesa da guerra popular e criticando o foquismo, o PCdoB acabou, no Araguaia, tendo uma prática foquista. Ou seja, não houve trabalho político anterior à luta e quando esta começou os militantes ficaram totalmente isolados. Com a diferença do cenário (o campo em vez da cidade), o partido padeceu do mesmo isolamento dos grupos urbanos, que ele criticava por adotarem o foquismo como inspiração", explica o pesquisador. as, falando mal ou bem, Cuba passou a ser o centro de referência do debate que originou a chamada Nova Esquerda brasileira. Fidel, por sua vez, procurou por parceiros os mais diversos no Brasil. Depois do fracasso das Ligas e do advento da ditadura, depositou suas esperanças no exilado Leonel Brizola e, com o fracasso deste, a partir de 1967, voltou-se para a ALN (Aliança Libertadora Nacional) de Marighela, um dissidente do PCB. "Então as esquerdas ficaram socialmente isoladas, disseminou-se uma crise sem precedentes de representação dos partidos tradicionais de oposição", observa Marcelo Ridenti, sociólogo da Unicamp. A partir dos anos 1970, Cuba receberá levas de militantes para serem treinados como guerrilheiros, vindos, na sua maioria, da ALN, da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Mais do que nunca vigorava o caráter mítico da revolução cubana, a "vitrine revolucionária". "Esse mito (não falo no sentido de mentira) era muito mobilizador. Ser chamado a Cuba para treinar dava à organização uma legitimação forte diante dos outros grupos de esquerda brasileiros. Embora a ALN tenha sido escolhida pelos cubanos como a mais capacitada para dar início ao processo revolucionário no Brasil, Marighela, o seu líder, jamais aceitou que a contra
partida ao apoio fosse a interferência dos cubanos nos rumos da revolução brasileira", adverte Denise Rollemberg, historiadora da Uerj. "Outro aspecto a ser mencionado é a transfiguração do caráter político da proposta revolucionária em uma proposta ética-moral. A revolução tinha que ser feita, menos porque havia condições para tanto, mas porque era justa", analisa Reis. "Esta concepção, mais tarde, dificultaria a adoção da autocrítica ou a opção por um recuo, mesmo tático, visto como covardia." Sem ponto de retorno, militarizados e crentes de que Fidel efetivamente vencera Batista apenas com seu romântico grupo de guerrilheiros, os militantes partiram para a ação armada sem condições mínimas. "As organizações que tiveram seus quadros treinados na ilha só se beneficiaram disso de forma simbólica, pois os companheiros que ficaram no Brasil sentiam-se motivados imaginando seus colegas com os melhores instrutores de guerrilha", diz Ferreira. Infelizmente, a verdade era bem diversa. "Esses cursos, além de deficientes, eram voltados para luta no campo, a guerra de guerrilhas. A realidade brasileira acontecia nos centros urbanos e, assim, esse treinamento se distanciava do que era necessário, naquele momento, na luta que ocorria no Brasil", observa Jean. Ferreira lembra ainda que o índice de mortes dos treinados em Cuba era maior do que os que ficaram no país. "Agentes infiltrados avisavam da chegada de guerrilheiros, que eram logo capturados pelos órgãos de repressão. Considerados pelo regime como 'de alta periculosidade', foram os mais perseguidos pela sanha policial." José Dirceu, que treinou em Cuba (ao lado da atual ministra Dilma Roussef, aliás), apelidou os cursos de "vestibular para o cemitério". Apesar de tudo, ele teve sorte. Dos 28 militantes do grupo dissidente da ALN, o chamado Grupo da Ilha, que voltaram ao Brasil de Cuba, o ex-chefe da Casa Civil é um dos seis únicos sobreviventes. Será que a passagem por Cuba foi tão fundamental para o modus operandi do ex-deputado, como quer a grande imprensa? "Não há por que afirmar que uma experiência vivida há mais de 30 anos possa ser tão decisiva nas tomadas de posição de Dirceu ou de outros mem-
bros do atual governo que passaram por Cuba. Muita coisa aconteceu na vida desses militantes, da volta ao Brasil até a chegada do PT à Presidência em 2002", avalia Ferreira. Afinal, lembra o pesquisador, o PT foi criado quando a luta armada já não estava mais na ordem do dia, e sim a redemocratização, que fez com que esses antigos militantes dirigissem seu foco para disputar eleições, exigir a abertura do regime etc. "Creio que as culturas políticas de esquerda colaboraram para forjar a sociabilidade que existe hoje, em especial nas elites políticas, intelectuais e artísticas, por mais contraditório que isso possa parecer. Mas vale lembrar que o passado não é exclusivo dos membros deste
governo. O prefeito José Serra, por exemplo, deve também parte de sua capacidade administrativa a sua militância na Ação Popular, que se aproximou de Cuba e depois da China", lembra Ridenti. Reis é mais enfático: "O que prevaleceu em muitos dirigentes do PT foi a assimilação de comportamentos da elite brasileira, e isso não se aprendeu em Cuba, mas no treinamento realizado em Brasília", ironiza o historiador. Disney - Para ele, boa parte das esquerdas ainda se relaciona com Cuba como se ela fosse a "Disney da esquerda". "Vão fazer turismo ideológico, sem nenhum espírito crítico, condicionadas mais por um ressentimento visceral,
em parte justificável, contra os Estados Unidos, do que por um conhecimento de causa adequado das condições e da dinâmica da revolução cubana", alerta. Ridenti lembra, com propriedade, a citação de Max Weber, em A política como vocação: "O resultado final da atividade política raramente corresponde à intenção original do agente e, freqüentemente, a relação entre o resultado final e a intenção primeira é simplesmente paradoxal". Afinal, cuba libre, em Cuba, se chama apenas "cuba" e há tempos não é a bebida favorita da ilha, tendo sido criada no início do século passado, quando Havana e Washington (daí a Coca-Cola) andavam às boas, contra a Espanha. • PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 87
O HUMANIDADES ANTROPOLOGIA
Amor à venda Teses analisam a figura do homem no universo da prostituição feminina e ajudam a entender o turismo sexual
GONçALO JúNIOR
que motiva uma mulher a se tornar prostituta é uma discussão antiga. Necessidade apenas H H ou algo mais, que inclui prazer? Desvio de conduta? DemonizaM H ção? Estas são apenas algumas VW questões de caráter moral (e religioso) que sempre surgem quando o assunto é prostituição. Uma série de teses desenvolvidas no Núcleo de Estudo de Gênero - Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), porém, não só dá seriedade acadêmica ao tema como revela a surpreendente complexidade desse amplo universo marginal, pouco glamouroso, violento e que envolve até descaso do poder público quanto a combater, por exemplo, o turismo sexual internacional no país. A partir do olhar da antropologia e das ciências sociais, mostra também um outro aspecto da presença do homem nesse contexto que vai além da clientela - comerciantes, exploradores de mulheres etc. Este é o tema de "Os homens da Vila: um estudo sobre relações de gênero num universo de pros88 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
Muitos dos clientes são também namorados, amantes, maridos e protetores
PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 89
tituição feminina". A tese de doutorado, defendida em fevereiro de 2005 por Elisiane Nelcina Pasini, trata das convenções de masculinidade e feminilidade na Vila Mimosa, ponto tradicional da prostituição de baixa renda no centro do Rio de Janeiro. Num lento processo de aproximação e investigação, ela procurou compreender a diversidade de homens que são levados a procurar o lugar por diferentes motivações: sociabilidade, masculinidade, trabalho e sexo. Concluiu que parte desses freqüentadores acaba por ocupar diversos papéis, como clientela, namorado, amante, marido, protetor e até um "privilegiado" - situações que os mantêm presentes regularmente no local. No caso carioca, explica a autora, a proteção/cuidado forma um modelo de masculino que chama de "provedor simbólico", fundamental no universo de valores da prostituição. Está associado ao sustento financeiro e, sobretudo, à possibilidade de conferir um status distintivo ao receptor do provimento. Ao propor este debate, Elisiane pretende desvendar elementos que vão além do mundo da prostituição, de modo a apresentar meios que ajudem a entender práticas de relações de gênero em outros contextos sociais. Doutora em ciências sociais pela Unicamp, com mestrado em antropologia social pela mesma universidade e cientista social pela Universidade Federal Grande do Sul (UFRGS), ela estuda a prostituição há quase dez anos. Entre 1996 e 1997 investigou o assunto nas ruas centrais de Porto Alegre. Nos dois anos seguintes fez o mesmo na região da rua Augusta, em São Paulo. O interesse pela vila carioca surgiu quando percebeu que aquele era um lugar possível para conversar com os homens, uma vez que eles circulavam pelos mesmos pontos os quais ela tinha acesso. Percebeu que poderia observar tanto sua interação com as mulheres e com os outros homens, "bem como com a infinidade de sujeitos sociais que fazem parte do contexto estudado". Vila Mimosa nasceu da continuidade de uma das mais conhecidas áreas de prostituição feminina do Rio de Janeiro, a velha Zona do Mangue. Depois de conflitos, desapropriações de estabelecimentos de prostituição e a quase extinção do lugar, houve uma retomada das atividades do exercício da prostituição a partir de 1979, quando aconteceu a transferência do Mangue para a Vila Mimosa. O nome do novo local teria a ver com o bairro onde as prostitutas se instalaram inicialmente. Dez anos depois a vila seria novamente transferida de lugar, mas preservou o título anterior. A investigação levou a cientista a perceber a grande importância e constante presença dos clientesxomo parte constitutiva do universo da prostituição. Segundo ela, mesmo com sua importância, 90 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
estes sujeitos eram pouco conhecidos. "A procura por relações sexuais é uma, nem de longe a principal, dentre inúmeras razões que levam estes homens à Vila Mimosa." Elisiane ressalta que os freqüentadores não são exatamente o foco da tese, mas antes os indivíduos empíricos de quem ela partiu para discutir questões de gênero. Durante muitas noites, em diferentes horários e dias da semana, a pesquisadora conversou com homens e mulheres. "Fiz dos lugares onde realizam a atividade de prostituição o meu campo de pesquisa: mantive conversas individuais ou em grupos, observei a rotina e também conversei sobre o cotidiano fora dali." Ouviu das informantes sobre o que cozinhavam, a hora que acordavam, problemas com os filhos, contas para pagar, compras, mau humor, demora do ônibus, produtos de beleza, brigas etc. lisiane conta que o estudo lhe trouxe indagações que começaram a ser construídas nas duas outras pesquisas etnográficas que fealizou em Porto Alegre e São Paulo. Na primeira, concluiu que o homem marido, gigolô ou o cliente velho era quem protegia, provia financeiramente ou na parte afetiva e marcava uma diferença de status entre as prostitutas. Na outra, quem protegia a prostituta era uma mulher, sua companheira afetiva ou a cafetina, a "dona do ponto" - do lugar onde se espera e se negocia a prostituição. Na Vila Mimosa, porém, esse papel é masculino. Havia outras motivações para estarem ali além da mera busca por sexo: conversar, beber, olhar as mulheres, enquanto outros mantinham algum tipo de trabalho, como donos ou gerentes de estabelecimentos, taxistas, vendedores, entre outros. Em seguida, ela reuniu alguns elementos quê compunham agenciamentos desses diferentes modelos de masculinidade: não pagar para se relacionar sexualmente com uma prostituta; permanecer mais tempo no quarto de programa; receber e demonstrar publicamente os privilégios de uma prostituta; diferenciar-se da figura do cliente; prover mulheres; obrigar a prostituta que se tornou sua esposa a não se prostituir; não sentir ciúme; defender sua honra; relacionar-se com mulheres e gastar dinheiro com as prostitutas. Entre as conclusões possíveis, Elisiane observa que é "inacreditável" perceber que o debate da prostituição ainda hoje continue embasado pelas regras construídas pela Igreja. Ou seja, por um moralismo social, numa divisão entre o cidadão do bem e do mal, sem esquecer do lugar que a sexualidade das mulheres ocupa na sociedade brasileira. Além disso, prossegue ela, na área da antropologia os estudos sobre o tema são escassos, principalmente ao tratar de homens dentro da prostituição feminina. "Sempre tive como certo realizar
Apesar do mistério, prostitutas são mulheres de práticas comuns da vida cotidiana PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 91
uma pesquisa que demonstrasse aquilo que as prostitutas com quem convivi me mostravam: que eram mulheres de práticas comuns da vida vivida. Com isso quero dizer que mantinham relações afetivas ou não, famílias, usavam ou não preservativos, faziam compras, tinham problemas, alegrias e escolhas." Turismo sexual - Outro aspecto pouco analisado da prostituição se tornou objetivo de reveladora pesquisa de Adriana Piscitelli, uma das coordenadoras do Pagu. "Entre a prostituição e os namoros de verão: gênero e sexualidade no contexto do turismo sexual, em Fortaleza", realizada entre 1999 e 2002, a partir da perspectiva antropológica, procurou compreender os significados concedidos à sexualidade no contexto do turismo sexual internacional na capital cearense. O estudo explorou as inter-relações entre turistas estrangeiros e mulheres nativas, na modalidade desse estilo de turismo na cidade, heterossexual. Foram oito meses de pesquisa em diversos tipos de fontes, observação e entrevistas realizadas, sobretudo com mulheres de camadas baixas e médias que mantinham relacionamentos amoroso-sexuais com visitantes de outros países, principalmente europeus. Adriana também conversou com homens de diversas nacionalidades que vieram motivados pela procura de sexo e com estrangeiros que, fascinados por sua experiência como turistas, fixaram residência na cidade. Ela constatou que as garotas envolvidas no turismo sexual estavam na faixa dos 20 aos 30 anos. Algumas admitiram ser "trabalhadoras do sexo". Outras não se consideravam prostitutas e compartilhavam o desejo de obter projeção social a partir dos relacionamentos e, muitas vezes, migrarem para a Europa como esposas. A antropóloga percebeu que o universo masculino estava integrado por forasteiros de idades, níveis de renda e escolaridades diversos. Havia aqueles que buscavam sexo barato ou grátis em uma diversidade de relacionamentos. Outros queriam aproximações mais estáveis - como amantes de longo prazo ou até na condição de esposos. "Os contatos estabelecidos nesse universo mostraram que gênero e raça 'atuaram' como agentes metafóricos do poder econômico, político e cultural inerente a esses relacionamentos transnacionais", explica. Para a professora da Unicamp, essas duas categorias desempenharam um papel ativo nos procedimentos através dos quais as nativas e os nativos eram tornados inferiores e os estrangeiros, privilegiados. "Contudo, em relacionamentos que eram, em termos globais, uma expressão da posição subordinada dessas mulheres, muitas delas, ao incorporar a extrema sensualidade atribuída a elas, 92 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 119
abriam caminhos que desestabilizavam critérios lineares de desigualdade, negociando, na base da sexualização de que eram objeto, seu acesso aos benefícios materiais e sua posição nesses relacionamentos." Isso aconteceu não apenas no nível micro das relações desses casais, mas de modo a obter também uma ampliação de suas esferas de influência no plano local. uma segunda etapa, Adriana fez um acompanhamento da trajetórias das garotas da pesquisa anterior que migraram, nesse contexto, com turistas sexuais. Na tese "Paisagens sexuais: imagens do Brasil no marco do turismo sexual internacional", concluída este ano, ela avançou ainda mais no tema e centrou sua investigação na criação e na transmissão de imagens dos países alvo de turismo sexual que circulam entre viajantes à procura de sexo veiculadas em sites específicos da internet nos quais têm lugar discussões e trocas de informações entre turistas sexuais. "Meu objetivo central foi analisar as intersecções entre gênero e nacionalidade e outras diferenciações presentes nesses textos, considerando, particularmente, as conceitualizações dos turistas que escolhem o Nordeste do Brasil como destino de férias." O foco de sua análise foi o site World sex archives, a partir de dois aspectos: por ser o espaço virtual mais citado por turistas à procura de sexo entrevistados em Fortaleza, durante a produção da primeira tese, e a enorme riqueza de material nele difundido quando comparado com outros sites análogos. "Orientada pelo interesse em compreender como certas regiões pobres do mundo atraem turistas à procura de sexo, enquanto outras também pobres e relativamente próximas não o fazem, e preocupada em compreender a dinâmica de circulação desses viajantes, colhi e analisei de maneira extensiva o material (texto e fotografias) relativo a diversos países da América do Sul difundido entre outubro de 2003 e agosto de 2005." Longe de atuar como substituto da sexualidade, concluiu ela, o site viabiliza a materialização do contato sexual entre viajantes à procura de sexo e mulheres locais. O World sex archives funciona como espaço de "socialização" coletiva, orienta, em escala global, "a recriação de códigos de sexualidade e masculinidade associados à supremacia branca e a uma certa idéia do ocidental". Pela descrição de Adriana, o material mostra que a prática do sexo distanciado do afeto adquire importância na manutenção das desigualdades, permeando este tipo de consumo de sexo, e indica que as alterações na geografia dos circuitos mundiais de turismo sexual estão vinculadas a uma série de fatores, nos quais o empobrecimento dos países do hemisfério Sul é um aspecto da maior relevância. •
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Resenha
E o sertão virou favela Apesar dos novos acontecimentos, dogmas permanecem
CARLOS HAAG
E
oi como se Euclides da Cunha, sem querer, tivesse virado, com seu livro, o terrível canhão, a "Matadeira", dos casebres de Canudos para os morros cariocas. Ainda que escrito depois da "tomada" do morro da Providência (logo apelidado de morro da Favella) por soldados da campanha contra o Conselheiro, que lá se instalaram para pressionar o governo a pagar seus soldos, Os sertões nortearam (e ainda parecem nortear) a visão do Estado e da sociedade sobre a favela carioca. Daí a sabedoria do título do livro de Lícia do Prado Valladares, A invenção da favela. Ela mesma chama a atenção para isso: "Inventaram a favela? Mas como pode ser isso se hoje ela é mais do que concreta, o seu número já corresponde a 752 aglomerados e 18,7% da população do município do Rio reside nessas áreas, que crescem mais do que a cidade?". Boa questão a que ela dá uma boa resposta ao mostrar como a favela foi sendo "descoberta" pelos vários atores sociais. A base, no entanto, foi mesmo a obra de Euclides e a sua dualidade entre "litoral e sertão", que passa a ser traduzida, na capital federal, como "cidade versus favela". Com essa revelação, o foco higienista das autoridades "modernas e progressistas" da recente República sai dos cortiços para a favela. "Para ela se transfere o postulado do meio como condicionador do comportamento humano, persistindo a percepção das camadas pobres como responsáveis pelo seu destino e pelos males da cidade", escreve Lícia. Como a utopia milenarista do Conselheiro, a favela passa a ser associada sempre a um morro com posição estratégica, "cidadela de miseráveis", um lugar onde o Estado não existe e um chefe controlava a "comunidade". O sertão não tinha virado mar. Tinha virado favela. Para a República positivista aquilo era o oposto da civilização que se desejava, era uma "lepra estética", um mundo antigo e bárbaro do
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A invenção da favela
qual é preciso se afastar para chegar à modernidade. A favela é descoberta e logo convertida em problema. Pouco imporLícia do Prado Valladares tava se, no período entre 1890 e 1906, o Rio crescia numa progressão geoméFGV Editora trica de 2,8%, enquanto 204 páginas o total de moradias só auR$ 23,00 mentava à taxa fixa de 1% ao ano. O populismo varguista muda um pouco esse estado de coisas, nem sempre para melhor. Embora reconhecendo que era preciso administrar a favela, e não apenas erradicá-la, os interventores de Vargas plantam a semente da ligação entre votos e favores: "O toma uma bica lá, e me dá um voto aqui" que ainda hoje permanece no Rio. Mas apesar das (in)certezas sobre o que fazer, o primeiro recenseamento só ocorreu 50 anos após o nascimento da primeira favela. O estudo feito em 1947, no entanto, mantinha o mesmo ranço conservador do início do século. Só em 1950 o IBGE trará um novo retrato das favelas, onde haveria "uma população ativa, trabalhadora", na contramão da tese da "vagabundagem". O estudo também revelou que ter favela não era um privilégio carioca, mas nacional. Vai ser, no entanto, uma pesquisa encomendada, em 1960, pelo jornal O Estado de S.Paulo que mudará a percepção sobre os favelados. Essa nova avaliação permitiu a entrada de novos personagens, que nela tentam intervir, da Igreja ao Peace Corps americano. Os dogmas, porém, permaneceram, apesar dos novos conhecimentos. Para a autora, interessa a muitos grupos que isso continue: às autoridades, para lidar com a favela como categoria única, de soluções únicas e impossíveis; aos líderes de associações da favela, que continuam a lucrar com a visão da favela como "antro de drogas e miséria", ao contrário do real. Pois hoje, diz Lícia, há nas favelas uma estrutura econômica que nem é sinônimo de pobreza. "Se deixarmos de confundir os processos observados na favela com os processos sociais causados pela favela, será possível compreender fenômenos que, apesar de existirem na favela, também existem em outros lugares."
Livros
O sufrágio universal e a invenção democrática
Teoria contemporânea do cinema
Letícia Bicalho Canêdo (Org.) Estação Liberdade 512 páginas, R$ 59,00
Fernão Pessoa Ramos (Org.) Editora Senac / FAPESP 2 vols., R$ 70,00 e R$ 55,00
Uma excelente coletânea de ensaios sobre a importância do surgimento, em 1848, na França, do voto universal e de que forma ele se propagou pelos diversos países. A idéia geral pode ser resumida pela frase de um dos ensaístas, Pierre Bourdieu, que afirma: "Só podemos sair verdadeiramente da adição mecânica de desejos que o voto opera se tratarmos as opiniões como signos que podem ser mudados pela troca, pela discussão, pelo confronto". Os estudos falam do Brasil, da Inglaterra etc. Estação Liberdade (11) 3661-2881 www.estacaoliberdade.com.br
O charme da ciência e a sedução da objetividade Maria Stella Martins Bresciani Editora Unesp 502 páginas, R$ 59,00
Um estudo denso sobre um dos maiores intérpretes do Brasil: Oliveira Vianna. Advogado, Vianna foi esquecido pela academia por décadas e é recuperado aqui em todo o seu vigor como um dos primeiros a atentar para o fato de que era necessário pensar o país a partir de suas origens, como se houvesse um mal original a ser desvendado.
O professor da Unicamp e um dos responsáveis pela Enciclopédia do cinema brasileiro, agora, após dez anos de pesquisas e trabalho, edita essa coletânea de dois volumes com textos assinados por autores de diversas procedências e que se propõe apresentar as várias formas de analisar o novo cinema. Entre os textos: "O acinema", de François Lyotard; "A voz do documentário", de Bill Nichols, entre outros. Editora Senac (11) 2187-4450 www.editorasenacsp.com.br
Em família: correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre Ângela de Castro Gomes (Org.) Mercado de Letras 296 páginas, R$ 30,00
Aqui estão, reunidas e comentadas, as 180 cartas trocadas entre o grande intelectual Oliveira Lima e o jovem Gilberto Freyre, num período que se estende de 1917 a 1928. Essa grande correspondência traz a marca do diálogo mais do que brilhante entre um ex-diplomata, conceituado e conhecido, Lima, e os conselhos que dá para o seu aprendiz, quando da sua viagem de estudos aos EUA. Mercado de Letras (19) 3241-7514 www.mercado-de-letras.com.br
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Glob(AL): biopoder e luta em uma América \Glob(Ãi3 Latina globalizada Antônio Negri / Giuseppe Cocco Editora Record 274 páginas, R$ 37,90
Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário Antônio Gilberto Ramos Nogueira Editora Hucitec / FAPESP 336 páginas, R$ 40,00
Um debate sobre um tema candente, as desigualdades sociais, políticas e econômicas da América Latina, vistas de uma forma inovadora e, sem dúvida, polêmica. Elementos como democracia, biopoder, globalização, biopolítica, entre outros, são novos termos para explicar velhas realidades, mas é necessária essa reavaliação sobre um novo léxico.
Essa pesquisa revela a atualidade do projeto de Mário de Andrade que, nos anos 1930, já estava atento para um novo tipo de patrimônio, para o qual se dava pouco valor: o patrimônio imaterial ou intangível, que reúne não objetos, mas culturas em sua inteireza, guardadas para a posteridade. Baseado no Modernismo, esse ideal andradiano foi grande fator de preservação.
Editora Record (21) 2585-2000 www.editorarecod.com.br
Hucitec (11) 3060-9273 www.hucitec.com.br PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 95
Ficção
Os sábios de Tombuctu ALBERTO MUSSA
esmo após a magnífica peregrinação do grande mansa Kanku Mussa a Meca, em 1324, a cidade de Tombuctu era ainda, essencialmente, sabedoria. Aliás, sempre tinha sido. Tuaregues, songais, mandingas, fulas e até os mossis, infiéis e sanguinários, procuraram alguma vez em Tombuctu a pacificação do espírito que só o conhecimento pode oferecer. As ruas de Tombuctu não assistiam a discussões tolas. Nos mercados, preferiam ao tema do dinheiro as maiores especulações sobre fenômenos físicos e metafísicos. A ciência era pública e a principal instituição da cidade eram as assembléias, que deliberavam sobre as verdades a serem aceitas e ensinadas. Mas os homens nunca são completamente iguais: moravam em Tombuctu dois anciãos — ou melhor, dois sábios — que juntos dominavam a maior parte do conhecimento humano. Residiam ambos bem defronte à praça onde o povo se reunia para debater, sendo um à direita e o outro à esquerda. Suas casas estavam de tal forma que o sábio da esquerda assistia ao nascer do sol sobre a casa do sábio da direita; e o sábio da direita assistia ao pôr-do-sol sobre a casa do sábio da esquerda. Não se sabe exatamente motivado por que circunstância, mas o debate que vinha apaixonando a Tombuctu daqueles tempos girava sobre a natureza e a origem dos antagonismos conceituais. Tudo começou quando um mossi, mercador de panos, elevou a voz durante a assembléia: — Quando corro sobre meu cavalo e olho a paisagem, tenho a sensação de ser ela que se move. Sei que o movimento é meu porque estou sobre o cavalo. Mas nada garante não ser a terra que circule ao redor do sol. A dúvida proposta pelo mercador provocou tal celeuma que ninguém em Tombuctu deixou de discutir o assunto. Mais povo confluía às assembléias; os mercados abarrotavam; não se diria que a multidão obstava o tráfego das ruas porque nelas a gente se sentava para debater. 96 ■ JANEIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP119
Então o sábio da direita apresentou publicamente a teoria de que não só a terra e o sol mas tudo tinha um movimento permanente desde que passasse o tempo; e que a percepção desse movimento variava conforme quem observasse. Não tardou e Tombuctu decidiu, na seqüência das sessões, ser verdadeira uma nova teoria, aprofundamento da primeira, formulada pelo sábio da esquerda, segundo a qual as categorias antagônicas — repouso e movimento, dor e prazer, bem e mal et cetera — eram pontos de uma espécie de escala, que mudavam de estatuto conforme a circunstância da observação. Assim, o pensamento não distinguia realidades absolutas, mas posicionava os dados numa tábua de relações com valores variáveis. Tombuctu parecia em festa; e o nome dos sábios na mais alta conta. Estavam estes justamente na praça da assembléia expondo a tese de que apenas a verdade era invariável e irrelativa, quando surgiu um andarilho de riso debochado, fumando cachimbo e carregando um bornal. Parou no meio da praça, irritando as pessoas. — De onde vens, andarilho? — Como a própria Tombuctu concluiu, tanto faz responder ter vindo de Jené ou de Gao. O povo explodiu em blasfêmias. Nunca um estrangeiro chegara à cidade para fazer graça com a ciência dos seus naturais. Os sábios de Tombuctu, atônitos, não conseguiam crer em tamanha petulância. Acalmaram o tumulto com a serenidade dos próprios semblantes e resolveram expô-lo ao ridículo. — O andarilho, provavelmente, será vindo de bárbaras cidades — disse o sábio da esquerda. — Para quem está na savana, hei vindo das florestas; para quem está no Sahel, hei vindo das savanas; para quem está no deserto, hei vindo do Sahel; para quem está no mar, hei vindo do deserto: venho, assim, de todos os lugares. Ante o estupor geral, o sábio da direita intercedeu. — Explica-nos, andarilho, qual então a razão de tua vinda.
— Não fui eu quem aqui vim, mas Tombuctu que veio a mim. Embora procure o bem, devo encontrar o mal. Mas o enigma do mundo jaz no fundo do meu bornal. A gritaria, dessa vez, foi maior. Alguns homens chegaram a erguer os punhos, protestando contra o forasteiro insolente e pretensioso. Os sábios pareciam desconcertados. E o andarilho continuou. — Não pode haver nem pretensão nem insolência maior que a de Tombuctu, a sábia. Pelo que sei, esses dois anciãos, que julgam ter chegado à essência do conhecimento, moram nessas duas casas, em frente à praça. Mas além de Tombuctu há o Mali. E além do Mali há o mundo. Não é dado conhecer a verdade a quem vê o sol da porta da sua casa. O sábio da direita exclamou: — Se minha interpretação estiver correta, esse andarilho pretende que a própria verdade seja relativa! Houve um princípio de tumulto. A gente insultava. O andarilho ria e fumava cachimbo. O sábio da esquerda prosseguiu: — Pois exatamente no momento em que chegaste, andarilho, expúnhamos a doutrina de que a verdade é uma categoria absoluta, e não uma gradação da mentira. Se assim não fosse, não poderíamos ter compreendido a natureza relativa dos demais conceitos. E seria falso todo o conhecimento humano. — Pois bem — disse o andarilho —, os sábios terão três dias para meditar sobre tudo que conheceram. Depois Tombuctu virá à assembléia. Os que morarem à esquerda da praça se posicionarão à esquerda; os que morarem à direita se posicionarão à direita. Então eu proporei o enigma; e serei escravo de quem o resolver. E assim foi feito. No dia marcado, cada metade de Tombuctu se alinhou num dos lados da praça. Então o andarilho apareceu. Fumava o mesmo cachimbo e trazia o mesmo bornal. Mas tinha uma pequena carapuça sobre a cabeça. Caminhando perpendicularmente à reta imaginária que unia as casas dos sábios, sentou-se sobre ela e proferiu:
— Para quem é capaz de conhecer a verdade não será difícil revelar a cor da minha carapuça. Um frêmito de hilaridade atingiu a população; e de tal forma que quase não se ouviram as respostas simultâneas dos dois sábios. É preta!, disse o da esquerda; é vermelha!, disse o da direita. Foi quando os risos cessaram. De cada lado da praça surgiam gritos de é preta! e é vermelha!, permeados de injúrias grosseiras, num crescendo de violência e intolerância. Alguns começaram a atirar pedras. Outros se evadiram, alarmados. Quase abandonados à multidão furibunda, os sábios se enfrentaram num vasto olhar de ódio. O andarilho, então, num gesto rápido, repôs a carapuça no bornal. — Como julgam dominar a verdade se não podem acordar sequer sobre a cor de uma carapuça? E riu com seu cachimbo; e foi-se embora deixando atrás de si uma Tombuctu na iminência do conflito. Pouco mais tarde, mensageiros do mansa anunciaram que o famoso arquiteto árabe Ishaq al-Tuadin daria início, naquela praça, à construção da fabulosa mesquita de Jinguereber. Destroçada em sua crença na possibilidade lógica da cognição, perdida no caos da relatividade absoluta, Tombuctu redimiu-se na fé do Profeta, que embasava num sistema de valores constantes. Exceto os sábios. Desacreditados e sem função, foram trabalhadores braçais na ereção da mesquita. Mendigaram depois, aos andrajos. Passaram a invejar os ulemás que fariam a posteridade de Tombuctu. Mas nunca creram no Profeta. Nunca aprenderam uma surata do Alcorão. Rastejaram num rancor insano, buscando compreender a natureza do conhecimento. Até morrerem, míseros, ridículos, acanhados como a própria verdade.
é autor de O trono da rainha Jinga (Prêmio da Biblioteca Nacional, 1997) e O Enigma de Qaf (Prêmio Casa de Las Américas, 2005). Traduziu direto do árabe a coletânea de poemas pré-islâmicos Os poemas suspensos.
ALBERTO MUSSA
PESQUISA FAPESP 119 ■ JANEIRO DE 2006 ■ 97
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