Buraco negro voraz

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O ELO PERDIDO DE DARWIN COM O BRASIL A DIANTEIRA ECOLÓGICA DO ETANOL DE CANA


Pesquisa

159

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MAIO 2009

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

POLíTICA CIENTíFICA

46 ZOOLOGIA

E TECNOLÓGICA

Cruzamentos entre gatos-do-mato distintos

30 ENERGIA Estudo atualiza as vantagens do etanol no combate aos gases

são mais comuns

carapaça do camarão pode ser usado em

do que se acreditava

vacinas e cosméticos

50 GENÔMICA Sequenciamento

do efeito estufa

72 BIOTECNOLOGIA Biopolímero da

74 PETRÓLEO Petrobras e Unicamp estudam bactérias que

do DNA bovino abre 34 DESENVOLVIMENTO FAPESP e Sabesp

caminho para melhoramento

investirão em novas tecnologias para

76 NOVOS MATERIAIS 52 BIOLOGIA CELULAR Pequenas proteínas,

melhorar a qualidade

>

CAPA

18 Nova estratégia

>

degradam o óleo das raças

dos serviços

antes consideradas

de saneamento

resíduos, ajudam a regular as células

Sisal é boa matéria-prima

potencial para a produção de etanol

35 COLABORAÇÃO FAPs montam redes para pesquisar

de

54 PERSONALIDADE Crodowaldo

«

a dengue, desenvolver

morto aos 89 anos,

revela buraco negro fora do centro

biocosméticos e aumentar a segurança

derrubou

da galáxia M 94

nas transfusões de sangue

nos anos 1950

36 DIFUSÃO São Paulo ganha museu

da Ciência e Tecnologia sem abdicar da vida

o

>

80 SOCIOLOGIA

desenvolvimento

Brasil foi fundamental para Darwin criar suas teorias, que retornaram

38 ECOLOGIA Plano valoriza

mostra sua versatilidade

~ < ::i

o

>

Interpretação da anorexia como parte

Primeiras escavações na serra das Confusões

da identidade amplia possibilidades

revelam um padrão singular de pinturas pré-históricas

de tratamento 90 ARTES PLÁSTICAS Tese polêmica sobre Mira Schendelganha

~

TECNOLOGIA

edição luxuosa

44 GENÉTICA Troca de genes entre

68 ENGENHARIA

espécies diferentes é fonte de debate de

BIOMÉDICA

Sensor subcutâneo monitora pressão

evolucionistas

interna do cérebro

>

SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 4 CARTAS

62 SCIELO NOTíCIAS

9 CARTA DA EDITORA

64 LINHA DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

10 MEMÓRIA

9S LIVROS

24 ESTRATÉGIAS

96 FiCÇÃO

« o,

86 SAÚDE MENTAL

CIÊNCIA

>

ª""

j

moldaram nossa nação

60 ARQUEOLOGIA

de Mata Atlântica

~

de

vacinas contra o HIV

vegetação secundária para ampliar área

" o

ao país, mais tarde, e

acadêmica. Recente artigo publicado na revista Physical Review B

e <

56 IMUNOLOGIA Equipe sugere nova estratégia de

que divulga a ciência de forma lúdica e interativa

HUMANIDADES

dogma

da biologia

ENTREVISTA

;2

Pavan,

análise de informações

12 O físico Sergio Rezende toca o Ministério

para

formulação de polfrneros e tem

40 LAB~RA

98 CLASSIFICADOs'~

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Benjamin Urmston

imagem do mês

Cachoeiras de

sangue A existência de uma peculiar comunidade de bactérias que vive sob a geleira Taylor, nos Vales Secos de McMurdo, na Antártida, é a explicação para o efeito das Cachoeiras de Sangue (Blood Falls, em inglês), o escoamento de água tingida de vermelho que brota do glaciar e se derrama sobre a superfície de um lago. O grupo de pesquisadores liderado por Jill Mikucki, da Universidade Harvard, descobriu os microrganismos, cuja dieta se limita a compostos de ferro e enxofre, ao estudar o fluxo da água tingida. As bactérias encontradas evoluíram em completo isolamento e sem oxigênio. Elas usam compostos de enxofre para ajudá-las a “respirar” ferro, num truque metabólico. O resultado é que a água é tão rica em ferro que, em contato com o ar, oxida instantaneamente.

PESQUISA FAPESP 159

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maio DE 2009

n

3


CARTAS

cartas@fapesp.br

Fordlândia

Walnice Nogueira Galvão

Sou professor da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC/USP), nasci em Fordlândia e morei em Belterra. Sendo assim, não poderia deixar de parabenizar Carlos Haag pela excelente reportagem "A história da Fordlândia na Amazônia" (edição 158). Apenas quero dizer que é verdade que houve uma rebelião dos operários de Fordlândia devido ao tipo de comida servida, de excelente qualidade, mas diferente do costume local. Apesar disso, os meus pais e os demais operários da época relatam excelente relacionamento deles com os dirigentes americanos que lá estiveram. Quanto à moradia, existiam três padrões: o da vila americana para os administradores, o da vila mensalista para os operários mais graduados e o da vila operária para os operários de campo. Todas as casas eram de excelente qualidade, semelhantes àquelas da pintura na página 16; a maioria possuía janela com tela que impedia a entrada de mosquitos. Envio algumas fotos de Fordlândia tiradas em 2004.

Parabéns pela entrevista de Walnice Nogueira Galvão (edição 158), que revela a densidade e a importância do trabalho desta intelectual para entendermos a literatura brasileira e daí o Brasil. Pois ao divulgar e estudar por mais de 20 anos Grande sertão: veredas, do maior escritor da língua portuguesa, Guimarães Rosa, incentiva e impulsiona a necessidade de amarmos a nossa língua, tornando-a um dos pilares para compreendermos a tessitura da trama que forma o Brasil.

ANTONIO MOREIRA DOS SANTOS EESC/USP São Carlos, SP

Imagens de Fordlândia,

na Amazônia,

4 • MAIO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 159

ROSALVO DE OLIVEIRA JUNIOR Brasília, DF

já devem estar acostumadas ao machismo que permeia tudo. Até quando vamos permitir que o machismo norteie nosso pensamento? SIMONE DE SOUZA Niterói, RJ

Eletricidade

P

Muito interessante a reportagem de Carlos Fioravanti "No ar, na água, por toda a parte" (edição 158). Está aí mais uma revelação sobre o extenso e obscuro universo elétrico que nos circunda, mesmo explorado há muito por Volta e, posteriormente, por Hertz, Faraday, Henry e outros homens de gênio.

Pô pl H ex

N gll a] ra re

Garotos e garotas Ao ler a reportagem "Garotos cheios de fôlego" (edição 158) fiquei impressionada com o machismo enraizado no título. A reportagem cita duas estudantes que se destacaram no projeto, mas o título fala em "garotos': Havia "garotos" no programa, mas mesmo o texto tendo destacado as participações de duas meninas, o masculino substantivo "garotos" merecia tanto destaque? Talvez Iuliana e Mayra não se incomodem de serem classificadas debaixo do guarda-chuva masculino "Garotos cheios de fôlego", especialmente porque

em 2004

fu

EDUARDO C. M. COSTA FEls/D EE/U NESP Ilha Solteira, SP

es in él p~ pI as os os idl ti, id ar fo

Apneia noturna Excelente a pesquisa apresentada na reportagem "Noites maldormidas" (edição 158). Parabéns pelas reportagens. GISLENE F. BRlTO GAMA EMBRAPA SEM/-ÁRIDO Petrolina, PE

(esq. para dir.): caixa d'água, campo de futebol

e oficina, grupo escolar,

casa

típica


achisamos nosso

-graduandos precisam muito mais do que uma bolsa de estudos para desenvolver seus mestrados ou doutorados dentro de um grupo de pesquisa. Eles precisam saber por que estão ali, o que vão fazer e o que serão daqui a alguns anos. Caso contrário, ao final da sua defesa de tese, se perguntarão: "E agora, sou cientista?':

Philip Hanawalt de

a re(ediens.

Parabenizo a revista Pesquisa FAPESP pela entrevista com o geneticista Philip Hanawalt (edição 157), um pesquisador extremamente competente e completo. Na sua idade, no final de um grande e glorioso percurso acadêmico, falar sobre a preocupação na formação de alunos é raro! Alguns trechos da entrevista que relatam a postura preocupada com a futura geração de pesquisadores a quem está formando em seu laboratório: "Mais importante do que os avanços científicos é estimular os pesquisadores iniciantes a pensar, a ser criativos e a encontrar seus próprios caminhos" (...), "Muitas vezes as pessoas têm a falsa impressão de que os professores têm as ideias e orientam os alunos. Certamente têm, mas muitas ideias importantes vêm dos alunos criativos" (...), "Outra coisa que me parece idiota é que algumas pessoas se sentem ameaçadas por seus ex-alunos, como se fossem competidores:' Na verdade, os pós-

DAIANE HANSEN

IF/UFG Goiânia,GO

Plástico biodegradável Desde a publicação da reportagem "Degradação difícil" (edição 152), em que gentilmente e de forma bastante profissional tive a oportunidade de expressar minha opinião sobre a questão dos plásticos oxibiodegradáveis, alguns fatos passaram a chamar nossa atenção e gostaria de fazer alguns comentários. Na revista Pesquisa FAPESP está escrito que "... Fechine ... realizou uma bateria de testes com um tipo de plástico oxibiodegradável vendido no mercado nacional ..:' e, ao final, "... um artigo com os resultados dos ensaios já foi aceito para publicação pela revista Polymer Engineering and Science...:: Depois dedicamos especial atenção ao artigo para entender o estudo. Pois bem, vamos aos fatos. Embora a revista

Pesquisa FAPESP faça referência a sacolas oxibiodegradáveis em uso no Brasil e que, segundo está escrito, o professor Fechine as utilizou em seus testes, o artigo publicado na Polymer Engineering and Science não tem qualquer relacionamento com esse uso. Em primeiro lugar, os testes conduzidos e publicados nessa revista científica fazem referência ao polímero polipropileno (PP). Acontece que, em geral, sacolas plásticas são produzidas com o polímero polietileno (PE), e não com polipropileno. Além disso, está claro na revista Polymer que o professor Fechine e seu grupo desenvolveram o seu próprio aditivo (PPOx), usado em filmes plásticos produzidos com polipropileno para produzir as amostras testadas e foram o objeto do estudo. Portanto, o estudo publicado na Polymer não reflete o que foi publicado em Pesquisa FAPESP. Portanto, entendemos que a reportagem "Degradação difícil" se refere ao plástico polipropileno com aditivo PPOx desenvolvido pelo professor Fechine e companheiros, segundo as condições que eles simularam e não com as sacolas plásticas oxibiodegradáveis que estão no mercado nacional, que utilizam em sua produção o aditivo d2w da RES Brasil - Symphony. EDUARDO VAN ROOST RES BRASIL

Valinhos, SP

PESQUISA FAPESP 159 • MAIO DE 2009 • 5


Zeev Maoz A tese defendida por Zeev Maoz ("A razão dos outros': edição 156) é que Israel nunca tomou a iniciativa de propor reuniões, conversações ou sinais de paz e entendimento com os países vizinhos. Porém, olhando os documentos acessíveis, parece-nos que Maoz passou por cima deles. Debruçando-nos sobre dados do Ministério das Relações Exteriores de Israel, constatamos que, de 1947 a 1955, foram feitas dezenas de propostas (todas documentadas), e que nunca foram consideradas ou respondidas pelos países árabes. Dois tratados de paz foram assinados, um com o Egito e outro com a Iordânia; o primeiro por iniciativa do presidente do Egito, Anuar Sadat, e outro negociado com o rei Hussein, da Iordânia. Foram negociações que tiveram sucesso porque, finalmente, esses líderes perceberam que manter o estado de beligerância com Israel atentava contra seus interesses nacionais. Por conseguinte, a paz se estabeleceu não por falta de iniciativas de Israel (dezenas), mas porque Egito e Iordânia decidiram negociar uma conciliação. Quanto a Israel ser um "estado militarista", esta palavra, per se, tem uma conotação negativa. A história mostra que a postura de Israel nunca se pautou pela agressão aos vizinhos, mas por uma defesa vigorosa a ataques sofridos. Armar-se para se defender foi uma condição necessária que Israel adotou, porém reconhecidamente insuficiente, para garantir a sobrevivência física de sua população e manter sua integridade territorial. E isso não é militarismo, o Exército é constituído por seus cidadãos, sendo considerado como sendo a instituição nacional de maior prestígio. Israel pauta-se pela estratégia do "poder de dissuasão" para desestimular ataques e evitar guerras, porém nem sempre isso tem sucesso. Quando a dissuasão falha é que surgem as guerras. Notemos que, via de regra, a comunidade internacional abandona os povos mais fracos à vontade do mais forte, isso acontece porque os países são movidos por interesses e não por compaixão e raramente por justiça. Vamos apresentar alguns exemplos recentes (século XX), escolhidos a esmo:

6 • MAIO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 159

a Itália invadiu a Abissínia em 1936 para torná-Ia colônia italiana. Na época, ninguém se opôs. Um pouco antes, o Japão invadira e ocupara a Manchúria, causando grandes sofrimentos à população chinesa. Também nesse evento a comunidade internacional esteve ausente. Em 1938, a Alemanha ocupou a região dos Sudetos e depois da Tchecoslováquia inteira, com o aval da Grã- Bretanha que antes havia garantido a defesa desse país. Em 1939, Alemanha e União Soviética ocuparam a Polônia, depois disso França e Inglaterra declararam guerra à Alemanha, mas, como não tinham nenhum poder de dissuasão para reverter a situação, ficou por isso mesmo. A perseguição aos judeus no império russo cza-

rista (os chamados pogroms) os obrigou a emigrar aos milhões (principalmente para os EUA) e ninguém se interpôs em sua defesa. Mais tarde veio a "solução final" da Alemanha, que desembocou na aniquilação física de milhões de judeus e ciganos; só houve boa vontade e ações corajosas de algumas pessoas, atuando individualmente, para salvar alguns milhares de judeus, porém a grande massa foi aniquilada. Entre 1940 e 1967, os judeus dos países árabes foram sistematicamente expulsos de seus lares e tiveram seus bens confiscados (www. justiceforjews.com). Na comunidade internacional ninguém se manifestou ou se indignou, Israel recebeu e integrou mais de meio milhão deles. Mais recentemente assistimos a guerras tribais na

África, que dizimam milhões, porém a comunidade internacional pouco faz. O Tibete está sob ocupação chinesa e a comunidade internacional é impotente para assegurar a sua independência. Portanto, a história ensina claramente que quem não consegue se defender acaba subjugado ou massacrado pelas mãos do inimigo mais forte. Os judeus levaram cerca de 2 mil anos para chegar à doutrina Ben-Gurion, e é exatamente esta, que Maoz critica, que lhes permitiu sobreviver num meio hostil. A seguir apresentamos uma relação de acordos feitos com os países árabes ou propostas de paz apresentadas anteriormente à proposta feita pela Arábia Saudita em 2002 e reiterada em 2008, citada por ZeevMaoz: 1. Acordo árabe-judaico (Joint ArabIewish agreement on Iewish Homeland), também conhecido como acordo Faiçal- Weizmann (www. users.cloud9. net/ =recross/israel- watch/Texts/FaysalWeizmann.htm) que foi assinado em 3 de janeiro de 1919, pelo Emir Faiçal (filho de Hussein rei do Hejaz) e Chaim Weizmann (que se tornou primeiro presidente de Israel) como parte da Conferência de Paz de Paris de 1919, para dirimir disputas decorrentes da Primeira Grande Guerra. O acordo não chegou a ser implementado devido à nomeação, por Lord Samuel (Alto Comissário para o Mandato da Palestina), de Haj Amin El-Husseini como grão-mufti de Ierusalém. Como ele se opunha de forma categórica ao povoamento e à imigração judaica, sua intransigência em reconhecer qualquer direito aos judeus acabou com toda tentativa de acerto pacífico das diferenças entre árabes e judeus na Palestina. Haj Amin considerava que todas as terras que estiveram sob domínio do extinto Império Otomano, exceto a própria Turquia, deveriam ser terras árabes; 2. Em 1937, a Comissão Peel- http:// www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/ History/peell.htrnl (formada pelo governo britânico, para solucionar o conflito entre árabes e judeus) - recomendou a partilha da Palestina entre os dois povos. A Agência Judaica aceitou a proposta feita no relatório da comissão, porém ela foi rejeitada novamente por Haj Amin,

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pois ele insistia que toda a Palestina seria terra árabe. Posteriormente, o plano foi abandonado pela própria Grã-Bretanha; 3. Israel sempre tentou se aproximar dos vizinhos beligerantes para discutir possíveis acordos de paz: entre 4 de julho de 1947 e 2 de novembro de 1955 houve dezenas de tentativas (todas devidamente documentadas) de aproximação (La paix dans le Moyen-Orient, les offres de paix dIsrael aux États Árabes. Ministere des affaires étrangeres, Israel, 1955). A resposta dos países árabes e da O LP sempre foi de negar qualquer entendimento com Israel, culminando com os históricos "três nãos" da Conferência de Khartoum de 1967 (www.palestinefacts.orglpC1967to 199 Lkhartoum. php): 1) Não à paz com Israel; 2) Não ao reconhecimento de Israel; 3) Não a negociações com Israel. Assim a postura de não aceitar o estabelecimento de um Estado judeu nos despojos do Império Otomano tornou-se o paradigma para todos os países árabes. Esta posição só foi rompida pela histórica viagem de Anuar Sadat (então presidente do Egito) a Israel em 1977, que culminou com o primeiro tratado de paz entre Israel e um país árabe. Porém alguns anos mais tarde Sadat pagaria essa "transgressão" com a própria vida, quando foi assassinado durante um desfile militar. Até hoje Sadat é considerado um traidor no mundo árabe; no cortejo fúnebre estiveram presentes chefes de governo e/ou chefes de Estado de países ocidentais, e praticamente nenhum dos países árabes se fez representar; 4. Sempre que surgiam condições para assinar tratados de paz, Israel o fez com seus vizinhos Egito e Iordãnia. Também tentou fazer a paz com os palestinos assinando com a OLP os acordos de Oslo em 1993. Posteriormente, em 2000 houve outras duas séries de reuniões desesperadas para assinar-se algum acordo de paz, em Camp David e Sharm El-Sheikh. As primeiras foram mediadas pelo então presidente Bill Clinton. Yasser Arafat recusou todas as propostas apresentadas por Ehud Barak e por Clinton, não fez contraofertas, negou-se a prosseguir as negociações, e por fim deu partida à sexta intifada em 27 de setembro de 2000,

que mergulhou a região, por cinco anos, numa guerra sangrenta. Quanto às recentes propostas de paz feitas pelo rei Abdala da Arábia Saudita (2002 e 2007), o atual presidente de Israel, Shimon Peres, elogiou a iniciativa (www.reuters.com/article/latestCrisis/ idUSN12506375). Ele declarou que aceitava de bom grado sentar com os dirigentes sauditas para discuti-Ia, porém eles acabaram desconversando, pois isso significaria sentar e negociar diretamente com dirigentes Israelenses, o que o rei saudita se nega a fazer. Assim, de fato, a proposta de paz da Arábia Saudita seria um dictat, ou uma imposição de regras, e não uma proposta a ser trabalhada pelos dois lados para a convergência de um acordo definitivo. Por conseguinte, a negativa em negociar nunca foi a postura de Israel, não encontramos nenhum contraexemplo. Assim, a tese de Zeev Maoz não encontra respaldo nos fatos e documentos disponíveis. IGNEZ CARACELLI

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

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Unesp, campus Bauru JAIME FRE)LICH

Instituto Gleb Wataghin/Unicamp JÚLIO ZUKERMAN UFSCar SALOMON S. MIZRAHI UFSCar

Correção A foto da reportagem "Unidos contra o câncer" (edição 158) representa um romboedro, figura fruto de pesquisas relacionadas à tese de doutorado de Mareio Magini no Institutó de Física da Universidade de São Paulo, de São Carlos, orientada pelo professor José Eduardo Martinho

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Hornos. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e·mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Um antrop61ogo na fronteira

EmiliO Moran afirma que a salda para os problemas ambientais depende da interação entre as ciênciaS naturaiS e as sociaiS. Veja trechoS da palestra em vldeo Ceusas e efeitos das mudanças climáticas CarlOs Nobre diz que a capacidade no planeta Rob DeSalle. do Museu de HlstOrla da homem de mudar o sistema Natural de NOva Yor\<, apresenta os terrestre nllO tem paralelo entre as caminhos do genoma. Veja trechOS espécies da palestra em vldeo

o lugar

de cada organISmO

Procuram-se

engenheIrOS

EnUdades de classe propõem duplicar número de profissionais formados para ajudar o Brasil a crescer

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carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Um convite ao exercício da imaginação

Celso Lafer

Presidente josé arana varela

vice-Presidente

Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

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Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura

editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), Azeite Deleos, Danielle Maciel, Fernando Paixão, Geison Munhoz, Gonçalo Junior, Laurabeatriz, Marcos Garuti e Yuri Vasconcelos.

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instituto verificador de circulação

Mariluce Moura - Diretora de Redação

A

reportagem de capa desta edição é uma daquelas que, a par de soltar os freios à mais excitante imaginação, reafirmam a maturidade do conhecimento que hoje se produz no país. Em poucas palavras: uma equipe de pesquisadores de São Paulo, liderados pelo astrofísico João Steiner, obteve provas inequívocas de que na galáxia M 94 encontra-se um voraz buraco negro que vinha sendo insistentemente buscado nas últimas décadas por grupos de pesquisa de vários países. Mais: o buraco negro, em geral denunciado pelo brilho intenso em suas bordas, resultado da energia inimaginável que ali concentra em sua atividade ininterrupta de sorver a matéria de estrelas e nuvens de gás e poeira a seu redor, não foi achado bem no centro da galáxia, onde o procuravam, mas um pouco deslocado para a periferia da M 94, como relata com clareza exemplar o editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a partir da página 18. Steiner, respeitado professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), não subestima, é claro, o achado do buraco negro, que lhe exigiu três anos de trabalho insistente analisando imagens obtidas com o Gemini Norte, um dos maiores telescópios ópticos em terra. Mas ressalta com prazer especial o método que o viabilizou e que, acredita, poderá ser usado em um sem-número de outras pesquisas e campos. Digamos então, para resumir, que esse método se vale de uma estratégia estatística que consegue estabelecer relação entre dados que aparentemente não se relacionavam e, ao mesmo tempo, descartar dados redundantes – algo, sem sombra de dúvida, de valor inestimável quando se lida com uma montanha de dados, como aquela que o Gemini gerou para a pesquisa do grupo brasileiro. Vale a pena conferir. Um outro texto desta edição privilegia o conhecimento resultante da capacidade de um pesquisador pôr à luz uma relação até então encoberta entre duas esferas distintas. Refiro-me à brilhante reportagem de abertura da seção de humanidades, da lavra do editor Carlos Haag, na qual ele aborda, a partir da página 80, estudos recentes que revelam como a escravidão no Brasil impactou Charles Dar­

win e influenciou aspectos fundamentais da teoria da evolução. De quebra, a reportagem se embrenha por facetas muito particulares da evolução do darwinismo no Brasil, que lhe conferem um caráter, no mínimo, muito contraditório, capaz de inscrever entre os cultores do cientista inglês no país, das últimas décadas do século XIX às primeiras do século XX, notórios conservadores, enquanto deixava na sombra os verdadeiros pesquisadores darwinistas. Destaco também reportagem do editor de política, Fabrício Marques, a partir da página 30, que detalha um importante estudo da Embrapa sobre as vantagens do etanol de cana-de-açúcar no combate aos gases causadores do efeito estufa. Um balanço atualizado da quantidade de energia fóssil necessária para produzir o álcool combustível, que leva em conta inclusive variáveis até então ignoradas, contabiliza a larga vantagem do produto em termos ecológicos. O texto de Fabrício, entretanto, abre espaço para a ponderação de especialistas que observam que a cultura da cana ainda tem um déficit com o meio ambiente, na medida em que não conseguiu até aqui resgatar um pouco das funções dos ecossistemas que substituiu. Em tecnologia, merece atenção especial a reportagem da editora assistente Dinorah Ereno, a partir da página 68, sobre um sensor subcutâneo bem pouco invasivo, capaz de monitorar com eficiência a pressão intracraniana, o que se faz necessário em caso de acidentes e algumas doenças. Uma curiosidade a respeito desse pequeno aparelho é que ele foi desenvolvido pelo físico Sérgio Mascarenhas, movido por um desafio de início bem pessoal. Poderia fazer vários outros destaques, dado que esta edição de Pesquisa FAPESP parece-me particularmente rica. Há muitos temas instigantes, o que depende sempre de um conjunto de fatores e não da mera vontade dos editores, textos especialmente atraentes e um tratamento gráfico feliz, finamente conduzido pela editora de arte, Mayumi Okuyama, e que se anuncia logo na capa. Entretanto, deixo a cada leitor um espaço para a liberdade de fazer escolhas e encontrar seu percurso singular pela revista. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 159

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memória

E fotos reprodução editora unifesp

m apenas 17 anos, a Inglaterra viu nascer três das mais importantes obras de sua cultura pelo significado que tiveram para a religião, a literatura e a medicina: a tradução autorizada da Bíblia pelo rei James I (1611), a edição das peças de William Shakespeare (1623) e o tratado médico Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (1628). Este último livro, escrito por William Harvey (1578-1657), é tido como o modelo fundador e o protótipo do método científico da pesquisa médica atual. Conhecido como De motu cordis, o tratado foi lançado em março pela editora Unifesp com o nome de Estudo anatômico do movimento do coração e do sangue nos animais, em edição trilíngue (latim, francês e português). O estudo de Harvey foi publicado em Frankfurt, na Alemanha, por precaução. Na época ainda imperavam os ensinamentos do médico grego Galeno de Pérgamo (132-200 d.C.), estudioso e praticante da medicina hipocrática na Roma imperial. Galeno descreveu corretamente a anatomia do coração e percebeu que ele funcionava como uma bomba, porém acreditava que o sangue era fabricado no fígado, de onde era distribuído aos outros órgãos e aos diversos tecidos. Também achava que havia um “espírito vital”, criado no coração, que percorria as artérias e as veias junto com o sangue.

Os segredos do coração Livro de 1628 que explicou a circulação sanguínea é publicado em edição trilíngue Neldson Marcolin

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Essas impressões de Galeno perduraram por 14 séculos, até o início do século XVII. Nesse período foram ligeiramente modificadas por outros médicos, como os italianos Realdo Colombo (1516-1559) e Andrea Cesalpino (1519-1603), sendo definitivamente contestadas no De motu cordis. No primeiro capítulo Harvey refere-se à oposição que esperava receber de anatomistas que se empenhavam “em demolir a nova doutrina, em caluniá-la”. Ele sabia que poderia ser perigoso contrariar as centenárias doutrinas de Galeno, daí a escolha de Frankfurt para publicar seu tratado. Por ser médico da corte do rei Carlos I, da Inglaterra, pertencer ao Colégio Real dos Médicos de Londres e ter uma reputação sólida, aos poucos Harvey convenceu seus colegas ingleses da veracidade de suas descobertas, embora elas só tenham sido aceitas nos demais países da Europa no final do século XIX.

De motu cordis tem 72 páginas e 17 capítulos em que Harvey desvenda os segredos da circulação do sangue nos animais e no homem e derruba de forma definitiva – com cuidado e elegância – os conceitos errados de seus predecessores. Ele descreveu a circulação do sangue a partir da observação minuciosa da anatomia e do funcionamento do coração e do sistema circulatório de um enorme número

de animais de todas as espécies que pôde dissecar, da estrela-do-mar ao homem. E, sempre que possível, com o espécime vivo para melhor investigação. Nem seu papagaio, quando morreu, escapou. “O modo como Harvey descreveu suas pesquisas é exemplar, em tudo semelhante à construção de uma tese universitária dos dias de hoje”, diz o tradutor Pedro Carlos Piantino Lemos, professor de cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e cirurgião do Instituto do Coração (InCor). “Primeiro, ele apresenta as opiniões dos filósofos e médicos gregos e latinos referentes aos aspectos anatômicos e fisiológicos do coração e dos vasos sanguíneos,

as compara com suas próprias observações e as contesta.” Depois analisa suas próprias observações por meio de evidências factuais e demonstrações lógicas. Por fim conclui que o sangue, impulsionado pelo coração, percorre as artérias e as veias do corpo dos animais e do homem realizando um movimento contínuo e circular, ou seja, expõe definitivamente os segredos do coração. Além de professor e cirurgião, Piantino Lemos é pesquisador e tradutor de textos históricos da medicina. O De motu cordis não é seu único interesse. Já trabalhou com De humani corporis fabrica, de Andrea Vesalius (Ateliê Editorial, Unicamp e Imprensa do Estado, 2003) e o De re anatomica, de Colombo.

Ilustração do livro (à dir.), edição brasileira (acima) e fac-símile da primeira publicação (página ao lado)

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entrevista

Sergio Rezende

Política com ciência Um físico internacionalmente respeitado comanda o Ministério da Ciência e Tecnologia, sem abrir mão de sua produção teórica | Mariluce Moura

O

ministro Sergio Machado Re­ zende, 68 anos, à frente do Mi­ nistério da Ciência e Tecnologia desde meados de 2005, assegura que é possível combinar as pe­ sadas exigências do cargo, em Brasília, com os voos da imagi­ nação aos quais lhe convoca seu gosto por formular hipóteses consistentes para a construção de teorias em física. Mergu­ lhado na execução e gestão do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional ou nos rearranjos orçamentários determinados por um corte em torno de R$1,3 bilhão no orçamento originalmente previsto para sua pasta em 2009, por imposição da crise econômica internacional, ele não deixou, nos últimos meses, de passar nos fins de semana por sua pequena sala na Univer­ sidade Federal de Pernambuco (UFPE) – e lá trabalhar um pouco, prazerosamente. A propósito, ele é professor titular no De­ partamento de Física da UFPE. A possibilidade de combinação entre o trabalho político-administrativo e a atividade científica está longe de ser mera força de expressão do ministro, a julgar pelos artigos de sua autoria postos em circulação recentemente por respeita­ dos periódicos especializados. Com uma biografia que contabiliza um total de 214 artigos científicos publicados, 2.099 cita­ ções e índice H 24, números que o situam numa posição de destaque entre os mais reconhecidos físicos brasileiros, além de indicar sua influência na produção do conhecimento internacional em física dos materiais, Sergio Rezende teve um novo paper publicado em fevereiro deste ano pela Physical Review B. Em julho de 2008 figurou como um dos três auto­ res de outro artigo que saiu na mesma

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publicação e logo deve figurar também como coautor num artigo já aceito pelo Journal of Applied Physics. Vale registrar que, no artigo de fevereiro, ele se aventu­ rou pela construção de uma teoria para explicar uma nova experiência que um grupo de pesquisa alemão fizera para ob­ ter o condensado de Bose-Einstein. Em termos um tanto toscos, esse condensa­ do, que alguns admitem chamar quinto estado da matéria, é uma situação em que, submetidas a temperaturas baixís­ simas, inferiores a -273ºC, as partículas elementares atingem o menor nível de energia possível e passam a ter um com­ portamento unificado. Nesta entrevista propusemos, sendo Pesquisa FAPESP uma publicação mar­ cada pelas personagens do campo cien­ tífico, que Sergio Rezende falasse de sua trajetória acadêmica, antes de se deter no trabalho de ministro. E o resultado foi que esse tranquilo e gentil carioca, com ca­ madas pernambucanas em sua expressão, terminou se mostrando como alguém que conhece muito bem o campo da ciência e da tecnologia, no qual joga com desen­ voltura em três posições: a de cientista, a de administrador e a de político. Gostaria de começar por sua contribuição para o conhecimento na física, aqui no país, desde 1967. Indo ao início do percurso: como, depois de cursar engenharia, o senhor chegou à física, teórica e experimental, e ao interesse por magnetismo? ­— Fiz a graduação em engenharia ele­ trônica e, no curso, fui despertado para a questão de ondas eletromagnéticas. Fiquei fascinado pelo efeito dinâmico das ondas Quando fui ao exterior para o mestrado e o doutorado, eu queria fazer uma tese em engenharia e voltada para ondas. n

n A sua família era de engenheiros? ­ Não, meu pai era advogado e sempre — quis que eu fosse médico. Somos três irmãos, os três foram fazer engenharia, uma irmã foi fazer matemática e a outra se tornou professora primária, de modo que em nossa casa não houve influência nem da profissão de meu pai, nem do que ele queria que fizéssemos. n E como a engenharia tocou vocês – aliás,

no Rio ou em Pernambuco? ­— No Rio. Nasci e fui criado no Rio de Janeiro. Eu era um aluno mediano no ginásio, estudava o suficiente para passar. Mas no primeiro ano do curso científico [uma das modalidades do ensino médio na época] tive um bom professor de física e, de repente, passei a gostar de estudar. A física envolvia raciocínio lógico e, com equações, permitia construir soluções para determinados problemas – foi isso que me tocou. A partir daí passei a ser bom aluno em física, em matemática e no geral. No vestibular, fui muito bem, tanto na Faculdade Nacional de Enge­ nharia quanto na PUC. Escolhi a PUC porque lá existia um curso de engenharia eletrônica (a Nacional só tinha engenha­ ria eletrotécnica). E daí até o quinto ano fui o primeiro aluno da turma, tanto em engenharia eletrônica quanto em mecâ­ nica e civil – havia algumas matérias em comum entre as engenharias. Terminada a graduação, o senhor foi direto para o mestrado? ­— Sim. Quando estava me preparando para sair do país, foi anunciada a criação do curso na Coppe [Coordenação dos Programas de Pós-graduação em En­ genharia]. Mas a essa altura eu já fora aceito no MIT [Massachusetts Institute n


of Technology] e mantive o projeto. Ti­ nha conseguido uma bolsa da Fulbright, um desafio enorme... O meu boletim fa­ cilitou para chegar ao MIT, porque dizia que eu era o melhor aluno dos 120 da faculdade. Além disso, um professor meu que tinha feito o doutorado lá me deu uma boa carta de recomendação. E de fato foi por ter sido aceito no MIT que ganhei a bolsa da Fulbright, que dava uma por ano para as áreas de engenharia e de economia no Brasil. Quanto tempo o senhor ficou por lá? ­ Fiz o mestrado e, quando os dez meses — de prazo da bolsa estavam terminando, quis ficar para o doutorado. Eu faria 25 anos em outubro. O mestrado foi em engenharia eletrônica, mas eu tive que cursar algumas matérias na graduação da física, algumas para crédito e outras como ouvinte, porque eu queria aumen­ tar minha base na disciplina. Arrumei um orientador para meu doutorado já na área de ondas em ferrites, um material magnético muito utilizado para micro-ondas. Havia a engenharia e também a física aplicada aos ferrites e metade das minhas matérias foi na física e metade na engenharia. Não tenho diploma algum em física, só em engenharia. Quando voltei ao Brasil, no final de 1967, fui pa­ ra o departamento de física da PUC do Rio de Janeiro, um departamento novo e promissor em várias áreas. n O senhor trazia do MIT algo novo para agregar ao departamento. ­— Fui convidado para a física porque estava na fronteira entre a engenharia de materiais e a física, e não tinha essa área em nenhum departamento de engenha­ ria no Brasil. Aí, aconteceu o seguinte:

fotos sérgio amaral

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os laboratórios de física eram limitados, tinha um acelerador Van de Graaff na física nuclear, um espectrômetro tipo “caixa preta” na área de estado sólido, e durante dois anos eu não tinha nenhum equipamento para trabalhar. Então co­ mecei a trabalhar com Nicim Zagury em teoria para explicar problemas que tinham ficado inexplicados para mim. A minha tese teve uma parte teórica e outra experimental... Como resumir os achados de sua tese de doutorado? ­— Trabalhei na tese, e trabalho até agora, com fenômenos dinâmicos e materiais magnéticos. Eles têm, atomicamente, momentos magnéticos chamados spins, que têm uma dinâmica. Em alguns mate­ riais essa dinâmica ocorre na frequência de micro-ondas, por isso juntei as micro-ondas com os ferrites. Tive um orien­ tador que era teórico, ele tinha ideias e colocava o estudante para “quebrar a cara” e fazer, porque ele mesmo não tinha esse lado experimental, e alguns colegas meus sofreram muito por não conseguirem fazer o que ele tinha pro­ posto. Eu consegui, porque o que ele me propôs era viável. Novamente tive sorte, mas ao mesmo tempo trabalho e uma certa facilidade nessa área. n

E o que ele lhe propusera teoricamente? ­ Propôs o seguinte: você joga uma — onda de spin no material, os ferrites, e, enquanto ela está se propagando lá dentro, você joga um pulso de campo magnético que muda a frequência dela. Ou seja, eu consegui fazer uma conversão de frequência da onda enquanto ela es­ tava se propagando. Então fiz uma parte da teo­ria, estendendo a teoria que ele já tinha feito. Mas, como disse, quando che­ guei na PUC tinha muitas dúvidas sobre a física quântica que eu tinha feito, que é uma física baseada em equações clássicas. Com o professor Zagury aprendi coisas mais sofisticadas e desenvolvi esse gosto por fazer experiências e ter a explicação teórica para a experiência. Assim conduzi toda minha vida científica. São raros os meus trabalhos de teoria que não têm uma experiência correspondente. De vez em quando faço teorias para expli­ car uma experiência que alguém fez. No meio do ano passado me chamaram a atenção para um artigo publicado, ain­ da na área de spin, mas envolvendo a condensação de Bose-Einstein. Era uma ex­­periência de um grupo na Alemanha com ondas de spin excitadas com micro-ondas e não havia teoria para isso. Foi aí n

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que me envolvi, tive dois trabalhos acei­ tos e já fui convidado a uma conferência internacional para falar sobre isso. n Qual a sua proposta teórica para a experiência? ­— Eu não vou conseguir explicar aqui, mas tenho uma teoria detalhada que mostra que tem realmente condensação de Bose-Einstein no experimento e, além disso, consigo botar uma curva teórica em cima dos pontos experimentais de três outros trabalhos deles. O grupo é for­ mado por pesquisadores da Universidade de Münster, a principal nesse estudo, e da Universidade de Kaiserslautern. Mas há vários outros trabalhando nisso e, ainda no ano passado, saiu um estudo teórico no Canadá sobre trabalhos diversos que demonstram ter feito a condensação de Bose-Eistein. A minha teoria passou por um crivo pesado na Physical Review. Saiu um primeiro artigo em fevereiro e deve sair um segundo dentro de dois meses.

Como um cientista entusiasmado consegue se dedicar às atividades político-administrativas da ciência e da tecnologia? Isso começou nos anos 1980? ­— Na verdade, antes, desde que eu fui para a PUC. Em dois ou três anos já não estava satisfeito com as condições ali. Bem, eu tinha sido colega de José Rip­ per Filho e de Nelson de Jesus Parada no MIT. Nesse tempo conheci Sérgio Porto e Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que eram do Bell Labs. Toda essa turma es­ tava indo construir a física da Unicamp e queria que eu fosse. Só que tive dois alunos pernambucanos no mestrado, que tinham saído do estado junto com outros três amigos que foram para a USP. A in­ tenção de todos era voltar para Recife e criar um grupo de pesquisa em física – is­ so em 1969, 1970. Eles conheceram Sérgio Mascarenhas, que era membro do conse­ lho deliberativo do CNPq, e ele lhes deu o maior apoio para essa ideia, disse que o CNPq apoiaria financeiramente, desde que arranjassem um jovem doutor para ir junto. Aí eles vieram falar e eu achei a ideia muito louca. Mas depois de pensar um tempo, e com um forte estímulo de Mascarenhas, terminei aceitando. n

Sérgio Mascarenhas era um completo visionário! ­— Ele me disse que eu era um líder na­ to, insistiu... mobilizou o CNPq para dar apoio... terminei dizendo vou, fico três anos, depois volto para a PUC ou a Unicamp. Mas no meio do caminho ainda passei na Unicamp, mudei para n

Campinas em julho de 1971 com a famí­ lia – já tinha três filhas –, convivi com o reitor Zeferino Vaz, com todo o pessoal da física, montei casa e desmontei tudo seis meses depois. Fui para Recife. Tive de organizar um grupo, pois os jovens mestrandos já eram mestres e precisavam fazer doutorado. Passei a procurar outros doutores para orientarmos aqueles jo­ vens doutorandos. Mascarenhas já havia contatado algumas pessoas que, segundo ele, poderiam ajudar, e, com a verba do CNPq, bastante flexível, fui aos Estados Unidos, percorri vários lugares, fiz a mesma coisa na Europa e só consegui levar um recém-­doutor brasileiro. Então tive que arranjar ideias para cinco teses de doutorado. Mas o grupo era muito bom e eles faziam o que eu propunha. Depois inauguramos um departamento, começamos a ir atrás de recursos para montar laboratórios, foi aí que me apro­ ximei do BNDES, da Finep, comecei a ter contato com financiadores... E aí o departamento virou um departamento de verdade, com prédio novo no final dos anos 70, grande apoio da Finep, dinheiro do BID. Em torno do departamento de física formou-se um centro de ciências exatas, com a matemática, que já existia, e foram criados os departamentos de in­ formática e química. Isso resume como comecei a me envolver na gestão interna da universidade e fiquei por 15 anos. n O senhor continua na UFPE. ­— Estou lá quase toda semana, ainda tenho um aluno de doutorado que feliz ou infelizmente está terminando a tese, porque vou ficar sem nenhum. De todo modo, escrevo artigos científicos com o nome do departamento de física e tenho um lugar para estar em janeiro de 2011: meu gabinete, uma sala de 2,5 por 3,5 metros, pequenininha, com tudo amon­ toado, mas que é o lugar para onde vou nos finais de semana quando estou lá. Aquele é o meu lugar. n Mas para além da universidade, quando

começou seu envolvimento com a política do estado de Pernambuco? ­— Nesse processo do departamento de física, me envolvi com a política univer­ sitária. Fui membro do Conselho Univer­ sitário várias vezes, fui fundador da As­ sociação dos Docentes no final dos anos 1970, ainda no regime militar, o que era perigoso, aí participei do movimento da anistia e em 1985 entrei na campanha de Miguel Arraes para governador. Não ti­ nha filiação partidária, apenas uma visão de esquerda, desde que era professor na


PUC ali por 1968, a ideia de que as coisas não podiam continuar como estavam etc. Quando nosso departamento já tinha uma projeção em Recife, Tania Bacelar, economista conhecida, que era uma das coordenadoras do programa de Arraes, me convidou para formar um grupo que deveria apresentar propostas de ciência e tecnologia para o governo dele em 1986. E quando Arraes foi eleito quiseram me levar para o governo, como diretor do Centro de Tecnologia. Mas eu não quis sair da universidade, porque tanto o de­ partamento quanto o Centro de Ciências Exatas ainda estavam num processo de construção. Quando veio a Constituinte estadual, em 1989, me envolvi para con­ vencer os constituintes e o governador a botarem na Constituição a criação da Facepe, a Fundação de Amparo à Ciência e a Tecnologia do Estado de Pernambuco e tive um breve contato com Arraes. Eu pedi audiência e, como descobri anos depois, o chefe de gabinete era o neto dele, Eduar­do Campos, um jovem de 20 e poucos anos, muito inteligente e ativo. O governador deu apoio, a fundação foi criada, e aí em 1990 terminei sendo esco­ lhido para diretor científico. Foi quando coloquei um pé fora da universidade: fi­ cava na Facepe pela manhã e à tarde ia para a UFPE. n Vocês conseguiram incluir na nova Cons-

tituição o artigo referente à destinação de 1% das receitas tributárias do estado para financiar a pesquisa via Facepe, em moldes semelhantes à FAPESP? ­— Conseguimos, e no primeiro mês o governador Carlos Wilson – porque Arraes renunciara para ser candidato a deputado – soltou o equivalente a US$ 1 milhão. Era muito dinheiro na época. O percentual foi seguido durante três me­ ses, porque fizemos um programa com bolsas e auxílios com muita inovação, como a bolsa integração, destinada ao aluno do interior que ia estudar na ca­ pital e retornava depois. n Mas por que o preceito constitucional foi

observado só por três meses? ­— Em três meses liberou-se o equiva­ lente a US$ 3 milhões e aí entalou... em Pernambuco isso era muito dinheiro e o governador viu que o dinheiro estava na conta e não era usado. Aí o governo seguinte realmente botou a Facepe lá em baixo. Voltei a ter tempo integral na uni­ versidade. Arraes foi eleito novamente em 1995 e me convidou para ser secretário de Ciência e Tecnologia tendo eu tido só três contatos na vida com ele. O segun­

Sempre trabalhei com um fenômeno dinâmico de materiais magnéticos chamados spins. E às vezes faço teorias para explicar experiências que outros estão desenvolvendo

população. Isso foi de 1995 a 1998. Can­ didato à reeleição, Arraes perdeu feio e o governo seguinte desfez tudo que tínha­ mos feito. A Facepe afundou novamente. Havíamos criado um parque tecnológico de eletroeletrônica, o Parqtel, que foi co­ locado de lado e criou-se o Porto Digi­ tal. Foi importante, mas não precisavam acabar com o Parqtel. Vários programas que fizemos foram completamente des­ montados. E aí, quando Lula foi eleito, eu já tinha tido contato com ele, porque ajudei a fazer a proposta de ciência e tecnologia do programa na eleição de 1994. Na eleição de 1998, ele foi convi­ dado para ir à SBPC em Natal. Eu recebi um telefonema de Marco Aurélio Garcia [hoje assessor especial da Presidência da República e, na época, coordenador da campanha] dizendo que Lula precisava de gente para acompanhá-lo e de uma proposta para C&T. Mandei algumas propostas que entraram no programa e fui a Natal. Em 2000 fui convidado por Tarso Genro para uma reunião com Lula e outros dirigentes em que seria discuti­ da uma proposta de ciência e tecnologia para a campanha de 2002. O fato é que, quando Lula foi eleito em 2002, acabei presidente da Finep. n E exatamente em sua passagem pela Fi-

do foi no lançamento dos programas da Facepe, quando fiz uma exposição sobre eles. Arraes estava na plateia e logo depois da exposição falei do exemplo que a clas­ se política de Pernambuco tinha dado, criando a primeira fundação de pesquisa do Nordeste e disse que queria que eles entendessem que o funcionamento da Facepe seria diferente, que as bolsas iam ser julgadas por mérito, e que era impor­ tante que não mandassem bilhetinhos pedindo bolsa. Ao terminar a reunião, Arraes me cumprimentou e disse: “Mui­ to bem, pode deixar que eu nunca vou lhe pedir uma bolsa”. Tomei um susto... Dois anos depois, eu estava na fila do aeroporto para viajar de Brasília a Recife, o vi e me aproximei para me apresentar. Ele me disse: “Já o conheço, e eu não lhe disse que nunca ia lhe pedir uma bolsa? Nunca pedi”. O contato seguinte foi ele me convidando para ser secretário. E eu passei a ter uma enorme admiração por essa pessoa pouco conhecida no Brasil, mas que tinha uma visão da questão de ciência e da tecnologia que poucos têm. Foi aí que me envolvi mais com a política. Um ano depois entrei para o PSB por causa de Miguel Arraes. Fizemos mui­ tas inovações, belos programas, inclusive programa de difusão tecnológica para a

nep, qual foi seu foco para tornar a agência mais rápida, mais funcional? ­— Eu tinha algumas preocupações. Uma delas era com o fato de a Finep ter ti­ do um papel muito importante por 20 anos e estar então se enfraquecendo, porque o FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló­ gico] fora quase extinto com a criação dos fundos setoriais. Ora, sendo apenas setoriais, eles não me permitiam fazer uma política mais abrangente. Tinham dois fundos transversais, o de Infraes­ trutura e o Fundo Verde-Amarelo, mas eram específicos. Um era somente para Infraestrutura e para universidade pú­ blica e o Verde-Amarelo para interação universidade-empresa. São transversais, mas não permitem fazer uma política mais abrangente. Começamos a traba­ lhar na Finep na direção do que chamava ações transversais, usando recursos de vários fundos. Minha preocupação foi ter uma boa articulação com o minis­ tério e isso foi fácil, porque o secretário executivo era Vanderlei de Souza, depois, com o ministro Eduardo Campos, entrou Luiz Fernandes, e a interação MCT-Finep continuou muito boa. Trabalhei muito para simplificar os procedimentos técni­ cos e jurídicos da Finep. Mas ela ainda PESQUISA FAPESP 159

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é meio lenta em algumas ações, e esse é um processo que não se resolve de uma hora para outra. Foi na Finep sua primeira experiência com uma instituição cujo foco não estava na construção do conhecimento científico, mas em inovação tecnológica? ­— Na verdade fiz só um pouquinho disso na Facepe. Quando entrei lá, a FAPESP estava começando a criar os progra­ mas de apoio à inovação tecnológica e nós tentamos fazer o mesmo: criamos o Programa de Apoio ao Pesquisador em Empresa. No governo do estado fiz muito mais, mas era em âmbito local. Na Finep passei a enfrentar esse desafio, digamos, em âmbito nacional. Eu já me preocupava com a questão da inovação nas empresas, da interação universidade-empresa, e o desafio era como fazer isso em programas nacionais. n

n A sua visão do modelo nacional de ciên­

cia e tecnologia envolve a permanência da Finep no lugar que ela ocupa ou tem que se mudar algo aí? ­— Acho que o modelo hoje tem uma boa configuração, com o CNPq, que financia basicamente a academia, com instrumen­

Temos que financiar a pesquisa básica, porque gera conhecimento, a pesquisa para inovação tecnológica nas empresas e o sistema de interface entre universidade e empresa

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tos de vários níveis: indiví­duos, núcleos de pesquisa, agora institutos nacionais, enfim, financia a cadeia toda de conhe­ cimento. Tem alguns programas voltados para a transferência de tecnologia, mas o grosso é geração de conhecimento. Já a Finep financia instituições da área acadêmica, institutos de pesquisa, cen­ tros de pesquisa, e financia a empresa e a interface. A configuração é boa e nos­ so objetivo aqui tem sido o de procurar consolidar esses dois papéis, tanto com mais recursos como sistematizando os instrumentos. Quando o senhor saiu da Finep para o ministério, na verdade existia um plano para a área de cuja formulação o senhor mesmo participara. Como ficou a relação entre a teoria e a prática? ­— Essa política ganhou consistência quando Eduardo Campos assumiu. Ele não era da área e fez algo muito importan­ te: chamou as várias partes do ministério, as agências, e ficamos todos internados em Brasília durante três dias numa ativi­ dade de planejamento estratégico. Dis­ cutíamos, “e a nossa política, tem o quê, então?”, “ela tem quatro eixos, com tais características...”. Fez-se assim um orde­ namento do que havia e um planejamento para os anos seguintes. Daí, quando vim para ficar um ano e meio no ministério, minha ideia era consolidar o que Eduardo Campos fizera. Ele havia atirado em mui­ tas direções, fez a construção da política e eu achava a consolidação importante, principalmente em documentos. Por isso no final de 2006 fizemos um relatório para o público em geral cobrindo os quatro anos de atividade, sem preocupação com o fato de terem passado pelo ministério três ministros. Iniciado o segundo man­ dato, e eu continuei no ministério, pensei o seguinte: temos uma política, mas preci­ samos de um plano mais detalhado para quatro anos. E desde o começo de 2007 começamos a trabalhar nesse plano, que é materialização mais concreta das ideias da política. O que ele tem de diferente é que é abrangente, com muitas ações que têm foco, objetivo, meta, recursos. Por­ tanto, se antes algumas ações não estavam definidas com clareza, por exemplo, os Institutos Nacionais de Ciência e Tecno­ logia, tornamos tais ações claras. Sabia-se que era necessário aperfeiçoar os meca­ nismos dos Institutos do Milênio, então fomos discutindo, definimos com mais detalhes, nomeamos etc. E fundamental é que se foi dando uma sistematização aos programas do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. n

n No final do mandato de Fernando Hen-

rique Cardoso, a percepção da comunidade científica era de que o ministro Ronaldo Sardenberg abrira e consolidara algumas iniciativas fundamentais para a expansão do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. Os fundos setoriais e a discussão proposta pela Segunda Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia seriam exemplos nesse sentido. Na verdade o governo Lula não deu simplesmente sequência a algumas dessas iniciativas? ­— Sim, demos, desde o primeiro ano do governo Lula. Houve uma crise no sistema federal na segunda metade dos anos 1990: os recursos escassearam, os instrumen­ tos foram interrompidos, o número de bolsas caiu, então a gestão de Sardenberg, com o secretário Américo Pacheco, fez algumas coisas muito importantes. Uma delas foi criar os fundos setoriais, que dão uma sustentação orçamentária necessária para se ter qualquer programa de ciên­ cia e tecnologia. Também fizeram ações importantes voltadas para a inovação e a interação universidade-empresa. A con­ ferência foi importante, fez um balanço do que foi feito e deixou como resultado o Livro Branco da Ciência e Tecnologia. Esse livro, que li muitas vezes e usei muito, tem os elementos de uma política, mas não tem uma política explícita. O livro foi muito importante e nós não muda­ mos os nomes dos programas criados na gestão Sardenberg. Até recentemente, os Institutos do Milênio mantinham o no­ me. O Pronex, que estamos revigorando, foi criado em 1997. Portanto, procuramos ampliar muito os recursos e consolidar programas nos quatro eixos de ação. E com exceção do quarto, ciência e tecno­ logia para o desenvolvimento social, uma novidade do governo Lula, todos já esta­ vam na política de Sardenberg, embora não explicitados da mesma forma. Co­ mo passamos por uma crise, digo sempre nas minhas apresentações que estamos numa fase de transição, que começou com a criação dos fundos setoriais e se completou, em 2006, com a conclusão de uma política, e estamos realmente na fase de consolidação do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. n Mas com uma nova crise econômica in-

ternacional perturbando planos, metas, propósitos etc... ­— Perturba um pouco, mas não perturba o que está sendo feito. Entretanto, um corte de R$ 1,3 bilhão no orçamento é dramático. ­— Mas é um corte em relação a um pro­ n


jeto de lei, pelo qual teríamos em 2009 um aumento de 25% no orçamento do ministério, algo fabuloso. Com o corte, voltamos ao orçamento de 2008, e todos os programas iniciados têm os recursos garantidos. Uma das críticas feitas ao governo Lula na área de C&T é a reiteração nos discursos de um número mágico, “estamos aplicando R$ 41 bilhões em quatro anos”. Quem tem intimidade com a política da área diz que isso significa R$ 10 bilhões por ano, valor esperado dentro da evolução orçamentária. ­— Os críticos dizem que nunca passamos da aplicação de 1% do PIB, mas hoje há um consenso de que estamos em 1,1%. E o plano para ciência e tecnologia tem R$ 41 bilhões, o que significa algo nunca tido antes. Isso permitiu a projeção de uma aplicação de 1,5% do PIB em 2010, somando-se investimentos do governo federal, dos governos estaduais e do setor empresarial. Hoje acho difícil atingir essa pontuação, mas acredito que consegui­ remos chegar a 1,4%. n

Não é uma visão muito otimista? ­ Talvez, sempre fui muito otimista. — Mas penso que essa crise já passou pelo fundo do poço. Li em uma reportagem que a produção de veículos em março superou marcas históricas. Como alguém acreditaria nisso em dezembro de 2008? Então estou confiante de que ultrapassa­ remos logo a crise. n

n Qual a sua visão do mix que temos entre

recursos para pesquisa em ciência e pesquisa tecnológica? E a participação das empresas privadas no montante de investimento lhe parece satisfatório? ­— É preciso crescer mais na área de ino­ vação tecnológica, mas acredito muito na capacidade de indução do governo fede­ ral. Fizemos parcerias com 19 governos estaduais, propondo-lhes que botassem contrapartida ao que investimos, e há um claro crescimento da participação deles. Em relação ao setor empresarial, ainda não temos números claros, mas logo teremos por via dos investimentos estimulados pela “lei do bem”. n Mas essa lei ainda é muito pouco usada.

­ Sim, mas só tivemos a contabilização — de dois anos. Em 2006, o investimento das empresas foi de R$ 1,5 bilhão e em 2007 foram R$ 4,5 bilhões, três vezes mais. E 2008 não fechou ainda. Todo esse proces­ so no meio empresarial é gradual, porque envolve mudança de cultura. O que faz um

empresário realmente acreditar que con­ segue inovar e faturar com isso é o exem­ plo de um outro. Acredito no poder de indução porque tem a lei do bem, a sub­ venção econômica, tem vários mecanis­ mos estimuladores do setor empresarial. n Quais são os próximos passos do planejamento de C&T? ­— Estamos começando a pensar na Confe­ rência de Ciência e Tecnologia que vamos fazer em maio de 2010. E é importante que ela, além do balanço do que foi fei­ to nos últimos anos, projete para os anos seguintes outro plano de ação, mais am­ bicioso. Penso que dificilmente teremos eixos diferentes destes quatro: expansão e consolidação do sistema com formação de recursos humanos, inovação nas empresas, pesquisa em áreas estratégicas e ciência e tecnologia voltados para o desenvolvimen­ to social. Mas certamente teremos mais instrumentos, novas áreas estratégicas, enfim essa é uma questão para se discutir com a academia e os empresários.

Não lhe preocupa, dentro disso, o envelhecimento e as perdas no padrão de qualidade do ensino universitário brasileiro? ­— Preocupa, sim. Acredito que a univer­ sidade brasileira precisa repensar toda a sua forma de gestão. A fase da eleição direta para tudo e para todos foi muito importante porque vivemos 20 anos de autoritarismo, em que as coisas eram escolhidas por poucos. Mas eleição di­ reta não é a melhor forma de escolher as melhores pessoas para um sistema que n

naturalmente deve ser hierarquizado e baseado em mérito. Qual a sua expectativa em relação aos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que terminaram em número muito maior [123] do que os planos iniciais? ­— Sim, são em número maior, mas te­ nho bastante confiança na qualidade de todos. Os convênios que foram assinados são contratos de cinco anos, com recur­ sos garantidos a priori por três anos. n

n Não lhe parece que o governo do estado de São Paulo tem, na verdade, ajudado a consolidar algumas políticas fundamentais do ministério, como a dos Institutos de Ciência e Tecnologia? ­— Sim, a cooperação foi fundamental e se trata de uma operação diretamente com a FAPESP, com seu diretor científico, Carlos Henrique de Brito Cruz e com o secretário de Ensino Superior, Car­ los Vogt, ambos meus amigos pessoais. Uma operação também com o secretário Alberto Goldman [o secretário do De­ senvolvimento, depois substituído por Geraldo Alckmin]. A interação que tive com o secretário Gold­man em relação ao Ipen e ao IPT foi muito boa e vamos tratar com o secretário Geraldo Alckmin da continuidade dessa prática. Ou se­ ja, a despeito da divergência de caráter político-eleitoral, o presidente Lula tem uma interação boa com o governador José Serra, e nós com os secretários, o que tem reflexos muito importantes para São Paulo e para o país. n

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capa

O buraco estava ao lado

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m meio à constelação dos Cães Caçadores, nesta época do ano visível no céu do hemisfério Norte após o início da noite, há uma galáxia espiral semelhante à Via Láctea que há décadas instiga a curiosidade de astrônomos e astrofísicos. Identificada pelo astrônomo francês Pierre Méchain em 1781 e catalogada sob o número 94 por seu mestre, Charles Messier, essa galáxia conhecida pela sigla M 94 se parece com a maioria das galáxias espirais. Distante apenas 15 milhões de anos-luz da Terra, ela abriga dezenas de bilhões de estrelas em uma região esférica central (o núcleo) e outras dezenas de bilhões em um disco achatado de gás e poeira. Ocupando uma área menor que a do Sistema Solar, a região mais central dessa galáxia emite um tipo de luz diferente da produzida pelas estrelas. Esse brilho concentrado em espaço tão restrito costuma indicar a presença de um gigantesco buraco negro, que sorve continuamente a matéria de estrelas e nuvens de gás e poeira ao redor. A luminosidade vem do movimento da matéria que está para ser absorvida: próximo ao buraco, ela espirala a velocidades tão elevadas que se transforma em energia e escapa para o espaço na forma de radiação eletromagnética – da mais tênue, como as ondas de rádio, à mais energética, como os raios gama, passando pela luz visível. Nas últimas décadas diversos grupos de pesquisa do Brasil e do exterior sondaram as entranhas dessa galáxia, também conhecida pela sigla NGC 4736, com os mais potentes telescópios

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disponíveis, sem, no entanto, localizar o buraco negro que esperavam encontrar. Alguns astrofísicos chegaram a propor outros mecanismos para explicar a origem de tanta luminosidade, como a colisão de ventos ultrarrápidos ou a transferência de energia das estrelas para as nuvens de gás (fotoionização). Mas as evidências recentes continuavam a indicar que os buracos negros devem estar na origem da maior parte das galáxias, servindo como uma espécie de suporte sobre o qual se estruturam. Depois de quase três anos analisando imagens obtidas com um dos maiores telescópios ópticos em terra – o Gemini Norte, instalado nas montanhas de Mauna Kea, no Havaí, com um espelho de 8,1 metros de diâmetro –, o astrofísico brasileiro João Steiner finalmente obteve provas inequívocas de que a M 94 abriga de fato um buraco negro voraz, um dos mais próximos do Sistema Solar. Mas, para surpresa de todos, Steiner inclusive, ele não se encontra onde os pesquisadores acreditavam que deveria estar. Com massa milhões de vezes superior à do Sol concentrada em um espaço reduzido, os buracos negros exercem uma atração gravitacional muito intensa sobre as estrelas mais próximas, e podem até mesmo consumir as que se aproximam demais. Virtualmente presas a eles pela gravidade, as estrelas vizinhas contribuem para atrair as mais distantes – e assim sucessivamente, como se os buracos negros fossem ímãs colossais que estruturam a galáxia. Por essa razão, imagina-se que sejam o centro das galáxias. Mas não foi

montagem de fotos de miguel boyayan (cubo mágico) e nasa/hst

Nova estratégia de análise de informações revela buraco negro fora do centro da galáxia M 94 | Ricard o Zorzet to



o que Steiner e sua equipe viram. Na M 94, o buraco negro não está no centro, mas um pouco deslocado (cerca de 10 anos-luz) para a periferia. “Era tão óbvio que ele deveria se encontrar no centro da galáxia que jamais se imaginou que estivesse em outro lugar”, comenta Steiner, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). O achado do grupo de Steiner não se deve apenas ao poder de ampliação de imagens do Gemini, telescópio que ele próprio ajudou a construir e no qual os pesquisadores brasileiros dispõem de aproximadamente 20 noites de observação por ano. Resulta principalmente de uma estratégia de análise de informações aprimorada pelo astrofísico da USP e sua equipe nos últimos dois anos e apresentada em artigo publicado este mês na Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. Em colaboração com os astrofísicos Roberto Menezes e Tiago Ricci, da USP, e Alexandre Oliveira, da Universidade do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, Steiner aprimorou um método estatístico adotado em outras áreas da ciência (a análise de componentes principais) e o utilizou para filtrar a imensa quantidade de dados gerada por uma poderosa técnica de observação astronômica recente, a espectrografia de campo integral. Na espectrografia de campo integral, a imagem de uma área do céu 20

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equivalente à da ponta de um lápis vista à distância de um metro é focalizada sobre um conjunto de lentes microscópicas conectadas por fibra óptica a um poderoso espectrógrafo. Esse aparelho decompõe a luz nos diferentes níveis de energia do espectro eletromagnético. Filtro de luz - No caso do Gemini

Norte, a luz captada de uma estrela ou galáxia converge para 500 microlentes, que, unidas, cabem na superfície de uma moeda de dez centavos. Cada microlente recebe a luz de um ponto distinto dessa imagem e a separa em 6 mil níveis de energia, que indicam a quantidade e a variedade de elementos químicos encontrados naquela região

>

Os Projetos 1. Diferenciação de modelos para Liners 2. Análise de componentes principais de uma amostra de galáxias Seyferts próximas

modalidade

1. e 2. Bolsa de mestrado orientador

João Steiner – IAG/USP bolsistas

1. Roberto Bertoldo Menezes 2. Tiago Vecchi Ricci

do espaço. Identificar a composição química de uma determinada região é importante porque, a rigor, tudo o que existe no Universo, das estrelas aos seres vivos, é formado por diferentes combinações de 116 elementos químicos originados no interior das estrelas. A espectrografia de campo integral, no entanto, gera um volume absurdamente grande de dados, milhões de vezes maior do que os obtidos com as estratégias de investigação dos céus que fizeram a astronomia avançar no século passado. O problema então deixou de ser como obter informação e passou a ser o que fazer com tanta informação – uma espectrografia de campo integral do Gemini produz 30 milhões de dados para cada imagem. “Não se conseguia interpretar toda essa informação e a maior parte era simplesmente descartada”, explica Steiner. Até a década de 1990 o conhecimento sobre os planetas, as estrelas e as galáxias progrediu impulsionado por duas técnicas usadas separadamente: a observação por meio de telescópios com poder de ampliação centenas de vezes superior ao dos usados por Galileu no início do século XVII e pela análise da luz dos objetos celestes por meio da espectrografia, desenvolvida pelo físico alemão Robert Bunsen em fins do século XIX. Equipamentos mais sofisticados permitiram unir as duas técnicas, inicialmente fornecendo aos pesquisadores informações sobre o espectro da luz – e consequentemente da composição química – de um único ponto de cada imagem. Um astrofísico que, além da forma, desejasse conhecer minimamente a composição química e a população de estrelas de uma galáxia como a M 94 precisava fazer medições do espectro em diferentes pontos dela. Era um processo lento e trabalhoso como o enfrentado por quem tenta conhecer a temperatura da água de um lago mergulhando um termômetro em vários pontos. Com o aprimoramento da espectrografia, tornou-se possível obter, de uma única vez, os dados de energia

miguel boyayan

Sloan Digital Sky Survey

M 94: galáxia com buraco negro atípico


Parecia tão óbvio que o buraco negro deveria se encontrar no centro da galáxia que jamais se pensaria em procurá-lo em outro lugar

ao longo de toda uma linha imaginária que corta o objeto observado e, agora, com a espectrografia de campo integral, de toda a sua superfície. As informações obtidas por essa forma de espectrografia geralmente são representadas por um gráfico tridimensional com eixos perpendiculares entre si que tem a forma de cubo, razão por que é conhecido entre os especialistas como cubo de dados. É um gráfico semelhante àquele em que se representam as três grandezas espaciais (largura, altura e profundidade) da sala de uma casa. Nos cubos de dados construídos com informações de imagens de astronomia, porém, apenas duas das dimensões são espaciais (altura e largura), uma vez que as imagens obtidas pelos telescópios são bidimensionais. A terceira dimensão, que corresponderia à profundidade, costuma ser representada pelos níveis de energia (espectro). “O problema com os cubos de dados gerados com essa técnica tem sido avaliar a quantidade absurda de informações de modo que se consiga extrair algum significado físico delas”, comenta o astrofísico Keith Taylor, do Observatório Anglo-australiano, em Epping, Austrália, um dos pioneiros no uso de cubos de dados em astronomia. Foi em 2007 que Steiner, com imagens do Gemini em mãos e inconformado com a falta de uma ferramenta matemática que permitisse utilizar a montanha de dados que havia conseguido, saiu em busca de uma solução. Testou diversas alternativas e notou que a análise de componentes principais poderia ser útil. “Essa ferramenta estatística procura associações entre os dados nem sempre claramente relacionados e permite eliminar as redundâncias, comuns nas espectrografias de campo integral de uma galáxia”, explica o astrofísico Roberto Cid Fernandes, da Universidade Federal de Santa Cantarina

(UFSC). “Por eliminar o desnecessário, a análise de componentes principais torna possível usar o mínimo de dados para representar o fenômeno com o máximo de realismo possível”, completa Fernandes, outro colaborador de Steiner, que anteriormente havia procurado sem sucesso o buraco negro da galáxia M 94 e proposto uma explicação alternativa para o brilho da região central da galáxia. Truque matemático - “Na análise de

dados distribuídos em várias dimensões, essa ferramenta estatística localiza primeiro as que concentram o maior número de informações e em seguida as que reúnem o segundo maior grupo, e assim sucessivamente”, diz o astrofísico Laerte Sodré Júnior, da USP, especialista na aplicação da análise de componentes principais à astronomia. É como se o levantamento da coleção de livros de uma casa indicasse que ela pode ser mais bem representada em primeiro lugar pelos exemplares da biblioteca, em segundo lugar pelos livros da estante da sala e em terceiro pela pequena pilha ao lado da cama. Em resumo, uma estratégia de reorganizar os dados por quantidade e relevância. Só a ferramenta estatística, porém, não resolve as dificuldades impostas pela análise do cubo de dados. Steiner, Menezes, Ricci e Oliveira desenvolveram, então, um procedimento matemático que realça as características atenuadas das imagens astronômicas. “Esse aprimoramento resultou em uma forma poderosa de extrair informação do cubo de dados”, conta Steiner. Ele aposta até mesmo que essa abordagem ultrapasse a astrofísica e se torne útil em outras áreas da ciência, que, apesar de distintas, muitas vezes estruturam a informação de modo semelhante. Segundo Steiner, as dez primeiras imagens são suficientes para recuperar 99,9% da informação contida no cubo de dados, que, no caso da galáxia M 94, contém 6 mil imagens. Essa abordagem também ajuda a selecionar e reagrupar os dados que interessam, removendo o pESQUISA FAPESP 159

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> Artigo científico STEINER, J. E. et al. PCA Tomography: how to extract information from datacubes. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 370. mai. 2009. 22

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Valsa em

descompasso

E Ilustração Lynette Cook/Observatório Gemini

que não interessa, como se fossem sucessivos filtros. Para chegar ao buraco negro da galáxia M 94, o grupo de Steiner eliminou o primeiro grupo de dados, que representavam todas as estrelas, e em seguida a informação sobre o gás e a poeira. Só então conseguiram observá-lo. “As evidências de que esse buraco negro de fato existe nunca foram tão convincentes”, comenta Fernandes, da UFSC. “Como o sinal que ele emite é muito fraco, os métodos tradicionais não conseguiriam encontrá-lo.” Essa estratégia é um tanto diferente da adotada habitualmente na astrofísica e em outras áreas da ciência. Em geral, o pesquisador formula uma pergunta e usa os métodos disponíveis à procura da resposta. Com essa abordagem, diz Steiner, a resposta é dada sem que a pergunta seja feita. “O complicado é saber interpretar os resultados que a técnica mostra”, acrescenta Fernandes. Eles nem perguntaram se havia um buraco negro na M 94. Simplesmente o encontraram, escondido onde ninguém pensaria em procurar, de modo semelhante ao que observaram em outra galáxia, a M 58 ou NGC 4579, localizada na constelação de Virgem. Em um trabalho de arqueologia estelar recém-concluído, Steiner e Fernandes propõem uma explicação para o buraco negro da M 94 se encontrar onde não deveria estar: formada há 12 bilhões de anos, na infância do Universo, a M 94 colidiu 2 bilhões de anos atrás com uma galáxia menor. O encontrão de proporções cósmicas deslocou o buraco negro de sua posição original. “Quando ele atingir o equilíbrio”, diz Steiner, “retornará para o lugar em que deveria estar, no centro da galáxia, ainda que isso leve 1 milhão de anos”. n

ta Carinae, a maior, mais brilhante e mais estudada estrela da Via Láctea, com exceção do Sol, voltou a surpreender os astrônomos no início do ano. Observada desde dezembro por dez telescópios em terra e quatro no espaço, ela atravessava um dos seus típicos apagões – redução de brilho comparável à perda de luminosidade de milhares de estrelas como o Sol que dura três meses e se repete precisamente a cada cinco anos e meio, como determinou em 1993 o astrofísico paranaense Augusto Damineli, da Universidade de São Paulo (USP). Como quem recupera as forças depois de uma gripe, Eta Carinae deveria recobrar sua luminosidade lenta e progressivamente a partir do final de março, até alcançar vigor total meses mais tarde. Dessa vez, porém, não foi assim. Na última semana de fevereiro, um mês antes do esperado, a estrela começou a sair da escuridão parcial em que se encontrava e voltou a brilhar. Habituado à inconstância de Eta Carinae, que estuda há 20 anos, Damineli acompanhou passo a passo o esmaecimento e o retorno da estrela por meio de um dos mais modernos telescópios terrestres – o Southern Observatory for Astrophysical Research (Soar), erguido nos Andes chilenos com financiamento brasileiro e norte-americano. E não se indignou ao ver que parte de sua previsão não se concretizou. “Eta Carinae sempre foi uma estrela com muitas peculiaridades”, diz o professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, que chegou a comemorar o inesperado. “Com o retorno antecipado do brilho, astrônomos do mundo todo começaram a pedir tempo nos principais telescópios do planeta para observá-la pelos próximos seis meses.” Tempo de observação é tudo aquilo por que Damineli sempre batalhou desde que começou a estudar a Eta Carinae em 1989. Mesmo com um telescópio de pro-


Em lenta dança cósmica, a estrela Eta Carinae recupera o brilho antes do esperado e surpreende os observadores

porções modestas – com espelho de 1,6 metro de diâmetro instalado no Pico dos Dias, em Minas Gerais, e chamado de telescópio da selva por seus concorrentes –, Damineli registrou o apagão de 1992 e estabeleceu o período em que deveria se repetir. Também propôs o modelo que até o momento melhor explica a perda de brilho cíclica da estrela – e o tornou reconhecido internacionalmente. Distante 7.500 anos-luz do Sistema Solar, Eta Carinae não seria uma estrela solitária, mas uma dupla de estrelas. A maior tem cerca de 90 vezes a massa do Sol e é mais fria – a temperatura em sua superfície não passa de 15 mil graus. Com um terço da massa da estrela principal, a menor é mais quente (sua atmosfera atinge quase 50 mil graus) e dez vezes menos brilhante que a maior. “Esse modelo trouxe alguma regularidade ao comportamento de Eta Carinae, que não é uma estrela tão exótica quanto se imaginava”, explica Damineli. Com movimentos que lembram o de um casal dançando valsa, as estrelas se afastam e se aproximam ao longo do período de cinco anos e meio. No momento de máxima proximidade – o chamado periastro –, a estrela maior encobre parte

da menor. Mas esse eclipse não explica completamente a perda de brilho detectada pelos telescópios, que veem sumir progressivamente diferentes faixas do espectro eletromagnético (rádio, infravermelho e raios X). Se o eclipse fosse o único mecanismo por trás do apagão, todas essas linhas de energia deveriam desaparecer ao mesmo tempo. Simulações tridimensionais do comportamento das estrelas apresentadas no ano passado pela equipe de Atsuo Okazaki, da Universidade Tokkai-Gakuen, no Japão, e de Michael Corcoran, da agência espacial norte-americana (Nasa), indicam que o apagão é causado por perturbações no vento de partículas que emanam das estrelas e colidem a velocidades altíssimas, emitindo raios X. No período em que estão mais próximas, a menor é engolfada pelo vento da maior, que é mais denso e oculta o brilho da estrela secundária. Segundo Damineli, a redução em um mês no apagão deste ano acrescentou uma complexidade a um cenário já complicado. “As estrelas se comportavam como duas bailarinas até o momento de embolação, quando fizeram uma firula e adiantaram um pouco o passo ao se afastar”, comenta o astrofísico da

USP. Ele próprio já tem uma possível explicação para o descompasso de Eta Carinae. Por ter massa muito elevada – hoje correspondente a 90 vezes a massa do Sol, mas que já foi de 120 massas solares antes da explosão que sofreu em 1843 –, a estrela maior é menos densa e seu diâmetro pode oscilar, como um balão de festa que infla um pouco para em seguida murchar. “Nos períodos em que se encontra mais compacta, ela perde menos matéria e seus ventos se tornam mais rarefeitos”, explica Damineli. Se a aproximação ocorre nessa fase, a luz da estrela secundária pode escapar mais facilmente dos ventos que a abraçam e, assim, ser observada da Terra. Toda essa instabilidade não são excentricidades de uma estrela acostumada a chamar a atenção. Medidas da massa que a estrela principal já lançou ao espaço indicam que seu fim está próximo e, com 2,5 milhões de anos, Eta Carinae seria uma velha dama com os dias contados. Se estiverem corretas as previsões de Nathan Smith, astrofísico da Universidade da Califórnia e estudioso de Eta Carinae, a qualquer momento a estrela maior pode sofrer uma superexplosão muito mais intensa do que a de 1843, capaz de reduzi-la a poeira e encerrar de vez o balé espacial. Nessa explosão, 90% de sua massa seria pulverizada e o restante se compactaria originando um buraco negro, emissor de raios gama, a radiação mais intensa que existe. “Seria um evento fantástico de se observar”, afirma Damineli. A morte de Eta Carinae permitirá compreender um estágio a mais do ciclo de vida das supergigantes azuis, estrelas hoje raras que dominaram o Universo primitivo, entre 10 bilhões e 7 bilhões de anos atrás. n

Explosão de 1843: Eta Carinae lança ao espaço o equivalente à massa de 30 estrelas como o Sol

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Estratégias MUNDO

Pelo menos cem pessoas, entre cientistas, autoridades e jornalistas científicos interessados em pesquisa com células-tronco, foram vítimas de uma fraude na internet. Falsos perfis com seus nomes foram criados na rede social Facebook, simulando uma comunidade vinculada ao assunto. “Não gosto nem de pensar por que fizeram isso comigo”, disse à revista Nature Elaine Fuchs, pesquisadora da Universidade Rockefeller, em Nova York, um dos alvos da impostura. A rede retirou os perfis do ar e nenhum prejuízo chegou a ser registrado. Mas as razões que levaram os falsários a criar os perfis animaram os debates entre especialistas em segurança na internet. “As pessoas inventam perfis para sugerir que uma ideia é melhor ou pior do que é na verdade”, disse John Wilbanks, vice-presidente da organização Creative Commons. Um dos perfis fraudados, o do jornalista Rick Weiss, do jornal Washington Post, continha comentários de um certo John Birch, nome de uma entidade que se opõe a pesquisas com células-tronco embrionárias. Mas há outras suspeitas. “Não é impossível imaginar que um pesquisador tenha criado um falso perfil para, fazendo-se passar por outra pessoa, obter dados de um cientista rival”, aposta Davide Balzarotti, especialista em segurança computacional.

Impostura no Facebook

> O desgaste do ministro

Ilustrações laurabeatriz

Empossado há sete meses, o ministro da Ciência e Tecnologia do Canadá, Gary Goodyear, desgastou-se em tempo recorde com a comunidade acadêmica do país. Primeiro tratou com destempero representantes da Associação dos

Professores Universitários do Canadá, que se queixavam das prioridades do orçamento do ministério. Mas o que causou mais constrangimento foi sua posição dúbia acerca da evolução. Evangélico fervoroso, ficou irritado quando um jornalista lhe perguntou se acreditava na teoria de Charles Darwin. “Sou cristão e não acho

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que seja apropriado falar sobre minhas convicções religiosas.” Mais tarde disse que fora mal interpretado e que aceitava, sim, a evolução. Mas o estrago estava feito. “Assim como o ministro da Agricultura precisa saber a diferença entre uma novilha e um porco, é razoável exigir que um ministro da Ciência se pronuncie

com base em evidências científicas”, disse Robert Wolkow, professor de física da Universidade de Alberta.

> Japão e Alemanha buscam o sol Dezenas de milhares de residências e prédios comerciais japoneses vão


Um bom legado de Bush

país. Em 1999 os nipônicos lideravam a capacidade mundial de geração de energia solar, posição que mantiveram por vários anos. Em 2005 as células solares instaladas no Japão respondiam por 45% da produção global, mas em 2007 esse quinhão caiu para apenas 24,6%, pouco à frente da China, com 22%. Nesse período o país foi superado por nações como a Alemanha e a Espanha. Entre 2003 e 2007 os japoneses mais do que dobraram sua capacidade, mas não conseguiram acompanhar os germânicos, que multiplicaram por nove sua capacidade. No Japão 80% dos painéis solares

centenária

Pela primeira vez um laureado com o Prêmio Nobel comemorou o aniversário de 100 anos. Nascida em 22 de abril de 1909, a neurocientista italiana Rita Levi-Montalcini, vencedora do Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1986 pela descoberta do fator de crescimento das células nervosas, festejou seu centenário num encontro científico em Roma. “Minha mente é superior, graças à experiência, à que eu tinha aos 20 anos”, disse ela, segundo a agência Associated Press. Na solenidade, a ministra da

Educação da Itália, Maria Stella Gelmini, anunciou duas homenagens à cientista: uma dotação de € 500 mil para o Instituto Europeu de Pesquisa do Cérebro, fundado por LeviMontalcini, e um programa de € 6 milhões com o nome da cientista centenária para atrair de volta para o país jovens pesquisadores italianos radicados no exterior. Rita Levi-Montalcini é uma das mais ativas defensoras dos investimentos em pesquisa no país e desde 2001 ocupa o cargo de senadora vitalícia na Itália.

Michael Frank

World Bank/Arne Hoel

Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente obteve resultados tão animadores no combate à epidemia de Aids na África. Não se trata de Barack Obama, que, afinal, ainda não teve tempo de mostrar serviço nesse campo, mas de seu antecessor George W. Bush. De acordo com um estudo publicado pelos médicos Jay Bhattacharya e Eran Bendavid, da Universidade Stanford, o Plano de Emergência de Combate à Aids do Presidente dos Estados Unidos (Pepfar, na sigla em inglês), reduziu em 10% as mortes causadas pela doença em 12 países africanos, ao custo de Assistência a paciente com Aids na África: vidas poupadas US$ 2,7 mil por vida poupada. O Pepfar investiu US$ 15 bilhões desde 2004 e em 2008 encontram-se em casas instalar painéis solares em foi autorizado a gastar mais US$ 48 milhões nos próximos e edifícios comerciais. seus telhados, graças a um cinco anos. O programa produziu controvérsias. Houve quem Já na Alemanha 60% se recém-lançado programa criticasse a pouca ênfase em programas de prevenção — encontram em indústrias, subsidiado pelo governo. cerca de 60% dos recursos foram gastos com a distribuição que aderiram em peso à Segundo a revista Nature, a de drogas retrovirais. Mas o que causou mais polêmica foi a destinação dos parcos recursos para prevenção. O dinheiro energia solar estimuladas iniciativa faz parte de uma por isenções de impostos. estratégia para devolver ao foi canalizado para ineficientes programas que pregavam Japão a liderança mundial a abstinência sexual, em vez de promover hábitos como o em uso da energia solar, que uso de preservativos. A renovação do programa, definida já foi um orgulho para o > Cientista em 2008, baniu esse viés.

Rita Levi-Montalcini: a vencedora do Nobel faz 100 anos

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Estratégias MUNDO

> O menu das más condutas Num esforço para combater fraudes e condutas desonestas no meio acadêmico, o Ministério da Educação da China publicou uma espécie de índex de atos e comportamentos inadequados, assim como estipulou punições para quem praticá-los. De acordo com o documento, cometer plágio, falsificar dados e referências, fraudar 26

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currículos e usar o nome de outros pesquisadores sem pedir permissão poderá dar punição com demissão, suspensão do financiamento de projetos de pesquisa, cassação de prêmios e processos na Justiça. As medidas são uma resposta a um recente escândalo envolvendo a Universidade Zhejiang, na cidade de Hangzhou, onde dois professores de ciências farmacêuticas, He Haibo e Li Lianda, perderam seus

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o campo acadêmico livre de fraudes”, disse à agência SciDev.Net Xu Mei, a porta-voz do ministério. Para Hou Zinyi, professor de direito da Universidade Nankai, na cidade de Tianjin, as iniciativas do governo são superficiais. Segundo ele, é preciso aliviar a pressão sobre os pesquisadores, principalmente os mais jovens, que se veem obrigados a publicar artigos em grande quantidade e acabam recorrendo a trapaças.

Recro-Net

Inovação no deserto

O Qatar inaugurou oficialmente um parque científico e tecnológico de US$ 800 milhões, para atrair empresas e institutos de pesquisa nos campos de energia, meio ambiente, saúde e tecnologia da informação. Instalada na capital Doha, a iniciativa oferece aos parceiros internacionais isenções fiscais e outras vantagens financeiras e já conseguiu atrair 15 empresas estrangeiras, entre as quais a ExxonMobil, GE, Microsoft, a Rolls Royce e a Shell, que vão trabalhar em frentes como o desenO parque em Doha: investimento de US$ 800 milhões volvimento de tecnologias ligadas à energia solar e em pesquisa aeroespacial. O espaço dispõe de um centro de inovação e transferência cargos acusados de plágio. Em 2006 o governo chinês de tecnologia cuja função é estimular novos negócios nas já havia criado um esquema companhias afiliadas e incubar pequenas empresas. Serão para monitorar projetos distribuídas bolsas de US$ 100 mil e US$ 500 mil para pesquisadores envolvidos em projetos inovadores. Um fundo de de pesquisa depois de uma série de acusações US$ 30 milhões vai fomentar a aplicação no próprio país das envolvendo condutas tecnologias desenvolvidas no polo, em cujas proximida­­des funcionam filiais de universidades norte-americanas como a desonestas. “As medidas Carnegie Mellon, a Cornell, a Georgetown, a Northwestern, buscam criar um mecanismo a Texas A&M e a Virginia Commonwealth. de prevenção que mantenha

> Intercâmbio muçulmano Os 57 países membros da Organização da Conferência Islâmica (OIC, na sigla em inglês) criaram um fórum para compartilhar tecnologias nos campos da engenharia, medicina, agricultura, biotecnologia e energia. Países interessados em tecnologias específicas poderão recorrer ao fórum, que ajudará a contatar institutos de pesquisa e a negociar acordos. “O fórum é um passo importante para incentivar negócios baseados em conhecimentos científicos no mundo muçulmano”, disse à agência SciDev.Net Hassan Moawad Abdel Al, ex-presidente da Cidade Mubarak para Pesquisa Científica e Aplicações Tecnológicas, em Alexandria, Egito.


Estratégias brasil

Unicamp

O médico hematologista Fernando Ferreira Costa, de 58 anos, tomou posse, no dia 17 de abril, como reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Seu mandato vai até 2013. Professor da Faculdade de Ciências Médicas, pró-reitor de Pesquisa entre 2002 e 2005, Costa substitui José Tadeu Jorge, de quem foi vice-reitor nos últimos quatro anos. Ele havia sido o mais votado numa consulta feita a professores, alunos e funcionários da Unicamp, com 60,97% dos votos ponderados, e seu nome encabeçava a lista tríplice enviada ao governador José Serra, que o nomeou reitor no dia 4 de abril. No discurso de posse, Costa disse que um dos principais desafios da Unicamp nos próximos anos será promover uma análise da estrutura curricular dos cursos de graduação para atualizar conteúdos e racionalizar recursos físicos e humanos. “A história da formação da universidade

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) vai ajudar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a acompanhar a ocupação e uso do solo dos cerca de 8,2 mil assentamentos brasileiros. A parceria foi delineada num encontro entre os dirigentes das duas instituições federais no final de abril. “O Incra terá à disposição as mais recentes tecnologias desenvolvidas pelo Inpe para monitoramento ambiental e territorial”, disse o diretor-geral do Inpe, Gilberto Câmara. “Com essa atuação conjunta teremos instrumentos para verificar e mostrar com transparência o modelo de agricultura adotado pelos assentados”, afirmou Rolf Hackbart, presidente do Incra. Técnicas de sensoriamento remoto e geoprocessamento similares às utilizadas pelo Inpe desde 2003 para mapear a área cultivada com cana-de-açúcar serão empregadas para gerenciar os assentamentos. O primeiro passo da parceria será o treinamento de servidores do Incra sobre as ferramentas disponibilizadas pelo Inpe. Inicialmente serão abertas cinco turmas, cada uma com 12 alunos.

acarretou alguns problemas que o momento exige equacionar. Entre esses problemas está a excessiva

compartimentalização dos cursos e das disciplinas, que impede a otimização dos recursos humanos e materiais e dificulta a implantação de uma perspectiva verdadeiramente universitária, cada vez mais importante para a boa formação científica e cultural dos estudantes”, disse o novo reitor.

Tadeu Jorge e Fernando Costa: sucessão

inpe

> Costa assume reitoria da Unicamp

Assentamentos monitorados

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> Capes tem novo diretor de avaliação Lívio Amaral, professor titular de física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi nomeado diretor de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O cargo vinha sendo ocupado cumulativamente pelo presidente da Capes, Jorge Guimarães, desde o ano passado, quando o professor de filosofia Renato Janine Ribeiro deixou a função. A Diretoria de Avaliação (DAV) é responsável pelo Sistema de Avaliação da Pós-graduação da Capes, responsável pela classificação e credenciamento dos cursos de mestrado e doutorado stricto sensu do país.

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Estratégias brasil

> Biodiversidade e produção agrícola A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) anunciou a criação de uma nova unidade no estado que concentra mais de 17% das áreas cultivadas no país. A Embrapa Mato Grosso vai funcionar no município de Sinop, a 500 quilômetros de Cuiabá (MT), e se dedicará a pesquisas em sistemas integrados de produção de alimentos, fibras, florestas e agroenergia. “A região tem uma grande riqueza biológica, concentrando as chamadas áreas de transição, onde se encontram os biomas da Amazônia, Cerrado e Pantanal”, justificou o diretor presidente da Embrapa em exercício, Kepler Euclides. “E o estado também tem um forte ■

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impacto nos resultados da produção agrícola brasileira, além de ser um importante centro de produção pecuária.” A unidade terá uma equipe de 101 pessoas entre pesquisadores, analistas e assistentes, contratados ao longo de dois anos. O custo de implantação está avaliado em R$ 10 milhões. A Embrapa tem 38 unidades distribuídas em 21 estados e no Distrito Federal. A empresa também planeja criar dois novos centros de pesquisa, um em Tocantins e outro no Maranhão.

> Mistério e destino em Bremen A mostra Brazilian nature mystery and destiny (Natureza brasileira: mistério e destino), que se baseia em imagens e dados

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oriundos de três projetos financiados pela FAPESP, a Flora brasiliensis on-line, a Flora fanerogâmica do estado de São Paulo e o Biota-FAPESP, ficará exposta entre 15 de maio e 12 de julho na Haus der Wissenschaft (Casa da Ciência), na cidade de Bremen, no norte da Alemanha. Os painéis da exposição, que no ano

passado foram apresentados no Museu do Jardim Botânico de Berlim, têm textos explicativos em inglês, pois há a intenção de que a mostra viaje por outros países, mas são acompanhados de um catálogo em alemão. O conteúdo foi compilado com a ajuda de representantes dos três programas de pesquisa.

reprodução do livro flora brasiliensis de von martius

Jacob Palis: “Gostei muito do que ouvi”

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O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o matemático Jacob Palis, conheceu em profundidade três programas de pesquisa da FAPESP, o de Bioenergia (Bioen), o de Mudanças Climáticas Globais e o da biodiversidade paulista (Biota), em visita à Fundação no dia 28 de abril. Os coordenadores dos programas expuseram e discutiram com o matemático o escopo de suas pesquisas. “Gostei muito do que ouvi. Tivemos diálogos enriquecedores”, definiu o presidente da academia. Na avaliação de Palis, o encontro, embora tivesse como objetivo apenas aproximar as duas instituições, certamente ajudará a subsidiar os grupos de estudos da ABC que discutem grandes temas de ciência nacional e preparam documentos para esclarecer a sociedade e ajudar os formuladores de políticas públicas. As conversas envolveram outros temas, como a necessidade de investir mais em pesquisas em campos como a oceanografia e a matemática. Palis também discutiu a oportunidade de aproveitar o momento de crise financeira internacional para atrair ao Brasil pesquisadores de países desenvolvidos. Ao final do encontro, delineou-se a pauta de uma futura reunião, na qual a FAPESP exporá os resultados de seus programas de pesquisa nos campos da neurociência e da tecnologia da informação.

Diálogos enriquecedores

eduardo cesar

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Imagens da exposição: retratos de ontem...


Colaboração reconhecida

A FAPESP enviou à Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), sediada na fronteira entre a França e a Suíça, um memorando de en­tendimento para formalizar a participação de pesquisadores paulistas no Worldwide LHC Computing Grid (WLCG), uma colaboração global que reúne mais de 140 centros de computação científica em 35 países. O objetivo do WLCG é fornecer e manter a infraestrutura de análise e armazenamento de dados de toda a comunidade de LHC: centros de 35 países armazenam dados física de altas energias que participa dos experimentos do Large Hadron Collider (LHC), o maior instrumento científico > Prêmio aos inovadores já construído. O acordo entre FAPESP e Cern também envolve a Universidade Estadual Paulista (Unesp). De acordo com O diretor científico da Sérgio Ferraz Novaes, professor do Instituto de Física Teórica FAPESP, Carlos Henrique da Unesp e coordenador do Centro Regional de Análise de de Brito Cruz, foi um dos São Paulo (Sprace), que participa desde 2006 do WLCG, a agraciados com o prêmio assinatura do memorando é condição necessária para que o Cern reconheça a colaboração brasileira no processamento Distinguished Innovators, concedido pela Business de dados do experimento internacional. “Apesar de já operar Software Alliance (BSA), ativamente há pelo menos três anos, a participação do Sprace principal associação não era oficialmente reconhecida pelo Cern por falta desse memorando”, disse ele à Agência FAPESP. da indústria de software

mundial. Segundo a volker bittrich

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) criou uma comissão, composta de 22 sociedades científicas, voltada para mapear os principais gargalos da ciência brasileira ante os desafios de inovação das empresas e aproximar a academia do setor privado. A comissão irá produzir um documento, que deve ficar pronto em 2010, com diretrizes para a elaboração de políticas públicas e industriais. Serão analisados e discutidos estudos e pesquisas desenvolvidos por universidades de todo o país. Está prevista, ainda, a realização de uma série de workshops promovidos pela SBPC em conjunto com outras instituições. A proposta é que, num primeiro momento, o documento apresente as contribuições das ciências básicas e das engenharias à inovação tecnológica. A comissão é coordenada pelo professor Roberto Mendonça Faria, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.

ricardo zorzetto

> Para se aproximar do setor privado

... e de hoje da biodiversidade brasileira

entidade, o prêmio reconhece o papel da FAPESP no financiamento a pesquisas em ciência da computação e no estímulo à inovação no setor privado em tecnologia da informação. A BSA também premiou os pesquisadores João Meidanis e João Setubal, organizadores do projeto do sequenciamento genético da Xylella fastidiosa, patógeno causador da praga do

amarelinho nos laranjais, que inaugurou o Programa Genoma FAPESP. Foram agraciados, ainda, Claire Feliz Regina, pelos esforços para modernizar o sistema de declaração de imposto de renda; a Câmara de Pagamentos Interbancários, que criou um sistema para a transferência de dinheiro em tempo real; e Bruno Ghizoni, da consultoria de negócios Neos Technology Innovation.

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política científica e tecnológica

ENERGIA

Balanco

sustentável

Estudo da Embrapa atualiza as vantagens do etanol no combate aos gases causadores do efeito estufa Fabrício Marques

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produção e o consumo do etanol de cana-de-açúcar brasileiro emitem 73% menos dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases causadores do efeito estufa, do que os processos de obtenção e de queima da gasolina comercializada no país. Pesquisadores da Embrapa Agrobiologia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária instalada em Seropédica (RJ), chegaram a esse resultado ao fazer um balanço atualizado da quantidade de energia fóssil necessária para produzir o álcool combustível, que contemplou novas variáveis, como a substituição do uso do solo e o índice de mecanização da colheita. “Balanços energéticos são importantes porque dão a medida da sustentabilidade de um combustível”, observa o biólogo e agrônomo Luis Henrique de Barros Soares, da Embrapa Agrobiologia, que assina o estudo juntamente com os pesquisadores Bruno José Rodrigues Alves, Segundo Urquiaga e Robert Michael Boddey. “No caso do etanol de cana, evidencia-se uma vantagem significativa em relação à gasolina e ao óleo diesel. Considerando o total de etanol produzido na última safra, o país contribuiu para mitigar 50 milhões de toneladas de CO2, ou 13,4% das emissões totais de gases causadores do efeito estufa derivados do uso de combustíveis fósseis”, diz. O estudo foi desenvolvido com base em dados compilados pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) e em medições de campo. Os pesquisadores levaram em conta as emissões de uma caminhonete modelo S-10, da Chevrolet, motor flex, num percurso de 100 quilômetros – utilizando ora gasolina pura, ora etanol. E repetiram a análise com outra caminhonete do gênero, movida a diesel.


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O caráter sustentável do etanol de cana é conhecido há várias décadas. Além do fato de ser um combustível renovável, o álcool brasileiro leva vantagens em relação ao etanol extraído de outras plantas, como o milho e a beterraba, tanto na produtividade quanto na capacidade de gerar eletricidade por meio de seus resíduos. Mas os balanços energéticos levam em conta uma miríade de tópicos, como a emissão de gases na produção e aplicação de herbicidas e fertilizantes, na construção da usina de álcool, na fabricação das máquinas agrícolas, no transporte do combustível até o consumidor final, entre outras. O trabalho da Embrapa é o mais recente de uma série de balanços energéticos do etanol – e seu mérito está em preencher lacunas e em dar respos-

tas a dúvidas levantadas por estudos anteriores. Um dos primeiros estudos do gênero foi publicado pelo físico José Goldemberg, em 1978, na revista Science. Concluiu que, para produzir um litro de etanol, gasta-se aproximadamente um décimo de litro de combustível fóssil. Em reconhecimento a esse estudo pioneiro, Goldemberg foi incluído numa lista feita pela revista Time, no ano passado, dos heróis mundiais do meio ambiente. “O estudo da Embrapa será de grande utilidade, porque é extremamente detalhado e atualizado”, elogia Goldemberg. Na década de 1990, o professor de engenharia Isaias de Macedo, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade Estadual de Campinas (Nipe-Unicamp), fez um novo balanço utilizando dados mais

atualizados e concluiu que a vantagem do etanol para a gasolina era de 8 para 1 – um resultado compatível tanto com o levantamento de Goldemberg quanto com o da Embrapa. A questão é que outros estudos chegaram a resultados diversos, a depender das variáveis que se levavam em conta na equação. Em 1988, por exemplo, uma pesquisa liderada por David Pimentel, professor de Ecologia da Universidade Cornell, chegou a um resultado 50% inferior, mas levava em conta que a geração de energia nas usinas baseava-se no uso de combustíveis fósseis. Hoje isso praticamente não acontece no Brasil, pois o bagaço da cana é usado pelas usinas para produzir a eletricidade que consomem. Um questionamento mais recente diz respeito à mudança no uso do solo. Num estudo publicado em fevereiro de 2008 na revista Science, um grupo de pesquisadores liderados por Timothy Searchinger, da Universidade Princeton, propôs uma nova metodologia que contempla também os efeitos indiretos no uso do solo causados pelo aumento no interesse pelos biocombustíveis, como a ampliação da área do plantio de soja no Mato Grosso atribuída ao crescimento do cultivo de milho para a produção de etanol nos Estados Unidos, ou o avanço da pecuária na Floresta Amazônica supostamente impulsionado pelo crescimento da cana em áreas de criação de gado em São Paulo. “Estudos desse tipo ignoraram as peculiaridades da produção do etanol no Brasil e foram claramente usados para desacreditar o combustível”, afirma José Goldemberg. Conversão de pastagens - De acordo

com o modelo de Searchinger, o etanol de milho norte-americano, em vez de promover uma redução de 20% nas emissões, dobraria as emissões de gases em 30 anos e aumentaria as emissões durante 167 anos. Embora admita que o etanol de cana é bem mais produtivo do que o de milho, Searchinger faz uma advertência: se o aumento da área cultivada basear-se na conversão de pastagens tropicais, as emissões de gases podem ser compensadas em quatro anos. Mas se implicar o desmatamento da floresta tropical, o período de compensação subiria para 45 anos. 32

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O trabalho da Embrapa responde a uma dúvida sobre os efeitos da mudança do uso do solo e mostra que os canaviais substituíram

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pastagens, não florestas

O estudo da Embrapa debruça-se sobre esse questionamento e encontra uma resposta que reitera a vantagem do etanol. Levando em conta a expansão do plantio de cana no território paulista, os pesquisadores mostram que ele não se deu sobre a floresta tropical, cuja cobertura permaneceu estável nos últimos 40 anos. No passado recente, o impacto da cana sobre outras culturas foi pequeno. Houve uma pequena redução da área plantada com soja e milho, enquanto os laranjais e os pés de café mantiveram o mesmo espaço no período. A cana avançou sobre a pecuária, que, contudo, não sofreu com isso, uma vez que a produtividade das pastagens paulistas aumentou. “Pode-se afirmar que a cana avançou principalmente sobre áreas degradadas, porque a pastagem, quando bem manejada, é lucrativa”, diz Luis Henrique. Segundo ele, é razoável transpor esse tipo de mudança do uso da terra para as novas fronteiras do avanço da cana. A região do Cerrado, por exemplo, tem um perfil semelhante, com pecuária extensiva de lucratividade restrita. Na avaliação do meteorologista Carlos Nobre, coordenador do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o estudo da Embrapa faz justiça à capacidade do etanol de mitigar efeitos das mudanças climáticas. Mas, ele observa, ainda resta um desafio para agregar valor ecológico ao biocombustível brasileiro. “Outras monoculturas, como a do eucalipto, por exemplo, conseguiram resgatar um pouco das funções ecológicas dos ecossistemas que substituíram. Recuperaram, por exemplo, matas ciliares. Isso ainda não se vê com as plantações de cana”, afirma. “Esse é um déficit que o setor deve ao meio ambiente e à socie-

dade. Os pesquisadores têm um papel a desempenhar nessa tarefa, ajudando a produzir estudos científicos e a encontrar soluções tecnológicas sobre esse assunto. E essa recomposição seria altamente benéfica inclusive para o negócio da cana”, diz Nobre. O agronegócio de cana-de-açúcar movimenta R$ 40 bilhões por ano no país. A safra 2007/2008 colheu cerca de 550 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, 15,2% a mais do que a anterior. Metade dela é destinada à fabricação de etanol, o que faz do Brasil o segundo maior produtor do combustível no mundo. O primeiro lugar cabe aos Estados Unidos, que extraem etanol de milho a poder de pesados subsídios. Dois terços da produção nacional estão no estado de São Paulo. Mecanização - Segundo o trabalho da

Embrapa, um hectare de cana produz por ano 3.244 quilos (kg) de gases estufa, em equivalentes de CO2, enquanto as lavouras de soja e milho emitem em média 1.160 kg e as pastagens, 2.840 kg. Mas um hectare de cana substitui 4.500 litros de gasolina, cuja combustão emite 16,4 toneladas de CO2 por ano para a atmosfera. O resultado é que a cada hectare de cana transformado em álcool e utilizado em substituição à gasolina produz uma redução de mais de 12 toneladas nas emissões de CO2 anuais. Um dado que favoreceu o balanço foi a crescente mecanização da colheita da cana, que vem substituindo o artifício das queimadas, usadas para limpar o solo, mas que espalham gases estufa, como o CO2 e o metano (CH4) na atmosfera. O metano, aliás, tem um potencial de efeito estufa 21 vezes maior que o gás carbônico. Hoje a mecanização já envolve 60% da área de plantio do estado de São Paulo e, por força de lei, deverá até 2022 atingir quase a totalidade das fazendas de cana – a

exceção serão as áreas com declividade superior a 12%, em que só a colheita manual é possível. Segundo o estudo, se a colheita da cana fosse totalmente mecanizada, sem recorrer a queimadas, a vantagem do álcool seria ainda maior: 86% superior à gasolina e 78% em relação ao óleo diesel. “A colheita de cana crua elimina a emissão dos gases metano e óxido nitroso e também reduz a emissão vinculada ao uso da mão de obra. Em compensação a máquina colhedora de cana consome 40 litros de diesel no mesmo período”, diz Luis Henrique. “Mas a comparação entre as emissões dos dois sistemas do corte deixa muito claro que, apesar do consumo pesado da máquina cortadora, a eliminação da queima diminui em quase 80% as emissões totais que ocorrem na colheita.” O estudo da Embrapa cita dois estudos recentes, um de Robert Boddey e colegas da própria instituição, e outro do grupo de Carlos Cerri, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) do campus “Luiz de Queiroz” da USP em Piracicaba, segundo os quais a mudança de uso do solo sob pastagens para lavouras de cana-de-açúcar colhida crua leva a um aumento nos estoques de carbono no solo. O uso de fertilizantes também teve destaque no estudo. Cada quilo de nitrogênio na forma de fertilizante emite em sua síntese 4,50 quilos de CO2 para a atmosfera. Mas o Brasil utiliza menos adubo nitrogenado na cana em relação a outros países, graças à capacidade da cultura de fixar o nitrogênio do ar através da ação de bactérias. Após comparar o etanol de cana com a gasolina e o diesel, a Embrapa Agrobiologia irá preparar estudos com dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) para comparar a economia de CO2 na produção de etanol de n milho norte-americano. PeSQUISA FAPESP 159

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Cooperação entre Sabesp e FAPESP vai investir em tecnologias para melhorar a qualidade dos serviços de saneamento

contratos de concessão”, afirma. Com a ampliação dos investimentos em pesquisa, a empresa busca atingir metas como reduzir a perda de água nas tubulações para 13% até 2019 – atualmente a perda gira em torno dos 28%; a reciclagem de lodo e a comercialização de novos produtos, como o gás metano proveniente do lixo e a água de reúso para indústrias. “As articulações que já temos com universidades e centros de pesquisa serão potencializadas com o investimento e o crivo da FAPESP na seleção dos projetos”, diz Oliveira. Para o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, o acordo sinaliza uma importante estratégia da empresa pública no estado de São Paulo para ampliar e consolidar suas atividades de pesquisa e desenvolvimento. “Este é um dos maiores acordos de pesquisa cooperativa estabelecidos pela Fundação e esperamos uma resposta muito participativa da comunidade de pesquisa ao edital que será anunciado”, afirmou. n

eduardo cesar

FAPESP e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) assinam no dia 12 de maio um termo de cooperação para patrocinar projetos de investigação que envolvam pesquisadores da empresa e das universidades e de institutos de pesquisa paulistas. Está previsto um investimento de até R$ 50 milhões ao longo dos próximos cinco anos, sendo a metade proveniente da Fundação e a outra metade da Sabesp. Os projetos deverão vincular-se a temas como o aumento da eficiência nos processos de tratamento de água, o monitoramento da qualidade da água, a redução da quantidade de lodo produzido e sua reciclagem, a diminuição do consumo de eletricidade na operação de sistemas de saneamento, o combate à perda de água nas tubulações, além de estudos econômicos sobre o desenvolvimento do setor de saneamento. As chamadas de proposta serão divulgadas por meio de um edital. A Sabesp investe atualmente R$ 3,5 milhões anuais em pesquisa e desenvolvimento. Com a parceria, ampliará esse montante anual para R$ 5 milhões, que se somarão a outros R$ 5 milhões financiados pela Fundação. “Investir em pesquisa e inovar são essenciais para o futuro da Sabesp”, diz Gesner Oliveira, presidente da companhia. “Hoje o mercado está mais competitivo, há padrões de exigência ambiental mais rigorosos, somos regulados por uma agência externa e temos de enfrentar o desafio de universalizar os serviços. Precisamos ter capacidade de incorporar novas tecnologias”, afirma. Com patrimônio de R$ 4 bilhões e 17 mil empregados, a Sabesp é a principal empresa de saneamento do país. O estado de São Paulo controla a empresa, com 50,3% de seu capital, enquanto os demais 49,7% pertencem à iniciativa privada. Segundo Oliveira, a empresa precisou se reposicionar num mercado em que, anteriormente, não havia concorrência. Hoje, ao contrário, a Sabesp necessita renegociar contratos com as prefeituras, que podem dispensar seus serviços e optar por outros arranjos, como a criação de autarquias municipais. “Recentemente, renovamos 160

A arquitetura da água

Desenvolvimento


reprodução Bond of Union, M.C.Escher

> Colaboração

Modelo em

expansão FAPs montam redes para pesquisar a dengue, desenvolver biocosméticos e aumentar a segurança nas transfusões de sangue

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stá crescendo a articulação entre fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs) em torno de programas conjuntos. Depois do lançamento da Rede Malária, que vai reunir pesquisadores de sete unidades da federação em torno de estudos colaborativos sobre a doença e de convênios firmados entre a FAPESP e as fundações de Minas Gerais (Fapemig) e do Maranhão (Fapema), pelo menos três novas iniciativas começam a ser articuladas, envolvendo o desenvolvimento de biocosméticos na Amazônia, a segurança nas transfusões de sangue e a pesquisa sobre a dengue. “Existem temas de interesse que permeiam diversos estados e as fundações criaram musculatura para celebrar tais colaborações”, diz Mario Neto Borges, presidente do Conselho Nacional das FAPs (Confap) e da Fapemig. A iniciativa mais recente foi deflagrada no início de abril, quando o Confap deu os primeiros passos para a formação da Rede Dengue, que deverá envolver FAPs de 15 estados, entre as quais a FAPESP. A proposta inicial prevê que as fundações investirão, ao todo, R$ 10 milhões na pesquisa da doença, que deverão somar-se a outros R$ 10 milhões do governo federal, sendo R$ 5 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e outros R$ 5 milhões do Ministério da Saúde. Os editais, que serão discutidos entre os parceiros, devem ser lançados ainda neste ano. “O CNPq

lançou o desafio para criar essa rede e as fundações aceitaram”, diz Mario Neto Borges. A Rede Amazônica de Pesquisa em Desenvolvimento de Biocosméticos (RedeBio) terá seu edital divulgado neste mês. Serão investidos R$ 6,8 milhões, divididos entre as FAPs do Amazonas, Pará e Maranhão e os governos do Tocantins e do Amapá, no desenvolvimento de produtos derivados de três insumos encontrados na região: a castanha, o babaçu e a andiroba. As pesquisas contempladas deverão envolver pesquisadores de pelo menos três estados da rede. “A ideia é ampliar os recursos da rede com dinheiro privado. Assim que os projetos forem definidos, vamos procurar empresas interessadas em investir neles”, diz Odenildo Sena, diretor presidente da FAP do Amazonas (Fapeam). Já a Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Transfusional, financiada por sete fundações estaduais de amparo à pesquisa e pelo Ministério da Saúde, busca aumentar a segurança dos usuá­ rios de bancos de sangue do país. As fundações envolvidas são as de Minas Gerais (Fapemig), Pernambuco (Facepe), São Paulo (FAPESP), Rio de Janeiro (Faperj), Santa Catarina (Fapesc), Amazonas (Fapeam) e Distrito Federal (FAP-DF). Os hemocentros de cada estado serão responsáveis por desenvolver pesquisas que levem à melhoria da qualidade do sangue, por meio de tecnologias que tornem as transfusões mais seguras. De acordo com a presidente da Fundação Hemominas, Anna Bárbara Proietti, a Rede Brasileira de Segurança Transfusional vai funcionar em sistema cooperativo, com projetos de pesquisa multicêntricos. “Vamos investir em diferentes frentes de pesquisa capazes de aumentar a segurança das transfusões”, diz Anna Bárbara. Segundo ela, os esforços deverão envolver desde a busca de métodos seguros de captação de doadores até o desenvolvimento de marcadores sorológicos. Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco estão um passo à frente, pois já participam do Estudo Multicêntrico Internacional em Doadores de Sangue (Reds), financiado pelo Instituto de Pesquisas em Sangue da Califórnia, nos Estados Unidos. n

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reprodução Bond of Union, M.C.Escher

> Colaboração

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expansão FAPs montam redes para pesquisar a dengue, desenvolver biocosméticos e aumentar a segurança nas transfusões de sangue

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stá crescendo a articulação entre fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs) em torno de programas conjuntos. Depois do lançamento da Rede Malária, que vai reunir pesquisadores de sete unidades da federação em torno de estudos colaborativos sobre a doença e de convênios firmados entre a FAPESP e as fundações de Minas Gerais (Fapemig) e do Maranhão (Fapema), pelo menos três novas iniciativas começam a ser articuladas, envolvendo o desenvolvimento de biocosméticos na Amazônia, a segurança nas transfusões de sangue e a pesquisa sobre a dengue. “Existem temas de interesse que permeiam diversos estados e as fundações criaram musculatura para celebrar tais colaborações”, diz Mario Neto Borges, presidente do Conselho Nacional das FAPs (Confap) e da Fapemig. A iniciativa mais recente foi deflagrada no início de abril, quando o Confap deu os primeiros passos para a formação da Rede Dengue, que deverá envolver FAPs de 15 estados, entre as quais a FAPESP. A proposta inicial prevê que as fundações investirão, ao todo, R$ 10 milhões na pesquisa da doença, que deverão somar-se a outros R$ 10 milhões do governo federal, sendo R$ 5 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e outros R$ 5 milhões do Ministério da Saúde. Os editais, que serão discutidos entre os parceiros, devem ser lançados ainda neste ano. “O CNPq

lançou o desafio para criar essa rede e as fundações aceitaram”, diz Mario Neto Borges. A Rede Amazônica de Pesquisa em Desenvolvimento de Biocosméticos (RedeBio) terá seu edital divulgado neste mês. Serão investidos R$ 6,8 milhões, divididos entre as FAPs do Amazonas, Pará e Maranhão e os governos do Tocantins e do Amapá, no desenvolvimento de produtos derivados de três insumos encontrados na região: a castanha, o babaçu e a andiroba. As pesquisas contempladas deverão envolver pesquisadores de pelo menos três estados da rede. “A ideia é ampliar os recursos da rede com dinheiro privado. Assim que os projetos forem definidos, vamos procurar empresas interessadas em investir neles”, diz Odenildo Sena, diretor presidente da FAP do Amazonas (Fapeam). Já a Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Transfusional, financiada por sete fundações estaduais de amparo à pesquisa e pelo Ministério da Saúde, busca aumentar a segurança dos usuá­ rios de bancos de sangue do país. As fundações envolvidas são as de Minas Gerais (Fapemig), Pernambuco (Facepe), São Paulo (FAPESP), Rio de Janeiro (Faperj), Santa Catarina (Fapesc), Amazonas (Fapeam) e Distrito Federal (FAP-DF). Os hemocentros de cada estado serão responsáveis por desenvolver pesquisas que levem à melhoria da qualidade do sangue, por meio de tecnologias que tornem as transfusões mais seguras. De acordo com a presidente da Fundação Hemominas, Anna Bárbara Proietti, a Rede Brasileira de Segurança Transfusional vai funcionar em sistema cooperativo, com projetos de pesquisa multicêntricos. “Vamos investir em diferentes frentes de pesquisa capazes de aumentar a segurança das transfusões”, diz Anna Bárbara. Segundo ela, os esforços deverão envolver desde a busca de métodos seguros de captação de doadores até o desenvolvimento de marcadores sorológicos. Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco estão um passo à frente, pois já participam do Estudo Multicêntrico Internacional em Doadores de Sangue (Reds), financiado pelo Instituto de Pesquisas em Sangue da Califórnia, nos Estados Unidos. n

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centro da capital paulista ganhou um espaço para difusão da ciência e do conhecimento. Trata-se do Espaço Catavento, que oferece ao público 250 instalações espalhadas por uma área de 8 mil metros quadrados. Instalado no Palácio das Indústrias, uma imponente construção erguida na década de 1920 no Parque D. Pedro II, que já abrigou a Assembleia Legislativa, a Secretaria de Segurança e a prefeitura, o museu recorre à interatividade, por meio de vídeos, painéis e maquetes, para aproximar as crianças e jovens da ciência e da tecnologia de uma forma lúdica. Fruto de uma parceria entre as secretarias de Estado da Cultura e da Educa-

ção, o espaço recebeu um investimento público de R$ 14 milhões e é administrado por uma organização social. “O objetivo é instigar, provocar, criar uma sensação nova para os visitantes”, explica o secretário estadual da Cultura, João Sayad. Cada uma das quatro seções tem uma entrada independente. Como se trata de uma exposição de grande porte que pode levar até um dia inteiro para ser contemplada em profundidade, a ideia é dividir o passeio em várias visitas, sem que os conteúdos se repitam. Na seção Universo, dezenas de fibras ópticas simulam o céu de uma noite estrelada de inverno em São Paulo. Os visitantes se acomodam em pufes e, com a ajuda de monitores, fazem o reconhecimento das constelações utilizando uma carta celeste. Também é possível tocar o fragmento de meteo­ rito encontrado na Argentina que caiu na Terra há cerca de 6 mil anos; vislumbrar uma maquete de 1,2 metro de diâmetro que mostra detalhes do Sol repleta de rugosidades; ou pisar numa reprodução da primeira pegada do homem na Lua, imortalizada pelo astronauta Neil Armstrong, em 1969. Num exercício que associa astronomia

e geografia, é possível apertar as estrelas que compõem a bandeira do Brasil e saber qual estado elas representam. Já na seção Vida há aquários de água salgada, anêmonas, corais e peixes carnívoros e venenosos, uma instalação com 700 borboletas amazônicas cedidas pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e um espaço em que o visitante pode selecionar pássaros em uma tela de computador e ouvir seus cantos com fones de ouvido. Já na seção Engenho os destaques são o gerador de Van der Graaf, que deixa os cabelos de quem o toca em pé, um balão que levanta do chão e uma sala dedicada a ilusões de ótica. Um prisma mostra a decomposição da luz branca nas sete cores que vemos no arco-íris. Por fim, na seção Sociedade, há o Salão Azul, espaço que foi preservado conforme o projeto de restauro realizado por Lina Bo Bardi, em 1992. Trata-se do pedaço mais interativo do museu, com jogos de perguntas e respostas com temas atuais; o painel Portinari, no qual, com a ajuda de um pincel com sensor infravermelho, o visitante pinta a parede, revelando obras do pintor e informações sobre os fatos históricos; além da galeria

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Difusão

Sementes de conhecimento São Paulo ganha museu que divulga a ciência de forma lúdica e interativa

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de personagens históricos, na qual o visitante escala uma parede e aproxima-se de retratos de personagens como Gengis Khan, Julio Cesar e Gandhi, que contam fatos de suas biografias. “O Catavento é uma verdadeira escola viva, que ajuda a compreender como as coisas funcionam, não só para as crianças mas a todos que quiserem entender mais sobre o mundo da ciência”, afirma Sergio Freitas, um dos idealizadores do museu e presidente do conselho de administração da organização cultural Catavento Cultural e Educacional. Algumas das instalações interativas podem ser manipuladas sem ajuda, enquanto outras necessitam de guias. Educadores e monitores organizam jogos, demonstram experimentos de química ou ajudam a manipular as engenhocas que comprovam as leis da física. Um auditório com 180 lugares está preparado para abrigar palestras e cursos. A iniciativa aproveita uma série de experiências bem-sucedidas. Um pedaço da Exposição Darwin, exibida no Museu de Arte de São Paulo em 2007, foi acondicionada na seção Vida. A Fundação Faculdade de Medicina

forneceu as estruturas do corpo humano em imagens tridimensionais da instalação Homem Virtual. No espaço Nanoaventura, filial da exposição interativa de nanociências e nanotecnologia idealizada por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), os visitantes realizam uma competição de conhecimento e agilidade a respeito de microrganismos e objetos minúsculos. O museu teve o apoio de outras instituições, como o Instituto de Astronomia da Universidade de São Paulo (USP), que forneceu materiais e apoio técnico para toda a área do Universo, a Escola Politécnica da USP criou o Passeio Digital, uma viagem em três dimensões pelas paisagens do Rio de Janeiro, ou o Instituto Kaplan, responsável pela instalação

sobre gravidez na adolescência e doenças sexualmente transmissíveis. A exposição é recomendada para crianças a partir dos 6 anos, mas pessoas de todas as idades podem divertir-se e aprender. Apenas a instalação sobre sexualidade, na seção Sociedade, é restrita a maiores de 13 anos. O principal público-alvo são os 8 milhões de estudantes da rede estadual de ensino. O espaço integra o programa Cultura É Currículo, da Secretaria da Educação, voltado para democratizar o acesso de professores e alunos das escolas públicas a bens culturais e diversificar situações de aprendizagem. Estima-se que pelo menos 1 milhão de estudantes irá visitar a exposição em seu primeiro ano de existência. “É um número grande, mas a educação sempre tem demandas muito maiores do que a gente é capaz de atender”, diz o secretário João Sayad. Segundo ele, a inspiração do Catavento veio de espaços como a Cidade das Ciências e da Indústria de Paris La Villette, o maior centro de exposições de ciências naturais do mundo. n

Fabrício Marques

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fotos eduardo cesar

Catavento: instalações vão da astronomia à biologia, da história à engenharia


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Ecologia

Verde

multiplicado Plano valoriza vegetação secundária para ampliar área de Mata Atlântica Carlos Fioravanti

M

atas imperfeitas, antes desprezadas, ganharam valor ecológico e econômico. A vegetação secundária – assim chamada para se diferenciar da vegetação primária, que guarda a estrutura e a diversidade de espécies da floresta original – é agora vista como uma das bases para um ambicioso plano de ampliação da Mata Atlântica. No início de abril, representantes de organizações não governamentais, empresas e universidades anunciaram em São Paulo o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, cuja meta é recuperar 15 milhões de hectares de florestas até 2050, uma média de 300 mil a 400 mil hectares por ano (1 hectare equivale a 10 mil metros quadrados, aproximadamente a área de um campo de futebol). Se conseguir os US$ 15 bilhões necessários para financiar esse trabalho e a adesão de milhares de proprietários rurais que detêm a maior parte dos fragmentos de Mata Atlântica, esse plano poderá triplicar a área atual de floresta atlântica hoje preservada em unidades de conservação ou parques administrados por órgãos públicos.

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“Dos 15 milhões de hectares a serem restaurados, 8 milhões são pastos de baixa produtividade”, diz Ricardo Rodrigues, coordenador da equipe que elaborou o conjunto de técnicas de restauração a serem adotadas no pacto, com base em seu trabalho à frente do Laboratório de Restauração Florestal (Lerf) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, interior paulista. “Se tirar os bois e incentivar o crescimento das matas, o proprietário rural pode ganhar três ou quatro vezes mais do que com a pecuária, ou ainda mais se agregar serviços ambientais como créditos de carbono.” O argumento para ampliar a floresta agora é econômico. “Temos de criar a economia florestal da Mata Atlântica”, afirma Miguel Calmon, coordenador do conselho de coordenação do pacto, já assinado por 50 instituições, incluindo órgãos do governo federal, como o Ministério do Meio Ambiente, e governos do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. “A economia que destruiu a floresta agora vai ajudar a restaurá-la”, acredita Calmon.

Hoje os fragmentos de vegetação secundária em diferentes estágios de crescimento – a maioria em propriedades particulares – ocupam uma área que corresponde a quase o dobro da de Mata Atlântica primária. Essas áreas, ainda mais facilmente que os pastos abandonados, em geral com vegetação mais empobrecida, poderiam ser enriquecidas com espécies locais e interligadas com fragmentos maiores a custos menores que a restauração de terrenos sem nenhuma vegetação, de acordo com a metodologia da equipe da Esalq-USP (ver Pesquisa FAPESP nº 144, fevereiro de 2008). Reconhecida no ano passado com o Prêmio Ford de Conservação Ambiental, essa abordagem ajudou a repor 4.600 hectares de matas ciliares (às margens de rios) em empresas de papel e celulose no Rio Grande do Sul, Bahia e Paraná, em fazendas de cana-de-açúcar em São Paulo, de café em Minas, de soja no Pará e de pecuária em São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Livro e mapa - Se adotada pelos pro-

prietários rurais e ampliada para todo o país por meio do pacto, essa técnica poderia dobrar a área com esse tipo de vegetação em Minas Gerais e Espírito Santo, aumentar em 50% a de São Paulo e quase quadruplicar a de Alagoas e Pernambuco, de acordo com o levantamento nacional que embasou a definição das metas do pacto (o livro de 256 páginas com as bases teóricas do pacto e o mapa das áreas de restauração no Brasil encontram-se no site www. pactomataatlantica.org.br). Apenas o cumprimento da lei poderia ampliar bastante a Mata Atlântica, lembra Calmon. O problema, ele reconhece, é que os proprietários rurais geralmente não gostam de deixar 20% de suas terras com vegetação nativa, a chamada reserva legal, mas resistem menos em preservar ou recompor as matas ciliares, também obrigatórias por lei. “Os produtores rurais sabem que as matas ciliares são importantes”, diz ele, porque preservam rios e evitam a erosão dos solos. Rodrigues acrescenta: “Poucos sabem que a reserva legal pode ser


eduardo cesar

utilizada para produzir madeira, mel, frutas e outros produtos da floresta”. Independentemente dos avanços do pacto, a área de Mata Atlântica cresceu, como resultado do aperfeiçoamento das técnicas de medição, e não se limita mais aos 7% da área coberta por esse tipo de vegetação na época da chegada dos colonizadores europeus. Esse número foi adotado nos últimos 15 anos e considerava apenas os blocos maiores e mais bem preservados. Agora, dependendo dos critérios, pode ir de 17% a 27%. Considerando também fragmentos bem preservados de menor porte, a área de Mata Atlântica pode chegar a 17%, de acordo com cálculos de equipes do Instituto de Biologia da USP, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da SOS Mata Atlântica recém-publicados na revista Biological Conservation. Somando a vegetação secundária em estágio médio e avançado de crescimento e a vegetação primária, o total pode representar 20% da área original, de acordo com um levantamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA) publicado em dezembro de 2006. “Esse valor não quer dizer que temos 20% de biodiversidade da Mata Atlântica conservada, mas uma cobertura vegetal de 20% em áreas que seriam de floresta e precisam ser acompanhadas e monitoradas”, observa Carla Madureira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que coordenou esse levantamento. Em escalas mais detalhadas, que considerem também as ilhas – ou encraves – de caatinga, cerrado, campos de altitude, várzeas, mangues e restingas, a área total de Mata Atlântica pode chegar a 27% do que era em 1500. “Quanto maior a escala, maior o detalhamento e mais floresta podemos ver”, comenta Carla. Na Amazônia ocorre o contrário: o detalhamento reduz a área de vegetação nativa, porque aparecem clareiras causadas por povoamentos ou mineração em meio à floresta. “Portanto”, diz ela, “antes de entrarmos em uma guerra de números, devemos considerar sobre o quanto estamos de fato n enxergando”. PeSQUISA FAPESP 159

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laboratório mundo

Rios com menos água

Rios como o Colorado nos Estados Unidos, o Amarelo na China, o Ganges na Índia e o Nilo no norte da África, que atravessam algumas das áreas mais populosas do mundo, estão perdendo água, de acordo com o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. O estudo, publicado no Journal of Climate, considerou o fluxo de água de 1948 a 2004 e verificou uma redução de cerca de um terço no volume de água nos maiores rios do mundo. Essa redução pode ter sido causada pela construção de barragens, pelo desvio de água para uso agrícola ou industrial ou Rio Amarelo, na China, visto por satélite: vazão prejudicada ainda, em alguns casos, pelo aquecimento global, que alteraria o regime de chuvas que abastecem os rios. O volume de água em alguns rios, como o > O primeiro há mais de 5 mil anos. Bramaputra no sul da Ásia e o Yangtze na China, mostrou-se vinho medicinal Análises químicas mostraram vestígios de estável ou mesmo aumentou. Nas próximas décadas, porém, Os antigos egípcios já ácido tartárico e tartarato mesmo esses rios poderão carregar menos água, em consemisturavam ervas e resinas (indícios de um fermentado quência do gradual desaparecimento das geleiras do Himalaia de uvas), de bálsamo, de árvores no vinho e o que os abastecem. “Como as mudanças climáticas devem se intensificar”, disse Kevin Trenberth, pesquisador do NCAR e bebiam com fins medicinais coentro, menta, sálvia e resina de pinho numa jarra coautor do estudo, “veremos impactos ainda maiores nos rios de vinho resgatada da e nos estoques de água de que as pessoas dependem”. W. pratt

Nasa

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tumba do faraó Scorpion I, 3.150 a.C. Resíduos de resina de pinho e alecrim numa ânfora do sítio de Gebel Adda, no sudeste do Egito, com idade estimada entre os séculos IV e VI d.C. – cerca de 3.500 anos depois da morte do faraó –, indicam que a prática medicinal deve ter sido usada por milênios. A descoberta publicada na

Jarra do faraó para bebida terapêutica 40

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PNAS foi feita pela equipe de Patrick McGovern, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e indica que a civilização que floresceu ao redor do Nilo já usava compostos orgânicos em sua farmacopeia ao menos mil anos antes do que se acreditava. Até se saber do vinho de Scorpion I, a referência mais antiga ao emprego de ervas medicinais pelos egípcios era um papiro de 1.850 a.C.

> Nutrição precária prejudica filhos Você é o que sua mãe deixou de comer durante a gravidez. Pesquisadores da Universidade de Utah, Estados Unidos, verificaram que fetos de ratos que receberam nutrição pobre durante a gestação já nasceram mais preparados geneticamente para comer menos. Como resultado dessa adaptação, cresceram


> O que come um elefante

basta medir as formas em que ali se apresentam o carbono, nitrogênio e hidrogênio. Com esse recurso, pesquisadores da Universidade de Utah

m. kephart

Pelos da cauda de um elefante podem revelar o que ele comeu ou bebeu:

Geological Survey

Quando o vulcão Redoubt do Alasca começou a tremer, em janeiro, pesquisadores do Instituto de Mineração e Tecnologia do Novo México, Estados Unidos, correram para lá e instalaram uma série de sensores que medem a eletricidade e os clarões criados pelas plumas vulcânicas – o magma líquido que vem das profundezas da Terra e perfura a crosta. Quando o vulcão entrou em erupção, em 22 e 23 de março, os dispositivos registraram a variação elétrica e luminosa pela primeira vez desde antes da erupção. “Comparações com as observaRedoubt: erupção com ções do vulcão Chaiten, no Chile, no ano passado, nos contarão muito mais sobre esses fenômenos”, disse Bradley Smull, diretor da divisão de ciências atmosféricas da Fundação Nacional de Ciência (NSF), que financiou a pesquisa. O vulcão ainda não aquietou e, semanas atrás, soltou ainda mais lava e fumaça que na primeira erupção. O barulho na frequência de rádio foi tão intenso que as pessoas nas proximidades não conseguiram assistir aos habituais programas de TV.

Da tromba à cauda: pelos identificam água

e da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos, e da Universidade de Oxford, no Reino Unido, acompanharam por seis anos a dieta de uma família de elefantes nas reservas nacionais de Samburu e Buffalo Springs, no Quênia (PNAS). Viram que os elefantes comem mais capim duas semanas depois do pico de produtividade das plantas, e três semanas depois as fêmeas têm mais chances de conceber. Comparar esses dados às chuvas e à produtividade das plantas é valioso para entender como os elefantes usam o ambiente, o que pode orientar o manejo desses animais nos parques.

Bretwood Higman

A eletricidade de um vulcão

menos que os alimentados normalmente durante a gestação. Também apresentaram maior risco de, ao longo da vida, contraírem doenças como diabetes e obesidade. Embora o estudo tenha sido com ratos, os genes e os mecanismos celulares são os mesmos que nos humanos (Faseb Journal). Outro estudo, de um grupo da Universidade Rockefeller, foi publicado na Science de 16 de abril e mostrou que um nucleotídeo, o 5-metilcitosina, ou 5mC, participa da regulação do DNA, silenciando genes, de uma maneira que ainda não havia sido descrita. A regulação dos genes, mais do que os próprios genes, explica as diferenças entre vermes, camundongos, macacos e homens, todos com praticamente a mesma quantidade de material genético e a maioria dos genes em comum.

sensores

> Uma gordura saudável Uma gordura que ajuda a emagrecer existe em adultos, dizem três artigos no New England Journal of Medicine. É a gordura marrom, que se acreditava só existir em crianças. Em vez de armazenar calorias, como a gordura branca, a marrom queima energia para produzir calor. Um experimento mostrou que a 16° C a gordura marrom de homens adultos entra em ação. Com mais calor a atividade cessa, mas a gordura continua a postos. Ela parece ser mais abundante em mulheres e mais escassa em pessoas mais pesadas – resta saber por que a gordura marrom emagrece ou se, ao contrário, pessoas mais gordas não precisam dela para se manter quentes. No futuro, ativar a gordura marrom pode fazer parte do arsenal contra a obesidade.

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laboratório Brasil

> Menos mortes pelo coração

> Leite para proteger bebês Mães com males como a imunodeficiência comum variável, doença genética que acomete uma em cada 25 mil pessoas, devem amamentar, porque o leite protegerá os bebês. Embora sem anticorpos – que elas 42

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não produzem –, amostras de leite de duas mães impediram a proliferação de um tipo de bactéria em células humanas cultivadas em laboratório, de acordo com um estudo realizado por Patrícia Palmeira, da Universidade de São Paulo (USP), com colegas da Universidade Federal

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Manoel de castro Silva

Perigo na tigela

Quem gosta de uma boa tigela de açaí com fatias de banana e cereal talvez prefira não pensar por onde as frutas andaram. Um estudo liderado por Aglaêr Nóbrega, do Ministério da Saúde, mostrou que os coquinhos arroxeados podem transmitir o Trypanosoma cruzi, parasita causador da doença de Chagas (Emerging Infectious Diseases). A doença costuma ser transmitida pelo inseto barbeiro e se manifesta de maneira crônica. Mas quando por acidente as fezes infectadas do barbeiro são trituradas junto com os cocos do açaí, entra em ação a forma aguda, mais letal, que em 2006 atacou 178 pessoas no Pará. O grupo coordenado por Aglaêr analisou o sangue de 11 pessoas infectadas no município paraense de Barcarena durante o surto Barbeiros: vetores da doença de Chagas de 2006 e verificou que a contaminação aconteceu de São Paulo (Unifesp) durante uma refeição com açaí. O estudo é um passo no sene da Universidade Federal tido de identificar fontes de infecção e traçar medidas para evitar que alimentos importantes, como é o caso do açaí na do Ceará (UFC). Segundo região amazônica, se tornem um risco. Fora da Amazônia a Magda Carneiro-Sampaio, da Faculdade de Medicina polpa já chega congelada, mas ainda é cedo para relaxar: não da USP, que coordenou se sabe se o congelamento mata os parasitas.

o estudo, a atividade antibacteriana pode ser explicada por outros mecanismos, como o conjunto de células e proteínas de defesa que cada pessoa tem de nascença. O trabalho mostrou também que a placenta pode transmitir para o bebê anticorpos que a mãe recebeu em medicamentos (Pediatric Allergy and Immunology).

As mortes causadas por doenças cardiovasculares estão se tornando menos frequentes. Cintia Curioni, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), coordenou um levantamento que verificou que, de 1980 a 2003, em todo o país e todas as faixas de idade, a mortalidade causada por doenças cardiovasculares caiu de 287,3 para 161,9 para cada grupo de 100 mil habitantes (Revista Panamericana de Salud Publica). A taxa de mortes por enfarte foi a que mais caiu, seguida de doenças coronarianas. Nas próximas décadas, porém, a perspectiva é de que o número de mortes por doenças cardiovasculares volte a crescer, já que a magnitude do declínio registrado nesses 24 anos varia de acordo com as diferenças socioeconômicas regionais.

> Óleo na Amazônia O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, anunciou no mês passado que as plantações de dendê poderão ocupar 10 milhões de hectares na Amazônia, uma área equivalente à do estado de Pernambuco. Se por um lado existe a possibilidade de geração de empregos, da ordem de 100 mil para cada 1 milhão de


Dendê: plantações ameaçam floresta

marianne elias

Quem passeia por florestas andinas facilmente vê voejarem asas transparentes com manchas vermelhas e desenhos pretos. São as borboletas da subfamília

cordilheira já tinha passado dos mil metros (entre 30% e 50% da elevação atual). À medida que as montanhas se ergueram, surgiram novos ambientes e populações de borboletas ficaram isoladas umas das outras: um cenário propício para a diversificação. E não ficaram por ali. Nos últimos 7 milhões de anos as borboletas transparentes chegaram à Mata Atlântica. Hoje mais de 360 espécies delas povoam boa parte dos trópicos sul-americanos.

No mapa: cérebro reconhece mãos miguel boyayan

> Voos nas alturas

dos itomiíneos, que com a coloração típica anunciam sua toxicidade a potenciais predadores. Em busca de entender a origem e história da diversificação dessas borboletas comuns no Brasil, a francesa Marianne Elias, do Imperial College de Londres, reavaliou a classificação desses belos insetos voadores. Publicado em abril na Molecular Ecology, o trabalho contou com a colaboração de André Freitas e Karina Silva-Brandão, da Unicamp. Os resultados mostram que as borboletas dos gêneros Ithomia e Napeogenes surgiram nos Andes e começaram a se diversificar há cerca de 15 milhões de anos, quando a

Quando as mãos de uma pessoa são amputadas, o cérebro se reorganiza para ajustar sensibilidades e movimentos ao que realmente existe. As representações cerebrais dos nervos que chegam aos músculos preservados se expandem e invadem partes do córtex motor primário antes dedicadas às mãos. Um grupo da Universidade de Lyon, na França, estudou dois pacientes que receberam transplante das duas mãos e verificou que pode demorar mais de dois anos, mas aos poucos o córtex motor se reprograma para recuperar movimentos finos. A neurofisiologista Claudia Vargas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou do trabalho junto com a doutoranda Erika Rodrigues (PNAS). Com um aparelho de estimulação magnética transcraniana, os pesquisadores examinaram a atividade do cérebro de um dos pacientes, de 20 anos, 11 meses antes do implante e quatro vezes até 26 meses depois. O segundo, de 42 anos, só foi testado pouco mais de quatro anos após a cirurgia.

Nervos reordenados

flora brasiliensis

hectares plantados, por outro a possibilidade de impactos ambientais também parece clara, como resultado da rápida expansão das plantações de dendê na Amazônia. Rhett Butler, da organização ecologista Mongabay.com, e William Laurance, do Instituto de Pesquisa Tropical Smithsonian, avisam que as plantações de dendê são ecologicamente pobres, com pouca diversidade biológica, e poderão avançar sobre florestas primárias, já que os lucros obtidos com a venda de madeira ajudariam os proprietários rurais a atravessar os anos em que os dendezeiros ainda não geram renda (Tropical Conservation Science). Uma mudança no Código Florestal permitiria que os dendezeiros ocupassem apenas áreas já desmatadas. A lei proíbe o cultivo de plantas que não sejam nativas da região.

Napeogenes sylphis: origens desvendadas PESQUISA FAPESP 159

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ciência

Genética

Herança fora da família Troca de genes entre espécies diferentes é fonte de debate de evolucionistas Maria Guimarães

C

ada vez mais estudos mostram que características genéticas não são transmitidas só de pais para filhos, como supõem os princípios da hereditariedade, mas circulam até entre espécies distintas. Não é novidade que bactérias podem adquirir genes que as tornam mais infecciosas ou que lhes permitem sobreviver em condições adversas. Agora o grupo do biólogo molecular Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), mostrou que parte do metabolismo de bactérias Xanthomonas, causadoras do cancro cítrico que ataca laranjeiras e limoeiros, é diferente da maioria das outras bactérias. A diferença vem da possibilidade de troca de genes entre espécies, conhecida como transferência lateral, que chega a levar alguns pesquisadores a defender que Charles Darwin estava errado ao usar, 150 anos atrás, as ramificações de uma árvore para descrever a evolução da diversidade biológica. As descobertas de Menck partiram de observações fortuitas em meio aos primeiros projetos brasileiros de sequenciamento de genomas. Enquanto contribuía para desvendar o material genético das bactérias Xylella e Xanthomonas, de grande importância econômica devido às doenças que causam em plantações, ele percebeu que muitos dos genes pareciam não ser transmitidos ao longo de linhagens de bactérias. Surgiu daí o doutorado de Wanessa Li-

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ma. Ela detectou diversos casos de transferência lateral de genes nessas bactérias, como relatou em 2008 nas revistas Journal of Molecular Evolution e FEMS Microbiology Letters. Eram ainda genes acessórios, que não abalavam a premissa de que funções essenciais à vida não podem ser copiadas de outros organismos. Agora isso mudou: Wanessa descobriu que bactérias das ordens Xanthomonadales e Flavobacteriales fabricam um composto essencial para gerar energia (o dinucleotídeo de nicotinamida e adenina – NAD) usando uma sequência de reações bioquímicas até agora conhecida só em eucariotos, organismos em que o material genético está empacotado dentro do núcleo. Eucariotos podem ser simples como fungos

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O Projeto Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução

modalidade

Projeto Temático Co­or­de­na­dor

Carlos Frederico Martins Menck – ICB-USP investimento

R$ 1.453.233,23

compostos por células independentes ou mais complexos e multicelulares, como uma pessoa. Já as bactérias são procariotos: na grande maioria das vezes unicelulares e desprovidas de núcleo, em geral com uma molécula circular de DNA. O resultado, publicado em fevereiro na Molecular Biology and Evolution, contribui para entender a evolução das bactérias por ser o primeiro caso descrito de uma função vital cujos genes foram substituídos. “O mais provável é que esses genes tenham sido trocados entre um eucarioto e uma bactéria ancestrais e mais tarde se espalhado por especiação em Xanthomonas ou Flavobacteriales”, imagina a pesquisadora. Com base em buscas por genes semelhantes em um banco internacional de sequências genéticas, Menck aposta nesse doador eucarioto ancestral como um fungo que convivia com a bactéria, num hospedeiro, em simbiose ou no solo, provavelmente pouco depois da separação entre Xanthomonas e Xylella,


Controvérsia - O grupo da USP ainda

não sabe explicar por que nessas bactérias a nova forma de fabricar NAD teria substituído a que existia. “A via de eucariotos é mais cara em termos de nutrientes e energia, além de exigir mais oxigênio”, conta Wanessa. Ela desconfia que essa nova rota tenha sido mantida em Xanthomonas e flavobactérias por trazer vantagens diante dos aminoácidos disponíveis ou do teor de oxigênio no ambiente. Para Menck, a seleção natural está provavelmente por trás dessa permanência. O trabalho ainda não publicado de um de seus alunos, o bioinformata Apuã Paquola, mostra que cerca de 20% dos genomas de bactérias vêm de transferência lateral entre bactérias de grupos distintos. São os trechos que foram favorecidos pela evolução e se estabeleceram. Os indícios são de que a troca de genes entre seres vivos diferentes é constante, mas em geral as novas combinações se perdem durante a evolução. Mesmo assim, alguns pesquisadores defendem que a transferência lateral de genes torna incorreta a metáfora de árvore para descrever a evolução da biodiversidade – polêmica que em janeiro chegou à capa da revista britânica New

Scientist. Na árvore, as espécies atuais estariam na ponta de cada ramo, e os pontos de bifurcação representariam ancestrais comuns. Mas em artigo publicado na revista Nucleic Acids Research, o biólogo molecular Eugene Koonin, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), defende que o patrimônio genético das bactérias está inteiramente interligado, como um mar de genes sem nada que os separe. Isso, a seu ver, invalida o conceito de árvore da vida: “Esses achados dão corpo a uma nova e dinâmica visão do mundo procarioto que é mais bem representado como uma rede complexa de elementos genéticos, que trocam genes em taxas muito variáveis”, escreve. A polêmica promete ir longe. Para John Wilkins, filósofo da ciência da Universidade de Queensland, na Austrália, a visão da evolução como rede está errada. “Se uma espécie fosse formada por transferência genética generalizada”, diz ele, “de maneira que não fosse possível dizer o que é herdado e o que não é, acho que seria difícil chamá-la de espécie”. Mas ele acredita que a probabilidade de isso acontecer é ínfima. Menck completa: pode haver uma mistura genética entre espécies, mas os genes em si seguem linhagens conforme prevê a teoria evolutiva de Darwin. As trocas dificultam o trabalho de quem busca reconstruir as genealogias bacterianas, mas o pesquisador da USP ressalta que, além de 80% dos genes procariotos serem

transferidos por descendência, alguns nunca se habilitam a ser transferidos. É essa porção fixa do material genético que permite reconstruir as relações de parentesco entre as bactérias. “A rede seria mais como uma fina teia de aranha envolvendo a árvore, e não o contrário”, conclui. De acordo com Menck, a polêmica é positiva e leva os pesquisadores a aprenderem cada vez mais sobre os processos evolutivos. Desse ponto de vista, a conclusão do artigo de Koonin pode ser estimulante: “A complexidade emergente do mundo procarioto está atualmente além do nosso alcance. Não temos linguagem adequada, em termos de teorias e ferramentas, para descrever o funcionamento e as histórias da rede genômica. Desenvolver tal linguagem é o maior desafio para a próxima etapa na evolução da n genômica de procariotos”. > Artigos científicos 1. LIMA, W. C. et al. NAD biosynthesis evolution in bacteria: lateral gene transfer of kyurenine pathway in Xanthomonadales and Flavobacteriales. Molecular Biology and Evolution. v. 26, n. 2, p. 399-405. fev. 2009. 2. KOONIN, E. V. e WOLF, Y. I. Genomics of bacteria and archaea: the emerging dynamic view of the prokaryotic world. Nucleic Acids Research. v. 36, n. 21, p. 6.688-6.719. dez. 2008. 3. WILKINS, J. S. The concept and causes of microbial species. History and Philosophy of the Life Sciences. v. 28, n. 3, p. 389-407. 2006. PESQUISA FAPESP 159

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fotos eliot kitajima

há cerca de 15 milhões de anos. De alguma maneira ainda não elucidada, essa proximidade teria permitido que trechos de DNA passassem de uma espécie para outra, com ou sem a intermediação de vírus.


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Zoologia

Encontros

furtivos

O

Brasil tem uma riqueza privilegiada de gatos silvestres. Só no gênero Leopardus estão o gato-do-mato-grande, o gato-do-mato-pequeno, o gato-palheiro, o gato-maracajá e a jaguatirica. O Rio Grande do Sul se destaca, com mais diversidade do que a Amazônia, em termos de felinos: o gato-do-mato-grande e o gato-palheiro, de origem patagônica, existem ali mas não no norte do país. A destruição dos seus hábitats naturais faz com que essas cinco espécies, com exceção da primeira, sejam consideradas vulneráveis no Livro vermelho das espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente em 2008. Para os especialistas, porém, o maior risco que esses animais enfrentam é a falta de conhecimento, que impede que se delineiem estratégias eficazes de conservação. É isso que o grupo do biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), busca sanar. Com resultados por vezes surpreendentes, como o que Tatiane Trigo revelou no doutorado: 60% dos gatos-do-mato do Rio Grande do Sul são híbridos. E os encontros reprodutivos entre espécies distintas não se restringem àquele estado. Parte dos resultados, publicados no final do ano passado na Molecular Ecology, dizem respeito à região gaúcha onde o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi) e o gato-do-mato-pequeno (L. tigrinus) se encontram. São gatos bastante parecidos, manchados e de pequeno porte. Como o nome sugere, o primeiro costuma ser maior e pode chegar a quase 8 quilogramas, com uma pelagem que tende para o cinzento. Já o gato-do-mato-pequeno não passa de 3,5 quilos, tem um aspecto mais delicado e uma coloração amarelada. A distribuição de cada um no Brasil, porém, é bastante diferente: o gato maior só é encon-

Sem mistura: felinos do zoológico de São Paulo não são frutos de hibridização

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trado no sul do Rio Grande do Sul, enquanto o menor existe em quase todo o território brasileiro – exceto no extremo sul gaúcho. Tatiane conta que a área crucial para os encontros dos felinos é a depressão central do estado, palco de mudanças ecológicas marcantes. Para o norte a paisagem é dominada pela serra recoberta por Mata de Arau­cárias, a versão local da Mata Atlântica, e para o sul se estendem as campanhas do Pampa. É nessa região de transição entre dois ecossistemas, pelas particularidades do relevo uma zona de fácil acesso para seres humanos pelas estradas, que a pesquisadora obteve mais amostras e detectou, com base em estudos genéticos, a preponderância de híbridos. Ao todo, ela examinou 57 amostras do gato-do-mato-pequeno e 41 do grande, recolhidas em vários estados brasileiros: eram animais atropelados nas estradas, abatidos por fazendeiros ou que vivem em zoológicos e têm origem conhecida. Entre eles, pelo menos 14 se revelaram híbridos, um recorde em termos de hibridização até agora observada em carnívoros. A maior parte deles vinha da região central do Rio Grande do Sul. O trabalho incluiu também sete amostras (só duas delas do Brasil) do gato-palheiro, o Leopardus colocolo, e verificou que essa espécie também forma híbridos com tigrinus. “As populações brasileiras do gato-do-mato-pequeno podem ter DNA de três espécies distintas”, afirma Eizirik. Mesmo assim, as análises não deixam dúvidas de que as três espécies são geneticamente distintas. Até onde se pôde detectar, porém, os híbridos entre elas são normalmente férteis – nada como os burros, mistura entre cavalos e jumentos, que vivem normalmente mas são incapazes de deixar descendentes. No caso dos gatos, a possibilidade de detectar os híbridos só se tornou realidade com as técnicas atuais

fotos Eduardo Cesar

Cruzamento entre gatos-do-mato distintos é mais comum do que se acreditava


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Palheiro: um dos mais raros entre os gatos silvestres brasileiros

Eizirik. A tese, que ela defendeu em novembro de 2008, traz atua­lizações em relação ao artigo – mais amostras, mais marcadores genéticos e análises mais completas. Os resultados já dão aos pesquisadores mais confiança nas interpretações, embora o trabalho não esteja finalizado. Mesmo concluído o doutorado, Tatiane continua buscando aumentar a amostragem e completar as análises antes de enviar mais trabalhos para publicação. Ao mesmo tempo, outros membros do grupo ajudam a completar peças dessa história. É o caso de Alexsandra Schneider, que em seu mestrado encerrado este ano desenvolveu mais ferramentas genéticas para ajudar a identificar os gatos híbridos e caracterizar esse encontro entre espécies. Separados pelo estômago - Para des-

para se destrinchar e comparar o material genético. Em termos de aparência, na maior parte dos casos os híbridos tinham o aspecto de uma das duas espécies de que descendiam. A surpresa veio ao examinar o DNA, que guardava alguns trechos característicos da outra espécie. Alguns dos animais, porém, eram obviamente híbridos, com tamanho e coloração intermediários. É material para pôr fogo nas discussões sobre onde começa e onde termina cada espécie. O grupo observou também uma baixa diversidade genética nos dois gatos-do-mato, que indica uma expansão populacional recente. Os resultados já levaram os pesquisadores a formular uma hipótese sobre a história de Leopardus tigrinus e geoffroyi. Até que mais estudos tragam outros indícios, a equipe de Eizirik acredita que durante cerca de 1 milhão de anos esses gatos-do-mato evoluíram em áreas distintas, sem a oportunidade de se encontrar. Só mais recentemente, por volta de 70 mil anos atrás, as duas espécies – ou talvez só tigrinus, o gato-do-mato-pequeno – teriam expandido sua distribuição geográfica, fazendo com que machos e fêmeas das duas espécies se encontrassem na depressão central gaúcha. Uma hipótese é que os gatos-do-mato-pequenos tenham seguido a expansão das florestas, seu ambiente favorito, durante um período de clima mais úmido. “Pre48

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cisamos desenvolver mais marcadores genéticos para descobrir se os híbridos começaram a se formar naquela época ou se o fenômeno é mais recente, desde que intervenções humanas começaram a alterar de maneira drástica a ecologia da região”, diz Tatiane. O estudo publicado na Molecular Ecology é parte do doutorado que a pesquisadora desenvolveu sob orientação do geneticista Thales de Freitas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coorientação de

trinchar os fatores ecológicos que poderiam estar envolvidos no isolamento – e no encontro – entre geoffroyi e tigrinus, Tatiane investigou os hábitos alimentares dos gatos das duas espécies. Em princípio, esses dois gatos-do-mato têm preferência por ambientes distintos, o primeiro vive em áreas de vegetação aberta como os Pampas gaúchos, enquanto o segundo busca as florestas úmidas, como as áreas mais fechadas da Mata Atlântica e do Cerrado. A diferença nos ambientes que frequentam poderia ser responsável por evitar en-

Gato-do-mato-pequeno: na natureza, DNA de três espécies

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O Projeto Mecanisnononn de nononono monar na nonono nonononono

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Gato-do-mato-grande: encontro com espécie menor gera híbridos viáveis

contros entre as duas espécies, mesmo dentro de uma mesma região. Mas aparentemente não é o que acontece, inclusive porque o gato-do-mato-grande é às vezes visto em mata fechada e sua contrapartida pequena também pode passear entre os arbustos espinhentos da Caatinga e pela vegetação esparsa que caracteriza parte do Cerrado. Em busca de caracterizar a ecologia desses animais que dificilmente são observados na natureza, a pesquisadora examinou o conteúdo dos estômagos de 13 Leopardus tigrinus e 17 geoffroyi que foram encontrados mortos nas estradas do Rio Grande do Sul. Ao identificar os animais que servem de refeição aos gatos-do-mato, ela verificou que 50% da dieta coincide entre as duas espécies. A outra metade da dieta dá força às preferências dos gatos por hábitats diferentes. Os roedores encontrados unicamente nos estômagos do gato-do-mato-pequeno são em geral típicos de florestas. Já os animais que viraram almoço do gato-do-mato-grande, como o preá e o lagarto da espécie Mabuya dorsivittata, costumam ser mais associados a áreas abertas. Os resultados são promissores, mas Tatiane ainda os considera muito preliminares. Além da dificuldade em obter uma amostragem adequada, ela conta que, de maneira geral, a ecologia dos roedores é ainda menos conhecida que a dos gatos, o que dificulta as associações ecológicas. Até agora os resultados da pesquisa contam que o gato-do-mato-grande e o pequeno vieram de lugares diferentes e, quando se encontraram, des-

cobriram afinidades reprodutivas. A história do gato-palheiro ainda está para ser contada, mas os indícios recolhidos por Tatiane indicam um enredo bem diferente. Grandes dúvidas cercam inclusive a classificação dessa espécie, que, com seus 4 quilos, chega a se parecer com um gato doméstico amarronzado de patas listradas e cauda curta. Conhecido por muito tempo como Leopardus colocolo, hoje alguns pesquisadores defendem que na verdade esse gato se divide em três espécies, e o nome colocolo estaria reservado à espécie chilena. Conforme essa corrente, os gatos-palheiros do Brasil ficariam batizados como L. braccatus. A questão não é central para o grupo gaúcho, mais interessado em entender a história e a ecologia desses gatos. Tatiane conta que teve dificuldades em obter amostras do gato-palheiro, não só por ele ser o mais raro entre os três felinos que ela examinou em seu trabalho, mas também porque foi preciso negociar colaborações para ter acesso a animais que vivem na parte norte da distribuição da espécie, no Mato Grosso e em Goiás. Agora um acordo firmado com outros pesquisadores permitirá obter um número muito maior de amostras e, quem sabe, ter uma história mais completa para contar nos próximos anos. Por enquanto, os dados sugerem que na região central do Brasil há uma zona, ainda indefinida, onde o gato-do-mato-pequeno e o palheiro se encontram e produzem híbridos. “Acreditamos que essa hibridação aconteceu no passado, entre fêmeas colocolo e ma-

chos tigrinus”, diz Eizirik, se referindo a diferenças entre o que seu grupo observou entre o cromossomo Y, transmitido de pai para filho, e o resto do material genético. Já o gato-do-mato-grande não se mistura com o palheiro, embora não lhes faltem oportunidades para encontros. As duas espécies surgiram na Patagônia e convivem no mesmo ambiente. O grupo de geneticistas gaúchos acredita que a explicação para a ausência de hibridização está na longa história compartilhada. Tendo evoluído juntas, algum mecanismo ainda desconhecido certamente teria impedido que essas duas espécies gerassem híbridos, o que impediria que se firmassem como espécies distintas. Criaturas de índole discreta, os felinos não entregam seus segredos facilmente. Eizirik ainda tem muito trabalho pela frente, mas considera que os resultados que seu grupo já obteve são essenciais não só para conhecer melhor os gatos brasileiros, mas também para n proteger essas espécies.

Maria Guimarães

> Artigo científico TRIGO, T. C. et al. Inter-species hybridization among Neotropical cats of the genus Leopardus, and evidence for an introgressive hybrid zone between L. geoffroyi and L. tigrinus in southern Brazil. Molecular Ecology. v. 17, n. 19, p. 4.3174.333. out. 2008. PESQUISA FAPESP 159 maio DE 2009 n

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Genômica

ruminadas Sequenciamento do DNA bovino abre caminho para compreensão e melhoramento das raças

Fama genética: Dominette (acima) é 93% idêntica ao pai, na página ao lado

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omesticados há cerca de 10 mil anos, bois e vacas são fonte de alimento, na forma de leite e carne, para mais de 6 bilhões de pessoas no mundo todo. Agora o conhecimento científico sobre esse animal acaba de dar um salto, com o sequenciamento de seu material genético. O feito, do qual participaram mais de 300 pesquisadores de 25 países, foi anunciado em abril na capa da revista Science. Coordenado nos Estados Unidos, o projeto teve participação de brasileiros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), dos campi de Araçatuba e de Assis da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP). “Compilamos uma lista telefônica com nome e endereço de todos os genes, agora falta descobrir a profissão deles”, compara o veterinário José Fernando Garcia, da Unesp de Araçatuba. O artigo da Science mostra que os bois têm cerca de 22 mil genes em cada célula, número semelhante ao de outros mamíferos. A comparação desses resultados com os de outros genomas – cão, ser humano, camundongo, rato, marsupial e ornitorrinco – permitiu aos geneticistas uma primeira avaliação da evolução de cada um desses grupos. No caso bovino, as alterações genéticas mais importantes aconteceram em genes ligados a reprodução, imunidade, lactação e digestão. “O ruminante tem uma grande quantidade de microrganismos no seu estômago”, exemplifica Garcia. “É possível que as alterações genéticas lhes permitam manter esses microrganismos como flora intestinal e não causadores de doenças”, explica, ressaltando que essas interpretações são ainda especulativas. “Geramos o inventário, agora vai começar a exploração.” O trabalho de laboratório em si foi centralizado nos Estados Unidos e obteve a sequência de 92% do DNA da vaca Dominette, da raça Hereford. Lá, um programa de computador delimitou os genes desvendados. Esses dados depois foram reanalisados por pesquisadores do mundo todo, no processo chamado anotação. Foram 13 grupos que dividiram o material genético conforme a função fisiológica para verificar, gene por gene, se a previsão automática estava correta. Mas não para todos os genes sequenciados. “Foi uma amostragem, cada grupo examinou os genes que lhes interessavam mais”, diz o geneticista Alexandre Rodrigues Caetano, da Embrapa, que coordenou a anotação dos genes relacionados com reprodução, desenvolvimento embrionário e sistema hormonal. Mesmo que só uma parte dos genes tenha sido anotada, em sua estimativa entre 10% e 20%, o pesquisador celebra a aquisição de uma visão global

fotos michael macneil/usda

Informações


do genoma, que permite saber como os genes se relacionam uns com os outros. O grupo coordenado por Garcia, de Araçatuba, ficou responsável por genes relacionados à pele e ao sangue. Diversidade - Segundo o veterinário

da Unesp, o projeto do genoma bovino, que começou em 2003, foi construído levando em consideração os sucessos e as limitações do Projeto Genoma Humano encerrado em 2002. “Os pesquisadores perceberam que não bastava conhecer o genoma, era preciso explorar a variabilidade entre os indivíduos”, afirma Garcia. “Nas vacas existem mais de 800 raças criadas e mantidas pelo homem, e o trabalho de melhoramento se baseia nas particularidades que se deseja desenvolver”, conta. Por isso, em paralelo ao sequenciamento do genoma, outro consórcio internacional trabalhou em traçar o mapa da diversidade genética entre raças bovinas. Os resultados estão em um segundo artigo publicado na mesma edição da Science, que compara o genoma de Dominette a trechos do DNA de 19 outras raças. Caetano, da Embrapa, coordenou o trabalho para inclusão de amostras de gado Gir e Nelore, as principais raças do rebanho brasileiro – o maior do mundo – no trabalho. Garcia participou dessa fase do trabalho dirigindo a coleta na Etiópia de amostras da raça Sheko, resistente à doença do sono transmitida pela mosca tsé-tsé. O mapa da variação genética corroborou o que já se sabia sobre a domesticação do gado bovino: entre 8 e 10 mil anos atrás, a domesticação original aconteceu em dois centros. Da Índia saí­ ram os zebuínos, as vacas com cupim, como as principais raças brasileiras, e do Oriente Médio surgiram os taurinos, grupo de que faz parte a raça Hereford. Os resultados mostram que a população inicial de zebuínos era maior do que a que deu origem aos taurinos, que por isso já partiram de uma diversidade genética menor. A seleção artificial clássica, em que criadores escolhem somente alguns animais como reprodutores em busca

da obtenção de animais mansos, com alta produtividade e resistência a doen­ ças, sem dúvida contribuiu muito para a evolução das vacas, favorecendo a conservação de genes responsáveis por essas características. Nessas estratégias de melhoramento poucos animais contribuem para o patrimônio genético dos rebanhos, e o resultado está no DNA: a diversidade genética dos rebanhos está cada vez mais reduzida. Ainda não é grave, do contrário defeitos genéticos seriam uma fonte importante de mortalidade nos rebanhos. Vem exatamente daí parte da importância de se avaliar a diversidade genética de cada raça: usar a informação para fazer a manutenção da variabilidade. Caetano ressalta que o genoma e o mapa da diversidade são ferramentas importantes agora à disposição dos pesquisadores e criadores. “Minha função na Embrapa é ajudar pesquisadores a desenhar e executar experimentos usando as melhores tecnologias para cada projeto”, conta. Num único chip de DNA, agora é possível, de uma só vez, examinar 60 mil marcadores genéticos em cada animal. É uma ferramenta que torna muito mais rápido, simples e barato fazer uma avaliação genética e selecionar vacas que tenham melhor resistência a doenças ou parasitas, que produzam prole mais leiteira ou com carne mais macia. É uma economia imensa de tempo para os criadores. “Em vez de cruzar um touro e esperar até que suas filhas se reproduzam e comecem a amamentar para avaliar sua produtividade, poderemos selecionar os touros antes mesmo que cheguem à idade reprodutiva”, conta o geneticista. Será preciso esperar para aplicar esse conhecimento, visto que a maior parte dos genes ainda não foi desvendada. Os próximos anos devem trazer um avanço rápido no conhecimento dos marcadores genéticos de interesse econômico. A novidade não só acelera a seleção, mas permite

melhorar as raças de maneira mais controlada. “Até agora só se podia selecionar animais olhando por fora”, conta Garcia, “atualmente vamos conseguir olhar por dentro também”. O Brasil tem 200 milhões de cabeças de gado bovino, o maior rebanho comercial do mundo. É o país que mais exporta, mas não o que mais lucra. Segundo o pesquisador, isso acontece porque as raças brasileiras não têm algumas das qualidades apresentadas, por exemplo, pelo gado argentino. O pesquisador da Unesp prevê também que, quando for possível usar essas ferramentas para obter algo como uma certificação genética, os animais brasileiros podem se tornar atraentes para estabelecer raças em outros países. “É um gado que resiste ao calor, a doenças e ao alimento de má qualidade, características que podem ser muito valiosas em outros países tropicais”, imagina. n

Maria Guimarães

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Biologia celular

Ação na Pequenas proteínas, antes consideradas resíduos, ajudam a regular as células Carlos Fioravanti

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uas variedades de uma pequena proteína chamada hemopressina podem estimular a fome e as sensações de prazer do mesmo modo que os componentes de plantas entorpecentes como a maconha, enquanto outra variedade de hemopressina tem o efeito oposto. Pesquisas realizadas em São Paulo e em Nova York mostraram que essas microproteínas, conhecidas como peptídios, podem fazer muito mais, são bastante variadas e, diferentemente do que até mesmo os especialistas pensavam, não são resíduos sem função no interior dos trilhões de células do organismo. Em apenas um tipo de célula extraída de rim humano as equipes dos farmacologistas Emer Ferro na Universidade de São Paulo (USP), Lloyd Fricker na Escola de Medicina Albert Einstein e Lakshmi Devi na Escola de Medicina Monte Sinai, ambas em Nova York, identificaram e sequenciaram 116 microproteínas que ajudam a regular o funcionamento celular e facilitam a interação de proteínas – o grupo de hemopressinas, produzidas nos neurônios, é por enquanto o mais intensamente estudado. “Além de regularem o funcionamento interno da célula, esses peptídios podem modular estímulos extracelulares”, diz Emer, com base em estudos publicados no ano passado e neste ano na revista Journal of Biological Chemistry. Como desde 1983 havia apenas relatos isolados de peptídios intracelulares com funções biológicas, essa é possivelmente a primeira vez

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que essas moléculas aparecem em variedade tão grande e são analisadas em conjunto. Em vista do que podem fazer – e aparentemente devem fazer muito mais em outras células –, essas moléculas indicam que o funcionamento das células e do organismo não depende só de moléculas gigantes como o DNA, o RNA e as proteínas, mas também dessa multidão de intermediários antes anônimos, quase 50 vezes menores que uma proteína como a hemoglobina, que transporta oxigênio às células. Por que ninguém antes deu atenção a esses peptídios, se são muitos e abundantes no interior da célula? Por duas razões, segundo o pesquisador da USP. A primeira é que os espectrômetros de massa, os equipamentos que identificam os peptídios, são relativamente recentes, além de caros. A segunda é que ninguém os levava a sério. Emer conta que ele próprio, em 2006, teve de convencer Fricker de que as cerca de mil moléculas que ele, Fricker, tinha extraído do cérebro de ratos não eram os chamados artefatos – uma palavra elegante usada no meio científico para designar qualquer tipo de erro – nem pedaços de outras moléculas. Produzidas continuamente no interior das células como resultado da fragmentação de proteínas, elas eram, sim, moléculas completas que ajudavam outras – e o organismo – a funcionar. Emer entrou nessa linha de pesquisa em 1989 ao ver que enzimas chamadas oligopeptidases concentravam-se no interior das células, mas os peptídios sobre os quais agiam estavam


binding protein, que abraçava o DNA em pontos específicos, como se fosse uma sela sobre um cavalo, regulando outras proteínas que interagem com o DNA. Para ele, esse tipo de encaixe mostrou não só mais um refinamento do funcionamento do DNA, mas também que moléculas pequenas como os peptídios poderiam apresentar uma mobilidade muito maior que as proteínas ou que o próprio DNA e ajudar a regular o funcionamento celular.

> Artigos científicos 1. BERTI, D. A. et al. Analysis of intracellular substrates and products of Thimet oligopeptidase (EC 3.4.24.15) in human embryonic kidney 293 cells. Journal of Biological Chemistry. 12 mar. 2009 (on-line). 2. CUNHA, F. M. et al. Intracellular peptides as natural regulators of cell signaling. Journal of Biological Chemistry. 2008, 283 (36), 24.448–59. 3. GOMES, I. et al. Novel endogenous peptide agonists of cannabinoid receptors. FASEB Journal. 2 abr. 2009 (on-line).

Finalmente, as respostas - Em 2003,

Lore Kutschera/wikimedia

Raiz de maconha (Cannabis sativa)

no lado de fora. Nessa época já era conhecido um dos mecanismos de limpeza das células, o proteossomo, que continuamente tritura proteínas com defeitos ou velhas demais para funcionar direito. Uma proteína com 700 aminoácidos, os blocos que formam essas moléculas, pode ser desfeita em pelo menos 35 partes. Emer não se conformava com a possibilidade de 34 dessas partes serem matéria-prima inerte, à espera de outras proteínas de que pudessem participar, e só uma das partes ter uma função e aderir à superfície das células, evitando que o organismo identifique a proteína daquele tipo específico como algo que deva ser destruído. “Não fazia sentido”, pensou. Para ele, a célula não desperdiçaria peptídios; só não tinha ainda como provar o que estava pensando. Em 1993 Emer assistiu a um seminário na Escola de Medicina Monte Sinai em que um especialista em reconhecimento de proteínas, Stephen Burley, apresentava uma proteína, a Tata box

dez anos depois, Vanessa Rioli, bióloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que participava da equipe de Emer, identificou um desses peptídios, a hemopressina (ver Pesquisa FAPESP nº 84, de fevereiro de 2003). De imediato eles viram que a hemopressina atuava sobre proteínas que controlavam a pressão arterial e, mais tarde, com a ajuda de outra bióloga, Andrea Heimann (ver Pesquisa FAPESP nº143, de janeiro de 2008) sobre as proteínas que regulavam a fome e o prazer. “A hemopressina era uma prova de que peptídios produzidos no interior da célula não estavam à toa dentro das células”, celebra Emer. Na época seu grupo já havia encontrado cerca de 30 peptídios do mesmo porte que a hemopressina, com 5 a 17 aminoácidos, e funções que ainda tinham de ser demonstradas. Dúvidas antigas – como a que havia surgido 20 anos antes, sobre as oligopeptidases, uma enzima que parecia distante do suposto alvo – ganhavam respostas. “Tudo começou a se encaixar”, diz ele. “A enzima e os peptídios sobre os quais agia estão no interior da célula, não mais separados, um dentro e outro fora.” Estudos mais recentes mostraram que a hemopressina não é uma, mas pelo menos quatro e com funções até mesmo opostas – duas dessas variações podem aumentar e uma reduzir a atividade das proteínas sobre as quais atua o princípio ativo da maconha (as funções da quarta forma de hemopressina ainda não foram estudadas). Uma dúvida sobre essa molécula que persistiu durante anos: como a hemopressina pode ser gerada em neurônios a partir de fragmentos de outra molécula, a hemoglobina, produzida nas células vermelhas do sangue? A resposta chegou este ano, por meio de um estudo feito na Universidade da Califórnia em

Los Angeles (Ucla) mostrando que neurônios poderiam fabricar as cadeias alfa e beta, dois dos blocos que formam a hemoglobina. Assim, nos neurônios esses blocos formariam a hemopressina e nas células do sangue, a hemoglobina. Os peptídios intracelulares têm tido boa acolhida. Desde o ano passado, quando começaram a sair os artigos que os descreviam, Emer apresentou-­ -os aos colegas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, onde trabalha, e a outros pesquisadores em congressos na Holanda, no Japão e em Israel. Neste mês de maio ele vai falar em um seminário nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, ao lado de Fricker e Lakshmi, os coordenadores dos outros grupos com quem investiga os peptídios intracelulares. O título da apresentação de Fricker – Non-classical bioactive peptides and microproteins: are they the next big small thing? (Microproteínas e peptídios bioativos não clássicos: são eles a próxima pequena grande coisa?) – sugere que essas pequenas moléculas n ainda darão muito o que falar.

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Os Projetos Biologia molecular celular de oligopeptidases

modalidade

Projeto Temático Co­or­de­na­dor

Emer Ferro – ICB/USP investimento

US$ 271.000,00 e R$ 270.000,00 (FAPESP)

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PERSONALIDADE

Dogma no chão Crodowaldo Pavan, morto aos 89 anos, derrubou conceito de que a quantidade de DNA era constante em todas as células | Neldson Marcolin

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Fábio Siviero e Edson Rocha de Oliveira

cromossomos da larva se multiplicam, num fenômeno chamado de pufe, para depois se condensar. Na época, ele ficou sabendo que o pesquisador belga Jean Brachet usava um método de injetar na larva a substância radioativa timidina tritiada. Em seguida colocava o material em uma lâmina e a cobria com um filme fotográfico por alguns dias no escuro. A radiação impressionava o filme, o que permitia ver a imagem fotográfica do cromossomo e acompanhar as mudanças do DNA. A pedido de Pavan, Brachet enviou uma assistente, Adrianne Ficq, para ensinar o método a ele. “Foi com a ajuda de sua técnica Marta Breuer, uma alemã radicada no Brasil extremamente habilidosa no laboratório, e de Adrianne que Pavan fez a descoberta que derrubou esse dogma da genética e, de quebra, começou a

Eduardo Cesar

Acervo Comissão memória IB/USP

Ao lado, Pavan, Brito da Cunha (em pé), Dobzhansky e sua filha Sophie na Vila Atlântica; à direita, o geneticista em seu gabinete. Acima dele, duas drosófilas, e no alto, uma Rhynchosciara

“Pavan demonstrou que, em determinados momentos, a célula sintetiza DNA”, explica o professor Luiz Edmundo Magalhães, biólogo que foi aluno do geneticista a partir de 1949 e com quem realizou pesquisas de campo, incluindo as de Vila Atlântica, em Mongaguá, no litoral paulista, onde foram coletadas as larvas da mosca Rhynchosciara angelae (hoje chamada de Rhynchosciara americana). Ele também mostrou que em alguns tecidos do organismo certos genes não funcionam, algo que não se sabia. As observações foram feitas sobre as larvas da Rhynchosciara, mosca que põe todos os ovos de uma só vez e depois morre. “As larvas evoluem juntas, de modo sincrônico, o que é ótimo porque se pode acompanhar o desenvolvimento delas até virarem mosca, como se fossem um único indivíduo, dissecando uma delas a cada dia.” A larva tem um par de glândulas salivares com cromossomos grandes. Pavan observou que alguns trechos dos

Arquivo Luiz Edmundo Magalhães

A

equipe de pesquisadores que saía de São Paulo em excursões rumo ao litoral sul do estado para coletar exemplares de drosófila, a mosca-das-frutas, encontrou algo diferente naquele verão de 1952. Ao virar um toco de bananeira, Crodowaldo Pavan, o líder do grupo, achou centenas de larvas emboladas de outro tipo de mosca e decidiu levá-las para analisar no laboratório. Começava ali um estudo que derrubaria um paradigma da biologia. Até meados dos anos 1950 se acreditava que a quantidade de DNA era constante em todas as células. Ele demonstrou em artigo publicado com Marta Breuer, em 1955, que havia genes que se duplicam constantemente. Mesmo antes dessa descoberta, Pavan já era um dos pioneiros da pesquisa em genética no Brasil a partir dos estudos com drosófilas. Ele morreu no dia 3 de abril em São Paulo, aos 89 anos, em razão de insuficiência múltipla de órgãos.


Brito da Cunha e o próprio Magalhães, em São Paulo, Newton Freire-Maia, de Minas Gerais, Antonio Rodrigues Cordeiro, do Rio Grande do Sul, Oswaldo Frota-Pessoa e Chana Malogolowkin, do Rio, entre outros. Pavan fez seu pós-doutorado no laboratório de Dobzhansky na Universidade Columbia, em Nova York, entre 1945 e 1947. Em 1952, com a morte de Dreyfus, assumiu a cátedra do Departamento de Biologia. Em 1965 foi contratado pelo Laboratório de Oak Ridge, nos Estados Unidos, onde fundou e dirigiu um laboratório de citogenética. De 1968 a 1975 foi professor titular da Universidade do Texas. Depois desse período voltou ao Brasil. Ação institucional – À parte o intenso

trabalho científico, Pavan teve grande participação no âmbito político-administrativo das instituições de apoio à ciência. Integrou o primeiro conselho superior da FAPESP, entre 1961 e 1963, exercendo papel importante para a consolidação da instituição, que começou a funcionar em 1962. No período 1981-1984 voltou à FAPESP, desta vez como diretor presidente do conselho técnico-administrativo. Presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 1986 a 1990, onde realizou ações marcantes como a criação da Es-

tação Ciência, em São Paulo, e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. Por três gestões presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entre 1981 e 1986. Tornou-se professor emérito da USP em 1989 e da Universidade Estadual de Campinas em 1991. Quando morreu era pesquisador voluntário do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, coordenador de Divulgação Científica do Núcleo José Reis da Escola de Comunicações e Artes da USP e presidente da Associação Brasileira de Divulgação Científica. “A FAPESP lamenta o falecimento de um grande homem da ciência brasileira e é muito grata pelo legado que ele nos deixou”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. “É importante destacar o trabalho fundamental que ele realizou no apoio à pesquisa e ao desenvolvimento brasileiros, seja no plano das instituições, como foi na FAPESP e no CNPq, ou no plano da sociedade civil, pelo tempo que esteve à frente da SBPC.” Sergio Rezende, ministro da Ciência e Tecnologia, também lembrou a contribuição do biólogo. “Pavan fica na história da ciência no Brasil como um dos pioneiros da genética e um cientista-educador”, disse. “Poucos cientistas se dedicaram com mais afinco a atrair os jovens para as carreiras da ciência.” n

Arquivo Luiz Edmundo Magalhães

fazer biologia molecular no país ao utilizar o método de Brachet”, diz Magalhães. Ficou provado que o número de cromossomos era constante, mas a quantidade de DNA podia variar. Em entrevista ao jornalista Ricardo Zorzetto para o livro Cientistas do Brasil (SBPC, 1998), Pavan lembrou daquela época: “Demorou oito anos para que minha hipótese – de que poderia haver mudança no número de genes dentro do cromossomo com o desenvolvimento do animal – fosse aceita. Durante o período, eu apresentava os dados e diziam, ‘Os seus dados valem. Mas isso é exceção. É um inseto’”. Mais tarde comprovou-se que o fenômeno era comum no homem. “A proposta dele, de que existia replicação do DNA dentro da célula, era algo completamente diferente do que se pensava na época”, conta o professor Hugo Aguirre Armelin, pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Embora a Rhynchosciara tenha sido a estrela das principais pesquisas de Pavan, foi a drosófila que recebeu a maior parte das atenções de sua vida científica. Natural de Campinas, ele ingressou na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1938, no curso de história natural. Quando se formou, foi convidado e aceitou ser assistente do então Departamento de Biologia Geral. Seu mentor naquela época foi André Dreyfus, do grupo de notáveis que criou a USP e um dos introdutores dos estudos e ensino de genética e evolução no país. Outra enorme influên­ cia foi a do ucraniano Theodosius Dobzhansky, geneticista reconhecido em todo o mundo. Harry Miller Jr., da Fundação Rockefeller, admirava o trabalho de Dreyfus e sugeriu a vinda do cientista ao Brasil, em 1943. Dobzhansky topou e, em São Paulo, ensinou as técnicas de pesquisa com drosófila, que foi por muito tempo modelo de estudo na genética e evolução e eram desconhecidas por aqui. “Durante a segunda visita do ucraniano, em 1948 e 1949, Dreyfus e Pavan criaram grupos de estudo com jovens pesquisadores não só de São Paulo como do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul e até da Argentina e da Suíça e estabeleceram programas sistemáticos nessa área”, conta Magalhães. Não por acaso surgiu uma geração brilhante de geneticistas, como Antonio

Pavan (escrevendo), com pesquisadores: experiência em Pirassununga, em 1952 PESQUISA FAPESP 159

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Imunologia

Coquetel de

anticorpos Equipe coordenada por brasileiro sugere nova estratégia de desenvolvimento de vacinas contra o vírus da Aids | Ricard o Zorzet to

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imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, em Nova York, parece ter encontrado a resposta para uma pergunta que o mundo todo vem fazendo aos pesquisadores – e os próprios pesquisadores vêm se indagando – nos últimos anos: quase três décadas após a descoberta da Aids, por que ainda não se chegou a uma vacina capaz de deter com eficiência o vírus que a provoca, o HIV? A explicação para o insucesso é que as dezenas de formulações candidatas a vacina testadas até o momento foram produzidas com base em uma estratégia válida contra alguns vírus, como o causador da hepatite B, mas não contra o HIV, que a cada ano ainda infecta cerca de 3 milhões de pessoas no mundo. Esperava-se aniquilar o HIV como os caçadores de lobisomens eliminavam os homens-lobo nos filmes de terror: cravando-lhes uma bala de prata no coração. No caso do HIV, a bala seria uma proteína (anticorpo) capaz de aderir a um ponto vital do vírus e o impedir de penetrar nas células de defesa do organismo e se multiplicar. Quatro desses superanticorpos já foram identificados, mas nenhum foi capaz de isoladamente deter o vírus. E talvez nem mesmo produzidos em conjunto consigam, uma vez que o HIV se comporta como um vírus-camaleão, que acumula pequenas alterações conforme se reproduz, tornando inúteis os anticorpos produzidos contra ele.

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fecção. É que não era possível isolar do Ante os resultados desapontadores dessa estratégia, Nussenzweig e sua sangue as células de defesa produtoras equipe resolveram tentar algo diferende anticorpos: os linfócitos B, capazes te. Foram investigar como o organismo de conservar por meses ou anos a rede um grupo especial de pessoas que ceita de proteínas que neutralizam os microrganismos invasores. produzem uma ampla variedade de anticorpos contra o HIV – eles corresEssa situação só mudou recentemente com o trabalho do imunologista pondem a cerca de 10% dos portadoalemão Johannes Scheid. Pesquisador res do vírus – combate naturalmente a infecção. Ao analisar o sangue de seis visitante no laboratório de Nussendesses portadores especiais, o grupo da zweig e primeiro autor do artigo na Rockefeller descobriu que o organismo Nature, Scheid concebeu uma forma de separar os linfócitos B do sangue dos deles adota uma estratégia de combate diferente: em vez de produzir apenas portadores do vírus. Com o auxílio de um ou dois tipos de superanticorpos pesquisadores da Alemanha e de outras contra o HIV, fabrica concentrações instituições dos Estados Unidos – enelevadas de dezenas de anticorpos ditre eles, David Ho, um dos precursores do uso do coquetel de medicamentos ferentes que aderem a pontos distintos do vírus, relataram os pesquisadores contra o vírus –, ele coletou centenas de em artigo publicado na edição de 2 de linfócitos B do sangue de seis pessoas que produziam elevados níveis de anabril da revista Nature. “Esses pacientes produzem níveis ticorpos contra o HIV. No total, foram elevados de anticorpos distintos que identificados 502 anticorpos distintos, individualmente têm pouco poder de dos quais 433 se ligavam a diferentes pontos de uma proteína da cápsula do neutralização, mas juntos são muito potentes”, explica Nussenzweig. Desse vírus (a gp140) usada para aderir às células do sistema de defesa. modo, os controladores de elite manPor meio de técnicas genéticas, têm o vírus em concentrações baixíssimas no sangue – inferior a 50 cópias Scheid e Nussenzweig reproduziram os anticorpos e os testaram em laboratório por mililitro – a ponto de evitar o surcontra o vírus. Constataram que, em segimento dos sintomas da Aids. Quem parado, nenhuma dessas 433 proteínas desenvolve a doença em geral apresenta milhões de cópias de HIV por tinha o poder de fogo de um mililitro de sangue. dos quatro superanticorpos Camaleão: conhecidos. Mas reunidas em Embora os imunologistas o HIV, em rosa, conhecessem os controladouma espécie de coquetel, conque infecta res de elite havia alguns anos, tendo de 20 a 50 variedades, 3 milhões pouco sabiam sobre como elas apresentavam ação mais de pessoas a cada ano seus corpos enfrentavam a inampla que a dos superanti-


Cynthia goldsmith/cdc

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gabriel victora e tanja schwickert/universidade rockefeller

corpos. “A base molecular dessa atividade ainda não foi determinada, mas pode resultar da combinação de efeitos aditivos dos diferentes anticorpos”, escreveram os autores do estudo. Os pesquisadores não excluem a possibilidade de que, no futuro, se encontre um superanticorpo apto a deter o vírus, mas acreditam que o ataque múltiplo seja mais viável. “Com base nesses resultados”, comenta Nussenzweig, “parece mais promissor tentar produzir uma vacina com ação mais global que simule o que acontece no organismo dos indivíduos que combatem o vírus naturalmente”. Mas nada disso deve se tornar disponível às pessoas tão cedo. Apesar do

O mapa: precursoras de células dendríticas (verde) em linfonodo

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avanço que essa descoberta representa, ainda serão necessários anos de pesquisa até que se consiga uma vacina com propriedades semelhantes às do sistema imune de quem controla bem o vírus. Antes será preciso desfazer uma série de dúvidas – não se sabe, por exemplo, qual proporção de cada anticorpo seria necessária para neutralizar o HIV, nem contra quais cepas do vírus essa mistura de anticorpos pode ser eficiente. Nussenzweig, no entanto, não desanima e aposta em uma nova forma de produção de imunizantes investigada nos últimos anos: a concepção inteligente de vacinas (intelligent vaccine design, em inglês), que se vale de informações genéticas para estimular a produção de defesas mais eficazes contra vírus, bactérias e outros parasitas, além de células tumorais. “A concepção inteligente de vacinas é a forma de se pensar vacinas do século XXI”, comenta o imunologista que nasceu no Brasil, mas vive nos Estados Unidos há quase quatro décadas.

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sucesso dessa nova estratégia dependerá da habilidade de se controlar a atividade de outro tipo de células do sistema imune – as células dendríticas, acionadoras da cadeia de eventos celulares que culmina na produção de anticorpos –, cujo ciclo evolutivo acaba de ser elucidado pela equipe de Nussenzweig em um artigo que mereceu a capa da edição de 17 de abril da revista Science, ilustrada por uma imagem obtida pelo imunologista brasileiro Gabriel Victora. Chamadas de dendríticas por apresentarem prolongamentos que lembram os ramos de uma árvore (déndron, em grego), essas células funcionam como sentinelas do corpo. Tão logo deparam com vírus, bactérias ou mesmo células tumorais (que perderam as características que permitem identificá-la como sendo do próprio organismo), as células dendríticas emitem prolongamentos semelhantes aos braços de um polvo e os envolvem, engolem e destroem. Na sequência desse mecanismo de destruição conhecido como fagocitose, as células dendríticas expõem em sua própria superfície pedaços do invasor e os apresentam a outro grupo de células de defesa, os linfócitos T, que, por sua vez, acionam os linfócitos B, produtores de anticorpos.


cynthia goldsmith/cdc

Células dendríticas maduras, prontas para induzir a produção de anticorpos, são encontradas em órgãos que integram o sistema imune, como o baço e os linfonodos. Também estão presentes na pele e nas membranas que revestem órgãos em contato direto ou indireto com o ambiente, como o nariz, os pulmões e os intestinos. Mas há quase quatro décadas se tentava descobrir quais células do sistema de defesa as originavam.

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o laboratório de Nussenzweig, a pesquisadora Kang Liu teve a ideia de usar proteínas encontradas exclusivamente nas células dendríticas maduras para identificar suas precursoras. Da medula óssea de camundongos, ela isolou as candidatas a genitora das células dendríticas marcadas com uma proteína verde fluorescente e as injetou em roedores geneticamente idênticos. Com o auxílio de uma técnica avançada que permite ver as células do sistema imune em atividade no corpo de animais vivos – a microscopia intravital multifótons –, Kang Liu, Victora e Tanja Schwickert acompanharam o percurso dessas células no corpo dos camundongos e documentaram os estágios de desenvolvimento delas. A equipe da Rockefeller confirmou que as células dendríticas de fato surgem no interior dos ossos, assim como as demais células do sistema de defesa, e ainda imaturas chegam à corrente sanguínea e se espalham pelo corpo. Parte delas se aloja no baço e nos linfonodos, onde amadurece até que, cerca de uma semana mais tarde, esteja pronta para identificar os invasores. Diferentemente do que muitos imunologistas acreditavam, as células dendríticas evoluem a partir de genitores distintos dos que geram os macrófagos, outro grupo de células de defesa especializadas em realizar a fagocitose, mas menos aptas a desencadear respostas imunes. Estas são descendentes diretas dos monócitos, enquanto as primeiras são geradas por células que a equipe de Nussenzweig chamou de precursores de células dendríticas (pre-CDs). “Conhecer a origem precisa dessas células e todos os passos de seu desen-

O parto: cópias do vírus da Aids (verde) recém-criadas em linfócito (salmão)

volvimento é fundamental para que se saiba como podem ser manipuladas para a obtenção de vacinas”, explica Victora. “A identificação dos órgãos em que se desenvolvem e se localizam deve auxiliar na compreensão das funções que executam”, completa Nussenzweig. Os pesquisadores imaginam que a resposta imune gerada depende do estágio de desenvolvimento em que as células dendríticas são despertadas pelos patógenos invasores.

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credita-se que também seja possível gerar uma resposta imunológica mais eficiente ao fornecer diretamente às células dendríticas moléculas que elas reconheçam como sendo de microrganismos invasores. A forma tradicional de produção de vacinas baseia-se na injeção de grandes pedaços ou formas inativas de vírus ou bactérias, dos quais apenas parte chega às células dendríticas, acionando a produção de uma variedade restrita de anticorpos. A ideia do grupo de Nussenzweig é desenvolver técnicas que permitam direcionar quantidades muito menores de proteínas virais ao tipo de célula dendrítica necessário para desencadear a resposta imune adequada contra o HIV – estratégia que deve valer para outras enfermidades. Com base

nesse princípio, Michel Nussenzweig trabalha em parceria com seus pais, Ruth e Victor, imunologistas de renome mundial que atuam na Universidade de Nova York, no desenvolvimento de uma candidata a vacina contra a malária produzida a partir da estimulação das células dendríticas. Tanto a produção de vacinas a partir da estimulação das células dendríticas como a criação de uma nova leva de imunizantes contra o HIV, porém, são promessas que devem levar anos para se concretizar. Afinal, como lembra Michel Nussenzweig, apenas recentemente sua equipe conseguiu desenvolver as ferramentas necessárias para isolar os linfócitos B e para acompanhar o desenvolvimento das células dendríticas em animais vivos. “Quatro ou cinco anos atrás”, diz o pesquisador, “esse trabalho n era impossível”.

> Artigos científicos 1. SCHEID, J. F. et al. Broad diversity of neutralizing antibodies isolated from memory B cells in HIV-infected individuals. Nature. v. 458, p. 636-640. 2 abr. 2009. 2. LIU, K.; VICTORA, G. et al. In vivo analysis of dendritic cell development and homeostasis. Science. v. 324, p. 392-397. 17 abr. 2009. PESQUISA FAPESP 159

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arqueologia

Arte rupestre no

semiárido

Primeiras escavações na serra das Confusões revelam um padrão singular de pinturas pré-históricas 
 Marcos Pivet ta

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s primeiros trabalhos exploratórios no Parque Nacional da Serra das Confusões, no sudoeste do Piauí, sugerem que essa porção de 526 mil hectares de semiárido pode ter uma riqueza arqueológica tão grande quanto a do seu famoso vizinho, o Parque Nacional da Serra da Capivara, onde mais de 1.300 sítios pré-históricos foram localizados desde os anos 1970. Pesquisadores da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) realizaram escavações em dois dos 150 sítios pré-históricos recém-descobertos na serra das Confusões e encontraram pinturas rupestres e sepulturas humanas, algumas com idade estimada de 6 mil anos, com características distintas das comumente achadas na serra da Capivara. “São resultados extraordinários”, diz a arqueóloga Niède Guidon, que atua

há mais de três décadas no Piauí e é presidente da Fumdham. “Há trabalho na serra das Confusões para pelo menos duas gerações de pesquisadores, mas temos de correr contra o tempo. Muitos sítios são destruídos antes mesmo de serem descobertos.” Entidade científica, sem fins lucrativos, com sede no município piauiense de São Raimundo Nonato, a Fumdham é responsável pela preservação e proteção dos sítios arqueo­lógicos da unidade de conservação na serra da Capivara, enquanto a da serra das Confusões é mantida diretamente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
 Apesar de a distância entre os dois parques ser relativamente pequena, cerca de 80 quilômetros, a nova frente de pesquisa parece ter potencial para revelar detalhes até agora desconhecidos

Serra das Confusões: 150 novos sítios pré-históricos

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sobre os povos pré-históricos que habitaram a região. Na Toca do Enoque, um dos sítios explorados na serra das Confusões, os pesquisadores localizaram duas sepulturas, uma individual, com apenas um esqueleto humano, e outra coletiva. Na cova comunitária foram resgatadas 13 ossadas. Os esqueletos de adultos encontravam-se na parte alta da fossa funerária e as crianças estavam mais abaixo. “Quase todos os esqueletos exibiam muitos adornos, como colares e conchas, e tinham o tórax pintado com ocre”, afirma a arqueóloga Fátima Luz, que, desde o final do ano passado, faz escavações na Toca do Enoque. “Nunca vi um padrão de enterramento parecido com esse na Capivara.” Não foi possível fazer a datação dos resquícios humanos pelo método do carbono 14, pois nas ossadas não havia muito colágeno, proteína indispensável para a realização do exame. No entanto, a datação de carvões próximos ao sepultamento individual apontou uma idade aproximada de 6.200 anos, indício de que os esqueletos também podem ser dessa época.


 Em outro sítio, na Toca do Alto do Capim, os trabalhos se concentram num paredão de arenito que tem um vão formado pela erosão cerca de 5 metros acima do nível do chão. Com o auxílio de uma escada, é possível entrar nesse espaço e ter acesso a uma sala com cerca de 12 metros de comprimento por 5 metros de largura. Próximo à abertura do paredão, o compartimento é mais ou menos da altura de uma pessoa e, perto do fundo, vai se tornando mais baixo e estreito. Suas paredes e o teto são cobertos por pinturas, a maioria composta de grafismos puros, feitos


fotos arquivo fumdham

Pintura na Toca do Alto do Capim: predomínio de formas geométricas

sobretudo com linhas retas e, em alguns casos, apresentando formas circulares. “Cerca de 80% das pinturas são geométricas e 20% envolvem figuras humanas e de animais”, comenta a arqueóloga Gisele Daltrini, que escava a Toca do Alto do Capim. “O padrão desses desenhos é justamente o oposto do que encontramos em sítios da serra da Capivara.” Numa camada de sedimentos com espessura de pouco mais de um metro, formada pela areia que cai do descamamento do teto, os pesquisadores acharam também restos de fogueiras (carvões), pedaços de ossos humanos e de animais e artefatos de pedra. A datação dos carvões encontrados na parte mais profunda dos sedimentos, que também continha fragmentos de ossos humanos e um bloco com gravuras, atingiu 6.210 anos.

 Se essa estimativa inicial for confirmada por mais achados, é possível especular que a ocupação humana na serra das Confusões tenha se dado posteriormente à chegada do Homo sapiens na serra da Capivara, onde há registros mais antigos da presença humana. “Aparentemente, o homem chegou primeiro na serra da Capivara

e depois na serra das Confusões”, opina Niède Guidon, que no passado tentou unificar, sem sucesso, a área dos dois parques. Mas são necessários mais dados para que as arqueólogas possam formular uma hipótese consistente. Por ora, não é possível afirmar com certeza nem mesmo se o povo pré-histórico que se estabeleceu numa serra era o mesmo da outra. As informações obtidas nos dois primeiros sítios explorados na serra das Confusões sugerem que ali havia aspectos culturais distintos dos usualmente encontrados na serra da Capivara. No entanto, essas especificidades não são suficientes para provar a existência de dois povos distintos no passado remoto da região. Afinal, pessoas de uma mesma cultura também podem fazer desenhos e enterros com características totalmente díspares.

 Chegada às Américas - Embora po-

lêmicos, os estudos de Niède Guidon no semiárido nordestino defendem a ideia de que o homem pré-histórico fincou pé no Brasil há algumas dezenas de milhares de anos, talvez 100 mil anos atrás. A pesquisadora acredita que o H. sapiens deixou a África e desem-

barcou no Piauí por via oceânica, tendo atravessado o Atlântico num momento histórico em que uma grande seca naquele continente levou-o ao mar em busca de comida. Como o nível do oceano estava 140 metros abaixo do atual, havia mais ilhas e a distância entre os dois continentes era menor, diz a arqueóloga. Essa conjunção de fatores teria possibilitado a travessia. Sem dúvida a tese da pesquisadora é controversa, mas, se um dia vier a ser comprovada, mudará toda a história da colonização das Américas. “Esses dados sempre foram aceitos pelos europeus e por alguns norte-americanos”, comenta Niède. “Hoje, com os resultados obtidos no México por uma equipe inglesa, o povoamento mais antigo das Américas está mais do que comprovado.” Mas a visão tradicional, ainda amparada por muitos pesquisadores norte-americanos, sustenta a hipótese de que a chegada do homem às Américas ocorreu há cerca de 13 mil anos, vindo da Ásia via estreito de Bering. Como se vê, o tema gera acaloradas discussões entre os pesquisadores – e os sítios pré-históricos na serra das Confusões são novas peças desse quebra-cabeça arqueológico. n PESQUISA FAPESP 159

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias n Células-tronco

Doenças respiratórias As células-tronco têm uma infinidade de implicações clínicas no pulmão. O artigo “Stem cells and respiratory diseases”, de Soraia Carvalho Abreu, Tatiana Maron-Gutierrez, Cristiane Sousa Nascimento Baez Garcia, Marcelo Marcos Morales e Patricia Rieken Macedo Rocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é uma revisão crítica que inclui estudos clínicos e experimentais advindos do banco de dados do Medline e SciELO nos últimos dez anos, onde foram destacados os efeitos da terapia celular na síndrome do desconforto respiratório agudo ou doenças mais crônicas, como fibrose pulmonar e enfisema. Apesar de muitos estudos demonstrarem os efeitos benéficos das células-tronco no desenvolvimento, reparo e remodelamento pulmonar, algumas questões ainda precisam ser respondidas para um melhor entendimento dos mecanismos que controlam a divisão celular e diferenciação, permitindo o uso da terapia nas doenças respiratórias.

da Silva, do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais, e Fábio Poggiani, José Leonardo de Moraes Gonçalves e José Luiz Stape, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo. Dezoito meses após a implantação das mudas no campo, o volume dos troncos demonstrou aumento significativo (ao redor de 130%) no tocante ao crescimento dos eucaliptos tratados com os biossólidos úmido e seco em relação à testemunha sem aplicação de fertilizante, bem como teve resultado semelhante ao do tratamento com adubo mineral. Entretanto, não houve diferença significativa entre os tratamentos com a aplicação dos biossólidos úmido e seco. Com relação à nutrição mineral, foi observado aumento da concentração dos elementos P, Ca e Zn nas folhas com as maiores doses dos biossólidos e verificou-se efeito inverso de Mn. As concentrações foliares de todos os nutrientes nos eucaliptos tratados com os biossólidos mantiveram-se dentro dos limites observados usualmente nas plantações comerciais, não havendo sinais de desequilíbrio nutricional. Revista Árvore – v. 32 – nº 5 – Viçosa – set./out. 2008

Brazilian Archives of Biology and Technology – v. 51 – n.spe – Curitiba – dez. 2008 n Ciências

foliar

Lodo como fertilizante No Brasil, diversos municípios estão construindo estações de tratamento de esgoto (ETEs) e, futuramente, serão produzidos anualmente milhares de toneladas de lodo para os quais deverá ser dada destinação adequada. O lodo de esgoto tratado (biossólido) é o resíduo resultante do tratamento do esgoto urbano, e sua disposição final precisa ser bem planejada em razão das implicações sanitárias, ambientais, econômicas e sociais. Ele apresenta elevado teor de matéria orgânica e de nutrientes e poderia ser utilizado como fertilizante em plantios florestais. Esta pesquisa foi realizada na Estação de Ciências Florestais de Itatinga, com o objetivo de avaliar o efeito da adição de três doses dos lodos de esgoto úmido (torta) e seco (granulado), complementados com K e B e aplicados ao solo nas linhas de plantio em parcelas experimentais de Eucalyptus grandis e resultou no artigo “Volume de madeira e concentração foliar de nutrientes em parcelas experimentais de Eucalyptus grandis fertilizadas com lodos de esgoto úmido e seco”, de Paulo Henrique Muller

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Budismo de cor amarela Pesquisas empíricas indicam que o chamado “budismo de cor amarela”, sobretudo associado ao da imigração japonesa, está em um declínio constante no que diz respeito a adeptos explícitos. Depois de algumas considerações metodológicas, o texto “Declínio do budismo ‘amarelo’ no Brasil”, de Frank Usarski, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aborda os dados estatísticos relevantes. Na parte final são discutidas possíveis razões da dinâmica negativa, em conformidade com três níveis de explicação: motivos relacionados com instituições budistas, constelações dadas na comunidade étnica e fatores no âmbito do indivíduo. reprodução

n Nutrição

da religião

Tempo Social – v. 20 – nº 2 – São Paulo – nov. 2008


O público e o privado No artigo “Gênero, o público e o privado”, Susan Moller Okin, da Universidade Stanford (Estados Unidos), discute as configurações históricas da dicotomia público/privado, analisando seus significados a partir de uma perspectiva de gênero. A ausência de reflexão sobre o gênero – especialmente sob duas formas, a negligência à realidade política das relações familiares e a linguagem “neutra” – tem levado muitos teóricos, do passado e do presente, a reafirmar essa dicotomia sem levar em conta sua natureza patriarcal. Para Susan Okin, os domínios da vida doméstica (pessoal) e da vida não doméstica (pública) não podem ser interpretados isoladamente, o que demanda uma revisão profunda dos fundamentos de grande parte da teoria política liberal. A autora aborda problemas importantes, como o valor da privacidade. Revista Estudos Feministas – v. 16 – nº 2 – Florianópolis – mai/ago 2008 n Cinema

Função da crítica Com base em proposições da teoria da recepção, no campo da sociologia da cultura, o artigo “Olhares da recepção, a crítica cinematográfica em dois tempos”, de Eliska Altmann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, discute o papel da crítica cinematográfica a partir de duas posições: a que defende o “cinema de autor” e a que se enquadra em um suposto “fim” da função crítica. O persistente debate a opor cinema de arte ou de autor ao industrial e massivo parece tão antigo quanto o próprio cinema e acaba por reduzi-lo à mera oposição “arte versus indústria”. Essa, por sua vez, parece ainda hoje um argumento medular no campo da crítica. A complexidade do pensar cinematográfico e artístico implica um deslocamento de sua recepção e, por conseguinte, de sua sociologia. Nesse sentido, pretende-se debater as possíveis relocalizações de conceitos, como os que circunscrevem o cinema em termos de “alto” versus “baixo” e “educado” versus “vulgar”. Caderno CRH – vol. 21 – nº 54 – Salvador – set./ dez. 2008 n Educação

Estudantes índios O artigo “‘Conhecimento tradicional’ e currículo multicultural: notas com base em uma experiência com estudantes indígenas kaiowá/guarani”, de Maria Aparecida de Souza Perrelli, da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, situa-se no campo dos estudos culturais que compreendem o currículo escolar como lugar de disputa pela legitimidade de expressão do conhecimento de

distintas culturas. Nessa compreensão, o texto em questão destina-se a conhecer as especificidades dos saberes das sociedades tradicionais e a levantar questões pertinentes à pesquisa e à inserção desse conhecimento no currículo escolar. Os dados foram obtidos com base em levantamento bibliográfico e por meio de depoimentos de estudantes do Curso de Formação de Professores Indígenas Kaiowá/ Guarani de Mato Grosso do Sul. O texto traz uma breve apresentação desse povo indígena e da sua luta pela escola específica e intercultural. Caracteriza o conhecimento tradicional (formas de aquisição, distribuição e transmissão) e remete a discussões que argumentam a favor de um currículo escolar aberto aos conhecimentos de culturas historicamente silenciadas. Ciência & Educação (Bauru) – v. 14 – nº 3 – Bauru – 2008 n Tecnologia

de alimentos

Aguardente envelhecida Avaliou-se por um período de 390 dias o perfil da composição química da aguardente sob envelhecimento em tonéis de carvalho de 20 litros. O envelhecimento da aguardente em tonéis de madeira melhora a qualidade sensorial do destilado. As aguardentes envelhecidas foram analisadas aos 0, 76, 147, 228, 314 e 390 dias de armazenamento quanto às concentrações de etanol, acidez volátil, ésteres, aldeídos, furfural, álcoois superiores (n-propílico, isobutílico e isoamílicos), metanol, cobre, extrato seco, taninos e cor. Após os 390 dias de armazenamento, a aguardente apresentou maiores concentrações de acidez volátil, ésteres, aldeídos, furfural, álcoois superiores, congêneres, extrato seco e tanino. Sua coloração tornou-se amarelada. As concentrações de etanol e de metanol não se alteraram, e o teor de cobre apresentou ligeiro declínio. O envelhecimento da aguardente por 390 dias em tonéis de carvalho alterou a sua composição química, porém ela se manteve dentro de todos os padrões de qualidade estabelecidos pela legislação nacional em vigor. O trabalho está descrito no artigo “Perfil físico-químico de aguardente durante envelhecimento em tonéis de carvalho”, de Mariana Branco de Miranda, Nilo Gustavo Souza Martins, André Eduardo de Souza Belluco, Jorge Horii e André Ricardo Alcarde, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo. eduardo cesar

n Sociologia

Ciência e Tecnologia de Alimentos – v. 28 – supl. 0 – Campinas – dez. 2008

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

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lINHA DE PRODUÇÃO mundo

As opções de transporte se multiplicam e a última novida­ de, em forma de protótipo, é o projeto Puma, sigla em inglês de Mobilidade e Acessibilida­ de Pessoal Urbana, uma par­ ceria das empresas Segway e General Motors (GM). É um veículo de dois assentos e duas rodas dotado de bateria e motor elétrico. Ele se baseia no Transportador Pessoal (TP) da Segway lançado em 2001, uma espécie de pati­ nete eletrônico e silencioso que se desloca com a pessoa em pé. A estabilidade tanto no TP como no Puma, em que as pessoas viajam sentadas, é feita por sensores e giroscó­ Minicarro com duas rodas baseado em patinete eletrônico pios que indicam e corrigem o posicionamento em relação ao solo e não deixam o veículo > Celulares capta as imagens, com a tombar. Mais avançado, o Puma possui ainda um sistema que da saúde ajuda de diodos emissores se baseia em uma rede sem fio que detecta outros veículos ao de luz (LEDs), de amostras redor e evita colisões, além de encontrar lugares para estacio­ Duas inovações baseadas de sangue e saliva. Os dados nar. É possível também se conectar à internet e acessar redes em telefones celulares coletados são enviados por de relacionamento e de negócios. As baterias de íons de lítio uma ligação telefônica comuns vão trazer mais permitem velocidades de até 56 km/h e autonomia de iguais opções de diagnóstico de para um hospital que fará 56 km. Ainda não há previsão de lançamento comercial.

Veículo do equilíbrio

Segway

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doenças a distância como HIV, malária, tuberculose, entre outras, além de realizar exames de sangue e urina, principalmente em áreas distantes dos centros hospitalares, como acontece em países em desenvolvimento. Chamadas de Cellophone e Cellscope, elas foram criadas por um grupo de pesquisadores liderados pelo professor Aydogan Ozcan, do Instituto de Nanossistemas da Califórnia, que faz parte da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. O primeiro aparelho é uma plataforma instalada num celular que 64

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o diagnóstico e devolverá o resultado via celular. O Cellscope é um celular que possui um pequeno microscópio acoplado capaz de monitorar doenças infecciosas por meio de captação e envio de imagens de células sanguineas e lesões. Os aparelhos já ganharam vários prêmios. O último foi da Fundação Vodafone Americas, em abril, de uma empresa de telecomunicações. Foram US$ 700 mil que serão usados, conforme divulgou Ozcan no site Scidev, para testes em hospitais da África, América do Sul e Ásia.

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> Algas em painel solar Usar algas marinhas microscópicas em painéis solares pode ser uma maneira mais eficiente de produzir energia elétrica a partir da energia do sol. A novidade é de um grupo de engenheiros das universidades estaduais de Oregon e de Portland, nos Estados Unidos. Eles utilizaram algas da família das diatomáceas que são unicelulares e fazem parte do plâncton dos oceanos,

servindo de alimento para outros seres marinhos. Os pesquisadores aproveitaram a carapaça dessas algas que é muita pequena e muito rígida, além de ser capaz de aprisionar os fótons de luz. Na montagem da célula solar, o material orgânico da alga é removido e a carapaça é preenchida com nanopartículas de dióxido de titânio, material usado num tipo de painel solar chamado de dye-sensitized solar cells, ou célula solar sensibilizada com corante.


Diatomácea: carapaça aprisiona os fótons

O uso da alga pode potencializar em até três vezes a produção de energia elétrica e tornar a célula do tipo dye um pouco mais cara.

> Holografia nos discos Um disco das dimensões de um DVD capaz de armazenar 500 gigabytes (GB) de dados, diante de 4,7 GB dos convencionais ou 25 GB dos DVDs blu-ray atuais, foi apresentado em abril pela empresa norte-americana GE. Ele abre caminho para a utilização comercial da micro-holografia como técnica de estocagem de dados. A holografia é um padrão de gravação e leitura em três dimensões e por meio dessa técnica os pesquisadores da GE conseguiram gravar as informações (bits) no volume do disco e não apenas na superfície como nas gravações ópticas dos discos usados atualmente.

Eliminar o dióxido de carbono (CO2), o gás mais importante no aquecimento do planeta, é uma tarefa que merece muitos estudos e soluções. O mais recente vem de Cingapura, onde pesquisadores do Instituto de Bioengenharia e Nanotecnologia desenvolveram um processo que transforma o CO2 em metanol, um tipo de álcool com amplo uso industrial. O trabalho, coordenado por Yugen Zhang, foi apresentado na revista científica Angewandte (20 de abril) e demonstra a utilização no processo de uma substância catalisadora orgânica, chamada N-heterocíclico, mais silano, um composto que possui hidrogênio e é derivado do silício. A utilização desse catalisador, segundo os pesquisadores, torna o processo de produção de metanol mais barato que outros existentes, como o que utiliza gás natural. A solução poderá também ter outro uso no futuro. Será na reforma (quebra das moléculas) de combustíveis fósseis ou de etanol para produzir hidrogênio para a geração de eletricidade.

Músculos fortes como o aço

> Gás nocivo vira álcool

No futuro, o mundo poderá ser povoado de robôs dotados de músculos fortes como o aço, leves como o ar e flexíveis como a borracha. Um importante passo para tornar realidade essas máquinas foi dado por um grupo de pesquisadores do Instituto Alan MacDiarmind de Nanotecnologia da Universi­ dade do Texas em Dallas, nos Estados Unidos, que conseguiu chegar a um material com essas propriedades, mesclando nanotubos de carbono com aerogel, um novo material sólido e extremamente leve baseado no silício. O segredo da composição é o alinhamento vertical dos nanotu­ bos, em uma estrutura parecida com uma floresta de bambus. Quando uma tensão elétrica é aplicada no conjunto, ele se contrai e se expande numa velocidade incrível – movimento similar ao dos músculos natu­ rais. “O lado fascinante desse fenômeno está ligado às propriedades dessas folhas de nanotubos. Além de ser bastante leve, com densidade semelhante à do ar, esse material é condutor e suas propriedades elásticas permitem que o fenômeno ocorra em situa­ ções de temperaturas extremas, entre ­–193 e 1.500 graus Celsius”, afirma o físico brasileiro Alexandre da Fonseca, um dos pesquisadores responsáveis pela descoberta, formado pela Universidade de São Pau­ lo (USP). A primeira aplicação do músculo artificial, capaz de expandir-se a uma taxa mil vezes maior do que um músculo natural, será na confecção de células solares mais eficientes. Outro brasileiro, o engenheiro de materiais Márcio Dias Lima, também participou do desenvolvimento e assinou junto um artigo na revista Science (20 de março).

laurabeatriz

Universidade de Oregon

A maneira de reproduzir é similar aos DVDs e CDs atuais e a empresa anuncia que esses produtos poderão ser acessados num futuro aparelho de reprodução de discos micro-holografados. Inicialmente, a GE vai direcionar essa inovação para o mercado de estocagem de dados comerciais.

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lINHA DE PRODUÇÃO brasil

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jansle rocha/unicamp

Agricultura de precisão

Entre as várias tecnologias de agricultura de precisão utilizadas pela indústria sucroalcooleira do estado de São Paulo, a imagem de satélite predomina, como mostra o trabalho realizado por Claudia Brito Silva, apresentado no programa de pós-graduação em economia aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo. A pesquisa que apontou a mudança no gerenciamento da produção como o principal benefício na utilização dessas técnicas incluiu as 205 usinas e destilarias cadastradas pela União dos Produtores de Bioenergia. Um questionário foi aplicado para identificar os motivos pelos quais as unidades de produção de açúcar e álcool não adotaram, até o final de 2008, ferramentas de agricultura de precisão. Quanto às empresas que já as utilizam, as perguntas versaram sobre as dificuldades ou obstáculos para sua implementação. Um total de 56% das empresas que responderam ao questionário já adota essas tecnologias. As mais utilizadas são, além da imagem de satélite com 76%, piloto automático (39%), fotografias aéreas (33%) e amostragem de solo com GPS (31%), o sistema global de posicionamento por satélite. Os altos custos foram apontados como obstáculo tanto por aqueles que já adotaram a tecnologia como pelos que ainda não têm acesso a ela.

Do avião, imagem com câmera especial mostra a composição do solo

> Diagnóstico no campo

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identificados. A publicação teve a colaboração de um grupo de pesquisadores ligados ao Laboratório de Patologia Florestal da FCA, sob a coordenação do professor Edson Luiz Furtado.

FCA/Unesp

Um manual para ajudar na identificação preliminar dos sintomas das doenças que afetam as várias espécies vegetais do gênero Eucalyptus foi lançado com o título Doenças do eucalipto no Brasil, no mês de abril, pela Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, no interior paulista. A publicação em formato de livro de bolso, de fácil consulta e interpretação para possibilitar a pré-diagnose das patologias durante as visitas de campo, teve origem no Projeto de Manejo Integrado de Doenças da FCA.

As doenças são apresentadas com fotografias detalhadas das plantas, mostrando folhas, raízes ou caules atingidos. Os agentes causais, os sintomas e as características de cada patologia também são

Mancha bacteriana na muda de eucalipto


SAE Brasil

Cinco levantamentos de tecnologias editados recentemente em todo o mundo na forma de patentes, em assuntos estratégicos para o país, foram divulgados pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em estudos chamados de “Alerta tecnológico”. Já foram publicados estudos sobre patentes de processos e produtos para pessoas com deficiência auditiva, biodiesel, células-tronco e nanotecnologia. O último tratou das células a combustível, equipamento que utiliza hidrogênio para produzir energia elétrica em geradores ou veículos automotores. O trabalho traz uma listagem e faz um monitoramento das patentes relativas ao tema nos países e nas empresas por tipo de tecnologia. Por exemplo, o Japão lidera com 2.463 patentes sobre células a combustível, bem à frente dos Estados Unidos, em segundo lugar, com 598. Entre as

Eduardo Cesar

> Alerta de patentes

Célula a combustível: 4.106 patentes

empresas, a japonesa Toyota lidera com 671 pedidos de patente e, em seguida, vem a Honda, com 132. O maior número de pedidos se refere à fabricação geral de células a combustível, com 4.106 patentes, depois aparecem os eletrodos com 810. Mais informações no site www.inpi.gov.br.

> Plásticos mais limpos Um aditivo especial antimicrobiano para plásticos foi desenvolvido em parceria entre a Nanox,

Estudantes brasileiros conquisConquistas taram vários prêmios em competide classe ção de design e de construção de aeromodelos disputada nos Estados Unidos e promovida pela SAE Internacional, a Sociedade de Engenheiros da Mobilidade. A Classe Aberta foi conquistada pela equipe EESC USP Open, da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). Na Regular a vencedora foi a equipe Keep Flying da Escola Politécnica (Poli-USP). Em segundo ficou a equipe Uai Sô Fly, da Universidade Federal de Minas Gerais. Elas ficaram à frente de equipes dos Estados Unidos, Polônia, Canadá, Alemanha e México. A Keep Flying também conquistou o prêmio especial de sistemas de engenharia da agência espacial norte-americana, a Nasa. O prêmio foi conquistado porque a equipe brasileira seguiu os conceitos de engenharia da agência no projeto e no desenvolvimento da aeronave construída em madeira e alumínio.

empresa de nanotecnologia de São Carlos, no interior paulista, e a Resimax Plásticos, de Vargem Grande Paulista. Fabricado com base na tecnologia NanoxClean, o produto que combate a proliferação de bactérias e fungos foi certificado pelo Ministério da Saúde e pode ser usado em contato com alimentos ou com a pele. A função bactericida da tecnologia é propiciada pela incorporação de nanopartículas de dióxido de titânio, depositadas nos materiais como uma camada fina e transparente.

Aeromodelo da Keep Flying da USP: madeira, alumínio e conceitos da Nasa

> Aprendizado divertido Abordar os conceitos de objetos geométricos de maneira lúdica, aproximando-os dos objetos do mundo real, é o objetivo de um jogo eletrônico educacional desenvolvido na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).Chamado de Toth, o jogo funciona como complemento para o ensino de matemática no ensino fundamental. O jogo criado por Yuri Corrêa, Thiago de Almeida e Edson Teramoto, do curso de engenharia de computação da Poli, acontece em um ambiente 3D. Um outro jogo para reabilitação de crianças com dislexia, transtorno de aprendizagem caracterizado pela dificuldade de ler e escrever, foi desenvolvido pela fonoaudióloga Cristina Murphy, da Faculdade de Medicina da USP. São dois jogos, com estímulos não verbais e verbais, para treinamento auditivo. O jogo não verbal incentiva a percepção de sons agudos e graves e o verbal estimula a fala pela diferenciação de sílabas.


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tecnologia

A

experiência de ter uma doença rara e de difícil diagnóstico, chamada hidrocefalia de pressão normal, levou o professor Sérgio Mascarenhas, coordenador do Instituto de Estudos Avançados de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), a desenvolver um equipamento simples e minimamente invasivo para monitorar a pressão interna do cérebro, que consiste de um minúsculo sensor colocado logo abaixo da pele da cabeça do paciente e de um monitor externo especial para recepção e análise das informações. O aparelho avalia o volume do líquido cefalorraquidiano,

ou líquor, substância que reveste e protege o sistema nervoso central contra impactos, e também a concentração de sangue e a massa cerebral, entre outros fatores de risco para o aumento da pressão. Batizado de monitor de pressão intracraniana, o equipamento, que já foi patenteado, simplifica e torna acessível o acompanhamento do quadro clínico de portadores de hidrocefalia e vítimas de traumas cranioencefálicos decorrentes de acidentes de moto, carro e quedas. Atualmente esse exame é feito por um sensor colocado dentro do cérebro, por meio de um procedimento cirúrgico invasivo, sujeito a infecções. “Como

pesquisador, não me conformei que fosse preciso furar a cabeça para medir a pressão”, diz Mascarenhas, professor aposentado do Instituto de Física da USP de São Carlos, explicando a motivação para, dois anos atrás, dar início a mais uma pesquisa aos 79 anos, quando ainda se recuperava da cirurgia que fez para implantar uma válvula no cérebro capaz de controlar o excesso de líquido produzido por um defeito no ventrículo cerebral. O acúmulo de líquido comprime o tecido nervoso contra a caixa craniana, causando sintomas como tonturas, problemas de coordenação motora e incontinência urinária. “O aumento da pressão intracraniana

ENGENHARIA BIOMÉDICA

Cérebro vigiado Sensor subcutâneo monitora pressão intracraniana em casos de acidentes e doenças | Dinorah Ereno

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SIMON FRASER/SCIENCE PHOTO LIBRARY

começa a comprimir os neurônios e, com isso, altera suas funcionalidades”, diz Mascarenhas. Como a doença atinge principalmente pessoas acima de 60 anos, os sintomas costumam ser confundidos com os do mal de Parkinson, dificultando o diagnóstico. Deformação medida - A inspiração

para o desenvolvimento do sensor subcutâneo, que mede a pressão intracraniana pela deformação que o excesso de líquido produz no crânio, veio de um equipamento usado pelos engenheiros para monitorar a presença de rachaduras em paredes e o movimento das vigas, chamado strain gage (sensor

Tumor encontrado no cerebelo, hemangioblastoma comprime área que controla coordenação e equilíbrio


Equipamento começará a ser testado em 30 pacientes do Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto

riência caseira, desmontou um aparelho para medir a pressão arterial e usou o medidor de pressão em milímetros de mercúrio para fazer a leitura. O experi­ mento consistia em comparar o sensor externo com o usado atualmente dentro da caixa craniana e, ao mesmo tempo, provocar variação de pressão para mos­ trar que ele era sensível às mudanças induzidas. Os resultados mostraram que ele estava no caminho certo. Depois de vários experimentos rea­ lizados com ratos, coelhos e ovelhas, em que foram feitas comparações entre o método invasivo e o sensor subcu­ tâneo, o equipamento começará a ser testado em 30 pacientes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, em colabo­ ração com o chefe da neurocirurgia, professor Benedicto Oscar Colli. “Os pacientes com traumas que chegarem ao hospital vão receber o sensor tradi­ cional e o nosso, para fazer a compara­ ção”, diz Mascarenhas. O aparelho, que

inicialmente foi pensado para atender pacientes de hidrocefalia, poderá ser usado por qualquer paciente com risco de aumento na pressão intracraniana decorrente de hemorragias, edemas, tumores e infecções. Vítimas de acidentes de trânsito com pancadas na cabeça e região cer­ vical também serão beneficiários do monitoramento, já que o alto custo do exame atual é um obstáculo ao seu uso em grande escala. “O sensor tradicional, descartável, colocado dentro do cérebro custa em torno de R$ 5.000,00 o im­ portado, da marca Codman Johnson, e R$ 2.500,00 o nacional do fabricante Ventura”, relata o pesquisador. “O preço do monitor para o hospital é de cerca de R$ 30.000,00.” Uma diferença de preços muito grande em relação ao aparelho desenvolvido por Mascarenhas. “O sen­ sor, também descartável, custará cerca de R$ 350,00, com impostos previstos inclusos, enquanto o monitor ficará em R$ 3.200,00”, compara.

fotos eduardo cesar

de deformação). Os primeiros experi­ mentos foram feitos em uma bancada doméstica, na casa do pesquisador, com um crânio emprestado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Pe­ guei o aparelho que usam para medir a deformação das vigas no laboratório de estruturas da USP e colei no crânio por fora”, relata o professor que, entre mui­ tas outras atividades, fundou e dirigiu a Embrapa Instrumentação Agropecuá­ ria, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária de São Carlos, e participou da criação da UFSCar e do curso de engenharia de materiais (ver entrevista com o pesquisador em Pesqui­ sa Fapesp nº 137). Como o crânio é cheio de buracos, Mascarenhas tinha que preenchê-lo para simular a pressão intracraniana. Usou então um balão co­ lorido de borracha esquecido pelo seu neto, que foi colocado dentro do crânio e inflado. Mascarenhas queria simular a pressão sobre o osso e a deformação que causaria. Para completar a expe­

Sensor subcutâneo (no detalhe, acima) testado inicialmente em um crânio

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A medida da pressão intracraniana é feita em milímetros de mercúrio, co­ mo na pressão arterial. Em condições normais, a pressão intracraniana tem flutuações determinadas pelos ciclos respiratório e cardíaco e mede de 5 a 15 milímetros de mercúrio (mmHg2). Entre 20 e 30 enquadra-se na hiper­ tensão intracraniana causada por trau­ mas ou doenças. Acima desse limite, o paciente pode entrar em coma. Nos casos de acidentes com traumatismo craniano, por exemplo, a pressão po­ deria ser constantemente monitorada no hospital com o novo aparelho, evi­ tando muitas mortes. Atualmente isso não é feito porque o sensor tradicional não está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS) devido ao alto custo, e a grande maioria dos acidentados não tem como pagar pelo procedimento. É esse público que Mascarenhas quer atingir. “Eu me recuso a ser um aca­ dêmico que se esquece de que o co­ nhecimento é para estar a serviço da sociedade”, diz. O traumatismo cranioencefálico é uma das causas mais frequentes de aumento da pressão intracraniana no Brasil. Dados do SUS mostram que só em 2007 foram notificados 98.945 casos de traumatismos intracranianos, 12.800 de neoplasias malignas do encéfalo e 12.630 de hidrocefalias, totalizando 124.375 ocorrências com potencial pa­ ra serem monitoradas. “Esses números não correspondem à realidade, porque muitos pacientes morrem sem diagnós­ tico”, diz Mascarenhas. A tendência é que os traumatismos aumentem ainda mais, já que diariamente mais carros e motos entram em circulação no país. “São 430 mil acidentes de carro por ano, dos quais 35 mil resultam em morte.” Foi pensando nesse grande número de pacientes que não têm acesso ao mo­ nitoramento da pressão intracraniana que o professor decidiu transformar o sensor subcutâneo em um produto,

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O Projeto Desenvolvimento de um equipamento para monitoramento minimamente invasivo da pressão intracraniana

modalidade

Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dor

Sérgio Mascarenhas – Sapra investimento

R$ 203.010,88 (FAPESP)

apoiado pela FAPESP na modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Em­ presas (Pipe). A empresa associada ao projeto é a Sapra, de São Carlos, que atua na área de tecnologia da saúde e foi criada pelo pesquisador em 1979. Hoje quem está à frente da empresa é a sua filha Yvone Mascarenhas, doutora em física. Os testes para avaliar a biocompa­ tibilidade do sensor foram feitos pelo doutorando Gustavo Frigieri, formado em farmácia e bioquímica e orientado pelo professor Mascarenhas no Insti­ tuto de Física da USP. Após o 21º dia de implantação do sensor na cabeça da ovelha, foram colhidas amostras de tecido no local e feitos exames citológicos e microbiológicos para avaliar riscos de alergia, inflamação ou infecção. “Nenhum dos três riscos foi observado”, diz Frigieri. Mascare­ nhas ressalta que esse é um aspecto importante a ser observado, porque no caso do sensor tradicional o risco de infecção faz com que ele tenha que ser retirado em poucos dias. O sensor subcutâneo ficou durante 21 dias na cabeça da ovelha, sem ne­ nhuma alteração na normalidade dos parâmetros avaliados. Na ovelha, a

variação da pressão intracraniana foi induzida por alterações posturais, co­ mo levantar e abaixar a cabeça, e pela compressão das jugulares. Nos ratos, Mascarenhas avaliou também as va­ riações de pressão durante um ata­ que epiléptico. Os testes foram feitos com uma cepa de ratos audiogênicos – em que a epilepsia é induzida pelo som – criados pelo professor Norber­ to Garcia-Cairasco, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. “Durante a crise, quando o rato levanta a cabeça, ele joga o líquor para a coluna e a pressão interna do cérebro abaixa”, diz Mascarenhas. “Quando ele abaixa a cabeça, o líquor vai para o cérebro e a pressão aumenta.” Novas avaliações - Ao mesmo tempo

que novos experimentos estão sendo feitos para testar as várias aplicações do sensor, Mascarenhas e a sua equipe, da qual também faz parte o doutorando Wilson Seluque, estão trabalhando em outros métodos ainda mais avançados para medição da pressão intracraniana. Um deles consiste de um capacete que, ao entrar em contato com o osso, fun­ ciona como um sensor. Dessa forma, não será preciso nem raspar o couro cabeludo para a colocação do sensor. “Um dos nossos focos de estudo é saber como se comporta a pressão intracra­ niana durante uma crise de enxaqueca”, diz o pesquisador. Ou avaliar a resposta de um tumor cerebral à quimiotera­ pia. “Se o tumor diminuir, a pressão intracraniana vai abaixar”, diz, acres­ centando que o acompanhamento da evolução da doença pode ser feito sem necessidade de exames caros. A ideia é transformar, futuramente, o monitor de pressão intracraniana em um ins­ trumento doméstico, como o termô­ metro e o medidor de pressão arterial, para possibilitar a prestação de socorro rápido em caso de elevação da pressão n intracraniana. PESQUISA FAPESP 159

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BIOTECNOLOGIA

Carapaça versátil

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miguel boyayan

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uas matérias-primas encontradas em grande quantidade no Rio Grande do Sul, a quitosana, um biopolímero preparado a partir da carapaça do camarão, e o poliol, obtido do óleo do grão da soja, são os principais componentes de uma nova substância para incorporação de partículas ou princípios ativos utilizados no preparo de gel para cabelo ou para ultrassonografia, além de entrar na composição de repelente de insetos. Registrado com o nome comercial de Quiol-gel, ele apresenta viscosidade semelhante às substâncias utilizadas atualmente em vários produtos farmacêuticos e cosméticos e fabricadas a partir de polímeros petroquímicos, com a vantagem de ser biocompatível e biodegradável. “O produto tem uma composição específica que permite a aplicação do material diretamente na pele após a incorporação de ingredientes cosméticos ou ativos”, diz a professora Nádya Pesce da Silveira, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora da pesquisa. Uma das principais características do Quiol-gel é a possibilidade de variar a viscosidade da formulação. É possível obter tanto um gel, como uma pomada, um fluido ou até um spray. Para isso, basta modificar as condições de preparação das macromoléculas de quitosana associadas às moléculas menores do poliol, adequando o pH desejado. Os estudos que derivaram na formulação do gel começaram com o desenvolvimento de uma nanopartícula de origem biológica, que recebeu o nome de quitossoma, resultado da incorporação da quitosana ao


Biopolímero obtido do camarão pode ser usado em vacinas e cosméticos

ufrGS

lipossoma, uma nanoestrutura semetossoma, mas que foi possível observar lhante a pequenas esferas de gordura nos experimentos com camundongos considerada um excelente sistema de maior produção de anticorpos. liberação controlada de medicamentos A pesquisadora ressaltou que o méou substâncias biologicamente ativas. todo de incorporar as quitosanas nos “O diferencial desse sistema para oulipossomas desenvolvido pelo grupo tros similares é o método de preparada professora Nádya é inovador. “A quitosana é colocada internamente e ção, que faz com que a estabilidade da partícula melhore muito”, diz Nádya. externamente nos lipídios”, diz. É como Lipídios extraídos da lecitina de soja, se fosse um sanduíche, que melhora a um subproduto da produção do óleo resistência das partículas. Pelos outros de soja, foram associados à quitosana, métodos já conhecidos a quitosana é molécula natural com propriedade colocada apenas externamente. “Como antifúngica, para que o sistema ficasse as nanopartículas aderem ao tecido e mais estável. “O quitossoma se manliberam lentamente a substância encaptém estável durante um mês em temsulada, há um aumento na eficácia da peratura ambiente sem criar fungos”, vacina ou do medicamento encapsuladiz Nádya. Essa propriedade, aliada ao fato de ser biodegradável e biocompatível, faz dessa nanopartícula um veículo com grande potencial para encapsular ativos biológicos. “Dentro do quitossoma posso colocar uma vacina, um antioxidante, um protetor solar ou até mesmo medicamentos”, explica. “Algumas possibilidades de aplicação já foram testadas. Quitossomas preparados na UFRGS foram utilizados como adjuvantes (veículos de Quitossomas vistos por microscopia eletrônica transporte de substâncias) em vacinas contra a difteria, uma doença bacteriana que afeta a garganta do porque o contato com o corpo é mais e pode causar sérias complicações. O prolongado”, explica Nádya. Isso sigexperimento foi feito por pesquisadores nifica economia das substâncias ativas do Instituto Butantan coordenados pee menores efeitos colaterais. Um novo la pesquisadora Maria Helena Bueno da estudo conduzido atualmente por MaCosta, do Laboratório de Microesferas ria Helena utiliza o quitossoma como e Lipossomas do Centro de Biotecnomodelo para vacina oral contra difteria logia, em parceria com pesquisadores e contra veneno de abelha. “Ele induz da Universidade de Havana, em Cuba. também a resposta da mucosa, que é Três formulações diferentes de toxoium grande problema da vacina oral”, de diftérico, a toxina atenuada, foram diz a pesquisadora. testadas e comparadas. Uma delas era composta do toxoide associado ao quiRadiação solar - O quitossoma também tossoma, outra do toxoide veiculado foi testado em associação com a melacom lipossoma normal e a terceira apetonina, uma substância produzida no nas o toxoide sem nenhum adjuvante cérebro pela glândula pineal e presente extra. “A resposta do quitossoma como em pequenas quantidades em frutos, veadjuvante foi superior”, diz Maria Hegetais, cereais e plantas aromáticas, para lena. Ela diz que ainda não se sabe o avaliar como a formulação responde ao mecanismo da ação adjuvante do quienvelhecimento cutâneo produzido pela

radiação solar. O experimento foi feito pela mestranda Manuela França Gonçalves, orientada pela professora Silvia Guterres, do Departamento de Produção e Controle de Medicamentos da Faculdade de Farmácia da UFRGS e coordenadora da Rede Nanocosméticos, criada e financiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A professora Nádya foi coorientadora na parte da caracterização do quitossoma. A melatonina associada ao quitossoma foi comparada com a melatonina incorporada a um hidrogel. As duas formulações foram passadas no dorso de camundongos submetidos à radiação ultravioleta. “A melatonina tem efeito antioxidante, protege contra o envelhecimento cutâneo e a radiação UVA do sol, que promove danos a longo prazo”, diz Manuela. O quitossoma ajuda a transportar a melatonina e pode ser um sistema promissor na incorporação de aplicações cutâneas, como protetores solares, porque vai ajudar na proteção da pele contra os efeitos da radiação UVA. Isso significa que o quitossoma poderia ser associado a filtros físicos e químicos em protetores solares que já são utilizados para aumentar a eficácia dos produtos. No Instituto de Ciências e Tecnologia de Alimentos da UFRGS o quitossoma tem sido avaliado em associação com algumas enzimas pelo grupo do professor Adriano Bradelli. “Eles podem fazer com que, por exemplo, o queijo permaneça mais tempo estável”, diz Nádya. São várias linhas de estudo com aplicações diversas que ultrapassam as fronteiras da cosmética, área em que as n pesquisas tiveram início.

Dinorah Ereno > Artigo científico MARÓN, L. B., et al. LUVs recovered with chitosan: a new preparation for vaccine delivery. Journal of Liposome Research. v. 17, ed. 3&4, p. 155-163, jul. 2007. PESQUISA FAPESP 159

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Petróleo

Desafio no fundo

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do mar

exploração de petróleo nas profundezas dos oceanos engloba um obstáculo pouco conhecido e capaz de trazer muitas dificuldades para as empresas petrolíferas: é a presença de microrganismos que degradam o óleo. Eles representam um desafio a ser superado, além das forças da natureza como as correntes marítimas e a pressão no fundo do mar que impõem o uso de tecnologias de ponta para a instalação de plataformas. Tanto nos reservatórios como na água existente dentro dos poços de petróleo vivem várias espécies de bactérias que se alimentam e degradam o óleo e ainda secretam biofilmes, estruturas moleculares usadas por elas para se proteger de agentes tóxicos e se fixar naturalmente em rochas e sedimentos. Com o início da produção submarina, os biofilmes, que também podem ser formados pela aglutinação das próprias bactérias, começam a se fixar em plásticos e metais. Essas estruturas de tamanhos micrométricos se acumulam e atingem espessuras de até 4 milímetros (mm). “O problema é que esses biofilmes prejudicam a exploração petrolífera porque eles grudam no interior das tubulações e corroem os dutos que são equipamentos de difícil limpeza”, diz a professora Anita Marsaioli, do Instituto de Química (IQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que participa de vários projetos em conjun-

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to com a Petrobras na identificação e estudo dessas bactérias e das enzimas que elas produzem. Na degradação, uma parte do petróleo com grande valor comercial é destruída parcial ou totalmente, reduzindo assim o seu valor comercial. “As bactérias transformam os hidrocarbonetos em ácidos graxos tornando o óleo mais pesado e com qualidade inferior”, diz Anita. O melhor conhecimento dessa população de bactérias e das condições que lhes são favoráveis vai contribuir para a elaboração de estratégias para a empresa reduzir o risco na exploração e agir de forma a detectar e antecipar os problemas na produção. Existe também um imenso potencial para o uso futuro de alguns desses microrganismos para limpar, por meio de técnicas de biotecnologia, o petróleo derramado de oleodutos, plataformas e navios de transporte. “Sabemos da existência de bactérias, por exemplo, que produzem biossurfactantes com dupla função, para inibir o crescimento de outras espécies de bactérias, o que é bom, e ao mesmo tempo dissolver o petróleo.” Os biossurfactantes são moléculas produzidas pelas bactérias que reduzem a tensão superficial da área fronteiriça entre água e óleo nos reservatórios facilitando a mistura desses líquidos e a posterior degradação do petróleo. Os estudos realizados na Unicamp em parceria com o Centro de Pesquisas


nononononononon

Petrobras e Unicamp estudam bactérias de poços de petróleo que degradam o óleo | Marcos de Oliveira

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Os Projetos 1. Ampliação das infraestruturas analíticas em química, metagenômica e biocatalítica do grupo de geoquímica orgânica do Instituto de Química e da Divisão de Recursos Microbianos do CPQBA da Universidade Estadual de Campinas 2. Estudo multidisciplinar de biodegradação

modalidade

1 e 2 Rede Temática Co­or­de­na­dor

1 e 2 Francisco Machado Reis – Unicamp investimento

1. R$ 3.504.189,57 (Petrobras) 2. R$ 3.101.932,51 (Petrobras)

nos laboratórios aqui em Campinas, fazemos o cultivo dessas bactérias em vários meios”, conta Anita. Entre as razões científicas de estudo dessas bactérias está o de saber se elas são aeróbias ou anaeróbias. As primeiras precisam de oxigênio para viver enquanto as segundas não. Isso é fundamental para entender a formação dessas bactérias e os meios de lidar com elas no ambiente de exploração petrolífera. “O reservatório de petróleo é um ambiente anaeróbio, mas acreditamos que possa existir microambientes onde o oxigênio é produzido principalmente pela penetração de água no interior das jazidas ou por reações químicas”, diz Anita. No trabalho realizado pelo grupo, que inclui o geólogo Eugênio dos Santos Neto, da Petrobras, já foram identificadas e avaliadas 29 bactérias dos dois tipos e grande parte delas mostrou tendência à biodegradação do petróleo. Os estudos até aqui mostram que as linhagens de bactérias com boa produção de biofilmes, do grupo das aeróbias, não degradam o petróleo. Os pesquisadores trabalham com a hipótese de que as relações de convivência entre as bactérias aeróbias e anaeróbias, como, por exemplo, biofilmes sendo produzidos pelas primeiras podem servir como uma “esponja” de oxigênio e agir para aumentar ou diminuir a atividade degradadora das outras. Toda a coleção de bactérias encontradas nos poços e analisadas,

muitas ainda desconhecidas da ciência, faz parte de uma coleção da Petrobras mantida pela Unicamp. As atividades do grupo de pesquisa incluem a participação dos professores Luzia Koike e Francisco Machado Reis, do IQ da Unicamp, e a professora Valéria Maia de Oliveira, do Centro de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPBQA), da mesma universidade. Desde 2003, o grupo já obteve mais de R$ 10 milhões para pesquisas, em recursos do Fundo Setorial do Petróleo (CTPetro) e da Rede Temática de Geoquímica, uma das redes tecnológicas da Petrobras, mantidas com recursos da própria empresa equivalentes a 0,5% da produção de petróleo em campos de alta produtividade que, por lei federal, devem ser destinados às pesquisas em n parcerias com as universidades. mo

e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras são feitos com a água e o petróleo extraídos da bacia de Campos. As bactérias vivem tanto na área entre o óleo e a água existente nos poços como em separado em cada um desses ambientes, em profundidades de 2.800 metros de profundidade a partir da lâmina d’água, conforme já estudado até aqui, em temperaturas próximas a 80° Celsius, como no Campo Pampo, posicionado a quase 100 quilômetros da costa do Rio de Janeiro. “Para estudar esses materiais nós recebemos direto das plataformas amostras de água e óleo em recipientes de vidro lacrados e depois,

> Artigo científico Cruz, Georgiana F. da; Santos Neto, E.V.; Marsaioli, A.J. Petroleum degradation by aerobic microbiota from the Pampo Sul Oil Field, Campos Basin, Brazil. Organic Geochemistry. v. 39 p. 1.204-1.209, 2008.

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Sisal, já utilizado em polímeros, poderá ser usado na produção de etanol Yuri Vasconcelos

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NOVOS MATERIAIS

Fibra de futuro

eduardo cesar

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Sisal: fibras possuem cerca de 90% de açúcares para uso na produção de etanol

fabio colombini

íder mundial no segmento de biocombustíveis, com a produção de bilhões de litros de etanol da cana-de-açúcar e biodiesel, o Brasil terá uma possível opção, dentro de alguns anos, de produzir etanol a partir do sisal, uma fibra vegetal abundante no país, muito resistente e usada para confecção de cordas, tapetes e peças artesanais. Além disso, móveis, estantes, peças para barcos e componentes automotivos, como painéis e revestimentos internos, podem utilizar como matéria-prima essa mesma fibra. Estudos nesse sentido são conduzidos pela química Elisabete Frollini, professora do Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), no interior paulista. A equipe que ela coordena desenvolve placas poliméricas com fibras vegetais e está conquistando bons resultados na hidrólise do sisal, processo relativo à primeira etapa da produção de etanol, quando a glicose e outros açúcares fermentáveis usados na fabricação de álcool são obtidos a partir da celulose e de outros componentes das fibras vegetais. O trabalho da pesquisadora está centrado na valorização das chamadas fibras lignocelulósicas e de seus três principais macrocomponentes: lignina, celulose e hemicelulose. Sisal e cana­-de-açúcar são exemplos desse tipo de fibra. O interesse pelo sisal, segundo a pesquisadora, se deu porque o Brasil é o maior produtor e exportador global da fibra. Em 2007, a produção mundial atingiu 240,7 mil toneladas, das quais quase metade (113,3 mil toneladas) foi cultivada no país, que pode facilmente dobrar sua produção em curto espaço de tempo. Originária do México, o sisal (Agave sisalana) é uma planta cultivada em países em desenvolvimento e no Brasil as plantações estão concentradas nos estados da Paraíba e da Bahia. Depois de beneficiado, o sisal é exportado principalmente para os Estados Unidos, Canadá, Europa, Irã e países do Leste Europeu. China e México são os principais compradores da fibra virgem. A cultura do sisal tem uma área plantada de 154 mil hectares no país, com produtividade próxima a 800 quilos por hectare. Outros dois aspectos vantajosos da fibra do sisal são o fato de ela não ser usada como fonte de alimento e, ao mesmo tempo, apresentar alto teor de celulose, cerca de 10% a mais do que o bagaço de cana. Considerando também a hemicelulose, a fibra de sisal tem cerca de 90% de material gerador de açúcares fermentáveis, que

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formam etanol a partir do processo de fermentação. “Esses açúcares são gerados a partir da hidrólise, que de forma simplificada pode ser considerada como uma reação em que são rompidas as ligações que unem muitas unidades de glicose na celulose e também unidades de outros açúcares na hemicelulose”, explica Elisabete. “No Brasil, os processos de hidrólise visando à produção de etanol estão centrados na utilização de cana-de-açúcar. Nosso trabalho está demonstrando que é possível usar o sisal para esse fim. Queremos contribuir para que o Brasil continue se destacando no setor de biocombustíveis e acreditamos que o sisal possa ser também uma matéria-prima importante.” Iniciadas em 2007, as pesquisas do Instituto de Química de São Carlos para produção de etanol a partir do sisal ganharão, em breve, a cooperação de pesquisadores da Unidade de Ciências da Madeira e de Biopolímeros (Unité des Sciences du Bois et des Biopolymères) da Universidade de Bordeaux I, na França. A parceria tem como finalidade melhorar as condições do processo de hidrólise da celulose do sisal, aumentando sua eficiência, e estudar novos métodos para extração da lignina da fibra de sisal. No trabalho desenvolvido em São Carlos é utilizado o processo chamado de hidrólise ácida para a

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O Projeto Fibras e macromoléculas naturais: estudos visando a aplicações diversificadas

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dora

Elisabete Frollini – USP

cooperativo com a universidade francesa também contempla o estudo da palha de milho para a produção de biocombustíveis. A palha é um resíduo lignocelulósico abundante no sul da França e no Brasil e, por isso, existe interesse dos pesquisadores de ambos os países em desenvolver estudos objetivando seu aproveitamento. Brasil e França ocuparam, ao final de 2007, o terceiro e o quinto lugares, respectivamente, na produção mundial de milho.

investimento

R$ 143.971,22 e US$ 23.574,47 (FAPESP)

obtenção da glicose a partir das fibras do sisal. Na parceria com os franceses será explorada a hidrólise enzimática em que, no lugar do ácido, se utilizam enzimas para efetuar a quebra das ligações de glicose para possíveis aplicações desse processo pelas biorrefinarias. “A hidrólise ácida ainda tem menor custo, mas muito tem sido investido na hidrólise enzimática, visando à diminuição de custos e ao aumento na eficiência do processo. Um dos inconvenientes da hidrólise ácida corresponde à corrosão que pode provocar nos equipamentos das refinarias, quando utilizadas em larga escala”, explica Elisabete. O projeto

Placas poliméricas - Uma importante

vertente do trabalho da equipe da USP é o emprego de fibras vegetais para produção de compósitos poliméricos, nome dado a polímeros reforçados com outros materiais. Um dos objetivos da pesquisa é usar o sisal, o bagaço da cana-de-açúcar – resíduo produzido em maior escala na agroindústria brasileira – e outras fibras vegetais naturais como agente de reforço de polímeros fenólicos para melhorar as propriedades mecânicas do compósito, como sua resistência a impactos. Outra vantagem da mistura é a redução de custo do material, porque o reforço fibroso tem preço menor do que o polímero em si. “O grande desafio consiste em combinar fibras e matrizes poliméricas de forma a produzir um material eficiente para determinada aplicação”, diz a pesquisadora. Até o

fotos eduardo cesar

Bagaço de cana: extração de lignina resulta em resinas para produção de polímeros

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Placas de polímeros reforçadas com fibras de sisal: maior resistência a impactos

momento já foram produzidas com sucesso nos laboratórios da USP placas poliméricas reforçadas com fibra de sisal, bagaço de cana, fibra de curauá, encontrado na região amazônica, além de fibras de juta, coco e bananeira. Entre os projetos da pesquisadora também está a utilização da lignina e de celulose e seus derivados para preparação ou obtenção de polímeros. No primeiro caso, a lignina é extraída do bagaço de cana e usada como reagente na preparação de resinas fenólicas. Essas resinas, sob temperatura e pressão controladas, são transformadas em polímeros e compósitos poliméricos. “A utilização da lignina na formulação da resina aumenta a compatibilidade entre as fibras lignocelulósicas, como o próprio bagaço, e a matriz polimérica, uma vez que ela estará presente em ambas”, explica. A celulose retirada do sisal e de outras fibras, por sua vez, é utilizada para preparação de bioplásticos, um tipo de plástico preparado a partir de um polímero natural que pode ser usado para a fabricação de embalagens de alimentos. “Nossa meta é produzir esse material reforçado em escala nanométrica”, diz ela. Esses materiais ganharam o nome de bionanocompósitos. Um dos aspectos que dificulta a competição da celulose e seus derivados com políme-

ros sintéticos é o fato de esse polímero natural ser obtido principalmente a partir da madeira, que tem um ciclo de reposição lento em função do ritmo de crescimento das árvores. Por isso, a pesquisadora e sua equipe têm investido no estudo de fontes ricas em celulose, mas com curto ciclo de crescimento, como sisal e cana-de-açúcar. Patente do tanino – Nos últimos se-

te anos, os estudos conduzidos pela pesquisadora com as fibras vegetais já produziram cinco teses de doutorado, seis dissertações de mestrado e vários projetos de iniciação científica. Também já renderam uma patente, que tem a FAPESP como um de seus depositantes, e a publicação de cerca de 30 artigos científicos em periódicos internacionais indexados. A patente demonstra a possibilidade de desenvolvimento de compósitos poliméricos a partir de taninos, substâncias extraídas de certas árvores, como a acácia-negra (Acacia mearnsii) e também encontradas em frutas e no vinho tinto. Elas são empregadas na indústria de couro e usadas como agente floculante ou coagulante em tratamento de águas. Nessa patente, o tanino foi utilizado como reagente na preparação da matriz polimérica – mesma função desempenhada pela lignina em outros

estudos da equipe. Fibras obtidas da casca da acácia-negra, uma leguminosa cultivada principalmente no Rio Grande do Sul para extração de tanino, foram usadas como agente de reforço do compósito. “Dessa forma, estruturas típicas do tanino fazem parte da composição da matriz polimérica e do material de reforço, porque também estão presentes na fibra da casca da árvore”, ressalta Elisabete, confiante em que os compósitos obtidos de polímeros preparados a partir de matéria­-prima oriunda de fonte renovável e fibras naturais corresponderão a novos materiais promissores nos próximos anos. “Essa tendência, iniciada nas últimas décadas do século XX, deverá colocar gradativamente esses materiais em patamares de mercado próximos aos de polímeros sintéticos”, diz. “O desenvolvimento de pesquisa e formação de recursos humanos nessa área é importante para essa meta ser atingida mais rapidamente.” n > Artigos científicos Megiatto Júnior, J. D.; Silva, C. G.; Rosa, D. S.; Frollini, E. Sisal chemically modified with lignins: correlation between fibers and phenolic composites properties. Polymer degration and Stability. v. 93, p. 1.109-1.121, 2008. PESQUISA FAPESP 159

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humanidades

Sociologia

O elo perdido tropical Brasil foi fundamental para Darwin criar suas teorias, que retornaram ao país, mais tarde, e moldaram nossa nação | Carlos Haag

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harles Darwin (1809-1882) passou quatro meses no Brasil, em 1832, durante a sua célebre viagem a bordo do Beagle. Voltou impressionado com o que viu: “Delícia é um termo insuficiente para exprimir as emoções sentidas por um naturalista a sós com a natureza no seio de uma floresta brasileira”, escreveu em seu diário científico. O Brasil, porém, aparece de forma bem menos idílica em seus escritos pessoais: “Espero nunca mais voltar a um país escravagista. O estado da enorme população escrava deve preocupar todos que chegam ao Brasil. Os senhores de escravos querem ver o negro como outra espécie, mas temos todos a mesma origem num ancestral comum. O meu sangue ferve ao pensar nos ingleses e americanos, com seus ‘gritos’ por liberdade, tão culpados de tudo isso”. Numa casa em que ficou hospedado no Rio sofreu ao presenciar, “diariamente e a toda hora”, um mulato ser espancado com tal violência que “seria suficiente para quebrar o espírito do mais baixo animal”. Em vez do gorjeio do sabiá, o que ficou no ouvido de Darwin, ao voltar para a Inglaterra, foi um som terrível que o acompanhou por toda a vida: “Até hoje, se eu ouço um grito ao longe, lembro-me, com dolorosa e clara memória, de quando passei numa casa em Pernambuco e ouvi os urros mais terríveis. Logo entendi que era algum pobre escravo que estava sendo torturado. Eu me senti impotente como uma criança diante daquilo, incapaz de fazer a mínima objeção”. “Para Darwin, a viagem do Beagle foi menos importante pelos espécimes coletados do que pela experiência de testemunhar os horrores da escravidão no Brasil. De certa forma, ele escolheu focar na descendência comum do homem justamente para mostrar que todas as raças eram iguais e, dessa forma, enfim, objetar àqueles que insistiam em chamar os negros de espécies diferentes e inferiores aos brancos”, explica o biólogo Adrian Desmond, da University College London, que, ao lado de James Moore, acaba de lançar Darwin’s sacred cause: race, slavery and the quest for human origins, um estudo que mostra uma inusitada paixão abolicionista do cientista, revelada a partir da redescoberta de diários e cartas pessoais. “A grande revelação desses escritos é que a maior parte das pesquisas de Darwin, por muitos anos, foi sobre raça. Para ele, não havia diferença entre ‘raça’ e ‘espécie’ e sua pesquisa sobre a origem das espécies é também sobre a origem das raças, incluindo-se os humanos. A extensão de seu interesse explícito no combate à ciência de cunho racista é surpreendente, e pudemos detectar um ímpeto moral por trás de seu trabalho sobre a evolução humana, uma crença numa ‘irmandade’ racial que tinha raízes em seu ódio ao escravismo que o levou, junto com outros fatores, a pensar numa descendência comum. Sua ciência não era ‘neutra’, como se acreditava, mas impulsionada por paixão moral e preocupações humanitárias”, observa. A conhecida reticência do naturalista em publicar sua obra (foram três décadas de indecisão), nota o autor, pode

ser também explicada por essa sua visão nada baconiana da ciência, o que igualmente jogaria luzes sobre as razões que levaram um jovem com uma carreira promissora em vista a arriscar seu futuro afrontando a sociedade cristã, à qual ele pertencia, com uma teoria “homem-macaco”. “Em função de sua herança antiescravista e por causa de sua experiência com a escravidão brasileira, Darwin, ao voltar à Europa, em 1836, concebeu a imagem do ancestral comum. Seus cadernos de notas entre 1837 e 1838 mostram seu pensamento se movendo cada vez em direção a uma irmandade racial, ideias que ele desenvolveu num tempo em que havia grande euforia abolicionista”, analisa Desmond. A análise dos documentos revela um jovem Darwin que merece ser mais conhecido. “Os diários fechados escritos imediatamente após a viagem do Beagle mostram um homem muito diferente daquele ‘homem de ciências’ sério que apresentou a Origem das espécies como uma acumulação paciente de fatos que praticamente o forçaram a conclusões evolucionárias. Claro que não pretendemos explicar toda a sua obra em função de sua paixão pela abolição, mas acreditamos que foi sua obsessão pela unidade racial que o levou a tocar nesse assunto intocável e traiçoeiro, a despeito de todos os problemas que surgiriam”, afirma. A curiosidade dos pesquisadores foi aguçada há dez anos quando reliam A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo. “Em dois terços de um livro supostamente sobre a evolução humana só se falava de abelhas, pássaros e borboletas. Por quê? Bem, Darwin queria provar a sua teoria da ‘seleção sexual’. Mas por que isso era tão importante? Porque era a prova central do ancestral comum racial, já que essa seleção era a responsável pelas diferenças de aparência entre as raças de animais e humanos, e não, como queriam os pró-escravistas, porque as espécies foram criadas separadamente. O fato de que boa parte de suas ideias foram gestadas quando os EUA se preparavam para uma guerra civil, por causa da escravidão, eleva a dimensão moral de sua pesquisa.” Darwin, apesar de discreto em seu engajamento, como apropriado a um cavalheiro vitoriano, era um antiescravista que crescera numa família profundamente envolvida na causa abolicionista: os Wedgwood, família de sua mãe e de sua futura esposa. Seu avô paterno Erasmus também era um defensor da “causa sagrada”. Foi em Edimburgo, onde tentou sem sucesso estudar medicina, que conheceu pela primeira vez um negro, um liberto da Guiana que o ensinou a empalhar aves. “Tornaram-se grandes amigos e Darwin não aceitava, é claro, argumentos racistas de que os negros ‘não podiam ser civilizados’. Chegou a ficar furioso quando o colega Charles Lyell voltou dos EUA encantado com escravistas que o recepcionaram e o avisou de que era preciso ir além das armadilhas polidas da sociedade sulista e ver a realidade cruel em que esta se baseava. Mesmo a sua profunda antipatia pelo naturalista e detrator do evolucionismo, Louis Agassiz, pode ser entendida, agora, pela defesa que aquele fazia do poligenismo em Harvard.” PESQUISA FAPESP 159

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Como não poderia deixar de ser, se a teoria darwinista, de certa forma, surgiu de uma epifania política do naturalista no Brasil, ao retornar ao país, em 1870, o então chamado “darwinismo” foi recebido por uma geração que planejava mudanças políticas na nação. “Aquele era um momento em que não se via mais a pujança da terra como singularidade local, mas os homens com sua composição racial. Médicos, juristas, historiadores e naturalistas sentiam-se responsáveis pela criação de novas identidades para a mesma nação e a questão da raça se torna uma obsessão, já que seria a linguagem pela qual seria possível dar conta das desigualdades existentes e atingir certa unidade nacional”, observa a antropóloga Lilia Schwarcz, da USP. A reunião de discurso racial e projeto nacionalista deu oportunidade de se pensar uma nação a partir de critérios biológicos. “Aos olhos desses intelectuais somente a ‘doutrina’ evolucionista permitiria a criação de uma representação do Brasil como unidade em formação. O evolucionismo é quem propicia a ‘convicção científica’ de que as nações jovens, presas pela fatalidade do colonialismo, poderiam se aproximar das nações civilizadas metropolitanas, já que, pelas teorias, era da natureza dos seres transformarem-se ao longo do tempo”, analisa o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor do doutorado Cadências e decadências do Brasil: o futuro da nação à sombra de Darwin, Haeckel e Spencer, defendida na Unicamp. “Ao adotar o jargão evolucionista e racial, as elites letradas, em especial os médicos e os juristas, acabaram assumindo 82

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uma espécie de consciência do atraso, encontrando respaldo para redimensionar uma discussão sobre igualdade entre os homens e, assim, sobre critérios de cidadania”, nota Lilia. Mas ao mesmo tempo que a adoção dos modelos darwinistas sociais dava às elites a sensação de proximidade com o mundo europeu e de confiança no progresso e na civilização, trazia certo mal-estar, quando da aplicação dessas teorias às questões raciais brasileiras, já que era preciso ficar cara a cara com a realidade da miscigenação tão avançada no país. Ainda assim a recepção do darwinismo no Brasil foi uma das menos problemáticas entre as Américas. “Em sociedades onde as elites estão desunidas todas as ideias, inclusive as científicas, são apropriadas como armas. O darwinismo é um bom exemplo, já que foi facilmente convertido em símbolo do secularismo”, avalia o historiador Thomas Glick, da Universidade de Boston. O problema racial estimulou o discurso evolucionista e levou a um movimento para classificar as raças cientificamente; as convicções evolucionistas, por sua vez, permitiam uma visão otimista sobre a capacidade de o Brasil superar o atraso.

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ssim, evoluir, no Brasil do século XIX, significava derrubar a monarquia, tornar livre o trabalho, privilegiar a livre concorrência e reexaminar a concepção de Estado”, afirma a historiadora Regina Gualtieri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mas o Brasil conheceu um evolucionismo que, embora batizado de “darwinismo”, era a versão que dele

apresentaram o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) e o biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919). “A visão que ambos tinham da evolução ligava-se a um sistema de pensamento integrado ao ultraliberalismo radical do industrialismo vitoriano, ao mesmo tempo que hierarquizador das sociedades humanas como raças e civilizações”, nota Dória. “Nenhum dos intelectuais evolucionistas (Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Manoel Bonfim, Monteiro Lobato) foi conferir diretamente em Darwin o que significava exatamente ‘evolução’ ou ‘raça’ e como se processavam no reino da natureza, preferindo tomá-las de segunda mão de Spencer e Haeckel.” Spencer foi o pioneiro na divulgação para o público não especializado da ideia de evolução e antes mesmo de Darwin já havia postulado a importância de uma teoria de seleção. Mas sua leitura foi responsável por uma considerável confusão sobre o darwinismo real: foi Spencer quem redefiniu a seleção natural como “sobrevivência dos mais aptos”, tornando-se o porta-voz de uma teoria social baseada numa luta brutal pela existência, equivocadamente batizada de “darwinismo social”, que pregava a guerra de fortes contra fracos, ricos contra pobres, conflitos necessários já que levariam a sociedade humana a um pleno desenvolvimento, purgando-a dos “fracos”. Um darwinista de primeira hora, Haeckel via um paralelo entre o desenvolvimento das raças e o desenvolvimento das espécies e para ele as raças ditas “primitivas” eram uma etapa “infantil” na marcha da humanidade rumo ao progresso,


maior se deu no germanismo da escola do Recife”, avalia Dória. “O projeto dessa geração modernizadora, que passa a questionar a cultura francesa, utilizando fontes alemãs, vai se corporificando num discurso consistente sobre a raça como principal suporte da elaboração do ser nacional. A raça será, para os nossos evolucionistas, a própria comunidade.”

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inda segundo Dória, isso deu ao evolucionismo nacional um aspecto contraditório, já que ele se viu transformado em base de sustentação teórica para práticas de cunho conservador, apesar do sentido revolucionário das descobertas de Darwin. “O evolucionismo, em especial no seu formato haeckeliano, acabou se tornando uma ideo­ logia, já que foi usado para confirmar uma convicção das elites de que havia

diferenças qualitativas entre os grupos humanos que permitiam classificá-los como inferiores e superiores. O social, o cultural e o biológico se fundiram para formar uma teoria de organização social: enquanto alguns afirmavam que os resultados atávicos da miscigenação podiam ser revertidos pelo mecanismo de importar europeus para ‘branquear’ as raças inferiores, o mesmo efeito poderia ser obtido na imposição da cultura europeia, que seria suficiente para ‘branquear’ um mulato”, observa Glick. É importante ressaltar que essa ideologia forjada a partir do darwinismo ultrapassou o circuito fechado das instituições de saber e ensino e se propagou pela sociedade por meio de conferências e sua consequente divulgação e debate na imprensa da época. O exemplo mais notável foram as Conferências Populares

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cujo ápice era o homem branco. Chegou a criar uma religião, o “monismo”, em que toda economia, política e ética eram reduzidas à biologia aplicada. Para um país que estava tentando se transformar política, econômica e socialmente, as ideias evolucionistas, em especial após passarem pelo “filtro” de Spencer e Haeckel, eram muito bem-vindas e mesmo os debates religiosos não impediram a sua rápida disseminação no Brasil. “Concepções como seleção natural e luta pela vida poderiam ser usadas para combater, em nome das transformações, a pretensa apatia e incompetência dos opositores. Já a lei biológica de Haeckel, transferida para o mundo social, previa que os povos, durante o seu desenvolvimento, recapitulariam a história de outros povos já desenvolvidos e, na interpretação spenceriana, as organizações sociais mais simples e menos evoluídas se transformariam, seguindo os passos das sociedades mais complexas”, analisa Regina Gualtieri. O Brasil apresentava ainda outras peculiaridades que facilitaram a chegada do darwinismo, ainda que em sua forma “bastarda”. Na esfera do Estado, o imperador, embora amigo de Agassiz e de outros inimigos do evolucionismo (revelou em carta o seu horror profundo a qualquer aproximação entre homens e macacos), não era de todo contrário a Darwin. As elites católicas estavam igualmente dispostas a certa boa vontade com as novas ideias, já que percebiam ter algo a ganhar ao aceitar um evolucionismo poligenista que dava base científica para legitimar a manutenção da supremacia branca. Por fim, em todos os principais museus, institutos e faculdades importantes, como a de Medicina, na Bahia, e a de Direito, no Recife, havia simpatizantes do darwinismo. “Na ausência, porém, de biólogos e naturalistas em quantidade, os principais darwinistas brasileiros eram médicos ou teóricos sociais”, lembra Glick. Um detalhe notável nessa recepção era a evidência da decadência entre os letrados nacionais da cultura francesa, até então base do positivismo, naquele momento na mira da geração materialista. “O darwinismo à brasileira foi filtrado por uma visão cultural alemã, característica do impacto da ‘crise alemã do pensamento francês’, cuja expressão

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da Glória, preleções públicas realizadas no Rio de Janeiro, criadas em 1873 para divulgar as artes e as ciências. Se o público estava restrito a uma elite letrada, nem por isso as conferências deixaram de ganhar força política, seja legitimando as ideias em debate, seja fazendo-se repercutir na imprensa, que colaborava na disseminação e cristalização de novas ideias, como quando do ciclo de conferências sobre o darwinismo em 1875. Ficou célebre a proferida pelo médico Miranda Azevedo, o principal responsável pela divulgação do “darwinismo social” no país, em especial pela sua defesa da “luta pela existência”. “Para ele, o darwinismo forneceria o instrumental para se pensar e resolver os problemas da sociedade brasileira, como quando ataca o sistema de convocação dos militares, que, afirmava, retirava da sociedade os indivíduos mais saudáveis e fortes, deixando os ‘fracos’ como fonte de reprodução e constituição da família e sociedade brasileiras”, lembra a historiadora Karoline Carula. “São precisamente os débeis que hão de constituir famílias e assim transmitir a seus filhos os germes desse raquitismo, dessa degeneração que todos os estadistas proclamam?”, perguntou o médico à sua plateia, para em seguida, partindo desse raciocínio, atacar a monarquia pela sua incapacidade em atuar segundo as “leis” de Darwin, encerrando com o grito de guerra: “Prefiro descender de um macaco aperfeiçoado do que de um Adão degenerado”. Essas discussões igualmente foram importantes para preparar o público leitor de romances naturalistas, como os de Aluísio Azevedo (O mulato, de 1881, e O cortiço, de 1890), permeados, nota Carula, “da teoria de Darwin”, o que revelaria “como 84

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o darwinismo já havia adquirido outra categoria de difusão no início da década de 1880, mostrando que a opinião pública já o aceitava na literatura. “No naturalismo, personagens e enredos são submetidos ao determinismo cego das ‘leis naturais’ que a ciência da época julgava ter codificado. Entre essas havia as oriundas do darwinismo e outros tipos de evolucionismo, como o darwinismo social de Spencer. Claro que Azevedo não queria aplicar conceitos. Mas no episódio naturalista há farta aplicação da ‘luta pela sobrevivência’, da ‘sobrevivência dos mais aptos’, da ‘evolução moral’ etc.”, acredita o biólogo Ricardo Waizbort, da Fiocruz.

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uriosamente, em meio a todo esse debate ideológico, pouca atenção se deu a um verdadeiro darwinista no Brasil: Fritz Muller (1822-1897). “Ele foi com certeza o biólogo darwinista mais importante do século XIX depois do próprio Darwin”, avalia Glick. Tendo emigrado da Alemanha para o Brasil em 1892, Muller viveu discretamente como um modesto professor lecionando no Sul do país, enfrentando a influên­cia poderosa da religião no sistema educacional. Em 1863 escreveu Für Darwin, um estudo sobre crustáceos que foi fundamental, e pioneiro, para a confirmação empírica dos mecanismos da seleção natural. Darwin, entusiasmado, quis que ele fosse traduzido para o inglês e os dois se corresponderam por longos anos. Como professor, em Desterro, influenciou, com seu darwinismo, o poeta Cruz e Souza, ridicularizado pelos colegas que viam no pai do escritor o “elo perdido”, que ainda mantinha o humor e versejava sobre sua condição de negro: “Tu vens exata e diretamente

de Darwin. Posso detectar em tua face as protuberâncias cranianas do orangotango, o gesto lascivo, o ar animal e predador do símio”. “Muller assim como o imigrante alemão Carl von Koseritz eram os correspondentes de Haeckel no Brasil e, ao lado do suíço Emílio Goeldi, “evolucionistas de primeira mão” que, no entanto, não constavam da biblioteca de evolucionistas como Tobias Barreto ou Sílvio Romero, revelando o caráter ideológico que as ideias biológicas de Darwin ganharam no Brasil. Fecha-se, assim, o ciclo da mistura entre Darwin, nação e raça num formato tropical. “O tipo de discussão evolucionista que ocorreu no país atenuou os aspectos da hereditariedade, enfatizando aqueles mais ligados aos problemas de adaptação, o que provocou uma atenuação dos argumentos racistas como discurso na esfera pública, aos moldes daquele encontrado no darwinismo social”, observa Dória. “A miscigenação passou a ser vista como uma forma diluente de seleção, cuja mistura se deu na esfera privada, comandada por cada um. Se a nação era criação coletiva, o selecionismo é uma questão individual e privada, como uma eugenia surda, já aparecendo resolvido na sociedade pelo ‘fato’ da miscigenação.” Apenas a melhoria da adaptação das raças que constituíam a nacionalidade ganhou o palco da esfera pública: a “herança” foi colocada por trás dos panos da privacidade. “Isso deu ao nosso racismo uma feição mais atenuada e condizente com o mito da ‘democracia racial’, longe de eugenismos de tipo apartheid e, ao mesmo tempo, extremamente tolerante com os processos privados de discriminação. Na base de tudo estava o adiamento do reconhecimento da ci-


“O evolucionismo desempenhou, para o Brasil, o papel de único guia seguro ao longo do processo de discussão sobre a formação da nação. Assim, o que os brasileiros entenderam por ‘darwinismo’ foi parâmetro de discussões mais próximas da filosofia social do que da biologia, mostrando como nos apropriamos daquela teoria”, resume Dória. Mas, nota Lilia, no Brasil, o evolucionismo combina com darwinismo social, como se fosse possível falar em ‘evolução humana’ porém diferenciando as raças; negar a civilização aos negros e mestiços, sem citar os efeitos da miscigenação já avançada; expulsar a “parte gangrenada” e garantir que o futuro da nação era “branco e ocidental”. O próprio Darwin, em especial a partir da publicação de A ascendência do homem, em 1871, também passou a aceitar,

como um bom vitoriano, a ideia de uma “escada” racial e cultural, com os brancos no topo e os negros na base. “Não é certo afirmar que a culpa pelos efeitos daninhos do ‘darwinismo social’ sejam exclusivos da leitura feita por Spencer, o álibi ideal para Darwin, como se ele apenas fosse o cientista puro e isento. Para Darwin não era possível um darwinismo não social, pois o social era parte integral do seu sistema de entendimento da natureza. Nesse sentido, consciente, ele foi matriz do colonialismo e de outras barbáries cometidas em seu nome. Daí a importância, nesse aniversário de 200 anos, de voltarmos a olhar para o jovem Darwin, capaz de colocar paixão na ciên­ cia e levá-la ao caminho humanitário”, lembra Adrian Desmond. Tempos em que a “causa sagrada” não se confundia n com o “fardo do homem branco”.

reproduções do livro rio de janeiro - cidade mestiça

dadania do negro, projetado para um futuro diluído e diluidor, segundo as leis biológicas que levariam ao branqueamento nacional. Nisso o desejo de ser brasileiro implicaria a abdicação do desejo de ser negro.” Na contramão, continua Dória, estava o programa de melhoria do povo da biocracia brasileira (o Estado passa a ser o personagem que dirige o organismo social no sentido desejado, o que tira o caráter natural da evolução), o higienismo, cujos representantes mais importantes foram Lobato e Oswaldo Cruz, essencialmente não geneticista, voltado para corrigir a vida das populações saídas da escravidão e abandonadas na pobreza. Mas as palavras de Lobato não nos fazem esquecer da força-motriz oculta: “O nosso dilema é este: ou doença ou incapacidade racial. É preferível optarmos pela doença”.

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Saúde mental

A insustentável

leveza Interpretação da anorexia como parte da identidade amplia possibilidades de tratamento

Carlos Fioravanti | ilustrações Marcos Garuti

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las passam horas em frente a confeitarias e se orgulham em mostrar para si mesmas e para os outros que resistem ao desejo de comer e até mesmo à fome. Quando emagrecem a ponto de perder a capacidade de se mover, vão à revelia para o pronto-socorro, mas não abdicam do direito de não comer. Se aceitam meia pera por insistência da equipe do hospital, podem depois passar horas pulando no quarto para queimar as calorias indesejadas e mostrar que elas é que mandam. Não é fácil tratar quem tem anorexia, distúrbio alimentar caracterizado pela obsessão em perder peso e pela aversão ao alimento. O ganho de peso obtido depois de semanas de internação se esvai rapidamente. Um psiquiatra e uma psicóloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) encontraram uma das razões que explicam por que as pessoas com esse problema resistem tanto à possibilidade de serem cuidadas: a anorexia pode fazer parte da identidade dessas pessoas, na maioria adolescentes e mulheres adultas jovens. No Brasil, cerca de 1,1 milhão de mulheres e 120 mil homens com mais de 15 anos pesam bem menos do que o mínimo recomendado para a idade e altura e jejuam para emagrecer ainda mais. “Alimentar-se, que poderia ser a solução para a perda excessiva de peso, pode soar para essas pessoas como uma ameaça à própria identidade”, diz Sérgio Blay, professor da Unifesp. Blay e Cybele Espíndola verificaram que quem teve anorexia reconhece que deixar de comer é prejudicial e conduz à solidão e ao isolamento social, mas também oferece controle sobre o corpo, poder, beleza e um sentimento de ser diferente, até mesmo superior às outras pessoas. Com base nesses achados, eles criaram uma proposta de tratamento, em fase de amadurecimento, que considera a anorexia como um dos pilares da identidade e, a partir daí, procura ampliar os interesses dos pacientes para além da alimentação e fazer com que esse problema seja assumido por quem o tem. Normalmente os portadores de anorexia se recusam a admitir que emagreceram demais e pensam muito apenas em como fugir da fome. “Diferentemente de outros transtornos psíquicos, esse é um universo singular, em que a doença possui um caráter simbólico marcante”, comenta Cybele. PESQUISA FAPESP 159

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Com o mesmo propósito de entender a dimensão simbólica da anorexia, Rúbia Carla Giordani acompanhou durante quase todo o ano de 2003 oito adolescentes e mulheres de 16 a 25 anos com esse problema que estavam ou estiveram em tratamento em hospitais de Curitiba – o tratamento consiste essencialmente de dietas de ganho de peso, acompanhamento psicológico e uso de medicamentos psicotrópicos, geralmente antidepressivos. As entrevistas, cujas transcrições ocuparam quase 400 páginas, as observações do dia a dia dessas pessoas e as conversas com médicos, psicólogas e enfermeiras que as tratavam levaram a conclusões semelhantes. “Essas mulheres se orgulhavam de sentir fome e não se alimentar”, diz Rúbia, que leciona nutrição e integra o grupo de pesquisa em sociologia da saúde na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela descobriu que essas portadoras de anorexia passavam horas em supermercados lendo rótulos de alimentos para memorizar quantas calorias têm um copo de leite ou um biscoito. “As meninas com anorexia têm um medo mórbido de engordar e se dedicam de forma obsessiva ao controle da imagem corporal”, diz. “O corpo ocupa uma posição central na vida de quem tem anorexia e funciona como um alicerce para qualquer tipo de experiência social.” Por meio desse estudo, publicado em 2006 na revista Psicologia & Sociedade e detalhado em um dos capítulos do livro Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte (José Rasia e Rúbia Carla Giordani, Editora da UFPR, 2007), Rúbia verificou que a anorexia era um problema que pode se estender para além das classes sociais mais altas e acometer também os mais pobres: a renda das famílias de suas entrevistadas variava de 1 a 33 salários mínimos. Ouvindo essas mulheres, a pesquisadora da UFPR conheceu os três estágios de desenvolvimento desse transtorno alimentar. O primeiro é marcado pela discrição e nem os familiares percebem que alguém na família está cultivando a anorexia. Segundo Rúbia, esse distúrbio alimentar pode começar com uma dieta que elimina doces, gorduras e alimentos mais calóricos em geral. Pode depois evoluir para comportamentos bizarros 88

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e ritualísticos, expressos por meio de opção por cores, formas geométricas e combinação de alimentos – tudo ainda muito discreto. Nesse início, essas pessoas fazem o possível para exibir uma vida normal, mesmo que já estejam emagrecendo bastante, como resultado do jejum e do excesso de exercícios. “Os pais e amigos ainda não detectam qualquer comportamento anormal”, diz a pesquisadora da UFPR. A etapa seguinte consiste de uma seleção e restrição ainda maior de alimentos: as pessoas com anorexia podem induzir o vômito ou tomar laxantes ou diuréticos. Trancam-se no banheiro para se livrarem em segredo do que tiveram de comer, mas com o tempo acabam descobertas. A terceira etapa é a da hostilidade. “Meninas educadas e bem-comportadas, até então com boas notas na escola, começam a mostrar rebeldia e a enfrentar a equipe médica e os nutricionistas”, diz Rúbia. “Um aspecto central da anorexia é a negação da própria doença, por mais grave que esteja.” Em dois artigos recém-publicados, um na revista Psychopathology e outro na Annals of Clinical Psychiatry, Blay e Cybelle argumentam que o reconhecimento da doença, a reconciliação do portador de anorexia consigo mesmo e a reconstrução da identidade poderiam contribuir no tratamento. “A reconstrução das relações familiares e o contato com amigos tornam-se agora muito importantes como parte do tratamento”, diz Cybele. Blay acrescenta

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O Projeto Revisão sistemática e metassíntese dos estudos qualitativos em transtornos alimentares

modalidade

Bolsa de Doutorado Direto – Fapesp Co­or­de­na­dores

Cybele Ribeiro Espíndola e Sergio Luis Blay – Unifesp investimento

R$ 74.998,17


Ao deixar o hospital, uma mulher que teve anorexia escreveu para o médico: “Não acredite no que dizemos. Você precisa ser rígido”

“Até mesmo a espiritualidade ou os cuidados com animais domésticos podem ampliar o universo de atividades e criar situações que não estejam mais centradas no alimento.” Os estudos de São Paulo e de Curitiba conferem um perfil particular à anorexia nervosa entre os distúrbios mentais e ampliam as possibilidades de tratamento de um problema que não é atual nem restrito a adolescentes, modelos e bailarinas. Freud escreveu em 1893 sobre uma mulher que desenvolvera anorexia depois do nascimento do primeiro filho e dois anos depois sobre outra, a quem insistiu para tomar água (ela tomava só leite) e parar de jogar a comida pela janela. Ela antecipou-lhe o fracasso da recomendação ao responder: “Eu o farei porque o senhor está mandando, mas eu posso desde já lhe dizer que isso vai acabar mal, porque é contrário à minha natureza e meu pai era como eu”. Para Freud e outros psicanalistas, a ausência de menstruação por três meses seguidos, um dos sinais da anorexia, pode representar a negação da feminilidade e a fome constante, uma forma de sentir prazer com o corpo. Sedução e mentiras – “O principal

inimigo do tratamento contra a anorexia é o próprio paciente, que se vale de todos os meios possíveis para burlar o tratamento”, diz o psiquiatra Táki Cordás, coordenador do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Ele ainda se lembra de uma carta que recebeu anos atrás de uma mulher com anorexia que ele tratara e deixava o hospital. “Ela tinha escrito algo assim: ‘Não caia na nossa sedução, não acredite no que dizemos. Nós estamos mentindo. Você precisa aprender a ser rígido’”, ele rememorou. “Ela se suicidou meses depois e eu aprendi que não podemos ser flexíveis e atender a solicitações de pacientes que não estão preparados para se cuidarem, embora se sintam onipotentes.”

Casos mais graves de anorexia podem ser fatais, como o de uma modelo de 21 anos, 1,74 metro de altura e 40 quilos que morreu em novembro de 2006 por causa de complicações renais causadas pela anorexia. A necessidade de serem magras para destacar as roupas com que desfilam faz com que as modelos tenham de 10% a 15% de gordura no corpo; o nível considerado saudável varia de 22% a 26%. Situações extremas, alerta Blay, exigem medidas enérgicas como internação hospitalar, ênfase na recuperação de peso e acompanhamento de uma equipe multidisciplar, com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Muitas vezes o tratamento é bastante difícil porque com frequência a anorexia está associada a outros problemas como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar do humor, estados paranoides e fobias sociais. Sob a orientação de Blay, durante os dois primeiros anos do doutorado Cybele examinou 3.415 artigos científicos sobre anorexia publicados de 1990 a 2005. Ela organizou o conhecimento nessa área e selecionou os estudos que davam voz às portadoras de anorexia por meio de uma técnica chamada metassíntese, que reúne dados qualitativos como depoimentos de entrevistados, diferentemente da abordagem mais adotada, a meta-análise, empregada para agrupar dados quantitativos como a eficácia dos tratamentos. Seu trabalho prossegue agora com um levantamento em ambulatórios de hospitais, consultórios privados e academias de ginástica de Fortaleza, sua cidade natal, e de São Paulo. Ela pretende entrevistar 30 pessoas que apresentaram anorexia, foram tratadas e não exibem mais sintomas desse distúrbio alimentar há pelo menos cinco anos. Não teve de procurar muito. Em janeiro deste ano, Cybele perguntou a uma professora de educação física em uma academia se ela conhecia alguém que tinha tido anorexia e espantou-se com a resposta: “Eu já tive”.

As 14 entrevistas feitas até agora indicaram que os sintomas podem ter desaparecido, mas a preocupação em ter um corpo idealizado e geralmente esquálido persiste, muitas vezes temperada com ansiedade e depressão. “Parece ser bem difícil desprender-se totalmente da dependência dos lados positivos da doença, como poder e segurança”, diz ela. Uma das mulheres que entrevistou contou que fazia exercícios físicos todo dia para manter o peso e ainda se pesava todo dia. Outra reconheceu que a anorexia pela qual tinha passado resultava de sérios problemas pessoais: “Não tem como sua vida ir bem e você ter esse problema, precisa algo não estar certo”. Esses trabalhos elucidam os significados, mas não as causas dessa doen­ ça, que podem ter origem genética ou orgânica, além, claro, de conflitos pes­ soais. Cordás inquieta-se ao ver mais pessoas – principalmente entre os grupos antes isentos de riscos, como crianças, homens e mulheres com mais de 40 anos – com o que chama de “cabeça de anoréxicos”, preocupados em perder peso a ponto de exagerarem na dieta ou nos laxantes. Programas de televisão e revistas, especialmente as dirigidas para adolecentes, reforçam a pressão pela busca de corpos mais finos que os da Barbie. “Para quem tem anorexia”, observa Blay, “a TV traz de volta as piores sensações possíveis, porque lembra que elas ainda não chegaram aonde queriam chegar”. n > Artigos científicos 1. ESPÍNDOLA, C. R. e BLAY, S.L. Anorexia nervosa treatment from the patient perspective: a metasynthesis of qualitative studies. Ann Clin Psychiatry. 2009 21(1), p. 38-48 2. ESPÍNDOLA, C. R. e BLAY, S. L. Anorexia nervosa’s meaning to patients: a qualitative synthesis. Psychopathology. 2009; 42(2), p. 69-80. 3. GIORDANI, R. C. F. A autoimagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológica. Psicologia & Sociedade, 2006, 18 (2): p. 81-88. PESQUISA FAPESP 159

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artes plásticas

Talento da alma Tese polêmica de Geraldo Souza Dias sobre Mira Schendel ganha edição luxuosa Gonçalo Junior

imagens divulgação cosac naify

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ma guerra muda a cabeça das pessoas para sempre e em todos os sentidos. Não há novidade nessa afirmação, claro. Para a artista plástica suíça Mira Schendel ou Myrrha Dagmar Dub (1919-1988), radicada no Brasil, o impacto da brutalidade do evento levou-a a passar por aquilo que no existencialismo é denominado “experiência-limite”, capaz de produzir grandes transformações, segundo palavras do arquiteto, pintor e teórico de arte Geraldo Souza Dias. Ela acabaria por se unir a refugiados – casou-se com Jossip Hargesheimer, um croata de ascendência austríaca. Com o fim do conflito, todos aqueles que tinham sido deslocados de seu antigo hábitat em função da nova divisão política do continente passaram a ser chamados de displaced persons. Mira se identificou com esse gigantesco contingente de despatriados e até trabalhou como voluntária no escritório romano de uma organização que visava resolver as questões básicas para esses indivíduos – trabalho, moradia, cidadania. Foi nesse período que ela se familiarizou com a burocracia dos processos de emigração, um esforço inicialmente buscado apenas pelo marido. Até que Mira decidiu deixar a Europa. Suas cartas do período citam Estados Unidos e Venezuela como possíveis destinos. Mas a resposta definitiva e mais rápida veio do governo brasileiro. Ela desembarcou no maior país da América Latina em 1949. Mais precisamente em Porto Alegre. Veio de Roma, onde viveu por muito tempo. Ali, na década anterior, havia estudado filosofia na Universidade Católica e, a partir de 1936, frequentou uma escola de arte – não concluiu nenhum dos dois cursos por causa da guerra. No Brasil, rapidamente, sua vida deu uma guinada. Passou a pintar e a trabalhar com cerâmica. Voltou a estudar, publicou poesias e deu também aulas de pintura. Aceita como participante da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, quando expressou sua visão de mundo transformada pela guerra, teve contato com experiências internacionais e viu seu nome se projetar nacionalmente. Mais ainda quando se mudou para a capital paulista, dois anos depois – nessa época adotou o sobrenome Schendel. Mira morreu consagrada como artista plástica em 1988. Desde então seu reconhecimento só cresceu. Exposições apresentaram sua obra no Brasil e no exterior. Em 1994, na 22ª Bienal Internacional de São Paulo, ganhou uma sala especial. Cinco anos depois tornou-se tema de doutorado, Mira Schendel – Do espiritual à corporeidade, de Geraldo Souza PESQUISA FAPESP 159

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Dias, uma surpreendente e corajosa análise do teor espiritual e religioso da obra da artista embasada nas teorias da arte abstrata que não se limitam apenas às questões formais, mas também àquelas ligadas à “significação”. O texto revisto sai agora num luxuoso volume pela editora Cosac Naify – com o mesmo título. Em entrevista à Pesquisa Fapesp, Dias explica que o diferencial de seu estudo é que tenta recuperar o binômio vida/obra para a compreensão da arte. E faz isso com o suporte de documentos, cartas e entrevistas conduzidas. Além da personalidade artística de Mira, a tese destaca a condição de imigrada da artista, que oscila entre os alinhados ao judaísmo nos tempos do nazifascismo e os incluídos no catolicismo da época montiniana. Para o pesquisador, seu trabalho difere das posições anteriores da crítica porque não inclui a obra de Mira Schendel em algum formalismo, por considerá-la vinculada ao pensamento filosófico-religioso, do qual a artista nunca se separou. “Estabelecendo censura entre uma aproximação formalista e a existencial, defendida pelo trabalho, a arte de Mira não cai sob a incidência do significante, pois se elabora como signo cultivado na trama do pensamento filosófico-religioso que a sustém.” Assim, relacionando-se com o pensamento de Tartaglia em seus inícios de intelectual, logo Mira se abriu para a filosofia de fundo cristão em sentido amplo de Kierkegaard, Jaspers, Mounier, “de que se seguem outras posições, 92

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nas quais se expõem debates com obras de filósofos ou outros teóricos”. Entre estes, Gebser, Houédard, Bense, Walther, Schmitz, Jung, entre os internacionais, e Vilém Flusser, Mário Schenberg, Haroldo de Campos e Theon Spanudis, entre os nacionais.

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uito seguro em relação a eventuais discordâncias, Dias defende com afinco seu estudo. Na tese original, observa ele, publicada em alemão pela editora Galda + Wilch, Glienicke há um capítulo intitulado “A recepção póstuma da obra”, onde critica tanto a abordagem eminentemente formalista de importantes pensadores – críticos, curadores, agentes culturais – das artes visuais no Brasil, como também a tendência observada em nível internacional de açambarcar-se à chamada arte dos países periféricos através de grandes mostras temáticas (arte de mulheres, arte da resistência, arte da modernidade “diferente” etc.) que cultuam o exotismo em relação aos modelos hegemônicos e submergem as obras em abordagens que, na maioria das vezes, não respeitam suas prerrogativas. “Por diversos motivos, inclusive para que o livro não ficasse demasiadamente extenso e para que fossem incluídas mais imagens – afinal, é um livro de arte –, essa parte foi suprimida da edição brasileira.” Entretanto, acrescenta ele, a atualidade dessa discussão fica patente na mostra organizada recentemente pelo Museum of Modern Art, de Nova York, que procurou forçar uma relação entre

o trabalho de Mira e o de León Ferrari – “um grande artista, sem dúvida, mas cujo trabalho está muito mais próximo de fenômenos epidérmicos da cultura e da denúncia política”. Para Dias, sua tese cumpre o papel no sentido de apontar para a correta leitura de uma obra tão única no cenário artístico da segunda metade do século XX, ainda que as instituições artísticas, tanto em nível nacional como principalmente internacional, são mais rígidas e menos propensas a grandes reformulações. Nesse sentido, ele discute as visões da artista sobre arte, teologia, filosofia e cultura a partir de conceitos da fenomenologia e da teoria da comunicação e acaba por jogar luz em seu trabalho tanto em relação à filosofia da arte quanto da psicologia. Ele explora, por exemplo, os interesses da artista no I Ching, o pensamento de Jung e suas relações com os dominicanos. A relação do pesquisador com a obra de Mira começou em 1972, quando ele viu uma exposição da artista na USP com letras decalcadas e coladas em papel. “Eu me preparava para o vestibular da Faculdade de Arquitetura e achei interessante perceber como as letras também possuem um desenho e poderiam ser elementos de trabalhos de arte.” Na década de 1980, ele morou fora de São Paulo – um curto tempo em Florianópolis e, a seguir, em Nova York. Por isso, somente em 1989 – no ano seguinte à morte da artista –, de volta ao Brasil, retomou o contato com a obra de Mira, graças a uma grande retrospectiva organizada pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, na Cidade Universitária. “Naquela ocasião pude constatar certas afinidades eletivas entre alguns de seus trabalhos e alguns dos meus.” O estudo da obra Mira começou entre 1993 e 1995, quando Dias se encontrava na Alemanha como bolsista. “Frequentei os estúdios da Universität der Künste Berlin, em estreito contato com o pintor Karl-Horst Hödicke, e esse período considero como o preâmbulo do trabalho.” Ele preparava uma série de pinturas que seria o corpus prático de sua pesquisa de doutoramento, iniciado dois anos antes na USP, sob orientação de Ana Maria Belluzzo. A parte teórica do projeto tratava da questão da espiritualidade na arte e tentava resgatar


Sem título, 1965 (página ao lado); Sarrafo, 1987; e (abaixo) Droguinha

uma visão humanista, antimaterialista, presente nos pioneiros da arte abstrata do século XX – Mondrian, Malewitsch, Kandinsky – e de sua aproximação com as visões de mundo de doutrinas relativamente populares no começo do século tais como a teosofia e a antroposofia. “Este tema, que era tratado com muitas reservas no Brasil, era objeto de sérias pesquisas por parte de curadores, museus e mesmo instituições de ensino na Alemanha, o que me levou a optar por reiniciar o doutoramento, nos moldes propostos pela universidade alemã, agora sob a orientação do professor Andreas Haus, que assina o prefácio do livro.” Por sugestão do professor, ele decidiu vincular essa discussão com artistas brasileiros. “Numa viagem ao Brasil em 1995, visitei o Projeto HO – que depois se tornaria o Centro Hélio Oiticica, arquivos do IEB-USP, a biblioteca da Fundação Bienal de São Paulo – e comecei a fechar a questão em torno do nome de Mira Schendel, principalmente após contato com o arquivo organizado por sua família, em São Paulo.” O pesquisador conseguiu ter acesso aos documentos pessoais da artista através de Ada Clara Schendel, filha única e responsável pela manutenção do arquivo de documentos, cartas, diário etc., e que também iniciara a catalogação da extensa obra da mãe. Com sua permissão, reproduziu grande parte do arquivo para poder estudá-lo com calma em Berlim. “Nas minhas visitas ao Brasil procurava principalmente ver e estudar os trabalhos artísticos e aproveitava também para entrevistar as pessoas citadas nos diários e nas cartas.”

O pesquisador destaca de relevante e revelador no material pesquisado e incluso no livro trechos de depoimentos gravados, excertos de suas cartas, passagens de seus diários, capítulos de livros assinalados e extraídos para discutir com os amigos, tudo isso sempre cotejado com seus trabalhos artísticos contribuía para a reconstrução de uma personalidade artística muito singular. “Familiarizei-me com sua caligrafia, com seu modo peculiar de transitar entre o alemão, o italiano e o português, com suas incoerências gramaticais, mas principalmente com sua agudez perceptiva diante dos problemas do mundo, com o refinamento de suas ‘soluções’ visuais.” Ao ser questionado sobre como resumiria a tônica do trabalho de Mira, Dias diz que reescreveria o último parágrafo do livro, que tenta dar conta

em poucas palavras do que a obra de Mira significa para ele: “Mira Schendel foi uma artista que conseguiu, com o mínimo de material, evocar o máximo de emoções. Sua obra nos toca justamente por causa dessa economia de elementos, mesmo quando trata de questões tradicionais da arte, como a natureza-morta ou a pintura de paisagem. A tônica de seus trabalhos pode ser considerada como a experiência de um eu no mundo enquanto metáfora da condição humana que a artista assumiu existencialmente, é verdade, sempre porém mediada por um prinn cípio divino”.


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resenha

Uma arraigada cultura de violência Eva Blay joga luz sobre dados silenciados de homicídios de mulheres Mariluce Moura

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ifícil não emergir da leitura de Assassinato de mulheres e direitos humanos com uma sensação intensa de mal-estar – uma quase-angústia. E esclareça-se desde já que não são palavras de um libelo de ativista, mas abundantes dados empíricos de pesquisa sociológica, trabalhados com rigor metodológico, que vão conduzindo pouco a pouco o leitor para uma zona de desconforto em que, junto com a autora, Eva Alterman Blay, ele certamente concluirá que há sim, ainda em pleno vigor hoje, “uma cultura da violência contra a mulher inscrita em nossa história (e não só na nossa)”. O esclarecimento parece-me importante face a uma certa tendência atual, em alguns círculos bem-pensantes, de situar o movimento feminista em termos ideológicos numa era pré-Homo sapiens, ali por tempos remotos em que ainda circulava pela Terra exemplares da espécie neandertal. Ora, enquanto a cultura da subordinação nas relações sociais de gênero não for efetiva e profundamente modificada, em cada um de seus muitos traços, a pecha de anacrônicas disparada contra lutas feministas sempre soará mais como fruto de má-fé ideológica do que como resultado de verdadeira análise do movimento. Lançado no final do ano passado pela Editora 34 em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), o livro de Eva Blay é re-

Assassinato de mulheres e direitos humanos Eva Alterman Blay Editora 34 248 páginas R$ 36,00

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sultado de extensa pesquisa que se valeu de três tipos de fonte: mídia, boletins de ocorrência e processos criminais. Afora a riqueza analítica que advém do tratamento cruzado dessas fontes documentais, vale destacar, como o faz Sérgio Adorno na orelha do livro, a originalidade do esforço teórico-metodológico que o move, qual seja, a abordagem dos assassinatos de mulheres para além do domínio exclusivo da chamada violência doméstica. Não é só o espaço da casa, mas também a rua, o local de trabalho e outros que aparecem como cenários de uma violência extrema contra as mulheres unificados pelas mesmas raízes culturais em que se fundamentam. Para detalhar um pouco mais o empreendimento de investigação sobre o qual o livro se assenta, é importante ressaltar que em relação à mídia foram coletadas todas as notícias sobre tentativas e assassinatos efetivados de pessoas do sexo feminino ocorridos no Brasil e publicados nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Diário Popular dos anos de 1991 e 2000. A pesquisa coletou também notícias dos casos em que a autora do crime era mulher e, ainda, referências a crimes no exterior, com vítimas brasileiras ou estrangeiras, para examinar o que nesses casos chamava a atenção da imprensa brasileira. Esse material se completou com uma investigação não sistemática de notícias de rádio, televisão e internet. Já em relação aos boletins de ocorrência (os BOs), em que nem sempre se torna claro o sexo da vítima ou do autor do crime, a equipe de pesquisa coordenada por Eva Blay, em colaboração com pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, que na época trabalhavam nos mesmos arquivos, manuseou milhares desses documentos nas delegacias de polícia da capital paulista até chegar a um conjunto seguro de documentos. Foram selecionados todos os BOs em que comprovadamente se tinha vítimas do sexo feminino. Trata-se de um universo de 669 BOs de 1998, dos quais 285 referentes a homicídios e 384 a tentativas de homicídio. Ao lado dos muitos quadros estatísticos que propiciaram (o livro todo tem quase meia centena de tabelas), os relatos de alguns desses boletins impressionam. Mais impressionantes, entretanto, são os resumos de processos criminais que aparecem no livro, com alguns trechos citados ipsis litteris, porque é da própria trama narrativa de cada processo, digamos assim – estruturada pelas falas dos réus, das testemunhas, de promotores, advogados de defesa, juízes e os votos dos jurados –, que


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livros

Emílio Goeldi (1859–1917): a ventura de um naturalista entre a Europa e o Brasil

fotos Eduardo Cesar

Nelson Sanjad Empresa de Marketing Cultural – EMC 232 páginas, R$ 60,00

vai se tornando mais aparente a face da cultura de violência contra a mulher que Eva Blay se propõe desvendar e cada vez mais visíveis as entranhas das relações sociais de gênero urdidas no interior dessa cultura. O levantamento dos processos criminais de 1997 em que as mulheres eram vítimas, em cinco tribunais do júri da cidade de São Paulo, exigiu dois anos de trabalho nos livros de registro. Levantados 8.805 processos, foi sorteada uma amostra quantitativamente representativa, detalhada num anexo do livro. O exaustivo trabalho de pesquisa, que não se furtou inclusive a examinar dados em que é a mulher a agente da violência, permite que nas conclusões a autora invista contra alguns dogmas, como por exemplo a lentidão da Justiça, nesse âmbito: “... não foi isso que constatamos. Ele [o Judiciário] age com relativa rapidez, levando cerca de dois anos para concluir todo um processo judicial”. Eva Blay constata também que a Justiça vem punindo mais e mais os assassinatos de mulheres, assim como a mídia se mostra cada vez mais crítica a esses crimes. Entretanto, com a violência contra a mulher sendo “produzida e reproduzida socialmente”, com as relações sociais de gênero ainda hierarquizadas, “correspondendo à população masculina o exercício da dominação pela força física ou psicológica” e com a vigência ainda do “machismo cultural que considera a mulher uma propriedade do homem”, fenômeno que, aliás, se manifesta em todas as classes sociais, a levar em conta os crimes estudados, só políticas públicas transversais e com a total participação da sociedade civil podem representar, segundo a autora, “um caminho para alterar a violência em geral e a violência contra as mulheres em particular”. Vale citar um trecho da orelha de Sérgio Adorno para encerrar: “Os crimes contra as mulheres são construções sociais que dizem respeito ao modo como a sociedade moderna e, em particular, a sociedade brasileira equacionam as relações entre poder, dominação e gênero”.

Através de uma biografia intelectual, Nelson Sanjad nos apresenta o percurso traçado pelo naturalista Emílio Goeldi em solo brasileiro, que nos permite reconstruir significativos passos do desenvolvimento cultural e do estudo da fauna no país. Acompanhado de belas ilustrações, o livro é dividido em duas partes, a primeira sobre a trajetória do cientista entre a Suíça e o Brasil, e a segunda sobre a divulgação científica e histórica de sua obra. EMC Edições www.foxvideo.com.br

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A série Atlas da nova estratificação social no Brasil retoma o estudo deste tema na tentativa de compreender o novo perfil de nossa sociedade. Os organizadores deste terceiro volume dividem-no em seis capítulos abordando tópicos que vão desde os proprietários na história do capitalismo e sua condição de reprodução ao longo tempo, passando pelo contexto específico brasileiro, até a identificação desses proprietários, seu consumo e sua renda. Cortez Editora (11) 3864-0111 www.cortezeditora.com.br

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ficção

Relato de uma pesquisa

Fernando Paixão

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ra a primeira vez que eu me aproximava de um homem, tão perto, de carne e osso. No início, senti certo medo, um friozinho correu nas costas e os pelos ficaram em alerta. Meu cheiro exalava forte. Da sua pele, conseguia ver apenas a mão esquerda, estendida ao longo da calçada. E o rosto, em perfil, sugerindo uma expressão quieta, quase congelada. O corpo estava vestido em terno cinza, talvez preparado para alguma cerimônia. Agora estava ali, deitado na calçada, ao meu dispor. Cutuquei-lhe a mão, e nada. Nem um tique de reação. Outra vez, e mais nada. Continuava inerte. Já na terceira vez, ferrei as minhas unhas direitas no punho dele. Resposta alguma. Bom sinal, pois assim eu poderia seguir adiante. Mas preferi não correr riscos. Voltei a furar a mão no mesmo ponto, até saírem algumas gotas de sangue. Nenhum dos dedos se mexeu. O curioso, porém, é que o corpo respirava normalmente. Estaria dormindo em sono profundo? Teve algum ataque do coração ou coisa assim? E o que fazia naquela rua, deitado? Não eram perguntas que me interessavam. A resposta estava ali, imóvel. Não ia desperdiçar oportunidade tão rara com as premissas do receio. O acaso me oferecia uma oportunidade única. Aproximei-me dos sapatos, em couro fino, e subi pela barra da calça. Facilmente me instalei na parte de cima da perna. Bem devagar, com cautela, para ficar atento a qualquer movimento dos músculos. Parados. Devia ser alguém bem posto na vida, a se julgar pela qualidade do tecido do terno. Parecia linho. Simples de enfiar as unhas, e ter a primeira impressão daquela carne que pulsava por baixo do pano. Segui pela canela e subi para o joelho. Parei. Confesso que ainda sentia por dentro uma pequenina bolha de temor. Sentimento inexplicável naquelas circunstâncias, eu sei, mas que fugia ao controle. Tinha de escolher alguma ação, eu

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bem sabia. Mas, em algum canto da minha cabeça, ainda me perguntava: qual será o nome dele? Quantos anos? Para onde caminhava? Questões sem importância, que só atrapalham o raciocínio. Minha curiosidade maior era conhecer aquela pele escondida, vestida quase por completo. Ali podia fazer a primeira experiência. Por que não? Decidido. Enfiei os dentes e puxei com as unhas até rasgar a calça um bocado. Coloquei mais força, fiz um rasgo maior e apareceu um recorte de pele clara, com poucos pelos. Aproximei-me do joelho e vi a carne enrugada, feia, seguida pela brancura e maciez da coxa. Era um fim de tarde. Últimos raios de sol. A rua deserta. E o corpo continuava respirando, imóvel como uma estátua. Desacordado por causa desconhecida, ou algo assim. Pouco interessa. A ponta de receio que ainda resistisse dentro de mim, que estourasse de vez. Sem vacilo. Para me certificar de que a situação era realmente favorável, deliberei que tinha de pôr à prova aquela epiderme aparentemente inocente. Preparei as unhas, apertei-as com força contra a carne debaixo, pus mais força e assim foi. Nem esperei o sangue aparecer, preferi correr para a ponta da gravata. Nenhum gesto. Resistência alguma. Sem pensar muito, enfiei-me por debaixo do paletó, farejei as primeiras pegadas e avancei. Felizmente, havia folga para deslizar sob o tecido. Pude perceber um aroma cítrico, mistura de suor e perfume, e avancei sobre a camisa branca com algum gosto. Logo notei uma marcação contínua que só confirmaria as evidências: o coração batia. Normalmente. Meus pressentimentos estavam certos, portanto. Aquele homem ainda respirava e continuava com vida. Mas... súbito interrompi qualquer sinal de dúvida. Pelo contrário. Era melhor que assim fosse, pois desse modo a empreitada se tornava ainda mais auspiciosa.


azeite deleos

Fui para o lado esquerdo do paletó, abotoado que estava, e deparei com o bolso da camisa. Um tanto grande, aliás, a ponto de eu poder enfiar a ponta da cabeça. Num dos cantos havia uma caneta e um bloquinho de papel, com alguma coisa escrita. Fucei mais um pouco naquele ninho involuntário, senti calor. Bem que gostaria de ficar ali por algum tempo, pensei. Virei de lado, buscando o conforto, e foi então que li a provocação rabiscada no papel. Simplesmente uma palavra: “metáfora”. Nada mais. Senti um choque inesperado. Ora, que coisa mais irritante. Depois de chegar a esse ponto, fazer todo o esforço, superar as cargas do medo e tal, era isso que eu tinha como recompensa? Tamanha desfeita e ironia? Não, não me venham dizer que isso aconteceu por acaso, coincidências involuntárias, pois isso nada tem a ver com o espírito lógico. Palavras são palavras, têm o seu peso. Aquela mensagem estava diretamente direcionada para mim. Fiquei furioso, por certo. Sufocado. O que fazer? Sem resposta na cabeça, saí por cima do paletó e deparei com o pescoço. O rosto era a última parte que faltava explorar. Apoiei-me no queixo para dar uma espiada. Via-se bem o corte dos lábios finos e os vastos cabelos grisalhos. O nariz formava a parte mais alta, por onde entrava e saía o ar, em ritmo compassado. Eu podia sentir aquela brisa também. Quanto aos olhos, escapavam à primeira vista, recolhidos num pequeno vale do rosto. Escalei o queixo e subi. Pisei nas bochechas fartas e movimentei-me em volta do nariz, com cuidado. O melhor que faria era me assentar sobre a testa, pouco espaçosa. Qualquer descuido me levaria ao chão. Finalmente deparei com os olhos. Estavam abertos e absolutamente calmos. Castanhos e vivos. Isso mesmo. Porque era certo que as duas pupilas se movimentavam lá dentro,

atentas, como se estivessem me observando. Será possível? Sim, aquele olhar estava me analisando. Prova material e definitiva. Aproximei-me e vi a minha imagem refletida. Eles seguiam-me, curiosos e vigilantes. E novamente senti o calor alarmante me corroendo a carne. Estaria esse homem, então, me considerando uma simples metáfora? Queria o confronto? A prova dos nove? Está bem. Confesso que tive um primeiro impulso de fugir, tão insuportável era a sensação de estar sendo espiado, estudado. Mas não, permaneci observando as imagens refletidas na pupila. Que profissão teria? Resvalou ainda a questão, enquanto crescia o furor dentro de mim. O absurdo estava tão próximo, inevitável, quem sabe pedisse uma doce conclusão. Mas não foi possível: tomado de impulso súbito, pus-me a roer aqueles olhos castanhos e suas pálpebras. Rápido e voraz. Tinha de ser assim. Devorar aquilo, até que o último resíduo do olhar desaparecesse por inteiro. Curiosamente, nenhuma gota de sangue saiu das estrias da carne — nem um pingo de vermelho. Roí tudo, sem deixar nada no fundo. Parecia mesmo que a falta dos glóbulos se tornara natural. Cego, ele já não perturbaria mais ninguém. A ironia estampada em sua boca tornara-se grotesca com os buracos na cara. Dentro de mim, a agitação e o receio transformaram-se num coágulo transparente e leve. Sumiu no ar. Voltei a ficar tranquilo. O último detalhe que me lembro foi ter pulado do rosto para o chão. E me enfiei no bueiro mais próximo. Fernando Paixão é escritor e, a partir do segundo semestre, assume o cargo de professor de literatura do IEB-USP. Dentre vários livros publicados, o mais recente é A parte da tarde (Ateliê Editora, 2005). PESQUISA FAPESP 159

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