As pontes do coração

Page 1


Tudo o que você faz

de positivo volta para você.

Promover uma vida saudável, por exemplo.

Motivação da prática de atividades físicas por meio de mensagens nos comerciaisdos produtosCoca-Cola Brasil. 230 mil beneficiados pelo Programa Prazer de Estar Bem, em parceria com a Fiespe a Abia, em 285 escolas. Estímuloà pesquisa na área de saúde por meio do Prêmio Pemberton. Estimular a prática de atividades físicas, informar sobre a importância de um estilo de vida saudável, patrocinar pesquisas nas áreas de hidratação e nutrição. São ações que fazem parte do dia a dia da Coca-Cola Brasil. Saiba como nós estamos vivendo positivamente e como você também pode fazer a diferença. Acesse:

www.vivapositivamente.com.br -

-

.•..•...

_--

VIVA

e

POSITIVAMENTE


* nasa

imagem do mês

Vida nova

para o Hubble O conserto do telescópio Hubble, realizado em meados de maio por astronautas norte-americanos na função de mecânicos, criou grande expectativa na comunidade de astrofísicos. A reativação do espectrógrafo de imagem, que sofreu uma falha elétrica e deixou de funcionar em 2004, promete devolver ao telescópio a capacidade de obter informações sobre a composição química, a temperatura, pressão e velocidade de corpos celestes distantes. Os primeiros testes indicam que o conserto teve sucesso, mas só se terá certeza disso nos próximos meses após os ajustes finos feitos da Terra. Os astronautas também trocaram

baterias e sensores rastreadores de estrelas. Se tudo der certo, serão mais cinco anos de grandes serviços prestados pelo Hubble para a expansão do conhecimento sobre o Universo. Na ativa desde 1990, o telescópio teve participação fundamental na determinação da idade do Universo em 13,8 bilhões de anos e na pesquisa sobre energia escura, além de ter empurrado as fronteiras do conhecimento sobre a formação das galáxias, ao mostrá-las quando jovens. Foi o quinto e último conserto do Hubble. Em cinco anos, será substituído pelo James Webb, que poderá detectar planetas com oxigênio. PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

3


• Pesquisa

16 O

>

54 ECOLOGIA

32 Novos critérios do Sistema Qualis, da Capes, recebem críticas da comunidade

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

JUNHO 2009

Hidrelétricas alteram funcionamento do

78 HISTÓRIA

A arqueologia

rio Paraná e ampliam erosão das margens

científica

HUMANIDADES

brasileira e a eterna busca por

sr

VIROLOGIA

civilizações

Programa da FAPESP

Equipe do Adolfo Lutz

ocultas na Floresta

anuncia os projetos

isola os primeiros exemplares do vírus

Amazônica

35 MUDANÇAS

CLIMÁTICAS

contemplados em sua primeira chamada

da gripe suína de

de propostas

>

CAPA

39 Acordo estimula

16 Equipe do Instituto

do

Coração identifica possível marcador

OS 90 anos da participação do Brasil na Liga

58 IMUNOLOGIA Anti-inflamatórios

colaborações entre pesquisadores de São Paulo, Pernambuco

84 DIPLOMACIA

paciente brasileiro

das Nações e a demanda

podem combater reação exagerada do sistema

e França

imune

à

atual pela reforma da ONU

malária

genético da durabilidade 90 LITERATURA

da ponte de safena

>

> CIÊNCIA

>

ENTREVISTA

10 Helio Jaguaribe

lança

livro e afirma crença num futuro próximo e

ASTRONOMIA

e projetos entre Manuel Bandeira e

66 ENERGIA

Pesquisadora brasileira

Ônibus montado no BrasU faz parte

próspero para o Brasil

explora vulcões em luas de Saturno e Júpiter

POLíTICA CIENTíFICA

Grupo do Rio propõe

E TECNOLÓGICA

equação que descreve a redução de fenômeno

28 AVALIAÇÃO Viés na interpretação

da poluição do ar 72 AMBIENTE

Carro a álcool emite 92% menos

quântico devido a influência do ambiente

compostos poluentes

de dados levanta debate sobre os atores envolvidos no aumento da produção científica brasileira

Gilberto Freyre

de experimentos mundiais para redução

FíSICA

>

A troca de cartas

TECNOLOGIA

não controlados FOTÔNICA

Técnica usa laser para

76 ENGENHARIA

DE

determinar rapidamente o nível de gordura em

ALIMENTOS

fígado para transplante

e outros produtos com

Sorvete com cereais aditivos benéficos

.:• >

BOTÂNICA

à saúde são

Florestas e campos avançaram e recuaram

patenteados

pelo país nos

•• • ••

últimos 30 mil anos

SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 5 CARTAS

60 SCIELO NOTfclAS

• •• • • • • •• •

7 CARTA DA EDITORA

62 LINHA DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

pela USP

8 MEMÓRIA

95 LIVROS

22 ESTRATÉGIAS

96 FiCÇÃO

40 LABORATÓRIO

98 CLASSIFICADOS


CARTAS

cartas@fapesp.br SP.BR

Butantan na Amazônia Gostaria de parabenizar Pesquisa FAPESP pelo interesse contínuo e pela competente cobertura jornalística de temas relativos à região amazônica demonstrado mais recentemente nas edições 156 e 158. A Amazônia abriga um verdadeiro universo biológico, fonte abundante de conhecimento científico e desenvolvimento de produtos imunobiológicos, área na qual o Instituto Butantan vem atuando há mais de cem anos com reconhecida competência. O projeto Butantan na Amazônia originou -se dessa premissa e pretende propagar na região oeste do Pará, uma das regiões com a maior incidência de acidentes com animais peçonhentos, a missão institucional de desenvolver pesquisas na área biomédica e ações de natureza cultural, compartilhando conhecimentos com as comunidades científicas locais e estabelecendo parcerias com as instituições já atuantes na região. Espera-se como resultado o desenvolvimento de novas estratégias que contribuam para a melhoria da saúde pública e com a formação de mestres e doutores, incrementando o potencial científico da região. A instalação de uma base avançada obedecerá assim uma lógica de inserção, com o desenvolvimentode projetos de interesse da coletividade amazônica, a partir da especificidade do Butantan. Antes mesmo da implantação física da base, pesquisadores do instituto vêm desenvolvendo estudos e ações. Na esfera política, os governos de São Paulo e do Pará reforçam a convicção de que essa iniciativa gerará resultados profícuos para ambos.

go na tijela", edição 159). Em determinada parte do texto é dito cc••• a doença costuma ser transmitida pela picada do inseto barbeiro e se manifesta de maneira crônica ..." Isto incorre em erro, uma vez que a picada do inseto não transmite o parasito T. cruzi, a não ser por regurgitação, o que deve ser enfocado quase hipoteticamente. A transmissão se faz pelas fezes do inseto. Também nem só as fezes dos barbeiros, infectadas, transmitem o parasito por via oral, quando trituradas junto às frutas. O próprio inseto pode ser triturado e transmitir ó parasito, do mesmo jeito que as fezes. Aproveito para indicar a leitura do guia para vigilância, prevenção, controle e manejo clínico da doença de Chagas aguda transmitida por alimentos, recentemente publicado por autoridades brasileiras com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde. EROS ANTONIO DE ALMEIDA GRUPO DE ESTUDOS EM DOENÇA DE

OTÁVIO AZEVEDO MERCADANTE

CHAGAS/FCM/UNICAMP

DIRETOR DO INSTITUTO BUTANTAN

Campinas, SP

São Paulo, SP

Imagem do mês Doença de Chagas Parabéns a Pesquisa FAPESP por enfocar a transmissão oral da doença de Chagas, via ingestão de açaí, cartão-postal da Região Norte do país ("Peri-

A importante e didática informação intitulada "Cachoeiras de sangue" (edição 159) merece nossa atenção pelos ensinamentos do comportamento das bactérias. A existência de comunidade

peculiar de bactérias que vivem sob a geleira de Taylor, nos vales secos de MacMurdo, na Antártida, é uma notável explicação para o escoamento de água tingida de vermelho que brota do glaciar e se derrama sobre a superfície de um lago. Ao descobrir o mecanismo metabólico que provoca este fenômeno, os pesquisadores traduziram as condições imprevisíveis que astronautas poderão deparar ao visitarem os planetas exteriores do Sistema Solar e outros sistemas planetários que giram em outros sóis - diante da extrema variedade de formas de vida possíveis, decorrentes de associações metabólicas das mais variadas. A descoberta científica tem grande valor e é oportuna nesta época de violações do meio ambiente. O que vem provocando patologias novas e misteriosas, além de alertar para a descoberta de possíveis e estranhas alterações metabólicas que podem estar em curso na natureza. FRANCISCO

Salvador,

J.B.

BA

Etanol de cana Se por um lado o etanol da cana pode ser um combustível menos poluente que os outros atualmente disponíveis no mercado, e com balanço energético melhor, considerá-lo como "dianteira ecológica" (como visto na capa do número 159) dá a falsa impressão de que ele é uma solução adequada do ponto de vista ambiental. Isto não é verdade, se levarmos em conta que a cana é produzida em monoculturas de grande extensão, que causam enormes impactos ao ambiente pela brutal simplificação da paisagem, perda da diversidade biológica e emprego de agroquímicos, para dizer o mínimo. Na situação atual, a expansão do uso do etanol provavelmente levará à expansão das grandes mono culturas, o que é indesejável em qualquer caso. As implicações ambientais e sociais de todas as etapas da cadeia produtiva dos biocombustíveis precisam ser analisadas em profundidade antes das PESQUISA FAPESP 160 • JUNHO DE 2009 • 5


~

Pesqüiia

FUNOA( PESOU!

CELSO PRESII

FAPESP

~

I

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. • Para anunciar Ligue para: (11)3838-4008 • Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br ou ligue: (11)3038-1434 Mande um fax: (11)3038-1418 • Assinaturas de pesquisadores e bolsistas Envie e-mail para rute@fapesp.br ou ligue (11)3838-4304 • Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Envie e-mail para rute@fapesp.br ou ligue (11)3838-4304

decisões sobre política que raramente é feito. MARIA CHRISTINA

energética,

o

DE MELLO AMOROZO

INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS/UNESP Rio Claro,

SP

Elementos

químicos

Parece-me justo utilizar este canal para parabenizar o senhor Nilton Pereira Alves pela elaboração e disponibilização do livro Guia dos elementos químicos. A partir da divulgação por Pesquisa FAPESP (edição 157) entrei em contato com o senhor Nilton e ele mesmo se colocou à disposição para o envio do livro. Além de apresentar uma linguagem bastante acessível, ele, com uma iniciativa ímpar, presenteia os leitores literalmente com a disponibilização gratuita deste guia. ALEX RAFACHO FACULDADE DE CIÊNCIAS/UNESP Bauru,

surpreende que o ISI tenha registrado um aumento formidável da produção brasileira. Uma consulta rápida ao Web of Science mostra, por exemplo, que só a revista Cadernos de Saúde Pública, incluída em 2008, registrou neste ano um total de 746 artigos: sozinha, uma das 32 revistas incluídas em 2008 responde por 7% do aumento total. É verdade que a produção científica no Brasil tem crescido exponencialmente nos últimos 20 anos. No entanto, não é nada do que sugere a comparação isolada de dois anos em particular e muito menos estes dois anos quando o ISI passou por profunda reorganização com a fusão Thomson e Reuters. O aumento de registros de produção brasileira pelo ISI (de registros, não de produção: afinal estas 32 incluídas em 2008 já vinham publicando há muito tempo!) deve-se mais à disputa entre a Thomson/Reuters e a Elsevier (base Scopus) pelo controle do mercado de dados bibliométricos. JÚLIO C. R. PEREIRA

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

6 • JUNHO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 160

Produção científica

CONSE

CELSO HORAc VOORVi MARTI/I BELLU2 VAHAN CONSE

RICARD DIRETC

CARLO~ DIRETC JOAQUI DIREH

p CONSE LUIZ HE (COORDEH CARLO~ FRANCI: JOAQUI MÁRIO, PAULA I WAGNEf DIRETC MARllU EDITOf NELDsa EDITOJ; CARLOS FABRlcl1 MARCO~ RICARD' EDtTOF

CARLOS EDITO~ OINDRA REVIS) MÁRCIO

SP

EOITOF MAYUMI

FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA/USP

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

JOSÉ A VICE-P

São Paulo,

ARTE

MARIA ( JÚLlAC

SP

F'OTÓGI EDUAR[

Pesquisa FAPESP Online citou um aumento de 56% na produção científica brasileira em um único ano: est modus in rebus! A produção científica brasileira tem crescido nos últimos anos a uma taxa que é algo em torno de 10% a 15%, dependendo da área do conhecimento, o que é formidável e tem dado destaque ao Brasil. Quanto ao aumento de 56% num único ano, já o bom senso aconselha cuidado: como se alcançaria um salto tão grande num único ano? A diferença de 10.709 artigos entre 2008 e 2007 pode ser mais bem entendida se em vez de falarmos de aumento no número de publicações falássemos do aumento no número de registros de publicações pelo ISI: até 2008, 30 revistas brasileiras tinham seus artigos publicados registrados pelo ISI; em 2008, o ISI acrescentou 32 novas revistas brasileiras às suas bases de dados, um aumento de 106,6%. Como revistas brasileiras publicam principalmente artigos brasileiros, em nada

Nota da redação: página 28.

Ver reportagem

na

Correções

SECRE' ANDRE~

COLAB ANAUt. BEATRI~ lUANAI LEANDIi

os AI NECE

Na reportagem "O elo perdido entre Darwin e o Brasil" (edição 159) não saiu a citação ao livro Recepção do darwinismo no Brasil (Fiocruz, 192 páginas), organizado por Heloísa Maria Bertol Domingues, Magali Romero Sá e Thomas Glick, cujas informações foram citadas no texto.

É PRC DE TE

PARA I (11)38~ PARA J FAPES~ (li) 30~ FAX: (11

GERtN PAUlA

e-matt

I

GERtN RUTER

e-meít

I

IMPRE: PLURAl

Na reportagem "Arte rupestre no semiárido" (edição 159), a legenda da foto na página 60 refere-se à serra das Confusões, e não da Capivara.

TIRAGE DISTRI DINAP GESTÃ INSTITI FAPES RUA PI ALTO o

SECREl

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e·mail cartas@fapesp.br. pelo fax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP. CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

GOVERI

INSTlTlJ


carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Pontes no coração e em outros territórios

Celso Lafer

Presidente josé arana varela

vice-Presidente

Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler

Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura

editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), Beatriz Antunes, Braz, Daniel das Neves, luana geiger, Danielle Maciel, Laurabeatriz, Leandro Negro, Marcos Garuti e Yuri Vasconcelos.

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização

Para anunciar (11) 3838-4008 Para assinar fapesp@teletarget.com.br (11) 3038-1434 fax: (11) 3038-1418 GERêNCIA DE OPERAÇÕES Paula Iliadis tel: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERêNCIA DE circulação rute rollo araujo tel. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL editora E gráfica Tiragem: 36.900 exemplares distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP Rua Pio XI, nº 1.500, CEP 05468-901 Alto da Lapa – São Paulo – SP

Secretaria do ensino superior Governo do estado de São Paulo

instituto verificador de circulação

Mariluce Moura - Diretora de Redação

‘A

s pontes do coração” chegaram, de última hora, diretamente para a capa da Pesquisa deste mês. A consistência e solidez de uma pesquisa neste campo coordenada pelo professor José Eduardo Krieger, a par do enorme interesse sempre despertado entre os que acompanham as notícias originadas no front da ciência por qualquer novo conhecimento ou avanço técnico ligados à longevidade e funcionamento do coração (assim como do cérebro), não deixaram muita margem a dúvidas sobre qual das reportagens desta edição deveria ocupar sua posição de mais destaque. O leitor, entretanto, poderá fazer sua própria avaliação, acompanhando, a partir da página 16, o claro e elegante relato do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a respeito do trabalho que tenta desvendar por que parte das pontes de safena sofre um entupimento e tem sua duração limitada a cerca de 10 anos, enquanto a maioria permanece funcional por até três , quatro ou mais décadas. A reportagem detalha a série de experimentos com ratos e com vasos sanguíneos humanos que a equipe de pesquisadores chefiada por Krieger no Instituto do Coração (InCor) vem fazendo, na tentativa de identificar fatores físicos que, desencadeados por esse processo de se colocar uma veia – a safena – para funcionar como artéria, terminam por reprogramar as células desse vaso. Essa busca já resultou na identificação de várias proteínas candidatas a esse papel e é possível que uma ou mais delas possam adiante ser usadas como indicadores da durabilidade da ponte de safena ou como alvos terapêuticos. Trocando em miúdos, talvez se possa saber de antemão se quem recebe uma ponte de safena permanecerá com ela pelo resto da vida ou se são muito grandes as possibilidades de que precise ser operado de novo dentro de uma década mais ou menos. A outra reportagem que quero destacar neste espaço é que trata de uma certa “briga” acadêmica nos domínios da arqueologia entre os que defendem que a Amazônia brasileira já abrigou em remotíssimo passado sociedades com um considerável grau de sofisticação cultural e aqueles que asseguram que o ambiente de solos pobres em nutrientes da região impediu a agricultura intensiva e, portanto, a formação de grandes populações avançadas na área. O ponto de partida do editor de humanidades, Carlos Haag, para tornar mais clara essa divergência quanto a um hipotético Eldorado amazônico (página 78), é o livro Cotidiano e poder na Amazônia pré-colonial,

de Denise Cavalcante Gomes (Edusp). Mas ele lança mão de uma série de estudos internacionais que também se debruçam sobre a questão, entre os quais os que aparecem no livro The lost city of Z, de David Grann, que deve sair em julho no Brasil (Companhia das Letras). Nessa obra, o arqueólogo Michael Heckenberger, retomando a história da malfadada expedição do coronel britânico Percy Fawcett ao Xingu, reforça o mito do Eldorado, investindo contra o ceticismo de Betty Meggers. O confronto é antigo e promete ir longe ainda. E é muito interessante acompanhar as razões de cada lado. Reportagens como a que relata o isolamento do vírus da gripe suína no Brasil ou a que se debruça sobre o trabalho da astrônoma brasileira ligada à Nasa, especialista em vulcões extraterrestres, ou ainda, na editoria de tecnologia, a que trata do ônibus movido a hidrogênio e que em breve estará rodando pelas ruas de São Paulo e uma outra sobre mais vantagens antipoluição do carro abastecido com álcool, todas valeriam referências específicas neste espaço. Mas desta vez vou ser mais econômica nas considerações sobre a produção da equipe de Pesquisa FAPESP, para poder dedicar umas poucas linhas a Sir John Maddox, formado em física e química, mas jornalista de profissão, “o homem que reinventou o jornalismo científico”, como disse The Economist, no epitáfio que lhe dedicou na edição de 5 de maio passado. Maddox, que morreu em 12 de abril, foi quem, ao chegar a Nature em 1966 depois de uma década no Guardian, transformou a então desprestigiada e paroquial revista britânica “num gigante científico com influência global”. Revisão por pares, ousadia na escolha dos temas que mereciam ser publicados e extrema exigência na qualidade dos textos foram apenas algumas das novidades introduzidas por ele para capacitar a revista britância à concorrência com a Science. Segundo The Economist, ele queria a Nature semelhante de certa forma a um jornal, uma publicação para ser julgada, entre outras coisas, pela rapidez com que publicava as notícias científicas. “Os manuscritos também eram editados – pasmem! – para que tivessem estilo e legibilidade, tanto quanto precisão.” Maddox formou uma legião de profissionais, que se espalharam pela New Scientist, Times, Wired e outras publicações, consolidando as belas pontes que estabeleceu entre a ciência e o jornalismo. Pontes para difundir o conhecimento científico na sociedade. PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

7


()

Óleo sobre tela de bernardino de souza pereira (1940)/Museu Paulista

memória

Proezas de um padre voador Há 300 anos Bartolomeu de Gusmão provava que um artefato mais pesado que o ar podia voar Neldson Marcolin

8

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

E

m poucos minutos, a situação na Sala das Embaixadas do Paço, em Lisboa, passou de assombrosa a patética. Quando o pequeno balão de papel pardo grosso subiu impulsionado pelo ar quente produzido por uma pequena chama dentro de uma tigela de barro, o rei dom João V, sua família, parte da corte portuguesa e convidados ficaram francamente surpresos. Mas ao chegar à altura de 4 metros o invento foi abatido por dois criados apressados, temerosos de que as cortinas fossem incendiadas. O incidente não apagou a grande novidade científica daquele 5 de agosto de 1709: pela primeira vez provou-se que um artefato mais pesado que o ar podia voar. O autor da experiência, padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), tinha apenas 24 anos e conseguiu uma carta patente do rei cedendo a ele o privilégio de explorar o “instrumento para se andar pelo ar”. Aquela foi a segunda tentativa de Gusmão demonstrar suas experiências com balões. A primeira ocorreu no dia


Desenho da “máquina volante”, de autor desconhecido, publicado em 1868

de Bartolomeu, dez anos mais novo, recebeu o mesmo nome do educador e foi secretário de dom João V. No seminário, o jovem inventor criou um sistema – chamado por ele de carneiro hidráulico – para bombear água do riacho para o prédio do colégio. “Ele uniu telhas usando argamassa e fez um

encanamento original. Em seguida represou a água do rio por meio de algumas estações e levou, por bombeamento, a água 100 metros acima até o seminário”, conta Laurete Godoy, pesquisadora da vida de Gusmão e autora de vários livros infanto-juvenis sobre Santos-Dumont, como Óleo sobre tela de benedito calixto (1902)/Museu Paulista

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

3 de agosto de 1709, mas o papel incendiou-se ainda no chão. Dois dias depois ele foi bem-sucedido. E houve ainda uma terceira ascensão, ao ar livre, ao lado da Casa do Forte – o balão subiu a grande altura e caiu depois de algum tempo, quando a chama se apagou. As duas primeiras experiências foram presenciadas pelo núncio apostólico em Lisboa, cardeal Michelangelo Conti, futuro papa Inocêncio XIII, que relatou os fatos em carta à Secretaria de Estado do Vaticano. Apesar do reconhecimento do rei e da Igreja, Gusmão era alvo frequente de críticas e sátiras. “Quem levou a fama pela invenção foram os irmãos franceses Joseph Michel e Jaques Étienne Montgolfier quando apresentaram um balão feito de linho, com 32 metros de circunferência, que subiu em 1783 usando o mesmo princípio de Gusmão”, diz Carlos Alberto Filgueiras, coordenador do Programa de História da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor titular do Instituto de Química da mesma instituição. Bartolomeu Lourenço nasceu na então vila de Santos, no litoral paulista. Acrescentou o Gusmão ao final do nome para homenagear o jesuíta português Alexandre de Gusmão, fundador do colégio e seminário de Nossa Senhora de Belém, na vila (hoje cidade) de Cachoeira, na Bahia, para onde a família havia se mudado. Um dos irmãos

Santos-Dumont, o sonho que criou asas (editora Meca). Gusmão foi ordenado padre ainda na Bahia e partiu para Lisboa entre 1708 e 1709 para não voltar mais ao Brasil. Na Universidade de Coimbra estudou ciências e deu aulas. Curiosamente, ele não levou à frente suas experiências com balões, talvez intimidado pelas sátiras constantes. Gusmão morreu em Toledo, na Espanha, aos 39 anos, depois de fugir de Portugal, não se sabe até hoje exatamente por quais razões. Antes queimou seus arquivos, o que impediu que se conhecesse melhor sua vida e demais trabalhos. Em 1901 Santos-Dumont concluiu a obra do padre voador, como ficou conhecido, e dos irmãos Montgolfier ao construir o primeiro balão dirigível.

Representação de Gusmão trabalhando (ao lado) e se apresentando a dom João (na outra página) PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

9


10

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160


entrevista

Helio Jaguaribe Um otimista de curto prazo Cientista social lança livro e afirma crença num futuro próximo e próspero para o Brasil Carlos Haag

fotos léo ramos

‘E

m épocas de grande agitação o dever do intelectual é manter-se calado, pois nessas ocasiões é preciso mentir e o intelectual não tem esse direito”, afirmou, algo cínico, o filósofo Jose Ortega y Gasset (1883-1955). Embora se confesse um apaixonado pelas ideias do espanhol, “que exerceu uma influência extraordinária na minha formação”, o cientista social Helio Jaguaribe não é um discípulo intransigente. Embora concorde que a mentira não tem lugar na fala dos pensadores, ele se recusa a manter-se calado, para nossa sorte, ainda mais em tempos difíceis como os atuais. Nesse ponto, Jaguaribe, atualmente Decano Emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), é mais um seguidor dos ensinamentos de seu pai, Francisco Jaguaribe de Matos. “Ele era um homem de cultura com um profundo espírito cívico e ético. Ele me incutiu as ideias de amor e dedicação ao país, de sentido público.” Aqui se pode reconhecer com facilidade o pensador que, aos 86 anos (um imortal da Academia Brasileira de Letras), não se cala nem mente. Prefere pensar o Brasil. Carioca, advogado de profissão, Jaguaribe não se acomodou apenas na teoria e, a partir de 1949, começou a escrever a famosa e prestigiada Coluna da Quinta Página no Jornal do Commercio. Também se reunia com um grupo de amigos intelectuais do Rio e de São Paulo no Parque do Itatiaia para pensar os problemas que via todo dia na empresa e que atrapalhavam o desenvolvimento da sociedade brasileira. Em 1953, a reunião se transformou no Instituto Brasileiro de Economia e Sociologia e Política para, em 1955, com apoio do presidente Café Filho, ganhar o estatuto de Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o célebre Iseb, núcleo de pensamento que elaborou a teoria do nacional-desenvolvimentismo. “Queríamos propor um projeto reformista para a transformação do Brasil, a ideia de uma reforma do capitalismo a partir do próprio capitalismo.” Discordando de mudanças ocorridas no Iseb, Jaguaribe, em 1959, demitiu-se. Arregaçou as mangas e foi trabalhar num projeto de expansão da Companhia de Ferro e Aço de Vitória, de sua família, experiência que ensinou a ele a dura realidade de empresários e trabalhadores. Com o golpe militar, exilou-se nos EUA, para onde foi lecionar sociologia em universidades do porte de Harvard, Stanford

e do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Voltou ao país em 1969 e, dez anos mais tarde, assumiu a direção do Iepes. “Flertou”, de forma responsável, com o Estado por duas vezes: em 1985 coordenou o Brasil 2000, no governo José Sarney; em 1992 foi secretário da Ciência e Tecnologia do governo Collor, deixando o cargo quando o presidente foi apeado do poder. Em 1988 ajudou a fundar o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, e já tem um candidato que considera imbatível para 2010: o governador de São Paulo, José Serra. Jaguaribe continua a serviço do país com suas ideias. Como, aliás, comprova o livro Brasil, mundo e homem na atualidade, uma seleção de estudos escritos a partir de 1983, editado pela Fundação Alexandre de Gusmão. O livro, com mais de 930 páginas, traz uma súmula de seus pensamentos com estudos sociopolíticos, artigos sobre relações internacionais, reflexões sobre o Brasil, análises de filosofia e notáveis estudos sobre personalidades. É difícil destacar um dentre tantos textos profundos e inteligentes, mas são dignos de nota: “Nação e nacionalismo no século XXI”; “Social-democracia e governabilidade”; “Pax americana ou ‘Pax Universalis’”; “Aliança Argentina-Brasil”; “A perda da Amazônia”; “Brasil: o que fazer?”; “Universalidade e razão ocidental”; “Depoimento sobre o Iseb”; “Ortega y Gasset: vida e obra”; “Celso Furtado: teoria e prática do desenvolvimento”; entre outros, prova de seu pensamento agudo e irrequieto. Logo, para defini-lo melhor é preciso buscar outra frase de Ortega y Gasset: “É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução”. n Aos 86 anos, o senhor nunca deixou de analisar o Brasil. Algo no nosso presente o surpreendeu? — Não tem muita surpresa porque o curso que os acontecimentos seguiram foi mais ou menos o que eu previa. Eu diria que a situação do Brasil é razoável, está longe de ser péssima e longe de ser ótima. Ela é razoável porque o Brasil mantém o que é precioso: sua unidade nacional, pois somos um país com enorme sentido de unidade nacional. Melhoraram as relações sociais, o país está incorporando, embora

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

11


menos velozmente do que o desejável, as massas marginais, mas está caminhando na direção correta. Estamos tendo um crescimento técnico, econômico e cultural razoáveis, de modo que o Brasil não é um país de futuro preocupante, ao contrário, é um país de futuro muito promissor e já apresenta um presente muito razoável. Nesse sentido sou bastante otimista em relação ao Brasil. O que nos faz um país eficaz é que ele assim se torna independente de vontades individuais, é um processo coletivo em marcha. O que dá grande estabilidade ao Brasil não é que seja um país com um grande condutor, em que um fenômeno específico esteja favorecendo. Não: somos um país cuja rotina é orientada na direção correta. O desenvolvimento sustentável é aquele que se faz por rotina.

Um grande esforço no sentido de aperfeiçoar, acelerar e ampliar o desenvolvimento científico-tecnológico é a primeira condição para se desenvolver

n O que nos impede de ter um projeto real

de nação? — Creio que o problema no momento atual é que as correntes desenvolvimentistas, que são, na verdade, predominantes na opinião pública e também na própria linha do governo, não lograram, entretanto, alcançar um modelo econômico e financeiro adequado para o seu projeto. Existe um desenvolvimentismo econômico, mas a mecânica financeira desse desenvolvimentismo ainda não foi bem elaborada. Em que condições financeiras será possível sustentar um desenvolvimento importante no longo prazo? Esse é o problema e isso exige uma combinação entre finanças públicas e privadas e, portanto, um modelo financeiro global sob a liderança do Estado. A ele cabe liderar isso. Mas os governantes não estão tendo uma consciência financeira, a meu ver, suficientemente clara. Há a consciência econômica, mas a visão financeira é do “dia a dia”, é um pouco uma rotina, de acordo com as experiências anteriores, e não uma finança orientada para sustentar o desenvolvimento de longo prazo. É o vácuo financeiro. Quais as consequências para o futuro do país? — O fato é que o Brasil tem uma verdade empírica muito satisfatória. Independentemente de grandes projetos, de grandes condutores e grandes lideranças, o país marcha bem e isso é uma coisa altamente desejável, porque os progressos que dependem de condutores ficam sujeitos a eles e, portanto, podem não ter continuidade. A nossa vantagem é que temos uma rotina positiva. Então sou muito otimista em relação ao futun

12

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

ro precisamente por causa disso: o que funciona bem no Brasil é sua rotina, e a rotina tende a ser permanente. Esse status quo, embora um pouco medíocre, tem a vantagem de ser estável e, portanto, provavelmente terá continuidade. Eu seria favorável a que ademais dessa rotina positiva surgisse um grande projeto nacional que mobilizasse a opinião pública, como já aconteceu no tempo de Juscelino Kubitscheck, por exemplo, quando a ideia de “cinquenta anos em cinco” foi uma realidade. Não precisaríamos de um novo projeto tão avassalador como esse, basicamente porque a rotina atual é boa e não era naquele tempo. JK conseguiu converter uma rotina negativa numa orientação positiva. Essa orientação positiva permanece de uma maneira moderada (crescimento de 2,5%, 3% e em alguns casos até 5%), mas poderia ser um pouco acelerado para superar o crescimento demográfico, senão o país cresce na mesma proporção da população e, portanto, não melhora. Como seria um Estado mais criativo? — Creio que seria necessário um conjunto de coisas. Em primeiro lugar há uma noção bastante generalizada pela opinião pública de uma ideia de desenvolvimento nacional: é preciso criar um n

modelo de desenvolvimento nacional que seja popular. Na medida em que isso aconteça (e de modo geral está tendendo a acontecer), essa consciência pública configura os possíveis governos futuros numa direção que é difícil de ser invertida. O Brasil adquiriu uma rotina de crescimento positivo social e econômico que tende a ser estável. Evidentemente eu gostaria que ela fosse dinamizada, porque há certa urgência em apressarmos particularmente duas coisas. Do lado das exigências superiores, aumentarmos nossa capacidade científico-tecnológica: o Brasil é um protagonista mediano – para não dizer medíocre – dentro do processo científico-tecnológico. Não é necessário que ele seja de ponta, mas deveria estar um pouco mais na vanguarda. Um grande esforço no sentido de aperfei­çoar, acelerar e ampliar o desenvolvimento científico­-tecnológico é a primeira condição. A outra é que o desenvolvimento científico-tecnológico se faça não precisamente na linha científico-tecnológica, mas levando em conta a necessidade de mobilizar a totalidade da população. Ou seja, o Brasil tem um grande problema de incorporar essas mudanças, já que um terço da sua população está vivendo em condições absolutamente não aceitáveis, e combinar-se um desenvolvimento do processo científico-tecnológico com um grande desenvolvimento social. Qualquer projeto de desenvolvimento é barrado pelos gargalos estruturais do país. Como superá-los? — A resposta tem uma primeira dimensão que me parece absolutamente inequívoca: é a educação. O país tem o desenvolvimento que a sua educação lhe proporciona. O fato de que há uma parcela muito grande de brasileiros ou totalmente deseducados ou parcamente educados constitui um peso inerte que dificulta a marcha do Brasil. Portanto, a primeira coisa a fazer é ampliar a educação e melhorar o nível dela. Só isso já bastaria, porque, como o país tem uma tendência positiva para crescer, se tiver educação cresce na direção certa e com a velocidade certa. n

n Mas a questão de P&D é complexa e en-

volve a entrada de tecnologia estrangeira, algo que não agrada ao senhor. — O Brasil já atingiu uma fase em que tem capacidade de autocrescimento e autodesenvolvimento, inclusive científico-tecnológico. O que não quer dizer que se vá fechar as portas e janelas para o mundo, ao contrário: toda abertura é


absolutamente necessária, sobretudo nessa direção. O Brasil está longe de ser um país de vanguarda no sentido do desenvolvimento científico-tecnológico, embora certamente não seja um país de retaguarda, está numa posição mediana, um pouco mais para cima do que para baixo, mas necessita manter essa média melhorando e, portanto, manter a abertura. A principal coisa consiste, evidentemente, numa atuação do setor público através de volume e de orientação de verbas. É preciso mais dinheiro, mais recurso para o desenvolvimento científico-tecnológico e uma atuação efetiva para esse desenvolvimento, partindo do setor público que é aberto para o setor privado. Como o senhor analisa a ligação entre universidades e empresas? — Esse é um problema muito sério, porque no Brasil essa relação é muito remota: a universidade absorve com grande rapidez a informação externa e tende a ser razoavelmente atualizada, mas ela opera para dentro, e não para fora. De modo que são duas entidades que buscam insumos externos isoladamente uma da outra. A empresa procura ver o que a tecnologia internacional tem para copiar e a universidade procura ver o que a ciência tem para copiar. Acho que essas duas iniciativas são perfeitamente razoáveis, mas o que conviria aumentar, sem prejuízo delas, era a integração universidade-empresa. Era preciso que a universidade ficasse mais consciente de seu papel de educadora na empresa e a empresa mais aberta para as relações com a universidade. n

Em qualquer ponto que toquemos há a presença do Estado, vilanizado por uns, glorificado por outros. Qual é a sua visão do Estado, especificamente no caso brasileiro? — Desde o século XVIII os países ocidentais se diversificaram conforme aqueles que são impulsionados pela iniciativa privada e aqueles que são impulsionados pelo Estado. Os países anglo-saxônicos são predominantemente impulsionados pela iniciativa privada e os países latinos e germânicos pela iniciativa do Estado. Essa é uma característica cultural difícil de ser modificada e não tem nada de errado em nenhuma delas, de modo que nós, como país latino, temos que reconhecer a necessidade de uma ativa liderança do Estado sem prejuízo da máxima abertura para a iniciativa privada. Creio que o que estou dizendo é o grande consenso: o que precisaria para que deixasse de ser discurso seria um pouco que essas coisas n

entrassem nos orçamentos e nas agendas públicas. É preciso que o BNDES não seja apenas um recebedor de projetos, mas um formulador de políticas; é preciso que haja um projeto nacional de desenvolvimento consistente, realista, não utópico, para o qual o banco e outras agências federais, ademais de abertos a demandas, sejam proponentes de projetos. n A crise financeira atual nos obriga a repensar o Estado? — No século XXI chegou-se a um consenso, mais informal do que formal, de que o desenvolvimento depende de uma combinação da atuação do Estado e da iniciativa privada, em que a atuação do primeiro será maior ou menor conforme as características culturais do país e seu nível de desenvolvimento. A intervenção do Estado nos países muito desenvolvidos não precisa ser tão grande quanto

nos países subdesenvolvidos. Nos países subdesenvolvidos não há a menor dúvida de que o Estado é o principal motor. No Brasil, embora não seja mais um país subdesenvolvido, é um país mediano, o Estado continua a ser o principal motor, de uma maneira menos urgente do que em outros países da America Latina ou da Ásia, mas muito mais urgente do que em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos. A única solução para a crise é o Estado aumentar a sua participação no desenvolvimento, na promoção de crescimento. A crise resulta de certo descompasso entre a oferta e a demanda de recursos. Essa demanda de recursos só pode ser atendida em curto prazo por um aumento da intervenção estatal. A forma pela qual se pode conduzir o empresariado a se orientar mais para a atuação produtiva do que para o jogo financeiro consiste em que o Estado PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

13


intervenha de uma forma muito eficaz no sentido do financiamento; havendo uma amplificação do financiamento público a especulação financeira privada reduz e o empresário é conduzido naturalmente a utilizar esse financiamento para fins produtivos. Havendo oferta de recursos, o empresariado funciona. O senhor vem propondo trocar o nacional-desenvolvimentismo pelo regional-desenvolvimentismo. Por quê? — Nós estamos vivendo um processo histórico de formação de grandes blocos, portanto, apesar de o Brasil ter massa crítica muito elevada comparativamente a outros, não é suficientemente autossuficiente para poder, isoladamente, atender as demandas do tempo. Daí a conveniên­cia de combinar uma consolidação nacional do desenvolvimento com uma abertura para o desenvolvimento regional. O nacional-desenvolvimentismo é compatível com o regional-desenvolvimentismo, que no caso brasileiro tem como base uma aliança estratégica entre a Argentina e o Brasil. Essa é a chave de tudo, a força mobilizadora dos outros países da América do Sul e certamente do México, que é um parceiro fundamental para esse processo. Então eu digo: consolidar a aliança Brasil-Argentina que funciona de uma forma tímida e fazer com que ela seja uma coisa muito vigorosa incorporando o México. É preciso que não se sobrecarreguem as deficiências do lado brasileiro porque também as há do lado argentino, mas sempre digo que é preciso para compreender essas relações entre esses países não exageradamente assimétricos, mas um pouco assimétricos, olhar para exemplos históricos. O Brasil tem que pagar mais que a Argentina e os dois juntos mobilizarem a América do Sul. A América Latina não é uma entidade “operacionalizável”, mas ainda apenas cultural. Temos ainda a questão dos EUA, uma grande potência que nos últimos tempos agiu muito unilateralmente. Ao se consolidar essa aliança argentino-brasileira e a mobilização a partir dessa aliança do sistema sul-americano e vagamente do sistema latino-americano, nós contribuiremos para assegurar espaço para uma relação mais multilateral nas relações internacionais. Daremos oportunidade ao setor dinâmico da Europa e da Rússia de se manifestar mais claramente. Logo, o protagonismo brasileiro é mobilizador de um sistema multilateral. Obama é uma grande promessa, de modo que os EUA nunca tiveram uma posição internacional mais favorável do n

14

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

que agora. Colaborar com o presidente americano é o que importa fazer. n Vamos falar de política. O senhor é um defensor da necessidade de uma reforma no sistema político... — A democracia, operacionalmente, é uma“partidocracia”: depende da existência de partidos coerentes, homogêneos, definidos, dotados de projetos e de identidade própria. O ideal, evidentemente, é um regime bipartidário, ou com três partidos, mas com muitos as coisas não funcionam. O problema brasileiro, como o da Itália, é o de excesso de partidos. Isso tem que ser minorado através de um processo em que certos partidos deixem de existir e seus membros se incorporem em partidos de maior significação e que, dentro do regime multipartidário, se crie uma polaridade entre partidos com uma orientação “A” e os de orientação “B”. Há no Brasil essa tendência: existe certo grupo de partidos que querem maximizar a fórmula neoliberal e outros com tendência a maximizar a fórmula que chamo de socioliberal. O liberalismo social tende a prevalecer no Brasil sobre o puro liberalismo clássico e isso me parece uma coisa muito positiva.

O senhor coloca uma coisa muito bem relacionada que é essa distância que existe entre o eleitor e o eleito. — É óbvia a necessidade de introduzirmos no Brasil o regime distrital misto, ou seja, o país é dividido em número de distritos relativamente pequenos constituindo um eleitorado que seria supostamente mais homogêneo e, portanto, cada distrito elege um representante que seria representativo de uma maioria nacional pela soma dos distritos. Por outro lado, sou favorável ao regime distrital misto, ou seja, que as eleições não sejam exclusivamente distritais, mas se abra, digamos, uma porcentagem de 20% dos cargos para lideranças nacionais, porque tem algumas personalidades muito importantes que não têm nenhum distrito propriamente a favor delas. O regime distrital misto, em que 80% das cadeiras sejam preenchidas “distritalmente” e 20% nacionalmente, parece-me um regime muito favorável. n

Qual a sua visão sobre o presidencialismo? — Seria desejável que o Brasil transitasse do presidencialismo para o parlamentarismo, mas para que este funcione são necessárias condições prévias: é preciso um nível de educação política um pou-

co superior ao que nós temos e que os partidos sejam idealmente reduzidos a dois, já que a multiplicidade partidária conspira contra o bom funcionamento do regime parlamentarista. O Brasil não teria condições de adotar imediatamente o regime parlamentar. Quando houve esse recente plebiscito a respeito disso, eu votei contra – não porque eu seja contra, mas acho que ele não seja aplicável nas condições atuais. E quais são os requisitos para que o parlamentarismo seja viável? O principal, evidentemente, é a ampliação da educação política da população. A margem de consciência política brasileira ainda é restrita talvez a 1/3 da população – 1/3 é completamente alienado e outro 1/3 está mais para “baixo” do que para “cima”. Temos ainda um longo caminho a percorrer para a mobilização da grande maioria da população brasileira a um nível satisfatório de consciência política, de consciência pública. Por outro lado, na medida em que se progrida na dimensão da consciência pública, da consciência política, tenderá a se reduzir o número de partidos, porque a consciência política conduz naturalmente a uma bifurcação entre partidos que querem modificações substantivas e partidos que querem a preservação do regime atual. Mas a educação política brasileira está melhorando muito: o brasileiro tem mais consciência política hoje do que há 20 anos. Por isso o senhor defende uma união entre PT e PSDB? — Essa junção é desejável, mas não é indispensável, porque há duas alternativas: ou se forma no país uma consciên­cia conducente a certo bipolarismo (e nesse caso poderá ser representado pelo PSDB e pelo PT, o que condenará o PSDB a uma posição conservadora) ou então as forças conservadoras adquirem uma certa consistência (PL e esses partidos da frente liberal) e a união do PT e do PSDB se torna necessária. Ou seja, a relação PSDB-PT depende da evolução do eleitorado e da opinião pública. Se o eleitorado fortalecer os partidos, como os partidos da união democrática, a fusão PSDB-PT se tornará algo necessário e possível – ou o contrário, a bifurcação entre o PT e o PSDB leva o PSDB a ter que ter uma função mais conservadora. n

n

Qual o partido do futuro no Brasil? — Bom, eu tenho do PMDB uma opinião muito ruim, porque ele se tornou um partido de clientela: não tem projeto, não tem programa, não tem identidade própria. É um partido de recolher migan


lhas eleitorais em todo território nacional e juntar essas migalhas, o que dá um resultado positivo, porque a educação política brasileira ainda é insuficiente. O voto do PMDB é um voto clientelístico; na medida em que ele prospera, vemos que aquela clientela continua muito poderosa. Mas eu acho que a tendência é no sentido da redução da importância da política de clientela e por isso eu acho que em longo prazo o PMDB não tem futuro. Quem tem futuro é o PT e o PSDB. O que significa que o PSDB vai ser um partido conservador progressista e o PT um partido progressista moderado. n O PT mudou após chegar ao poder? — É difícil analisar separando o partido de Lula. O que seria do PT sem Lula, qual seria a tendência do PT? É difícil prever, não? Eu não tenho a impressão de que o PT tenha se consolidado de uma maneira programática satisfatória. É mais um partido de “enlaces”, “vanguardeiros”, independentemente de consistência programática. E o problema está exatamente nisso, a necessidade da consciência programática. Enquanto o PSDB é um partido que tem uma boa consciência programática e conseguiu uma coisa muito interessante, que seria um partido de centro-esquerda. É um partido que não é reacionário, não é conservador, mas também não é aventureiro. Um partido de moderado desenvolvimento social e econômico, o que é altamente desejável. Lula percebeu o erro de entregar tanto poder aos sindicalistas. Percebeu e motivou deliberadamente uma mudança no quadro de poder. Por isso não vejo candidato do PT capaz de exercer o papel semelhante ao que Lula tem e vejo, por outro lado, a probabilidade de que o PSDB seja o vencedor das eleições. Possivelmente com o governador de São Paulo, José Serra. É o candidato mais provável – e será uma experiência muito interessante, embora eu manifeste veementes votos para que se consolide a saúde de Dilma, uma figura muito positiva. Mas, doente, ela não poderá exercer o papel. A boa saúde de Dilma é hoje quase uma prioridade nacional: ela com saúde e o PT são coisas positivas para o futuro. n E como será 2010 para o PSDB? — Há, a meu ver, um consenso entre os analistas e entre os líderes partidários no sentido de que o Serra venha a ser o futuro candidato do PSDB. É um homem de muito boa qualidade, que vejo com bons olhos. O PSDB tem a vantagem de ser um partido que tem lideranças de

Há uma falha no processo brasileiro, que é o fato de que a política não está mobilizando pessoas adequadas, mas sim oportunistas

agravamento ou, o contrário, de uma melhora. O problema da crise ética tem muito a ver com cultura. Os países de cultura católica têm tendência à crise ética. Os países de cultura protestante têm tendência a uma afirmação ética mais nítida, porque o protestantismo é uma opção ética, e não ideológica, e o catolicismo é uma opção ideológica, e não ética. Aí entra uma formação de base que será permanente; católico ou não na prática, o Brasil será sempre católico na cultura e nessa medida haverá sempre um problema ético, que é típico das culturas católicas. Situações como o descrédito do Congresso e dos políticos não podem ser modificadas por gritas da opinião pública, mas apenas pela reforma do processo político. Nós tivemos capacidade de formar uma competente elite empresarial, uma razoável elite cultural e não tivemos capacidade de formar uma boa elite política. Então há uma falha no processo brasileiro, que é o fato de que a política não está mobilizando pessoas adequadas, mas sim oportunistas. Como cortar esse ciclo? — No curto prazo há formas de melhorar que dependem da política, da emergência de lideranças políticas competentes e honestas. Isso está fazendo falta, mas eu creio que há promessas de que na sucessão de Lula surja uma liderança política competente e honesta. Vejo com muito bons olhos a emergência de dois importantes líderes dentro do PSDB, Serra e Aécio, ambos com grandes estados atrás deles. n

muito boa qualidade, basta salientar as duas principais, Serra e Aécio, que são figuras de muito boa qualidade. Eu estimaria que um governo Serra desse uma ampla oportunidade também para Aécio. Eventualmente dirigindo o Congresso em consonância com Serra. Seria a minha expectativa mais favorável.

O que esperar dessa liderança? — A possibilidade mobilizatória em sentido positivo numa liderança depende da medida em que ela não seja um estratagema de conservar e aumentar o seu poder, mas um projeto de mobilização nacional, um projeto nacional de desenvolvimento. Esse é o problema: na medida em que a liderança política seja por um nacionaldesenvolvimentismo ela conduzirá o país a rapidamente superar seus obstáculos. Se for apenas uma busca de poder, será mais um fator de estagnação. n

O Bolsa Família seria mantido num governo do PSDB? — O Lula deu a resposta para uma necessidade social. Como se pode reduzir a brecha social em países como o Brasil? Isso é meta através do Estado, que é o grande promotor do desenvolvimento social. O Bolsa Família é fundamental para reduzir o abismo entre os participantes e os não participantes, os cidadãos ativos e os passivos. Agora, se a ideia do Bolsa Família é absolutamente correta, bem como a sua ampliação, a escolha dos beneficiários depende um pouco de uma política que nem sempre é muito correta. Mas isso é inevitável. n

O senhor, aliás, afirma que os grandes problemas do Brasil são fruto de uma crise ética. — Esse é um problema muito complicado porque tem raízes estruturais e circunstâncias ocasionadoras de um n

Se voltarmos a nos falar em cinco anos, acredita que estará mais feliz com o Brasil? — Creio que sim, se as coisas seguirem o rumo e se eu estiver vivo aos 91 anos... [risos] Sou muito otimista em relação ao Brasil porque acho que a marcha inercial brasileira é vagarosamente na boa direção. Vamos melhorando gradualmente. Somos um país “autoperfeccionista” no longo prazo: vagarosos, mas constantes. n n

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

15


capa

Coração reconectado Equipe do Instituto do Coração identifica possível marcador genético da durabilidade da ponte de safena Ricard o Zorzet to | ilustrações Marcos Garuti

N

o laboratório do 10º andar do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, de onde se tem uma vista privilegiada da capital paulista, a equipe do médico José Eduardo Krieger começa a desvendar as origens de um fenômeno que limita a cerca de uma década a durabilidade de parte das pontes de safena: o entupimento, ainda que parcial, do implante de segmentos dessa veia retirada da perna usado para restabelecer o suprimento de sangue do coração, reduzido pelo acúmulo de placas de gordura no interior das artérias que o irrigam. Em uma série de experimentos com ratos e vasos sanguíneos humanos, o grupo do InCor vem descobrindo como fatores físicos alteram a programação das células de veias submetidas às condições de funcionamento das artérias. Essa reprogramação pode causar o espessamento excessivo da veia e o bloqueio da ponte alguns anos depois da cirurgia de revascularização do coração. Essa busca já resultou na identificação de várias proteínas envolvidas no espessamento dos implantes, duas delas caracterizadas completamente. “Acreditamos que, com esse tipo de investigação, chegaremos a uma ou mais proteínas que poderão ser usadas como indicadores da durabilidade da ponte de safena ou como alvos para ampliar a eficiência do enxerto”, afirma Krieger. Ele espera em alguns anos produzir um teste genético capaz de predizer se o candidato à cirurgia apresenta tendência a desenvolver oclusão da safena e desenvolver tratamentos para minimizar o problema. “Estamos trabalhando para descobrir quando e como intervir”, diz.

16

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160


nononononononon

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

17


Direto no alvo

Criada em 1967 pelo médico argentino René Favaloro, a ponte de safena revolucionou a cirurgia cardíaca. Em uma longa operação na qual foi feito um corte de 30 centímetros no peito do paciente e as costelas foram afastadas, Favaloro conectou uma extremidade de um segmento da safena com quase um palmo de comprimento à artéria aorta e a outra extremidade à região do coração privada de sangue. Assim conseguiu fazer o sangue contornar o bloqueio e voltar a alimentar o músculo mais forte e resistente do corpo, que se contrai em média 100 mil vezes por dia enviando nutrientes e oxigênio para todos os tecidos do organismo. Nesses 42 anos esse procedimento foi aperfeiçoado e vem sendo repetido diariamente no mundo todo, prolongando a vida de milhões de pessoas – estima-se que a cada ano sejam feitas 47 mil cirurgias de revascularização cardíaca no Brasil e 450 mil nos Estados Unidos. ssa solução, porém, não é perfeita e muitas vezes paga-se um preço alto por fazer uma veia, vaso especializado no transporte de volumes pequenos de sangue sob baixa pressão, funcionar como artéria, com fluxo cerca de dez vezes maior e pressão mais de 20 vezes mais elevada. A mudança nas condições em que atua causa o espessamento exagerado da camada de células mais interna do vaso. Como consequência, as placas de gordura que em geral levam de quatro a cinco décadas para comprometer a passagem de sangue nas artérias do coração (coronárias) se formam bem mais rapidamente e obstruem cerca de 10% das pontes de safena em apenas dez anos, exigindo a rea­lização de uma nova cirurgia. Essa proporção de entupimentos, que já alcançou quase 50% até o início dos anos 1990 e diminuiu com as alterações na dieta e o uso de medicamentos para baixar o colesterol, ainda é considerada elevada. “Embora na maioria dos pacientes seja possível usar artérias como as mamárias para revascularizar o músculo cardíaco, a veia safena é uma opção muito adotada, por18

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

que exige um procedimento menos invasivo e a safena é um vaso extenso, que permite obter vários enxertos”, explica Luís Alberto Dallan, cirurgião do InCor que colabora com a equipe de Krieger. “Se resolvermos o problema de oclusão da ponte de safena, solucionaremos a principal questão da cirurgia cardiovascular.” Foi quase ao acaso que cinco anos atrás o grupo do InCor começou a investigar o espessamento das pontes de safena. Na época a biomédica Ayumi Miyakawa trabalhava com Krieger na identificação de genes acionados nas células da camada mais interna dos vasos sanguíneos – o endotélio – pela passagem do sangue. Assim como a água de um rio lambe suas margens como se quisesse arrastá-las com a corrente, o fluxo de sangue tenta levar consigo as células que recobrem internamente veias e artérias. Essa força física, conhecida como força de arrasto, ativa a maquinaria das células do endotélio e modifica a produção de uma proteína que controla o funcionamento do vaso e a pressão arterial, a enzima conversora de angiotensina. No Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular, Ayumi dispunha de um aparelho que simulava o arrasto, mas não estava satisfeita. Faltava representar uma segunda força a que estão submetidas as células dos vasos sanguíneos: a pressão que o sangue exerce contra a parede de veias e artérias, fazendo-os dilatar cada vez que o coração pulsa. Ayumi pediu à equipe de bioengenharia do InCor que a ajudasse a desenvolver um equipamento capaz de reproduzir as duas forças tanto de modo independente como simultâneo. Com o aparelho pronto, ela percebeu que poderia testar os enxertos de safena em condições semelhantes às que enfrentam quando implantados no coração. Tão logo o cirurgião termina a sutura e libera a passagem do sangue, o pedaço de veia que passa a trazer sangue rico em oxigênio da artéria aorta para o músculo cardíaco sofre um impacto brutal. Formada por três camadas delgadas de células, a veia, que antes transportava sangue rico em gás carbônico e suportava pressões va-


incor

1,5 cm

TAT-GFP

2 cm

segmento do vaso analisado

Artéria carótida de rato tratado com proteína geneticamente alterada para penetrar mais facilmente nas células (pontos brilhantes na imagem ao lado) e de roedor que recebeu versão normal da mesma proteína (à esquerda)

cateter

riando de 5 a 20 milímetros de mercúrio (mmHg), passa a trabalhar sob uma pressão 25 vezes maior (cerca de 120 mmHg) se quem recebeu o implante não for hipertenso. Já se sabia que, sob as novas condições, a veia se torna mais espessa depois de algum tempo. Mas não se conheciam quais fatores físicos nem quais genes disparavam essa transformação, que, exacerbada, pode ser danosa e prejudicar o funcionamento da ponte. urante quatro dias Ayumi cultivou segmentos de 2 centímetros de safenas de pessoas operadas por Dallan sob dois regimes de fluxo e pressão – o de veia, em que 5 mililitros de um composto rico em nutrientes e oxigênio atravessavam o vaso a cada minuto com pressão média de 5 mmHg, e o de artéria, com fluxo de 50 mililitros por minuto e pressão de 80 mmHg. Já no primeiro dia ocorreram transformações. As células de veias submetidas às condições de artéria começaram a apresentar sinais de apoptose (morte programada), enquanto as das veias mantidas sob baixa pressão e baixo fluxo se mantiveram vivas. Era um resultado interessante que despertava ainda mais a curiosidade. O que aconteceria com a ponte de safena depois de mais tempo? As mudanças observadas nessas condições artificiais seriam semelhantes às que ocorrem em seres vivos? Ante essas dúvidas, Ayumi e Krieger decidiram desenvolver um experimento que refletisse melhor o que acontece com safenas implantadas no coração humano. Como obviamente é muito complicado obter amostras dessas veias depois que a ponte está conectada ao coração e a pessoa deixou a sala de cirurgia, os pesquisadores bolaram uma operação em ratos na qual uma das artérias carótidas, que levam sangue do coração para a cabeça, é conectada a uma veia jugular, que drena o cérebro. Em seguida, acompanharam por até três meses as alterações apresentadas pelas jugulares mantidas sob o regime de alto fluxo e pressão elevada característico das artérias.

>

Os Projetos 1. Identificação de genes com expressão diferenciada em veia safena submetida ao regime arterial 2. Genes diferentemente expressos em modelo de arterialização de enxerto venoso no rato 3. Estudo da hipertensão arterial: caracterização molecular e funcional do sistema cardiovascular 4. Identificação e caracterização de genes ligados à arterialização do enxerto venoso humano

modalidades

1. Bolsa pós-doutorado (Ayumi Miyakawa) 2. Bolsa de doutorado (Thaiz Ferraz Borin) 3. Projeto Temático 4. Auxílio à pesquisa Co­or­de­na­dores

1, 2 e 4. José Eduardo Krieger InCor 3. Eduardo Moacyr Krieger - InCor investimento

1. R$ 195.776,52 (FAPESP) 2. R$ 98.222,52 (FAPESP) 3. R$ 6.111.202,31 (FAPESP) 4. R$ 50.000, 00 (CNPq)

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

19


Entre o primeiro e o terceiro dias houve um intenso aumento na taxa de morte de células da jugular dos roedores ligada à carótida. Depois da primeira semana, no entanto, a situação mudou: as células mortas passaram a ser substituídas por células musculares características das camadas mais externas dos vasos sanguíneos. Também começou a se formar o anel de fibras elásticas observado apenas em artérias, separando a primeira da segunda camada de células. “São sinais de que as veias estão tentando se adaptar às condições do novo ambiente”, explica Ayumi. O problema é que em muitos casos essa adaptação foge ao controle e, em vez de deixar a veia mais robusta, termina por entupi-la. Ao microscópio, Ayumi e Thaiz Borin notaram que a camada mais interna da jugular, em geral formada por uma fileira de células, tornara-se cem vezes mais espessa, enquanto as duas camadas mais externas, compostas por células musculares contráteis, haviam apenas dobrado. Nesse período de transformação celular o nível de atividade de alguns genes chamou a atenção de Krieger e Ayumi. Um deles é o que contém a receita da p21, uma das proteínas que inibe a reprodução celular. Uma semana depois que a carótida dos roedores havia sido conectada à jugular, o nível da p21 nas células da veia caiu para quase a metade do normal e continuou baixo até o final do experimento – sinal de que o gene havia sido desativado pela mudança de ambiente. Ao mesmo tempo, o gene responsável pela produção da proteína CRP3, em geral ativo apenas nas artérias, foi acionado logo após a jugular dos roedores passar a funcionar sob pressão elevada transportando grandes volumes de sangue – esse gene também apareceu ativo em safenas humanas submetidas à condição de artérias. Já no primeiro dia a CRP3, proteína componente da estrutura que dá forma às células, o citoesqueleto, passou a ser produzida na jugular em níveis semelhantes aos em que é encontrada nas artérias. Sua produção diminuiu um pouco depois do primeiro mês, mas permaneceu elevada durante todo o experimento. Aparentemente foi o aumento de pressão, e não o da força de arrasto, que acionou a maquinaria celular e estimulou a produção dessa proteína, relata Luciene Gastalho Campos em artigo publicado em abril deste ano na Cardiovascular Research. “Acreditamos que a produção dessa proteína seja importante para a remodelagem inicial das veias que têm de suportar o regime hemodinâmico das artérias porque reforça a estrutura celular”, diz Ayumi. utro gene que apareceu ativo além do normal tanto na jugular de roedores conectada à carótida quanto nas veias usadas em pontes de safena é o da interleucina-1 beta, proteína do sistema de defesa do organismo produzida em inflamações. Logo após a cirurgia, as células da jugular dos ratos passaram a fabricar cerca de 20 vezes mais interleucina-1 beta do que essa veia mantida sob pressão e fluxos baixos de sangue. “Esse ambiente favorece o desenvolvimento de aterosclerose [acúmulo de placas de gordura nas paredes dos vasos], que pode ser agravado quando as taxas de glicose e colesterol no sangue estão elevadas”, diz Ayumi. Durante os três meses do estudo os níveis dessa proteína se mantiveram cinco vezes superior ao normal. Ayumi mediu ainda a taxa de interleucina-1 beta em pontes de safena de pessoas que haviam morrido de outras causas na primeira semana


depois da cirurgia de revascularização do coração ou entre um e cinco anos mais tarde. Verificou níveis mais elevados dessa proteína inflamatória, em especial na primeira semana após a operação. Analisando o material genético desses indivíduos, ela e Krieger descobriram que os níveis mais elevados foram produzidos pelas pessoas que apresentavam uma alteração – a troca de uma única base nitrogenada, os tijolos da molécula de DNA – na posição -511 das duas cópias do gene da interleucina. Quem tinha um gene normal e um alterado fabricava níveis intermediários e pessoas com duas cópias saudáveis, níveis baixos de interleucina. “Por modularem o nível de interleucina em safenas humanas usadas na função de artérias, essas variantes talvez sirvam como um marcador genético da evolução da ponte de safena”, afirma Krieger. pesar desses resultados promissores, ainda serão necessários anos de trabalho até que se obtenha um teste genético capaz de indicar a durabilidade da ponte de safena. Enquanto avançam os experimentos para verificar a viabilidade do teste, a equipe do InCor pensa formas de controlar o funcionamento dos genes e prolongar os benefícios da cirurgia que usa a veia safena para substituir a função das coronárias doentes, problema que mata 7,2 milhões de pessoas por ano no mundo. Eles já demonstraram que ao menos uma delas funciona. Usando bactérias, a equipe de Krieger conseguiu fabricar uma versão recombinante da p27, proteína da família da p21 também capaz de frear a reprodução celular. Em um experimento feito em parceria com as equipes de Ana Maria de Oliveira e Leandra Ramalho, da USP de Ribeirão Preto, o grupo do InCor implantou ao redor da carótida de ratos um anel de silicone que liberava lentamente a proteína alterada para penetrar mais facilmente nas células. Duas semanas após a cirurgia a multiplicação celular foi menor na artéria dos animais tratados com p27 recombinante do que na daqueles que receberam uma proteína inócua, de acordo com os dados apresentados em artigo na Therapeutic Advances in Cardiovascular Disease. “Essa é uma estratégia de intervenção que se mostrou capaz de controlar a reprodução celular apenas na região em que ela precisava ser bloqueada”, conta Krieger. A equipe do InCor planeja ainda usar proteínas associadas a stents, uma espécie de mola implantada no interior do vaso sanguíneo para mantê-lo aberto, ou balões como os usados em cateterismo para, se necessário, estimular ou inibir a reprodução celular e aumentar a durabilidade das pontes de safena. n > Artigos científicos 1. CAMPOS, L.C. et al. Induction of CRP3/MLP expression during vein arterialization is dependent on stretch rather than shear stress. Cardiovascular Research. abr. 2009. 2.NEUKAMM, B. et al. Local TAT-p27Kip1 fusion protein inhibits cell proliferation in rat carotid arteries. Therapeutic Advances in Cardiovascular Disease. v. 2, p. 129-136. jun. 2008. 3. BORIN, T. F. et al. Apoptosis, cell proliferation and modulation of cyclin-dependent kinase inhibitor p21cip1 in vascular remodelling during vein arterialization in the rat. International Journal of Experimental Pathology. v. 90, p. 328-337. jun. 2009.

Pressão elevada e produção de altos níveis de proteínas ligadas à multiplicação celular favorecem o bloqueio de ponte de safena usada para restaurar o fluxo de sangue para o coração


>>

Estratégias MUNDO

> Empregos para pós-doutorandos

Corrida de obstáculos

Um relatório encomendado pela Comissão Europeia com­ parou os obstáculos encon­ trados em 33 países para a ascensão das mulheres na carreira científica. A situação revelou-se especialmente des­ favorável na Bulgária, Croácia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, França, Grécia, Hungria, Itália, Lituânia, Luxemburgo, Polônia, Portugal, República Checa e Turquia. Tais nações do velho continente emergem do do­ cumento O desafio de gênero no financiamento de pesquisa, como pouco ativas na criação de políticas capazes de ajudar as mulheres a se tornarem lí­ deres científicos. Entre os paí­ ses mais avançados nesse cam­ po destacaram-se a Finlândia, a Suécia e a Noruega, onde as mulheres compõem mais de 40% dos postos dos comitês de agências de pesquisa. Num pelotão intermediário há nações que tentam mudar suas políticas. A agência alemã DFG, por exemplo, estabeleceu a igualdade entre gêneros como um ob­ jetivo estatutário desde 2002. A participação feminina, porém, segue restrita. Entre 1999 e 2004 aumentou a proporção de mulheres atuando como revisoras de projetos na DFG. Mas os números são tímidos: elas eram 6%, agora são 9%. O documen­ to foi escrito por 17 especialistas, sendo 12 mulheres.

Sir John Maddox, morto aos 82 anos no dia 12 de abril, ajudou a moldar o moderno jornalismo científico. Diretor da revista britânica Nature em duas ocasiões, de 1966 a 1973 e de 1980 a 1995, Maddox resgatou o prestígio da publicação, célebre por anunciar descobertas importantes, como a da fissão nuclear, em 1938, e a da estrutura do DNA, 22

junho DE 2009

em 1953, mas que perdia espaço nos anos 1960 para a revista científica Science. Filho de um operário, Maddox formou-se em física, mas abraçou o jornalismo científico em meados dos anos 1950 contratado pelo jornal The Guardian. Na Nature, cercou-se de uma equipe jovem, reduziu os prazos de publicação, aproximando a revista da rotina dos jornais, saiu à procura de novidades nos grandes

PESQUISA FAPESP 160

divulgação

> O jornalista que renovou a Nature

laboratórios e exigiu que os artigos científicos fossem reescritos até se tornarem legíveis e interessantes. Impôs o peer review, a pré-aprovação dos artigos por pares, mas eventualmente abria mão da arbitragem para publicar temas polêmicos. Também ficou famoso pelas intervenções demolidoras contra o criacionismo e os exageros ambientalistas.

Maddox: reformador

O governo japonês vai lançar um programa de US$ 5 milhões voltado para financiar empresas que contratem pós-doutorandos. O objetivo, de acordo com a Nature, é reduzir os índices de desemprego entre esse tipo de profissional altamente qualificado. O número de postos acadêmicos disponíveis para eles vem encolhendo desde os anos 1990, graças a uma política de racionalização do sistema universitário. Em fevereiro de 2009 havia 17.827 pós-doutorandos desempregados registrados na Agência Japonesa de Ciência e Tecnologia (JST). A indústria do país costuma recrutar estudantes de graduação. A JST quer oferecer dotações a cerca de cem empresas que contratem os pós-doutorandos.

> Vai e vem austríaco O governo da Áustria voltou atrás na decisão de abandonar o Cern (Organização Europeia de Pesquisas Nucleares, na sigla em francês). No dia 8 de maio, o ministro da Ciência, Johannes Hahn, chegou a anunciar a saída do consórcio que mantém a iniciativa, após 50 anos de colaboração. O anúncio, feito a poucos meses do relançamento do LHC, o gigantesco acelerador


de partículas criado pelo centro de pesquisa, mobilizou os cientistas austríacos. “É um dia triste para a ciência austríaca”, protestou Christian Fabjan, chefe do Instituto de Física de Altas Energias, em Viena. Pressionado, o chanceler Werner Faymann anulou a decisão dez dias depois e anunciou que a participação da Áustria no Cern seguirá inalterada. A justificativa para a saída era a contenção de despesas. O Ministério da Ciência queria usar os recursos antes destinados ao Cern, de cerca de € 17 milhões por ano, o equivalente a 2% do orçamento do laboratório, para compensar a perda de gastos privados em pesquisa básica, além de investir em outras colaborações internacionais.

> Artigos fantasmas

A prisão na fronteira dos Estados Unidos de um pes­ quisador vindo do Canadá que portava 22 amostras não infecciosas do DNA do vírus Ebola levantou dúvidas sobre a segurança de laboratórios que guardam patógenos perigosos. Konan Michel Yao, 42 anos, nascido na Costa do Marfim e naturalizado canadense, resolveu procurar em­ prego nos Estados Unidos depois que expirou seu contrato no Laboratório Nacional Canadense de Microbiologia, em Winnipeg. Segundo a versão que apresentou à polícia, de­ cidiu levar as amostras para utilizá-las em pesquisas num futuro emprego. A agência de saúde pública canadense só soube do sumiço do material após a prisão. “Mas se tratava apenas de material genético, sem risco infeccioso”, disse Frank Plummer, diretor do laboratório, segundo o jornal canadense National Post. Segundo ele, Yao nunca teve acesso a patógenos perigosos, como os vírus da gripe suí­ na, do HIV ou do Ebola. Preso, Yao responderá a processo por contrabando e declaração falsa às autoridades.

num relatório em que pediam a renovação do financiamento à DFG, principal agência de pesquisa alemã. O centro, que estuda a estabilidade da floresta tropical da Indonésia, foi agraciado em 2000 com €16,6 milhões por nove anos. Após o escândalo, o pedido de € 8,6 milhões suplementares

para os próximos três anos foi retirado pelos pesquisadores, que pediram desculpas à DFG por fornecer informações falsas. O centro integra um programa da agência que financia mais de uma centena de projetos de pesquisa colaborativa em temas variados, pelo generoso prazo de 12 anos.

> Um polo no meio do golfo O Bahrain apresentou um conjunto de projetos para criar um polo de inovação. Uma das iniciativas, batizada de @bahrain, congregará um instituto de pesquisa, um parque tecnológico e uma espécie de museu interativo de tecnologia, espalhados por uma área de 1 milhão de metros quadrados. Também será construída uma cidade da educação superior, que abrigará um consórcio de universidades da Alemanha, França, Itália e Suécia e poderá receber cerca de 20 mil estudantes em áreas como negócios, engenharia, artes e humanidades. Pequena ilha no golfo Pérsico com 700 mil habitantes, o Bahrain segue o exemplo de países como o Qatar e os Emirados Árabes, que criaram polos universitários em convênio com instituições estrangeiras.

Ilustrações laurabeatriz

Dezesseis membros de um centro de pesquisa interdisciplinar sediado na Universidade de Göttingen, da Alemanha, estão sendo investigados por suspeita de fraude. Segundo o site da revista Der Spiegel, a universidade fez uma investigação preliminar e constatou que pesquisadores do centro declararam artigos científicos inexistentes

DNA do Ebola no carro

PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

23


>>

Estratégias MUNDO

> Dinheiro inesperado Os cientistas australianos comemoram um inesperado aumento de 25% nos gastos de pesquisa e educação do próximo ano. O orçamento de 2009/2010, apresentado ao Parlamento do país no início de maio, prevê a criação de fundos para renovar os laboratórios das universidades e incentivos fiscais para que o setor privado invista em pesquisa e desenvolvimento. As novas medidas contemplam recursos de US$ 4,3 bilhões 24

junho DE 2009

nos próximos quatro anos. “Isso mostra o compromisso de usar a pesquisa como motor da recuperação da crise financeira mundial”, disse Ken Baldwin, presidente da Federação Australiana de Sociedades Científicas e Tecnológicas, de acordo com a TV pública ABC. Pesquisadores da área ambiental, contudo, criticaram a divisão do bolo, que estabelece investimentos em tecnologias limpas num nível tido como insuficiente. “Faltam políticas para desenvolver energias renováveis em larga escala”,

PESQUISA FAPESP 160

laurabeatriz

Resistência em queda

A África do Sul obteve sucesso em experiências controla­ das com uma variedade de milho transgênico resistente a um vírus, que pode se tornar a primeira espécie genetica­ mente modificada desenvol­ vida no continente africano. O êxito está servindo para quebrar resistências dos go­ vernos e agricultores contra a tecnologia, segundo artigo pu­ blicado na revista Newsweek. Os africanos têm sido hostis aos transgênicos, inspirados, em boa medida, pela oposição europeia à tecnologia. Mas o temor de que as mudanças cli­ máticas causem problemas de abastecimento começa a suavizar atitudes. "Os fazendeiros e os cidadãos em geral dizem que não querem transgênicos, mas também dizem que querem plantas resistentes a vírus”, diz Rikus Kloppers, pesquisador da empresa de sementes sul­-africana Pannar, que integra o grupo de pesquisa do milho geneticamente modificado. "Quando eu digo que somos uma empresa sul-africana, o preconceito diminui ainda mais.” Além da África do Sul, outros cinco países do continente – Burkina Faso, Egito, Quênia, Gana e Uganda – investem em pesquisas sobre plantas transgênicas.

disse Mark Diesendorf, da Universidade New South Wales, em Sydney. Maior exportador de carvão do planeta, a Austrália só ratificou o Protocolo de Kioto em 2007.

> Crítico punido A demissão de um cientista venezuelano recolocou a discussão sobre os limites da liberdade acadêmica no país. O biólogo Jaime Requena, professor da Fundação Instituto de Estudos Avançados da Venezuela (Idea), foi demitido pelo diretor do órgão, Prudencio Chacón. Requena, que tem 40 anos de carreira e foi diretor do Idea nos anos 1980, diz que um trabalho de sua autoria e suas críticas ao governo Hugo Chávez motivaram a demissão. Recentemente, o biólogo trabalhou na análise da

produção científica venezuelana, avaliando a publicação de artigos em periódicos nacionais e internacionais. Concluiu que a produtividade é a menor dos últimos 25 anos. Em janeiro de 2008 ele já havia escrito uma carta, publicada na revista Nature, em que denunciava a falência do financiamento público para projetos científicos na Venezuela. Oficialmente, Requena foi demitido por conflito de interesses: teria recomendado a compra pelo Idea de um software desenvolvido por uma universidade privada na qual também leciona. Luis Carbonell, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Associação Venezuelana para o Avanço da Ciência, disse à agência SciDev.Net que o episódio é emblemático do cerco do governo à independência dos pesquisadores.


>>

Estratégias brasil

> A FAPESP e a cidadania O presidente da FAPESP, Celso Lafer, foi um dos vencedores da 17ª edição do Prêmio PNBE de Cidadania, oferecido pelo Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE) aos “cidadãos e entidades que praticaram ações significativas e que são

exemplos nacionais de comportamento cidadão”. A premiação, que ocorreu na noite de 25 de maio em São Paulo, tem como base o Projeto Brasil 2022 “Do Brasil que temos para o Brasil que queremos”, lançado em 2003 pela entidade. Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), membro das

academias brasileiras de Ciências (ABC) e de Letras (ABL), empresário, ex-ministro das Relações Exteriores (em 1992 e de 2001 a 2002) e do Desenvolvimento (1999), Lafer foi homenageado na categoria Empresário Empreendedor, na condição de presidente da FAPESP, cargo que assumiu em agosto de 2007. Ele ressaltou os reflexos do trabalho da Fundação na promoção da cidadania. “A FAPESP desempenha um papel fundamental na formação de recursos humanos, oferecendo bolsas desde a iniciação científica até pós-doutorado. Essas pessoas que se qualificam com as bolsas da FAPESP passam a ser pessoas que podem, pelo seu conhecimento, contribuir para o desenvolvimento

Milton Michida

Espaço para a ciência

O Instituto Butantan inaugurou um novo Centro de Difusão Científica. Dois pavilhões de arquitetura da década de 1930 foram transformados em áreas de exposição – sendo uma o antigo paiol de madeira e o outro a antiga marcenaria, que agora abriga, além de uma cafeteria, uma livraria e um cinema voltados exclusivamente para a ciência. “O objetivo é despertar o interesse de crianças, jovens e adultos para o mundo da ciência”, disse o diretor da instituição, Otavio Azevedo Mercadante. A restauração do local, ao custo de R$ 1,49 milhão, foi resultado de uma parceria que envolveu, além do Instituto Butantan, a Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e a organização social civil de interesse público AmaBrasil. A concepção do projeto teve como objetivo preservar o patrimônio e valorizar as características originais do edifício e do paiol, reforçando as estruturas de madeira e a recuperação do subsolo. O projeto inclui a Sala BNDES de Cinema, com 70 lugares, adaptada para receber crianças, adultos, idosos e deficientes físicos e dedicada à projeção de filmes científicos com narrativas que possibilitem o entendimento de todos os públicos. O Centro de Difusão Científica funciona na sede do Butantan na zona Oeste de São Paulo (Av. Vital Brasil, 1500), de terça-feira a domingo, O Centro de Difusão do Butantan: pavilhões reformados das 9h às 16h30.

e para a responsabilidade social e política no nosso estado e no nosso país”, afirmou, ressaltando outras duas dimensões importantes das atividades da FAPESP. Uma delas é o apoio à pesquisa. “O conhecimento e a inovação são meios pelos quais ampliamos essa capacidade e, dessa forma, alargamos o horizonte da cidadania”, afirmou. A segunda são os programas estruturados que a Fundação lançou, como o Genoma-FAPESP, o de bioenergia (Bioen), o da biodiversidade paulista (Biota) e o de mudanças climáticas. “Tais programas cumprem um papel social relevante, pois o conhecimento que produzem servem e servirão de subsídio na formulação de políticas públicas”, disse Celso Lafer.

PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

25


Estratégias brasil

alesp

>>

Cerrado: fragmentação

> Clonagem na berlinda A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara Federal rejeitou no dia 20 de maio um projeto de lei, de autoria do deputado Carlos Willian (PTC-MG), que propunha a proibição da clonagem de animais. O relator da proposta, o deputado Nelson Proença (PPS-RS), propôs a rejeição, com o argumento de que a clonagem de animais, realizada com fins científicos, traz benefícios para a humanidade. Proença citou como exemplos a produção de linhagens mais produtivas de gado, a partir de clones de um modelo selecionado, e o uso de animais geneticamente modificados para testar novas terapias contra 26

junho DE 2009

A Assembleia LegislaProteção ao tiva do Estado de São Cerrado paulista Paulo aprovou a Lei de Proteção ao Cerrado, a primeira criada por uma unidade da federação para este tipo de bioma. Com isso, passam a vigorar em São Paulo critérios mais severos que o do Código Florestal Brasileiro no que diz respeito à utilização e preservação do Cerrado, como a proibição, por exemplo, a qualquer tipo de intervenção em áreas de Cerradão, em que a vegetação cobre mais de 90% do solo. O bioma era responsável por 14% do território paulista – hoje esse índice caiu para 0,84%. “A lei é uma excelente iniciativa”, diz Carlos Alfredo Joly, professor da Unicamp e coordenador do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo (Biota-FAPESP). “Além de ser muito pouco, o que resta está altamente fragmentado em mais de 8.500 pequenos remanescentes que, em sua maioria, já perderam a capacidade de conservar a fauna de grandes mamíferos, como o tamanduá-bandeira, o veado-campeiro e o lobo-guará”, afirma. A informação técnica sobre a composição florística e status de conservação dos remanescentes de Cerrado paulista foi gerada pelo Inventário Florestal da Vegetação Nativa do Estado, feito pelo Instituto Florestal (IF) em parceria com o Programa Biota-FAPESP, e os resultados do Projeto Temático Viabilidade de conservação dos remanescentes de Cerrado do estado de São Paulo, coordenado pelas pesquisadoras Marisa Bittencourt, da USP, e Giselda Durigan, do IF.

doenças ou para sintetizar compostos usados em medicamentos. “A clonagem é uma tecnologia sensível e estratégica. Nós não podemos simplesmente abrir mão de dominá-la”, disse Proença. O projeto mudaria a Lei de Biossegurança (11.105/05), que só faz restrições à clonagem humana. A proposta já havia sido rejeitada na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, e ainda será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

PESQUISA FAPESP 160

> Unesp firma convênio A Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Banco Santander assinaram um convênio para financiamento de programas de ensino, pesquisa e extensão. Os recursos previstos são de R$ 12 milhões. De acordo com o reitor da Unesp, Herman Voorwald, que também é membro do conselho superior da FAPESP, as ações priorizadas no acordo são coerentes com o plano de desenvolvimento

institucional da universidade, que tem o objetivo de colocar a Unesp “entre as 200 melhores do mundo”. O programa Santander Universidades oferece bolsas de estudo a alunos de baixa renda, bolsas de pós-doutorado para docentes no exterior e para a mobilidade estudantil em universidades portuguesas e de outros estados brasileiros, além da doação de 4 mil financiamentos para o ensino, a distância, da língua espanhola. Outra iniciativa é o apoio financeiro às 44 empresas juniores da Unesp. Entre os projetos previstos no acordo está a Exposição China, a ser organizada pelo Instituto Confúcio, com sede na Unesp na capital paulista. A mostra tem por finalidade aproximar os brasileiros da cultura e da língua chinesa. As relações entre Brasil e China também são foco do programa Top 5 to China, em que estudantes e professores farão curso de verão na Universidade de Xangai Jiao Tong.


pesquisa: tecnologia para o ambiente, saneamento e construção; tecnologia para a informação, comunicação e instrumentação; e tecnologia para fenômenos e sistemas complexos.

> CPDOC chega a São Paulo Criado em 1973 no Rio de Janeiro, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, abriu recentemente uma coordenação em São Paulo,

liderada pela historiadora Letícia Nedel, que trabalha há três anos na instituição. “A iniciativa é consequência do aumento de nossas atividades do centro na capital paulista”, diz Celso Castro, diretor do CPDOC. Ele cita a participação de cursos de pós-graduação lato sensu em conjunto com a Escola de Economia da FGV de São Paulo, em Bens Culturais e em Cinema Documentário, e o projeto intitulado “Trajetória e pensamento das elites empresariais paulistas”, que envolve a criação de

Etanol: cotações em todo o Brasil

um acervo de entrevistas filmadas. “Trata-se da mesma instituição, com os mesmos padrões e objetivos, apenas operando nos dois lugares”, diz Castro. Além de ministrar cursos em história e ciências sociais, o CPDOC abriga o mais importante acervo de arquivos pessoais de homens públicos do país, num total de 1,8 milhão de documentos. Entre eles destacam-se os dos presidentes Getúlio Vargas, João Goulart e Ernesto Geisel, todos disponíveis para consulta on-line no endereço <www.fgv.br/cpdoc>.

laurabeatriz

O Conselho Universitário da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou a transformação do Centro Superior de Educação Tecnológica (Ceset) em unidade de ensino e pesquisa, que passará a se chamar Faculdade de Tecnologia. A criação da nova unidade não afetará a estrutura curricular em andamento, formada por quatro cursos de graduação e um de pós-graduação. Localizado em Limeira, o Ceset tem 1,5 mil alunos, 71 professores e 38 funcionários. O Ceset foi criado em novembro de 1988 para incorporar os cursos de graduação de tecnologia, inicialmente vinculados à Faculdade de Engenharia Civil de Limeira. Atualmente conta com cursos em período integral em tecnologia em telecomunicações, tecnologia em informática e tecnologia em saneamento ambiental e também oferece cursos noturnos. Em 2009 o Ceset iniciou a implantação do seu primeiro curso de pós-graduação, o Mestrado em Tecnologia, que engloba três linhas de

Uma ferramenta disponível no Onde o álcool site www.prunter.com informa é mais barato o preço do álcool em postos de combustível de todo o Brasil. As cotações são as mesmas divulgadas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) e às vezes têm alguma defasagem, mas a ideia é que sejam atualizadas mais amiúde pelos próprios usuários do serviço, que é gratuito. O site apresenta os postos distribuídos em mapas de ruas de cada cidade. O ícone de cada posto pode receber a cor vermelha, se já tiver sido autuado pela ANP, ou azul, se for isento de autuações. Um clique nos ícones vermelhos também informa o número de autuações recebidas. “Resolvi criar a ferramenta quando soube pelos jornais que o posto em que eu costumava abastecer havia sido autuado por adulteração”, afirma o economista Dino Marchiori, um dos sócios da empresa de engenharia de software que desenvolveu a ferramenta. “Descobrimos que havia muita informação disponível, mas faltava divulgá-la de uma maneira visualmente atraente.”

eduardo cesar

> De centro a faculdade

PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

27


>

política científica e tecnológica Avaliação

Muito calor,

pouca luz Viés na interpretação de dados levanta debate sobre os atores envolvidos no aumento da produção científica brasileira Fabrício Marques | ilustração Braz

A

produção científica do Brasil avança numa velocidade consistente desde os anos 1980, mas o anúncio do cres­ cimento registrado no ano passado, feito pelo ministro da Educação, Fer­ nando Haddad, acabou produzindo muito calor e pouca luz. Num evento na Academia Brasileira de Ciências, no Rio, no dia 5 de maio, Haddad divulgou que o número de artigos indexados teria subido espetaculares 56% no ano. “Estamos vivendo um momento em que foi possível aumentar em mais de 50% a produção brasileira. Isso aconteceu graças ao trabalho do MEC e do Ministério da Ciência e Tecnologia”, disse o ministro, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Os números, muito superiores aos obtidos até pela China, cuja produção cien­ tífica é a que mais cresce no planeta, causaram perplexidade – e os especialistas de cienciome­ tria, disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência, foram os primeiros a buscar entender os núme­ ros do ministro. Na verdade, o aumento de 56% não espelhava o avanço da produção, mas, sim, era um refle­ xo do crescimento do número de publicações brasileiras na base Web of Science, da empresa Thomson Reuters. Em 2006 elas eram 26. Essa quantidade passou para 63 em 2007 e para 103 em 2008. Uma análise em outras bases de dados, às quais o MEC também tem acesso, mostrou índices de crescimento igualmente importantes, mas muito aquém dos 56%. O Science Citation Index, também pertencente à Thomson Reuters, mas que não sofreu variações metodológicas sig­ nificantes, apontou um crescimento de 15% no número de artigos científicos em 2008. Já a base

28

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

de dados Scopus, concorrente do Institute for Scientific Information (ISI) e mantida pela edi­ tora Elsevier, contabilizou respeitáveis, porém mais realistas, 8,9%. Em artigo publicado no dia 12 de maio na Folha de S. Paulo, o professor de química Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO, trouxe a público a gênese da interpretação exagerada dos dados: o que cresceu foi a visibilidade da pesquisa brasileira, impul­ sionada pela inclusão de periódicos científicos nacionais, que tiveram a qualidade reconhecida pela Thomson Reuters. Meneghini registrou, em oposição ao anúncio feito pelo ministro, que esse avanço se deveu a um setor no qual o governo federal “investe de forma absolutamente inexpres­ siva”, pois apenas 0,4% dos orçamentos da Coor­ denação de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educa­ ção, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o equivalente a R$ 10 milhões em 2008, foram destinados a cerca de 240 revistas nacionais. “A única iniciativa brasileira para melhorar as suas revistas, além da dedicação dos editores, é o programa SciELO”, escreveu Meneghini. “O SciELO exerce no Brasil um papel semelhante ao do ISI, o de indexar as melhores revistas brasileiras, selecionadas por critérios de qualidade, mas vai além, pois disponi­ biliza os artigos com textos completos em acesso aberto. Hoje são 205 revistas. É importante frisar que, das 103 revistas brasileiras indexadas no ISI, 81 estão na base SciELO. O orçamento executado do programa para 2009 é de R$ 2,5 milhões, 80% provenientes da FAPESP (recursos do estado de São Paulo) e 10% do CNPq (recursos federais)”, concluiu o professor.


PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

29


O crescimento da produção científica brasileira Número de artigos publicados em revistas indexadas na base Scopus

35

32.269

30 27.121

25 19.916

20 16.205

15

13.768

11.746

10 5 0 1998

2000

2002

2004

2006

2008 Fonte: elsevier

O imbróglio do anúncio não ofus­ ca o fato de que a produção científica brasileira cresce num ritmo auspicioso. “O crescimento é tão expressivo que ficou atrás apenas da China, que cres­ ceu 11% de 2007 para 2008. Ou seja, superamos o crescimento anual de paí­ ses com histórico de forte expansão co­ mo Índia, Coreia do Sul e Taiwan”, disse Eloisa Viggiani, gerente de produtos da editora Elsevier, responsável pela base Scopus. O SCImago Journal and Coun­ try Rank coloca o Brasil em 15º lugar no ranking de países com maior pro­ dução científica em 2007, num pelotão que reúne países com tradições aca­ dêmicas e populações bem diferentes, como Holanda e Rússia (ligeiramente à frente) e Taiwan, Suíça e Suécia (logo atrás). O índice é um projeto conjunto entre o grupo SCImago, formado por pesquisadores de quatro universidades espanholas, e a Elsevier, proprietária da base Scopus. No ranking da Web of Science de 2008, divulgado pelo MEC, o Brasil aparece na 13ª posição, já à frente da Holanda e da Rússia. Se a confusão gerada pelos núme­ ros teve um mérito, foi o de estimular a discussão sobre as razões do cresci­ mento. “Diversos são os motivos en­ volvidos no aumento ou na redução da produção científica de uma nação, re­ 30

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

gião, instituição e/ou de um indivíduo”, escreveu a cienciometrista Jacqueline Leta, professora da Universidade Fe­ deral do Rio de Janeiro (UFRJ), num artigo em que comentou os números. Citando um press release elaborado pela Capes, Jacqueline enumerou motivos como o investimento em recursos hu­ manos, por meio de bolsas, e o acesso dos pesquisadores e programas de pós­-graduação a periódicos internacionais. “Essas atribuições – que não são exclu­ sivas da Capes – têm sido fundamentais para o pleno andamento da atividade no país e vêm sendo decisivas há mais de uma década”, disse. Rankings - A contribuição de São

Paulo para a produção científica bra­ sileira é um dado fundamental para o debate. O estado, que produz a metade dos artigos científicos nacionais há três décadas, diferencia-se por abrigar três grandes universidades de pesquisa – duas delas, a USP e a Unicamp, são as únicas a figurar entre as 200 melhores do mundo em rankings internacionais – pelo volume de recursos investidos em ciência e tecnologia e também pela regularidade do investimento (ver quadro). A USP, com cerca de 2 mil dou­ tores formados por ano, e a Unicamp, com cerca de 900, fazem mais doutores

do que, individualmente, qualquer uni­ versidade norte-americana. A Unesp não fica muito atrás: em 2008 formou 765 doutores. Há um certo consenso de que o crescimento do sistema de pós-gra­ duação e da utilização de indicadores de produtividade internacionais para avaliá-los tem sido um motor impor­ tante desse avanço, mas as variáveis que determinam o crescimento são multifa­ cetadas e não se encaixam num sistema linear. Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química da USP e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências, afirma que o crescimento re­ cente dos investimentos federais não teve ainda um impacto mensurável na produção científica brasileira. Ele comparou as curvas de crescimento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno­ lógico (FNDCT) com as da produção científica e constatou que, até 2003, a produção científica crescia apesar da irregularidade do FNDCT. “As duas curvas caminharam descoladas e só co­ meçam a subir juntas a partir de 2003, diz Chaimovich. O professor chama a atenção pa­ ra outro fenômeno: o percentual de crescimento do número de doutores formados vem perdendo ritmo nos úl­ timos dois anos, mas a produção cientí­ fica não. Entre meados dos anos 1990 e 2003, a taxa média anual de crescimen­ to do número de doutores era de 16%. De 2003 em diante, essa taxa passou a crescer a um patamar bem menor, de 4% ao ano. Isso, contudo, não ar­ refeceu o vigor da produção científi­ ca. “Pode-se afirmar que, durante um bom tempo, o aumento do número de doutores impulsionou o crescimento, mas no estado de São Paulo isso está chegando a um limite, além do que a produtividade, já altíssima, não tem tanto para onde aumentar”, afirma. Segundo ele, uma hipótese provável para a manutenção do crescimento, principalmente no exemplo paulista, é o avanço no número não de doutores, mas de pós-doutores – um dado novo na evolução da pesquisa brasileira. n


A contribuição de São Paulo

Um em cada dois

Tecnologia dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, redes de excelência que seguem o modelo inaugurado, na década passada, pelos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), da FAPESP. “Em qualquer ranking das maiores universidades brasileiras, a USP e a Unicamp estão na frente. Concentram grande quantidade de programas de pós-graduação e boa parte deles é muito bem avaliada pela Capes. Vale registrar o aumento exressivo da produtividade da Unesp nos últimos anos”, afirma Pereira. Ele lembra que as universidades federais de São Paulo, como a Unifesp e a UFSCar, embora tenham uma contribuição de alta qualidade, ostentam uma produção em escala menor do que as estaduais. “A mais recente delas, a Federal do ABC, se abasteceu de docentes que, em sua maioria, foram formados nas estaduais”, diz. Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química da USP, destaca a situação peculiar das universidades estaduais paulistas em relação ao conjunto das universidades federais. “Já faz 20 anos que USP, Unicamp e Unesp tornaram-se autônomas. E elas tomaram a decisão de se converterem em universidades de pesquisa”, diz Chaimovich, lembrando um episódio que marcou profundamente a USP: a divulgação pela mídia, em 1988, de uma relação de professores sem produção acadêmica no período anterior, a chamada “lista dos improdutivos”. “A lista teve um efeito importante na universidade, que foi a consolidação da ideia de que a USP não podia ter gente que não produzisse conhecimento. Esse espírito permeou as universidades estaduais paulistas e a isso se somou a pressão da avaliação da Capes”, diz Chaimovich. O professor adverte que não pretende desprezar a contribuição federal à ciência paulista. “Mas somente com a ela São Paulo jamais manteria esse ritmo de inserção”, avalia. O professor diz que esse panorama pode mudar. “O peso relativo de São Paulo na pesquisa brasileira poderá diminuir se esse tipo de ambiente consolidar-se em outros estados e nas universidades federais. O Rio de Janeiro aumentou significativamente seus recursos para pesquisa. Seria ótimo se essa proporção mudasse, mas, a exemplo do que ocorreu em São Paulo, é preciso que o investimento seja regular para que seus efeitos sejam sentidos”, afirma.

Fonte: dados levantados no science citation index/thomson reuters

Dados do Science Citation Index mostram que, apesar do crescimento expressivo da produção científica nacional nos últimos 30 anos, uma variável manteve-se estável: São Paulo tem sido o responsável pela metade dos artigos publicados por pesquisadores brasileiros. Era assim em 1980, quando São Paulo foi responsável por 1.090 dos 2.215 artigos brasileiros. E continuava assim em 2008, quando 9.513 dos 18.783 artigos nacionais foram feitos em São Paulo. Há uma série de razões por trás desse fenômeno – nenhuma delas dá conta de explicá-lo sem a ajuda das outras. Dinheiro, sem dúvida, tem sido importante. Mas em São Paulo 70% do investimento público é feito com recursos estaduais, e somente 30% do dinheiro vem do governo federal. Da mesma forma, outras unidades da federação criaram suas fundações de amparo à pesquisa e engajaram-se com mais afinco na produção de conhecimento. Nem assim o peso proporcional de São Paulo sofreu algum tipo de abalo. “Há outros elementos tão ou mais importantes que o dinheiro, como universidades estaduais muito estáveis em São Paulo, uma política de qualificação num estágio bem mais avançado que o das universidades federais, além de um apreço pelos valores acadêmicos que está na institucionalidade das universidades e institutos de pesquisa paulistas”, afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “E até hoje as universidades federais não têm autonomia de verdade, diferentemente do que ocorre com as estaduais de São Paulo”, diz. De acordo com o físico Daniel Pereira, pró-reitor de Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 2004 e 2009, a dianteira paulista se deve a uma conjunção de fatores, que vão da regularidade do financiamento à pesquisa desde 1962, ano da fundação da FAPESP, à formação de recursos humanos muito qualificados concentrados nas universidades do estado. “A existência da FAPESP é um dado fundamental”, diz ele, referindo-se à parcela de 1% da receita tributária do estado de São Paulo investida regularmente em pesquisa. “A FAPESP influencia também pelas decisões de política científica que toma”, afirma o professor, citando como exemplo o recente lançamento pelo Ministério da Ciência e

Por que o estado produz a metade dos artigos brasileiros

Evolução da participação de São Paulo na produção científica brasileira (%)

60 50 40 30 20 10 0 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

31


>

Avaliação

A escala da discórdia Novos critérios do Sistema Qualis, da Capes, recebem críticas da comunidade científica

S

etores da comunidade científica receberam com críticas as mudanças no Sistema Qualis, ferramenta usada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para classificar os periódicos nos quais os programas de pós-graduação publicam sua produção científica. Enquanto o sistema de categorização anterior dividia os veículos segundo sua circulação (local, nacional e internacional) e a sua qualidade (A, B, C), a nova escala é formada por oito estratos (A1, A2, B1 a B5 e C). O estrato C tem peso zero. A avaliação da qualidade da produção passa a ser medida primordialmente pelo fator de impacto (FI) dos periódicos, independentemente do âmbito da sua circulação. O FI, utilizado como ferramenta de avaliação desde os anos 1960, busca medir o impacto científico de uma publicação levando em conta o índice de citação dos trabalhos publicados em outros artigos. O denominador comum das críticas vincula-se ao peso exagerado que o fator de impacto passa a ter na classificação da Capes e seus efeitos sobre publicações mal avaliadas – é previsível que elas passem a ser evitadas pelos pesquisadores e tenham ainda mais dificuldade em se consolidar. A reação mais contundente veio da área de química. Em novembro de 2008, o Fórum de Coordenadores de Pós-graduação em Química reuniu-se em Ribeirão Preto, interior paulista, com uma agenda que incluía a discussão da avaliação dos cursos. Após dois dias de debates, foi divulgada uma moção que considerou “inadequada” a nova classificação da Capes. Em sua primeira edição de 2009, a revista Química Nova, vinculada à Sociedade Brasileira de Química, reforçou a posição assumida pelo fórum. Um editorial assinado por dois dos pesquisadores da área mais produtivos do país, Fernando Galembeck, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Jailson Bittencourt de Andrade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao mesmo tempo que ressaltava a importância da avaliação expunha o descontentamento com a mudança no Qualis. De acordo com o editorial, a valorização excessiva da visibilidade e da inserção internacional dos periódicos, medida pelo FI, promove diferenciações artificiais entre

32

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

publicações de subáreas da disciplina. “Considerando-se uma área específica como a química, a comparabilidade entre os periódicos utilizando o fator de impacto (FI) incorre em sérios desvios. Por exemplo, o periódico Inorganic Chemistry dificilmente apresentará um FI maior do que Analytical Chemistry, o que não significa que não haja artigos de excelente qualidade nas duas disciplinas. Simplesmente a visibilidade das inovações metodológicas analíticas em outras disciplinas é maior do que a da química inorgânica”, escreveram Galembeck e Andrade. De acordo com Andrade, a Capes deveria sofisticar seu esquema de avaliação. “O sistema brasileiro de avaliação tem sido muito importante para elevar a qualidade da pós-graduação, sou inteiramente favorável a ele”, afirma o professor. “Mas o fator de impacto não é uma medida absoluta de qualidade. É preciso criar um sistema mais complexo, que dê um peso maior a outros indicadores, como, por exemplo, o destino dos egressos dos programas de pós-graduação. Há programas cujos doutores não conseguem depois ser aprovados em concursos de profes-


sores das universidades públicas. Esse indicador fala mais sobre a qualidade do que o número de papers publicados”, afirma. Limite – Lívio Amaral, diretor de ava-

liação da Capes, diz que a mudança foi necessária porque a escala adotada anteriormente perdera sua capacidade de discriminar os programas de pósgraduação. “Deve-se sempre enfatizar que a avaliação dos programas de pósgraduação considera um conjunto de indicadores e que o Qualis Periódicos aplica-se apenas a um deles, o que se refere à produção intelectual”, disse Amaral. Ele argumenta que a estratificação foi realizada por cada uma das 47 coordenações de áreas da Capes e que nem todas elas trabalham com FI. Também lembra que essa medida é atribuída por um conjunto de procedimentos independentes da agência. “Como sabemos, para que uma dada revista tenha um fator de impacto, ela deve ser indexada e analisada no ISIThomson. Uma vez atribuído um fator de impacto, ele é um e um só, seja no Brasil, seja em qualquer outro país no mundo”, afirmou.

O editorial da Química Nova repercutiu em outras das chamadas ciências duras. No Boletim da Sociedade Brasileira de Física, Silvio Salinas, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, endossou a crítica. “Francamente, acho que atingimos um limite perigoso, que coloca em risco o próprio conceito de avaliação. Por exemplo, o que significa classificar Physical Review D como A2 e Physical Review B como B1? Por acaso os particuleiros são melhores do que os solidistas?”, pergunta o professor. “Acho que está na hora de refletir sobre essa numerologia, que pouco a pouco se acentua em todas as áreas, impulsionada pelas facilidades da informática e por uma vaga ideia de globalização. Será que a numerologia vai mesmo substituir a avaliação dos pares?”, diz Salinas. O professor da USP toca num ponto-chave, que é a utilização cada vez mais recorrente de critérios bibliométricos como ferramentas de avaliação. Eles vêm substituindo sistemas mais complexos, como a avaliação por pares (peer review), na qual os membros de uma comunidade acadêmica mensuram a qualidade de um determinado trabalho, como faz a FAPESP na avaliação dos projetos de pesquisa que financia. A discussão é internacional. O Reino Unido, por exemplo, planeja a substituição de Research Assessment Exercise (RAE), que periodicamente avalia a qualidade da pesquisa de suas universidades e orienta a distribuição de recursos e é baseado primordial-

Condenação - Um grande risco embu-

tido na mudança do Qualis, dizem seus críticos, é a condenação de publicações importantes, mal avaliadas por razões que vão da periodicidade irregular à escassez de recursos. É razoável supor que elas sejam menos procuradas por pesquisadores de peso e mergulhem PeSQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

33

marcos garuti

mente em peer review. No lugar, deve surgir um sistema mais simples e barato, que utilizará mais crítérios bibliométricos como o fator de impacto, mas preservará uma boa dose de peer review (ver Pesquisa FAPESP nº 156). O formato do novo sistema ainda está em construção e inspira controvérsias na comunidade acadêmica britânica. No início do ano, editores de publicações internacionais da área de humanidades e ciências sociais lançaram um manifesto insurgindo-se contra uma proposta da União Europeia que buscava categorizá-las em três escalas segundo seu fator de impacto e disseminação. A ideia da escala acabou abandonada (ver Pesquisa FAPESP nº 157). Rogério Meneghini, que é coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil, explica que a utilização crescente de indicadores bibliométricos deve-se à necessidade de avaliar uma produção científica que cresce em ritmo veloz. “O fator de impacto é uma ferramenta adequada para avaliar a produção acadêmica de grupos de pós-graduação, pois mesmo desvios para cima ou para baixo que possam surgir na avaliação de cada pesquisador são compensados quando se vê o grupo inteiro”, afirma. Lívio Amaral, da Capes, acrescenta: “O uso do Qualis Periódicos é totalmente inadequado na avaliação de pesquisadores. Ele se destina à análise de programas de pós-graduação, e não de pesquisadores individualmente”.


num círculo vicioso de perda de prestígio. O zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues, professor do Instituto de Biociências da USP, dá exemplos em sua área. “Não posso aceitar a ideia de que publicações tradicionais e de alta penetração e respeito internacional como Arquivos do Museu Nacional, Boletim do Museu Nacional, Arquivos de Zoologia, Boletim do Museu Goeldi e algumas publicações novas com corpo editorial de alta qualidade venham listadas com B5, ao lado de panfletos e jornalecos de divulgação feitos por amadores”, disse Trefaut. Ele lembra que algumas dessas publicações não têm índice de impacto porque sua periodicidade é irregular, mas tiveram e mantêm uma importância significativa no desenvolvimento da ciência brasileira. A falta de periodicidade, ele explica, se deveu sobretudo à escassez de recursos, mas elas serviram para informar a comunidade internacional sobre avanços do conhecimento, como a descrição de novas espécies, uma etapa que já não existe mais nos países de Primeiro Mundo que já têm a fauna conhecida. “Trata-se de uma completa falta de visão da realidade da ciência brasileira. Não estamos no Primeiro Mundo. Se hoje temos excelentes bibliotecas zoológicas com coleções completas de periódicos estrangeiros no Museu de Zoologia da USP, foi graças à permuta que fizemos com as publicações internacionais, utilizando nossas revistas como moeda de troca. Isso e o elevado conceito que ainda têm revelam a importância que elas tiveram no avanço da ciência nacional. Vamos jogar isso no lixo?” A socióloga da ciência Lea Velho, professora da Universidade Estadual de Campinas, chama a atenção para o impacto que a perda de prestígio das publicações pode acarretar. “Na maioria dos campos do conhecimento há uma diversidade de paradigmas e publicações que os contemplam – um economista marxista não publica seus papers em periódicos de orientação neoclássica, por exemplo. O risco é tirar a voz de paradigmas minoritários e exigir que se publique tudo no chamado mainstream. Isso é uma loucura para a ciência”, afirma. Segundo a professora, as áreas multidisciplinares são especialmente afetadas pelos critérios da Capes. “Há um discurso segundo o qual a multidis34

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Prevê-se que publicações rebaixadas pelo Sistema Qualis sejam menos procuradas por pesquisadores de peso e mergulhem num círculo vicioso de perda de prestígio

ciplinaridade é o caminho a ser seguido, pois enfrenta os problemas da vida real. Mas os pesquisadores dessa área publicam em periódicos novos e pouco citados, porque suas comunidades são ainda pequenas e incipientes. O viés da Capes é notadamente disciplinar: quem quiser ser bem avaliado terá que publicar em áreas consolidadas”, afirma Lea Velho. Ela faz outra ressalva: pesquisas de interesse apenas regional também sairão perdendo. “Já há uma tendência na pesquisa agrícola de prestigiar temas de interesse internacional em detrimento da solução de problemas da agricultura nacional, que sempre foi a tônica do Brasil nessa área.” Falta de critério - Rogério Meneghini

faz uma crítica à falta de critério na política de avaliação da Capes. “A maioria dessas publicações contou nos últimos anos com apoios financeiros do governo federal, como os editais do CNPq. A mudança na avaliação prejudica esse investimento”, afirma. Segundo ele, o impacto alcançado por publicações de muitos países desenvolvidos se deve ao incentivo para que as publicações melhorem. Isso vem sendo feito no Brasil por meio da SciELO, financiada pela FAPESP, que

estimulou a adoção de normas rígidas de qualidade pelos periódicos e os tornou mais visíveis, graças a um sistema de acesso aberto. “As publicações da SciELO beneficiaram-se enormemente desse estímulo”, afirma Meneghini. Em carta enviada ao presidente da Capes, Jorge Guimarães, no final de maio, 78 pesquisadores de botânica e zoologia reclamaram do rebaixamento de periódicos de suas especialidades pelo novo Qualis, apesar dos esforços feitos para melhorar a sua qualidade. “Nesse sentido, apontamos como um caminho alternativo para as revistas nacionais o uso pela Capes do sistema SciELO, que vem avaliando e monitorando há anos o parque de revistas científicas brasileiras”, diz o manifesto, encaminhado à Capes por Rodney Ramiro Cavichioli, presidente da Sociedade Brasileira de Zoologia. Hussam Zaher, professor do Instituto de Biociên­cias da USP e um dos coordenadores do manifesto, diz que a Capes, ao adotar um sistema de avaliação que privilegia um parâmetro, acaba decidindo sozinha sobre uma seara que diz respeito a outros atores, caso, por exemplo, do Ministério da Ciên­cia e Tecnologia. “O cenário é muito complexo e não pode ser gerenciado de uma forma simplista. Não devemos rejeitar avaliações – o que pedimos é que o sistema seja bem pensado, bem articulado”, diz o professor, que é editor das revistas do Museu de Zoologia da USP. “Gostaria de ver um sistema que qualificasse nossas revistas e nos ajudasse a competir. Esse sistema vai levar à extinção de publicações. Não acho que seja salutar reduzir a possibilidade de expressão da comunidade científica brasileira”, afirmou. Mas há países, diz Rogério Meneghini, que seguem uma estratégia diferente. Ele cita exemplos como o da Suécia ou da Holanda, que pouco se preocupam com a manutenção de suas publicações, mas têm uma estratégia clara de cultivar editores nos comitês das publicações internacionais. “Quem está nesses comitês tem poder de decisão, e isso se traduz na aceitação dos bons artigos publicados no país. Mas o número de editores brasileiros em publicações internacionais ainda é muito pequeno”, afirma Meneghini. n

Fabrício Marques


>

Mudanças climáticas

Programa da FAPESP anuncia os projetos contemplados em sua primeira chamada de propostas

L

ançado em agosto de 2008, o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais anunciou em maio os resultados de sua primeira chamada de projetos. Foram selecionadas dez propostas, que envolvem temas vinculados às dimensões humanas das mudanças climáticas, a seus efeitos nos sistemas naturais e a estudos aplicados, sobretudo na área agrícola. “Trata-se de um excelente elenco de projetos, que representam de forma equilibrada as várias vertentes de pesquisa que queremos trilhar”, diz o meteorologista Carlos Nobre, coordenador do programa e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O programa, que terá duração de dez anos, é o maior e mais articulado esforço multidisciplinar já feito no Brasil para ampliar o conhecimento a respeito das mudanças climáticas globais. Serão investidos R$ 100 milhões nos próximos dez anos – ou cerca de R$ 10 milhões anuais – na articulação de estudos básicos e aplicados sobre as causas do aquecimento global e de seus impactos sobre a vida das pessoas. A ideia é lançar uma ou duas chamadas de propostas a cada ano, a ponto de ter um cardápio de 40 a 50 projetos nos próximos cinco anos. “Alguns temas que não apareceram nessa primeira chamada, como o impacto nos oceanos, certamente estarão presentes nas próximas. Não daria para esgotar todos os temas logo no primeiro conjunto de projetos”, explica Nobre. O programa, marcadamente interdisciplinar, busca estabelecer pontes entre ciências sociais e naturais, ambas essenciais para a compreensão do assunto.

Os recursos para as propostas contempladas são provenientes de uma parceria da FAPESP e do Ministério da Ciência e Tecnologia, por intermédio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Parte dos projetos busca entender os efeitos das mudanças climáticas nos sistemas naturais, como nas chuvas, na distribuição de aerossóis ou no ciclo de carbono de rios. Reynaldo Luiz Victória, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), do campus Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo em Piracicaba, lidera um grupo de pesquisadores que vão analisar o papel dos rios nos ciclos regionais de carbono. Seu projeto terá interface com um outro, coordenado por Humberto Ribeiro da Rocha, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, e voltado para quantificar os ciclos de carbono e da água em três biomas, a Floresta Amazônica, o Cerrado e a Mata Atlântica, e em dois agroecossistemas, as plantações de cana e de eucalipto. “Na Amazônia, em projetos anteriores, realizamos medições de campo em sítios experimentais, de forma local. Agora queremos fazê-las em escala maior, sobre toda a bacia”, diz Rocha. “Devemos analisar o que entra, o que sai ou fica de carbono na Amazônia, por meio de uma série de abordagens, como medições das concentrações dos gases estufa com sensores a bordo de aeronaves, em áreas de rios, em áreas de terra firme, utilizando uma combinação de modelos calibrados assimilando os dados de campo”, afirma. O outro foco será em mesoescala, por meio do estudo dos regimes hidrológicos de várias bacias, para investigar de que forma o uso da terra, incluindo tipo de vegetação e manejo, pode melhorar a oferta de água e sua qualidade. A meta é discernir como os prováveis efeitos do aquecimento global e das mudanças de uso da terra podem interferir na escassez de água, tanto para a captação como para a umidade do solo disponível para culturas agrícolas. Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, vai intensificar uma linha de investigação a que se dedica há bastante tempo: os efeitos no clima regional das partículas de aerossóis emitidas no Brasil. Os aerossóis podem ser formados naturalmente pelas florestas ou gerados e emitidos pela ação humana, como a queima de combustíveis fósseis ou o desmatamento – e tem influência sobre o clima, em fenômenos como o da formação de nuvens. O projeto terá como enfoque a Amazônia e o Pantanal. “Estudaremos as propriedades físicas e químicas das partículas e seus PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

35


efeitos no balanço de radiação atmosférica, seus efeitos nos mecanismos de formação e desenvolvimento de nuvens e os impactos no ciclo hidrológico”, diz Artaxo. Segundo ele, os dados serão levantados ao longo de dois anos por meio de estações de amostragem: uma próxima a Manaus, outra perto de Alta Floresta e Sinop, que são fronteiras de desmatamento, e uma terceira no Pantanal. “Vamos medir com detalhes inéditos as propriedades ópticas e radiativas das partículas de aerossóis e seus efeitos na formação de nuvens”, afirma o pesquisador. O estudo terá um componente de sensoriamento remoto, com a análise por satélite da distribuição de partículas no Brasil, e buscará desenvolver modelos avançados que contemplem os efeitos dessas partículas nas mudanças climáticas no país. “Também faremos experimentos com um avião Bandeirante do Inpe na Amazônia e no Pantanal para que possam medir o impacto dessas partículas nas propriedades das nuvens”, completa Artaxo. O projeto é a continuidade do trabalho do Instituto do Milênio da Amazônia, que foi coordenado por Artaxo, e de um trabalho de modelagem desenvolvido pelo Inpe nos últimos dez anos. “Esperamos contribuir para a construção de um novo modelo climático brasileiro, aperfeiçoan­do o componente das partículas dos aerossóis no clima”, afirma. O projeto envolve pesquisadores de vários grupos da USP, do Inpe, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). arlos Arturo Navas, professor do Instituto de Biociências da USP, vai coordenar um projeto que busca identificar até que ponto a capacidade de ajuste fisiológico da fauna silvestre seria compatível com regimes de chuvas e temperatura alterados pelas mudanças climáticas, particularmente da perspectiva dos eventos extremos. Há tempos Navas investiga a plasticidade da fisiologia da fauna, ou seja, a sua capacidade de ajuste e adaptação ao longo de gradientes ambientais – para entender, por exemplo, como uma população típica da base de uma montanha pode dar origem a populações em zonas de maior altitude. No ano passado, Navas concluiu um projeto temático sobre esse 36

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

assunto. “Há cerca de quatro anos me dei conta de que esse know-how de pesquisa teria utilidade também em relação às mudanças climáticas. E notei, ainda, que não estava sozinho, pois há pesquisadores dos Estados Unidos e da Europa debruçados sobre o mesmo desafio. A fisiologia desenvolveu ferramentas que têm muito a contribuir com a pesquisa em conservação e mudanças climáticas”, afirma Navas. “Nosso objetivo é estudar fisiologia animal no contexto de extremos climáticos, por exemplo de temperatura, para entender e até antecipar como populações animais poderiam responder às mudanças climáticas.” lguns projetos contemplados na primeira chamada seguem uma direção mais aplicada, buscando compreender como sistemas biológicos em áreas cultivadas, como cana-de-­ -açúcar, soja e eucalipto, interferem nos padrões de emissões de gás carbônico. Siu Mui Tsai, pesquisadora do CenaUSP, é a responsável por um projeto que busca monitorar a diversidade e as atividades funcionais de microrganismos impactados pelo desmatamento e as mudanças do uso da terra em cultivos de soja e de cana-de-açúcar. O impacto na atmosfera da Região Sudeste do lançamento de material particulado – partículas muito finas de sólidos e líquidos suspensos no ar – será abordado pelo projeto do pesquisador Arnaldo Alves Cardoso, professor do Instituto de Química de Araraquara, da Unesp. “Nossa região é muito impactada por queimadas de cana, mas ainda faltam estudos que mapeiem o lançamento de material particulado na atmosfera proveniente de diferentes fontes, como cidades, indústrias e outras etapas do processo agroindustrial, e quais possíveis consequências para o ambiente”, diz Cardoso. “Vamos analisar como compostos orgânicos e inorgânicos são incorporados ao material particulado, como isso afeta suas propriedades para atuar como nucleador de nuvens e como esse material particulado preO programa sente na atmosfera busca interfere no regime estabalecer natural de chuvas pontes entre e na formação de as ciências descargas elétrisociais e as naturais cas atmosféricas.


nasa

Queremos saber como as mudanças na agroindústria, não só com relação ao tipo de cultura mas na forma como é feita, como a crescente mecanização da colheita de cana, irão afetar nos próximos anos tanto a qualidade quanto a quantidade do material particulado atmosférico e prever quais possíveis efeitos sobre as mudanças climáticas em especial para o ciclo hidrológico”, afirma Cardoso. O grupo de Newton La Scala Júnior, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal da Unesp, vai analisar o impacto de práticas de manejo agrícola nas emissões de CO2 oriundas do solo em áreas de produção de cana-de-açúcar no interior paulista. “Há aspectos distintos de emissão de CO2 do solo, principalmente nos sistemas agrícolas. Essa emissão varia no tempo e no espaço, é afetada pelo manejo, especialmente pelo preparo do solo. O objetivo é mapear o papel desse gás carbônico no efeito estufa”, afirma La Scala. O projeto é uma sequência de vários outros que o grupo de La Scala realizou na última década. Serão analisados solos utilizados para exploração agrícola no período em que ficam desprovidos de vegetação. Nessa etapa, o solo torna-se um emissor de CO2, pois não há vegetação presente e não ocorre fotossíntese. “O objetivo é avançar nosso entendimento sobre esse assunto. Diversos sistemas de manejo interferem na perda de carbono e vamos caracterizar de forma mais intensiva as emissões. Também queremos gerar modelos que descrevam melhor a variabilidade das emissões”, afirmou. endeu bons resultados a convocação feita a pesquisadores para que estudem as dimensões humanas das mudanças climáticas. Três dos projetos contemplados encaixam-se neste perfil. Um deles, liderado por Daniel Hogan, professor de demografia da Unicamp, vai mapear a vulnerabilidade de municípios do litoral norte de São Paulo e sugerir políticas públicas que auxiliem na adaptação aos efeitos das mudanças climáticas. “Boa parte dos trabalhos que envolvem a perspectiva social das mudanças climáticas enfatiza os problemas na Amazônia, mas a população urbana é que será a mais afetada com eventos climáticos extremos”, diz PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

37


Hogan. “Decidimos nos concentrar em cidades médias do litoral de São Paulo porque elas estão menos preparadas para enfrentar o problema do que as grandes cidades”, afirma. Elas deverão ser as primeiras afetadas por eventos extremos – o caso do furacão Catarina, que atingiu a costa catarinense em 2004, é citado como um exemplo do que pode acontecer. Hogan lembra que a elevação do nível do mar, considerada inevitável, terá efeitos mais de longo prazo. “A principal questão, de início, deverá ser o aumento de intensidade das chuvas e do calor. Essas cidades têm uma estrutura bastante precária. Caso haja concentração de chuvas em tempos mais curtos, os problemas de drenagem e a desestabilização de encostas podem ser dramáticos”, diz. m objetivo do projeto é identificar e qualificar grupos mais vulneráveis e ajudar a formular políticas públicas, uma tarefa que, segundo ele, ainda está engatinhando no caso das mudanças climáticas. Municípios como Caraguatatuba, um dos alvos principais do projeto, vivem a antevéspera do que pode ser um grande salto de crescimento demográfico, impulsionado pela exploração de petróleo e gás na bacia de Santos. “Como estão encravadas numa estreita faixa de terra entre serra e mar, qualquer acréscimo de população e de atividade econômica tem que ser visto com cuidado”, diz. O projeto irá estudar, além das dimensões humanas, as mudanças ecológicas que esse inchaço poderá causar, como a composição da flora da região, em parceria com pesquisadores do Instituto de Biologia da Unicamp. “Mas não será em apenas quatro ou cinco anos de projeto que vamos dar conta de toda a necessidade de pesquisa nesse campo. A meta é criar uma tradição de pesquisa, que viabilize mais trabalho interdisciplinar posterior”, diz o professor. O professor Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), coordena um projeto que busca levantar os impactos socioeconômicos das mudanças climáticas também com o objetivo de ajudar na formulação de políticas públicas. A iniciativa terá várias frentes. Uma delas é a busca de ferramentas que ajudem a 38

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Um banco de dados com os resultados do programa ajudará a disseminar o conhecimento gerado pelos pesquisadores

melhorar a capacidade de previsão dos efeitos sociais e econômicos das mudanças climáticas. “Os modelos atuais são precários, sobretudo na capacidade de fazer interagir todos os elementos envolvidos”, diz Abramovay. Outro foco será a análise da disposição do setor privado de responder às mudanças climáticas. “Muitas empresas têm explicitado intenções de reduzir as emissões de carbono em seus processos produtivos. Queremos saber se essas intenções são verdadeiras e quais são seus desdobramentos”, afirma o pesquisador. Outra frente será a análise dos processos de negociação que podem levar à formação de mercados de negociação de créditos de carbono, hoje muito instáveis. “Também vamos nos debruçar sobre questões decisivas, como a do consumo sustentável. A ideia é mapear como o modelo de produção e de consumo do mundo contemporâneo será afetado pelas mudanças climáticas”, afirma. or fim, um projeto liderado pelo diretor-geral do Inpe, Gilberto Câmara, buscará identificar os atores institucionais relacionados aos desmatamentos da Amazônia e estudar os seus comportamentos, para construir cenários de impacto de políticas públicas. “Chamamos de atores institucionais os grupos organizados da sociedade que têm influência na ocupação e uso da terra na Amazônia. De forma pre-

liminar, esses atores incluem grupos como os grandes plantadores de soja e outras commodities, os criadores de gado, os pequenos agricultores, os madeireiros predadores, os madeireiros que cumprem as regras de manejo, os trabalhadores na indústria de madeira, os ambientalistas, os cientistas e os assentados”, diz Câmara. “Cada um desses atores procura influenciar os governos federal, estadual e municipal para beneficiá-los, adotando políticas de seu interesse.” A hipótese do projeto é que todos esses estão representados na luta política. Dessa forma, a elaboração das leis que definem o uso da terra na Amazônia e seu cumprimento dependem da forca relativa de cada grupo de atores institucionais. “A mudança no Código Florestal em 1994, que alterou a área de proteção ambiental de 50% para 80% em propriedades privadas na Amazônia, foi uma vitória dos ambientalistas, causada pela taxa de desmatamento ter chegado a 29 mil quilômetros quadrados nesse ano. No entanto, os ruralistas, muito organizados politicamente, impediram que a lei fosse aplicada”, diz Câmara. Segundo ele, a grande variação anual das taxas de desmatamento não é bem explicada por modelos estatísticos, que tentam correlacionar preços de mercadorias com áreas desmatadas. “Estes modelos dizem o que aconteceu, mas são frágeis para construir cenários de futuro. Buscamos, com o projeto, um entendimento socioantropológico sobre os atores institucionais na Amazônia e o desenvolvimento de modelos que usem esse conhecimento para construir cenários realistas para a região.” Está em fase de julgamento uma segunda chamada de proposta do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, voltada para criar o primeiro modelo climático brasileiro, um software capaz de fazer simulações sofisticadas sobre fenômenos do clima. Os resultados devem ser divulgados no início do segundo semestre. A secretaria executiva do programa, instalada no Inpe em São José dos Campos, abrigará um banco de dados com os resultados científicos do programa, que terá a missão de difundir o conhecimento gerado e ajudar na formulação de políticas públicas. n

Fabrício Marques


>

Mudanças climáticas

Esforço em

três frentes Acordo estimula colaborações entre pesquisadores de São Paulo, Pernambuco e França

A

FAPESP e a Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) celebraram um termo de cooperação científica e tecnológica para apoiar projetos realizados por pesquisadores paulistas e pernambucanos no campo das mudanças climáticas globais. O aporte financeiro será de R$ 4 milhões ao longo de cinco anos, divididos em partes iguais pelas duas fundações. Além da cooperação entre os dois estados, a iniciativa está aberta à cooperação científica com a França. A Facepe e a FAPESP negociaram com a Agência Nacional de Pesquisa da França (ANR) um acordo para permitir o financiamento, pelas três agências, de projetos colaborativos entre cientistas franceses, pernambucanos e paulistas. A ANR poderá financiar a metade do valor daqueles projetos que atraiam a participação de pesquisadores da França, ficando a FAPESP e a Facepe com a outra metade. “A FAPESP tem celebrado acordos bilaterais com fundações de outros estados e com agências de financiamento internacionais, mas esse modelo tripartite é uma novidade para nós”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Trata-se de um modelo interessante para um tema, o das mudanças climáticas, que é global por excelência.” De acordo com Diogo Ardaillon Simões, presidente da Facepe, o acordo começou a ser gestado no ano passado, após

o lançamento do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, que, entre vários objetivos, buscava mobilizar pesquisadores de várias partes do país e estabelecer parcerias com fundações de outros estados. “Quando a FAPESP lançou esse programa voltado para articular e aumentar a capacidade da pesquisa brasileira em mudanças climáticas, ficou claro para nós que Pernambuco deveria integrar-se a essa iniciativa “, disse Ardaillon. A oportunidade de envolver a França, segundo ele, surgiu mais tarde, com o lançamento de um edital da ANR que contemplava colaborações internacionais em pesquisas sobre mudanças ambientais. Para Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, a articulação é essencial para a pesquisa em mudanças climáticas. “O tema requer a mobilização de grupos grandes de pesquisadores. Esperamos que os cientistas se articulem e respondam às chamadas de projetos”, afirmou. O acordo envolve quatro temas de interesse específicos, como a detecção de mudanças climáticas oceânicas por meio do monitoramento do Atlântico, os impactos sobre os recursos hídricos no Semiárido de Pernambuco e no estado de São Paulo, as vulnerabilidades provocadas pela alteração no nível do mar e o mapeamento do uso e da cobertura da terra, usando, entre outras, técnicas de sensoriamento remoto e modelagem matemática. “Buscamos

reforçar a musculatura de nossa pesquisa em campos de pesquisa que terão impacto em Pernambuco, como o aumento do nível do mar”, disse Ardaillon. “Recife já enfrenta problemas e é apontado como uma das cidades costeiras mais ameaçadas”, afirmou. A ANR quer investir em assuntos mais amplos que, contudo, não excluem os tópicos de interesse das duas fundações brasileiras. Uma chamada de propostas já foi divulgada. As propostas podem ser apresentadas até o dia 25 de junho, se envolverem cooperação com a ANR, ou até 13 de julho, caso se limitem à FAPESP e à Facepe. n

Fabrício Marques PeSQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

39


laboratório mundo

Milhões de anos mais velho

As falhas geológicas responsáveis pelo soerguimento dos Andes na Colômbia entraram em atividade há 25 milhões de anos, 18 milhões antes da data até agora aceita para o início da formação dessa parte da cadeia montanhosa. Essas conclusões resultam de análises de minerais e grãos de pólen do leste dos Andes colombianos, que ainda não haviam sido datados. Essa parte da cordilheira é mais antiga que os Andes centrais, que começaram a se formar há apenas cerca de 10 milhões de anos, segundo Maurício Parra, que recentemente terminou o doutorado na Universidade Andes: sedimentos na base contam origem da cordilheira de Potsdam, Alemanha, e se mudou para a Universidade do Texas, nos Estados Uni> Quando vitaminas que conduz a glicose dos. Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Tropical Smithsoàs células de todo o corpo. nian (STRI), no Panamá, e Ecopetrol, na Colômbia, participaram atrapalham Temporariamente, um desse estudo, detalhado no Geological Society of America pouco de estresse oxidativo Consumir suplementos de Bulletin. Saber quando os Andes se formaram é importante – processo combatido por vitaminas depois de praticar para entender os movimentos mais remotos de animais e de algumas vitaminas e que exercícios físicos pode plantas e para os engenheiros procurarem petróleo, comentou danifica as células – ajuda reduzir a sensibilidade Carlos Jaramillo, cientista-chefe da equipe do Panamá.

à insulina, o hormônio eduardo cesar

Carlos jaramillo/stri

>>

Exercício: saudável até quando agride organismo 40

junho DE 2009

a evitar o diabetes tipo 2, causado pela resistência à insulina, concluíram pesquisadores das universidades de Jena, na Alemanha, e Harvard, nos Estados Unidos. Desse estudo, publicado em maio na PNAS, participaram 40 pessoas, metade delas com treinamento físico prévio, metade sem. Os dois grupos tomaram uma combinação de vitaminas C e E durante quatro semanas e passaram por exames de avaliação de sensibilidade da glicose à insulina.

PESQUISA FAPESP 160

Apenas exercícios físicos, sem doses adicionais de vitaminas, promove a longevidade e reduz o diabetes tipo 2. Ao contrário do que se pensava, os resultados negam que o estresse oxidativo seja um efeito colateral indesejado da atividade física vigorosa: ele é na verdade parte do mecanismo pelo qual quem se exercita é mais saudável. A conclusão é clara: nada de antioxidantes depois de correr.

> Gigantes e sociáveis Uma parede de pedra escura pode ser um festim para paleontólogos e geólogos. É o caso das pedreiras estudadas por Artur Sá, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Portugal. Encontradas no geoparque Arouca, 50 quilômetros a sudeste da cidade do Porto, as paredes escuras são uma janela para um passado


> A morte da bezerra “Ela vive no mundo da lua...” A sociedade não vê com bons olhos quem sonha acordado, o que agora se revela bastante injusto. Com um aparelho de ressonância magnética funcional, pesquisadores dos Estados Unidos e do Canadá encontraram atividade em várias regiões do cérebro de pessoas enquanto divagavam – inclusive áreas associadas

annika felton/anu

remoto, cerca de 465 milhões de anos atrás. Nelas estão impressas marcas de centenas de trilobitas, artrópodes marinhos extintos há 250 milhões de anos. Em artigo na Geology, os pesquisadores contam ter encontrado ali cerca de 20 espécies desses animais, que embora já conhecidas pela ciência trazem novidades: são os maiores do mundo e foram preservados de maneira a tornar evidente que se reuniam em grandes grupos para se reproduzir e se escondiam em tocas durante os períodos mais vulneráveis depois das mudas, quando perdiam a carapaça rígida. Trilobitas costumavam ter cerca de 10 centímetros (cm) de comprimento, mas a equipe de Sá descreveu um fóssil quase completo com 70 cm e outro incompleto que, inteiro, talvez chegasse a 90 cm – um recorde. O grupo de pesquisadores portugueses e espanhóis interpreta o tamanho e comportamento daqueles trilobitas como adaptações a um ambiente frio e por vezes com pouco oxigênio.

Macacos também precisam controlar a gula na hora de comer. Pelo menos os ma­ cacos-aranha bolivianos (Ateles chamek) estudados por Annika Felton, da Universidade Nacional Australiana em Camberra. Durante um ano, a pesquisadora passou dias inteiros seguindo 15 macacos pela floresta no departamento Santa Cruz, na Bolívia, registrando tudo o que comiam e coletando amostras dos alimentos, cujo conteúdo nutricional depois analisou. Os resultados, publicados na Behavioral Ecology, mostram que esses macacos regulam a quantidade de proteínas que consomem por dia, em vez de comer o máximo possível como se acreditava que os primatas frugívoros fizessem. Embora o ser humano adote uma dieta bem diferente, também precisa dosar as proteínas para evitar a obesidade. As semelhanças sugerem que as origens evolutivas da dieta são mais antigas do que o surgimento do homem.

Dieta controlada

manuel valério/geoparque arouca

Trilobitas: comportamento fossilizado

à resolução de problemas complexos. Na verdade, a mente de quem se perde em sonhos está mais ativa do que ao executar tarefas cotidianas. No estudo, publicado em maio na PNAS, voluntários eram instruídos a apertar um botão quando números aparecessem num monitor. Enquanto isso os pesquisadores monitoravam a atividade cerebral e o nível de atenção direcionada à tarefa. A equipe se surpreendeu ao ver, em momentos de distração, se ativarem não só as partes do cérebro ligadas à atividade mental de rotina como também as que entram em ação para lidar com questões mais fundamentais. E quanto menos consciente a pessoa estava da distração, mais ativas ficavam essas diferentes partes do cérebro. A melhor estratégia para resolver uma situação complicada pode ser executar uma tarefa simples e deixar a mente livre.

Macaco-aranha: consumo dosado de proteínas PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

41


laboratório Brasil

> Galerias desabitadas Passear por uma toca de tatu é tarefa impossível para uma pessoa adulta. Não para o paleontólogo Francisco Buchmann, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente. Ele descobriu mais de 60 túneis escavados por tatus-gigantes, extintos há cerca de 10 mil anos, como relatou em maio na 42

junho DE 2009

XXIV Jornada Argentina de Paleontologia de Vertebrados. Outros pesquisadores já haviam encontrado paleotocas, mas as de Buchmann são as primeiras que não foram preenchidas por sedimentos. O diâmetro de até 2 metros dessas tocas, a maior parte delas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, permite que o pesquisador busque indícios da vida desses animais sem ter de rastejar.

PESQUISA FAPESP 160

Josué de Moraes, do Instituto Butantan e da Universidade de São Paulo (USP), encontrou 909 caramujos Biomphalaria tenagophila, uma das espécies que podem transmitir o S. mansoni, em córregos e poças de duas vilas de Guarulhos, cidade vizinha a São Paulo ao lado da rodovia Presidente Dutra, a de maior circulação de veículos do Brasil. De acordo com esse trabalho, publicado na edição de março-abril da Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, um em cada cinco caramujos coletados (20% do total ou, em números absolutos, 183) carregava pelo menos um dos quatro tipos de vermes identificados que podem infectar o ser humano: o Cercaria lutzi e o Schistosoma mansoni foram os mais comuns (76,5% e 13,1%). Anfíbios, ratos e aves que entram em contato com a água em que os caramujos vivem podem facilitar a dispersão desses vermes, concluíram os pesquisadores.

laurabeatriz

o país do otimismo

A fama dos brasileiros de viver de bem com a vida pode ter fundamen­ to biológico. Isso se for confirmada a influência genética na tendência ao otimismo detectada num experimento feito na In­ glaterra. Nesse estudo, ao olhar imagens positivas e negativas, os voluntários com determinada versão de um gene apresentaram tendência a contemplar as primeiras e evitar as segundas. O resultado chamou a atenção do neuro­psiquiatra João Ri­ cardo de Oliveira, da Uni­ versidade Federal de Per­ nambuco, e da geneticista Mayana Zatz, da Universi­ dade de São Paulo. Usan­ do um banco de dados de que já dispunham, eles compararam a frequência desse gene entre brasileiros e ingleses e viram que ele é 2,5 vezes mais comum aqui do que na Inglaterra, conforme relatam em artigo a ser publicado em breve na Molecular Psychiatry. O gene em questão está ligado ao neurotransmissor serotonina, que tem função importante em regular as emoções. Os pesquisadores esperam que mais estudos aprofundem a compreensão das bases biológicas do otimismo. Talvez esteja aí a explicação para o Brasil ser o país do Carnaval e do futuro.

Ali há marcas deixadas pela carapaça e pelas garras dos tatus, às vezes até com impressão dos pelos, que Buchmann copia com moldes de silicone para comparar a fósseis em museus. Ele acredita que os tatus-gigantes cavavam tocas perto de rios, com entrada de um lado do morro e saída do outro, em pontos altos para evitar inundações (Portal da Unesp).

> Caramujos na Grande São Paulo Não é só nos rincões mais distantes e pobres do Brasil que podemos contrair esquistossomose, doença causada pelo verme Schistosoma mansoni e transmitida por caramujos.

josué de moraes/instituto butantan

>>

Detalhe: forma larval de Schistosoma mansoni


stan shebs/wikimedia

de carona com aves

Um em cada dez pinguins que às vezes chegam ao litoral bra­ sileiro carrega o vírus influenza tipo A, a que pertence o da gripe suí­ na, mas de baixa letali­ dade. De 2% a 3% dos marrecos, maçaricos e patos, que no final de todo ano fogem do in­ verno do hemisfério Norte e lotam as ilhas do litoral brasileiro até meados do ano, tam­ bém portam o vírus da influenza quando vol­ tam. “São aves sadias, que não adoecem por causa dos vírus que carregam”, diz Edison Durigon, pesquisador do Instituto de Ciências Bio­ médicas da Universidade de São Paulo (USP), que coorde­ na um programa nacional de monitoramento de vírus em aves silvestres. As conclu­ sões, que resultam de análi­ ses de sangue e fezes, podem alertar sobre o risco de vírus mais perigosos chegarem às pessoas, gerando epidemias como a da gripe suína ou a da gripe aviária, que começou na China e recentemente causou a morte de 200 pessoas no Egito. Os resultados da equi­ pe da USP mostraram que as aves migratórias não se infectam aqui, como suspei­ tavam pesquisadores de ou­ tros países. “Elas já chegam infectadas”, afirma Durigon. Mesmo com o reforço de ou­ tros dois grupos, a equipe da USP consegue analisar ape­ nas cerca de mil aves por ano, capturadas na Amazônia, em Recife, em Santa Catarina e na Antártida. “Nos Estados Unidos, 35 laboratórios esta­ duais e universidades fazem testes para influenza em 50 mil a 70 mil aves migratórias por ano.”

Na praia: pinguins podem carregar vírus

Plantas da Caatinga não sofrem os distúrbios causados por desmatamento conhecidos como efeitos de borda. André de Melo Santos, da Universidade Federal de Pernambuco, e Bráulio Almeida Santos, da Universidad Nacional Autónoma de México, compararam o tamanho, a densidade e as espécies de arbustos adultos entre zonas na borda e no interior de um trecho de Caatinga no planalto de Borborema na Paraíba. Não encontraram diferenças. Em florestas fechadas o interior da mata é muito diferente da borda em termos de umidade e incidência de luz. Já na Caatinga a luz do sol passa à vontade por entre os galhos dos arbustos espinhudos, os cactos e as bromélias. E a (pouca) água disponível não varia. O resultado ajuda a orientar a preservação do ecossistema: na Caatinga corredores

estreitos já podem manter o trânsito de espécies animais e vegetais entre trechos separados por desmatamento (Acta Botanica Brasilica).

> Em casa, ou fora? Homens que comem fora de casa podem ganhar peso, mas mulheres não. É o que mostra o estudo feito por Ilana Bezerra e Rosely Sichieri, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

que avaliou os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (2002-2003), com 56.178 pessoas com idades entre 25 e 65 anos (Public Health Nutrition). Incluindo refrigerantes, lanches e refeições à mesa, homens comem fora com mais frequência do que mulheres, mas entre eles essa prática está associada a excesso de peso. Os resultados sugerem que quando comem fora as mulheres fazem escolhas mais saudáveis do que os homens. fernando rosas

> Na terra do sol

Caatinga: muita luz chega ao solo

PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

43


>

ciência

Astronomia

Explosões de outro mundo Pesquisadora brasileira explora vulcões em luas de Saturno e Júpiter Maria Guimarães

V

istos a distância por olhos desavisados, os corpos celestes parecem plácidos. Mas alguns deles estão repletos de vulcões, e só quem já presenciou a força de uma erupção sabe o que é sentir o chão tremer e ouvir explosões ensurdecedoras. Em certos vulcões é possível subir ao topo, cheirar o enxofre que emana da lava ardente e vê-la mover-se devagar dentro da cratera antes de se derramar pela encosta. Mais emocionante do que isso, só uma viagem espacial. A opinião é da astrônoma Rosaly Lopes, pesquisadora do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, a agência espacial norte-americana. Ela conseguiu reunir as duas coisas: estudou vulcões terrestres e usa esse conhecimento para explorar – a distância – formações semelhantes em outros planetas. Entrou para o livro Guinness dos recordes por ser a maior descobridora de vulcões (encontrou 71 em Io, uma das luas de Júpiter) e agora ajuda a descrever vulcões que cospem gelo em Titã, de longe a maior das luas de Saturno, quase metade do tamanho da Terra. Os vulcões de Titã estão sendo revelados pela missão Cassini, desde 2004 em órbita em torno de Saturno. A construção, o planejamento e o controle da missão estão a cargo do Laboratório de Propulsão a Jato, onde trabalham 5 mil pessoas – a maior parte engenheiros. A divisão de ciência, da qual Rosaly faz parte, tem cerca de 500 pesquisadores. “A cada um ou dois meses a nave Cassini passa perto de Titã”, conta Rosaly. Parte da função da astrônoma brasileira é planejar essas passagens e trabalhar com engenheiros que manobram a nave, fazendo pequenas alterações na órbita da Cassini para ajustar o ângulo de observação e determinando qual dos 12 instrumentos recolherá dados sobre a lua de Saturno. Imagens dos primeiros quatro anos da missão dão indícios claros de atividade vulcânica recente em Titã, conforme dois artigos publicados este ano na Geophysical Research Letters. A base principal para as interpretações é o que se sabe sobre como funcionam os vulcões terrestres. Informações como a forma do vulcão, se ele é explosivo ou não, como o magma vem à superfície e como é a erupção ajudam a entender as imagens de novos vulcões encontrados em outras partes do Sistema Solar. Mas os vulcões de Titã têm uma diferença marcante, um

44

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Titã: vista com lente olho de peixe pela sonda Huygens, a 5 quilômetros de distância


esa/nasa/jpl/universidade do arizona

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

45


Nasa/jpl/usgs

Metano líquido na lua de Saturno: em lagos revelados pela Cassini...

fenômeno conhecido como criovulcanismo. O que jorra das fraturas na superfície de gelo não é rocha derretida, mas sim água congelada, provavelmente misturada com amônia ou metano e com a consistência de um purê. “Água pura não conseguiria passar pela camada de gelo, já que gelo boia na água”, explica Rosaly. A mistura diminuiria a densidade do líquido, que assim chegaria à superfície. Por enquanto os pesquisadores ainda não viram vulcões ativos na lua de Saturno. O que enxergaram, com auxílio de um espectrômetro, foi uma mudança de brilho que tem a aparência de fluxo vulcânico. Parece sutil, mas para Rosaly são indícios fortes que corroboram as imagens de radar que a Cassini obteve na primeira passa46

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

gem por Titã, em outubro de 2004. Em 2007 a pesquisadora já descreveu essas imagens como feições criovulcânicas na revista Icarus. Titã tem dunas moldadas por vento e um ciclo de metano semelhante ao ciclo da água na Terra. A superfície geologicamente complexa é constantemente escavada por chuvas, lagos e rios de metano líquido, mostrando uma interação complexa entre atmosfera e superfície.

E

xplorações anteriores espaço afora mostraram que em Io – a terceira maior entre as 63 luas de Júpiter, um pouco maior do que a nossa Lua – a geologia é bem diferente. A partir de imagens obtidas entre 1996 e 2001 pelo espectrômetro da nave Galileu, Rosaly e sua equipe descreveram a atividade

vulcânica dessa lua em diversos artigos publicados, entre outras publicações científicas, em 2000 na Science e em 2004 na Icarus, mas ainda há dúvidas quanto à composição química das lavas por lá. A Galileu e outros telescópios em Terra indicam que a temperatura do material que sai dos vulcões de Io podem chegar a mais de 1.300 graus Celsius, mais quente que os basaltos derretidos na Terra. “Se estiver correto, seriam vulcões de um tipo que já houve na Terra bilhões de anos atrás”, interpreta a astrônoma. Mas essa medida foi obtida em só um ponto, e por isso ainda não é considerada confiável por muitos pesquisadores. O desafio não é pequeno: a lava esfria depressa e a temperatura é medida esporadicamente e a grandes distâncias por aparelhos de calibragem complexa. Essa calibragem precisa ser revista para validar as observações controversas. Mesmo assim a missão Galileu permitiu explorar bastante os arredores de Júpiter. Usando imagens em infravermelho para medir o calor da lava dos vulcões de Io entre 1996 e 2001, Rosaly descobriu lá os 71 vulcões que a tornaram recordista mundial. “Em alguns vulcões de Io, o fluxo de lava derrete o dióxido de enxofre congelado na superfície”, descreve. O fluido em seguida escava o chão até encontrar dióxido de enxofre mais profundo, criando uma nuvem vertical de fumaça e partículas conhecida como pluma vulcânica. “A lava avança e a pluma avança junto, coisa que nunca se viu na Terra”, conta. Por causa dessa intensa atividade vulcânica que reveste Io com rocha derretida, a superfície é relativamente jovem – o que fica evidente pela ausência de crateras produzidas por impactos de asteroides e meteoros. Comparar vulcões terrestres e extraterrestres é um recurso importante para entender os planetas. Muito mais do que uma aventura em que pesquisadores enfrentam as mais potentes forças da natureza, os estudiosos de vulcões espiam para dentro de válvulas por onde escapa o calor retido no miolo de um planeta ou satélite, por isso a atividade vulcânica traz informações importantes sobre a sua evolução. As manchas escuras da Lua, por exemplo, são verdadeiros oceanos de lava que se formaram há mais de 3 bilhões de anos. Agora a Lua


esfriou a ponto de já não ter vulcanismo ativo. Astrônomos encontraram vulcões também em Enceladus (outra lua de Saturno) e suspeitam que eles existam em Vênus. Por causa dos paralelos entre o vulcanismo de planetas diferentes, Io tem ajudado a entender as propriedades dos vulcões terrestres e a reconstruir a história deste planeta.

D

teleconferência. Ali, alunos do ensino médio aprendem noções de engenharia, propulsão e geologia. O centro está fechado desde o início deste ano, porque está sendo transferido para Salgueiro, numa área mais isolada. Rosaly espera aumentar ainda mais o entusiasmo desses jovens, mostrando que é possível sair de uma escola pública brasileira e n chegar à Nasa, como ela fez. > Artigos científicos 1. WALL, S. D. et al. Cassini RADAR images at Hotei Arcus and western Xanadu, Titan: evidence for geologically recent cryovolcanic activity. Geophysical Research Letters. v. 36, L04203. 2009. 2. NELSON, R.M. et al. Photometric changes on Saturn’s Titan: evidence for active cryovolcanism. Geophysical Research Letters. v. 36, L04202. 2009. 3. LOPES-GAUTIER, R. et al. A close-up look at Io from Galileo’s near-infrared mapping spectrometer. Science. v. 288, p. 1.2011.204. mai. 2009.

nasa/jpl/ilustração Michael Carroll

as espetaculares erupções vulcânicas à exploração de outros planetas, o que move Rosaly é a aventura e a descoberta. Vem daí o prêmio que ela recebeu este ano da organização Wings WorldQuest, que “celebra e apoia extraordinárias mulheres exploradoras e promove a exploração científica, a educação e a conservação para inspirar gerações futuras”, princípio que condiz com a trajetória da brasileira. Muito mío­pe, ela ainda criança percebeu que não poderia ser astronauta. Mas em vez de abandonar o sonho, preferiu ajustá­-lo. Saiu do Brasil aos 18 anos para es-

tudar astronomia na Inglaterra, porque aqui não via oportunidades de explorar outros planetas. “Hoje o quadro mudou bastante, mas a pesquisa em astrofísica ainda é muito mais avançada no Brasil do que a astronomia planetária”, conta. No doutorado, na Universidade de Londres, ela comparou os vulcões da Terra e de Marte e se encantou pelo espetáculo das erupções. Esse trabalho deu origem ao livro Turismo de aventura em vulcões, publicado no Brasil no ano passado pela Oficina de Textos. Nele Rosaly dá uma aula sobre vulcões, informa e incita o aventureiro a viajar para ver um vulcão em atividade. No Brasil, ela colabora com o projeto educacional de Marcos Luna, do Núcleo Tecnológico do Agreste, em Bezerros, no sertão pernambucano. No ano passado ele inaugurou uma base de lançamento de foguetes experimentais batizada com o nome da brasileira da Nasa, que participou do evento, falou sobre seu trabalho e continua a dar palestras por

... e caindo em tempestade no Arco de Hotei, área de intensa atividade vulcânica

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

47


> Física

A fórmula do

emaranhamento Grupo do Rio propõe equação que descreve a redução de fenômeno quântico devido a influência do ambiente Marcos Pivet ta

m 20 de abril de 2006, uma equipe do Grupo de Óptica Quântica do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) publicou um artigo na revista científica britânica Nature em que relatava a primeira medição direta de um dos fenômenos mais estranhos e fascinantes do mundo quântico, o chamado emaranhamento ou entrelaçamento de partículas, como átomos, elétrons ou partículas elementares de luz, os fótons. Em 27 de abril de 2007, os pesquisadores brasileiros emplacaram outro importante paper sobre esse complexo campo de estudo da física. Nas páginas do periódico norte-americano Science, os brasileiros mostraram como o emaranhamento, uma propriedade essencial para o desenvolvimento de um computador quântico, pode desaparecer repentinamente, sofrer uma espécie de morte súbita. Agora a mesma equipe de cientistas, composta pelos pequisadores Luiz Davidovich, Paulo Henrique Souto Ribeiro e Steve Walborn, deu nova contribuição de peso ao tema, desta vez num artigo publicado no dia 14 de maio passado no site da Science: formulou e demonstrou experimentalmente uma lei que descreve a dinâmica do entrelaçamento. Numa linguagem mais coloquial, o que os físicos do Rio de Janeiro fizeram foi criar uma equação geral que lhes permite estimar, com precisão e de forma simples, a perda de emaranhamento de um sistema formado por duas partículas quando uma delas sofre os efeitos deletérios do ambiente. Fatores externos a um sistema com essas características, como o atrito ou a temperatura, podem levar à diminuição e até ao desaparecimento do emaranhamento. O novo mé48

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

todo prescinde da reconstrução do estado final de um sistema emaranhado, tarefa difícil de ser obtida e com resultados às vezes imprecisos. “Até agora existia apenas uma equação, proposta num trabalho teórico publicado no ano passado na revista Nature Physics, para descrever a dinâmica do emaranhamento num caso muito particular e idealizado: um sistema cujo estado inicial fosse totalmente conhecido”, explica Davidovich, principal autor do estudo, que contou também com a colaboração de dois estudantes da pós-graduação, Camille Latune e Osvaldo Jiménez Farías. “Nossa equação é uma generalização da anterior e serve também para situações mais próximas do real, quando há incerteza sobre o estado inicial do sistema.” A influência do ambiente sobre uma das partículas do sistema emaranhado foi demonstrada pelos cientistas brasileiros num experimento com fótons com o emprego de um método conhecido entre os físicos como “tomografia quântica de processo”. efinido por Albert Einstein como algo envolto por “fantasmagórica ação a distância”, o emaranhamento quântico é um fenômeno estranho ao mundo da física clássica, newtoniana, em que vivemos. Como que por mágica, ele faz com que um conjunto de partículas elementares compartilhe certas características ainda que não haja nenhuma ligação física entre elas. O problema é que não é possível determinar as propriedades de cada uma das partículas entrelaçadas, apenas as do sistema global. Se, em vez de duas partículas elementares, o leitor visualizar um sistema composto de dois dados ema-


Ilustração de fótons com (linhas circulares inteiras) e sem entrelaçamento

dos, quando se determina o valor de um deles descobre-se automaticamente também o do outro. o experimento descrito agora na Science, a equipe de Davidovich gerou, por meio da emissão de um feixe de laser sobre um cristal, pares de fótons emaranhados em relação a um de seus parâmetros físicos: a polarização (a direção espacial, vertical ou horizontal, em que seu campo eletro-

imagens ufrj

ranhados, esse desconcertante conceito do universo quântico fica mais fácil de ser entendido. Por apresentarem essa forte correlação, quando jogados, os dados dão sempre o mesmo resultado: a soma de seus valores é, por exemplo, dez. O resultado final do sistema é conhecido, facilmente mensurável, mas se ignora qual combinação numérica (cinco e cinco, sete e três, oito e dois ou outra qualquer) levou a essa soma. Mas, como os dados estão entrelaça-

magnético vibra). Um outro parâmetro dos fótons, o momento (associado à sua direção de propagação, ao seu percurso no espaço), atuou no experimento como o ambiente externo ao sistema. Os pesquisadores perceberam que, ao produzirem uma interação entre o momento de um dos fótons e a polarização, ocorria uma redução no grau de emaranhamento do sistema e viram que sua equação podia dar conta dessa perda de emanhamento. “Demos um pequeno passo para entender a dinâmica do emaranhamento, cuja compreen­ são pode ajudar a construir sistemas quânticos mais robustos e estáveis”, comenta Davidovich, cuja equipe faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica. Armazenar, transmitir e processar informação explorando as inusitadas propriedades do mundo quântico é uma das apostas da informática do século XXI. Mas há muita pesquisa básica e aplicada a ser feita antes de um possível PC movido a átomos ou fótons se materializar na casa das pessoas. n > Artigo científico

Sistema óptico: ação do ambiente no emaranhamento

Farías, O. J. et al. Determining the dynamics of entanglement. Science Express Reports, publicado on-line em 14/05/2009.
 PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

49


>

O

casamento do laser com a medicina está perto de produzir uma ferramenta capaz de aprimorar o delicado trabalho de triagem de fígados destinados ao transplante. Pesquisadores do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram uma forma de biópsia óptica que fornece, em tempo real, de maneira não invasiva e objetiva, o teor de gordura acumulado no órgão. O aparelho que realiza o exame – uma fina cânula que emite um feixe de laser sobre o tecido em análise, absorve a luz devolvida pelo tecido biológico e envia os dados para um espectrômetro e um computador portátil acoplados em uma maleta – foi testado com sucesso em ratos e num estudo piloto com seres humanos por cirurgiões da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), também da USP.
 A nova abordagem fornece com precisão e de maneira quase instantânea o grau de esteatose hepática (lipídios no fígado), uma informação indispensável na busca por órgãos mais viáveis para transplantes. Fígados gordurosos, com esteatose maior do que 30%, não podem ser utilizados para esse fim. “(A biópsia óptica) pode ser uma alternativa promissora aos métodos de diagnóstico convencionais usados em cirurgias e transplantes”, escreveram Giovanni Bottiroli e Anna Cleta Croce, da Universidade de Pavia (Itália) em editorial na revista Liver International de março deste ano. Nessa mesma edição do periódico internacional os cientistas paulistas publicaram um artigo relatando o trabalho com os roedores. O Cepof, onde foi criada a técnica de diagnóstico de gordura no fígado com o auxílio do laser, é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP.
 O médico Orlando Castro e Silva Júnior, chefe da divisão de cirurgia digestiva e coordenador do grupo de transplantes da FMRP, está convencido de que a nova abordagem será de grande valia em sua especialidade. “Com o resultado da biópsia óptica em mãos, basta fazermos uma regra de três para

50

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Diagnóstico em tempo real

Fotônica

Técnica usa laser para determinar rapidamente o nível de gordura em fígado para transplante

>

O Projeto Biofotônica – Fluorescência óptica

modalidade

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) Co­or­de­na­dores

Vanderlei Salvador Bagnato e Cristina Kurachi - Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) da USP de São Carlos 
 Orlando Castro e Silva Júnior FMRP da USP investimento

R$ 40.000 e US$ 32.000 por ano para o projeto (FAPESP)

determinar o grau de esteatose do fígado”, explica o cirurgião, um dos autores dos trabalhos com animais e seres humanos. Dificilmente há tempo hábil para retirar uma amostra de tecido do fígado disponível para transplante e submetê-la aos devidos exames. Por isso, o diagnóstico do grau de esteatose hepática é feito normalmente de forma subjetiva pelo próprio cirurgião.“Hoje a avaliação do órgão doado é feita pelo olho do médico”, comenta Castro e Silva. “Não dá tempo de realizar uma biópsia (convencional).” O laser pode ser uma luz nessa lacuna de incerteza.
 Para conceber um sistema rápido e acurado de diagnóstico do acúmulo de gordura no fígado, os pesquisadores da USP exploraram um fenômeno muito conhecido da física: a espectroscopia de fluorescência. Algumas moléculas apresentam a capacidade de absorver energia e emitir luz depois de excitadas por meio de uma fonte luminosa. No caso dos trabalhos com a esteatose hepática, um feixe de laser disparado sobre o tecido biológico em questão atua como agente indutor da fluorescência. “O que fizemos foi correlacionar diretamente a intensidade da fluorescência com o conteúdo de gordura do fígado”, explica Vanderlei Salvador Bagnato, coordenador do Cepof e um dos principais pesquisadores dessa área. “Cada grau de


miguel boyayan

Laser: fonte de informação sobre características de tecidos biológicos

esteatose (leve, moderada ou avançada) gera respostas distintas.” 
 O desenho da estratégia não é novo. Os próprios cientistas de São Carlos trabalharam de forma semelhante quando desenvolveram sistemas de diagnóstico em tempo real por espectroscopia de fluo­­ rescência para outras condições clínicas e tecidos, como alguns tipos de tumores de boca e de fígado e a doença do cancro cítrico que ataca os laranjais. Nesse tipo de abordagem, o primeiro passo é verificar se a técnica capta a alteração biólogica estudada e é capaz de gerar um padrão confiável que permita diferenciar os distintos estágios ou fases dessa patologia. “Temos de verificar se o método é sensível a essa condição biológica num modelo animal”, diz Cristina Kurachi, uma das pesquisadoras do Cepof. “Sem essa confirmação, fica muito difícil propor a técnica para uso em seres humanos.”

Os testes com os roedores animaram os pesquisadores de São Carlos e Ribeirão Preto – e também os editores da revista Liver International. O diagnóstico com espetroscopia de fluorescência deu conta de separar os ratos nos quatro grandes grupos em que estavam divididos clinicamente: animais normais (sem gordura no fígado), com grau leve, moderado e elevado de estea­ tose hepática. No artigo do periódico médico a equipe da USP mostra que, ao jogar um feixe de laser de um determinado comprimento de onda sobre o tecido biológico, é gerado um fator de fluorescência da estea­tose que varia linearmente de acordo com a presença de lipídios no fígado: quanto mais gordura no órgão, maior é o fator. De posse desse dado, o cirurgião em dúvida sobre a real condição de um fígado doado pode descobrir instantaneamente o nível de

lipídios no órgão. “Testamos o método em 27 fígados humanos doados, seis deles já descritos em nosso estudo piloto, e ele parece ser fantástico para o diagnóstico de esteatose”, afirma o cirugião Castro e Silva. “Acredito que possamos usar essa tecnologia para analisar outros problemas hepáticos, como a cirrose.” Antes de ganhar as salas de cirurgia dos hospitais, o laser a serviço da medicina terá de ser posto à prova em mais fígados humanos destinados ao transplante. n

Marcos Pivet ta > Artigo científico Oliveira, G.R. et al. Fluorescence spectroscopy to diagnose hepatic steatosis in a rat model of fatty liver. Liver International. v. 29, n. 3, p. 331-336. mar. 2009. PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

51


>

Botânica

As matas se movem Florestas e campos avançaram e recuaram pelo país nos últimos 30 mil anos Carlos Fioravanti

Ainda é possível caminhar com cer­­ta facilidade nos campos que co­brem o alto da serra do Mar e ver de um lado o Atlântico e de outro a cidade de São Paulo. Daqui a 500 anos, porém, andar por lá vai exigir mais suor e atenção, porque a mata fechada deve lentamente tomar o tapete de gramíneas. Não é a primeira vez, nem só ali, que uma forma de vegetação substitui outra. Examinando amostras de solo que vão do marrom-avermelhado ao cinza-claro, o físico Luiz Pessenda e sua equipe da Universidade de São Paulo (USP) detectaram transformações como essas por todo o país. Aos poucos descobriram como formas diferentes de vegetação nativa avançaram, recua­ram, desapareceram ou reapareceram principalmente em resposta a variações climáticas naturais nos últimos 30 mil anos. As matas densas e fechadas devem cobrir os campos a quase 50 quilômetros ao sul do centro da cidade de São Paulo mesmo que o clima continue mudando como efeito da poluição gerada pela ação humana. “As árvores devem se beneficiar da elevação da quantidade de gás carbônico na atmosfera, da temperatura média anual e da umidade trazida pelas chuvas que provavelmente se intensificarão no Sudeste”, afirma o botânico Paulo de Oliveira, pesquisador da Universidade Guarulhos (UnG), que coordenou as análises do pólen coletado para esse estudo. Segundo ele, três espécies de árvores que os moradores 52

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

de São Paulo podem ver quando descem para o litoral – as embaúbas, com folhas em forma de mão aberta; os manacás-da-serra, de flores brancas, lilases e roxas; e as acácias, nesta época do ano com flores amarelas – atestam essa progressiva colonização. Essas espécies crescem e se multiplicam rapidamente em áreas livres, criando a sombra que elimina a vegetação anterior enquanto chegam espécies de crescimento mais lento e vida mais longa como as canelas, as perobas e os jequitibás. “Onde hoje vemos uma floresta em contato com campo ou cerrado, já houve muita mudança”, diz Pessenda. “Um dos dois já foi maior.” Além de menores, as florestas do alto da serra paulista eram diferentes das atuais, segundo estudo coordenado por Pessenda publicado em maio na Quaternary Research. Análises de isótopos (variações) de carbono do solo e de grãos de pólen e esporos retirados de uma turfeira (brejo de terra preta) indicam que há 30 mil anos florestas de araucárias conviviam com os campos de altitude de um trecho de Mata Atlântica no extremo sul do município de São Paulo. Hoje com uma área de 10 quilômetros quadrados, esses campos já foram mais extensos. As análises de solo e grãos de pólen confirmam ainda que são naturais e não resquícios da ação humana. Vestígios de carvoarias sugeriam antes que essa vegetação rasteira poderia ser resultado da exploração de árvores para produção do carvão que abastecia São Paulo e as estradas de ferro no início do século passado.

>

O Projeto Reconstrução da vegetação e clima desde o Holoceno médio no Brasil

modalidade

Linha Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Luiz Carlos Ruiz Pessenda – Cena-USP investimento

R$ 358.356,65 (FAPESP)


luiz carlos pessenda/usp

Grãos de história: pólen revela como foram o clima e a vegetação do planeta

“A extração de madeira deve ter ampliado a área de campo que já existia”, afirma o botânico Ricardo Garcia, coautor desse estudo e pesquisador do Herbário Municipal de São Paulo. “Não podemos descartar a influência do solo pobre em nutrientes, mas certamente os campos não são reminiscência de um passado mais seco, como se cogitava.” Outra conclusão é que o litoral paulista deve ter abrigado florestas no auge do período glacial, quando o gelo se expandiu para além dos polos e influenciou o clima de todo o planeta – a temperatura no Brasil deve ter sido de 5 a 10 graus mais baixa que a atual. Antes considerada seca e imprópria para as plantas, essa época se mostra agora úmida e favorável à vegetação. Essa umidade não era esperada, mas o geólogo da USP Francisco Cruz chegou à mesma conclusão examinando as proporções entre isótopos de oxigênio da água preservada em rochas de uma caverna de Santa Catarina e outra de São Paulo. “Dois estudos chegarem aos mesmos resultados por meio de técnicas diferentes não é mais coincidência. Já havia florestas no Brasil, mesmo no sul do Amazonas, no período glacial

que durou de 90 mil a 14 mil anos atrás”, diz Pessenda. Cruz acrescenta: “Não houve uma seca generalizada no país, como se pensava, mas um forte contraste climático, com áreas mais secas e outras mais úmidas”. A paisagem no alto da serra do Mar mudou lentamente, acompanhando as variações do clima. De 30 mil a 20 mil anos atrás as florestas de araucárias conviviam com os campos. Nos 2 mil anos seguintes elas começaram a avançar, favorecidas pelas temperaturas mais baixas e pela umidade intensa. Há 18 mil anos, porém, a temperatura começou a subir e a mata de araucárias a ceder espaço para árvores, arbustos e plantas rasteiras adaptadas ao clima mais quente e úmido. As quase 1.100 amostras de solo analisadas em 16 anos pelo grupo de Pessenda oferecem um quadro das mudanças por todo o país. “De 9 mil a 4 mil anos atrás os campos e os cerrados se expandiram, beneficiados por climas mais secos, por todo o Sul e o Sudeste até o Norte e o Nordeste”, afirma o físico da USP. “De 4 mil anos para cá, o clima se tornou mais úmido, similar ao de hoje, e as florestas expandiram.”

O empurra-empurra entre formas diferentes de vegetação faz parte também da história da Amazônia. Em Humaitá, sul do estado do Amazonas, campos naturais devem ter ocupado há 9 mil anos uma área maior que a atual e 5 mil anos atrás alargaram-se a ponto de tomar o dobro da área pela qual se espalham hoje. Essa expansão, porém, não ocorreu em toda a Amazônia. Em Altamira, na Amazônia Central, e em Porto Velho, no sul da Amazônia, a floresta resistiu. Essa vegetação rasteira começou a encolher há 4 mil anos e continua a ceder espaço para a mata fechada. “Os campos tendem a desaparecer naturalmente em algumas dezenas de séculos, em resposta ao clima atual”, diz Pessenda. Esse encolhimento, completa, vem sendo acelerado nos últimos anos pelo avanço do cultivo da soja: “Por sorte chegamos dois a três anos antes do início do plantio e recuperamos os sinais isotópicos da vegetação original nos solos da região”. n > Artigo científico PESSENDA, L.C.R. et al. The evolution of a tropical rainforest/grassland mosaic in southeastern Brazil since 28,000 14C yr BP based on carbon isotopes and pollen records. Quaternary Research. v. 71, p. 437-452. 2009.


>

ECOLOGIA

Rios

E

nquanto são construídas, as usinas hidrelétricas represam as águas de um rio, inundam cidades e matas e forçam o deslocamento da população ribeirinha. Em troca, geram a indispensável energia elétrica. Depois de prontas, elas também causam problemas ambientais, embora menos conhecidos, mas igualmente impactan­ tes. Geólogos e biólogos do Paraná e de São Paulo examinaram as transforma­ ções do rio Paraná nos últimos 20 anos e verificaram que as barragens das hi­ drelétricas, ao cortarem o rio, reduzem em 36% a velocidade da água, em 70% o volume de sedimentos em suspensão e diminuem a diferença entre os níveis máximos de água durante a seca e a cheia, modificando o modo como os peixes e outros seres viviam. As barragens também causam ma­ rés diárias. As comportas fecham par­ cialmente à noite, quando o consumo de eletricidade é menor, e reduzem em quase um metro o nível de água abaixo da barragem. Durante o dia, as turbinas têm de produzir mais eletricidade, as comportas deixam passar mais água e causam o efeito inverso. Estudos coor­ denados pelo geólogo José Cândido Stevaux, professor da Universidade Es­ tadual de Maringá (UEM), no Paraná, e da Universidade Guarulhos (UnG), em São Paulo, indicaram que a oscilação diária da água causada pelas barragens pode ampliar em 200% a erosão das margens do rio Paraná. E hidrelétrica é o que não falta nesse rio. São cerca de 150, contando só as que têm barragens com pelo menos 15 metros de altura, no próprio rio Paraná e em seus afluentes, entre eles os rios Tietê, Grande e Paranapanema, que se

54

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Hidrelétricas alteram funcionamento do rio Paraná e ampliam erosão das margens

ramificam por uma área de 2,5 milhões de quilômetros quadrados no Brasil, Pa­ raguai e Argentina – é a segunda maior rede de rios do Brasil. Se por um lado essas hidrelétricas produzem 60% da energia elétrica do país e abastecem as regiões que concentram a maior parte da população e da atividade econômica na América Latina, por outro transfor­ maram o Paraná e seus afluentes em uma sucessão de lagos que modificam o comportamento dos rios. “Um ano depois da entrada em funcionamento da última hidrelétri­ ca, o rio, no trecho mais próximo às barragens, tornou-se uma piscina, de tão transparente”, conta Stevaux, coordenador de um grupo que reú­ ne especialistas da UEM, da UnG, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, interior paulista, e de universidades e institutos de pesquisa argentinos que estudam o rio Paraná. “Os turistas adoram, porque podem mergulhar e ver raias e outros peixes nadando bem perto.” No início peixes predadores como o dourado, de um metro de comprimento, também de­ vem gostar. Sem a água turva, podem ver tudo melhor e comer à vontade. O problema é que esses predadores terão cada vez menos para comer nos anos seguintes, porque a população de peixes menores cairá rapidamente. Os geólogos e os biólogos desse gru­ po concentram as pesquisas em um dos poucos trechos do Paraná sem barra­ gens, entre a foz do rio Paranapanema, que separa São Paulo do Paraná, e o início da represa de Itaipu, que começa a se formar no município de Guaíra, Paraná, e se estende por mais de 120 quilômetros até chegar às barragens, uma delas com altura equivalente a

um prédio de 65 andares. Para medir a carga suspensa de sedimentos nesse trecho de 200 quilômetros de extensão e 4 quilômetros de largura em média, os pesquisadores soltam um disco pinta­ do de preto e branco, suspenso por um cordão, no meio do rio. Quanto antes o disco desaparecer de vista, mais rico em sedimentos é o rio. “Há alguns anos o disco desaparecia do nosso campo de visão depois de 1,5 metro”, conta Ste­ vaux. “Agora bate no fundo do rio, a 4 metros da superfície, e ainda o vemos.” Nesse trecho a transparência das águas é maior nas proximidades das usinas de Porto Primavera, no rio Paranapanema, o maior reservatório artificial de água do mundo, com área alagada equivalente a sete vezes a da baía de Guanabara. Quanto mais transparentes, mais as águas deixarão passar a luz do sol, que

>

O Projeto Propagação da “onda impactante” na dinâmica de fluxo e na carga de fundo do rio Paraná. Modelo para gerenciamento de rios aluviais sob impacto de barragem, hidrovia e mineração

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

José Cândido Stevaux – Universidade Guarulhos investimento

R$ 130.000,00 (FAPESP) R$ 220.000,00 (CNPq-ProSul)


o Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, um afluente do Paraná. Um dos objetivos do grupo é de­ finir a variação mínima de água entre a seca e a cheia de modo a conciliar a sobrevivência de peixes e plantas com a necessidade de gerar energia. “Como as barragens estocam água, os rios não têm mais cheia e a água não chega mais às lagoas em que os peixes desovam. Os capinzais que passam a maior parte do tempo inundados nas margens dos rios só brotam quando a água baixa”, exemplifica. “Essas alterações no fluxo de água podem se propagar e mudar radicalmente todo o ambiente.”

De Minas ao rio da Prata: represas reduzem o fluxo do rio Paraná

modifica as comunidades de plantas e de animais do fundo do rio. Microrga­ nismos, peixes e plantas acostumados ao lodo e à escuridão desaparecem. As algas, que dependem de luz, podem crescer não só na superfície, seu espa­ ço habitual, mas também no fundo. O perigo é que se multipliquem como o molusco bivalve Limnoperna fortunei, uma espécie invasora, que apareceu na última década no porto de Buenos Ai­ res trazido em água de lastro de navios vindos da Ásia. “Sem predador, esse molusco se espalha e causa prejuízos”,

diz Stevaux. Já atrapalhou até o funcio­ namento das turbinas de Itaipu. Com esses trabalhos, que incluem a reconstrução da história geológica do rio, a equipe de Stevaux amplia o co­ nhecimento sobre rios tropicais, menos estudados que os de clima temperado, cujo fluxo depende do derretimento da neve das montanhas. Stevaux imagina que essas pesquisas ajudarão a definir os limites aceitáveis de impactos am­ bientais de hidrelétricas a serem cons­ truídas no país. Já ajudaram a criar o Parque Nacional da Ilha Comprida e

Margi Moss

Turismo – Segundo Stevaux, os artigos

científicos e os trabalhos de mestrado e doutorado gerados por essa pesquisa estão ajudando a definir e a gerenciar atividades turísticas próximo aos gran­ des rios da bacia do Paraná ao indicar quanta exploração uma área suporta. Sua equipe elaborou uma equação matemática que define a fragilidade ambiental em 12 níveis e concluiu que os rios secundários nos municípios de Porto Rio, no Paraná, Taquarussu, no Mato Grosso do Sul, e Rosana, em São Paulo, encontram-se perto do máxi­ mo de impacto ambiental (nível 10), por serem intensamente visitados por pescadores no final do ano. As barragens e os lagos artificiais não causam só problemas. Também promovem o turismo fluvial, que atrai quem mora na região de Presidente Prudente e de Maringá, e criam desa­ fios, como a definição de espaços turís­ ticos. As praias, transportadas pelo rio, são móveis: em um ano podem estar a 200 metros do final de uma cidade, no ano seguinte a 3 quilômetros. Outro de­ safio é a mineração de areia – ainda não está certo quanto se pode tirar sem pre­ judicar o rio. “Pretendemos ajudar na elaboração de leis de proteção também da foz dos rios e não só das nascentes, que já são protegidas”, diz Stevaux. n

Carlos Fioravanti > Artigo científico STEVAUX, J.C. et al. Changes in a large regulated tropical river: the Paraná River downstream from the Porto Primavera Dam, Brazil. Geomorphology. v. 110 (in press). PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

55


>

virologia

Celebridade

mal conhecida Equipe do Adolfo Lutz isola os primeiros exemplares do vírus da gripe suína de paciente brasileiro Ricard o Zorzet to

A

equipe da virologista Terezinha Maria de Paiva, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, informou no final de maio ter isolado os primeiros exemplares do vírus da gripe suína de um brasileiro. O portador é um homem de 26 anos que apresentou os sintomas da gripe depois de uma viagem ao México e foi internado em 24 de abril no Instituto Emílio Ribas – o caso desse paciente, que já recebeu alta e passa bem, é o primeiro confirmado em São Paulo. O biólogo molecular Claudio Sacchi analisou amostras de secreção do nariz e da garganta do paciente e confirmou que elas continham material genético do vírus influenza A (H1N1) causador da chamada gripe suína. A variedade encontrada aqui é a mesma que originou este ano a epidemia que até 26 de maio havia atingido 12,9 mil pessoas em 46 países e causado a morte de 92. O aumento rápido do número de casos e a facilidade com que o vírus é transmitido entre os seres humanos levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a alertar para o risco de pandemia. Em seguida à identificação, Terezinha obteve várias cópias do vírus depois de cultivá-lo por quatro dias em laboratório, usando células renais de cães. Na seção de microscopia eletrônica do Adolfo Lutz, Marli Ueda e Jonas Kisielius identificaram vários exemplares do vírus já na primeira observação e se impressionaram com o número elevado de cópias que encontraram – em algumas imagens elas apareciam agrupadas como se estivessem em um ninho. A pronta identificação é um sinal de que o H1N1, que infecta sobretudo as vias respiratórias superiores, se reproduz rapidamente em células de mamíferos – o que pode incluir os seres humanos. Segundo Terezinha, nem sempre é fácil fazer o vírus se reproduzir em laboratório e observá-lo ao microscópio, uma vez que

56

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

depende da quantidade em que ele é encontrado nas células. “Em geral conseguimos isolar o vírus só em 15% das amostras de pacientes com quadro gripal que analisamos todos os anos”, conta. “Obtivemos o H1N1 já na primeira observação.” Pelo mundo - O isolamento do vírus

é fundamental para conhecer em detalhe a variedade que circula no país. Sob a coordenação de Cecília Simões Santos, a equipe do Lutz planejava iniciar ainda em maio o sequenciamento genético do H1N1 brasileiro e compará-lo ao de outros países. Assim será possível saber o quanto o vírus já se diferenciou do de outras regiões do mundo e como planejar uma vacina. Há três tipos conhecidos de vírus da influenza: A, B e C. Deles, o A é o mais comum e também o causador das grandes epidemias. A cada ano circulam pelo mundo diferentes variedades de influenza A, que são classificadas de acordo com duas proteínas que apresentam em sua superfície – a hemaglutinina, o H da sigla de letras e números, usada pelo vírus para aderir às células das vias respiratórias; e a neuraminidase, o N, que o ajuda a sair de uma célula infectada e invadir outra sadia. Não é a primeira vez que esse vírus provoca gripe em seres humanos.


Jonas Kisielius e Marli Ueda/IAL

Versão nacional: vírus H1N1 isolados de paciente brasileiro, vistos com aumento de 200 mil vezes

Em 1918 uma variedade de H1N1 originária de aves causou uma epidemia global conhecida como gripe espanhola e matou 60 milhões de pessoas. Nas três últimas décadas variantes menos letais do vírus, que parecem ter sito transmitidas inicialmente de pessoas para porcos, voltaram a infectar seres humanos, ocasionando surtos esporádicos com poucas mortes. Algumas variantes suínas foram encontradas até no Brasil, onde a virologista Sueko Takimoto, do Adolfo Lutz, identificou

entre 1976 e 1979 casos de gripe causada pelo H1N1 entre idosos da cidade de São Paulo. Na Morbidity and Mortality Weekly Report de 21 de maio, pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) constataram que pessoas com mais de 60 anos conservam alguma imunidade contra o H1N1. Um terço delas tem anticorpos capazes de inativar o vírus – esse índice é inferior a 10% nos adultos mais jovens. O resultado ajuda a explicar o perfil da epidemia atual, que atinge mais intensamente os jovens, e não os idosos como a gripe comum. A boa notícia é que, por ora, o vírus da epidemia atual mostrou-se menos letal que o das anteriores. Sete pessoas morrem em cada grupo de mil infectadas pelo H1N1. Essa taxa (0,7%) é um pouco superior à da gripe comum ou sazonal, que mata cinco por grupo de mil (0,5%) – na epidemia de gripe aviá­ ria esse índice chegou a 20%. Relativamente baixa, a mortalidade por gripe suína pode gerar um enorme custo em vidas se o vírus se espalhar mais – a gripe sazonal, que é menos letal, mata 500 mil pessoas por ano no mundo. “Com a proximidade do inverno, a atenção das autoridades internacionais se volta para o hemisfério Sul, onde está para começar a temporada anual de gripe”, comenta Terezinha. No Brasil o Instituto Butantan aguarda a OMS definir as variedades do vírus que deverão compor a vacina e o nível de proteção que ela proporcionará. “Assim que chegar a amostra, o instituto deve começar a produção da vacina contra o H1N1”, afirma o médico Isaias Raw, presidente da Fundação Instituto Butantan. De 100 mil a 1 milhão de doses devem ser suficientes para evitar o espalhamento da gripe suí­na no país, caso a epidemia continue a avançar. Inicialmente, essas doses seriam destinadas aos principais pontos de entrada no Brasil, como os portos e os aeroportos. “Quando se detectar um caso”, diz Raw, “vacinam-se só as pessoas que estiveram em contato com o doente”. Enquanto a vacina não surge, a melhor maneira de permanecer livre do vírus é adotar medidas básicas de higiene, como descartar lenços usados e manter as mãos limpas, e conservar o ambiente ventilado. n PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

57


Q

uando o parasita microscópico que causa a malária invade o sangue de uma pessoa, ele ataca e destrói os glóbulos vermelhos, causando anemia. As células danificadas aderem às paredes dos vasos e, nos casos mais graves, podem obstruir o fluxo sanguíneo e causar danos ao cérebro. Em resposta, o sistema imunológico é ativado e completa o quadro de sintomas com febre, dores musculares, fortes tremores e até convulsões. Um dos maiores desafios de saúde pública, essa doença, que infecta cerca de 250 milhões de pessoas no mundo a cada ano, é ainda mal conhecida em seres humanos. Uma medida desse desconhecimento é a descoberta feita pelo grupo do imunologista Ricardo Gazzinelli, do Centro de Pesquisas René Rachou, em Minas Gerais: o sistema imunológico tem uma resposta exacerbada a esse parasita, o plasmódio. Exatamente o contrário do que se pensava. Os resultados indicam também que drogas que controlem essa reação inflamatória excessiva – hoje fora do arsenal dos médicos contra a malária – podem ser aliadas valiosas contra a doença. As expectativas de como o sistema imunológico reagiria à infecção vinham do que se sabe a respeito da sepse bacteriana, um quadro de infecção e inflamação generalizadas considerado semelhante à malária em diversos aspectos. Nos casos extremos, o sistema imunológico entra no que os especialistas chamam de “paralisia imune”, um estado em que as células de defesa deixam de reagir, de maneira semelhante a um músculo que se contrai a ponto de impedir os movimentos. Os suspeitos em comandar esse processo são proteínas protagonistas na resposta imune inata,

>

Imunologia

Resposta

controlada Anti-inflamatórios podem combater reação exagerada do sistema imune à malária

58

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

os receptores conhecidos como TLR, abreviação do inglês toll-like receptors. Na membrana das células de defesa, os TLR têm a função de reconhecer microrganismos invasores e enviar sinais para outras células que participam da reação inflamatória que ajuda a combater a infecção. Em artigo publicado em abril na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), o grupo de Gazzinelli mostra o que aconteceu quando cultivaram células de pacientes com infecção aguda por Plasmodium falciparum, causador da forma mais letal da malária, na presença de compostos que ativam os TLR, ou agonistas. “Esperávamos observar uma tolerância das células aos agonistas desses receptores”, conta o pesquisador, uma expectativa coerente com a hipótese de paralisia imune. Mas o que observaram foi o oposto: “Na fase aguda da malária, a resposta dos TLR ao agressor estava superaumentada, e detectamos níveis circulantes muito elevados de mediadores inflamatórios, como várias citocinas”. Como parte de uma colaboração com o parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva, as células vinham de 57 pacientes atendidos na clínica de malária do Centro de Pesquisas em Medicina Tropical de Rondônia, em Porto Velho – agora um braço da Fundação Oswaldo Cruz, como o René Rachou. Apesar de surpreendente, a equipe não teve dúvidas sobre o achado. “O resultado era muito reprodutível entre os pacientes”, explica Gazzinelli, “o que mostrou que o entendimento inicial estava incorreto”. Ao medir no sangue o teor de substâncias inflamatórias, as citocinas, o grupo viu também que, quando os pacientes eram tratados e curados dos parasitas, essa resposta imunológica e inflamatória voltava ao seu limiar normalmente baixo. O passo seguinte foi entender como a estratégia de defesa contra a malária é orquestrada pelos genes do paciente. Para isso, o grupo de Gazzinelli usou microarranjos, chips em que puderam analisar de uma vez o nível de atividade de 20 mil genes por paciente, antes e depois do tratamento. E descobriram nas pessoas infectadas por malária uma expressão maior dos genes que controlam a expressão dos receptores toll-like. Mais do que isso, viram que essa atividade genética é induzida por uma citocina chamada interferon-gama (γ). Durante a pesquisa, que rendeu o doutorado a Bernardo Franklin sob orientação de Gazzinelli, o grupo também infectou camundongos com Plasmodium chabaudi, a espécie de parasita causadora da versão da malária que acomete roedores. Ao analisar as células do baço dos camundongos sete dias depois da infecção, os pesquisadores verificaram uma produção de interferon-gama 20 vezes maior em relação aos camundongos que não contraíram malária – um resultado muito semelhante ao detectado no sangue dos pacientes humanos. Finalmente, por meio de camundongos geneticamente modificados, o estudo caracterizou a sequência de eventos que leva à resposta


DR GOPAL MURTI/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC/Latinstock

Invasores no sangue: glóbulos vermelhos infectados por Plasmodium

exagerada pelo sistema imunológico. Quando o parasita entra no sangue, ele ativa um dos tipos de receptor toll-like, os TLR-9, que por sua vez induzem os linfócitos T – uma das células de defesa – a produzir o interferon-gama. Essa substância transmite às células imunes um sinal para expressarem os genes de outras variedades de TLR, fazendo o sistema de defesa responder fortemente ao plasmódio. Próximos passos - Não acaba aí. Em

busca de tomar o controle da doença, o imunologista de Minas Gerais selecionou genes mais ativos em pacientes com a febre da malária e a partir dele espera desenvolver marcadores biológicos que permitam prever a resistência ou a suscetibilidade de cada pessoa à malária. Na outra vertente do projeto, o estudo da malária em roedores pode revelar

estratégias para bloquear a ativação excessiva do sistema imunológico diante da doença. Por enquanto, os resultados indicam que drogas com atividade anti­-inflamatória que interfiram com a via de sinalização dos receptores toll-like podem ser potentes aliados na luta contra a malária. Anti-inflamatórios desse tipo ainda não estão no mercado, mas alguns compostos já estão em fase de testes pré-clínicos e clínicos. A possibilidade de se recorrer a anti­-inflamatórios é mais uma diferença entre a doença causada pelo plasmódio e a sepse, que é também caracterizada por uma reação inflamatória exacerbada. Mas, no caso da sepse, sem essa inflamação a invasão bacteriana que deu origem ao problema pode sair vitoriosa (ver Pesquisa FAPESP nº 146); já na malária, Gazzinelli e Franklin mostraram, em artigo publicado em 2007 na Micro-

bes and Infection, que em camundongos a reação causada pelos receptores tolllike não é importante para controlar a infecção pelo plasmódio. Dessa maneira, embora não curem a malária, esses medicamentos podem ajudar a evitar os sintomas da doença. n

Maria Guimarães > Artigos científicos 1. FRANKLIN, B.S. et al. Malaria primes the innate immune response due to interferon-γ induced enhancement of toll-like receptor expression and function. PNAS. v. 106, n. 14, p. 5.789-5.794. abr. 2009. 2. FRANKLIN, B.S. et al. MyD88-dependent activation of dendritic cells and CD4+ T lymphocytes mediate symptoms, but is not required for the immunological control of parasites during rodent malaria. Microbes and Infection. v. 9, p. 881-890. jun. 2007. PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

59


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Sintomas de ansiedade Distúrbios do sono e sintomas de ansiedade e depressão têm sido vistos no envolvimento da origem e perpetuação da dor crônica. O artigo “Padrão do sono e sintomas de ansiedade e depressão em pacientes com dor crônica”, de Martha M.C. Castro, da Universidade Federal da Bahia, e Carla Daltro, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, tratou da avaliação do padrão do sono e da prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em pacientes com dor crônica. Quatrocentos pacientes com dor crônica atendidos consecutivamente na clínica foram investigados. O diagnóstico mais frequente foi de dor miofascial seguido de dor neuropática. A prevalência de sintomas de ansiedade foi 72,8%, de depressão 61,5% e de alteração do sono 93%. O estudo revelou uma alta prevalência de sintomas de depressão e ansiedade e alterações no padrão do sono em pacientes com dor crônica. Arquivos de Neuro-Psiquiatria – vol. 67 – nº 1 – São Paulo – mar. 2009 n Saúde

Definição de morte cerebral O estudo “Máquinas e argumentos: das tecnologias de suporte da vida à definição de morte cerebral”, de Luciana Kind, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, analisa a produção acadêmica sobre o debate em torno da definição de morte cerebral concentrado na década de 1960 e publicado em periódicos médicos de destaque internacional. A pesquisa enfatiza que tecnologias de suporte de vida desenvolvidas ao longo do século XX e incorporadas na cena médica provocaram intenso debate em busca de legitimidade para novos procedimentos, como os transplantes de órgãos, por exemplo. Com suas práticas modificadas, a ciência médica pôs-se a inventar novos conhecimentos a esse respeito. As discussões sobre a definição de morte cerebral acabaram por transformá­-la numa caixa-preta, que viria a ser desmontada pelos estudos antropológicos sobre o assunto desenvolvido a partir dos anos 1980. História, Ciências, Saúde – Manguinhos – vol. 16 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./mar. 2009

60

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

n Ortopedia

Lesão no quadril de atletas O objetivo do estudo “Artroscopia do quadril em atletas”, de Giancarlo Cavalli Polesello, Nelson Keiske Ono, Davi Gabriel Bellan, Emerson Kiyoshi Honda, Rodrigo Pereira Guimarães, Walter Riccioli Junior e Guilherme do Val Sella, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, foi confirmar a importância terapêutica da artroscopia do quadril em atletas cuja dor impede a articulação do quadril. A técnica é capaz de diminuí-la a ponto de ajudar o retorno à atividade esportiva em níveis satisfatórios. Foram analisados 49 pacientes, acompanhados por um mínimo de 12 meses e o máximo de 74 meses (média de 39 meses). No perío­ do pré-operatório avaliou-se a localização da dor, sua intensidade segundo a escala de expressão facial e o grau de incapacidade. No período pós-operatório os pacientes foram avaliados pelos mesmos métodos do período pré-­ -operatório e pela análise subjetiva de retorno ao esporte. Observou-se alguma melhora em todos os casos e retorno ao esporte, de forma satisfatória, na maioria deles. Diante do que foi estudado, a artroscopia em atletas é uma técnica eficaz, capaz de promover o retorno à prática esportiva na maioria dos casos, sem dor e com função articular efetiva, desde que bem indicada. Revista Brasileira de Ortopedia – vol. 44 – nº 1 – São Paulo – jan./fev. 2009 n Economia

Qualidade versus quantidade Como em várias outras atividades, a pesquisa em economia internaliza um conflito entre qualidade e quantidade. Para avaliar tal conflito, o artigo “A pesquisa em economia no Brasil: uma avaliação empírica dos conflitos entre quantidade e qualidade”, de Walter Novaes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, documenta as publicações de 94 pesquisadores apoiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e 1.209 pesquisadores de 54 centros americanos

O arremessador do disco, de Miron/ Museu Nazionale Romano

n Neuropsiquiatria


Revista Brasileira de Economia – vol. 62 – nº 4 – Rio de Janeiro – out./dez. 2008 n Sociologia

1964 e os intelectuais O estudo “O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais”, de José Luís Sanfelice, da Universidade Estadual de Campinas, deseja captar no movimento da história, em uma conjuntura determinada, tensões que opuseram diferentes sujeitos sociais dos anos de 1970 no Brasil. Em um dos polos localiza-se o pensamento expresso pelos primeiros governantes do movimento civil-militar que ocuparam o aparelho de Estado em 1964. Humberto Castelo Branco, presidente da República, Flávio Suplicy de Lacerda, ministro da Educação e Cultura, e Raymundo Moniz de Aragão, com seus pronunciamentos no V Fórum Universitário, encarregaram-se de transmitir o pensamento do governo à sociedade. Na sequência, em curto espaço de tempo, os reflexos apareceriam no aparato legal da reforma universitária consentida. O contraponto à visão oficial encontra-se, para fins deste trabalho, em um texto da época de autoria de Florestan Fernandes e que resultou da conferência proferida na abertura do I Fórum de Professores, realizado no Rio de Janeiro em 1968. Espera-se, analisando o conflito ideológico, alcançar uma compreensão crítica mais acurada do movimento civil-militar de 1964 e das suas relações com diferentes intelectuais. Cadernos Cedes – vol. 28 – nº 76 – Campinas – set./ dez. 2008 n Agronomia

Plantas daninhas no Amazonas As áreas inundáveis localizadas na bacia dos rios Amazonas e Solimões são denominadas várzeas. A inundação é um evento natural que promove mudanças na estrutura e composição florística dessas comunidades. O conhecimento da diversidade de espécies é de fundamental importância para o entendimento da dinâmica da regeneração natural de espécies nos ecossistemas amazônicos. O trabalho “Composição florística de plantas daninhas em um lago do rio Solimões, Amazonas”, de Sonia Maria Figueiredo Albertino, Libia de Jesus Miléo, J.F. Silva e C.A. Silva, da Universidade Federal do Amazonas, teve como objetivo levantar a composição florística do solo do fundo

do lago do Manaquiri, em um período de seca excepcional, ocorrida em 2005, na Amazônia. Foram realizadas coletas de material botânico em duas áreas do lago, em novembro de 2005. Para a amostragem, utilizou-se um quadrado de madeira de 0,36 m², atirado aleatoriamente por 20 vezes em cada local de estudo. A vegetação emergente foi de 5.958 indivíduos, distribuídos em sete famílias e nove espécies. As famílias mais representativas em número de espécies foram Poaceae e Cyperaceae. Cyperus esculentus e Luziola spruceana foram as mais frequentes, e Mimosa pudica e Alternanthera sessilis, as de maior abundância. C. esculentus e M. pudica apresentaram maior número de indivíduos, de densidade e de valor de importância. As espécies de plantas encontradas nesse estudo mantiveram sua capacidade de crescer e se desenvolver mesmo após longo período submersas. Planta Daninha – vol. 27 – nº 1 – Viçosa – jan./ mar. 2009 n Tecnologia

de alimentos

Composição química do arroz O objetivo do trabalho “Influência das condições de parboilização na composição química do arroz”, Giniani Carla Dors, Renata Heidtmann Pinto e Eliana Ba­ diale-Furlong, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi avaliar a influência de diferentes tempos de maceração e autoclavagem, durante o processo de parboilização, na composição química do arroz parboilizado. Uma amostra de arroz verde, com casca e seca, foi submetida ao processo de parboilização. Após a secagem, a amostra foi beneficiada em miniengenho, separando-se a casca juntamente com o farelo e o endosperma amiláceo. Todas as porções foram trituradas e peneiradas, recolhendo-se as porções que passaram através de 0,5 mm para serem caracterizadas quanto aos teores de umidade, cinzas, proteínas, fibras, amilose e fenóis totais. Os resultados mostraram que as condições operacionais de tempo de maceração e autoclavagem afetaram os teores de minerais, proteínas, fibras, amilose e fenóis entre o endosperma amiláceo e as porções externas do grão de maneira diferente para cada componente, sendo que o parâmetro tempo de maceração, no seu maior nível (seis horas), teve influência significativa nas frações determinadas.

Miguel Boyayan

de referência em economia. Os dados mostram que, entre 1999 e 2004, a média de publicações internacionais dos pesquisadores do CNPq é extremamente pequena, quando comparada com a dos americanos com mesma orientação metodológica. Ainda assim o número médio total das publicações dos pesquisadores no Brasil é estatisticamente maior, sugerindo um sacrifício de qualidade para aumentar o número de publicações.

Ciência e Tecnologia de Alimentos – vol. 29 – nº 1 – Campinas – jan./mar. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

61


>>

lINHA DE PRODUÇÃO mundo

Miniaturização com nanotubos

Vin Crespi/Universidade da Pensilvânia

> Radar antipássaro

62

Construir telefones celulares, computadores e outros aparelhos eletrônicos ainda menores do que os já existentes é uma meta persegui­ da pelos fabricantes desses equipamentos. Um estudo do Departamento de Ciência e Engenharia de Materiais da Universidade Drexel, nos Estados Unidos, mostrou que o uso de nanotubos de carbono pode apressar essa miniaturização. Para serem utilizados na construção de tais equipamentos, os na­ notubos de carbono, que medem de 1 a 3 na­ nômetros de diâmetro (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão), precisa­ riam ser estruturados com múltiplos transis­ tores. Para isso, os pesquisadores da equipe do professor Christopher Li indicam a fabri­ cação uniforme desses dispositivos em quan­ tidade e com padrões controlados numa es­ cala de algumas dezenas de nanômetros. Eles conseguiram cristalizar nanotubos sobre blo­ cos de copolímeros, material produzido com dois tipos de polímero. Essa estrutura permi­ te que os nanotransistores podem ser, de forma ordenada, instalados sobre os nanotu­ bos. Assim, nesse circuito eletrônico extre­ mamente miniaturizado os movimentos dos elétrons são mais bem controlados.

junho DE 2009

PESQUISA FAPESP 160

Um problema ambiental causado pelos cataventos dos geradores de energia eólica é a morte acidental de pássaros. Apenas nos Estados Unidos, um recente estudo apontou que pelo menos 7 mil aves morreram ao se chocar com as pás dos aerogeradores. Para acabar com a mortandade, a empresa DeTect, da Flórida, nos Estados Unidos, desenvolveu um sistema dotado de radar que desliga automaticamente o catavento ao acusar a presença de pássaros por perto. Uma primeira unidade do equipamento está em uso na fazenda eólica Penascal, no Texas, localizada em um importante corredor de aves migratórias por onde passaram, apenas no outono de 2007, 4 mil pássaros. Normalmente, as aves voam centenas de metros acima dos aerogeradores, mas condições meteorológicas desfavoráveis fazem com que elas reduzam a altitude, colocando-as em rota de colisão com os cataventos.

> Nanossonda contra o câncer Pesquisadores da Universidade Northwestern, de Chicago, nos Estados Unidos, deram mais um passo no tratamento de doenças que exigem grande

precisão na aplicação de medicamentos. Eles criaram uma nanossonda capaz de levar doses exatas de drogas em escala nanométrica para células enfermas por certas doenças, como câncer, evitando atingir tecidos sadios do entorno. O dispositivo, batizado de Nanofountain Probe, ou sonda nanofonte, funciona de duas formas distintas. Num modo, ele atua como uma caneta-tinteiro, carregada com droga revestida com nanodiamantes e capaz de distribuir o medicamento por várias células, como se os cientistas estivessem “escrevendo” com ela. O segundo modo funciona como uma nanosseringa, permitindo a injeção direta de biomoléculas ou substâncias químicas nas células doentes.

> Bateria feita de vírus De forma pioneira, pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, conseguiram criar uma bateria de lítio, dessas usadas em notebooks e outros equipamentos eletrônicos, que usa um vírus geneticamente modificado para fazer o material dos terminais positivo e negativo desses dispositivos. Os vírus chamados de M13 são inofensivos ao homem


(10 de maio), é que o processo de fabricação das novas baterias seria barato e ambientalmente correto. Sua síntese é feita em baixa temperatura (o que requer pouca energia), não emprega solventes orgânicos agressivos e o material usado no dispositivo não é tóxico. Os pesquisadores se conscientizaram que os biossistemas têm grande capacidade de construção e organização de materiais nanoestruturados.

zero de poluentes

> Joelho biônico Vítimas de acidentes ou doenças que tiveram uma ou as duas pernas amputadas acima do joelho já podem contar com uma avançada prótese desenvolvida pela Ossur, uma companhia com sede na Islândia, especializada em produtos ortopédicos não invasivos. Batizada de Power Knee, a prótese já está sendo usada por um primeiro paciente – um militar americano mutilado na guerra do Iraque –, que relatou ter recuperado um andar totalmente normal. De acordo com um comunicado do fabricante, o “segredo” do aparelho está na incorporação de sensores e de um computador dotado de um programa de inteligência artificial que, juntos, restauram a função muscular perdida. Quando os sensores acusam que a prótese tocou no chão, o movimento em qualquer

ângulo de flexão é liberado, conferindo mais segurança ao usuário. Os sensores também garantem que o conjunto de atuadores, que fazem o papel dos músculos humanos, seja acionado sempre na medida certa. A interação entre o paciente e o equipamento, por sua vez, é continuamente mediada pelo programa de inteligência artificial do artefato.

Sensores controlam a função muscular e o equilíbrio

PESQUISA FAPESP 160

Ossur

e passam por modificações nas proteínas que os recobrem. Isso faz eles se autorrecobrirem de fosfato de ferro e se fixarem em nanofios de óxido de cobalto que se constituem no material dos terminais da bateria. A descoberta pode levar a uma nova geração de baterias bem menores, mais eficientes e fáceis de recarregar do que as atuais. Um importante avanço da pesquisa, publicada na revista Science

MDI

Carro movido a ar

Passageiros que desembarcam nos aeroportos Charles de Gaulle, em Pa­­ ris, e Schiphol, em Amster­ dã, desde o mês passado se deparam com mais uma novidade desenvolvi­ da para melhorar o ar do planeta: os carros com­ pactos AirPod. Movidos a ar comprimido, esses veí­ culos estão a serviço das companhias aéreas Air France e KLM, fazendo o transporte de passageiros e cargas em dois dos mais movimentados aeroportos europeus. Com design fu­ turista, emissão zero de poluentes e controlável AirPod: joystick e emissão por um joystick, o AirPod gasta apenas € 1 (cerca de R$ 2,80) para rodar 100 quilômetros. Essa versão acomoda três adultos e uma criança, além de bagagem, enquanto o modelo para transporte de cargas em rotas urbanas tem capacidade para mais de um metro cúbico ou 1 mil litros. A velocidade máxima do carro, que tem 2,07 metros de comprimento por 1,60 m de largura, é de 70 km/h e sua autonomia é de 220 quilômetros. O AirPod foi desenvolvido pela Motor Development International (MDI), uma empresa de Luxemburgo, criada em 1991 e que apresen­ tou os primeiros protótipos em 1998. O carro usa eletricidade para fazer o ar mover os pistões do motor. O reabastecimento da eletricidade pode ser feito em tomadas caseiras entre uma hora e meia e quatro horas e meia e os tanques de ar podem levar apenas 90 segundos para serem completados. Isso pode ser feito em postos com bombas específicas de ar comprimido ou com um compressor caseiro.

junho DE 2009

63


>>

lINHA DE PRODUÇÃO brasil

A técnica para tratamento de Cicatrização feridas de grande extensão a vácuo e de difícil cicatrização desenvolvida pelo médico Fábio Ka­­­mamoto, responsável pela cirurgia plástica no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), que utiliza materiais simples para fazer um curativo a vácuo eficiente e barato, tem feito sucesso. As 120 vagas para os quatro cursos de treinamento gratuitos realizados em março e abril foram insuficientes para atendimento dos profissionais de saúde interessados. A ideia de usar a rede de vácuo instalada sobre os leitos hospitalares para tratar feridas provocadas por acidentes, queimaduras ou diabetes surgiu da prática hospitalar. “No ano passado, eu atendi 987 pacientes com feridas graves, que não fecham com gaze e esparadrapo”, relata. Os curativos importados, que utilizam aspirador elétrico em vez de vácuo, custam cerca de R$ 4 mil por semana, enquanto o nacional fica entre R$ 90,00 e R$ 120,00. O tratamento consiste em colocar esponjas esterilizadas recobertas com plástico adesivo sobre a ferida. A drenagem do local é feita por uma sonda ligada ao sistema de vácuo, que conta com um dispositivo regulador para estabilizar a pressão do ar desenvolvido em parceria com o professor José Carlos de Moraes, do Laboratório de Engenharia Biomédica da Escola Politécnica da USP.

Válvula de regulagem estabiliza sistema a vácuo

O professor Victor Carlos Pandolfelli, do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), recebeu o Prêmio Wakabayashi 2009 pelo artigo “Microsilica effects on cement bonded alumina-magnesia refractories castables”, apontado como o melhor trabalho na área de materiais cerâmicos para aplicações a alta temperatura publicado em 2008. O estudo, que deu 64

junho DE 2009

origem a um novo concreto refratário para revestimento de equipamentos da indústria siderúrgica, foi

de Orleans, na França, os outros três autores do artigo, também foram premiados pela Associação Técnica de Refratários do Japão com o mais importante prêmio concedido na área de cerâmicas refratárias. fotos eduardo cesar

> Reconhecimento internacional

publicado no Journal of the Technical Association of Refractories. Mariana Braulio, bolsista de doutorado da FAPESP na UFSCar, Luís Rodolfo Bittencourt, diretor técnico da Magnesita Refratários, e Jacques Poirier, professor da Universidade

Materiais cerâmicos desenvolvidos na UFSCar

PESQUISA FAPESP 160

> Estudantes premiados Quatro projetos de estudantes brasileiros foram premiados em cinco categorias na Feira Internacional de Ciências e Engenharias (Isef), promovida pela Intel e realizada na cidade do Reno, nos Estados Unidos, de 10 a 15 de maio. O projeto


Variedades mais produtivas

> Identificação térmica

febrace

de um motor ecologicamente correto para aviões supersônicos. Felipe Gabriel Kuhn Soares, da Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, elaborou um detector de pré-ignição e ficou com o quarto lugar na categoria Engenharia Elétrica e Mecânica. Participaram da feira 1.563 estudantes de 51 países, sendo que 15 deles foram selecionados durante a 7ª edição da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), realizada em março em São Paulo.

Ana Cláudia, Felipe e Ana Clara: educação ambiental

Duas novas varieda­ des de amendoim com alto teor de ácido oleico, que proporciona maior durabilidade ao produto, já que ele pode ser armazenado por mais tempo sem perda de qualidade, foram desenvolvidas pelo Instituto Agronômico (IAC), sediado em Campinas, no interior paulista. Batizadas de IAC 503 e IAC 505, elas contêm cerca de 70% a 80% do ácido, diante de 40% a 50% dos produtos tradicionais. A novidade vai garantir aos doces e óleos derivados do amendoim maior vida de prateleira. Os primeiros testes de produtividade foram feitos na safra 2005/2006, quando as variedades 503 e 505 produziram, respectivamente, 5.859 e 5.344 quilos por hectare (em casca), ante 4.412 e 4.495 kg/hectare de duas variedades utilizadas comercialmente, os cultivares IAC 886 e IAC Caiapó. Os novos materiais são superiores também na quantidade de grãos de maior tamanho — mais valorizados no mercado de confeitaria — , obtidos após o descascamento e a retirada das impurezas. As sementes das novas variedades deverão chegar aos produtores na safra 2010/2011.

Mais tempo na prateleira

iac

Consciência e ação: metodologia de educação ambiental, dos alunos Ana Claudia Cassanti, Felipe Seabra Fernandes e Ana Clara Cassanti, do Colégio Dante Alighieri, de São Paulo, ficou com o primeiro lugar na categoria Excelência em Ciências Sociais e Comportamentais e recebeu US$ 1.500,00. Ivan Lavander Candido Ferreira, do Colégio Guilherme Dumont Villares, de São Paulo, que isolou substâncias presentes em ovos de aranha que podem ser usadas na produção de antibióticos, foi duplamente premiado. Conquistou o segundo lugar na categoria Microbiologia e o quarto na cerimônia dos patrocinadores, concedido pela Sociedade Americana de Microbiologia. Ivan desenvolveu o projeto no Instituto Butantan, orientado pelo professor Pedro Ismael da Silva Junior. O estudante Rafael Telis Gazzin Pessoa, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, ficou em terceiro na categoria Engenharia Elétrica e Mecânica com o projeto

O reconhecimento pelo calor do rosto é um novo padrão biométrico de identificação, já patenteado, desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), orientados pela professora Carmen Déa Moraes Patro, especializada em inteligência artificial. Como a radiação térmica é específica para cada pessoa, a liberação a ambientes restritos físicos ou virtuais se dá mediante a avaliação de um padrão registrado anteriormente. “A leitura é feita por um aparelho sensível ao infravermelho, que capta o padrão térmico de cada rosto”, diz Carmen. Mais de cem pessoas já participaram de testes feitos com o novo método de controle de acesso desde 2003, quando a pesquisa teve início. A medição de calor é feita em pontos predeterminados,

localizados principalmente em volta dos olhos e da boca. “A leitura térmica consegue identificar a pessoa mesmo com maquiagem ou alguns tipos de máscara, como as de meia, por exemplo”, diz a pesquisadora.

PESQUISA FAPESP 160

junho DE 2009

65


eduardo cesar


>

tecnologia

Energia

Coletivo a hidrogênio Ônibus montado no Brasil faz parte de experimentos mundiais para redução da poluição do ar Marcos de Oliveira

U

m ônibus movido a hidrogênio passará a rodar provavelmente ainda neste mês de junho numa linha convencional urbana entre os bairros do Jabaquara, na zona Sul de São Paulo, e São Mateus, na zona Leste, passando pelos municípios de São Bernardo do Campo, Diadema, Santo André e Mauá, dentro da Região Metropolitana de São Paulo. O feito é inédito no Brasil e traz muitas novidades. Veículos movidos por essa tecnologia são silenciosos e não emitem poluentes. Eles lançam no ambiente apenas vapor-d’água e trazem benefícios à saúde porque não contribuem para o surgimento de doenças respiratórias, além de umidificar o ar das grandes cidades. Ao lado dos biocombustíveis e dos veículos elétricos, o hidrogênio é visto por especialistas como uma real alternativa para os derivados de petróleo que emitem poluentes e tendem a escassear no futuro porque as reservas de óleo e gás natural são finitas, tanto pelo esgotamento de anos de exploração como pelo aumento do consumo mundial. Assim, a experiência brasileira se enquadra dentro de uma série de experimentos que são realizados pelo mundo com carros e ônibus a hidrogênio no lugar da gasolina e do diesel com o objetivo de diminuir os gases nocivos às pessoas e ao planeta. O ônibus foi Ônibus vai montado no Brasil trafegar 250 km com financiamenpor dia e to do Global Enviemitir apenas ronment Facility vapor-d’água

(GEF), ou Fundo Global para o Meio Ambiente, uma agência ligada ao Banco Mundial, que financia iniciativas de desenvolvimento sustentável em vários países. “Fizemos parcerias no Brasil e no exterior para montar o ônibus e transferir tecnologia para o país porque no início o projeto era para comprar os ônibus prontos na Europa. O argumento foi que o Brasil é o maior produtor de ônibus do mundo [em 2008 foram produzidos 44.111, sendo 27.948 exportados, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea)] e temos uma longa tradição na indústria de carrocerias de ônibus”, diz Carlos Zündt, gerente de planejamento da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), ligada à Secretaria dos Transportes Urbanos do Estado de São Paulo, instituição que ficou responsável pelo desenvolvimento e gerenciamento do projeto e vai colocar o ônibus a hidrogênio no corredor metropolitano exclusivo de 33 quilômetros (km). O objetivo aqui é incorporar, integrar e desenvolver tecnologia de uso do hidrogênio como combustível e preparar as empresas para esse futuro mercado. Em outros projetos semelhantes realizados no mundo prevaleceu a compra de ônibus prontos, principalmente da Mercedes-Benz, que possui um modelo da série Citaro que funciona a hidrogênio e já roda em várias cidades europeias, principalmente em Berlim, na Alemanha, que possui 18 veículos. Na Europa, desde 2004, o projeto Clean Urban Transport for Europe (Cute), ou Transporte Urbano Limpo PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

67


Montagem especial Modelo de série da Marcopolo foi transformado para receber o sistema a hidrogênio

Ventiladores do sistema de resfriamento dos motores elétricos, da célula e dos sistemas auxiliares daniel das neves

Tanque de hidrogênio

Células a combustível Motores de tração elétrica

Inversores de corrente elétrica

Controladores e distribuidores de energia

para a Europa, financiado pela União Europeia, permitiu que 38 ônibus Citaro movidos a hidrogênio circulassem por nove cidades como Londres, Madri, Barcelona, Amsterdã, Hamburgo, Stuttgart, Luxemburgo, Porto e Estocolmo. Eles já rodaram 135 mil horas e a experiência se mostrou ambientalmente sustentável. Outros três projetos foram realizados em Reykjavik, na Islândia, Pequim, na China, e em Perth, na Austrália. Ao todo foram utilizados 47 ônibus. O projeto tem 31 parceiros entre órgãos dos governos, indústrias e universidades. Todos, inclusive o brasileiro, são projetos de demonstração e teste da tecnologia em condições reais e nenhum deles teve objetivos comerciais simplesmente. No caso brasileiro, a EMTU terá, como compromisso previsto no investimento, que testar o ônibus e apresentar os resultados e a experiência ao GEF, que poderá distribuir relatórios com a experiência para outros países.

No Brasil, o projeto foi iniciado em 2004 e reuniu um consórcio internacional de empresas construtoras e fornecedoras. O ônibus possui nove cilindros de hidrogênio e aparelho de ar-condicionado no teto e todos os outros equipamentos ficam na parte de trás do veículo. No Citaro o design é diferente. Todos os equipamentos estão instalados no teto, o que o faz necessitar de uma suspensão eletrônica especial e muito cara. Mas ele é igualmente dependente da célula a combustível. É ela que transforma o hidrogênio em eletricidade e faz mover o ônibus por meio de dois motores elétricos. A célula é formada por um conjunto de placas de eletrodos, normalmente de grafite, que, em forma de sanduíche, agrupa também, entre as placas, uma membrana polimérica chamada de Membrana de Troca de Prótons (PEM, na sigla em inglês). Ao passar por ela, as moléculas de hidrogênio (H2) são quebradas e os elétrons são liberados, gerando ele-

tricidade. Para realizar esse processo eletroquímico, o hidrogênio também se une ao oxigênio captado do ar formando vapor-d’ água no final. Essa tecnologia – componente-chave de todo o sistema – foi adquirida da Ballard, uma empresa canadense que começou a desenvolver células a combustível em 1983 e entre 1992 e 1994 apresentou os primeiros protótipos. Em 2007 a Daimler – holding que possui a Mercedes-Benz – e a Ford se tornaram sócias majoritárias em uma subsidiária da Ballard, a Automotive Fuel Cell Cooperation (AFCC) ou Coo­ peração para Célula a Combustível Automotiva. Fora os sistemas de transporte de hidrogênio e controle eletrônico, as duas células visualmente são duas caixas metálicas com 81centímetros (cm) de comprimento, por 25 cm de profundidade e 30 cm de largura cada uma. “São duas células independentes que trabalham interligadas entre si, iguais à que equipa o carro Classe A a


hidrogênio da Mercedes-Benz, que também está em demonstração na Europa desde 2003, e o Ford Focus apresentado em 2006 nos Estados Unidos, Canadá e Europa. Cada célula da Ballard gera 68 quilowatts (kW) de potência máxima, ou 91 horses power (hp). Para efeito de comparação, uma casa com dois quartos e um casal de classe média com dois filhos precisa de uma potência de 5 kw. O Brasil já possui, pelo menos, três empresas, Electrocell, Unitech, (ver Pesquisa FAPESP edições 93 e 103) e NovoCell – todas paulistas e com financiamento do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP –, que estão desenvolvendo células a combustível e peças para esse equipamento em projetos pontuais para geradores de energia elétrica estacionários, principalmente para empresas, e não automotivos. Os sistemas auxiliares da célula do ônibus, como a injeção e a circulação do hidrogênio e do ar atmosférico, na pressão e umidade requeridas pelo equipamento principal e parte da eletrônica de controle, foram desenvolvidos pela empresa alemã Nucellsys, que também possui a Ford e a Daimler como sócias. O gerenciamento Monitor no painel do de todos os sisônibus informa temas, inclusiquilowatts e ve os testes de

eduardo cesar

quantidade de hidrogênio

durabilidade são feitos pela Instituto de Pesquisa Força Elétrica Internacional (EPRI, na sigla em inglês), com sede na Califórnia, nos Estados Unidos, que traz a experiência em gerenciar projetos desse tipo. Cooperação nacional - No lado

bra­sileiro do consórcio, a carroceria é da Marcopolo, um dos maiores fabricantes de carrocerias do mundo com três fábricas no Brasil e 11 no exterior, em países como China, Índia, Rússia, Portugal, Argentina, México e Egito. O modelo a hidrogênio é da série Gran Viale, usada em ônibus urbanos, com 12,5 metros de comprimento, e pode acomodar 63 passageiros sentados e 20 em pé. A adaptação do ônibus ao sistema de célula a combustível e demais equipamentos do sistema a hidrogênio foi realizada por outra empresa brasileira, a Tuttotrasporti, uma empresa de brasileiros de origem italiana sediada em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Ela é especializada na produção e modificação de chassis (estrutura metálica que suporta o veículo com os eixos das rodas inclusos) para veí­ culos especiais, como ônibus a gás ou híbridos, com baterias e a diesel, com segundo piso, ou dois eixos na frente, ou ainda veículos com direção invertida próprios para exportação pa­ra países como Inglaterra ou Japão. “A Tuttotrasporti foi a maior beneficiada brasileira porque foram

Substituição total Hidrelétricas podem ser produtoras de hidrogênio O abastecimento é considerado um obstáculo para o mercado automotivo de hidrogênio. Postos para reabastecimento em maior quantidade só existem no estado da California, nos Estados Unidos, no Japão e na Islândia, com o hidrogênio obtido da água, por eletrólise, ou gás natural. No Brasil, uma boa oportunidade está nas usinas hidrelétricas. Além da energia barata produzida durante a madrugada, quando cai o consumo, é possível utilizar a chamada energia vertida turbinável, que é a eletricidade a ser aproveitada pela água vazada no vertedouro em situações de enchimento excessivo dos reservatórios ou em horários quando não há demanda. A água é desperdiçada porque a energia elétrica não pode ser estocada. O jeito é transformá-la em hidrogênio. Os professores Ennio Peres, do Laboratório de Hidrogênio, e Carla Cavaliero, da Faculdade de Engenharia Mecânica, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), junto com o pesquisador paraguaio Gustavo Riveros-Godoy, da Universidade Nacional de Assunção, fizeram um estudo de produção e distribuição de hidrogênio para ônibus urbanos na cidade de Foz de Iguaçu, no Paraná, onde fica a sede brasileira da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Eles apresentaram um trabalho no 4° Workshop Internacional sobre Hidrogênio e Células a Combustível realizado em outubro em 2008 na Unicamp, que demonstra a viabilidade operacional de trocar os ônibus a diesel por veículos a hidrogênio nas quatro empresas de Foz, uma cidade com 309 mil habitantes. Sem considerar o custo dos ônibus, eles utilizaram dados do modelo a hidrogênio da Mercedes-Benz, o Citaro Fuel Cell. O melhor modelo de produção do gás seria a forma centralizada na própria Itaipu, onde os ônibus iriam abastecer uma vez por dia. O custo do hidrogênio por quilo (kg) seria de US$ 2,86 e a média de consumo de 0,205 kg por quilômetro rodado. Em termos financeiros, o diesel ainda ganha, mas o hidrogênio tem vantagens ambientais cada vez mais levadas em conta. PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

69


daimler

Novo modelo do Citaro é híbrido porque aproveita a energia do hidrogênio para recarregar baterias

seus engenheiros e técnicos que adquiriram conhecimento na adaptação, montagem e integração dos sistemas, inclusive a CPU [unidade central de processamento], que compreende processadores que gerenciam a energia elétrica do ônibus assim como a pressão do hidrogênio e outros sistemas ”, diz Zündt. “O software foi moldado por nós para controlar todos os pontos. Cada subsistema, como as células, tem o seu processador que indica, por exemplo, a sua temperatura [ela funciona entre 60 e 80°C], e eles estão conectados a um computador maior que tem acesso a todos os protocolos de funcionamento e permite gerenciar todo o ônibus”, diz o engenheiro Sidney de Oliveira Sobrinho, da Tuttotrasporti. Energia constante - O ônibus a hidrogênio brasileiro também é um veí­ culo híbrido porque pode acumular energia em baterias especiais. São três baterias de níquel-sódio, de alto desempenho, fornecidas pela empresa suíça, 70

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

MSDea, que são capazes de guardar grande quantidade de energia. Tanto elas como as células repassam energia elétrica para os dois motores elétricos refrigerados a água da marca Siemens fabricados na Alemanha. “A célula envia energia de forma constante. Quando o ônibus está parado, a energia não utilizada no momento vai para as baterias. O acionamento dos freios também gera energia armazenável. Com elas é possível rodar mais 50 km, além dos 300 km com hidrogênio. No corredor onde ele vai operar, os ônibus a diesel rodam 250 km por dia”, diz Zündt. Até a Mercedes-benz apresentar neste ano um modelo híbrido do Citaro Fuel Cell (célula a combustível), o brasileiro era o único a possuir o diferencial de ser um ônibus híbrido. Ele ficou pronto em julho de 2008 em Caxias do Sul e a partir daí começou uma série de testes depois de quase três anos de projeto e construção. Até o mês de maio, quando chegou a São Paulo, ele já havia rodado 2.200 km. Um percurso que não incluiu a viagem de Caxias do Sul à capital paulista porque no caminho não havia como reabastecê-lo com hidrogênio. O conhecimento adquirido pelas empresas brasileiras será útil para os

três novos veículos de série previstos que deverão ser construídos no Brasil, além do primeiro considerado um protótipo. Eles deverão rodar no mesmo corredor de ônibus, mas já devem apresentar modificações por conta da experiência adquirida. “As lições desse primeiro protótipo serão adotadas nos próximos ônibus e aí eles poderão ser produzidos em série pela Tuttotrasporti”, diz Zündt. “O compartimento de motorização onde estão instalados os equipamentos como a célula, os motores elétricos, radiadores e outros aparelhos deverá ter uma redução de 50% no tamanho.” Os próximos, ainda sem data para serem entregues, terão 15 metros de comprimento e três eixos e alguns outros componentes e equipamentos nacionalizados. “O eixo, que é húngaro, poderá ser feito aqui, assim como há possibilidade de os motores elétricos e outros dispositivos como radiadores e conversores de tensão serem fabricados no Brasil”, diz Sobrinho. “Serão realizados estudos para reduzir custos, nacionalizando o que for possível, e utilizar o conhecimento para outros projetos.” O preço total do ônibus não é revelado pelas partes. Sabe-se apenas que é


Posto na garagem - Entre as empresas

nacionais investidoras no projeto estão a Petrobras e a Eletropaulo. As duas estão envolvidas na unidade de produção do hidrogênio. Esse gás não existe de forma isolada na natureza, embora esteja presente na água, no etanol, no gás natural e na gasolina, podendo daí ser extraído por meio da quebra das moléculas dessas substâncias que assim o liberam. O abastecimento do ônibus será feito na garagem da EMTU em São Bernardo do Campo, onde ficam os ônibus que operam no corredor. Uma estação de produção vai ser construída na garagem e será operada pela BR distribuidora da Petrobras. O sistema utilizado será a eletrólise da água, em que uma corrente elétrica separa as moléculas de hidrogênio e oxigênio. Essa unidade de produção e abastecimento é oriunda da empresa canadense Hydrogenics, especializada na produção de hidrogênio por eletrólise. A Eletropaulo vai construir uma rede especial para o funcionamento da estação de forma menos custosa possível, com o fornecimento preferencial de energia para fabricação de hidrogênio feito fora dos horários de pico. Como a estação está sendo construída, nos primeiros meses de testes do veículo o hidrogênio virá por caminhão de uma refinaria da Petrobras no município de Cubatão. Um fator preocupante quando se fala em hidrogênio ou de qualquer gás é a segurança. “As paredes do cilindro são de aço inox e muito espessas, o hidrogênio é uma molécula muito pequena que pode vazar em escala molecular

se não for bem vedado com material e técnica adequados”, diz Zündt. Além disso, existem sistemas de sensores e válvulas que rapidamente fecham os nove cilindros em caso de impacto do ônibus. Os tanques de hidrogênio, que são de origem norte-americana, carregam cada um 5 quilos (kg) desse gás. No total são 45 kg submetidos a uma pressão de 300 bar, a mesma de um mergulho a 300 metros de profundidade no fundo do mar. Na célula a pressão é reduzido para 2 bar por um sistema de válvulas. Mas no início do processo da produção na estação ele é estocado a 700 bar. Na estação também é possível estocar o oxigênio liberado da reação. Ele é bem puro e pode ser usado para fins medicinais, se os custos forem favoráveis. Em relação ao preço do quilo do hidrogênio, ele é mais caro que o diesel. O quilo no mercado (que usa o produto para fins industriais e alimentícios nas gorduras hidrogenadas e o extrai do gás natural por meio de equipamentos chamados de reformadores) não é competitivo em relação ao diesel, mesmo na produção própria via eletrólise porque o gasto de energia e seus custos são grandes. Para Zündt, a tecnologia para uso no transporte ainda é cara em relação às tradicionais se não for considerado o custo ambiental e de saúde. O sistema utilizado no projeto brasileiro é um ciclo fechado onde se inicia e termina com água, que sai em forma de vapor para a atmosfera. Outro aspecto

a considerar é que os sistemas de célula a combustível possuem um nível de eficiência energética muito melhor que os demais. “Em cada quilo se aproveita até 90% do potencial de energia, enquanto um litro de diesel rende em média 25% de eficiência energética”, diz Zündt. Os gastos do ônibus certamente serão mais bem percebidos ao longo de alguns meses de funcionamento no corredor metropolitano onde o veículo vai trafegar. Mas, mesmo antes de entrar em operação, o ônibus brasileiro a hidrogênio já desperta a atenção de futuros compradores. “Um grupo europeu da área de transportes nos fez uma consulta sobre a tecnologia e o custo do ônibus com o intuito de vender para países asiáticos”, disse Zündt sem revelar maiores dados porque são confidenciais. “O ônibus a hidrogênio no Brasil é parte de um programa mundial que tem o objetivo de não emitir carbono (CO2) com os veículos e o mérito de ser um projeto de demonstração”, diz o professor Ennio Peres, coordenador do Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh), instalado no Laboratório de Hidrogênio (LH2) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É muito importante Células a tornar a tecnologia do combustível hidrogênio conhecida do Classe A, mostrando suas vanem testes tagens e que seu uso na Europa, não é perigoso.” n são usadas no ônibus brasileiro mercedes-benz

mais caro que aqueles a diesel. O que é divulgado é o investimento total do Projeto Ônibus Brasileiro a Hidrogênio no valor de R$ 38,5 milhões, contando com os outros possíveis três veículos, bem como a unidade de produção e abastecimento de hidrogênio que está em construção na sede da EMTU. O GEF, por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que presta apoio técnico e administrativo ao projeto, financiou R$ 22,3 milhões. O Ministério de Minas e Energia, com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), custeou mais R$ 8,3 milhões, enquanto a EMTU investiu R$ 3,09 milhões e as empresas mais R$ 4,75 milhões.

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

71


>

AMBIENTE

Procura-se um

ar mais limpo Carro a álcool emite 92% menos compostos poluentes não controlados | Yuri Vasconcelos

fotos miguel boyayan

P

rincipal vilã da qualidade do ar nas grandes metrópoles, a frota de veículos automotores lança na atmosfera milhões de toneladas de poluentes todos os dias. Entre os principais e mais conhecidos estão o monóxido de carbono (CO), o dióxido de enxofre (SO2), os óxidos de nitrogênio (NOx), os hidrocarbonetos e os materiais particulados, como poeira e fumaça. Esses poluentes são regulamentados e têm limites precisos de emissão pelos motores desde a fabricação, segundo o Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), lançado pelo governo federal em 1986. Mas o escapamento dos veículos libera outros poluentes, entre eles os chamados hidrocarbonetos policíclicos aromáticos ou, simplesmente, HPAs, que não são controlados de forma sistêmica nem abrangidos pela legislação ambiental. Um recente estudo realizado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que esses gases estão presentes em altas quantidades na atmosfera. A boa nova é que o carro a álcool é capaz de reduzir o problema em 92% se comparado ao movido a gasolina. “Essas substâncias têm poder cancerígeno e precisam igualmente ser controladas”, afirma o engenheiro químico e sanitarista João Vicente de Assunção, professor e chefe do Departamento de Saúde Ambiental da FSP, que coordenou o projeto para quantificar a concentração de HPAs e outros poluentes tóxicos não regulamentados na cidade de São Paulo. Os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos são um vasto grupo de compostos orgânicos que têm como característica a presença de dois ou mais anéis aromáticos na composição química das moléculas. Tais anéis são formados por seis átomos de carbono e seis de hidrogênio,

72

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

sendo o principal representante dessa classe o benzeno. Entre as dezenas de HPAs existentes, dezesseis são mais importantes porque provocam danos à saúde, como o naftaleno, o fluoreno, o fenantreno e, o pior deles, o benzoapireno, de maior toxicidade. Além de serem emitidos por automóveis, os HPAs são liberados na incineração de lixo, na fumaça de cigarros e na queima de lenha e de carvão. “O problema desses compostos, assim como de outros que também foram objeto de nossos estudos, como as dioxinas e os furanos, é que eles são muito tóxicos e em geral são lipossolúveis. Isso significa que vários deles se acumulam na gordura do corpo. Após complexa metabolização no organismo e com o passar dos anos, podem causar câncer, sendo que os HPAs estão relacionados a câncer de pulmão e de bexiga”, explica Assunção. Os estudos feitos pelo pesquisador e seu grupo foram divididos em três vertentes. Na primeira, o objetivo foi analisar a concentração de HPAs no ar de São Paulo. Na segunda, buscou-se quantificar a liberação desses compostos por veículos movidos a gasolina e álcool, e na terceira o objeto de estudo foram as emissões dos motores a diesel. Para checar a qualidade do ar de São Paulo, foram instaladas estações de coleta em três pontos da cidade:

Os HPAs presentes no ar de São Paulo podem provocar o aparecimento de cânceres



A concentração de HPAs em São Paulo é quatro vezes maior que o nível permitido no Reino Unido

>

Os Projetos 1. Caracterização de dioxinas, furanos e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos em emissões veiculares e em atmosfera urbana 2. Estudo da presença de dioxinas e furanos no material particulado emitido por motores diesel

modalidade

1 e 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

João Vicente de Assunção – USP investimento

1. R$ 213.044,00 e US$ 74.892,00 (FAPESP) 2. R$ 13.557,71 (FAPESP)

74

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

na própria Faculdade de Saúde Pública, localizada no bairro de Cerqueira César, na região central, na Marginal do Tietê (no bairro da Lapa, na zona Oeste) e nas proximidades do aeroporto de Congonhas, na zonal Sul da capital. As amostras de ar foram coletadas em filtros de microfibra de quartzo e em espuma de poliuretano, de onde foram posteriormente extraídos e analisados com o uso de dois instrumentos de laboratório, um espectrômetro de massas e um cromatógrafo gasoso. “A pesquisa revelou que a concentração de benzoapireno em São Paulo é, em média, de 1,09 nanograma por metro cúbico de ar. É uma concentração elevada em relação a cidades europeias e norte-americanas. Corresponde, por exemplo, a quatro vezes o nível de referência no Reino Unido, que é de 0,25 nanograma por metro cúbico, mas o ideal é que esteja presente na menor concentração possível, pois mesmo a baixas concentrações ainda é um risco para a saúde”, destaca Assunção. A investigação sobre as emissões de HPAs por veículos foi coordenada pelo tecnólogo mecânico Rui de Abrantes, que fez seu doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP e hoje trabalha na Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) de São Paulo. Foram usados nos testes, conduzidos no Laboratório de Testes de Veículos

da Cetesb, dois tipos de automóvel, um com motor flex ou bicombustível, abastecido apenas com álcool, e outro a gasolina. “Para que os veículos fossem representativos da frota paulistana, optamos por carros com motorização de 1.6 cilindrada, equipados com injeção eletrônica e catalisador”, conta Abrantes. O automóvel a gasolina, fabricado em 1998, tinha rodado 67 mil quilômetros, enquanto o flex, de 2004, marcava no hodômetro 56 mil quilômetros. No total, foram realizados 15 diferentes ensaios nos veículos, sendo 9 no carro a gasolina e 6 no bicombustível, com variação de alguns parâmetros, como tipo de gasolina (comum, premium ou adulterada), tipo de óleo para o motor (mineral ou sintético), qualidade do álcool (normal ou adulterado) e presença ou não de aditivos detergentes – ofertados em postos de gasolina – nos combustíveis. Os gases foram coletados diretamente do escapamento dos carros, que simularam em laboratório as condições de circulação em meio urbano. “Depois que as análises foram processadas, descobrimos que, na média, os veículos movidos a álcool emitem 92% menos HPAs do que os carros a gasolina”, diz Abrantes. Óleo sintético - Os resultados também

demonstraram que o emprego de aditivos em carros a gasolina levou ao aumento da emissão de naftaleno e fenantreno, ao passo que nos automóveis testados com gasolina adulterada, com acréscimo de solvente de borracha, houve redução desses dois compostos. “O combustível adulterado utiliza solventes de borracha que acabam diluindo a gasolina. Se, por um lado, ele emite menos HPAs, por outro pode estar liberando outros poluentes tóxicos não quantificados”, explica Abrantes. O uso de óleo sintético no lugar do mineral, nos veículos a gasolina, por sua vez, contribuiu de maneira significante para a redução da emissão de naftaleno e fluoreno. Com relação aos veículos a etanol, os mesmos tipos de óleo foram testados, mas não revelaram diferenças estatísticas significantes na emissão de HPAs. Os resultados da pesquisa foram publicados na edição de janeiro da revista Atmospheric Environment. Abrantes, da Cetesb, diz que a legis­ lação não impõe um controle direto


sobre HPAs emitidos por veículos automotores porque os testes necessários para detecção desses poluentes são caros e iriam, em última instância, onerar o preço dos automóveis. “Como os HPAs são um subgrupo dos hidrocarbonetos e também estão presentes no material particulado, que são poluentes regulamentados, podemos dizer que há um controle, ainda que indireto, sobre eles.” A terceira frente do estudo – quantificação da emissão de HPAs por motores a diesel – foi realizada em bancada, no laboratório de um fabricante desses equipamentos considerando os vários compostos de HPAs. Em média, os motores emitiram 0,689 micrograma de toxicidade equivalente de benzoapireno por quilômetro rodado. Por ser considerado o mais tóxico dos HPAs, o benzoapireno é usado como referência para medir a toxicidade desses compostos, com um fator 1, enquanto os demais têm valores inferiores. Nos carros a gasolina esse índice é de 0,832 e nos movidos a etanol, de

0,016, no entanto não é possível comparar diretamente com a emissão dos motores a diesel, porque os procedimentos de ensaio são diferentes, além de os motores a diesel testados serem novos, portanto com menor emissão de HPAs, e os veículos a gasolina e a álcool são da frota em uso. Cloro e bromo - Além da investigação

sobre a emissão de HPAs, Assunção e seus colaboradores também se debruçaram sobre outros dois conjuntos de compostos tóxicos liberados pelos veículos, mas esquecidos pela legislação ambiental: as dioxinas e os furanos. Ambos são compostos orgânicos caracterizados pela presença de átomos de cloro ou bromo em sua composição. “Não chegamos a uma conclusão definitiva sobre o teor de emissão de dioxinas e furanos clorados nos veículos a diesel, tudo indica que é tão ou mais importante que a emissão de carros a gasolina e álcool”, destaca. Os resultados das pesquisas, que contaram com financiamento da FAPESP, foram apresentados em 2008

na 28ª Conferência Internacional sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs) (Dioxin2008), na Inglaterra, e na 16ª Conferência Internacional em Modelagem, Monitoramento e Gerenciamento da Poluição do Ar (Air Pollution 2008), na Grécia, e no encontro da Associação Interamericana de Engenharia Sanitária e Ambiental, no Chile, em 2007. “Estados Unidos, Japão e Europa possuem programas de controle e têm obtido sucesso na redução desses três grupos de substâncias [HPAs, dioxinas e furanos]. Esperamos que nossos trabalhos influenciem políticas públicas que levem à prevenção e controle desses poluentes, tão nocivos à saúde humana”, ressalta Assunção. n > Artigo científico Abrantes, R.; Assunção, J.V.; Pesquero, C.R.; Bruns, R.E.; Nobrega, R.P. Emission of polycyclic aromatic hydrocarbons from gasohol and ethanol vehicles. Atmospheric Environment. v. 43, p. 648-654, jan. 2009.

ADInstruments do Brasil Soluções Para Pesquisa Científica

Existem 3 principais razões para você experimentar as ferramentas da ADInstruments de pesquisa cardiovascular, respiratória, fisiologia muscular e neurofisiológica, com sistemas de aquisição de dados PowerLab e a nova geração de software do LabChart.

Pesquisa Turbo LabChart Pro acelera sua pesquisa disponibilizando até 32 canais com análises em tempo real, extração de dados automatizados, canais de cálculos e muito mais recursos. Utilizando as nossas ferramentas de análises incluindo ECG, BP, HRV, Spike, Metabolic, Dose Response e Circadian Analysis, os resultados são os mais rápidos possíveis.

Sistemas Completos Os sistemas da ADInstruments (PowerLab) trabalham juntamente com os principais fabricantes de equipamentos científicos, incluindo: Millar Instruments, Radnoti, Danish Myo Technology, Transonic Systems, Telemetry Research e Warner Instruments, fornecendo a solução completa para experimentos in vivo e in vitro.

Publique Rápido Os sistemas de pesquisa ADInstruments, proporcionam maior facilidade de utilização aumentando a produtividade científica. Milhares de pesquisadores ao redor do mundo estão utilizando nossos sistemas, confi ra você mesmo através da busca por publicações em www.adinstruments.com/citations

Informações sobre soluções científicas para aumentar a produtividade do seu laboratório, entre em contato conosco e fale com nossa equipe científica. ADInstruments do Brasil. Paraíso, São Paulo, SP Tel: 11 3266 2393 | info.br@adinstruments.com | www.adinstruments.com/ferramentas BRASIL • USA • UK • GERMANY • CHILE • INDIA • JAPAN • CHINA • MALAYSIA • NEW ZEALAND • AUSTRALIA PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

75

M A I S D E 2 0 A N O S D E I N OVAÇ Õ E S E M AQ U I S I C ÃO D E DA D O S E A N Á L I S E S


>

Engenharia de alimentos

Nutrição seletiva Sorvete com cereais e outros produtos com aditivos benéficos são patenteados pela USP Dinorah Ereno

M

icrorganismos vivos combinados a um composto chamado inulina, retirado de plantas como chicória e alcachofra, foram testados em uma sobremesa gelada com a consistência de sorvete recoberta por cereais, entre diversas formulações de alimentos funcionais desenvolvidas na Universidade de São Paulo (USP), cinco delas em processo de patenteamento. Esses alimentos são considerados funcionais porque, além dos nutrientes tradicionais, contêm aditivos capazes de promover benefícios à saúde. O sorvete com barra de cereal, testado e aprovado por centenas de pessoas que participaram da avaliação sensorial do produto, constitui uma novidade. “Não existe nada similar no mercado brasileiro”, diz a professora Susana Isay Saad, do Departamento de Tecnologia Bioquímica-Farmacêutica da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, coordenadora dos projetos. No sorvete são adicionadas as bactérias Lactobacillus acidophilus e Bifidobacterium, com comprovada ação probiótica. “Essas bactérias melhoram o equilíbrio da microbiota, o conjunto de microrganismos intestinal, porque competem com as bactérias patogênicas, ocupando o acesso que elas teriam para se aproximar do epitélio [camada superficial] intestinal”, diz

76

n

JUNHO DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Susana. As bactérias pertencentes aos gêneros Lactobacillus e Bifidobacterium são frequentemente empregadas como suplementos probióticos para alimentos, uma vez que elas têm sido isoladas de todas as porções do trato gastrintestinal de pessoas saudáveis. Os probióticos aumentam de maneira significativa o valor nutritivo e terapêutico dos alimentos porque permitem que o organismo absorva melhor principalmente as vitaminas do complexo B, os aminoácidos, o cálcio e o ferro. Eles também ajudam a fortalecer o sistema imunológico, ao aumentar os níveis de anticorpos e a atividade dos macrófagos, células que englobam e destroem corpos estranhos. “Os microrganismos probióticos são colocados somente depois da pasteurização, porque não sobrevivem a temperaturas elevadas, e antes do resfriamento do produto”, explica Susana. Reserva energética – Na composição

do sorvete entram ainda gordura láctea e a inulina, substância encontrada em milhares de plantas, já que se constitui em sua reserva energética. Em algumas delas, no entanto, ela se concentra em maior quantidade, como na raiz da chicória, de onde é isolada, extraída e concentrada em forma de pó. “Como é um processo sofisticado, poucas empresas no mundo conseguem produzir esse composto”, diz a pesquisadora. A

inulina é um açúcar chamado frutoligossacarídeo que não é digerido pelo estômago, ao contrário da maioria dos açúcares. É pouco calórica – cerca de 1,5 quilocaloria (kcal) por grama, ante 4 kcal/g do açúcar e 9 kcal/g da gordura – e pode substituir parcialmente o açúcar e auxiliar no tratamento de diabéticos porque não aumenta o nível de açúcar no sangue. Assim como a inulina, a oligofrutose também é encontrada nos vegetais. Ambas são carboidratos complexos e consideradas fibras prebióticas porque chegam intactas ao intestino, onde são aproveitadas pelos microrganismos benéficos como as bifidobactérias – um grupo de microrganismos presente na flora intestinal que inibe o desenvolvimento de bactérias indesejáveis no trato digestivo –, os lactobacilos e outras bactérias probióticas. Os benefícios à saúde provenientes do consumo desse tipo de carboidrato estão ligados, principalmente, ao aumento de bifidobactérias no cólon, que protegem contra infecções por resultar em maior acidificação, o que também contribui com uma melhor absorção de minerais, como o cálcio e o ferro. A inulina tem também um papel funcional parecido com o das fibras, que não são digeridas pelo nosso organismo, auxiliando na digestão e na eliminação de toxinas. A barra de cereal, que tem em sua composição aveia, flocos de arroz, castanha-do-pará, mel, lecitina de soja e outros ingredientes, foi desenvolvida especialmente para a formulação gelada, porque as tradicionais, quando submetidas a baixas temperaturas, endurecem. “Foram testadas quatro diferentes formulações do cereal em barra com sorvete”, relata Susana. Todas as formulações e testes foram conduzidos pela mestranda Juliana Bolfarini Harami, orientada pela professora Susana. As análises sensoriais foram feitas no total com 600 pessoas, já que cada uma das quatro formulações foi testada três vezes por 50 pessoas. As avaliações


foram feitas sete dias após o produto estar pronto e congelado a -18ºC, depois de 28 dias e aos 84 dias, considerado o período de validade. “O produto teve muito boa aceitação”, diz a coordenadora da pesquisa. Foi feita ainda uma comparação de nutrientes e do valor energético do gelado recoberto pelo cereal com sobremesas lácteas congeladas, como os sorvetes Cornetto, Mega Trufa e outros de duas marcas tradicionais que não se incluem na categoria de alimentos funcionais. “Os produtos, em média com peso de 76 gramas, apresentaram cerca de 230 calorias por porção”, relata. “Enquanto o sorvete com cereal de 70 gramas nas quatro versões avaliadas registrou média de 136 calorias por porção.”

juliana bolfarini harami/usp

Cepas selecionadas – Os bons resul-

tados obtidos nessa pesquisa são fruto do desdobramento de um trabalho iniciado em 2000. Na época, Susana começou a pesquisar o emprego de culturas probióticas no processamento de queijo do tipo minas frescal, com auxílio da FAPESP. Nesse estudo foram utilizadas três culturas de bactérias probióticas durante a produção do queijo, Lactobacillus acidophilus, Lactobacillus paracasei e Bifidobacterium animalis. “Foram escolhidas cepas comprovadamente probióticas”, diz Susana. Essa escolha é importante porque os efeitos probióticos são específicos apenas para determinadas cepas. As bactérias adicionadas ao leite se mostraram com excelente potencial para melhorar o funcionamento do intestino e reduzir os perigos de contaminação de origem alimentar. Além de diminuir a acidez do queijo, o Lactobacillus acidophilus reduziu a proliferação de microrganismos contaminantes no próprio alimento, o que contribui para aumentar a vida de prateleira do produto. Outras pesquisas realizadas pelo grupo mostraram que era possível expandir o leque de produtos com efeitos benéficos para a saúde. Entre as novidades já testadas, inclusive

com análise sensorial, estão ainda um queijo tipo petit-suisse, um manjar-branco, uma musse de goiaba e uma margarina, que está sendo desenvolvida pela doutoranda Cinthia Batista de Souza, com coorientação do professor Luiz Antonio Gioielli. Todos os projetos, exceto o do manjar-branco, foram financiados pela FAPESP. Os pedidos de patente de invenção foram depositados pela Agência USP de Inovação. A produção do queijo petit-suisse, desenvolvido por Haíssa Roberta Cardarelli durante o seu doutorado, foi feita a partir de uma massa-base de queijo tipo quark, produto com consistência cremosa que pode receber a adição de condimentos doces ou salgados. Foram acrescentados à base os probióticos Lactobacillus acidophilus e Bifidobacterium lactis, que quando consumidos ao mesmo tempo podem aumentar, por exemplo, a resposta imune do organismo, e os prebióticos inulina e oligofrutose. Nas várias formulações testadas, verificou-se que a inulina e a oligofrutose, quando combinadas, melhoraram as características sensoriais dos queijos. Já para a musse de goiaba, desenvolvida no doutorado de Flávia Alonso Buriti, observou-se que a substituição de parte do creme de leite presente na formulação pela inulina resultou em uma maior resistência de Lactobacillus acidophilus a condições simuladas de digestão do produto. n

Composição de cereais formulada para suportar baixa temperatura do gelado

>

Os Projetos 1. Desenvolvimento de margarina probiótica e simbiótica: viabilidade do probiótico no produto e resistência in vitro 2. Sobremesa aerada simbiótica: desenvolvimento do produto e resistência do probiótico in vitro 3. Desenvolvimento de queijo petit-suisse simbiótico

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dora

Susana Marta Isay Saad - USP investimento

1. R$ 112.405,19 (FAPESP) 2. R$ 94.125,53 (FAPESP) 3. R$ 76.307,16 (FAPESP)


>

humanidades história

O sonho do

Eldorado amazônico Ao encontrar, em uma caverna, um papiro com a figura humanizada do sol e uma inscrição indí­ gena, o Doutor Benignus decide partir à procura de mundos perdidos numa ar­ riscada expedição pelo interior do Brasil. Depois de uma série de aventu­ ras rocambolescas, o documento o leva até uma ilha misteriosa e lá resolve criar uma “civilização” que reuniria todos os povos e seria capaz de livrar os brasi­ leiros “da indolência e do barbarismo”. Todo o esforço em solucionar o enigma valeu a pena, pois, assegurava o natura­ lista, “o Brasil é fonte inexaurível como subsídio para a história das primeiras épocas da humanidade!” Infelizmente, o pobre cientista descobre que correra em busca de uma falsa utopia, pois o tal papiro era uma falsificação feita por seu criado, que queria tirá-lo da tristeza em que mergulhara em face da realida­ de pouco gloriosa do país. Não é uma coincidência que a primeira obra de ficção científica feita no Brasil, Doutor Benignus (1875), de Emílio Zaluar (1826-1882), tenha sido um “romance arqueológico de mundos perdidos”. Procurar monumentos escondidos na floresta densa pode ser risível, mas, em outras plumagens, o dilema se fomos “inferno ou Eldorado” ainda hoje é um dos principais motivos de discussão en­ tre arqueólogos, como revela Cotidiano e poder na Amazônia pré-colonial (240 páginas, R$ 92), de Denise Cavalcante Gomes, Museu Nacional da Universi­ dade Federal do Rio de Janeiro, lançado agora pela Edusp. Em pesquisas feitas no Pará, a ar­ queóloga cava buracos nas teorias que tentam explicar a ocupação amazônica. 78

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

Uma “briga” acadêmica que não escon­ de diferenças ideológicas. A primeira, do “paraíso ilusório”, é defendida pela arqueóloga americana Betty Meggers, para quem o ambiente de solos “po­ bres” em nutrientes da região impediu uma agricultura intensiva e, logo, a for­ mação de grandes populações avança­ das. A sua rival prega a existência de um “Eldorado quase real”, como afir­ mam os seguidores de outra arqueó­ loga americana, Anna Roosevelt, que desprezam as hipóteses “deterministas ambientais” de Meggers como “impe­ rialistas” e interessadas em reforçar “a degeneração dos índios”. Esse grupo prefere trabalhar com a hipótese de que, em tempos pré-coloniais, a Ama­ zônia abrigou cacicados desenvolvidos e com “um nível de sofisticação em seu modo de vida que rivalizava ou mesmo excedia o europeu”, para usar as pala­ vras do antropólogo Neil Whitehead, da Universidade de Wisconsin. “Após três séculos o mito de Eldora­ do está sendo revivido por arqueólogos. Insistir no ‘mito de impérios amazôni­ cos’ não apenas impede pesquisadores de reconstruir a pré-história da região como os faz cúmplices na aceleração do processo de degradação ambiental, já que subsídios para a crença de que a exploração do ecossistema da floresta é possível”, afirmou Meggers em seu artigo “The continuing quest for El Do­ rado: round two”. Efetivamente, num livro recém-lançado nos EUA, The lost city of Z (que deve sair em julho no Brasil pela Companhia das Letras), de David Grann, a história da malfadada expedição do coronel britânico Percy Fawcett (18671925) ao Xingu em

busca da civilização perdida de “Z”, o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida e um dos principais detratores de Meggers, re­ força o mito. “Havia nessa região uma cultura estética da monumentalidade e os índios gostavam de ter belas estradas e praças e pontes. Seus monumentos não eram pirâmides, daí ser difícil de achá-los, mas criações horizontais não menos extraordinárias”, diz o pesqui­ sador, parte integrante de uma equipe que afirma ter encontrado provas ar­ queológicas de cacicados avançados na Amazônia. “Fawcett estava convencido de que a floresta selvagem escondia ves­ tígios de pelo menos uma civilização avançada. Ele estudou as lendas do Eldorado e ouviu dos índios descri­ ções de grandes cidades com muitas ruas, lugares onde o ambiente não era problema e havia comida abundante”, afirma Grann. “O coronel irritava-se com seus detratores, os ‘homens de ciência’, que também haviam ridicula­ rizado a ideia de grandes civilizações pré-colombianas ou a existência de Troia. Falava sempre da sua visão de uma cultura majestosa no Amazonas que se irradiou para regiões distantes, mas, por fim, acabou devorada pela flo­ resta.” O mesmo destino aguardava o coronel, desaparecido naquele mesmo ano no Xingu. “Ele pode ter sido um amador e facilmente desprezado como um ‘maluco’, mas, de certa forma, viu as coisas com mais clareza do que muitos eruditos profissionais da arqueologia”, nota Heckenberger. O pesquisador deixa claro que não está em busca de “eldorados”, embora seja difícil não pensar nesses

reproduções do livro legendes croyances et talismans des indiens de l’ámazone/ilustração de V. de rego monteiro

A arqueologia brasileira e a eterna busca por civilizações ocultas na Floresta Amazônica | Carlos Haag


PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

79


(e em Fawcett) em face de suas desco­ bertas recentes de vestígios das chefias pré-coloniais, cuja interpretação, alerta Denise, contribui perigosamente “para a construção de uma imagem grandio­ sa do passado amazônico, reafirmada em sínteses acadêmicas”. Efetivamente, a arqueologia é uma das ciências que mais mexem com o imaginário ociden­ tal. Não sem razão foi (e é) fonte de romances e filmes populares. As ideias de Fawcett, por exemplo, inspiraram Conan Doyle (1859-1930), o criador de Sherlock Holmes, a escrever Mundo perdido (1912), primeira novela a usar a Amazônia como cenário de um “romance de mundo perdido”. Entre meados do século XIX e do século XX esse subgênero predominou em detri­ mento do chamado “romance plane­ tário” (aventuras espaciais futuristas) como tema central da incipiente ficção científica nacional. “Há uma ausência do ‘romance planetário’, muito em voga no exterior, entre nós. O ‘mundo perdi­ do’, em especial o amazônico, teve mais ressonância por causa do exotismo e imensidão que víamos no nosso territó­ rio, que nos fazia pensar o Brasil como ‘romance planetário’, um vasto mundo cuja ecologia evocava mistério e inquie­ tação”, analisa Roberto de Sousa Causo, autor de Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (1875-1950), estudo editado pela Universidade Fede­ ral de Minas Ge­ rais (UFMG). “O território selvagem dava à nossa consciência uma paisagem colonial 80

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

ocupando o nicho mental de um im­ pério rico e inexplorado que ajudaria a nossa projeção no resto do mundo. Só que, aqui, ao contrário do ‘mundo perdido’ colonialista de escritores es­ trangeiros, era expressão de um impe­ rialismo interno, projeção de estratégias colonialistas sobre regiões inexploradas do próprio país”, avalia. Há para todos os gostos, desde A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Cruls, que descreve encontros com guerreiras amazonas, até A República 3000 ou a filha do inca (1927), de Menotti del Picchia, que mistura princesas incas, civilizações cretenses, florestas tropicais brasilei­ ras e utopias eugenistas e racistas, que afirmavam a degeneração do índio e do caboclo e a superioridade europeia.

E

ssa literatura que misturava “ciên­ cia”, política, ideologia e exotismo, porém, não foi influenciada apenas pelas leituras de Rice Haggard e seu As minas do rei Salomão, mas refletia toda uma história de discussões sérias feitas por doutores do IHGB (Instituto Histó­ rico e Geográfico Brasileiro) e do Museu Nacional e outras instituições sérias. Co­ mo o melancólico Doutor Benignus, há tempos os doutos de carne e osso do país padeciam do mesmo mal e sonhavam, como ele, em encontrar civilizações per­ didas que provassem a grandeza inata da jovem nação. Desde 1838, quando foi criado, com total apoio do Estado imperial, o IHGB, cuja linha mestra pre­ conizava “buscar vestígios do passado, relíquias esquecidas no solo pátrio”, ex­ pedições foram organizadas para reve­ lar o passado glorioso que poderia ser recuperado pela nascente arqueologia

nacional. Afinal, o Império brasileiro não podia fi­ car atrás das repúblicas latinas vizinhas e pre­ cisava apresentar ruí­ nas de civilizações que estivessem à altura de astecas, incas e maias. “Os anos 1840 fo­ ram o auge da tentativa da monarquia brasileira de recuperar restos monumen­ tais, relacionando a história nacional a civilizações formidáveis, a exemplo da Atlântida ou dos fenícios e vikings. Não sem razão foi no ano da coroação de dom Pedro II que se realizaram as prin­ cipais expedições de busca da ‘cidade perdida’ no interior da Bahia”, explica o historiador Johnni Langer, da Univer­ sidade Federal do Maranhão, autor do doutorado Ruínas e mito: a arqueologia no Brasil Império. A arqueologia já nas­ cia como “ciência do Estado”, convoca­ da a ajudar na criação de um “mito de origem” para a nova nação. “O mito das cidades perdidas virou um valor para­ digmático, um modelo de referência do passado nacional: a civilização avançada perdida que deixou marcas por todo o território, sendo então rastreada pela ar­ queologia”, nota o pesquisador. “O papel da arqueologia e dos museus seguia as narrativas que reuniam os Estados na­ cionais a grandes civilizações, material palpável para a elaboração de símbolos nacionais e vinculações ancestrais, na­ turalizando o sentimento de pertencer a uma nação”, analisa o historiador Lu­ cio Menezes Ferreira, da Universidade Federal de Pelotas, que acaba de termi­ nar um pós-doutorado sobre o tema no


Núcleo de Estudos Estratégicos da Uni­ camp (2008). “Vestígios de civiliza­ ções mediterrâneas camu­ flados sob as matas tropicais, garranchos semíticos em paredes de cavernas, invadiram aos poucos a ima­ ginação literária, quando trabalhá-los ‘em ciência’ trazia o risco de expor es­ tudiosos a chacotas”, explica Ferreira. Antes disso, porém, a imaginação era a força motriz da arqueologia. Em 1839, numa reunião do instituto, os erudi­ tos foram alertados para a presença, na pedra da Gávea, “de uma inscrição em caracteres fenícios e que revelam grande antiguidade”, o que levava à conclusão de que “o Brasil tinha sido visitado por nações conhecedoras da navegação antes dos portugueses”. Uma expedição foi enviada e retornou algo desapontada, pois o achado poderia ser apenas “feito pela natureza”. Isso não impediu, no relatório de conclusão, que se afirmasse tratar de uma descoberta “de importância comparável às gran­ des construções da arqueologia, como os grandes monumentos do Egito e as cidades mesopotâmicas que poderiam fazer uma revolução na nossa história e abrir uma estrada luminosa do passado ao futuro”. Clamava-se por um “Cham­ pollion brasileiro” que mudasse os co­ nhecimentos sobre a história nacional, sem fatos ou monumentos notáveis. “Era preciso poder colocar o Brasil do futuro ao lado das grandes nações e impérios, orgulhosos de suas ruínas antigas. A partir de 1840, a aceitação da existência da ‘geração perdida’, uma civilização nacional avançada desapa­ recida, mostra a união de mito e his­ tória, ideal de ‘como deveria ter sido’ o Brasil dos tempos antigos, mesmo sem evidências concretas”, avalia Langer.

A

final, ninguém menos do que o cé­ lebre Von Martius, em Como se deve escrever a história do Brasil (1845), opúsculo premiado pelo IHGB cujas ideias deveriam nortear a instituição, afirmou que “não há de se achar inve­ rossímil encontrar antigos monumentos nas florestas do Brasil, tanto mais que até agora elas não são conhecidas nem acessíveis senão em pequena proporção”. Para o naturalista alemão a localização dos preciosos vestígios seria na Floresta

Amazônica, espaço misterioso onde a vegetação poderia ocultá-los, o que exi­ gia a observação direta por meio de expedições científicas, como a busca pela “cidade perdida da Bahia”, iniciada em 1840, a pedido do instituto, pelo cônego Benigno Carva­ lho. Um ano antes, um pesquisador en­ contrara um manuscrito anônimo, “Re­ lação historica de uma occulta, e grande povoação antiquissima sem moradores”, suposta narração feita por bandeirantes sobre como haviam se deparado com um vilarejo deserto que, entre outras maravilhas, possuía “uma collumna de pedra preta de grandeza extraordinaria, e sobre ella huma Estatua de homem ordinario, com humana mao na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Polo do Norte; em cada canto da dita Praça está uma Agulha, a imitação das que uzavão os Romanos”. Hoje conhecido como o Manuscrito 512 (o mesmo que Fawcett usaria como “guia” de sua expedição), essa visão de uma civiliza­ ção “clássica” em plena Bahia atiçou a imaginação não apenas de estudiosos brasileiros, mas de várias instituições internacionais. Nada foi encontrado, mas isso não impediu que o IHGB insistisse em pesquisar, no sertão bra­ sileiro, menires, inscrições com runas que atestariam a passagem de nórdicos nos trópicos, outras cidades perdidas e mesmo relatos da descoberta de um “fragmento de estátua de mármore con­ temporâneo do mais brilhante período da arte grega”, em 1887, na Amazônia. A informação era falsa, como também eram as inscrições talhadas numa pedra enviada a Ladislau Neto, do Museu Nacional, que as tra­ duziu e afirmou se tratarem de um relato da vinda de fenícios da cidade de Sidônia para o Brasil. Macunaíma, o anti-herói de Mario de Andrade, em sua busca quase arqueoló­ gica pela pedra muiraquitã, das amazonas, também se impressionou, em seu percur­ so, com “letreiros encarnados da gente fenícia” e, cavando em Manaus, “descobriu os restos de Deus Marte, escultura grega acha­

da inda na Monarquia e primeiro-de-abril passado no Alencar Araripe pelo jornal Comércio das Amazonas”. “Essa ironia andradiana ataca diretamente a chamada ‘arqueologia nobiliárquica’ que se fazia então e que, como os par­ nasianos, tinha os pés no Brasil e os olhos voltados para a Europa”, observa Ferreira. Segundo o pesquisador, para a elite política e intelectual do IHGB era uma busca que pretendia dar um lugar social a ser ocupado pelos indígenas dentro da lógica genealógica do Esta­ do imperial. “Estabelecer antepassados nobres (fenícios, gregos ou europeus) para os indígenas viabilizava represen­ tá-los no quadro das nações civilizadas. Numa sociedade que distribuía títulos de nobreza e em que o passado indí­ gena deveria modelar-se num espelho agradável para a ‘raça branca’, as raças fossilizadas também deveriam ser ‘no­ bres’, ainda que essa ‘nobreza’ estivesse perdida num tempo quase sem memó­ ria”, nota o historiador. Era necessário provar que os antepassados indígenas eram de natureza diversa dos “degene­ rados” índios contemporâneos, “ruínas de povos” como os chamava Martius, insistindo na ideia da “geração gran­ diosa” que se extinguiu. “Eles, então, teriam sido antes criadores, membros de uma antiga civilização que seria re­ construída pela nobreza do império, numa arqueologia que se confunde com a heráldica e que seja uma arque­ ologia nobiliárquica a reconstruir a ge­ nealogia da nação.” Se não havia ruínas nas florestas, a culpa era do ambiente

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

81


hostil que as destruía. O índio, ainda assim, era “um grego nu”. O espelho primitivo, com novas cores, reforçava os “brilhos da civilização”. “Ele podia ser um bárbaro na sua condição atual, mas talvez ainda recupe­ rável para a história da nação, desde que o reverso da medalha contivesse símbo­ los de uma cultura elaborada”, observa o pesquisador. Mas, segundo Ferreira, a busca de vestígios de civilização não era apenas uma fantasia mitológica, a res­ surreição de mitos antigos no imaginário científico. “Descobrir monumentos nas florestas brasileiras também respondia a interesses específicos do projeto polí­ tico imperial: interiorizar a civilização e civilizar as populações indígenas. As ‘viagens arqueológicas’ não buscavam apenas ruínas, mas também cartografar o espaço, descobrir riquezas minerais, esmiuçar tudo aquilo que era visto como a antítese da civilização.” As pesquisas arqueológicas, desde o Império, então procuravam instituir um “colonialismo interno”. “Narravam um passado nativo e mostravam que, de algum modo, ele sobrevivia no presente. Assim, o terri­ tório estaria ainda coalhado por povos cuja ‘inferioridade cultural’ clamava por missões civilizadoras, projetos de pacificação e, mais tarde, a revitaliza­ ção dos aldeamentos em consonância com a ciência mundial. Arqueologia e colonialismo queriam promover, assim, a expansão geográfica e geopolítica do Estado nacional”, explica Ferreira. Afi­ nal, os indígenas seriam ingredientes da futura mão de obra do Brasil. “Deve­ riam ser civilizados nos assentamentos, povoar os sertões e aguardar a chegada de imigrantes ‘brancos’ com os quais se miscigenariam recompondo as fibras da população nacional.” Ao classificarem os povos indígenas de degenerados, o IHGB (por meio de figuras como Von Martius e Varnhagen), muito admirado pelo imperador, legitimou esse “colo­ nialismo interno”, como fariam, mais tarde, os “romances de mun­ do perdido” da nossa ficção científica, amplamente divulgada pela impren­ sa e com largo acesso ao público leigo, para quem o índio fora cria­ dor de uma civilização que o inóspito Amazonas degenerou. Outros, leigos 82

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

ou doutos, preferiam vê-los como frutos de expansão da civiliza­ ção andina pelo Brasil que a ecologia nacio­ nal, o “determinismo ambiental”, teria igual­ mente degenerado.

Q

uando a triste reali­ dade coloca em xeque o modelo da “arqueologia do fantás­ tico”, os pesquisadores voltam-se para a “arqueologia do primitivo”, como pre­ conizada pelos estudos de Peter Lund e seus achados na Lagoa Santa. “A partir de 1865, pode-se até pensar em ‘civili­ zações europeias’ chegando à América, desde que se escave sítios arqueológicos para verificar se os artefatos possuem ou não signos legíveis de civilização. Não basta, como fazia a ‘arqueologia nobiliárquica’, o achado fortuito. Agora a ordem era escavar e recuperar os res­ tos de ‘raças primitivas’ e as ‘relíquias’ de civilização para estabelecer a origem dos sítios arqueológicos e dos indíge­ nas”, afirma o historiador. Darwin havia chegado ao Brasil, como se podia ver no enunciado de Lund, para quem a natureza sempre procede do “imper­ feito para o perfeito”. O IHGB perdia terreno, embora, até o século XX, havia quem continuasse a perseguir “cida­ des perdidas” além do pobre Fawcett. “O Brasil não seria só o mais antigo continente, mas o berço de civilizações mesoamericanas, tendo em suas matas, sobre raízes pré-históricas, uma peque­ na ilha de civilização, a ilha de Marajó”. Ponto para o Doutor Benignus. “A arqueologia do primitivo não só buscou registros de primitividade e ci­ vilização nos sambaquis, mas deu lastro à teoria da antiguidade do espaço ‘Bra­ sil’. Como fizera antes a nobiliárquica, a do primitivo lançou hipóteses sobre o povoamento nacional. O continente ‘mais antigo do planeta’, origem de civilizações americanas, ger­ minado por uma raça pri­ mitiva que se expandiu dos planaltos mineiros para as cordilheiras andinas: tudo garan­ tia a nova demarcação geopolítica, agora com bases sólidas arqueológi­ cas.” A ciência continuava

a ser cortejada pela polí­ tica e pela ideologia ou a aceitá-la de bom grado. Daí, nota Ferreira, a per­ sistência da teoria da de­ generação indígena que teria continuado nos trabalhos de Betty Meg­ gers, responsável, a partir de 1964, ao lado de Clifford Evans, pelo treino de toda uma geração de arqueólogos brasileiros por meio do Programa Nacional de Pes­ quisas Arqueológicas (Pronapa), finan­ ciado pelo Smithsonian Instituition. Isso, aliás, teria levado historiadores a associarem o projeto (e as teorias) de Meggers (que foi acusada de trabalhar para a CIA) a uma suposta articulação entre a ditadura militar e Washington. “Não é preciso documentos oficiais para demonstrar os fundamentos co­ lonialistas das representações de Me­ ggers. Eles residem nos axiomas do ‘determinismo ambiental’, cristalizados e maturados por ela ao longo de suas pesquisas na década de 1950. Segun­ do esses, a Floresta Amazônica, com seu ambiente impiedoso, degenerou as populações indígenas, estorvando a evolução”, nota Ferreira. Segundo ele, as conclusões que advêm disso são preocupantes, pois, para Meg­gers, as ‘altas civilizações’ se erguem nos solos de áreas que ela chamou de ‘nuclea­ res’. Quanto mais perto dessas, maior a evolução do grupo. Longe dos núcleos haveria a degeneração dos ambientes degradantes. “É uma alegoria para o presente, pois o foco de luz civilizadora, hoje o núcleo, transfere-se para a Amé­ rica do Norte, enquanto a Amazônia seria um sorvedouro de civilizações, embora, diz Meggers, tenha emba­ lado sonhos de Eldorados. Ela, aliás, veio nos esclarecer sobre as nossas ilu­ sões oníricas. Justificam-se, assim, as desigualdades regionais do continente americano.” Sem cidades perdidas ou a primazia de ser o mais velho da turma, o Brasil também faria parte do chamado pristine myth (como definido no texto clássico de William M. Denevan sobre o cenário da América em 1492) ou “mito da pu­ reza original” da terra pré-colombiana. “Os nativos não teriam a racionalidade necessária para trabalhar suas terras e, assim, o conquistador europeu aparece


como a fonte de razão e inovação iluminista no vácuo que eram as colô­ nias antes de sua chegada. Por esse raciocínio, eles é que teriam ‘moldado’ a paisagem do Novo Mun­ do”, explica o geógrafo Andrew Sluyter, da Universidade da Pensilvânia, autor de Colonialism and landscape. “A impli­ cação disso é que faltaria às paisagens pré-coloniais uma população densa em função de uma suposta inabilidade do uso da terra. Essa ideia continuou a ser usada pelo pós-colonialismo recente pa­ ra promover a categorização do mundo entre um Ocidente racionalmente pro­ gressivo versus um ‘não-Ocidente’ irra­ cionalmente tradicional, prática ainda hoje mantida com a difusão perversa de conhecimento e tecnologias de um para o outro.” O colonizador teria o mérito de ter transformado materialmente, e para melhor, a paisagem “prístina” do mundo pré-colonial na paisagem produtiva do pós-1492. Isso, porém, vem sendo contestado pela descoberta contínua de “terra preta” na Amazônia (algo já apontado por Anna Roosevelt no Marajó), a terra fértil que se acredi­

ta ter sido produzida pela ação humana. “Ao menos 10% da Amazô­ nia está coberta por ‘terra preta’. Assim, não é verdade que as chuvas tirariam os nutrientes do solo e impediriam o avanço das cul­ turas. Esse tipo de terra não é afetada pelas chuvas e até reage a elas de forma positiva. Além disso, tudo indica que a ‘terra preta’ foi criada deliberadamente por povos amazônicos para modificar o solo e melhorá-lo para o cultivo”, afirma o geógrafo William Woods, da Southern Illinois University.

S

egundo ele, os habitantes originais plantaram culturas que transfor­ maram terras pouco férteis em ter­ reno adequado ao cultivo de muitas es­ pécies, garantindo alimento farto para sustentar populações maiores. “Os ín­ dios literalmente criaram o solo a seus pés e parte da floresta é antropogênica, acredita Woods, o que comprometeria tanto o pristine myth quanto as teses de Meggers. Isso, porém, explicaria a reação da americana, em cujas críticas a esse novo modelo afirma estar temero­

sa sobre o futuro da Amazônia se virar senso comum a possibilidade de ex­ ploração comercial do solo da floresta. Voltamos ao dilema do início: inferno ou Eldorado? Roosevelt ou Meggers? Com uma novidade: o que é melhor para o futuro da Amazônia? “A teoria baseada em tipologias socioevolucio­ nistas é inadequada para reconstruir a paisagem da Amazônia pré-colonial. Mas o modelo de sociedades complexas proposto por Roosevelt deve ser visto como apenas uma tentativa preliminar de compreender os dados disponíveis sobre a organização social dessas so­ ciedades. “Não é, com certeza, uma interpretação definitiva”, avalia Denise Gomes. Infeliz o país que precisa de “civilizações perdidas”. Afinal, como explica o criado do Doutor Benignus ao final da novela, confessando ter sido o autor do papiro, o que importava era seu patrão ter enfrentado tudo em bus­ ca da verdade, e, mesmo não a encon­ trando, descobriu outras utopias. “Não é preciso ter medo de falhar”, escreveu Fawcett em sua última carta. Pouco antes de desaparecer na floresta e – ele n adoraria – virar mito também.

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

83


>

Diplomacia

A permanência do assento permanente

P

ara muitos, parece o samba de uma nota só. Há poucos dias, o presidente Lula, em visita à China, voltou a defender a reforma da ONU e a democratização de seu Conselho de Segurança, o que daria chance ao Brasil de obter um assento permanente no fórum que, em 1945, era estruturado com cinco membros permanentes e seis não permanentes, composição que, em 1965, alterou-se para a forma atual com dez membros não permanentes e cinco permanentes: os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, a Rússia e a República Popular da China (que, aliás, é contra qualquer reforma para evitar a entrada do Japão). “A ONU debate essa reforma há 15 anos e a estrutura da instituição não evoluiu em seis décadas e não é mais adaptada aos desafios do mundo de hoje. Isso é um obstáculo sério para o mundo multilateral que desejamos”, afirmou o presidente, que, após o início da crise financeira mundial, recebeu o apoio de países como Inglaterra e França em suas aspirações. “O que está em jogo é a inserção internacional do país. Em nossa pesquisa recente junto à comunidade de política externa vimos que, de 2001 até 2008, acentuou-se a aspiração das elites brasileiras de fazer do Brasil um ator com voz na política mundial: essa convicção subiu de 74%, em 2001, para 97%, em 2008”, afirma o cientista político Amaury de Souza, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) e coordenador da pesquisa A agenda internacional do Brasil: a política externa brasileira de FHC a Lula, que chega este mês às livrarias (Campus, 176 páginas, R$ 49). “Essa reforma da ONU e a questão do Conselho de Segurança estão em pauta em nossa política externa desde o governo FHC, mas no governo Lula o Itamaraty formou a aliança com os paí­ses do G-4, que têm

84

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

a mesma intenção. Esse empenho renovado, elogiado por alguns, não tem a aprovação de boa parte dos entrevistados, para os quais, embora a reforma seja desejável, na prática ela se defronta com vários obstáculos e haveria demandas mais importantes. Não se contesta a validade do objetivo, mas o grau de importância que vem sendo dado a ele”, observa Souza. Segundo dados da pesquisa, 58% consideram a questão importante, enquanto 42% têm opinião contrária. “O apoio ao pleito brasileiro vem caindo. Em 2001 era de 76% e agora diminuiu para 54%. É preciso reconhecer, quando falamos nas prioridades ou no conteúdo dos temas de política externa, que aumentaram as divergências entre o governo e setores organizados da sociedade.” A pesquisa igualmente revelou que a opinião pública tem baixos níveis de interesse e de informação sobre questões internacionais e tende a reagir às suas oscilações de forma emocional, desinteresse que se repete no Congresso Nacional. “Há uma interação entre os líderes e o público na formação da política externa, especialmente o recurso a questões externas usadas para angariar apoio no cenário doméstico. Daí a ênfase crescente na proximidade entre as agendas externa e interna”, analisa Souza. Segundo o pesquisador, o governo Lula tem se valido muito da cobertura da mídia para reforçar na opinião pública as escolhas da chancelaria. “Essa abordagem permite que o governo recorra a posições mais extremadas na política externa para contrabalançar medidas mais ortodoxas no plano interno.” O procedimento não é inédito. “O que estes estudos mostram é que a aspiração de tornar o país um ator relevante no cenário internacional é parte da própria identidade nacional, tal como construída pelas elites brasileiras, a partir de elementos que dizem respeito à ‘ideia de um país de dimensões continentais empenhado em

reprodução: www.gutenberg.org

Os 90 anos da atuação do Brasil na Liga das Nações ajudam a refletir sobre a demanda atual do país pela reforma da ONU



reprodução: www.navy.gc.ca

Conferência de Paz de Paris: Epitácio Pessoa ganhou pontos ao ficar amigo de Wilson

86

n

junho DE 2009

consolidar sua posição de liderança’”, avalia a cientista política Maria Regina Soares Lima, da PUC-Rio e professora adjunta do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). “O voluntarismo brasileiro por si só não leva a nada. O tema percorre a história brasileira desde a Liga das Nações”, lembra a pesquisadora. “A primeira manifestação do país em buscar o reconhecimento pelas grandes potências e seu direito de participação em pé de igualdade se deu justamente na constituição da Liga, há exatos 90 anos. Ainda que no final tenha prevalecido o princípio oligárquico da exclusividade, o Brasil se esforçou para obter um assento permanente na organização”, continua. Curiosamente, essa primeira tentativa de ganhar espaço na comunidade internacional foi igualmente invocada pelo chanceler Celso Amorim para novamente justificar a pretensão atual a um assento permanente, dessa vez no Conselho de Segurança da ONU, organização que sucedeu a Liga das Nações. “As grandes mudanças só acontecem n

PESQUISA FAPESP 160

nos momentos de crise. Foi preciso a Primeira Guerra Mundial para a criação da Liga das Nações e a Segunda Guerra para se criar a ONU. Graças a Deus, esperemos que não seja preciso uma terceira guerra, mas há uma crise profunda que exige uma mudança nas estruturas decisórias do mundo.”

O

Brasil foi o único país da América do Sul a participar da Primeira Guerra Mundial e com isso garantiu sua presença na Conferência de Paz de Paris (que gerou o Tratado de Versalhes) e o convite para participar da comissão de dez membros que redigiu o Pacto da Liga das Nações, à qual aderiu. Com apoio dos EUA, em especial do presidente Wilson, ganhou a chance de ser, dentre os países de “interesses limitados” presentes na conferência, um dos quatro membros temporários do Conselho da Liga. “Isso foi interpretado pelo governo brasileiro como uma grande vitória, sinal de que o país era reconhecido como um parceiro das grandes potências no gerenciamento da


em Haia, em 1907, quando condenou o caráter oligárquico da hegemonia das grandes potências e inaugurou uma nova era na diplomacia brasileira da defesa das relações multilaterais de igualdade entre os países. “A atuação histórica do Brasil no plano multilateral, na Liga ou na ONU, tem convergência total com o pensamento barbosiano que tinha como meta a democratização do acesso às grandes decisões mundiais como preconizado ainda hoje”, nota Garcia. “O questionamento do papel da gestão exclusiva da ordem mundial pelas grandes potências, iniciado em Haia, em 1907, adquiriu clareza conceitual na perspectiva brasileira por ocasião da Conferência de Paz”, observa o professor e embaixador Celso Lafer, em seu estudo A identidade internacional do Brasil.

M

as o chanceler Domício Gama não quis colocar seu cargo em risco dando tanto poder a Barbosa. “Pessoa provou ser de grande valia ao Brasil na conferência por ter cultivado uma boa relação com o presidente

Wilson. Foi uma ótima tacada, pois o americano foi um grande defensor dos interesses brasileiros”, conta o historiador Michael Streeter, da London University, autor do recém-lançado perfil da participação de Pessoa em Paris e no início da Liga, parte da série Makers of the Modern World, em que o brasileiro figura ao lado de biografias de figuras de peso como Wilson, Clemenceau e Lloyd George, entre outros. Com habilidade, a delegação brasileira resolveu impasses econômicos importantes junto às grandes potências, como a manutenção da posse de 46 navios alemães confiscados no Brasil em 1917 e o reconhecimento, pela Alemanha, de uma dívida da venda de café. “O sucesso dessas gestões permitiu que a delegação brasileira, chefiada pelo futuro presidente Epitácio Pessoa, cuidasse, na Conferência de Paz, não apenas desses interesses específicos do Brasil, mas igualmente dos ‘interesses gerais’ inerentes à criação da nova ordem internacional pós-Primeira Guerra”, assevera Celso Lafer. O sucesso valeu

reprodução do livro caricaturistas brasileiros, de pedro corrêa do lago, editora sextante artes

nova ordem mundial do pós-guerra”, explica Eugênio Vargas Garcia, professor titular do Instituto Rio Branco e autor de O Brasil e a Liga das Nações. “Quando se qualificou para tomar parte da Conferência de Paz de Paris e ao tomar um assento, ainda que rotativo, no Conselho da Liga das Nações, o Brasil dava à sua política externa uma projeção transatlântica, rompendo os limites da região americana”, analisa Letícia Pinheiro, pesquisadora e professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Esse episódio marca uma das primeiras manifestações de um traço distintivo da nossa política internacional: a percepção das elites sobre um suposto direito de reconhecimento pela comunidade internacional do diferencial do país na hierarquia mundial.” Teria sido em razão dessa percepção, continua Letícia, que o Brasil se empenhou obsessivamente para assegurar um assento permanente na Liga. “Quando os EUA deixaram a Liga em 1920 porque o Senado americano não quis ratificar o Tratado de Versalhes, o Brasil se tornou o único país americano no Conselho e assumiu implicitamente a condição de porta-voz do continente. O governo de Epitácio Pessoa exultava com o status alcançado pelo país, na crença de que estava influindo diretamente nas grandes questões internacionais”, explica Garcia. O que era esperança virou, a partir de 1923, objetivo diplomático fundamental no governo Artur Bernardes. “O Brasil quer tanto esse lugar na Liga porque, provavelmente, não tem o menor conhecimento dos problemas europeus atuais. O que eles querem é apenas indicar brasileiros notáveis para postos importantes no Conselho e, com isso, aumentar o orgulho nacional”, dizia o representante britânico.

E

fetivamente, o Brasil ficara “mal acostumado” com o tratamento recebido na sua participação na Conferência de Paris, graças ao talento diplomático inesperado do então senador pela Paraíba, Epitácio Pessoa, que foi designado como líder da delegação brasileira em detrimento de Rui Barbosa. O Águia de Haia era então visto como o candidato óbvio ao posto exatamente por sua participação fulgurante

PESQUISA FAPESP 160 junho DE 2009 n

n

87


reprodução: www.gutenberg.org

‘ a Pessoa uma vitória nas eleições presidenciais de 1919, sem que ele, como candidato, deixasse de trabalhar em Paris. Recebendo a notícia por telegrama, achou que era uma brincadeira de amigos. Mas Pessoa saiu do Brasil como delegado e voltou como presidente. E, de quebra, ele e o país ganharam uma entrada para participar da constituição da Liga, que se esperava seria, a partir de 1920, o instrumento para garantir a democracia na relação entre as nações. Apesar do brilho de Pessoa, não se pode, porém, esquecer a atuação brilhante de João Pandiá Calógeras (187088

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

1934), parte in­­tegrante da delegação brasileira e que foi o primeiro a chegar a Paris. Lá articulou a diplomacia brasileira e, quando Pessoa voltou ao Brasil para assumir a Presidência, foi ele que passou a chefiar a missão. Permaneceu ainda algum tempo na Europa, representando o Brasil em alguns encontros internacionais e chefiando a missão comercial que esteve na Inglaterra em 1919. Na vol­ta ao Brasil, foi nomeado ministro da Guerra do governo de Epitácio Pessoa, tornando-se o único civil a ocupar esse cargo na história republicana do país.

A diplomacia brasileira apostou todas as suas fichas na suposta nova ordem mundial. Julgava que a Liga seria o centro decisório, a condutora do futuro da política mundial. Para o Brasil, o multilateralismo da Liga era o fim da política de poder tradicional nas relações internacionais. Mas para as grandes potências do Velho Mundo o multilateralismo era a continuação da geopolítica por outros meios”, analisa Braz Baracuhy, professor titular de teoria das relações internacionais no Instituto Rio Branco. Era a coexistência do velho e do novo na política


“Havia naquele tempo a impressão de que o multilateralismo substituiria a velha lógica geopolítica de poder vigente” internacional, observa o diplomata, que misturava o idealismo dos valores liberais dos EUA com a política pragmática e excludente das potências europeias, apesar do discurso em contrário. “Criavam-se dois tabuleiros, paralelos e superpostos: acima do tradicional, em que os grandes da Europa praticavam há séculos a política do poder, estava a nova instância multilateral.” O Brasil acreditou que era o tabuleiro superior que vigorava, enquanto seus colegas da Liga ainda jogavam pelas regras do clássico tabuleiro do poder assimétrico. Com a saída dos EUA da Liga, a elite brasileira abriu sua candidatura ao assento permanente, na crença de que se vivia uma nova ordem internacional com uma concepção liberal de mundo. “As dificuldades enfrentadas pelas potências médias, como o Brasil, para obter no plano internacional o reconhecimento formal de um status diferenciado provém dos dilemas da aceitação, pelos Estados representados, da legitimidade inerente ao reconhecimento de uma representatividade regional, problema que o Brasil enfrentou na década de 1920, na Liga das Nações”, escreveu o embaixador Celso Lafer. “E tem enfrentado, junto com outras potências tidas como médias, as discussões sobre a reforma do Conselho de Segurança. Penso que esse reconhecimento formal é de difícil viabilização no espaço multilateral”, pondera Lafer. Em 1926, a obsessão do governo Bernardes pelo assento permanente acabou levando o Brasil a sair da Liga quando teve sua candidatura preterida pela Alemanha, antiga potência inimiga que fora “perdoada” pelas grandes potências europeias no Tratado de Locarno.

‘H

avia naquele tempo a impressão de que o multilateralismo substituiria a velha lógica geopolítica de poder vigente. Não foi o que aconteceu, e o que imperou foi a preo­cupação com a segurança europeia e com a ordem, que fez com que se desse prioridade à Alemanha”, avalia Letícia. “Se pensarmos, porém, no período mais recente

em que o Brasil baseia sua demanda em argumentos de justiça e democracia, não se pode deixar de levar em conta que o pleito a um assento permanente não estaria em contradição com a tese da igualdade jurídica dos Estados”, continua. O que a diplomacia nacional argumenta, observa a pesquisadora, é que, desde que as grandes potências jamais abriram mão de seu poder de veto, ou seja, já que há uma imperfeição no sistema que nunca será corrigido, a ampliação do Conselho de Segurança corrigiria, em parte, esse déficit democrático, ajudando a equilibrar a representação entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. É preciso, porém, tomar cuidado para não repetir velhos enganos. “Curiosamente, os argumentos para sustentar a pretensão brasileira são semelhantes àqueles arrolados na década de 1920, ou seja, ‘a condição de membro permanente daria maior representatividade moral e política ao Conselho”, nota Maria Regina.

C

reio que “os serviços prestados” pelo Brasil dificilmente serão formalmente reconhecidos, mediante uma atribuição a priori pela comunidade internacional de um status próprio como o de membro permanente do Conselho. O peso próprio do Brasil, a sua especificidade como “potência média de dimensão continental” apta a lidar com “interesses gerais”, precisa ser adquirido e conquistado em cada situação, desafio permanente para a condução da nossa política externa”, analisa Celso Lafer. Ainda assim, nota Garcia, a crise atual e os novos rumos da política internacional, ao contrário do passado, podem estar a favor do Brasil. “Há uma tendência de desconcentração do poder global, cujos problemas exigem um tratamento multilateral, coletivo, e não é mais possível desconsiderar a contribuição dos grandes países emergentes. O Brasil está sendo chamado a colaborar e são os líderes estrangeiros que pedem ao país para ter uma participação mais ativa. Não havia nada disso na década de 1920.”

Letícia Pinheiro concorda, mas faz uma ressalva: “O Conselho é algo fortemente simbólico e um assento permanente, com certeza, eleva o país ao patamar de membro de um diretório tradicional de grandes potências. Mas o fato de estarmos no G-20, com o destaque que alcançamos em virtude até de necessidades estratégicas dos EUA e potências europeias, compensa, ainda que não totalmente, a ausência do Brasil no Conselho”. A pesquisadora também adverte que é preciso “promover maior debate sobre o tema para buscar respaldo e legitimidade pública para a demanda, sob pena de enfrentar oposição doméstica se a candidatura vier a ser aceita”. Nesse ponto, os números não mentem como revela a pesquisa recente de Amaury Souza. “É o foro da Onu, no âmbito do Conselho de Segurança, o mais apropriado para o Brasil exercitar sua competência diplomática no trato dos ‘interesses gerais’ da comunidade internacional?”, pergunta-se o professor Lafer. “O Brasil tem revelado capacidade de articular consenso. O país se comporta, por sua História e experiência de inserção no mundo, segundo uma leitura grociana da realidade internacional. Isso dá ao Brasil a credibilidade do soft-power, ne­­­­­cessária para o exercício da virtu­ de aristotélica da justiça do meio-termo. Este papel de mediação não é um dado, mas um desafio de cada conjuntura diplomática”, completa o pesquisador e diplomata. A história não se repete, mas sempre tem lições a dar. n

Carlos Haag > Livros citados e artigo 1. Lafer, C. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira. Perspectiva, 151 páginas. 2. LIMA, Maria Regina S. “Aspiração internacional e política externa”. Revista Brasileira de Comércio Exterior. n. 82. Jan.-mar. 2005. Rio de Janeiro, Funcex. 3. Magnoli, D. (org.). História da paz e história das guerras. Editora Contexto. PESQUISA FAPESP 160 junho DE 2009 n

n

89


>

Literatura

Meu caro Baby Flag! A troca de cartas e projetos entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre

‘C

onheço um sujeito de Pernambuco, cujo nome não escrevo, porque é tabu e cultiva com grandes pudores esse provincianismo. Formou-se em sociologia na Universidade de Columbia, viajou a Europa, parou em Oxford. Vai dar breve um livrão sobre a formação da vida social brasileira. Pois timbra em ser provinciano, pernambucano, do Recife”, escreveu Manuel Bandeira (1886-1969) na crônica “Sou provinciano” de 1933. Com economia característica o poeta, em poucas linhas, deu o currículo do grande amigo, Gilberto Freyre (1900-1987), anunciou Casa-grande e senzala (lançado no final daquele ano) e, de quebra, deu-se ao luxo de deixar “escapar” para os leitores do jornal o projeto intelectual secreto que os dois mantinham em sua correspondência: a paradoxal, moderna e saudável universalidade de ser provinciano. “Um dos pilares da literatura brasileira, Bandeira indica, a contrapelo das tendências vanguardistas do seu tempo, que aprendera com o jovem amigo, Freyre, a moldar o seu sentimento de ‘ser provinciano’, que, para eles, era o veio comunicativo de natureza memorialista e de profunda relação com o meio local. Para eles, como se percebe nas cartas que trocavam, ser provinciano não era pejorativo”, explica Silvana Moreli Dias, a pesquisadora em teoria literária que defendeu recentemente o seu doutorado Cartas provincianas: a correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira no Departamento de Teoria Literária da USP, orientada pela professora Viviana Bosi. “As cartas possibilitam a compreensão mais profunda dos autores e de suas obras e ajudam a entender esse projeto que mantiveram em conjunto. Nele, mantendo um equilíbrio

Manuel Bandeira e Freyre (acima): amizade feita na troca de correspondências e de projetos

precário entre regionalismo e universalismo, modernidade e tradição, localismo e cosmopolitanismo, eles elaboraram discursos que revelam os limites dos valores progressistas, racionais do capitalismo que, acreditam, aprofunda o individualismo e rouba a experiência”, observa a pesquisadora. A correspondência, boa parte inédita, reúne cartas, postais, desenhos e telegramas, uma parceria epistolar iniciada em 1925 e que se estendeu até 1966, espaço para discutirem literatura, política, ideias sobre a vida, alfinetar desafetos e pensar o Brasil. “Nas cartas, o miúdo da vida cotidiana é desfiado de um para o outro: de um lado o recifense


fotos Arquivo/AE

radicado no Rio, Bandeira, aproveita para travar relações com sua terra e se ‘provincializar’. Do outro, o recifense cosmopolita, Freyre, pode viver e quase presenciar os burburinhos das rodas intelectuais do Rio de Janeiro”, conta Silvana. A intimidade era grande e bem-humorada. Bandeira vira, nas cartas, Baby Flag ou Seu Nenê, entre outros apelidos. Curiosamente, essa relação iniciou-se exatamente por uma troca de cartas quando, em 1925, Freyre pediu ao poeta para escrever uma evocação ao Recife a ser publicado no Diário de Pernambuco. Sem querer, o sociólogo havia tocado num ponto nevrálgico da sensibilidade intelectual do amigo. “Quando penso na minha meninice em Recife com os anos da minha vida adulta fico, espantado do vazio daqueles últimos em comparação com a densidade daquela quadra distante”, escreveu Baby Flag. Freyre, sabiamente, percebeu que havia ali um caminho intelectual a ser trilhado pelos dois: “Seu Nenê, diga sério quando é que você vem para cá. Precisa ver engenho, andar pelo Pernambuco de dentro e não ficar com a impressão única do Recife a lhe boiar na lembrança”, pediu ao poeta.

“Estabelece-se, então, um diálogo intenso entre eles e um aprendizado do artista consolidado que era Bandeira com o jovem Freyre. As cartas mostram como o Nordeste do sociólogo e o ‘Sul’ de certo grupo modernista tinham zonas de confluência”, analisa Sonia. Eles se encontraram pessoalmente um ano depois, em 1926, quando Freyre viajou ao Rio. “Vou visitar Bandeira. Santa Teresa. Lindo lugar, mas casa de pobre. Quando digo quem sou, desata numa risada que deixa à mostra a dentuça famosa. Ninguém mais pernambucano. Como nos correspondemos há mais de um ano sinto como se fôssemos velhos amigos”, anotou Freyre. “A correspondência entre os dois vem num contexto em que intelectuais e artistas procuravam ampliar seu círculo cordial e fazer da conciliação entre modernidade e tradição um projeto que, de certa forma, era emblemático da mistura de modernização e conservadorismo que era o Estado Novo.” Segundo a pesquisadora, a diferença de idade entre os dois e a fama consolidada de Bandeira fazem aflorar, nas cartas, aspectos diferenciados e mais íntimos de cada um deles. “Bandeira foi um dos poucos que escapavam da fúria

quixotesca do jovem aspirante a escritor. Diante do escritor sóbrio e discreto, o futuro ‘mestre de Apipucos’ tem uma escrita mais simples, sem os torneios semânticos de seu estilo barroco. É um ideal franciscano de vida e escrita.” Do lado de Bandeira, a liberdade de falar do cotidiano com lirismo como na carta em que descreve um prosaico passeio a Cambuquira e Campanha, onde o poeta morara: “Há lá uma rua que é um encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morar nela. O passeio foi de noite com o luar. Diante das duas casas onde morávamos, e onde passei o Diabo, me senti valado, com um nó na garganta”. Não havia assuntos tabus.

‘O

s médicos vivem me falando para ir à montanha. Tenho apreciado a estada aqui. Há tempo que eu não me via cercado de verde, há tempo que eu não desfrutava do prazer de um cavalo pastando na rua”, contou Baby Flag, falando de uma de suas viagens terapêuticas em função da tuberculose que o acometia desde 1904. “Espero que a gripe tenha passado de banda por você, indo se regalar nos gordos, que é, aliás, a gente mais do gosto dela”, respondeu PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

91


“A verdadeira vocação do gênio não é a pintura, é a burocracia. Infelizmente, nenhum estadista nacional reconheceu isso ainda” [Baby Flag]

“Estou empregando economias na compra de livros sobre a vida íntima do Brasil, sobre a família e você é um dos raros a saber” [Gilberto Freyre]

92

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

brincalhão o amigo sociólogo. O poeta sempre retribuiu esse carinho do amigo, ajudando-o em tudo o que podia, de hospedagem no Rio ao envio de livros para os EUA, onde Freyre fora estudar, ou mesmo contar, em tom paternal, o sucesso nacional de Casa-grande e senzala. “O sociólogo está na ordem do dia com a publicação da grande Casa-Grande. Ficou um bichão de bom aspecto que está sendo conhecido como o Ulisses pernambucano. O que ficou bem safadinho foram os clichês das fotografias”, escreveu Flag em 1934. As cartas revelam como foi fundamental a sua ajuda para a escrita da obra de Freyre e mesmo para ajudar o sociólogo a se estabelecer profissionalmente no Brasil, mesmo que “puxando suas orelhas”. “O mestre de Recife anda nos preocupando muito, porque está nos parecendo que ele anda com pouca vontade de dar as caras por aqui para ensinar sociologia na nova universidade. Veja se adia o curso prometido aos estudantes daí e vem. Quem sabe a mudança de ares acaba de vez com essa furunculose que o tem azucrinado?” Então, é para Baby Flag que Freyre revela, em 1929, o seu maior projeto numa carta que trazia a ressalva: “Vai esta com nota de confidencial”. E segue: “Estou empregando economias na compra de livros sobre a vida íntima do Brasil, sobre a família. Esse trabalho (e você é um dos raros a saber) prende-se a um estudo, sob o ponto de vista psicológico e histórico, que há anos me prende; um estudo que teria de começar pela vida de menino entre os nossos índios. É campo original, virgem e não seria para ser tratado literariamente. Depois de falar dos índios, viriam capítulos sobre os colonizadores etc. Você tem que me ajudar com sua rara inteligência. Muita discrição para os literatos não saberem”, anunciou Freyre, a composição futura de Casa-grande e senzala. O horror aos “literatos” tinha ainda outras razões: “Disse-me ontem o J. que ouvira numa roda de intelectuais que não era possível que eu fosse o assombro que dizem que sou, de saber, sendo tão boêmio. Isso porque sou visto em pensões de mulheres, em clubes populares. É uma verdade esse meu jeito de impregnar-se de vida brasileira como ela é vivida pela gente simples, pela negralhada, que os requintados falam como se fossem de outro mundo”, queixou-se o sociólogo. “A história dessa província calcada (no sentido de pisada, ligando-se à terra, mas também menosprezada e reprimida) nas

mãos de Freyre e Bandeira guarda semelhança com a força com que ambos procuraram trazer o elemento marginal, como a herança africana, para o centro do debate artístico e intelectual”, analisa a pesquisadora. “Para eles, não é sem contradições que vivem essa aproximação com o povo. Acercam-se da cultura popular e da boemia, mas não deixam de viver os resquícios do aristocracismo como marca pessoal. Tenho dúvidas se a experiência política de ambos foi propriamente democrática.” As cartas também não mentem sobre isso, em especial sobre o favorecimento das benesses da ditadura getulista.

‘J

aime Ovalle continua o mesmo. O gênio esteve para ser professor em Lambary. Agora está cavando emprego com a revolução (1930). A verdadeira vocação do gênio não é a pintura, é a burocracia. Infelizmente, nenhum estadista nacional reconheceu isso ainda”, amargou Flag, desconhecendo ainda a “sabedoria” de Vargas nestes assuntos. Aos poucos, a partir de 1945, a correspondência fica mais lacônica, mais saudações do que cartas, com algumas exceções. “Estou deprimido com os acontecimentos políticos (a renúncia de Jânio Quadros, em 1961). Que Brasil este! Como é difícil amá-lo. Entreguei os pontos. Seja o que Deus quiser”, lamentou Bandeira. Ou quando se revela, nas cartas, o projeto de se trazer Thomas Mann ao Brasil. “Meu caro Flag. Alguém mandou um artiguete meu, em que sugiro uma homenagem ao Thomas Mann, filho de uma brasileira, aí nas nossas terras. Parece que o velho comoveu-se, dizendo que a ideia era de sua inteira satisfação. O que fazer? Peço a você e outros cajones tornar essa homenagem uma rea­lidade”, pediu Freyre ao amigo. Por fim, a morte de Bandeira, em 1968, não sem antes enviar ao sociólogo uma carta com um desenho feito por ele do seu apartamento, recordando, talvez, os tempos em que tentou ser arquiteto. “Aqui você tem, canhestramente esquissada, a vista que tenho do meu apartamento. O aluguel passou de 650 para 3.000! Mas vale a pena. O sol entra de manhã pelo quarto e vai puxar as roupas no armário. A paisagem é uma feijoada completa: aeroporto, portozinho de lanchinhas e até uma casinha lacustre com cão de guarda. Disponha. Do seu, Baby Flag.” n

Carlos Haag


.. ..

resenha

No vácuo da ética Tese de doutorado de Caio Túlio Costa oferece mais perguntas do que respostas Sylvia Moretzsohn

A Ética, jornalismo e nova mídia – Uma moral provisória Caio Túlio Costa Editora Zahar 288 páginas R$ 39,90

94

n

s múltiplas possibilidades de veiculação de informações através da internet, disponíveis (em tese) a qualquer pessoa, são uma grande e dramática novidade para a questão da ética no mundo contemporâneo e, em especial, para os preceitos que tradicionalmente orientam o exercício do jornalismo. A partir desta hipótese central, Ética, jornalismo e nova mídia – Uma moral provisória aborda o tema da maneira mais estimulante: oferecendo mais perguntas que respostas. O problema está na fundamentação da análise que sustenta as perguntas. Neste livro, resultado de sua tese de doutorado, Caio Túlio Costa foge a qualquer pretensão normativa sobre o jornalismo, mas declara um propósito, a rigor, mais ambicioso, apesar do advérbio: “Aqui se pretende apenas analisar como essa forma de comunicação se deu e se dá – e analisá-la do ponto de vista do que o homem entende por ética”. Coerentemente, opta por um universo alargado para tal discussão, apresentando um vasto elenco de obras clássicas que tratam do ser e do teatro do mundo. O caminho poderia ser profícuo, porém acaba conduzindo a longas digressões que fazem perder de vista o tema central. A tentativa de contornar esse problema, através de analogias com o jornalismo, resulta em soluções geralmente forçadas ou superficiais. De fato, Caio esbanja erudição, mas descura do principal, porque ignora a produção teó­ rica em jornalismo que lhe poderia fornecer substanciais elementos de crítica. O problema começa com a própria definição de jornalismo: um “ofício que representa representações”, algo que evidentemente se aplicaria antes de mais nada à arte e que poderia perfeitamente ser estendido para o restante das atividades humanas, caso houvesse consenso em relação ao conceito do mundo como “representação”. Uma definição de tal modo genérica é insuficiente para dar conta do objeto específico. Da mesma forma, conclui que o jornalismo não é uma forma de conhecimento, sem discutir em momento algum esta hipótese,

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

que sustenta acuradas abordagens de distintas linhas teóricas desde os anos 40 do século passado. Além disso, embora reconheça que a objetividade implica uma discussão fundamentalmente ética para o jornalismo, dedica a ela apenas 20 páginas de seu livro – o menor capítulo, depois daquele que encerra o volume – e descarta liminarmente as análises que procuram circunscrever o significado deste conceito ao campo específico e afirmam o compromisso do jornalismo com a verdade factual e a necessidade de partir de dados objetivos para informar com credibilidade, sem a qual esta atividade não teria sentido. Como considera o jornalismo uma “representação de representações”, e como obviamente não poderia haver uma representação “consumadamente objetiva”, Caio conclui que a objetividade em jornalismo é impossível. E acrescenta: é esta conclusão que abre caminho para a discussão da ética. Segundo ele, “se a objetividade jornalística é possível, então não há dilema ético em jornalismo”. Seria o caso de indagar se a ciência não se depara com problemas éticos. A resposta óbvia aponta para o cerne do equívoco de uma argumentação que toma os conceitos de forma estanque e absoluta: onde há objetividade não pode haver interpretação; em contrapartida, toda interpretação é possível, de modo que não pode haver certezas. Esta dicotomia fica ainda mais clara na abordagem sobre a ética de responsabilidade de Weber, que absolutamente não autoriza – como quer o autor – a conclusão de que “os fins justificam os meios – quaisquer meios”: a ética de responsabilidade é inescapável à vida cotidiana, pois exige a avaliação das circunstâncias para uma ação adequada. É por não adotar uma perspectiva dialética que o autor enxerga um abismo entre o ideal (normativo) e a prática cotidiana (funcional) e sugere que o jornalismo trabalha “no vácuo da ética”. Daí decorreria a “moral provisória”, que, a rigor, seria capaz de justificar o que quer que seja. Pois “o dia a dia do jornalismo exige distorções, seja por interesses empresariais, políticos ou particulares (...). Não há conceito moral, dos sólidos, que resista a essas necessidades”. Conceito “sólido” é equiparado a eterno, imutável e incapaz de objetivar-se na vida cotidiana, que assim não conheceria limites para distorções. Distorções, porém, inevitavelmente se referem a algum conceito. Entretanto, ao buscar as raízes do pensamento pós-moderno para concluir que “tudo é relativo”, Caio, além de desconsiderar a crítica a essas teorizações, acaba prisioneiro do paradoxo: se tudo é relativo – menos, naturalmente, a própria afirmação que justificaria a frase –, como discutir ética, se não há parâmetros em que se basear? Sylvia Moretzsohn é professora de jornalismo no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF).


.. ..

livros

Abolicionistas brasileiros e ingleses Antonio Penalves Rocha Editora Unesp 448 páginas, R$ 65,00

Antonio Rocha demonstra em seu livro como Joaquim Nabuco e a Sociedade Britânica e Estrangeira contra a Escravidão promoveram-se mutuamente. O ingrediente interessante do livro são as fontes utilizadas pelo historiador que geralmente são pouco ou nunca analisadas, como a correspondência entre o líder abolicionista e a Sociedade contra a Escravidão, além do jornal Rio News. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Adeus ao trabalho? Ricardo Antunes Cortez Editora 200 páginas, R$ 32,00

Em sua 13ª edição revista e ampliada, Adeus ao trabalho? traz três novos textos que dão continuidade à sua temática. O autor procura apreender como se configura hoje a classe trabalhadora, reconhecendo que se modificam continuamente as formas de organização do trabalho e da produção em escala nacional e internacional. Sua questão central é: a categoria trabalho ainda pode ser dotada de estatuto de centralidade no universo da práxis humana?

Mauricio Stycer Alameda Casa Editorial 320 páginas, R$ 46,00

Mauricio Stycer não só conta a história do jornal Lance!, o momento de sua criação e a sua forma de cativar o público como também traça um panorama histórico da mídia esportiva, revelando os modelos empresariais de gestão e de sucessão de algumas das empresas que veem no esporte algo a ser explorado do ponto de vista comercial e instrumental. Alameda Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

A Igreja Universal e seus demônios Ronaldo de Almeida Editora Terceiro Nome/FAPESP 152 páginas, R$ 28,00

Em seu livro, o antropólogo Ronaldo Almeida, que estuda há quase 20 anos as religiões pentecostais, faz um resumo da expansão do pentecostalismo no Brasil e examina uma das protagonistas desse crescimento, a Igreja Universal do Reino de Deus, mostrando como o antagonismo com outras religiões (em especial a umbanda) é fundamental para a Universal definir sua identidade.

Cortez Editora (11) 3864-0111 www.cortezeditora.com.br

Editora Terceiro Nome (11) 3816-0333 www.terceironome.com.br

Uma nação com alma de igreja

O labirinto enunciativo em Memorial de Aires

Carlos Eduardo Lins da Silva (Org.) Editora Paz e Terra 288 páginas, R$ 36,00

fotos Eduardo Cesar

História do Lance!

O livro reúne artigos que resultaram do trabalho de pesquisa desenvolvido no Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (Unesp) e analisam as relações da religiosidade com a formulação e execução de políticas públicas nos EUA e, entre outros temas, a forma como a direita religiosa se organizou politicamente no país a partir dos anos 1970 e acabou obtendo o controle do Partido Republicano durante o governo de George W. Bush. Editora Paz e Terra (11) 3337-8399 www.pazeterra.com.br

Adriana da Costa Teles Annablume Editora 148 páginas, R$ 21,75

A autora debate com a crítica que interpretava o último romance de Machado de Assis à luz do momento peculiar vivido pelo escritor que se encontrava idoso, viúvo e aposentado. Contrariando as leituras decadentes deste romance-diário, Adriana analisa o percurso narrativo preciso do estilo machadiano e propõe novos caminhos de leitura da obra. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

95



...

ficção

Tales

Beatriz Antunes

E

ra uma ideia romântica, mais ou menos desmiolada e sem dúvida nenhuma suicida. Algo que, no entanto, fez o gosto dos estudantes e o levou a representar o grêmio três semanas depois. O clima não estava preparado, ao contrário do que vieram a afirmar mais tarde. Nada disso. O discurso em que Tales lançou sua plataforma exuberante pegou todo mundo de surpresa. Monarquia? A ideia só podia ter nascido do seu charme. Com gosto mediterrâneo para roupas e sorriso constante à la revolución, era um tipo irresistível. Tinha opiniões que sempre pendiam levemente para cá ou para lá do consensual, conseguindo assim espaço para exibir seu conhecimento enciclopédico sobre assuntos diversos, como futebol e cinema, toda vez que surgia uma brecha. Era copiado por alguns estudantes, que tentavam sem sucesso passar aquela imagem de despreocupação que só ídolos do samba e cineastas esquerdistas da década de 70 conseguiam ostentar sem afetação. Bem, cineastas, sambistas e Tales, claro. Frases grandiosas e dramatização de momentos históricos agradavam a imaginação de Tales de uma maneira toda especial. Naqueles dias, mais intensamente. Imaginava-se em uma toga branca observando Sócrates debater com um tabaréu, enquanto espiava a expressão admirada e invejosa (ele emprestava algo de seu ao panorama) do menino Platão, sentado a seu lado. Ou então via-se lado a lado com um camponês de frases claudicantes, com as mãos jogadas em sinal de desistência ou exaustão, caminhando sobre os escombros deixados por Napoleão numa cidadezinha qualquer da França. Ele diria para o coitado, num francês de época e sotaque irretocáveis: “Como se sente?”, e em seguida já se punha a imaginar a formulação exata, as palavras que o homem escolheria para sintetizar o que ele, Tales, desejava ouvir: que nada do que a história nem a filosofia, quiçá a geologia e seus testes de solo, nada daquilo

96

n

junho DE 2009

n

PESQUISA FAPESP 160

sobre o que o conhecimento atual se sustenta é verdadeiro. Como seria sublime – e para lá imediatamente conduzia seu poder visionário – invadir um simpósio internacional de Estudos Franceses do Século XIX aos berros de “não era assim!”. Como seria reconhecido para sempre como aquele que mostrou a todos que, na verdade, “o povo” achava Napoleão isso, e não aquilo. A prova seria a clareza com que o verdadeiro francês-testemunha havia comunicado a ele que tal e tal; faria com que todos no auditório se calassem, humilhados em seu conhecimento sem vida e pilhas de conclusões assentadas em palafitas de sal, que agora se dissolviam na água límpida, no oceano de verdades contidas na simples declaração de um camponês “ouvido”, ou melhor, “revivido” por Tales em sua pesquisa. “Impressionante...”, e lá ia ele buscar o adjetivo exato que os grandes homens usariam para descrever sua revelação no futuro, “acho que eles dirão ‘impactante’...”. Foram visões como essas que prepararam seu espírito para a grande empreitada. Buscando algo mais apropriado ao momento histórico, infelizmente mesquinho, das eleições do grêmio, iniciou-se no caminho cujo final era a tal Monarquia Estudantil. Como quem puxa a linha de volta para ver o que a isca traz, ia enrolando intenções num carretel: “Ser diferente, chamar a atenção dos alunos...”, ele testava a linha antes de puxar, “deve haver uma maneira de fazer isso”. Mais tarde percebeu que teria de “fazer algo que os deixasse com tanta raiva que se sentiriam obrigados a votar”. Foi então que a coisa se fez clara. Deu um tapa no colchão: “Monarquia!”, e começou a rascunhar uma proposta para o dia seguinte, quando as chapas seriam apresentadas formalmente. Os Dinossauros (que, na condição de time de futebol sem gols, eram vistos com desconfiança pelos eleitores), a chapa Anarquia! (que nunca apresentou qualquer pro-


para tratar com as massas: “Eu quero que vocês acabem comigo. Votem em mim para Cristo Redentor deste departamento. Muito obrigado”. Por um desses milagres universitários que acontecem e geram lendas repetidas por toda uma geração, um estudante de filosofia havia conseguido falar ao coração de alguém. A bem da verdade, a muitas pessoas, e isso sem seguir um script muito popular. Havia discursado sobre algo que não entendia, havia menosprezado publicamente todos que entendiam e, numa jogada espantosa, havia se candidatado a um cargo religioso – um cargo espiritual, mais que isso, vocacional!, um cargo intransferível e, e em todo caso, já preenchido – e esse estranho coquetel paralisara expressões, cativara a autoconfiança sempre em baixa dos calouros, trazendo para perto da escada até mesmo pós-graduandos dos mais ocupados, em suas camisas polo e bolsas de couro atravessadas no peito. O passado se fez imediatamente, e colocou Tales dos Santos no início dos tempos. Agora seria antes e depois dele. Que deu um sorriso, depositou o megafone no degrau e passou imediatamente a distribuir santinhos, reproduzidos em xerox, com sua plataforma romântica, desmiolada e suicida. A expressão de espanto divertido dos estudantes não foi exatamente como lhe pareceram, em suas divagações, os rostos graves dos apóstolos ao ouvir de Jesus que um deles o trairia. Mas Tales oferecia-se ao abate da mesma forma, embora com propósitos bastante diversos. Tinha sido um discurso e tanto, “Impressionante”, ele ia repetindo baixinho, “Definitivo”, concluiu enquanto abria caminho na multidão de fiéis. Beatriz Antunes, formada em filosofia, é editora de livros e publica seus textos em www.noticianenhuma.blogspot.com PESQUISA FAPESP 160

n

junho DE 2009

n

97

luana geiger

posta que não o próprio nome) e a indefectível Mu-Dança (apoiada pela estranha classe de eternos primeiranistas que militavam contra o “projeto neoliberal da reitoria” e a favor do “ensino público, gratuito, de qualidade e para todos e todas”) estavam a postos na manhã de terça-feira. Cada um dos representantes se preparava para discursar na escada da cantina, onde por força da arquitetura mirrada era evidente que teriam quórum. Tales procurou cumprimentá-los como um político veterano e se colocou de lado, mas ninguém se deu ao trabalho sequer de estranhar a sua presença. A invisibilidade, no entanto, não combinava com ele. Vinte minutos depois demonstrou cientificamente esse fato. Tales havia nascido para falar ao povo: “Não vou me estender para não cansar vocês, que nunca se interessaram pelo que acontecia aqui. Que nunca se deram conta do que faziam em seu nome, e por isso sempre ouviram tranquilamente discursos como esses que acabam de ser proferidos aqui nessa escada.” Tales considerou que havia cometido um erro, a palavra “escada” dava um ar de pouca importância ao evento, prometeu a si mesmo caprichar mais. “Nessa praça de debate, nesse instituto”, ele prosseguiu, orgulhoso da guinada que sua rápida intervenção conferiu ao discurso, “vocês votaram ano após ano em propostas iguais: ‘aumento do aluguel da cantina’, ‘investimentos massivos na biblioteca’, ‘equipagem das salas de estudo’, ‘liberação das cervejadas no campus’. Eu não proponho nada disso. A minha ideia é simples, e tão simples que vai parecer nova. Mas não é. Eu quero ser rei de vocês e, como todos aqueles que tiveram essa sorte antes de mim, quero levar vocês a me derrubar. A dar o golpe. A acabar com a gestão fraudulenta e sucateadora”, e aqui já não havia mais ninguém que não prestasse atenção nele, nem mesmo os mais politizados, que agora se sentiam roubados em seu vocabulário operário e em sua vocação


CLASSIFICADOS

Pesquisa »

Anuncie você também:

te!. (11) 3838-4008

I www.revistapesquisaJapesp.br

Editing in Brazil since 2001 Translating since 2004 editing

PRECISE I'"EDITING OF TEXTS IN ENGLlSH

I'"TRANSLATION TO ENGlISH

Client papers published in Stem Cells, Am J Psyehiat, Atmos Environ, J Am Soe Nephrol, Kidney Int, J Chem Neuroanat, J Anat, Virology, etc.

Jeff Boyles, Chief Editor .CNPJ: 07.107.658/0001-46

.precise@terra.com.br

• Tel: (11) 30812627

Genese

o ponto de partida dos seus resultados

..

• zenbio

Sl

,). PerklnElmer' rwtNBdfIr

98 • JUNHO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 160

A


• qUlsa

tulsa.tapesp.br

7'1-~~IAL.f!I~N

A FOLHA SER CADA VEZ MAIS A FOLHA.

ASSINE: 0800 015 8000

FOLHA NÃO

P R ANÃ

O lER.

www.folha.com.hr


Sustentabilidade é usar conscientemente os recursos naturais hoje, para melhorar a vida das pessoas agora, sem comprometer o futuro da Terra. A CAIXA financia projetos de responsabilidade socioambiental, como os de geração de energia limpa. Com incentivos do Governo Federal, a CAIXA aplicará

até o fim de 2009 mais de

R$ 1,175 bilhão em projetos de geração de energia eólica. Um exemplo é a Central Eólica Praias de Parajuru, que vai gerar não só 28,8 megawatts de energia, como também mais de 1.500 empregos diretos e indiretos no Ceará.

Central Eólica Praias de Parajuru, no Ceará. Um investimento de R5 128 milhões. Mais um presente da CAIXApara o meio ambiente.

MCT- PUCRS Av Iplran.ga.6681.Pri.dlo40 POA· RS • Tel (51) 3320 3597 _mctpUl:nbr


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.