O clima vai mudar a natureza do país

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Outubro 2009· N° 164· R$ 9,50

Ouro de muitas • • cores para JOlas A grande investigação sobre a saúde do brasileiro ENTREVISTA

João Lúcio de Azevedo Plantas podem ter mais fungos e bactérias do que células

o clima vai mudar a natureza do país


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eduardo cesar

imagem do mês

O espanto

da luz A exposição Sombras e luz, em cartaz até 6 de dezembro no Sesc Pompeia, na capital paulista, diverte os visitantes com efeitos curiosos, como projeções na parede que reagem à passagem das pessoas e brincadeiras com objetos usados no dia a dia que produzem sombras inesperadas. Os sete cômodos da casa de um hipotético cientista aficionado em óptica abrigam as instalações interativas e multimídias. Uma delas é um laboratório, que apresenta curiosidades sobre as propriedades físicas das sombras. A exposição original foi montada em 2005 em Paris no museu La Cité des Sciences et de l’Industrie e serviu de inspiração para as instalações montadas no Brasil.

PESQUISA FAPESP 164

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outubro DE 2009

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164

>E

UTUB 02009

56

18

CAPA

32

>

CAPA

>

ENTREVISTA

>

34 EDUCAÇÃO

l

CIÊNCIA

Projeto mostra como 18 Modelos matemáticos ajudam a antever

12 Defensor dos fungos e bactérias de plantas, o geneticista

os efeitos do aquecimento global

João

Lúcio qe Azevedo diz que apenas 1% desses

no país

microrganismos 24 Circulação das

causam problemas

massas de ar prejudica até mesmo áreas distantes das desmatadas

FfslCA

a escola pública pode se transformar

Grupo de São Paulo

num espaço de reflexão

obtém o emaranhamento quântico entre

36 GESTÃO Projeto da Faculdade

três feixes de luz

de Medicina da USP

de diferentes comprimentos

incentiva a formação do médico de família

>

POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

e procura formas de aprimorar

de onda

Comportamento de átomos prejudicaria o

o SUS

funcionamento 32 COLABORAÇÃO FAPESP celebra acordos de cooperação

>

computador

40 EPIDEMIOLOGIA

para descobrir

pesquisa e universidade

como doenças cardíacas

do Reino Unido

e diabetes evoluem

8 CARTA DA EDITORA

de

6

quântico

Seis estados fazem um grande levantamento

com conselhos de

SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 7 CARTAS

54

10 MEMÓRIA

26 ESTRATÉGIAS

44 LABORATÓRIO

60 SCIELO NOTíCIAS

62


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> POLíTICA

EDITORIAS

C&T

> CIÊNCIA

> HUMANIDADES

> TECNOLOGIA

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ASTRONOMIA

TECNOLOGIA

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76 AGRICULTURA

O menor planeta já NOVOS MATERIAIS

do Sistema Solar tem superfície rochosa e

Ouro misturado

satélite e sensores

Estudos mostram

metais resulta em ligas

para elaborar um mapa

temperaturas

de cores variadas para a fabricação de joias

detalhado

gênero sertanejo como um retrato do país,

descoberto

fora

66

extremas

a outros

80 MÚSICA

de

áreas de plantio

disposto a ir em frente mas sempre olhando

NEUROFISIOLOGIA

Situação que causa

a

70 ENGENHARIA

para trás

78 BIOTECNOLOGIA

repulsa aumenta

DE MATERIAIS

Proteína usada em

atenção e

Brasileiros criam telas

vacina recombinante

percepção visual

multimídia com papel transparente e dobrável

induz resposta celular

Projeto levará à internet

nos cães e reduz

documentos

transmissão

repressão na ditadura

BOTÂNICA

Plantas raras crescem

leischmaniose

74 ENERGIA

isoladas principalmente

Equipe da Unicamp

em terras altas

desenvolve

da

62 LINHA

DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

95 LIVROS

sobre a

visceral 90

de alta

POlÍTICA

EXTERNA

anos da queda do Muro

pureza para aviões

.,

86 HISTÓRIA

Discussão sobre os 20

biocombustível

ríCIAS

HUMANIDADES

Pesquisador cria um sistema que integra

96 FiCÇÃO

de Berlim revela o seu impacto na crise atual

98 CLASSIFICADOS

I

CAPA MAYUMI OKUYAMA

FOTO EDUARDO CESAR


OCÊ AI DESCOBRIR QUE AS PAREDE DOS MUSEUS PODEM TER TANTA HISTÓRIA QUANTO AS OBRAS PENDURADAS NELAS.


CARTAS

PeiqeTecnülia

cartas@fapesp.br

FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

AConida~ A8EL\ÉI'OCA

00""'''' PAuusrA. """"" ~

• Opiniões ou sugestões

Ullil!OlliDE Cl*llI!ICAÇAo DA IIlÉRICALATIIü

segu"a gel'Gçao do eccuaol

Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

foi a forma como Carlos Haag tratou o tema "luxo"; não vinculando única e exclusivamente ao fato de aquisição de mercadorias importadas e status, ele levou em consideração todo o cenário político e cultural que a sociedade vivia e como certas decisões do passado ainda permanecem tão fortes em nossas vidas nos dias atuais. Parabéns a toda equipe pela excelente matéria. CARLOS GABRIEL

São Paulo

Correções • Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

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Etanol É formidável o esforço para o melhor aproveitamento da matriz na produção do combustível biológico, principal opção para o consumo do petróleo ("O alvo é o bagaço", edição 163). Porém quando se sabe que no ano de 190038% dos automóveis em circulação eram movidos a eletricidade, com uma das fabricantes (Baker) oferecendo nada menos que 17 modelos, alguns com autonomia de até 64 quilômetros com uma carga (Classic Car -100 anos de publicidade automóvel, de Iim Heimann e Phil Patton, editora Taschen), cabe imaginar quanto a civilização terá perdido em quase um século de opção energética equivocada. RICARDO DOS SANTOS OLIVEIRA FIGUEIREDO

São Paulo

Luxo Acabei de ler a matéria "A história do Brasil é um luxo" e gostaria de parabenizá-los pela qualidade e embasamento como as ideias foram expostas. O texto, além de traçar os hábitos e objetivos do consumo da sociedade paulista do final do século XIX, início do XX, nos dá um panorama importante sobre a influência do consumo nos rumos políticos e culturais da cidade de São Paulo. O que mais me chamou a atenção

Na reportagem "Asas abertas sobre o mundo" (edição 163), o nome correto de uma das únicas espécies de gavião que vive em Galápagos é Buteo galapagoensis, e não Buteo galapagos, como foi publicado. O pesquisador João Meidanis é professor no Instituto de Computação da Unicarnp, e não no Instituto de Informática, como aparece na reportagem "Simplicidade natural" (edição 163). O livro A comédia urbana: de Daumier a Porto-Alegre, cujas imagens ilustraram a reportagem "A ciência feita na raça" (edição 163), é de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. Na nota "Mais frio nos Andes" (Laboratório Brasil, edição 162), a foto da direita na página 45 foi publicada invertida, com o norte para baixo. Na reportagem "Economia na tomada" (edição 162), a expressão "watt por hora" está errada. O watt é uma unidade de potência, o watt-hora é uma unidade de energia e o watt/hora indica uma taxa de variação da potência com o tempo. O correto, portanto, teria sido usar apenas watt.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e·mail cartas@lapesp.br, pelo lax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468·901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Ambiente, comemorações e reflexões

Celso Lafer

Presidente josé arana varela

vice-Presidente

Conselho Superior

Mariluce Moura - Diretora de Redação

Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

T

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler

Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), Braz, Danielle Maciel, Gonçalo Junior, Laurabeatriz, Evanildo da Silveira, Leandro Negro, Luana Geiger, Marcos Garuti, Santiago Nazarian e Yuri Vasconcelos

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É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização

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Secretaria do ensino superior Governo do estado de São Paulo

instituto verificador de circulação

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omada em sua inequívoca e assumida identidade de revista brasileira de divulgação científica, Pesquisa FAPESP faz 10 anos neste começo de outubro. Sim, a frase restritiva de abertura é obrigatória porque, a exemplo de tantas outras construções intelectuais, esta publicação tem suas ambiguidades de origem. E elas permitem pelo menos duas diferentes leituras sobre a verdadeira idade da publicação: primeiro, se tomarmos o número de edições mensais como o mais consistente indicativo de tempo decorrido, temos que dizer que ela já alcançou os 14 anos. Se, entretanto, nos aferrarmos ao produto revista stricto sensu e à existência do título Pesquisa FAPESP, voltamos à informação inicial que nos faz comemorar nesse momento este décimo aniversário. Explico para os leitores que ainda não ouviram ou leram alguma coisa a esse respeito: de um pequeno boletim chamado Notícias FAPESP, que surgiu em agosto de 1995 e que, pouco a pouco, foi crescendo, se adensando, se fazendo gradativamente mais complexo, de forma bem planejada, mesmo carinhosamente pensada, nasceu em outubro de 1999 a Pesquisa FAPESP. O boletim tinha avançado por 46 edições, na média de 11 por ano, e, ao se transformar na Pesquisa, convencionamos todos, diretoria da Fundação, bibliotecários consultados e os próprios jornalistas responsáveis, que a revista deveria carregar por dever de justiça, e artes da chamada indexação, o número 47. Isso assinalaria a continuidade de um projeto, por mais que a publicação tivesse se distanciado e fosse se afastar mais e mais do boletim de origem, em termos de qualidade, importância editorial e ambição daquele pequeno informativo. Não vou me deter muito neste espaço numa análise da revista que, aliás, a essa altura, já é objeto de alguns estudos acadêmicos que indagam, entre outros aspectos, sobre seu papel no avanço do padrão da divulgação científica no Brasil e examinam minuciosamente sua linguagem. E como já observou Celso Lafer em seu discurso de posse na presidência da

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FAPESP, em setembro de 2007, Pesquisa “é uma significativa face externa do papel da Fundação e, ao mesmo tempo, uma contribuição para conscientizar a opinião pública do relevante e indispensável nexo entre as áreas do conhecimento no mundo contemporâneo”. Claro que devemos dedicar tempo, e bastante, às reflexões sobre os caminhos para aperfeiçoar Pesquisa FAPESP e ampliar sua influência no sentido da difusão do conhecimento e de um pensamento mais solidamente científico em nosso país, sem abrir mão da busca incessante por clareza e elegância nos textos jornalísticos e no tratamento visual que tem sido sua marca. E ainda que sejam extremamente lisonjeiras as palavras que recolhemos sobre a qualidade editorial da revista nos mais diferentes fóruns pelo Brasil afora – e às vezes até sopradas do exterior –, é com espírito crítico e simplicidade, com rigor e ânimo criativo, que devemos pensar sobre os próximos anos de Pesquisa FAPESP. Mas é tempo de falar dos destaques desta edição. Primeiro, a capa, composta por dois textos que têm assinaturas da editora assistente de ciência, Maria Guimarães, e do editor especial Carlos Fioravanti. A reportagem aborda os modelos matemáticos que ajudam a antever os efeitos do aquecimento global e do desmatamento de florestas, em particular, sobre a natureza e a agricultura no Brasil dentro de um horizonte de até 100 anos. É possível, relata Maria, que a onça-pintada não encontre áreas ideais para viver na Amazônia, que o Cerrado suma totalmente do oeste paulista e que as perdas no cultivo de soja acumulem prejuízos anuais de R$ 4,3 bilhões, a levar em conta as projeções bem embasadas de pesquisadores preocupados com as mudanças climáticas previstas pelo IPCC. Já no relato de Fioravanti emergem as consequências do desmatamento até mesmo em áreas distantes das que foram desmatadas, inicialmente com o aumento do volume de água dos rios, depois com sua redução e efeitos sérios sobre os regimes de chuva. Das previsões mais ou menos sombrias sobre o ambiente, vale a pena passar a um


carta da editora

fotos eduardo cesar

O boletim nº 1 (acima) e as algumas edições feitas nos 10 anos da revista

campo com uma carga estética, digamos, faiscante. Refiro-me à reportagem sobre um processo inovador de tratamento do ouro que permite a obtenção de ligas de múltiplas cores para a fabricação de joias. Conforme o relato da editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, “à primeira vista, as peças de ouro colorido lembram pedras de cores surpreendentes, que podem mudar de tonalidade”, a depender da incidência da luz. Consegue-se “azuis em vários matizes, púrpura furta-cor e outras cores” por meio de uma técnica de moagem em alta frequência, muito distante da tradicional fundição empregada normalmente na joalheria. Estamos aqui em campo vasto para a imaginação dos designers de joias e, talvez, para os negócios desse segmento no país. E para encerrar esta já longa mensagem aos leitores, destaco a entrevista pingue-pongue com o geneticista João Lúcio de Azevedo, feita pelo

editor chefe, Neldson Marcolin, e pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira. Considerado por seus pares o pesquisador brasileiro que mais entende de genética dos microrganismos da agricultura, ele conta em sua prosa fácil e clara que acha a maior graça da ignorância das pessoas a respeito de fungos e bactérias e do medo injustificado que decorre exatamente dessa ignorância. Afinal, observa, “apenas 1% dos microrganismos causam problemas”. O que é uma excelente informação, ainda mais quando se aprende que há muito mais bactérias do que células em cada planta – assim como cada corpo humano é frequentado por um número de microrganismos muito maior que o das células que o compõem. Em números, para simplificar, são cerca de 100 mil bactérias por grama de planta que encontramos nos vegetais multicelulares. Palavra de João Lúcio de Azevedo. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 164

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memória

V Hans Staden naturalista Autor de obra clássica sobre o Brasil foi o primeiro a descrever as abelhas sem ferrão, há 452 anos

desenhos www.brasiliana.usp.br

Neldson Marcolin

Ilustrações de Staden e do naufrágio na costa brasileira (acima)

iagem ao Brasil, de Hans Staden, foi um dos primeiros livros inteiramente escritos sobre o país. Desde 1557, quando foi publicado na cidade de Marburg, em Hessen, na Alemanha, é um grande sucesso editorial, com mais de 80 edições em várias línguas. E, mesmo sendo uma obra muito lida há centenas de anos, ainda provoca surpresas. Wolf Engels, geneticista e zoólogo alemão da Universidade de Tübingen, por exemplo, teve a atenção despertada pelo capítulo 35 da segunda parte do livro. Em apenas 115 palavras, Engels identificou a primeira descrição de abelhas sem ferrão já registrada no Brasil e publicou neste ano um artigo na edição on-line da Genetics and Molecular Research. “O livro de Hans Staden é bem conhecido, mas as informações sobre a fauna e particularmente as abelhas-indígenas sem ferrão nunca foram citadas”, diz Engels, que trabalha também no Departamento de Genética da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, e tem projetos binacionais com o Brasil há 40 anos. “Conheço as três espécies muito bem e os detalhes descritos por Staden são precisos.” As abelhas sem ferrão só foram classificadas como um grupo característico, o de meliponíneos, 250 anos depois da publicação de Viagem ao Brasil. O livro trata das duas passagens do artilheiro alemão ao país e conta como foi aprisionado


tirei mel, nu; mas da primeira vez fui coagido pela dor a meter-me na água e tirá-las ali para me livrar delas” (editora Martin Claret, 2008). As três são, de acordo com Engels, a mandaçaia (Melipona quadrifasciata), a mandaguari (Scaptotrigona postica) e a jataí (Tetragonisca angustula). São abelhas-indígenas com o ferrão atrofiado, nativas do Brasil, onde há mais de 300 espécies do tipo. Embora não piquem, elas defendem seu mel com pequenas mordidas na pele. Paulo Nogueira-Neto, professor emérito da Universidade de São Paulo, autor de Vida e criação das abelhas-indígenas sem ferrão (editora Nogueirapis), foi um dos

Índios comem prisioneiro; Staden está à direita

primeiros pesquisadores a estudar essas espécies no país, assim como Warwick Estevam Kerr, especialista em genética animal. Nogueira-Neto lembra que o padre José de Anchieta escreveu uma carta ao seu superior na Companhia de Jesus, padre Diogo Laines,

Tom Wenseleers/Lab. de abelhas/IBUSP

Tom Wenseleers/Lab. de abelhas/IBUSP

Marilda Cortopassi Laurino/Lab. de abelhas/IBUSP

pelos tupinambás, índios antropófagos, mas conseguiu escapar. O trecho que chamou a atenção do pesquisador alemão é o seguinte: “Três espécies de abelhas há no país. As primeiras são semelhantes às daqui. As segundas são pretas e do tamanho de moscas. As terceiras são pequenas, como mosquitos. Todas essas abelhas fabricam mel no oco das árvores e muitas vezes tirei mel com os selvagens de todas as três espécies. As pequenas têm, em geral, melhor mel que as outras. Também não mordem como as abelhas daqui. Vi, muitas vezes, ao tirarem mel os selvagens, que ficavam cheios de abelhas e que a custo as tiravam à mão do corpo nu. Eu mesmo

Jataí (acima à esq.), mandaguari (acima) e mandaçaia (esq.): produção de mel no tronco das árvores

datada de 1560, apenas três anos depois de Staden publicar seu livro. Nela Anchieta faz numerosas observações sobre a fauna e a flora brasileiras e também cita abelhas que “fazem seu mel em troncos de árvores”. Nogueira-Neto conta que quando esteve à frente da Secretaria Especial do Meio Ambiente (1974-1986) e criou a Estação Ecológica Tupinambás, em Ubatuba, usou Viagem ao Brasil para batizar algumas ilhotas. “Na época havia algumas ilhas oceânicas sem nome”, relata. “Como o Serviço de Patrimônio da União não admite lugar sem nome, usei o livro para chamar as ilhas com denominações indígenas porque foi naquela parte do litoral paulista que Hans Staden ficou prisioneiro dos tupinambás”, diz Nogueira-Neto. > Artigo científico www.funpecrp.com.br/gmr/ year2009/vol8-2//pdf/kerr039.pdf

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entrevista

João Lúcio de Azevedo

Medo injustificado Especialista em microrganismos de plantas diz que apenas 1% dos fungos e bactérias causam problemas

Marcos de Oliveira e Neldson Marcolin

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de genética nas universidades de Campinas (Unicamp), Caxias do Sul (UCS), Goiás (UFG), Brasília (UnB) e Mogi das Cruzes (UMC) e, no momento, é coordenador de microbiologia do Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus. Foi por quase 11 anos coordenador adjunto de Agronomia e Veterinária da diretoria científica da FAPESP. Escreveu um livro que se tornou referência na área, Genética de microorganismos (Universidade Federal de Goiás, 1998), cuja segunda edição revista e ampliada acaba de ser publicada, e seus estudos produziram duas patentes, uma com a Fundecitrus e outra, ainda em andamento, com a Companhia Suzano de Papel e Celulose. Separado, com dois filhos e dois netos, o sempre bem-humorado João Lúcio de Azevedo falou à Pesquisa FAPESP sobre a pouco entendida contribuição dos microrganismos à agricultura. Durante sua apresentação em seminário na FAPESP o senhor comentou que as plantas são meros substratos para os microrganismos viverem. Essa visão é semelhante à que alguns biólogos têm do ser humano. O que o levou a essa conclusão? — A observação. Os biólogos estão certos. No corpo do ser humano tem mais microrganismos do que células humanas. Com a planta ocorre o mesmo. A célula da planta é bem maior, mas se contarmos o número de células de microrganismos e o de células de planta, o primeiro suplanta o segundo. São cerca de 100 mil bactérias por grama de planta. n

n São bactérias que vivem apenas na própria planta? — Algumas são características da planta, mas têm a capacidade de viver e se reproduzir no solo também. Isso foi descoberto pelo alemão De Bary, em 1866. Ele descobriu que havia bactérias na planta, mas foi infeliz ao dizer que elas não faziam bem nem mal. Apenas na década de 1970 é que suíços e americanos perceberam que elas fazem muito mais bem às plantas do que mal. n São bactérias que vivem apenas na própria planta? — Isso. Foi na segunda metade do século XIX que surgiram os primeiros trabalhos com microrganismos endofíticos – “endo” de dentro e “fítico” de planta –, que são os fungos e bactérias que agem dentro da planta. A descoberta do final dos anos 1970 mostrou que esses microrganismos são extremamente importantes. Eles fazem solubilização de fosfato: a planta precisa de fosfato e eles pegam essa substância do solo e alimentam os vegetais. Por sua vez, a planta fornece substrato para o microrganismo crescer. Muitos deles fixam nitrogênio atmosférico, outros fazem antibióticos que matam microrganismos patogênicos e há os que produzem toxina para matar inseto invasor. Alguns matam animais herbívoros, como carneiros e bois. É o que chamamos equivocadamente de planta venenosa. Venenosa nada. O que mata é o fungo que ela carrega, e não a própria planta.

fotos eduardo cesar

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estranho ouvir o geneticista João Lúcio de Azevedo falar de seu trabalho. Ferrenho defensor de fungos e bactérias das plantas, acha graça na ignorância alheia quando as pessoas manifestam temor com tal convívio. “Apenas 1% dos microrganismos causam problemas; todo o resto é benigno às plantas”, esclarece sempre que tem oportunidade. A última vez que isso aconteceu foi no auditório da FAPESP, onde ocorreu um seminário sobre os desafios da agricultura tropical como parte das atividades do Prêmio Fundação Bunge 2009. Azevedo ganhou na categoria Vida e Obra e Carlos Eduardo Pellegrino Cerri em Juventude. Ambos são da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Aos 72 anos, João Lúcio de Azevedo é considerado por seus pares talvez o pesquisador brasileiro que mais entende a genética dos microrganismos da agricultura. É também um professor afeito à tarefa de formar novos pesquisadores. Até setembro, ele havia orientado 98 mestres e 68 doutores, de Manaus, no Amazonas, até Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Um número espantoso, que ele justifica de forma pragmática: é na pós-graduação que está a mão de obra especializada da pesquisa. Portanto, é lá que se tem de cultivar e colher os melhores pesquisadores. Azevedo sempre teve sua base na Esalq e fez dois pós-doutorados no exterior. Mas frequentou e formou núcleos


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n Não é uma substância da própria planta

que mata? — Na maioria das vezes não. Evidentemente existem plantas venenosas. Mas muitas dessas plantas de pasto, que o gado come e morre, carrega um fungo que é o verdadeiro causador da morte. Ele vive dentro da planta e a protege. Para a planta é ótimo... Há outros, porém, que protegem contra a seca, por exemplo. n Como a bactéria pode proteger a planta contra a seca? — É um tipo de microrganismo que sai das raízes e vai mais longe, onde consegue pegar umidade e levar até a planta. É o que chamamos de proteção contra estresse hídrico. Há outro tipo, que produz antibiótico para matar patógenos de vegetais. Alguns desses antibióticos poderiam ser usados também para a espécie humana. n Então há de fato um bom potencial desses

microrganismos para a saúde humana? — Enorme. É comum ouvir que algumas plantas são medicinais. Muitas são, mas outras não. Pode ocorrer de o microrganismo que vive dentro dela produzir a substância curativa. Também é engra-

O número de microrganismos é maior que o de células de planta. São cerca de 100 mil bactérias por grama de planta. E eles fazem mais bem do que mal a elas 14

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çado ouvir que uma mesma planta pode ser boa em Manaus e ruim no Recife. A planta é a mesma. Pode ser que uma tenha um microrganismo e a outra não. Dê um exemplo de microrganismo de planta transformado em remédio. — Um deles é o taxol, usado para tratar câncer de mama e de útero. Ele é produzido pelo fungo Taxomyces andreanae, que vive em várias plantas, descoberto nos Estados Unidos. Foi interessante porque estavam destruindo todas as plantas que produzem o taxol, e elas demoram a crescer. Mas aí pegaram o fungo, fizeram fermentação e conseguiram produzir mais taxol do que a planta. Do ponto de vista biotecnológico é um grande avanço. Isso ocorreu de 1980 para cá. n

possível eliminar a grande quantidade de aditivos químicos usados no solo? — Provavelmente não. É algo difícil porque a agricultura é muito artificial. A Floresta Amazônica, por exemplo, não tem muitas pragas. Há um equilíbrio natural naquele ambiente. Agora, se plantarmos centenas de hectares apenas de laranja, em algum momento surgirá um desequilíbrio. Aparecerão microrganismos e insetos que antes não causavam problemas. Foi o que aconteceu com a Xylella fastidiosa. Eu não acredito que essa bactéria tenha sido introduzida nos nossos laranjais acidentalmente. Ela provavelmente já existia por aqui, mas em razão do desequilíbrio natural provocado por uma quantidade imensa de uma mesma cultura, ela começou a proliferar e causou a praga do amarelinho.

n Mas os trabalhos de Johanna Döbereiner

com as bactérias fixadoras de nitrogênio já são dos anos 1970, antes desse período. — De fato são. A professora Johanna trabalhou, na Embrapa, na mesma linha de pesquisa com microrganismos de planta. Naquele tempo, embora sendo endofíticos, eles eram chamados de fixadores de nitrogênio atmosférico que podiam produzir nódulos em plantas ou não, estes últimos designados de diazotróficos. Nessa área ela foi pioneira. E descobriu isso nos trópicos, embora fosse tcheca radicada no Brasil. n É fato que as bactérias fixadoras de nitro-

gênio foram uma das razões do sucesso da agricultura no Cerrado brasileiro? — Foi uma das razões. Mas, sem dúvida, o uso das bactérias teve um papel importante. n Como é a história do crescimento de eu-

caliptos estimulado por microrganismos? — No seminário da FAPESP mostrei um eucalipto pequenininho, sem a bactéria endofítica, e o eucalipto grande, com a endofítica. A Companhia Suzano está usando as bactérias, entre elas a Stenotrophomonas multifolia, para inocular as mudas de eucalipto e ajudá-las a crescer mais. Esse é outro exemplo de como os microrganismos ajudam as plantas. No entanto, se deixarmos a muda sem microrganismos no solo, eles vão entrando depois porque a planta se defende e busca o que é melhor para ela. A técnica é interessante nos primeiros 30 dias de vida da planta. Esse trabalho foi feito pelo meu grupo e está sendo patenteado. Poderemos chegar a um ponto em que, utilizando apenas microrganismos, será n

n É possível estimar o número de espécies de microrganismos? — No mundo inteiro estima-se que existam 1,5 milhão de espécies de fungos e 100 mil espécies de bactérias. Desses, conhecemos entre 70 mil e 80 mil fungos e 5 mil bactérias.

Parece pouco... — A estimativa foi feita na Inglaterra e não é precisa. Também acredito que haja mais, mas os números que temos são esses. Um dos critérios usados pelo pesquisador é que há mais de 300 mil espécies de plantas conhecidas. Cada vez que trabalhamos com uma espécie conhecida aparecem mais uns quatro ou cinco microrganismos novos. Você multiplica 300 mil por 5 e dá 1,5 milhão de fungos. n

n Qual a estimativa do número de fungos para a Amazônia? — Temos no Brasil mais ou menos 60 mil espécies de plantas, a maioria na Amazônia. Multiplique 60 mil por 5, vai dar umas 300 mil espécies de fungos. Há muita coisa para descobrir. O engraçado é que sempre que as pessoas falam em fungo o comentário é negativo. Ora, 99% desses 300 mil devem servir para coisas boas e apenas 1% provoca algum tipo de problema. n Entrevistamos na edição de agosto o vi-

rologista Edison Durigon, da USP, que tem um projeto de captura de aves migratórias na Amazônia para monitorar a entrada de vírus estranhos no Brasil. Ele diz que é essencial ter uma ótima infraestrutura de segurança para não pegar um vírus perigoso no meio da mata e disseminá-lo, sem


querer, em um grande centro. Como é com bactéria e fungo de planta? — É a mesma coisa. Provavelmente foi o que aconteceu com o fungo da vassoura-de-bruxa, que ataca o cacau. Pode ter vindo da Amazônia ou da África. Há quem diga que teria surgido depois de um congresso na Bahia, que reuniu pesquisadores e plantadores de cacau de todo o mundo. Alguém teria levado – talvez inadvertidamente, talvez de propósito – e contaminado as plantações baianas. n Sua tese de doutorado foi com a bactéria Xanthomonas campestris. Por que a escolheu? — Depois de me formar na Esalq fui apresentado a um professor que veio dos Estados Unidos, já falecido, Milislav Demerec, que conhecia bem a genética de bactérias e sugeriu que eu trabalhasse com uma que causasse doença em plantas. A Xanthomonas campestris causa uma doença na couve, no repolho, na mostarda etc. Eu queria estudar a Xanthomonas citri, que causa o cancro cítrico. Mas fui aconselhado a não fazer isso porque naquela época, em 1960, havia barreiras nas estradas e o cancro cítrico ocorria, por exemplo, na região de Botucatu. Quando se vinha de Botucatu e cidades vizinhas, o carro era parado numa barreira. Abriam o porta-malas e se tivesse laranja tinha de jogar fora para evitar contaminar com cancro cítrico a área de Limeira, que era uma região cítrica muito importante, mas ainda sem a doença. Resolvi estudar a X. campestris porque se a doença aparecesse em Limeira iriam dizer que fui eu quem a trouxe.

Seu objetivo era achar um antibiótico para o cancro cítrico? — Tinha relação com isso. Ocorre que se se tratar a semente com estreptomicina ou canamicina dá para reduzir a incidência da doença, mas aparecem formas resistentes. Esse é o perigo do uso do antibiótico na agricultura, assim como na medicina. Foi nesse período que apareceram muitos organismos resistentes. No Ceasa [centro de abastecimento importante do estado de São Paulo], por exemplo, pegavam as cenouras e colocavam num tambor cheio de espectromicina para evitar a podridão da raiz. O problema é que ficava cheio de antibiótico que as pessoas consumiam junto com a cenoura. Era uma loucura. Foi mais pensando nessa parte que comecei a trabalhar com resistência a antibióticos. n

n Quando decidiu fazer doutorado já esta-

va decidido a fazer carreira científica?

— Já. O professor Friedrich Gustav Brieger, o catedrático que me influenciou, dizia que ninguém trabalhava com microrganismo no Brasil. Brieger era alemão. Veio para cá na época em que a USP importava acadêmicos para ajudar a fazer a universidade e foi um dos pioneiros dos estudos genéticos aqui. Na Alemanha foi aluno de Carl Erich Correns, que redescobriu as leis de Mendel. Brieger me disse, “Você precisa estudar genética de microrganismo, porque já tem gente que estuda a genética da drosófila, de seres humanos, de planta, de animal grande...”. A geração de um microrganismo é de 20 minutos, 30 minutos. A genética estuda a transmissão de pai para filho. Fazer isso na espécie humana leva 20 anos. No microrganismo leva 20 minutos. Ele também me orientou para fazer genética de bactérias, mas não na área da saúde. Brieger me alertou, “Você está numa escola de agronomia, então estude um patógeno de planta”. Evidentemente, ele tinha toda a razão. Por que escolheu a Inglaterra para se especializar? — Eu me formei em 1959, terminei o doutorado em 1962 e em 1964 fui fazer um estágio no exterior. Brieger me sugeriu ir para a Inglaterra em vez dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos eles eram muito bons em genética de n

bactérias e eu iria fazer parte de uma equipe em que cada um faz um pedacinho e ficaria dependente deles quando voltasse ao Brasil. Já na Inglaterra eu trabalharia com fungo, algo em que nos Estados Unidos eles não eram tão bons, e de modo mais independente. Fui para a Universidade de Sheffield e estudei um fungo chamado Aspergillus nidulans. Tive sorte em conhecer o professor italiano Guido Pontecorvo. Ele tinha um assistente ótimo, o professor Joseph Alan Roper. O pessoal do con­ selho britânico, que havia me dado a bolsa de estudos, sugeriu que trabalhasse com o Roper, mais jovem e muito ativo em pesquisa, além de recém-contratado como chefe do Departamento de Genética em Sheffield. O Pontecorvo já estava na fase de só dar palestra. O modelo de estudo, o Aspergillus, foi uma boa escolha. Esse fungo não serve para ser usado na biotecnologia, mas é bom para estudar genética porque não provoca doença e é fácil de crescer. Existem outros Aspergillus: o A. niger serve para fazer ácido cítrico e tem interesse biotecnológico. Já o A. parasiticus e o A. flavus produzem toxinas e são perigosos. Depois desse período na Inglaterra o senhor voltou para a Esalq? — Voltei em 1970 e as primeiras teses que n

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orientei nessa época foram todas com o A. nidulans. Tinha até certa aplicação em alguns casos porque ele tem um ciclo, chamado de parassexual. Isso acontece em fungos usados na indústria. Pode ser aplicado na produção de antibiótico, ácido cítrico e outros. Como estava me voltando para essa área, colaborei uns tempos com a empresa Fermenta, que era da família Matarazzo, em Santa Rosa de Viterbo [SP]. A usina Amália, também dos Matarazzo, produzia acido cítrico – que não tem nada a ver com citros – e nos chamaram para resolver um problema. Esse ácido era exportado e serve para fazer balas, é usado em medicamentos e refrigerantes. Estudei a situação junto com pós-graduandos, que acabaram descobrindo que a parassexualidade do fungo estava alterando a produção. Um desses pós-graduandos conseguiu estabilizar os fungos e resolveu a questão. n O senhor já disse que, dependendo das bactérias que atuam com a Xylella fastidiosa, ela pode se tornar mais atenuada ou cada vez mais ativa. Como foi essa descoberta? — Uma das hipóteses é que as bactérias dos gêneros Methylobacterium e a Curtobacterium, que convivem com a Xylella na planta, produzem cada uma algo que a Xylella aproveita ou se torna prejudicial a ela. Descobrimos isso a partir de 2001, depois do sequenciamento, que ocorreu de 1997 a 2000. Fiz parte do Steering Committee da Xylella, embora não tenha sido um dos autores do sequenciamento do genoma. Era esse comitê que recebia os projetos para dar os pareceres. O sequenciamento foi muito bom porque deu uma vitrine internacional ao Brasil. Mas além do sequenciamento precisávamos fazer algo para combater a Xylella. Para isso foi feito o genoma funcional da bactéria, em 2000, também financiado pela FAPESP. E em 2001 foram descobertas essas duas outras bactérias que interagem com a Xylella.

O que as leva a agir de modo diferente? – A melhor hipótese é questão de sideróforos, metabólitos de microrganismos que captam ferro e o transferem para outras células. Há células que precisam de ferro e sua retirada do ambiente deixa a Xylella com dificuldade para crescer, caso da Curtobacterium. Se, ao contrário, elas liberam ferro, como a Methylobacterium, ela melhora. Mas isso ainda não foi provado. Hoje tem um grupo da Universidade de Mogi das Cruzes, do Wellington Luis Araujo, que estuda essa parte. n

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n Essa hipótese então não ajudou a resolver o problema da praga do amarelinho, provocada pela Xylella? – Não. Acho que o que mais resolveu foi fazer mudas apropriadas, isentas de qualquer ligação com o inseto. O inseto é que leva a Xylella. Ele carrega junto essas bactérias boas e ruins. Na minha opinião, a Xylella já existia no Brasil. Mas aconteceu algo que provocou um desequilíbrio ambiental. Pode ter sido o clima, tratos culturais e, possivelmente, a enorme densidade de laranjais. Isso deve ter favorecido o crescimento da Xylella, que já existia nos Estados Unidos, embora lá ela afete a uva, e não a laranja.

O senhor é daqueles pesquisadores que fazem a autocrítica sobre as expectativas em relação à chamada revolução genômica? – A ferramenta é importante. Mas estamos hoje do mesmo jeito que antes – a vacina eficaz contra a malária e outras doenças de gente e de plantas não se concretizou. Não será assim que resolveremos essas doenças a curto e médio prazo.

uma goma semelhante à goma xantana, que são os mesmos encontrados na Xanthomonas campestris, usada em poço de petróleo e para espessar alimentos como sorvete e geleia. Quando acharam esses genes na Xylella pensei que a goma poderia ser destruída se colocássemos em uma bactéria endofítica um plasmídeo com um gene de enzima que destruísse a goma da Xylella. A Xylella vive nos vasos condutores da seiva, dentro da planta. É como se nós fôssemos desentupir esses vasos colocando lá outra bactéria que destrói a goma. A ideia não é linda? n Parece... — Pois não adiantou nada.

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Mas o senhor tinha essa esperança na época mais efervescente da genômica? – Não, não tinha. Achava tudo um exagero muito grande. A biologia molecular é mais ferramenta de trabalho do que solução. Claro que, se puder, não vou deixar de mapear genoma porque sempre tem informações que ajudam. Quando o genoma da Xylella foi sequenciado, verificamos que ela tinha os genes de n

Por quê? — Porque o principal dessa história é o biofilme, que são células de bactérias aderentes, dentro do vaso. Hoje se sabe que a questão principal é a bactéria produtora de goma aderir ao vaso da planta. Ela gruda e não sai. Há vários anos tentamos essa estratégia e não aconteceu nada. A planta está ótima. Com tudo isso se descobriu que o genoma da Xylella tem realmente esse gene, mas ele não é o principal causador da doença – o principal são os genes que fazem biofilme. Como se vê, há vantagens em se conhecer o genoma da bactéria. Não dá para dizer que a genômica não serviu para nada. n

Como é a outra doença que o senhor estudou, a pinta preta dos citros? — Essa não é muito grave. É mais uma questão visual. Quando compramos laranja, não gostamos se ela tiver manchinhas pretas. Sempre preferimos laranjas bonitas. Na Europa, então, elas são imediatamente desqualificadas se tiverem pinta preta. n

Mas causa doença? — Não. Quer dizer, se elas tiverem em grande quantidade pode causar, mas é uma doença que principalmente impede a exportação. Quando mandávamos a fruta in natura para a Holanda, por exemplo, muitas vezes chegava o navio cheio e eles recusavam dizendo que tinha o fungo Guignardia citricarpa, que causa a pinta preta. Como na Europa não existe esse microrganismo, eles impedem a entrada. Fomos analisar e vimos que não tinha o fungo. Ocorre que o fruto normal com alguma manchinha é uma coisa e o fruto que tem o patógeno é outra. Visualmente é igual. Quando chegava à Europa e faziam o teste, diziam que tinha G. citricarpa e mandavam voltar porque o teste deles era impreciso. n


n Como faziam o teste? — Com microscópio. Criamos um teste molecular mais preciso para fazer a diferenciação. Meu grupo fez o desenvolvimento, a Fundecitrus pagou a patente e o kit foi feito.

A Xylella provavelmente já existia por aqui. Ela deve ter proliferado em razão do desequilíbrio natural provocado por uma quantidade imensa de uma mesma cultura

Esse kit foi vendido? — Quando precisava, a Fundecitrus fazia. O principal idealizador foi o Walter Maccheroni Jr., que hoje está na Canavialis, empresa comprada pela Monsanto. Mas perdeu o interesse porque a Fundecitros percebeu que o objetivo era bloquear a entrada de laranja brasileira de qualquer modo para favorecer a Espanha, a grande produtora da Europa. Já que a pinta preta não era mais um motivo para evitar a entrada na Europa, eles acharam um fungicida que era utilizado no Brasil e proibido lá. O que eles queriam era impedir a entrada de laranja. Conseguiram. n

n O senhor já passou por muitos lugares, mas continua vinculado à Esalq? — Fui requisitado para vários lugares. Em 1974, por exemplo, fui para a Unicamp quando o Zeferino Vaz convidou o professor Brieger para montar um grupo de genética. E, por vez, levou professores da Esalq. Fiquei quatro anos lá, emprestado. Em 1978 voltei para Piracicaba e em 1980 fui para a Universidade de Brasília, também emprestado, montar o núcleo de genética. Um pouco antes, fiz pós-doutorado em Nottingham, na Inglaterra, de 1979 a 1980, e, depois, outro em Manchester, entre 1987 e 1989, sobre biologia molecular, porque eu não estava forte nessa área. Em 1990 voltei e fui para a direção da Esalq, de 1991 e 1994.

Quando se aposentou? — Em 1995. A partir daí fiquei mais livre porque não tinha a preocupação com a administração. Então desenvolvi mais a pesquisa. Foi nesse período que trabalhei com a Xylella. n

Mas continuou orientando, não é? O senhor foi responsável pela formação de 98 mestres e 68 doutores... — A única maneira de fazer um bom trabalho é ter mão de obra especializada. E essa mão de obra é o aluno de pós-graduação. O negócio é sempre pegar os melhores. Formei gente em Piracicaba, Campinas, Brasília, Mogi das Cruzes, Caxias do Sul, onde ia sempre uma vez por mês, por cinco dias, em 1996. Mesmo no Recife, onde nunca fui ligado à universidade, dei aula na pós-graduação, pelo menos uma vez por ano, e sempre vinha n

algum estudante trabalhar comigo em Piracicaba e depois voltava para lá. Esses números não são nenhum assombro, não. É só fazer as contas: estou orientando desde o começo dos anos 1960, são quase 50 anos. A média dá mais ou menos três por ano. Não é tanto assim... O senhor ainda tem alunos? — Tenho 12. A maioria é de Manaus, carente de orientadores em várias áreas. n

Por que foi trabalhar em Manaus? — Em 2002 foi criado o Centro de Biotecnologia da Amazônia, o CBA, dentro do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia, ligado ao governo federal. Mas aconteceram muitos problemas de lá para cá e o lugar ficou meio acéfalo. Até que começaram a chamar pesquisadores, em geral aposentados, porque eles não tinham como contratar. E esses pesquisadores deveriam levar outros, na maioria pessoal em começo de carreira. Convidaram gente da USP, do Instituto Butantan, da Universidade Federal de São Paulo... Fui em 2005. n

A qual ministério o centro é ligado? — São vários ministérios, entre eles o n

do Desenvolvimento da Indústria e do Comércio Exterior, o da Ciência e Tecnologia e o do Meio Ambiente. Mas é a Suframa [Superintendência de Desenvolvimento da Zona Franca de Manaus] quem mais contribui financeiramente. Ainda há um problema de gestão seriíssimo com o governo federal. Quer dizer, nós fazemos a nossa parte no que é possível. São oito coordenadorias. Eu faço só microbiologia. Os alunos são todos de Manaus? — De lá e de outros estados. Mas não tem ninguém contratado. São todos bolsistas. Os jovens vão para lá entusiasmados, mas depois de um ou dois anos arrumam um emprego fixo e vão embora. n

n Como o senhor vê a Amazônia nessa área

de microbiologia? — Estamos pegando fungos e bactérias de muitas plantas e isso é guardado em um banco de germoplasma microbiano. Fazemos uma bioprospecção do que pode ser coletado. O que é bom fixador de nitrogênio? O que é bom para solubilizar fosfato? Tem alguma coisa boa para matar inseto ou para acabar com doença de plantas? Há algum que produz antibióticos ou antitumorais? É isso mais ou menos que nós fazemos. E já descobriram algo promissor? — Há uma substância que parece agir bem contra o bacilo da tuberculose, por exemplo. Colhemos algumas plantas que dizem ser medicinais para várias doenças, inclusive tuberculose, e analisamos. E constatamos que realmente alguns microrganismos presentes na planta conseguem atacar as micobactérias. n

n Há possibilidade de esses estudos resultarem em inovação? — O objetivo do CBA é prestação de serviços e inovação tecnológica. Descobrir substâncias com bom potencial e entregar para uma empresa desenvolver. A pesquisa pura já é bem feita no Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia], que tem muitos anos de tradição em pesquisa. A formação de recursos humanos é feita pela Universidade Federal do Amazonas, que tem pós-graduação.

O senhor mantém seu laboratório na Esalq? — Ainda trabalho lá, mesmo aposentado. Deram meu nome para o laboratório para me homenagear. Mas é chato porque quem não me conhece pensa que já morri. n n

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Onรงa-pintada: risco de ter que se instalar em รกreas pouco ideais

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O futuro da

natureza

e da agricultura

Modelos matemáticos ajudam a antever os efeitos do aquecimento global no país Maria Guimarães

eduardo cesar

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aqui a um século, as mudanças climáticas prometem causar alterações profundas na natureza e na agricultura brasileiras. É possível que a onça-pintada, o maior felino das Américas, não encontre áreas ideais para viver na Amazônia. O Cerrado, por sua vez, pode sumir de vez do oeste do estado de São Paulo. E as perdas no cultivo de soja no Brasil correm o risco de chegar a 40%, ou seja, a um prejuízo anual de R$ 4,3 bilhões. Essas são algumas das projeções feitas por pesquisadores preocupados com as transformações no clima projetadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O que permite aos ecólogos e agrônomos tirar os olhos do presente e mirar o futuro são modelos matemáticos que buscam resumir em poucos parâmetros as condições ambientais essenciais para cada espécie e simular o que pode acontecer com o clima em diferentes cenários de concentração de gases na atmosfera. “As unidades de conservação atuais podem não servir para preservar as es­ pécies”, alerta Paulo De Marco Júnior, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ele lidera, junto com José Alexandre Diniz-Filho, o Laboratório de Ecologia Teórica e Síntese, um dos principais grupos de pesquisa brasileiros no uso de modelos ecológicos. Para o ecólogo da UFG, não adianta escolher uma área de floresta a ser protegida se ela tiver

poucas chances de, no futuro, abrigar a diversidade biológica que se deseja manter. É o caso da onça-pintada (Panthera onca), tema do doutorado de Natália Tôrres sob orientação de Diniz-Filho. A partir de 1.053 registros de onças no banco de dados do Instituto Onça-pintada, Natália definiu, com base em parâmetros de precipitação e temperatura, as condições climáticas ideais para as onças. Embora elas possam viver em ambientes muito variados – desde as matas densas, úmidas e escuras do coração da Amazônia até a aridez da Caatinga –, estudos com armadilhas fotográficas e monitoramento desses grandes felinos revelam que eles preferem florestas mais fechadas e áreas próximas a cursos d’água, com temperaturas entre 20 e 25 graus Celsius (°C) e chuva durante a maior parte do ano. O modelo passou no primeiro teste: foi produzido com base na distribuição atual das onças e em seguida aplicado às condições climáticas do passado. A distribuição encontrada nesse exercício de previsão do passado coincide com os dados históricos – de quando as onças circulavam por praticamente todo o Brasil, em uma área duas vezes maior do que a de hoje, e povoavam o imaginário popular. Os dados de Natália foram publicados no final de 2008 na Cat News e preveem para os próximos 100 anos uma redução grande nas áreas mais adequadas para as onças. Na Amazônia, por exemplo, essas zonas ideais poderão PESQUISA FAPESP 164

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Não adianta proteger uma área de floresta se ela tiver poucas chances no futuro de abrigar a diversidade biológica que se deseja manter

estar restritas ao chamado arco do desmatamento, que inclui o norte de Mato Grosso e o sul do Pará, onde há maior pressão por plantio de soja e cana-de-açúcar. O desafio agora é encontrar por ali áreas capazes de sustentar populações desses grandes predadores e que possam ser preservadas. “É importante ressaltar que o modelo indica o potencial de ocorrência da espécie, não onde ela necessariamente estará”, lembra Natália. Ela acrescentará ao modelo climático informações mais detalhadas, como o tamanho das manchas de vegetação. Com isso, pretende indicar áreas prioritárias para a preservação da onça. No sul da Amazônia, uma área promissora está ao longo do rio Araguaia, que nasce na fronteira entre Mato Grosso e Goiás e se estende para o norte até desaguar no Tocantins, no ponto de encontro entre Maranhão, Pará e Tocantins. “Ali ainda existem áreas bem preservadas”, conta Natália, “e é um corredor importante para a onça-pintada porque conecta a Amazônia e o Cerrado”. E coincide com parte da área que deve se manter ideal para ela no futuro, previsão que deve ser melhorada por análises mais detalhadas. O climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), se surpreende que o modelo não destaque a permanência de onças no oeste da Amazônia. “Todos os modelos preveem que ali haverá florestas densas e úmidas”, afirma. A pesquisadora não esquece que a onça é capaz de viver em ambientes muito diferentes e, portanto, a redução de áreas ideais não significa necessariamente o fim desses felinos. “As mudanças climáticas não devem afetar a distribuição geral”, reflete, “mas, se a qualidade do ambiente tiver efeito sobre a abundância dos animais, pode ser preocupante para a persistência das populações no longo prazo”. Ela agora busca reunir as informações para sugerir áreas de preservação, que deverão necessariamente levar em conta o tama20

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nho das áreas remanescentes – grandes predadores precisam de muito espaço para obter recursos suficientes. Mais sensíveis às condições ambientais e menos móveis, os anfíbios são bons indicadores do que acontece com as florestas. “Eles dependem da temperatura e da umidade do meio, por isso são restritos a seu ambiente”, diz João Giovanelli, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, que usou modelos ecológicos para investigar distribuições futuras de anfíbios da Mata Atlântica – sapos restritos ao alto de montanhas e uma perereca com preferências mais flexíveis.

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onsiderando um cenário para 2100 com o dobro de gás carbônico (CO2) do que havia na era pré-industrial (uma das possibilidades previstas por outros pesquisadores), algumas espécies dos pequenos sapos dourados do gênero Brachycephalus, do tamanho da unha do dedão de uma pessoa, podem desaparecer. Eles só habitam áreas de Mata Atlântica úmida de altitude, onde o aumento de temperatura pode alterar o regime de neblinas e eliminar grande parte dessas florestas, que passariam a crescer dezenas ou centenas de metros montanha acima – desde que encontrem condições propícias. Mesmo que aconteça, esse processo de migração da floresta demora e os minúsculos sapos, que parecem pingos de ouro sobre as folhas que formam um tapete no chão da floresta, podem não ter onde esperar. Assim, os Brachycephalus podem perder mais da metade de sua distribuição e diversas espécies podem ser extintas, de acordo com o capítulo do grupo da Unesp, que inclui o zoólogo Célio Haddad, no livro A biologia e as mudanças climáticas no Brasil, editado por Marcos Buckeridge, da Universidade de São Paulo, e publicado no ano passado pela editora RiMa. Giovanelli mostra também que nem todas as espécies sairão prejudicadas.

A perereca Hypsiboas bischoffi, por exemplo, pode tirar proveito de períodos menos intensos de frio em algumas áreas do Rio Grande do Sul e aumentar sua distribuição em 57%. Ambientes móveis - A modelagem

ecológica pode ajudar a prever o destino de ecossistemas inteiros. É o que faz o grupo de Carlos Nobre. “Definimos o bioma por um conjunto de parâmetros climáticos, que incluem umidade do solo, temperaturas, evapotranspiração das plantas e resistência ao fogo, entre outros”, explica o climatologista. O grupo estima, por exemplo, que no final deste século o Uruguai, hoje muito frio, poderá abrigar Mata Atlântica. Os resultados, publicados em 2007 na Geophysical Research Letters, indicam também que em certas regiões da Amazônia só resistirão plantas adaptadas a condições de savana. “Mas o modelo não permite falar de migração dos biomas, que é um processo ecológico muito complexo e demorado”, avisa. A botânica Marinez Siqueira, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, concentrou seu trabalho de doutorado, orientado por Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, no efeito das mudanças climáticas sobre as árvores do Cerrado, a vegetação típica do Brasil Central. Um resultado desse trabalho foi o artigo publicado em 2003 na Biota Neotropica, em que Marinez modelou a distribuição de 162 espécies de árvores e prevê, em 50 anos, uma redução drástica da área ocupada pela maior parte delas. As condições melhores para o Cerrado devem se deslocar para o sul da região hoje ocupada por esse ecossistema, chegando perto da fronteira entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Marinez agora detalha o que deve acontecer em São Paulo, como apresentou em painel na Conferência Internacional sobre Informática da Biodiversidade, que aconteceu este ano em Londres. Em projeções para 2020


rafael oliveira

Cerrado: clima cada vez menos propício na região central

e 2080, ela mostra que as condições climáticas ideais para o Cerrado deverão se deslocar para o leste do estado, próximo à serra do Mar – hoje domínio da Mata Atlântica. “Mas isso não quer dizer que o Cerrado vá invadir áreas de Mata Atlântica.” O fato é que a distribuição das espécies, em um nível regional e local, não é definida apenas pelo clima. “Só temperatura e precipitação não definem a ocorrência de espécies de Cerrado”, afirma a pesquisadora do Jardim Botânico carioca. As espécies que conseguem se manter numa determinada região são em parte determinadas pela capacidade de retenção de água pelo solo – uma categoria de dados que não foi considerada nos modelos que ela usou. Mudar isso será o próximo passo. Modelos mais completos ajudarão a imaginar o destino de aves do Cerrado. O ecólogo Miguel Ângelo Marini, da Universidade de Brasília (UnB), liderou um estudo que fez projeções de onde estarão 26 espécies de aves em 2030, 2065 e 2099. Segundo os resultados,

publicados em junho no site da Conservation Biology, a maior parte dessas aves deve se deslocar, em média, 200 quilômetros para sudeste – justamente a região mais urbanizada do país. No estado de São Paulo, por exemplo, estima-se que reste menos de 1% do Cerrado original. “Não adianta só o clima estar bom para as aves se a vegetação do Cerrado demorar muito para chegar”, diz Marini, que estima uma diminuição nas áreas ocupadas por todas as espécies estudadas, o que poderá tornar ainda mais raras as aves que já têm distribuição restrita. Analisando as áreas conservadas ele mostrou, em artigo aceito na Biological Conservation, que as aves de Cerrado já estão pouco protegidas hoje – e no futuro estarão ainda menos. “Estamos identificando possíveis locais para novas unidades de conservação em regiões de Minas Gerais onde existe sobreposição entre o clima de hoje e o de daqui a 50 anos.” Planejar a preservação com os olhos no futuro parece ser essencial – talvez as áreas definidas como prioritárias

no estado de São Paulo durante um workshop de especialistas em 2007 não tenham condições climáticas de abrigar Cerrado em 2080, de acordo com as projeções de Marinez. “As áreas de Cerrado que já existem no leste do estado passam a ter importância maior”, afirma. É o caso dos encraves de Cerrado do Vale do Paraíba, na porção norte do estado de São Paulo, entre as serras do Mar e da Mantiqueira, uma região já muito alterada pela atividade humana e onde restam poucos fragmentos de vegetação natural. Mesmo assim, Marinez acredita que valha a pena estabelecer áreas de preservação por ali. Risco calculado - Os mesmos princí-

pios podem ajudar a planejar o plantio das principais lavouras brasileiras. É o que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem feito, em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Inpe, e com apoio da Embaixada do Reino Unido. Segundo uma publicação coordenada pelo engenheiro agrônomo Hilton SilPESQUISA FAPESP 164

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veira Pinto, da Unicamp, e pelo engenheiro agrícola Eduar­do Assad, da Embrapa, e lançada no ano passado, se nada for feito o aquecimento global pode ser responsável já em 2020 por prejuízos de R$ 7,4 bilhões por ano nas safras de grãos. Em 2070 esse valor pode chegar a R$ 14 bilhões anuais. O relatório analisou onde estarão as condições ideais para as nove culturas mais representativas do Brasil, que juntas correspondem a 86% da área plantada no país: algodão, arroz, café, cana-de-açúcar, feijão, girassol, mandioca, milho e soja. O grupo considerou dois cenários. O pessimista estima um aumento de temperatura entre 2°C e 5,4°C até 2100, plausível caso não se faça nada Girassol: área suficiente para escapar de clima inóspito e de pragas para reduzir as emissões. O cenário mais otimista prevê um aumento de temperatura entre 1,4°C e 3,8°C até 2100, caso o seja feito para adaptar essa cultura às dos – área que deve ser reduzida em crescimento da população humana se estabilize, os recursos naturais sejam novas condições, a área adequada para até 18% até 2070 principalmente no preservados e se reduzam as emissões sua produção pode aumentar em cerca agreste e no Cerrado nordestinos. Mais de gases causadores do efeito estufa. “Se de 150% já em 2020. do que as mudanças climáticas, uma o Brasil ficar estável na inação”, proO grupo agora estima quanto o ameaça a essa cultura são as lagartas voca Hilton Pinto, “os prejuízos serão Brasil precisará investir na produção da borboleta Chlosyne lacinia, que code plantas adaptadas às novas condimem as folhas e causam uma queda esses”. As perdas na produção da soja, ções. Segundo o engenheiro agrônomo de até 80% na produtividade. Esse ina cultura que mais deve sofrer, podem ultrapassar os R$ 7 bilhões por ano em da Unicamp, cada novo cultivar custa seto conhecido no Brasil como praga 2070, com perda de áreas cultiváveis R$ 1 milhão por ano. Os dados estão de girassol foi o tema do trabalho da sobretudo na Região Sul e no Cerrado numa nova publicação, centrada em bióloga Juliana Fortes, da Universidade nordestino. A menos de 10°C as plantas mitigação e adaptação, que deve ser Federal de Viçosa, em parceria com De quase não crescem, e a partir de 40°C lançada ainda este mês. Como leva pelo Marco. No trabalho, uma dissertação elas não florescem normalmente e tenmenos dez anos para desenvolver uma de mestrado orientada por Evaldo Videm a perder as vagens. Além disso, dunova variedade, a conta sobe para R$ 10 lela, a pesquisadora adotou um cenário rante a germinação e o período entre a milhões para cada uma delas. que prevê um aumento de 2,6°C nos próximos 100 anos. Juliana verificou floração e a produção dos grãos, a soja s projeções podem ter aplicaque produzir o modelo levando em precisa de muita água. As mudanças já estão acontecendo. ção direta na prática por meio conta a espécie como um todo pode “O café do oeste de São Paulo migrou do Zoneamento de Riscos levar a erros na distribuição prevista, para o nordeste do estado, na região Climáticos, que estima os risporque no caso dessas borboletas cada mogiana”, conta Hilton Pinto. Em concos de plantio de cada cultura para cada subespécie tem exigências ambientais versas com cafeicultores, ele averiguou diferentes – e só C. lacinia saundersii, município do país – uma probabilidade que de 1995 para cá o florescimento de sucesso de pelo menos 80% qualifica a mais comum no Brasil, é conhecida tem sido cada vez mais comprometido o lavrador para obter financiamento. “É como praga de girassol. por ondas de calor em meses normalum sistema que vale R$ 19 bilhões em Se forem reais, as mudanças climente pouco quentes, como setembro, financiamento de agricultura familiar”, máticas podem ser boa notícia para o que causam aborto de flores. Mas os comenta o pesquisador. girassol: deve diminuir a sobreposição danos não serão generalizados. “A caApesar de ter produção pequena no entre a lagarta e as áreas adequadas para Brasil, o girassol é uma das plantas com o plantio das flores amarelas ricas em na gosta de temperaturas quentes e de maior área potencial para plantio, cerca óleo. Mas a dissertação, aprovada este teores mais altos de CO2”, lembra. Sede 4,4 milhões de quilômetros quadraano, também alerta: se a subespécie gundo seus cálculos, mesmo que nada

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C. lacinia lacinia, típica da América Central, for introduzida no Brasil, ela poderá tirar proveito das mudanças do clima e se adaptar a boa parte do centro e do nordeste do país. “Se isso acontecer, em vez de uma diminuição da área no futuro, a possível hibridação da subespécie lacinia com a saundersii pode significar o aumento da área da espécie no Brasil”, imagina Juliana, temendo maiores danos ao girassol. Futuro em construção - O uso de

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arengo afirma que o Inpe trabalha com modelos que conhece em detalhe, mas é difícil obter dados climatológicos de certas regiões em séries de tempo longas, de alta qualidade e com registros diários, necessários para o estudo de extremos climáticos. “Se tivéssemos bases de dados mais finas, poderíamos fazer análises mais detalhadas – na escala de uma bacia no estado de São Paulo, por exemplo”, diz De Marco.

Charles duca/centro universitário de vila velha

modelos está cada vez mais disseminado e pode ser uma ferramenta essencial para fazer frente às mudanças climáticas, mas eles estão ainda sendo aprimorados à medida que o conhecimento cresce. Há dezenas de modelos diferentes e cada um dá peso distinto às diferentes variáveis climáticas. O que muitos pesquisadores fazem é aplicar vários desses modelos e usar os consensos entre eles para produzir os mapas de distribuição futura. “Nosso trabalho é fornecer projeções do clima futuro”, diz o climatologista José Antonio Marengo, coordenador do grupo de mudanças climáticas do Centro de Ciência do Sistema Terrestre, do Inpe. Ali uma equipe interdisciplinar constantemente melhora os modelos, inserindo mais dados e aprimorando a representação matemática de complexos processos que acontecem na natureza. “Os modelos são ferramentas matemáticas, e

todo modelo tem incertezas.” Para ele, é preciso levar essa incerteza em conta para saber onde as projeções são mais seguras – inclusive para buscar maneiras de melhorar o modelo onde ele não funciona. Sua equipe usa dados e informações – nacionais e internacionais – para desenvolver modelos regionais que forneçam mais detalhes sobre o clima do Brasil e da América do Sul, mas ainda não foi possível chegar ao nível de detalhe desejado para o país inteiro. “A confiabilidade das projeções tende a ser relativamente menor no Centro-Oeste e no interior da Região Sudeste, porque alguns processos de zonas continentais ainda não são bem representados nos modelos”, afirma. “E o Pantanal apresenta dificuldades ainda maiores, porque os modelos não lidam bem com as emissões e a representação hidrológica de um pântano daquelas dimensões.”

Cigarra-do-campo: migração para sudeste e menos hábitat adequado

Além disso, é preciso conhecer os diversos modelos a fundo. “Não adianta só apertar o botão e ver a resposta”, conta Giovanelli. “É preciso conhecer o funcionamento do modelo e o banco de dados disponível sobre a espécie para saber se eles serão compatíveis com a pergunta que fazemos.” Outra dificuldade enfrentada pelos modelos é ecológica: os lugares onde uma espécie existe não são necessariamente os únicos onde ela poderia existir. Assim como Marinez Siqueira não pode estar certa de que o Cerrado invadirá áreas de Mata Atlântica, as onças podem conseguir viver bem em áreas menos propícias e os sapos das montanhas talvez não sofram tanto quanto se espera diante das mudanças climáticas – segundo Haddad, já há registros de anfíbios típicos de Cerrado encontrados em plena Mata Atlântica. Para Paulo De Marco, isso não chega a ser um problema. “Fazemos projeções para o futuro usando espécies para as quais temos dados suficientes para representar sua distribuição e sua ecologia”, afirma. “Além disso, os trabalhos atuais mostram que o nicho ecológico atual de uma espécie é um bom previsor do nicho futuro.” Isso em situações normais. O ecólogo de Goiás explica que espécies invasoras, que mudam subitamente de hábitat, rapidamente se adaptam às novas condições. O conhecimento oriundo dessas projeções torna as ferramentas mais confiáveis para fazer frente às mudanças ambientais causadas pelo homem que incluem também os efeitos amplificados do desmatamento, como mostra a matéria nas próximas páginas. n

> Artigos científicos 1. MARINI, M.A. et al. Predicted climatedriven distribution changes and forecasted conservation conflicts in a neotropical savanna. Conservation Biology. 2009. 2. SALAZAR, L.F. et al. Climate change consequences on the biome distribution in tropical South America. Geophysical Research Letters. v. 34. 2007. 3. SIQUEIRA, M.F. de; PETERSON, A.T. Consequences of global climate change for geographic distributions of Cerrado tree species. Biota Neotropica. v. 3, n. 2. 2003. 4. TÔRRES, N.M. et al. Jaguar distribution in Brazil: past, present and future. Cat News. Autumn 2008. PESQUISA FAPESP 164

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capa

Terra seca, rios cheios Circulação das massas de ar prejudica até mesmo áreas distantes das desmatadas Carlos Fioravanti

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ortar florestas não causa apenas transformações locais como a erosão do solo. Pode também provocar mudanças mais abrangentes, num primeiro momento aumentando e depois reduzindo o volume de água dos principais rios de uma região. A redução de chuva que deve se seguir pode afetar também áreas distantes da que foi desmatada, por causa da circulação de massas de ar na baixa atmosfera, de acordo com estudos recentes de pesquisadores de Minas Gerais e dos Estados Unidos sobre a Floresta Amazônica. “Sem a vegetação nativa, que libera parte da água da chuva para a atmosfera na forma de vapor, mais água vai escoar para os rios, mesmo que o volume de chuvas não aumente”, diz Marcos Costa, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Minas Gerais. Costa é um dos autores do artigo publicado em maio deste ano na Journal of Hydrology com esses resultados, obtidos por meio de observações de campo e simulações matemáticas de mudanças no uso da terra e na atmosfera sobre o regime de chuvas. A maior oscilação do nível dos rios pode ter sérias consequências para quem vive perto deles – já que inundações mais severas podem preceder secas mais dramáticas – e para a geração de energia elétrica – já que as hidrelétricas são planejadas com base em oscilações regulares da vazão dos rios. Rios próximos de terras desmatadas já transportam mais água, em resposta a transformações ambientais das últimas décadas. Em um estudo de 2003 na Journal of Hydrology, Costa e dois colegas da Universidade de Wisconsin verificaram que o volume de água aumentou em média 25% nos principais rios da bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins na comparação entre 1949-1968 e 1979-1998. “Esse aumento de vazão é importante porque estamos falando de médias de longo prazo, de 20 anos ou mais, em uma escala temporal em que a variação deveria ser mínima ou nula”, diz Costa. Essa rede de rios irriga cerca de 10% do território nacional – uma área equivalente a três vezes o estado de São Paulo. “Ninguém imaginava que esses efeitos já estivessem ocorrendo.” Outra conclusão é que nas duas últimas décadas a época de vazão mais intensa do Tocantins tem começado um mês antes, implicando potenciais alterações na capacidade de geração de energia nas quatro hidrelétricas do Tocantins – uma delas, a de Tucuruí,

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Rio Araguaia: já com 25% de água a mais

Áreas vulneráveis - A bacia amazôni­

ca pode perder de 25% a 40% das matas nativas até 2050 se o ritmo de desmatamento se mantiver, segundo estudo publicado por Britaldo Soares-Filho, da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2006 na Nature. “As regiões com maior desmatamento devem sofrer alterações mais acentuadas”, afirma Soares-Filho. Na bacia do Tocantins, uma das mais transformadas pela agropecuá­ ria, a perda da vegetação nativa pode passar dos atuais 58% para 80%, em um cenário de controle governamental intenso sobre o desmatamento, ou 90%, com uma governança fraca. Rios como o Araguaia, o Xingu, o Tapajós e o Madeira, que atravessam áreas de desmatamento intenso, também estão sujeitos a transformações drásticas até a metade deste século. Mesmo a bacia do rio Juruá, hoje quase toda coberta por florestas, poderá perder de 21% a 43% da vegetação natural até 2050. Adaptações para amenizar o impacto de enchentes mais intensas po-

dem se tornar inúteis num segundo momento, quando o problema passa a ser a redução do volume de água dos rios, outra consequência da redução da vegetação natural – desta vez sobre a atmosfera. No estudo mais recente, Costa, Soares-Filho e Michael Coe, pesquisador do Woods Hole Research Center, Estados Unidos, descrevem a sequência de fenômenos que produz esse efeito: o desmatamento reduz o volume de vapor-d’água liberado pelas plantas para a atmosfera pela transpiração, já que haverá gramíneas onde antes havia árvores. A água de chuva escorrerá para os rios, sem voltar para as nuvens e alimentar novas chuvas. Como o ar perto da terra nua vai esquentar mais que antes, o fluxo de calor e a circulação de ar devem se alterar. Pode chover menos também em áreas distantes da desmatada, já que o vento vai carregar por mais tempo o ar agora mais seco. O desmatamento em Goiás ou Mato Grosso pode reduzir em 10% a vazão do rio Negro e de outros a norte e noroeste da Amazônia que cortam terras praticamente intocadas. A extensão do desmatamento determina o impacto no regime de chuvas. Coe, Costa e Soares-Filho concluí­ram que a quantidade de chuva sobre uma região deve permanecer estável enquanto as matas nativas cobrem pelo menos metade da área. “O desmatamento previsto para 2050, mesmo com ação governamental, basta para fazer a chuva começar a diminuir”, diz Costa. Essa redução acontece quando de 40% a 65% da área

foi desmatada. “O efeito superficial do desmatamento continua, mas a vazão dos rios não aumenta como antes e, a partir de um momento, começa a cair.” Por alterar o espaço e gerar incertezas sobre possíveis usos do território, o sobe-e-desce dos rios amazônicos, em escalas ainda maiores que as atuais, “pode inviabilizar o planejamento econômico e social da região”, diz o economista Francisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, um dos coordenadores do livro recém-publicado Um projeto para a Amazônia no século 21: desafios e contribuições. Os coordenadores do livro, Bertha Becker, Costa e Wanderley Messias da Costa, valorizam a rede fluvial como uma vantagem competitiva da Amazônia para o transporte de cargas e de moradores, mas a possibilidade de redução do volume de águas pode prejudicar a integração com outros meios de transporte, como o aéreo e o reforço da infraestrutura das cidades, a maioria delas às margens de rios. n > Artigos científicos 1. Coe, M. T. et al. The influence of historical and potential future deforestation on the stream flow of the Amazon River – Land surface processes and atmospheric feedbacks. Journal of Hydrology. n. 369, p.165-174. 2009. 2. Costa, M. H. et al. Effects of large-scale change in land cover on the discharge of the Tocantins River, Southeastern Amazonia. Journal of Hydrology. n. 283, p. 206-216. 2003. pESQUISA FAPESP 1XX

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fabio colombini

é a segunda maior do Brasil. “Essas informações são importantes e têm de ser levadas em conta no planejamento de aproveitamento de recursos hídricos”, diz Benedito Braga, diretor da Agência Nacional das Águas (ANA), que conheceu os resultados desse estudo em um seminário na Suécia em 2007. O plano estratégico da bacia hidrográfica dos rios Araguaia e Tocantins, apresentado este ano pela ANA, prevê a construção de 13 hidrelétricas até 2016.


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Estratégias MUNDO

> Procura-se cientista-chefe

Em nome do rei

A Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia, na Arábia Saudita, foi inaugurada no dia 23 de setembro pelo monarca do país que deu o próprio nome à iniciativa. Trata-se de uma instituição sui generis no Oriente Médio, tanto pelo tamanho quanto por se dedicar exclusivamente a programas de pós-graduação. Os cursos de mestrado e doutorado, que já contam com 817 alunos de 60 nacionalidades, compreendem áreas como matemática, ciências da computação, biociências, geociências e engenharias. As aulas são ministradas em inglês e os professores foram recrutados em vários países, incluindo o reitor Choon Fong Shih, que comandava a Universidade de Cingapura. A universidade recebeu do governo uma dotação de US$ 10 bilhões para pesquisa. O campus de 36 quilômetros quadrados em Thuwal, cidade na costa do mar Vermelho, começou a ser erguido em 2007. Hoje já conta com ferramentas tecnológicas como o supercomputador Shaheen, o 14° mais veloz do mundo e o mais rápido do Oriente Médio. O ministro saudita do Petróleo, Ali Al Naimi, presidente do conselho administrativo da instituição, disse ao jornal Arab News, de Riad, que a instituição vai mudar o perfil econômico e científico do país. “E vai também ampliar a contribuição dos árabes e muçulmanos à civilização”, afirmou.

> Desvio e embaraço Um cientista japonês conhecido por seu trabalho com supramoléculas foi preso sob a acusação de desviar fundos de pesquisa. Tatsuo Wada, retido no dia 8 de setembro, trabalha no Instituto de Ciência 26

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Avançada em Wako, que integra uma rede de laboratórios de pesquisa conhecida como Riken. O caso causa embaraços para a Riken, que recebe um generoso orçamento anual de US$ 1 bilhão e, em 92 anos de existência, jamais enfrentou um escândalo dessa dimensão. “Vamos

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lançar mão de medidas de precaução e redobrar nossa vigilância para que o instituto possa atender às expectativas da população”, desculpou-se o presidente da Riken, Ryoji Noyori, segundo a revista Nature. Tatsuo Wada é conhecido por criar sistemas orgânicos supramoleculares – conjunto de moléculas orgânicas cuja forma, tamanho e orientação podem ser manipulados para transmitir informações. A polícia de Tóquio o acusa de transferir 11 milhões de ienes por meio de ordens de pagamento fictícias. O dinheiro foi parar em contas da Akiba Sangyo, empresa que distribui material científico. O presidente da empresa, Etsuo Kato, também foi preso.

O presidente da Comissão Europeia, o português José Manuel Durão Barroso, prometeu criar o cargo de cientista-chefe da União Europeia e rever a forma como o bloco se vale do aconselhamento de cientistas. O anúncio foi feito no dia 15 de setembro, quando o Parlamento Europeu decidiu dar um novo mandado a Barroso à frente da comissão. Cientistas europeus elogiaram a proposta, mas alertaram que será preciso garantir poder ao ocupante do cargo, o que não é fácil de obter dentro das engrenagens políticas da União Europeia.“A ciência pode ajudar a moldar políticas em diversas áreas e será necessário ter alguém com personalidade forte para garantir uma coordenação adequada”, disse à revista Nature Ernst-Ludwig Winnacker, ex-secretário-geral do Conselho de Pesquisa Europeu. Barroso também anunciou que vai designar um comissário para questões climáticas. Quer mostrar que o compromisso da Europa com as mudanças globais prevalecerá independentemente do nível de ambição dos acordos celebrados em dezembro na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Copenhague, na Dinamarca.


Ilustrações laurabeatriz

> O medo da intervenção

de mobilizar os cientistas do país em torno de pesquisas com aplicações práticas. “Não podemos investir temas que não sejam de interesse do Estado”, disse Viloria. O temor de pesquisadores como Claudio Bifano, presidente da Academia Venezuelana

O Wellcome Trust, fundo não governamental britânico para pesquisas biomédicas, e a gigante farmacêutica Merck anunciaram a criação de um centro de pesquisas na Índia para desenvolver vacinas contra doenças que atingem sobretudo os países pobres. O investimento será de US$ 150 milhões. A iniciativa terá como foco a criação de imunizantes que não necessitem de refrigeração e a busca de vacinas específicas, contra, por exemplo, estreptococos do grupo A, que matam todos os anos cerca de meio milhão de pessoas. Segundo David Heymann, consultor da joint-venture, o trabalho vai ser feito em co­­laboração com governos, companhias e cientistas. Segundo ele, espera-se que cresça a demanda por determinadas vacinas nos países em desenvolvimento e que isso estimule os laboratórios farmacêuticos a produzir novos imunizantes. “Teremos de perceber o que os países querem que desenvolvamos”, disse à Vacinação na Índia: centro de pesquisas agência BBC.

União por novas vacinas

p. virot/oms

A demissão de um cientista venezuelano reanimou os temores de intervenção política do presidente Hugo Chávez no ambiente acadêmico do país. Reinaldo Di Polo, fisiologista com mais de 40 anos de carreira e vencedor do Prêmio Nacional de Ciência da Venezuela em 2000, perdeu seu posto no Instituto Venezuelano de Pesquisa Científica. Já aposentado, continuava trabalhando graças a um programa que busca manter na ativa cientistas experientes.

Ángel Viloria, diretor do instituto, disse à revista Science que a decisão foi administrativa. Mas a saída de Di Polo, cuja produção se vincula à pesquisa básica, é vista como consequência de um pedido de Chávez a seu ministro da Ciência, Jesse Chacón, no sentido

de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais, é que Chávez aproveite a ocasião para eliminar o que chama de “ciência burguesa”.

> Argentina quer inovar O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou uma linha de crédito de US$ 750 milhões para fortalecer o Programa de Inovação Tecnológica do governo argentino. “O governo da Argentina transformou o antigo escritório de Ciência e Tecnologia num ministério, sinalizando a importância que o desenvolvimento tecnológico tem na estratégia do país de se tornar uma sociedade moderna e inovadora”, disse um comunicado do BID, segundo o Wall Street Journal. Um dos motes do programa é a criação de quatro Fundos Setoriais para Inovação Tecnológica, nas áreas de energias sustentáveis, saúde, agroindústria e setores sociais. Outros focos do programa são o apoio a empresas que se dedicam a pesquisa e desenvolvimento e o reforço da infraestrutura de institutos tecnológicos do governo.

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Estratégias MUNDO

O Reino Unido afinou a metodologia do Research Excellence Framework (REF), novo sistema de avaliação da pesquisa que definirá a distribuição de verbas para as universidades a partir de 2015. A proposta inicial consistia em adotar indicadores bibliométricos, como citações de artigos, como critério principal de avaliação, em substituição à trabalhosa revisão por pares (peer review), que marcou as avaliações anteriores (ver Pesquisa FAPESP nº 156). A ideia foi bombardeada por instituições acadêmicas, como a Royal Society, e acabou reformulada. De acordo com o Higher Education Funding Council for England (Hefce), órgão responsável pela avaliação, a revisão por pares permanecerá, mas os avaliadores poderão utilizar critérios bibliométricos complementarmente, desde que os dados disponíveis sejam considerados robustos o bastante. Segundo a revista Nature, uma novidade da avaliação é que ela levará em conta o impacto social e econômico da produção científica. As universidades terão de apresentar estudos de caso com exemplos de benefícios sociais obtidos por suas pesquisas. 28

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O Museu de História Natural de Londres inaugurou as novas instalações do Darwin Centre, uma construção de aço e vidro que abriga os 34 milhões de tipos de plantas e insetos de seu acervo e na qual os visitantes poderão acompanhar o trabalho de 200 cientistas enquanto catalogam espécies raras. O prédio de oito andares tem a forma de um casulo envolvido por um átrio de vidro, que faz contraste com a arquitetura do prédio principal, onde o museu funciona desde o século XIX. “A ideia é permitir que os visitantes explorem o mundo natural de uma maneira nova e excitante”, disse o diretor do museu, Michael Dixon, segundo a agência BBC. “Trata-se do único local na Grã-Bretanha onde os visitantes podem interagir diariamente com especialistas em ciências O Darwin Centre: livre de infestações naturais.” O casulo, com paredes de 30 centímetros de espessura e colunas de aço que lembram fios de seda, foi idealizado para proteger as Canadá, França, Argentina, coleções do ataque de pestes. A ameaça vem de um inseto Chile e Espanha. O êxodo conhecido como besouro-de-carpete. O teto e as paredes do atinge principalmente os casulo ficarão vazios para prevenir infestações escondidas formados em instituições e tanto a temperatura como a umidade serão controladas públicas, que, segundo para garantir a preservação das espécies históricas. Heriberta, têm menos

> O êxodo mexicano Cinco mil pesquisadores do México deixam o país a cada ano em busca de trabalho, de acordo com um estudo divulgado por Heriberta Castaño Lomnitz,

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do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Nacional Autônoma. Segundo o trabalho, atualmente 200 mil pesquisadores mexicanos estão trabalhando em países como Estados Unidos,

chances do que os oriundos de instituições privadas na disputa por vagas em empresas. “Muitos empresários não empregam egressos das universidades públicas com o argumento de que são encrenqueiros e fomentam conflitos”, disse a pesquisadora ao jornal El Siglo de Torreón.

torben eskerod

> A permanência do peer review

Casulo protetor

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Estratégias brasil

> Equipamentos multiusuários A FAPESP lançou uma nova chamada de propostas para o Programa Equipamentos Multiusuários (EMU), com R$ 70 milhões para a aquisição de equipamentos científicos que atendam às necessidades de vários grupos de pesquisa. De acordo com Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, o programa tem um papel fundamental

para a competitividade internacional da ciência produzida no estado de São Paulo. “Em diversas áreas, é preciso ter acesso a certos instrumentos científicos, mas o custo deles cresceu ao longo das últimas décadas. Ao mesmo tempo, consolidou-se a possibilidade, em muitos casos, de os equipamentos serem utilizados por vários grupos em ocasiões diferentes”, disse. As solicitações serão recebidas até o dia 30 de outubro.

laurabeatriz

Elas venceram

O programa L’Oréal-Unesco para Mulheres na Ciência premiou sete pesquisadoras brasileiras no dia 23 de setembro. Três das contempladas pertencem à Universi­ dade de São Paulo (USP) e tiveram apoio da FAPESP. São elas: Sheila Cavalcante Caetano e Lea Tenenholz Grinberg, da Faculdade de Medicina (FMUSP), e Elysandra Figueredo, do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG). Sheila foi contemplada pelo estudo “Programa de transtorno bipolar”. Desenvolvido no ambulatório do Hospital das Clínicas da FMUSP, envolveu a análise de casos de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos com transtorno bipolar. O estudo “Envelhecimento cerebral”, de autoria de Lea Grinberg, é um desdobramento de uma pesquisa de doutorado, para a qual Lea teve bolsa da FAPESP. A proposta de criação de um catálogo das estrelas de grande massa, raras na galáxia, resultou na premiação de Elysandra Figueredo, do IAG-USP, que também foi bolsista de doutorado da FAPESP. As demais vencedoras são Flávia Carla Meotti, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alexandra Zugno, da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Annelise Casellato, da Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Valéria Sandrim, da Santa Casa de Belo Horizonte.

Em palestra realizada no auditório da FAPESP, no dia 10 de setembro, Lee Rybeck Lynd, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, destacou a importância da pesquisa do etanol de segunda geração, extraído da celulose. “Se o nosso objetivo é consolidar um setor de transportes eficiente e sustentável, sem os biocombustíveis essa meta será muito difícil, arriscada e mesmo improvável. Nesse contexto, a biomassa celulósica permanece promissora”, disse Lynd, que há 30 anos estuda rotas para a geração de biocombustíveis a partir da celulose (ver Pesquisa FAPESP nº 163). Convidado para um workshop do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), Lynd enfatizou a importância de um projeto, coordenado por ele,

que vai reunir uma equipe internacional de cientistas para discutir a viabilidade do uso dos biocombustíveis em larga escala, analisando, entre outras, a experiência brasileira de produção de etanol de cana. “O projeto deve ser global a fim de que representantes de todos os países possam conversar abertamente sobre visões distintas”, disse. eduardo cEsar

> O potencial da celulose

Lee Lynd na FAPESP: rotas para o etanol de celulose PESQUISA FAPESP 164

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Estratégias brasil

Os preparativos para o lançamento do Programa de Ciência, Tecnologia e Inovações em Biodiversidade do Mato Grosso do Sul (Biota-MS) fo­ ram feitos nos dias 10 e 11 de setembro, em workshop na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande. O objetivo da iniciativa, financiada pelo governo mato-grossense-do-sul, é caracterizar a biodiversidade do Cerrado e Pantanal e dar suporte científico para a preservação e a utilização sustentável desses biomas. Fábio Edir dos Santos, diretor presidente da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Caverna em Bonito, no Mato Grosso do Sul: preservação e gestão Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect), disse que o pro> Mayana vence e Difusão (Cepid) da grama há tempos era pleiteado pela comunidade científica do prêmio mexicano FAPESP, é a ganhadora do estado e começou a ser elaborado pela fundação em 2007, Prêmio México de Ciência com base na experiência do Biota-Fapesp, que nos últimos 10 e Tecnologia 2008. A A geneticista Mayana Zatz, anos ocupou-se em estudar a biodiversidade paulista. Segundo distinção, que será entregue pró-reitora de Pesquisa da João Onofre Pereira Pinto, coordenador-geral do programa na Cidade do México pelo Universidade de São Paulo Biota-MS e professor do Departamento de Engenharia Elétrica presidente Felipe Calderón (USP) e coordenadora da UFMS, a prioridade será a catalogação de novas espécies da e compreende uma medalha do Centro de Estudos do fauna e da flora e o aprimoramento das ferramentas de gestão e um prêmio de US$ 45 mil, Genoma Humano da USP, da biodiversidade da região. “A expectativa é que o lançamento é oferecida a pesquisadores um dos Centros oficial do programa ocorra em novembro”, afirmou.

Experiência inspiradora

fundtur/ms

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miguel boyayan

de Pesquisa, Inovação

de todos os países da América Latina, além de Espanha, Portugal e Caribe. “Esse prêmio, um reconhecimento de estudos desenvolvidos na USP que têm repercutido em todo o país e no exterior, é um estímulo enorme para continuar na luta diária pela pesquisa científica”, disse Mayana. Segundo informe do Conselho Consultivo de Ciências (CCC) do México, Mayana Zatz: sétima vez que o Brasil vence

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Mayana foi escolhida por “suas contribuições pioneiras na introdução das técnicas de genética molecular, que geraram conhecimento relevante sobre a distrofia muscular”. Desde que o prêmio foi instituído, em 1990, o Brasil foi agraciado sete vezes. Os últimos premiados brasileiros foram Martín Schmal e Constantino Tsallis, ganhadores em 2002 e 2003, respectivamente.

> Talentos ambientais Quinze jovens pesquisadores de diversos países foram premiados no Concurso de Tecnologia Ambiental Green Talents, promovido pelo Ministério Federal de Educação e Pesquisa da Alemanha (BMBF). Três deles são brasileiros: Caetano Dorea, da Universidade de Glasgow, no Reino Unido,


Juliana Aristéia de Lima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Antonio Carlos Caetano de Souza, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Dorea foi premiado por ter estabelecido um centro de pesquisa dedicado ao desenvolvimento de novas tecnologias de saneamento ambiental na Universidade de Glasgow, enquanto Juliana foi selecionada por sua pesquisa em biopolímeros como alternativa aos plásticos

convencionais. Caetano de Souza, por sua vez, realiza pesquisas em seu doutorado sobre a geração de hidrogênio a partir de biogás e sua associação com células a combustível. Na lista dos vencedores há um pesquisador mexicano, Carlos Martínez-Huitle, que desde o ano passado trabalha no Brasil. O concurso busca identificar talentos no campo da tecnologia ambiental. No total, 156 jovens cientistas de 43 países se inscreveram.

> Olhos sobre a África O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Institut de Recherche pour le Développement (IRD) acertaram numa reunião em Brasília os detalhes do projeto Brasil-França em favor do Gabão – O Espaço a Serviço do Manejo Sustentável das Florestas. A parceria prevê a instalação de uma antena de recepção de dados de satélites no Gabão, financiada pela França, que será utilizada para o monitoramento de florestas. A iniciativa faz parte do programa Cbers for Africa, que disponibilizou aos países africanos as imagens dos satélites de sensoriamento remoto Cbers, lançados pelo Brasil

eduardo cEsar

Lafer (à frente), Botín, Suely e Gutiérrez-Solana: rede

e pela China. As imagens geradas pelo satélite Cbers-2B poderão em breve ser recebidas por estações nas Ilhas Canárias, África do Sul e Egito. Com a entrada em operação da estação do Gabão, que receberá dados também de outros satélites, a cobertura do continente ficará completa e permitirá à África monitorar o desmatamento, desastres naturais, ameaças à produção agrícola e riscos à saúde pública. O Inpe pretende cooperar com países interessados em implementar sistemas de monitoramento de alteração de sua cobertura florestal. A intenção é transferir tecnologias para processamento das imagens e manipulação de bancos de dados. laurabeatriz

Reitores de 75 universi– Integração dades de 12 países da Ibero-americana América Latina e da península Ibérica se reuniram na reitoria da Universidade de São Paulo (USP) para formalizar a criação da Rede Ibero-americana de Universidades de Pesquisa (Ridup), cuja intenção é promover a integração das instituições e estimular parcerias. A cerimônia de lançamento da Ridup teve à frente a reitora da USP, Suely Vilela, escolhida para dirigir o comitê diretivo da nova rede, e o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Espanholas, Federico Gutiérrez-Solana. "O objetivo desse acordo de colaboração em pesquisa é aproveitar a sistemática do trabalho em rede para criar uma sinergia científica que potencializará ainda mais a produtividade dessas instituições", disse Gutiérrez-Solana. O presidente da FAPESP, Celso Lafer, e o presidente do Grupo Santander, Emilio Botín, foram homenageados na cerimônia e receberam placas comemorativas em reconhecimento ao trabalho do Banco Santander e da FAPESP no apoio a atividades de educação, ciência e tecnologia e discursaram sobre políticas de fomento à pesquisa. A FAPESP e a rede Universia, apoiada pelo Grupo Santander, tiveram participação ativa na articulação da nova rede. "Sem a ideia de rede não se faz avanço do conhecimento”, disse Celso Lafer. “A Ridup trará um considerável impulso à produção científica desses países. E é com a ciência que enfrentaremos os desafios das nossas sociedades e poderemos ampliar o controle sobre o nosso próprio destino", afirmou.

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política científica e tecnológica

Colaboração

Parcerias

de impacto FAPESP celebra acordos de cooperação com conselhos de pesquisa e universidade do Reino Unido Fabrício Marques

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esquisadores de São Paulo e do Reino Unido terão oportunidade de intensificar e estreitar colaborações científicas graças a dois acordos de cooperação ce­ lebrados em Londres pela FAPESP no mês passado. O primeiro deles foi assinado no dia 15 de setem­ bro com os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK, na sigla em inglês). O segundo, firmado um dia depois, teve como parceiro o King’s College London, que se tornou a primeira universidade britânica parceira da FAPESP. O objetivo é comum em ambos os acordos: estimular e apoiar projetos conjuntos propostos por pesquisadores paulistas e britânicos. “A dimensão da internacionalização é ingrediente importante no aprofundamento da cooperação da FAPESP com instituições britânicas e é uma forma de criar um pro­ cesso de integração e trabalho conjunto de pesquisadores”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. Os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido investem anual­ mente cerca de £ 2,8 bilhões (R$ 8 bilhões). Reúnem sete conselhos, cada qual responsável pelo apoio à pesquisa em um determinado campo do conhecimento. Na cerimônia de assinatura do acordo, destacou-se o fato de ser a primeira vez que os sete conselhos se articularam para, conjuntamente, fir­ mar uma parceria com uma agência de outro país. “Os RCUK são dedicados a promover a colaboração com os melhores dos melhores, e esse acordo demonstra nosso comprometimento em ampliar as oportunidades para pesquisadores”, explica Ian Diamond, presidente dos RCUK. Pesquisadores britânicos, em associação com colegas vin­ culados a instituições do estado de São Paulo, deverão apresen­ tar propostas conjuntas a uma ou mais entidades pertencentes aos RCUK, que informarão a FAPESP sobre a submissão do projeto. A análise será feita simultaneamente no Brasil e na Grã-Bretanha. As normas e o cronograma para apresentação de propostas serão divulgados em breve. A FAPESP e os RCUK


destinarão recursos a cada projeto na proporção em que os pesquisadores de cada país participarem dele. “A inten­ ção do acordo é apoiar pesquisas que busquem descobertas científicas de grande impacto mundial, em todas as áreas do conhecimento”, diz o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. O reconhecimento da importância da produção científica brasileira – e a paulista, em particular – foi determi­ nante para viabilizar o acordo entre a FAPESP e os RCUK. “Na cerimônia em que o acordo foi assinado houve apresentações de vários cientistas que, em comum, destacavam a qualidade da pesquisa que se faz em São Paulo, em termos de impacto e dos temas estuda­ dos”, afirmou Brito Cruz, da FAPESP. “Esse reconhecimento revela uma boa oportunidade a ser explorada pelos pesquisadores brasileiros.” É sabido que a ciência do país vem conquistando mais visibilidade glo­ bal: o número de revistas científicas nacionais indexadas na base de da­ dos internacional Web of Science-ISI (WoS) aumentou 205% entre 2002 e 2008. A razão do aumento, de acordo

com a Thomson Reuters, responsável pela WoS, tem sido o crescimento do interesse mundial pela pesquisa cientí­ fica brasileira, cuja qualidade se tornou mais reconhecida. O apoio das agên­ cias de fomento é um dos principais combustíveis para o fôlego da pesqui­ sa produzida no país. A FAPESP, por exemplo, investiu em 2008 R$ 637,9 milhões no apoio à pesquisa científica e tecnológica. “Pesquisadores do estado de São Paulo são hoje responsáveis por 50% dos artigos científicos publicados em revistas estrangeiras”, afirma Bri­ to Cruz. Dados de 2007 da Thomson Reuters mostram que essa contribui­ ção paulista é especialmente destaca­ da em medicina clínica (62% do total nacional), materiais (58%), biologia e bioquímica (56%) e genética e biologia molecular (55%). Contribuição - Numa apresentação

feita na assinatura do acordo com os RCUK, Jonatham Adams, da Evidence, empresa de análise de dados de pesqui­ sa ligada à Thomson Reuters, mostrou dados segundo os quais o impacto da pesquisa feita em São Paulo é significa­ tivamente maior do que a média brasi­

A relevância da pesquisa paulista

nº de citações por artigo em relação à média mundial

O impacto da produção científica brasileira vem crescendo, especialmente em São Paulo

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leira (ver gráfico). “Em algumas áreas de pesquisa, é evidente que São Paulo não está apenas acima da média do impac­ to para o país, mas também acima da média mundial”, afirmou, referindo-se à contribuição dos pesquisadores do estado em áreas como medicina, físi­ ca nuclear, materiais e conservação da biodiversidade. A conclusão de Adams, com base nas análises feitas pela Evi­ dence, foi que São Paulo se constitui em um excelente parceiro para a cola­ boração internacional, com uma base de pesquisa forte e crescente. No caso do acordo com o King’s College London, a parceria também apoiará a realização de projetos de pes­ quisa conjuntos – que podem incluir o intercâmbio de pesquisadores e de alunos de pós-graduação – em todas as áreas do conhecimento, selecionados por meio das chamadas de propostas, que serão realizadas a cada dois anos. Áreas prioritárias podem ser estabe­ lecidas dentro das chamadas por um comitê gestor encarregado da admi­ nistração do programa. O King’s College é uma das 25 me­ lhores instituições de ensino superior no mundo, segundo o levantamento Times Higher Education 2008. Funda­ da pelo rei George IV e pelo duque de Wellington, então primeiro-ministro, em 1829, é a quarta mais antiga uni­ versidade na Inglaterra. “Ficamos felizes que a FAPESP tenha nos escolhido co­ mo parceiro para projetos de pesquisa internacionais”, disse Keith Hoggart, vice-reitor para Artes e Ciências da instituição britânica. “O Brasil é um país de grande importância para nos­ sa instituição, e tenho certeza de que a assinatura deste acordo marca o início de uma colaboração importante que es­ timulará relações de pesquisa e levará ao desenvolvimento de pesquisas de alta qualidade por todas as áreas do conhe­ cimento.” O acordo se soma a diversas relações entre o King’s College London e instituições de ensino e de pesquisa em São Paulo, como a Universidade de São Paulo. A universidade britânica se­ dia o Centro para o Estudo da Cultura n e Sociedade Brasileiras.

Fonte: Evidence

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Educação

Trabalho integrado

Projeto mostra como a escola pública pode se transformar num espaço de reflexão

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escola municipal de ensino fundamental Vicente Ráo, localizada em Campinas (SP), foi campo de trabalho de um projeto de pesquisa que buscou transformar a organização burocrática do ensino público, combatendo a fragmentação e a falta de diálogo que, com frequência, marcam as relações entre professores, gestores e alunos. Docentes e dirigentes da instituição receberam bolsas para participar do projeto “Trabalho integrado na escola pública: participação político-pedagógica”, coordenado por Pedro Ganzeli, professor da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e financiado pelo Programa de Melhoria do Ensino Público da FAPESP. O objetivo principal do projeto foi construir novas formas de conceber a prática da organização escolar, transformando as relações de trabalho no

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âmbito interno da escola e entre ela e os órgãos centrais da educação. A partir da crítica sobre a fragmentação verificada na realidade escolar e a pouca participação dos profissionais na definição das atividades cotidianas, ações foram elaboradas, executadas e avaliadas pelos próprios sujeitos que vivenciam o cotidiano educacional. Um problema associado à relação da escola com os órgãos centrais de ensino era a falta de coordenação entre as esferas administrativa e pedagógica. “A supervisora educacional conversava com a diretora escolar enquanto a coordenadora pedagógica mantinha contato com a orientadora pedagógica de forma isolada. E esse grupo de especialistas nunca se reunia para promover uma ação conjunta”, diz Ganzeli. Ao longo dos três anos de duração do projeto, um grupo que chegou a 19 bolsistas participou de 114 reuniões gerais, voltadas para a reflexão das ações pedagógicas


preenderam a vantagem de trabalhar de forma integrada e o plano de ensino foi percebido como instrumento didático que favorece a interdisciplinaridade. “No início diziam que mudar era uma utopia”, diz Ganzeli. “Não acreditavam que poderiam fazer pesquisa científica. Com o desenvolvimento das atividades de pesquisa, eles começavam a perceber de forma mais clara o que estava ocorrendo em seu próprio trabalho. E isso foi criando a ideia de pesquisa coletiva. Mudaram o fazer pedagógico tendo como referência maior a reflexão sobre a própria prática, tiveram um aprendizado organizacional e passaram a acreditar na transformação da escola pública.”

ilustração braz

Equipe completa - Participar das reu-

e a elaboração de ações concretas. A metodologia utilizada foi a de “pesquisa-ação”, na qual se permite que todos os pesquisadores participantes intervenham na condução do processo de pesquisa, o que favorece a avaliação dos impactos gerados na realidade escolar. “A intenção era fazer com que os sujeitos refletissem sobre o seu trabalho e, dessa reflexão, surgissem propostas de ação, que mais tarde seriam avaliadas e resultariam em novas propostas e novas ações”, explica. Uma das ações do projeto foi a elaboração de uma estrutura comum de plano de ensino para todos os professores, favorecendo a definição clara e objetiva dos conteúdos e do desenvolvimento das atividades didáticas previstas anualmente de todas as disciplinas. A princípio houve resistência, pois o plano foi interpretado como uma forma de controle. Mas, com os debates nas reuniões de pesquisa, os bolsistas com-

niões gerais e reuniões específicas dos subprojetos, fazer registros em diários de campo e produzir relatórios mensais foram os principais procedimentos de trabalho adotados na pesquisa. A escola Vicente Ráo foi escolhida porque tinha a equipe de gestores completa – uma diretora, duas vices e uma orientadora pedagógica –, condição importante para analisar a relação entre o comando da escola e os professores. “O projeto de pesquisa foi elaborado de forma participativa, quando gestores e professores levantaram as principais necessidades da unidade escolar, sendo essas transformadas em subprojetos, coordenados por grupos de pesquisadores da própria escola”, diz Ganzeli. “É uma inovação colocar professores e gestores no desenvolvimento de uma pesquisa comum”, afirma. Com todos os professores participando coletivamente do planejamento escolar, as atividades de educação física, por exemplo, ganharam cores interdisciplinares. Os Jogos Interclasses, que possuíam um caráter excludente, uma vez que só os melhores participavam, foram transformados em Jogos da Amizade e garantiu-se a participação de todos os alunos. Promoveu-se entre os professores a integração interdisciplinar. “Muitos foram os exemplos de integração. A professora de ciências utilizou o evento dos jogos para medir os batimentos cardíacos dos alunos, a professora de matemática produziu quadros estatísticos de desempenho das equipes com seus alunos e a professora

de português coordenou a montagem de uma revista pelos alunos dos jogos com entrevistas e textos históricos dos Jogos Olímpicos”, diz Ganzeli. O combate ao preconceito foi um dos motes de um subprojeto voltado para a inclusão social. “Um aluno portador de deficiência visual candidatou-se a representante do Conselho de Escola e foi tratado com respeito por todos durante a campanha. Esse foi um dos frutos do trabalho integrado entre os professores de educação especial, funcionários e demais professores”, afirma o pesquisador. Atribuiu-se ao projeto um incentivo para que gestores e professores buscassem qualificação. A diretora, uma vicediretora e três professores incentivados pelo desenvolvimento das atividades de pesquisa resolveram fazer cursos de especialização. A experiência, observa Ganzeli, deve ser compreendida como uma construção dos próprios sujeitos da escola. “Não estamos preocupados em reproduzir um modelo de gestão, mas incentivar a investigação sistematizada da prática político-pedagógica na escola pública. Observamos que os participantes da pesquisa, gestores e professores, passaram a levantar esse debate nas demais escolas em que trabalham”, afirma o professor, que planeja sistematizar num livro o conhecimento acumulado no projeto. O Programa de Melhoria do Ensino Público da FAPESP já apoiou 121 projetos desde sua criação, em 1996. Uma das exigências do programa é o envolvimento dos professores da rede pública como coparticipantes, por meio da distribuição de bolsas. Sua meta principal é incentivar soluções de problemas ou de desafios específicos das escolas, além de aproximar estudantes e professores do conhecimento gerado por outros programas da Fundação, como já aconteceu, por exemplo, com o Biota-FAPESP, que estuda a biodiversidade paulista. “O programa vem evoluindo, incorporando benefícios complementares, como a reserva técnica, que dá mais flexibilidade aos pesquisadores”, diz Marilia Sposito, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e coordenadora do programa. n

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gestão

Mais Marcos Pivet ta

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saúde

e fora, a Unidade Básica de Saúde (UBS) Jardim Boa Vista, às margens da rodovia Raposo Tavares, é um típico posto de atendimento médico da periferia de uma megalópole como São Paulo. De tom esverdeado e linhas retas, a ampla construção exibe aquele característico design arquitetônico austero e pouco convidativo dos estabelecimentos públicos de saúde. Internamente, o prédio é limpo e não está malconservado, embora uma demão de tinta aqui e ali e pequenas reformas fossem bem-vindas. Afora uma televisão de LCD no hall de entrada, não exibe luxos. Aparenta ser um local simples e decente, frequentado por moradores dessa região carente da cidade, em sua maioria mulheres, crianças e idosos em busca de uma consulta médica, uma vacina ou um remédio. Nesse ambiente, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) está implantando uma série de práticas e rotinas que visam tornar o atendimento proporcionado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) mais humano e eficaz. Desde o final de

2008, a UBS Jardim Boa Vista é uma das unidades de saúde cuja administração a prefeitura repassou à faculdade como parte de um grande projeto que junta ensino, pesquisa e sobretudo melhoria do atendimento médico. Tudo começou há exatamente um ano, no dia 1° de outubro de 2008, quando a FMUSP firmou um contrato de gestão com a Secretaria Municipal da Saúde da cidade de São Paulo e assumiu a tarefa de reorganizar o atendimento prestado pelo SUS numa parte da Zona Oeste da capital paulista, a microrregião que engloba os bairros do Butantã e do Jaguaré. A meta do Projeto Região Oeste, nome formal da iniciativa, é transformar essa área da cidade num modelo de assistência médica universal e hierarquizada, promovendo a integração do trabalho descentralizado dos postos de saúde, ambulatórios e prontos-socorros do município com o atendimento de maior complexidade a cargo de hospitais públicos mais estruturados. “A implantação do SUS em grandes cidades, como São Paulo e Rio de Ja-


Projeto da Faculdade de Medicina da USP incentiva a formação do médico de família e procura formas de aprimorar o SUS | Marcos Pivet ta

fotos eduardo cesar

pública neiro, tem sido muito difícil e nossa iniciativa pode ser vista como um laboratório nesse sentido”, diz Alexandra Brentani, diretora executiva do projeto, administradora da FMUSP especializada na gestão de recursos de saúde. Em paralelo ao trabalho gerencial, a iniciativa tem também como objetivo transformar os serviços de saúde dessa área – em que vivem cerca de 420 mil pessoas, quase 4% da população total da maior metrópole brasileira – numa valiosa plataforma para a formação de médicos e palco de estudos científicos da faculdade. Medidas nessa direção estão em curso: três disciplinas da graduação e a residência para se tornar médico de família, especialidade ainda sem a devida valorização, são ministradas pela FMUSP em postos de saúde do Butantã e do Jaguaré, e os habitantes da região se tornaram ainda alvo de uma série de pesquisas médicas recém-iniciadas na universidade. A Zona Oeste foi escolhida como cenário da implantação do projeto por um motivo geográfico: a sede da FMUSP e o complexo do Hospital das Clínicas (HC), administrado pela faculdade, estão dentro dessa área, mais precisamente no entorno da avenida Dr. Arnaldo, em Pinheiros. Isso sem falar na Cidade Universitária, fincada no Butantã, onde ficam o campus da USP, o Hospital Universitário (HU) e o Centro de Saúde Escola Samuel Pessoa. Com duração inicial de três anos, mas podendo ser renovado por perío-

do indeterminado, o projeto prevê que progressivamente toda a rede de atendimento médico da prefeitura instalada nessa parte da cidade – 14 UBS, cinco postos de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), um Ambulatório de Especialidades, dois prontos-socorros e um hospital – passe a ser gerida diretamente pela FMUSP por meio da Fundação Faculdade de Medicina. Como o HU e o HC – este último o hospital público de maior estrutura da região – já estão sob o comando da USP, a parceria com a prefeitura se encarregou de transferir a gestão de praticamente toda a saúde pública da Zona Oeste para a Faculdade de Medicina. Neste ano a prefeitura repassou R$ 47 milhões para essa fase do projeto, cujos gestores têm autonomia para decidir como gastar a verba. “Todas as nossas contas indicam que é possível ter um sistema de saúde melhor com a verba de que dispomos”, comenta Alexandra. “Com o projeto, estamos implantando a teoria na prática.” Distorções e SUS - Grosso modo, o

Projeto Região Oeste, uma iniciativa institucional da FMUSP, nasce de duas grandes distorções, que estão correlacionadas e começaram a ficar mais evidentes nos últimos 20 anos. A primeira diz respeito às dificuldades para implantar um modelo ousado e universalista como

o SUS em todo o território nacional. Não se trata de uma tarefa fácil, ainda mais em paí­ses do tamanho e da complexidade do Brasil. Os Estados Unidos, que são a nação mais rica do planeta, não têm um sistema semelhante ao SUS, uma ideia que o presidente Barack Obama só agora está tentando, com grandes dificuldades, colocar na cabeça de seus compatriotas. A segunda passa pela discussão de que tipo de médico as faculdades deveriam se esforçar em formar em seus cursos. Refletindo uma política de décadas, as escolas médicas hoje se esmeram em produzir especialistas nas mais diversas áreas, na maioria das vezes treinados para trabalhar em hospitais de grande complexidade e excessivamente dependentes de procedimentos e exames caros. Quase não há estímulo para forjar mais profissionais, como os médicos de família, destinados a atuar nos postos de saúde e ambulatórios, que, de acordo com o modelo do SUS, deveriam ser a porta de entrada do sistema. “O perfil das doenças na sociedade brasileira mudou e novas práticas são necessárias para responder a novas demandas, mas a formação do

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Iniciativa da faculdade assume a gestão do atendimento prestado pelo SUS na Zona Oeste da cidade de São Paulo

médico continua centrada no atendimento hospitalar, de custos elevados e ineficaz em certas situações”, comenta a pediatra Sandra Grisi, presidente do Conselho Diretor do Projeto Região Oeste. “Nesse contexto, é necessário que façamos mais pesquisas com base populacional para identificarmos os reais problemas de saúde.” Instituído pela Constituição brasileira de 1988, o SUS representa, ao menos no papel, um grande avanço em relação ao sistema anterior. Ele tornou a saúde um dever do Estado e um direito de todos. É uma meta ambiciosa. Antes de seu advento, o poder público não tinha a obrigação de fornecer assistência médica preventiva e curativa a todos os cidadãos. Apenas quem era empregado com carteira assinada e contribuía para a Previdência Social tinha direito de ser atendido pelo antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que dispunha de rede própria e de hospitais privados conveniados. A única opção para os indiví­ duos de menor poder aquisitivo, que não eram contribuintes do Inamps e também não tinham como pagar por um plano de saúde particular, era recorrer ao atendimento médico fornecido por entidades filantrópicas. A criação do SUS previu uma nova divisão de atribuições para a União, os estados e os municípios no campo da saúde. O chamado atendimento primário, dado por postos de saúde e ambulatórios, e também parte do secundário (prontos-socorros e hospitais de menor com38

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plexidade) são da responsabilidade dos municípios. Aos estados coube manter hospitais de grande complexidade, de referência (como o HC em São Paulo). O papel da União é repassar verba para todo o sistema e gerenciá-lo. Esquematicamente, esse é o desenho do SUS, no qual um paciente só deveria mudar de nível de atendimento depois de ter esgotadas as opções de tratamento do estágio anterior. A realidade, infelizmente, é distinta. Os três níveis do SUS não estão devidamente integrados, a população tende a desconfiar da eficiência dos postos de saúde e, ainda que tenha uma mera dor de cabeça, prefere pular etapas e se dirigir diretamente aos centros médicos de grande complexidade, como o HC, que se encontram sobrecarregados. Nessa lógica distorcida, exames complexos e caros, como uma tomografia computadorizada, podem ser, às vezes, solicitados para descobrir problemas de fácil diagnóstico, que poderiam ser tratados num posto de saúde. “Na cidade de São Paulo ainda houve um agravante extra a essa situação”, explica Sandra Grisi. “A implantação do SUS foi atrasada em oito anos por gestões que passaram pela prefeitura.” Do diagnóstico à ação - Depois de ter

feito um diagnóstico da situação de toda a estrutura médica municipal na Zona Oeste da cidade, o projeto começou a intervir concretamente no sistema para redesenhá-lo em função do tamanho e das características da população local.

Por ora, ainda no início dos trabalhos, a FMUSP assumiu o comando de três UBS (Jardim Boa Vista, Vila Dalva e São Jorge), que são encarregadas de prestar serviços médicos simples, típicos dos postos de saúde, a uma população de 48 mil pessoas, em grande parte com poucos recursos financeiros. Até o final do ano, outras duas UBS (Jardim D’Abril e Paulo VI), duas AMAs (Vila Nova Jaguaré e Jardim São Jorge) e dois PS municipais (Lapa e Butantã) serão repassados à faculdade. O calendário de incorporação de estruturas médicas da prefeitura pelo projeto vai até outubro de 2011. “Nossa meta é cobrir todas as necessidades básicas das pessoas nos postos de saúde e criar um sistema integrado”, afirma o infectologista Marcos Boulos, diretor da FMUSP. “Apenas 3% dos doentes deveriam ser encaminhados para um hospital terciário, como o HC.” Outras unidades acadêmicas da USP, como a Odontologia, a Farmácia, a Saúde Pública e a Psicologia, também participam do Projeto Região Oeste. “A tendência é ele virar uma iniciativa de toda a universidade, e não apenas da FMUSP”, comenta Boulos. Quando passa a admi­nistrar dire­ta­ mente uma UBS, a equipe do pro­ jeto ganha autonomia quase total sobre o posto de saúde. Além de poder esco­lher a chefia


divulgação/projeto zona oeste

Mapa do Google mostra área de atuação da UBS Jardim Boa Vista

e os funcioná­­rios, a FMUSP também pode pagar salários superiores à média da prefeitura e dar a linha mestra de atuação da unidade. Dessa forma, tenta atrair profissionais mais bem qualificados para a iniciativa. Até o momento foram contratados pela faculdade cerca de 300 funcionários para os postos de saúde. Uma das grandes prioridades da reformulação é montar equipes de saúde da família sintonizadas com as necessidades da população. Dessa forma são criados vínculos de confiança entre os profissionais dos postos de saúde e os moradores da região, que passariam a procurar a UBS para tratar de seus problemas médicos. “Para definirmos a estrutura de recursos humanos e de equipamentos de uma UBS, precisamos conhecer o perfil dos moradores que usam o sistema”, afirma Alexandra. Nos três postos de saúde sob o comando do projeto foram constituídas 19 equipes de saúde da família. Cada equipe é formada por um médico, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e seis agentes comunitários (recrutados entre os habitantes da região). “Nosso atendimento deu um salto de qualidade com a chegada da USP”, diz a enfermeira Ana Emilia Bagueira Leal, gerente da UBS Jardim Boa Vista, que conta com cerca de 90 funcionários e atende diariamente 300 pessoas. “Estamos integrando o trabalho de nossas seis equipes de saúde da família com ações de vigilância sanitária e os quatro dentistas que prestam atendimento odontológico aqui.”

Das três UBS sob o comando da FMUSP, a do Jardim Boa Vista é onde os trabalhos estão mais avançados. Todas as casas da área coberta pelo posto, onde moram cerca de 17 mil pessoas, foram visitadas por equipes da UBS. O perfil dos moradores foi jogado num banco de dados e associado a sua residência, cuja localização precisa pode ser conferida em mapas geográficos disponibilizados pelo Google. Um dos grandes desafios do projeto é criar um prontuário on-line das pessoas atendidas nas UBS da Zona Oeste que possa ser acessado por qualquer médico do sistema SUS que atue na cidade. A Secretaria da Saúde possui um sistema eletrônico que talvez possa ser adaptado para esse uso. Outra alternativa é adotar um sistema que está em testes na Universidade Duke, nos Estados Unidos. O atendimento desse e dos demais postos de saúde administrados pelo projeto também é reforçado pela presença frequente de alunos e residentes da faculdade. Isso faz com que alguns serviços diferenciados passem a ser oferecidos nessas unidades, como atividades de terapia ocupacional para deficientes físicos e, em breve, auxílio psicológico. Hoje os estudantes de graduação da FMUSP têm de fazer em postos da prefeitura três disciplinas do curso, Atenção Primária à Saúde I, II e III, e a faculdade oferece 16 vagas para residentes na área de Medicina da Família e da Comunidade. “Muitos alunos ainda têm preconceito e alguns nem sabem que existe esse tipo

de especialização”, diz Flavia Cardoso, estudante do terceiro ano de medicina. “Não sei se vou seguir nessa área, mas sempre achei que a saúde tinha de ser um bem coletivo.” No campo da pesquisa científica, o projeto ainda não se desenvolveu por um tempo suficiente que lhe permita apresentar resultados. Mas já foram iniciados mais de 20 estudos científicos focados na área geográfica abrangida pelas três UBS que a FMUSP passou a gerir um ano atrás. As pesquisas são tocadas por professores e alunos de pós-graduação e graduação de vários departamentos da faculdade e de outras unidades da USP, como a Faculdade de Saúde Pública, o Instituto de Psicologia e a Escola de Enfermagem. O Centro Universitário São Camilo e a Universidade Paulista (Unip) são duas instituições privadas de ensino que também fazem pesquisa no âmbito do projeto. Os estudos contam com financiamento de várias agências de fomento, como a FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e o Ministério da Saúde. Em geral, os temas de pesquisa giram em torno de questões ligadas ao programa de saúde da família. As condições de vida das mulheres, em especial das gestantes, das crianças e também de idosos são tópicos frequentemente esmiuçados pelos trabalhos. “Daqui a um ou dois anos, poderemos desenvolver estudos epidemiológicos com essa população da cidade de São Paulo”, prevê n Alexandra Brentani. PESQUISA FAPESP 164

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> epidemiologia

A origem das doenças

Seis estados integram-se em um grande levantamento para descobrir como doenças cardíacas e diabetes evoluem

Carlos Fioravanti

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odo dia, desde agosto do ano passado, uma equipe de quase 100 especialistas atende de 15 a 20 pessoas saudáveis que comparecem voluntariamente ao Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP) e passam por uma série de exames ao longo de quatro horas. O ritmo de trabalho deve continuar até março do próximo ano, quando essa equipe espera completar os 5 mil exames da cota paulista de um dos maiores levantamentos epidemiológicos já feitos no Brasil, com foco em doenças cardiovasculares e diabetes. Chamado Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa), o levantamento mobiliza outras cinco equipes, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, na Bahia, no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, com cotas menores que a de São Paulo, mas igualmente avançadas nos exames das 1 mil ou 2 mil pessoas que têm de fazer. A equipe do Elsa pretende avaliar e acompanhar durante 20 anos o estado de saúde de um total de 15 mil homens e mulheres com 35 a 74 anos de idade. Os participantes passam por uma entrevista sobre condições gerais de saúde e depois por 35 exames clínicos e laboratoriais. De acordo com o planejado, no ano seguinte serão procurados para que digam se foram internados ou passaram por alguma cirurgia e a cada três anos farão os mesmos exames de sangue, urina e funções cardíacas. “Não queremos saber apenas quem tem doenças cardíacas num momento específico, mas como e por que essas doenças surgem, qual o peso efetivo dos fatores de risco e como a alimentação interfere para agravar ou proteger”, diz Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Elsa em São Paulo. O Elsa é chamado de levantamento longitudinal, um tipo de estudo trabalhoso, porque implica o acompanhamento de um grupo grande de pessoas por muitos anos. A maioria dos levantamentos epidemiológicos feitos no país são transversais:

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Lígia Fedeli, chefe de uma equipe de exames: amostras de sangue e de urina preservadas em nitrogênio líquido


eduardo cesar

consistem de um retrato, por vezes amplo, de um problema de saúde em um momento único, sem comparação com outros momentos. Por essa razão é que os coor­denadores do projeto concordaram, já nas primeiras reu­niões, que as pessoas a serem examinadas e acompanhadas seriam os próprios funcionários das instituições responsáveis pela realização da pesquisa. “Se por um lado sacrificamos a representatividade do estudo, por outro asseguramos a continuidade, já que funcionários públicos são estáveis”, diz Lotufo. Isabela Benseñor, professora da Faculdade de

Medicina da USP e vice-coordenadora do Elsa em São Paulo, acrescenta: “Daqui a 20 anos alguém vai ligar para a casa dos participantes e eles provavelmente estarão na mesma casa. Se não estiverem, não será difícil descobrir onde estão morando. Em alguns estudos epidemiológicos às vezes as próprias casas, e não só os moradores, desaparecem”. Até 21 de setembro, trabalhando do mesmo modo para que os resultados possam depois ser comparados, 300 pesquisadores e assistentes haviam atendido 6.680 pessoas, fazendo exames e coletando informações sobre o estado

geral de saúde. Nos próximos anos, à medida que os resultados dos exames forem reunidos e analisados, esse trabalho poderá mostrar o que favorece ou detém o surgimento de muitas doenças crônicas, principalmente as cardiovasculares e diabetes, e sugerir formas de prevenção mais adequadas ao país. Outro objetivo é verificar se os valores numéricos adotados para definir se uma pessoa está com pressão arterial realmente alta ou sob o risco de infarto estão mesmo adequados à população brasileira. É possível que não estejam. PESQUISA FAPESP 164

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“Os protocolos de prevenção de doen­ças se baseiam em estudos realizados em países com hábitos alimentares e relações sociais diferentes”, diz Maria del Carmen Bisi Molina, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e vice-coordenadora do estudo no estado. “Reproduzimos valores basea­dos em populações diferentes da nossa, pois não temos indicadores que possam refletir a nossa própria situação”, reforça Sandhi Maria Barreto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora estadual do Elsa. O peso da dieta - Há razões para suspeitar também que as doenças cardiovasculares evoluem no Brasil de modo diferente do que se dá em outros países. Uma equipe da Ufes comparou as taxas de mortalidade por infarto no Brasil e em outros países e concluiu que os brasileiros morrem de quatro a cinco anos antes dos moradores dos Estados Unidos ou da Europa. “Ou os fatores de risco como o tabagismo e a hipertensão começam mais cedo ou, quando aparecem, se manifestam de maneira mais agressiva”, cogita José Geraldo Mill, professor da Ufes e coordenador do estudo no Espírito Santo. O peso dos chamados modificadores de efeitos, como a dieta e as relações sociais, capazes de ampliar ou amenizar os fatores de risco de infarto ou de acidente vascular 42

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cerebral, ainda é pouco conhecido no ra passou de 16% para 41% entre os Brasil. “Será que o colesterol elevado homens e de 29% para 40% entre as tem o mesmo efeito que em outros paí­ mulheres nos últimos 30 anos, segunses? Só um projeto de longa duração do uma síntese do Elsa publicada na pode responder”, diz Mill. Revista de Saúde Pública. As doenças Este mês uma equipe de entrevistacardiovasculares constituem a princidores vai a campo para perguntar a 300 pal causa de morte, com 32% do total participantes do estudo (50 de cada um em 2003, e de internações hospitalares, dos seis estados) o que comeram e berespondendo por 22% do total de R$ beram em um dia específico. Repetirão 6 bilhões gastos com internações em 2005 no Brasil. as perguntas em março e agosto do ano que vem, com o propósito de avaliar “Estamos coletando dados para as o consumo calórico e de nutrientes. futuras gerações de pesquisadores e despertando vocação dos entrevistado“Esperamos entender melhor, analisando os hábitos alimentares, como as res para a pesquisa científica”, diz Dora Chor, professora da Escola Nacional de doenças aparecem ou como a saúde se mantém”, diz Maria Molina, responSaúde Pública (ENSP) da Fundação sável pelo levantamento dos hábitos Oswaldo Cruz e coordenadora do estualimentares. do no Rio de Janeiro. Informações mais consistentes sobre como as doenças Desde já há sinais de que a alimentação no Brasil afora não é das mais surgem e o que poderia ser feito para saudáveis – e está favorecendo o surgievitar que se agravem devem começar a mento de doenças cardíacas e diabetes. aparecer apenas daqui a três anos, mas Em 1999 e 2000, como parte de um leoutros ganhos são imediatos. Um deles vantamento internacional sobre doennasceu da necessidade de administrar muitos exames continuamente: depois ça cardiovascular, a equipe do Espírito de um teste preliminar com 94 pessoas, Santo analisou o estado de saúde e os a equipe capixaba mostrou que a urina hábitos de 1.661 moradores de Vitória pode ser coletada 12 horas antes, em vez entre 25 e 64 anos. O sobrepeso era de das habituais 24, simplificando a vida 52% e o consumo de sal, o dobro do recomendado. Moradores de quem terá de comparecer de outros estados podem esna manhã seguinte, em jejum, O Elsa é hoje para outros exames. “Para a tar também ganhando peso uma linha de ou lentamente caminhando avalia­ção de função renal, taprodução de rumo a um infarto. A prevaxa de filtração e excreção de exames que lência de sobrepeso ou obesódio e de creatinina, o exame correm entre seis estados sidade na população brasileide 12 horas apresenta pratica-


mente os mesmos resultados que o de 24 horas”, diz Mill. “Queremos agora que os nefrologistas vejam, opinem, tentem repetir e adotem ou não.” Os manuais da equipe do Elsa, mostrando como organizar um projeto desse tipo, preparar e manter equipes e fazer exames, também podem ser compartilhados por outros grupos. Sem atrasos - As conversas do grupo

tomaram a forma de um plano de trabalho, aprovado em 2005 pelo Ministério da Saúde e Ministério de Ciên­cia e Tecnologia, que liberaram R$ 22 milhões para essa pesquisa. “Formamos um consórcio de pessoas e de instituições, com um comitê diretivo, com todos os participantes, que tomam as decisões em conjunto”, conta Isabela. Agora, tão importante quanto a capacidade de produzir informação com qualidade, para que os dados colhidos em Porto Alegre possam ser comparados com os de Salvador, é a habilidade de manter o ritmo de trabalho: até que comece a gerar informações epidemiológicas, o Elsa é uma rigorosa linha de produção contínua de exames e de informações. “Não posso acumular exames”, diz Lígia Fedeli, chefe da equipe dos exames de sangue e urina. “Todo o material do dia tem de estar identificado e organizado até as 19 horas do mesmo dia.” Lígia e seus 10 assistentes distribuem o sangue de cada uma das 15 a 20 pessoas atendidas por dia em sete

tubos plásticos flexíveis chamados palhetas, cada uma com uma etiqueta de código de barras. A logística impressiona. Uma vez por mês, Lígia recebe mil exames feitos nos outros estados, produz 20 mil palhetas e as envia para os tanques de nitrogênio líquido. Uma vez por mês os tubos são descongelados e o sangue examinado nos laboratórios do hospital da USP. Esse material poderá também mostrar quem, como e por que teve doen­ças mentais como demência ou Alzheimer, já que uma parte dos questionários procura avaliar eventuais perdas de memória. O HU armazena também as amostras de urina, que passam pelos mesmos cuidados e procedimentos, e os exames de ultrassonografia do diâmetro da artéria carótida e da artéria do fígado, usados para avaliar problemas cardíacos. Por sua vez, a equipe de Minas recebe 55 eletrocardiogramas feitos no mesmo dia nos outros cinco centros e a de Porto Alegre um número equivalente de exames da retina, que ajudam a identificar lesões produzidas no olho pelo diabetes. “Se tivéssemos de parar o trabalho agora, este já seria o levantamento epidemiológico com maior número de participantes adultos já feito no Brasil”, diz Lotufo. Um estudo sobre transtornos psiquiátricos na Região Metropolitana de São Paulo chegou a 2007 com 5.037 entrevistas realizadas. Um levantamento mais parecido com

o Elsa consistiu na avaliação de 15 mil crianças nascidas em 1982, 1993 e 2005 em Pelotas, Rio Grande do Sul. Empreitadas de fôlego como essa costumam ir além do previsto. Um dos levantamentos pioneiros sobre doenças cardíacas, realizado em 1948 com 5.209 homens e mulheres de Framingham, cidade próxima a Boston, nos Estados Unidos, revelou o que hoje parece óbvio: a associação do hábito de fumar, até então ligado apenas a câncer de pulmão, com o maior risco de infarto. Essa relação se tornou clara após alguns anos de acompanhamento da saúde dos participantes do estudo. “Foi uma surpresa, porque nessa época fumar aparecia com frequência em filmes como algo que aliviava o estresse e, portanto, poderia ser benéfico para o coração”, diz Mill. Mas não é sempre que conclusões de estudos como esse se convertem rapidamente em políticas públicas. “Há muito tempo sabemos que refrigerante e salgadinhos fritos não fazem bem para crianças, mas só agora uma lei nacional proíbe a venda desses alimentos na escola”, observa Maria Molina. Por enquanto os avanços têm sido graduais e contínuos. “Algo difícil, que estamos conseguindo”, diz Lotufo, “é convencer os outros que um hospital universitário tem de fazer pesquisa original e relevante, com espaço e equipe próprios, e não só tirar informações dos prontuá­ n rios dos pacientes”. PESQUISA FAPESP 164

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laboratório mundo

laurabeatriz

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> Busto raro de Alexandre

no'a raban-gerstel/universidade de haifa

Durante a temporada de escavações deste ano, pesquisadores israelenses e norte-americanos encontraram na cidade de Tel Dor, na costa mediterrânea de Israel, uma gema entalhada com o busto de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia de 336 a 323 antes de Cristo. Com tamanho diminuto – cerca de 1 centímetro de altura por 0,5 de largura –, o busto de

Alexandre é um dos poucos encontrados em um sítio arqueológico devidamente datado do período helenístico. A maioria dos retratos do rei macedônio espalhados por museus de todo o mundo é de origem desconhecida – alguns integram coleções que existiam antes mesmo do surgimento da arqueologia científica. Apesar do tamanho, o busto não omite as características físicas do soberano. “O imperador foi retratado como jovem e vigoroso, com queixo forte, nariz reto e longos cabelos ondulados presos por um diadema”, comentou Ayelet Gilboa, da Universidade de Haifa.

> Dispense a ceia para não engordar

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Quem gosta de saborear um belo jantar tarde da noite deveria repensar seus hábitos se deseja emagrecer. Um grupo da Universidade

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Uma surpresa para pesTudo ao mesmo soas que veem televisão, tempo agora mandam recados pelo celu­ lar e navegam pela internet de uma vez: elas não são mais eficientes do que as outras. Ao contrário. Um grupo coordenado pelo psicólogo Eyal Ophir, da Universidade Stanford, na Califórnia, fez uma série de testes cognitivos com estudantes divididos conforme a frequência com que usam meios como televisão, telefone celular, jogos de computador e vídeos – 19 dessas pessoas tinham uma forte tendência a fazer várias coisas de uma vez e nas outras 22 esse impulso era menos intenso. Os testes mediram a capacidade de captar informações importantes, ignorar memórias irrelevantes e mudar de uma tarefa para outra. Os resultados surpreenderam: as pessoas mais pro­ pensas a tarefas múltiplas se saíram pior em todos os tes­ tes, segundo artigo na PNAS. A conclusão é que o acesso a todos esses meios não necessariamente torna as pessoas mais eficientes. Falta definir se são os canais simultâneos que embaralham o cérebro ou se, ao contrário, pessoas com dificuldade de se concentrar e de selecionar informações relevantes são as que mais tendem a fazer coisas demais ao mesmo tempo (ScienceNow).

Northwestern, nos Estados Unidos, comprovou que alimentar-se no horário em que o corpo deveria estar descansando engorda. Os resultados do estudo, feito com camundongos, em princípio podem se aplicar

aos seres humanos. Por seis semanas Fred Turek e seus colaboradores submeteram camundongos a uma dieta rica em gorduras, oferecida em horários diferentes. Metade dos animais recebeu comida apenas durante


> O limite das mudanças radicais

> Muita água sob o gelo Quilômetros abaixo do manto de gelo que cobre a Antártida há um complexo e dinâmico sistema de lagos interconectados. Usando o sistema de laser de um satélite da Nasa, a equipe de

Antártida: gelo esconde sistema de lagos

A. Harrison P. Feorino/cdc

Promessa: vacina reduz em 31% infecções por HIV

Benjamin Smith/Universidade de Washington

Em setembro, chuvas mais intensas que o habitual inundaram o metrô de Manila, nas Filipinas, e atormentaram 400 mil pessoas. Tempestades de poeira vermelha que duraram oito horas infernizaram a cidade de Sydney, na Austrália. Talvez sejam sinais de transições profundas e sem retorno. Os sistemas biológicos complexos, tanto

em pequena escala como os alvéolos pulmonares quanto os de escala ampla como o clima, apresentam um estado crítico de transição a partir do qual as mudanças se tornam bruscas e radicais, segundo estudo liderado por Martin Scheffer, da Universidade Wageningen, Holanda (Nature). Para os autores, o que chamam de “bifurcações catastróficas” impulsiona um sistema a um novo estado toda vez que um limite é excedido. Outros estudos haviam indicado que florestas podem colapsar quando a perda por desmatamento passar dos 40%.

Benjamin Smith, da Universidade de Washington, Estados Unidos, conseguiu fazer o mais amplo e detalhado inventário dos lagos da Antártida. Os pesquisadores mapearam 124 lagos ativos e calcularam seus ritmos de enchimento e esvaziamento, segundo estudo publicado no Journal of Glaciology. Constataram que formam um sistema de drenagem continental muito mais dinâmico do que se imaginava. “Embora o manto de gelo da Antártida pareça estático, quanto mais observamos, mais vemos que há atividade ali o tempo todo”, disse Smith. Entender como funciona esse sistema de drenagem é importante porque ele pode lubrificar o fluxo das geleiras e acelerar a chegada do gelo ao oceano, onde pode derreter e contribuir para mudanças no nível do mar. Em décadas de trabalho, cerca de 280 lagos antárticos já foram identificados, mas não se sabia se eram ativos.

Um grupo internacional anunciou um resultado promissor contra a Aids. Um regime de vacinação baseado no uso de duas vacinas foi aplicado em 16 mil tailandeses inte­ gran­tes de grupos de risco para a infecção – metade recebeu vacina e a outra metade placebo. Três anos depois, 51 pessoas do pri­ meiro grupo haviam con­ traído o vírus, ante 74 no grupo das não imunizadas. O resultado foi interpreta­ do como uma redução de 31% no risco de contami­ nação dos vacinados, mas é cedo para cantar vitória. Segundo o virologista Paolo Zanotto, da Uni­ versidade de São Paulo, é preciso analisar o DNA dos voluntários e dos vírus que os infectaram, para saber se diferenças na composi­ ção genética explicam parte dos resultados. Em seguida, modelos matemáticos podem estimar o im­ pacto da vacina na circulação do vírus. A depender dos resultados, esse esquema de vacinação po­ deria entrar em uso mesmo com eficácia reduzida. “Mas isso não resolve o problema maior, que é a diversidade do HIV”, comenta o virologista. No Brasil, o subtipo E, visado pela vacina, é raro. Além disso, o HIV é especialista em ludi­ briar o sistema imune. “Combatê- -lo em seu próprio terreno é um desafio tremendo.”

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Vacina contra a Aids

a noite, quando estão mais ativos e normalmente se alimentam, enquanto a outra metade só teve acesso aos alimentos durante o dia, período em que costumam dormir. Turek constatou que os roedores que se alimentaram fora de hora ganharam mais peso que os outros (Obesity). A razão? Não se sabe ao certo, mas os camundongos alimentados durante o dia comiam mais e se exercitavam menos.

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laboratório Brasil

> Exercícios para depois dos 60 Quem passou dos 60 anos e quer manter o corpo saudável deve acrescentar musculação à rotina de atividades físicas. É que a prática de exercícios mais intensos eleva a produção do fator de crescimento semelhante à insulina 1 (IGF-1), que cai com a idade. O IGF-1 é um dos hormônios responsáveis por manter a integridade e a força dos músculos e a taxa metabólica. Pesquisadores 46

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do Rio Grande do Norte, do Rio de Janeiro, do Piauí e de Pernambuco submeteram 35 mulheres com idade entre 66 e 70 anos ao seguinte programa de exercícios. O primeiro grupo fez por três meses três aulas semanais de hidroginástica de intensidade leve, o segundo teve aulas de musculação de intensidade alta e o terceiro não se exercitou. Só no grupo da musculação houve aumento na taxa de IGF-1, embora nos grupos experimentais elas tenham ganhado força muscular.

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eduardo cesar

Plano de visão

A catarata, perda de transparência da len­ te natural do olho, é a principal causa de cegueira no mundo em desenvolvimento. A pedido da Organiza­ ção Mundial da Saúde, Solange Salomão, da Universidade Federal de São Paulo, fez um levantamento da situa­ ção brasileira e viu que a catarata já não é o principal problema de perda de visão das pessoas com mais de 50 anos na cidade de São Paulo – a perda de acuidade visual é o problema mais co­ mum e as doenças da retina são a principal causa de cegueira. “A periferia de São Paulo, nesse aspecto, é mais parecida com a população hispânica dos Estados Unidos do que com a de países em desenvolvimento”, conta. Esse resultado, segundo Solange, deve-se aos mutirões de cirurgias gratuitas de catara­ ta feitos na cidade – em 2002 houve 320 mil intervenções. Mas o programa foi interrompido, e a catarata pode aumentar. Para ela, é essencial que essa política persista. O estudo, publicado este ano no American Journal of Ophthalmology e em 2008 na Ophthalmic Epidemiology, deve orientar propostas de saúde pública em oftalmologia na América Latina. “A catarata é uma causa reversível de cegueira”, lembra, “sua eliminação gera grande melhora na qualidade de vida dos idosos”.

> Um só padrão para cartas e e-mails Os atos de escrever uma carta ou digitar um e-mail são regidos pelo mesmo padrão de comportamento e podem ser modelados como sistemas complexos. A probabilidade de uma pessoa enviar uma carta ou um e-mail depende dos ritmos circadianos, do conforto da repetição de tarefas e da mudança das necessidades ao longo da vida. A conclusão é de um estudo da Universidade Northwestern, do qual participou a matemática brasileira Andriana Campanharo (Science). O trabalho analisou cartas de 16 personalidades, entre elas Freud, e mensagens de 16 usários de e-mails.

> Montanhas menores de lixo Uma experiência pioneira em um condomínio residencial de Uberlândia, Minas Gerais, demonstrou

a viabilidade de redução de 70% no volume de resíduos sólidos enviado aos aterros sanitários (Waste Management & Research). Iniciado em 1998, quando todo o lixo seguia para os aterros, esse trabalho evoluiu lentamente, contam Manfred Fehr, Mirlei de Castro e Marilda Calçado, da Universidade Federal de Uberlândia. Hoje as famílias separam os resíduos em biodegradáveis e inertes, no primeiro passo da rede de reciclagem. Em seguida, funcionários do prédio fazem uma separação mais apurada. O material segue para distribuidores e recicladores. Um fazendeiro coleta todo dia o material biodegradável, para usar como ração ou compostagem. “Tudo sem custos para os cofres públicos”, ressalta Fehr. Ele e seus colegas concluem que não é preciso esperar por ordens da prefeitura para começar a reduzir a quantidade de resíduos. miguel boyayan

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O mar de São Sebastião

as demais tarefas, como buscar alimento, combater invasores e cuidar da cria. Mas nem sempre é assim. Entre as abelhas sem ferrão brasileiras da espécie Melipona scutellaris, também conhecidas como uruçus, mais de 20% dos machos não são filhos da rainha. A insurreição não é inédita – machos alheios já tinham sido encontrados em outras espécies. São filhos de operárias reprodutivas, cujos ovos não fertilizados só podem dar origem a machos devido a particularidades genéticas das abelhas. A surpresa maior do trabalho, parte do doutorado da bióloga Denise Alves na Universidade de São Paulo, foi descobrir que 80% desses machos também não foram produzidos pelas operárias ativas na colônia.

mostra que as operárias reprodutivas têm vida três vezes mais longa do que a das trabalhadoras verdadeiras, o que lhes permite sobreviver a uma rainha morta e povoar com filhos seus, que serão criados pelas novas operárias, o reino da nova monarca (Molecular Ecology).

> Morte celular em detalhes Quando ativado, o sistema imune libera substâncias oxidativas capazes de causar a morte celular, ou apoptose. Uma delas é a taurina cloramina (TnCl). j.e.nascimento-jr.

cebimar/usp

O maior terminal petrolífero do país, em São Sebastião, mar­ ca a paisagem, mas os sinais de hidrocarbonetos na água e nos sedimentos são tão baixos quanto em regiões de interven­ ções humanas mínimas. Depois de dois anos de coletas e seis de estudo do ecossistema, um grupo de 13 pesquisadores e 27 estudantes de pós-graduação verificou também que a plata­ forma de São Sebastião, região do litoral norte paulista sujeita às influên­cias da serra do Mar e da ilha de São Sebastião, é uma área de desova para mui­ tas espécies de peixes. O Pro­ São Sebastião: livro analisa em detalhe trecho do litoral paulista jeto Oceanografia da Platafor­ ma Interna de São Sebastião (Opiss), agora apresentado no > Motim no reino São filhos de operárias livro Oceanografia de um ecossistema subtropical – Plataforma das abelhas da rainha anterior, um caso de São Sebastião, SP (Edusp), ambos coordenados por Ana de parasitismo reprodutivo. Maria Pires-Vanin, do Instituto Oceanográfico da Universidade A pesquisa, feita em A ordem costuma ser rígida de São Paulo (USP), apresenta a ilha de São Sebastião como colaboração com Tom na colmeia: a rainha põe um acidente geográfico que serve de anteparo ao mar aberto e Wenseleers, da Universidade ovos e produz a força modifica a circulação de águas e de populações de organismos de Leuven, na Bélgica, de trabalho que executa marinhos rumo ao continente.

Uruçu: machos à custa da próxima geração

Um grupo internacional de pesquisadores que inclui o bioquímico Fábio Klamt, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vem tentando entender em minúcias o que controla esse processo com que o organismo elimina células tumorais. O trabalho mostra que a chave – uma delas, ao menos – está na proteína cofilina (Nature Cell Biology). Quando oxidada pelo TnCl, ela entra nas mitocôndrias, responsáveis por produzir a energia das células. Ali a proteína abre os chamados poros de transição de permeabilidade, o que faz as mitocôndrias incharem, e provoca a morte da célula. O grupo continua à caça de outras proteínas importantes nesse processo central para a defesa do organismo.

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ciência

Física

Cores emaranhadas Grupo de São Paulo obtém o entrelaçamento quântico entre três feixes de luz de diferentes comprimentos de onda Marcos Pivet ta

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m esboço da circuitaria interna que poderá ocupar o lugar dos chips de silício e se tornar o coração de um computador quântico ganhou contornos mais concretos graças a um experimento inédito realizado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Uma equipe formada apenas por brasileiros e coor­ denada pelos físicos Paulo Nussenz­ veig e Marcelo Martinelli, do IF-USP, montou um sistema em que foi possível criar – e até certo ponto controlar – o fenômeno do emaranhamento quântico entre três feixes de luz de diferentes comprimentos de onda. Um feixe era verde e estava na porção visível do espectro e os outros dois se situavam no campo do infravermelho próximo, que não pode ser visto a olho nu. Até então o máximo que outros grupos de cientistas haviam conseguido era entrelaçar quanticamente dois feixes de luz de cores distintas ou vários da mesma frequência. “O emaranhamento de feixes de três cores pode ser útil para a construção de computadores quânticos no futuro”, comenta Nussenzveig. “Em tese, poderíamos montar uma rede com componentes quânticos operando em diferentes frequências.” O trabalho foi publicado no dia 17 do mês passado na Science Express, versão on-line da revista científica americana Science. Além de demonstrar a viabilidade do emaranhamento tricolor, o estudo pioneiro dos brasileiros trouxe uma segunda boa notícia. Os físicos constataram que esse tipo de entrelaçamento pode originar um sistema óptico re-

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lativamente robusto, que não se esvai tão facilmente quanto outros modelos mais simples de emaranhamento. Afinal, ninguém quer ter um PC quântico que seja instável por natureza. Alterando levemente a intensidade dos feixes usados no experimento, conseguiram modular o grau de entrelaçamento entre os fótons (partículas de luz) do sistema. Observaram ainda que o fenômeno descrito tecnicamente como a morte súbita do emaranhamento, relatado até agora somente em sistemas mais elementares, também ocorria quando diminuíam a intensidade dos feixes de luz abaixo de um determinado nível. A energia do feixe de laser verde usado para iniciar o experimento na USP é pequena, mas não desprezível: da ordem de 50 miliwatts, dez vezes maior do que a empregada em algumas ponteiras a laser.

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O Projeto Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica (INCT-IQ)

modalidade

Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do MCT/CNPq/FAPESP Co­or­de­na­dor

Amir Ordacgi Caldeira – Unicamp investimento

R$ 1,5 milhão (FAPESP) - para grupos de pesquisa de São Paulo

Além de Nussenzveig e Martinelli, o time de pesquisadores que fez o trabalho inclui os alunos de pós-graduação Antônio Sales Coelho e Felippe A. Silva Barbosa, todos do IF-USP, e os físicos Katiúscia Cassemiro e Alessandro Villar, hoje no Instituto Max Planck para Ciência da Luz, na Alemanha. O estudo que redundou no emaranhamento tricolor faz parte das pesquisas tocadas pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica (INCT-IQ), coor­denado por Amir Ordacgi Caldeira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O instituto é uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com a FAPESP. Como todo fenômeno quântico, o emaranhamento não pode ser explicado pelas leis da física clássica. Está inserido num mundo com regras próprias, estranhas à compreensão da realidade macroscópica e que flertam com o que os leigos chamam de telepatia. Previsto na década de 1930 e comprovado experimentalmente décadas mais tarde, o emaranhamento quântico imprime uma assinatura típica num sistema. Se duas ou mais partículas – átomos, elétrons ou fótons, como no experimento da USP – estão conectadas de uma maneira tão íntima que as modificações sofridas por algumas delas também se refletem nas propriedades das outras, independentemente de estarem separadas por nanômetros de distância ou pelo oceano Atlântico, elas formam


eduardo cesar

um sistema com as características do emaranhamento quântico. Ao prever a possibilidade do entrelaçamento, Albert Einstein disse que o misterioso fenômeno era dotado de uma “ação fantasmagórica a distância”. Do ponto de vista aplicado, essas correlações entre as partículas emaranhadas podem ser exploradas de modo a criar os chamados bits quânticos ou qubits, que, teoricamente, poderiam expandir enormemente a capacidade dos computadores de armazenar, processar, criptografar e transmitir informação. O problema é que o entrelaçamento é um fenômeno frágil, cujos efeitos podem desaparecer devido a ínfimas interferências do ambiente. Os cientistas costumam optar pelos fótons para construir sistemas emaranhados, em vez de átomos ou outras partículas elementares, porque a luz pode ser transmitida por fibras ópticas ou até pelo ar sem perder os efeitos do entrelaçamento. Para criar o sistema descrito na Science, os pesquisadores montaram um sistema denominado oscilador paramétrico óptico (OPO). Trata-se de um dispositivo que possibilita bombear com um feixe de luz (laser) verde um sistema composto de um cristal especial situado entre dois espelhos. O emaranhamento surge quando o feixe de luz verde atravessa o cristal. Nesse momento há a conversão de fótons verdes em pares de fótons no infraverme­ lho, de duas frequências distintas (ver ilustra­­ção na página 50). “É o cristal que ‘amarra’ os três feixes de luz, que cria o emaranhamento”, explica Martinelli.

Oscilador paramétrico óptico: sistema do IF-USP foi usado para produzir o emaranhamento PESQUISA FAPESP 164

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Por fim, os novos feixes de luz produzidos, mais o feixe restante de luz verde, são redirecionados para subsistemas de espelhos utilizados para medir suas propriedades. “No nosso experimento há tantos fótons emaranhados que não é possível contá-los”, diz Nussenzveig. Há quatro anos o grupo da USP tinha obtido sucesso em criar o entrelaçamento quântico com apenas dois feixes de luz. No ano seguinte os físicos publicaram um artigo prevendo a possibilidade de emaranhar uma trinca de feixes, feito que agora demonstraram experimentalmente ser possível. Mas não foi um processo fácil. Quando iniciaram as tentativas de criar o emaranhamento tricolor, depararam com um problema frequente na ciência: os resultados práticos não batiam com as projeções teóricas. Existia uma fonte de contaminação que dificultava o registro do emaranhamento. “Havia um ruído da luz que era intrínseco ao sistema, de natureza quântica”, diz Martinelli. “Mas havia outro tipo de ruído, ruim, que atrapalhava as medições.” Eles precisavam entender a origem da interferência e eliminá-la do sistema. Nos experimentos com o oscilador paramétrico óptico os físicos usualmente trabalham à temperatura ambiente. No entanto, a estratégia não funcionava na busca pelo entrelaçamento de três feixes diferentes de luz. Os pesquisadores descobriram que, nesse caso, era preciso resfriar o cris-

tal abaixo de uma temperatura para retirar o ruído indesejável do sistema. O calor do ambiente, acima dos 20°C, fazia o cristal vibrar e produzia as interferências. A saída foi manter o cristal a -23°C e, assim, foram criadas as condições para que o entrelaçamento fosse medido de forma satisfatória. É interessante notar que a pesquisa brasileira tem dado contribuições importantes ao estudo do emaranhamento quântico. Além da equipe de Nussenzveig e Martinelli, outros grupos de pesquisa publicaram artigos em periódicos de renome internacional. Em abril de 2006 o grupo de Luiz Davidovich, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realizou a primeira medição direta do emaranhamento quântico de partículas e publicou o feito na revista científica britânica Nature. Em abril de 2007 a mesma equipe mostrou nas páginas da Science como ocorria o fenômeno da morte súbita do emaranhamento. “Há vários grupos nacionais, teóricos e experimentais, realizando trabalhos na fronteira do conhecimento”, afirma Davidovich. “Eles apresentam uma característica interessante: estão distribuídos em vários estados do Brasil n e interagem entre si.” > Artigo científico COELHO, A.S. et al. Three-color entanglement. Science Express. Publicado on-line em 17 set. 2009.

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Cristal (em azul) “amarra” quanticamente os três feixes de luz de cores diferentes

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Partículas rebeldes Comportamento de átomos pode prejudicar o funcionamento de computador quântico Ricard o Zorzet to

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ma descoberta recente da equipe de Luis Gustavo Marcassa arrefeceu o ânimo dos pesquisadores empenhados no desenvolvimento teórico e experimental de um computador quântico produzido com átomos mantidos em condições muito especiais. Esse equipamento se vale das propriedades das partículas para realizar cálculos e, acreditam os físicos, poderá no futuro substituir os computadores atuais com vantagens em determinadas situações. Em experimentos feitos no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, o grupo de Marcassa identificou uma variação sutil no comportamento do sistema considerado ideal para funcionar como processador de um computador quântico. Apesar de pequena, essa oscilação seria suficiente para comprometer o desempenho desses computadores do futuro. Os físicos de São Carlos, no entanto, não se acomodaram depois de encontrar o problema e já começam a propor formas de resolvê-lo. Num teste aparentemente simples, Marcassa, Valter Aragão do Nascimento e Lucas Caliri aprisionaram com lasers e campos magnéticos uma nuvem de apenas 10 mil átomos do elemento químico rubídio, mantidos a temperaturas baixíssimas – cerca de 10 microKelvin ou 10 milionésimos de grau acima do zero absoluto (-273,15 graus


Celsius), quando as partículas apresentam o mais baixo nível de energia possível. Em seguida, iluminaram os átomos com um laser infravermelho e outro azul, excitando-os. Esse procedimento transfere energia para o mais externo de seus 37 elétrons – as partículas fundamentais mais leves conhecidas, de carga negativa, que orbitam o núcleo, formado por partículas de carga positiva (prótons) e neutra (nêutrons). Energizado, o elétron mais externo do rubídio salta para uma região periférica bem mais distante do núcleo. O afastamento desse elétron faz o átomo aumentar de tamanho cerca de 10 mil vezes e medir quase 1 milésimo de milímetro (micrômetro), tornando-se quase do tamanho de uma bactéria. O novo átomo, inflado como um balão de festa, recebe o nome de átomo de Rydberg – homenagem

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O Projeto Gases bosônicos e fermiônicos em armadilhas ópticas

modalidade

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

ao físico sueco que o previu, usando átomos de Rydberg”, Salto de energia: laser Johannes Rydberg – e passa afirma Marcassa, que descrefaz átomo a se comportar de maneira veu esses resultados em artigo inflar como muito especial. Ele apresenta publicado em maio na Physibalão de festa maior sensibilidade a campos cal Review Letters. Segundo o elétricos e a campos magnéfísico, os poucos átomos em ticos, o que permite interagir níveis de energia diferencom átomos distantes. tes do desejado já seriam suficientes “Esses átomos interagem a dispara atrapalhar o funcionamento de um computador quântico. “Para fazer tâncias muito grandes [alguns micrômetros] e torna-se possível distinguir várias operações é preciso ter controle cada um deles e selecionar aquele em exato do nível de energia dos átomos”, que se deseja codificar determinada inexplica o pesquisador de São Carlos. formação”, explica Marcassa. DevidaFelizmente, esse problema parece mente manipulados, conjuntos de dois ter solução. Adicionando um campo átomos de Rydberg podem compor a elétrico extra à armadilha, o grupo da USP conseguiu reduzir a proporção unidade de informação do computador quântico – o bit quântico ou qubit. de átomos que não atinge o nível de Essa seletividade, segundo Marcassa, é energia desejado. Mas os físicos ainda vantajosa porque permitiria trabalhar não estão plenamente satisfeitos. “Esao mesmo tempo com informações tamos procurando outras saídas”, diz Marcassa. Uma delas, ainda em fase de diferentes codificadas nas duplas de desenvolvimento, exige a aplicação de átomos, conferindo grande poder de processamento ao computador. micro-ondas numa frequência quatro O problema é que no mundo real vezes maior que a usada nos fornos de nem tudo funciona como prevê a teo­ n micro-ondas domésticos. ria. Ao iluminar com laser os 10 mil átomos, os físicos de São Carlos nota> Artigo científico ram que uma pequena parcela – de 2% a 3% – atingia um nível mais energético Nascimento, V.A. et al. Electric field ou menos energético do que o desejado. effects in the excitation of cold Rydberg“É preciso tomar cuidado caso se queiatom pairs. Physical Review Letters. v. 102, ra construir um computador quântico p. 213.201-1- 213.201-4. 29 mai. 2009.

Co­or­de­na­dor

Luis Gustavo Marcassa – IFSC-USP

miguel boyayan

investimento

R$ 404.233,90 (FAPESP)

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O

Astronomia

Terra

eso/l.calcada

O menor planeta já descoberto fora do Sistema Solar tem superfície rochosa e temperaturas extremas

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s astrônomos não têm mais dúvida. Existem outros planetas com superfície rochosa e dimensões muito próximas às da Terra fora do Sistema Solar. As evidências mais robustas confirmando essa antiga suspeita foram divulgadas no dia 16 de setembro por uma equipe internacional de pesquisadores da qual participa o astrônomo brasileiro Sylvio Ferraz Mello, da Universidade de São Paulo (USP). Sob a coordenação do astrônomo suíço Didier Queloz, do Observatório de Genebra, o grupo determinou a massa de um planeta que acompanha uma das estrelas da constelação do Unicórnio, na vizinhança do Sistema Solar. Distante 500 anos-luz, esse planeta é o menor já encontrado fora do Sistema Solar. Seu diâmetro é 1,8 vez maior que o da Terra e ele tem cinco vezes mais massa, o que o coloca na categoria denominada pelos astrônomos de superterras. Descoberto em fevereiro deste ano pelo Corot, satélite franco-europeu-brasileiro lançado em 2006 com o objetivo de identificar planetas ao redor de outras estrelas (exoplanetas) e determinar seus tamanhos, o novo planeta recebeu o nome de Corot-7b, descrito em artigo a ser publicado na Astronomy and Astrophysics. Sua massa foi calculada a partir de medições feitas por um equipamento de altíssima resolução acoplado a um dos telescópios do Observatório Europeu do Sul (ESO) instalados no deserto de Atacama, no norte do Chile. Conhecendo a massa e o diâmetro do Corot-7b, os astrônomos constataram que sua densidade é muito próxima à da Terra: 5,5 gramas por centímetro cúbico – o que significa que um cubo com 1 centímetro de lado com a mesma composição da Terra conteria uma massa de 5,5 gramas. Com base nessas informações, os astrônomos concluíram que o planeta da constelação do Unicórnio só pode ser rochoso e apresentar superfície sólida, assim como Mercúrio, Vênus, Terra e Marte, os mais próximos do Sol. Planetas do porte de Júpiter, que tem 11 vezes o diâmetro terrestre e é o maior do Sistema Solar, em geral são gasosos. “É a primeira vez que se determina a densidade de um planeta de fora do Sistema Solar”, comemora o astrofísico Eduardo Janot Pacheco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, coordenador da participação brasileira no Corot. Em abril deste ano a equipe do astrônomo suíço Michel Mayor, que identificou o primeiro exoplaneta em 1995 e já descobriu outros 150, havia anunciado a observação do planeta Gliese 581e, com o dobro da massa terrestre. Mas há incertezas sobre sua estrutura. “Não se conhecem o diâmetro nem a densidade do Gliese 581e, que pode ter superfície líquida”, diz Pacheco. O interesse em detectar planetas rochosos ao redor de outros sóis se deve à expectativa de que possam abrigar vida. “Estamos procurando planetas em que a vida possa se desenvolver”, conta o coordenador do grupo brasileiro. Apesar de sua estrutura rochosa, o Corot-7b deve ser muito inóspito e distinto da Terra. Ele se encontra bem mais próximo a sua estrela do que Mercúrio, o primeiro > Artigo científico planeta de nosso sistema, está do Sol. Além de provaQueloz, D. et al. The CoRoT-7 planetary velmente ser mais quente e system: two orbiting super-Earths. seco, apresenta temperaturas Astronomy and Astrophysics. 2009. no prelo.


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Os Projetos 1. Centro de análise temporal Corot (Cat-Corot) 2. Estudo para a caracterização da função de espalhamento do sistema óptico do canal de aquisição de imagens destinado à investigação de exoplanetas do satélite Corot

modalidade

1 e 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dores

1. Eduardo Janot Pacheco – IAG-USP 2. Vanderlei Cunha Parro - IMT investimento

1. R$ 37.608,43 (FAPESP) 2. R$ 30.799,15 (FAPESP)

extremas. Como gira ao redor de si à mesma velocidade em que completa uma volta em torno de seu sol, o Corot7b expõe à luz apenas uma de suas faces, na qual a temperatura chega próximo aos 1.000 graus Celsius. Já na

face escura as temperaturas são sempre negativas. “De modo geral, esse planeta não é propício à vida”, diz Pacheco. “Mas ele deve apresentar regiões com temperaturas intermediárias que poderiam permitir a sobrevivência de microrganismos extremófilos, adaptados a condições em que outros não sobrevivem”, aposta o pesquisador do IAG, que acredita que haja vida em outros pontos do Universo – não necessariamente igual às formas conhecidas. “Há bilhões e bilhões de estrelas. Seria muito pretensioso achar que só existe vida aqui”, afirma. Desde que Michel Mayor anunciou há 14 anos a descoberta do primeiro planeta extrassolar, orbitando a estrela Pégaso 51, outros 373 já foram identificados. Quase todos são gigantes gasosos, parecidos com Júpiter e Urano. Além do Corot-7b, há outros candidatos a planetas rochosos – entre eles, o Corot-7c, com massa oito vezes superior à da Terra e companheiro do 7b. Uma das razões por que quase não se conhecem planetas rochosos é que é difícil observá-los. Mesmo o satélite Corot, desenvolvido para detectar a

sutil redução de luminosidade (eclipse) que os planetas causam ao passar à frente de suas estrelas, depende da sorte. É que em apenas 1% dos casos a órbita do planeta se encontra em um plano favorável à observação. Em pouco mais de dois anos de atividade, o Corot analisou a luz de 60 mil estrelas e identificou ao menos outros cinco exoplanetas, além do Corot-7b e do 7c. “Há ainda uma dezena de candidatos sob análise”, comentou no início de setembro durante visita a São Paulo Michel Auvergne, astrônomo do Observatório de Paris e pesquisador principal do projeto Corot. Ele veio discutir os dados da missão com a equipe brasileira e trouxe uma boa notícia: o satélite, que seria desativado no início de 2010, permanecerá ativo mais três anos. E funcionando melhor. “Aprimoramos o programa que elimina os ruídos dos dados coletados”, afirma o engenheiro Vanderlei Cunha Parro, do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT). “Isso aumentará as chances de enconn trar outros planetas.”

Ricard o Zorzet to

Novo mundo: concepção artística do planeta Corot-7b, em vermelho, e sua estrela

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m simples pedaço de linha enovelado no canto da sala salta aos olhos, faz retesar os músculos e bater forte o coração de quem sofre de aracnofobia, o medo excessivo de aranhas. Tão intensa quanto irrefreável, essa sensação invade o corpo sempre que se nota no ambiente algum ser ou objeto que lembre, mesmo muito remotamente, o aracnídeo de pernas longas e comportamento em geral reservado. Não fosse o terror despertado, seria uma reação natural ante uma circunstância que põe em risco a sobrevivência e prepara o corpo para lutar ou fugir. Uma descoberta recente do neurocientista brasileiro Luiz Pessoa ajuda a compreender por que nos casos de fobia ou de outros transtornos associados a altos níveis de ansiedade, a exemplo da ansiedade generalizada ou do estresse pós-traumático, objetos a que deveríamos ser indiferentes funcionam como uma espécie de ímã do qual os olhos não conseguem desgrudar.

Nessas situações uma região cerebral profunda em formato de amêndoa – a amígdala, responsável pelo processamento de emoções como o medo ou a aversão – se torna mais ativa e aumenta o nível de funcionamento do córtex visual, onde são decodificadas as imagens. Ou seja, não é a linha enovelada que atrai a atenção da pessoa com aracnofobia, mas a pessoa que se torna mais atenta à procura de qualquer coisa semelhante a uma aranha. “Esse efeito aparentemente desejável [estar atento ao perigo] pode na realidade se transformar em uma tormenta, porque ocupa boa parte do processamento cerebral e impede o indivíduo de focar a atenção em outras atividades”, explica Pessoa, chefe do Laboratório de Cognição e Emoção da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Pessoa e dois pesquisadores de seu laboratório, Seung-Lark Lim e Srikanth Padmala, identificaram esse papel regulador da amígdala em experimentos feitos com 30 indivíduos saudáveis. Em uma série de testes, eles apresentaram

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Neurofisiologia

Efeitos

da aversão Situação que causa repulsa aumenta atenção e percepção visual

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a cada participante uma sequência ultrarrápida de fotos, composta por três tipos de imagem: quadrados pretos e brancos embaralhados; um rosto; e uma paisagem (casa ou edifício). Cada bateria durava dois segundos, nos quais as imagens apareciam em ordem variável e por apenas 100 milissegundos. Ao final de cada sequência, quem assistia à exposição tinha de identificar de quem era o rosto (Andy, Bill ou Chad) e qual o tipo de edificação apresentado. Um detalhe: a imagem de uma das três faces sempre aparecia entre 200 e 500 milissegundos antes da foto da paisagem. Cegueira momentânea - Pessoa e sua equipe em Indiana já sabiam, a partir de trabalhos feitos por outros grupos, que a tendência dos participantes desse tipo de teste é quase sempre identificar a primeira imagem-alvo – no caso, o rosto – e não registrar a segunda. Jane Raymond, Kimron Shapiro e Karen Arnell, pesquisadores canadenses que descreveram esse fenômeno em 1992, deram-lhe o nome de attentional blink, ou piscada atencional, uma espécie de desatenção ou cegueira momentânea – a pessoa vê a imagem, mas não a registra, como se tivesse piscado. Os pesquisadores de Indiana resolveram então sofisticar o teste, a fim de investigar como a emoção influencia o comportamento. Em vez de só apresentar a sequência de imagens, enquanto registravam a atividade cerebral com um aparelho de ressonância nuclear magnética, incluíram uma nova fase: numa etapa inicial de sensibilização, os participantes recebiam um choque elétrico bastante leve, cuja intensidade era controlada pelo próprio voluntário, sempre que aparecia a foto de uma casa ou de um edifício (a segunda imagem-alvo). “Por ser aversivo, o choque adiciona um componente emocional ao experimento”, explica Pessoa. Os participantes que receberam a descarga elétrica associada à imagem da casa durante a sensibilização identificaram-na em 72% das vezes em que foi mostrada, ao passo que viram o edifício em apenas 62% dos casos. Quem levou choque ao ver o edifício passou


reprodução francisco de Goya, peregrinação a San Isidro (detalhe), 1820-23, Museu do Prado/Madri

a identificá-lo com mais frehá 10 anos nos Estados UniMais alerta: conteúdo dos. “Mesmo pequeno, esse quência do que notava a casa, emocional segundo artigo publicado onaumento já foi mensurável e facilita a intenso o suficiente para mo-line em setembro nos Proceerecordação dings of the National Academy dificar o comportamento.” de imagem Indícios de que o procesof Sciences (PNAS). Já se sabia que as pessoas têm melhor samento de imagens com memória e mais percepção conteúdo emocional passa primeiro pela amígdala levaram o gruvisual de imagens que carregam algum conteúdo emocional. Faltava, porém, po de Pessoa a concluir que a ativação mais intensa dessa região cerebral em descobrir por que isso acontecia. forma de amêndoa amplifica o funAcompanhando o funcionamento cerebral durante os testes, a equipe de cionamento do córtex visual. Pessoa verificou que o estímulo emoO córtex visual mais ativo, por sua cional aumentou o nível de atividade vez, favorece a identificação de sinais da amígdala – em especial da amígdavisuais de perigo no ambiente. Manla direita – e do córtex visual. “Houve tido ao longo da evolução de diversas um aumento sutil no funcionamento espécies – dos seres humanos inclusive –, esse circuito neuronal deve ter da amígdala e do córtex visual”, explica o neurocientista brasileiro, que vive favorecido a sobrevivência em situa-

ções adversas, comenta o pesquisador brasileiro. Em alguns casos, porém, esse sistema que funciona como protetor pode se voltar contra quem deveria proteger. “Como a amígdala está mais ativa em pessoas com problemas de ansiedade, como a fobia de aranhas”, comenta Pessoa, “é provável que elas identifiquem mais facilmente no ambiente imagens que passariam despercebidas para outros”. n

Ricard o Zorzet to > Artigo científico LIM, S.L. et al. Segregating the significant from the mundane on a moment-tomoment basis via direct and indirect amygdala contributions. PNAS. no prelo. PESQUISA FAPESP 164

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Botânica

Lá *no

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* alto* serra *

da

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Plantas raras crescem isoladas principalmente em terras altas Carlos Fioravanti

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Marcelo Trovó

E

m janeiro do ano passado Alessandro Rapini com seu grupo da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia, reencontrou no município mineiro de Santana do Riacho, na serra do Cipó, alguns exemplares de uma erva de 15 centímetros de altura com flores rosadas crescendo em meio ao capim. Era a Hemipogon abietoides, que não era vista desde 1825, quando os naturalistas da expedição Langsdorff passaram por uma estrada para Diamantina atualmente fechada para veículos. Nessa mesma região os botânicos viram também uma espécie de arbusto de flores creme, a Minaria hemipogonoides, considerada extinta havia alguns anos. As duas espécies redescobertas integram o mais amplo levantamento sobre plantas praticamente desconhecidas do país: o livro Plantas raras do Brasil (editores Conservação Internacional e Universidade Estadual de Feira de Santana, 496 páginas.). A obra reuniu 170 especialistas de 55 instituições de pesquisa nacionais e estrangeiras e apresenta 2.291 espécies confinadas a áreas de no máximo 10 mil quilômetros quadrados (o equivalente a um quadrado de 100 quilômetros de lado). A maioria, porém, está limitada a áreas ainda menores e algumas só são encontradas em um único lugar: uma erva da mesma família dos bambus, com 30 centímetros de altura, a Melica riograndensis, cresce apenas no município gaúcho de Uruguaiana, enquanto a Cissus pinnatifolia, trepadeira de flores vermelhas das matas próximas ao mar, em Santo Amaro das Brotas, Sergipe. Muitas são bem peculiares, como um cacto com flor cuja haste é azul e uma flor que parece algo entre uma rosa e uma orquídea. Algumas regiões, por reunirem condições Paepalanthus específicas de clima e solo, são ricas em espéglobulifer, cies raras. É o caso dos arredores do município uma das de Datas, no planalto de Diamantina, ao norte muitas de Belo Horizonte, com quase 90 espécies, e plantas raras de toda a serra do Cipó, também em Minas na serra Gerais, com quase o dobro. Minas é o estado do Cipó, em Minas Gerais com maior número de espécies de plantas ra-


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ras: 550. Seguem Bahia com 484, Rio de Janeiro com 250, Goiás (incluindo Distrito Federal) com 202, Amazonas com 164, Espírito Santo com 135 e São Paulo com 123. As plantas raras são mais comuns em lugares altos, como os campos rupestres – vegetação aberta que cresce sobre terrenos rochosos ou pedregosos – da Cadeia do Espinhaço, em Minas e Bahia, e da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Estão também nas florestas úmidas da Amazônia Central e da Mata Atlântica, do sul da Bahia até o Paraná, passando pelas serras do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Entre canaviais - A abundância de

plantas raras nessas regiões tem outra explicação. Além de contarem com solo e clima adequados, essas áreas têm sido intensamente estudadas por botânicos por apresentarem uma riqueza natural notável ou estarem próximas de cidades. As matas da serra de Petrópolis, por exemplo, visitadas por naturalistas desde os tempos do imperador Pedro 58

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Nigel Taylor

Élvia Rodrigues de Souza

II, guardam pelo menos 52 cinco anos, vivendo sobre uma enorme espécies que provavelmente canela-de-ema, a Vellozia gigantea, em só vivem por lá. Algumas uma região da serra do Cipó. “Chegaáreas são refúgios naturais mos ao século XXI descrevendo novas para espécies raras, como os espécies”, diz Barros. “É um sinal de que campos de Altinópolis, cercaainda temos muito a conhecer sobre dos por canaviais e indústrias nossa flora, mesmo de grupos bastante da região de Ribeirão Preto, estudados como o das orquídeas.” em São Paulo. Lá está a Xyris Linhagens raras - Rapini começou a longifolia, redescoberta após acreditar que as plantas raras possam esmais de um século sem coletar geneticamente relacionadas entre si tas. Mesmo em lugares acessíveis essas plantas podem depois de identificar grupos de espécies – e não apenas espécies isoladas – raras. passar despercebidas. “Só especialistas as reconhecem “São grupos que evoluíram confinados como raras, e nem sempre a áreas relativamente reduzidas e, ao se na hora”, diz Rapini, um dos diversificarem, geraram espécies raras editores do livro, coordenae proximamente relacionadas entre si.” do por Ana Maria Giulietti, Das cerca de 20 espécies de Minaria, ex-pró-reitora de Pesquisa da um gênero da família das Apocináceas UEFS, e por José Maria Carque está sendo estudada geneticamente doso da Silva, vice-presidente pela equipe da UEFS, mais da metade ocorre em áreas isoladas da Cadeia de ciência da Conservação Internacional do Brasil. do Espinhaço. Em outra família, a das Como raridade implica Melastomatáceas, a maioria das 35 esfragilidade, muitas espécies pécies do gênero Marcetia é exclusiva listadas no livro estão ameada Chapada Diamantina. No entanto, nem sempre é possível estabelecer as çadas de extinção e algumas delas talvez já tenham desapaafinidades evolutivas. Em duas espérecido. “Será que a Anathallis cies de Paepalanthus que vivem apenas guarujaensis ainda existe?”, um ano as regiões do genoma (material genético) comumente utilizadas nesse questiona Fábio de Barros, pesquisador do Instituto de tipo de estudo foram insuficientes para Botânica de São Paulo. Essa espécie – definir relações de parentesco. uma orquídea de 3 centímetros de alOs botânicos trabalham para saber exatamente por que regiões como os tura e flores de 6 milímetros – foi vista pela última vez em 1938 nas matas hoje campos rupestres da Cadeia do Espiurbanizadas da ilha de Santo Amaro, no nhaço concentram mais espécies raras município de Guarujá, por Frederico que outras. Em busca de explicações, Carlos Hoehne, fundador do Jardim Luciano Paganucci de Queiroz, profesBotânico de São Paulo. sor da UEFS e um dos coordenadores As orquídeas formam um grupo (ou do livro, e pesquisadores de outras três família) com cerca de 2.600 espécies universidades da Bahia compararam brasileiras, das quais 1.800 exclusivas de geneticamente oito grupos de plantas ambientes específicos, principalmente com várias espécies exclusivas da Cadeia do Espinhaço, incluindo orquí­ a Mata Atlântica. Barros participou do deas, cactos e árvores. Os resultados grupo de especialistas que identificou preliminares indicam que as linha72 espécies de orquídeas raras no país. gens mais antigas começaram a surgir A maioria é pequena, mas há também a partir de 20 milhões de anos atrás – encorpadas, como a Adamantinia miltonioides, com flores róseas, as linhagens mais recentes há 4,5 milhões de anos, quando reconhecida apenas em 2004, Calliandra a 1.300 metros de altitude, grupos especializados de grahygrophila, míneas também começaram no município baiano de com flores Mucugê. A Grobya cipoensis, a se diversificar no Cerrado. de novembro raridade da serra do Cipó, Os botânicos concluíram a fevereiro com 20 centímetros de altura que a descontinuidade das em Mucugê e flores amarelas de 5 censerras e o mosaico de ame Ibiquara, tímetros, foi identificada há bientes devem ter propiciado na Bahia


Frank Almeda

Lavoisiera o isolamento geográfico de altura que cresce macrocarpa, populações de plantas, favopróximo ao mar, arbusto de e a maior tem 2,5 recendo a diversificação de flores vistosas alguns grupos. milhões de hectaem Congonhas res, no rio Iça, um Por iniciativa de Cardodo Norte e dos afluentes do so, da Conservação InternaSantana Solimões, no estacional do Brasil, que em 1998 do Riacho, publicou um estudo explodo do Amazonas. Minas Gerais Cardoso acredi­ ratório sobre conservação ta que as 752 áreas de aves e plantas no Cerradeveriam ser indo, e sob liderança científica cluídas nos planos de conserde Ana Maria Giulietti, os botânicos vação ambiental do governo formaram uma força-tarefa e concenfederal. Outras instâncias e traram os esforços para encontrar espégrupos também podem agir. cies de distribuição geográfica restrita, “Em muitos casos”, diz ele, “as com base em levantamentos de campo prefeituras é que têm de tomar já feitos. Depois de todas as espécies tea iniciativa, porque muitas esrem sido listadas, uma parte da equipe pécies estão restritas a muniaplicou as coordenadas geográficas em cípios”. O levantamento e os que cada espécie foi encontrada sobre mapas podem servir de arguum mapa de microbacias hidrográficas. mento para evitar a construEmergiram daí 752 áreas-chave para ção de condomínios e outras formas de biodiversidade, assim chamadas por ocupação nas áreas com plantas raras. apresentarem pelo menos uma plan“A ocorrência de plantas raras é um dos ta rara. Somadas, essas áreas chegam itens que justificam o embargo de um a 140 milhões de hectares (1 hectare são 10 mil metros quadrados). A menor pedido de desmatamento”, diz Barros. “Conseguimos mobilizar a comunidelas ocupa 327 hectares na ilha das dade científica”, conta Queiroz. Agora Almas, no município de Parati, Rio de todo o livro, com as descrições resuJaneiro, refúgio exclusivo da Aureliamidas das plantas, agrupadas em 108 na darcyi, arbusto de até 3 metros de

famílias, e os mapas com as áreas-chave para conservação da biodiversidade, encontra-se no site <www.plantasraras. com.br>. Lá está também um espaço para envio de mensagens que tem atraído interessados. “Já apareceram mais botânicos querendo contribuir com informações sobre outros grupos de plantas raras”, conta Queiroz. n

Cipocereus pleurocarpus, cacto de até 1,5 metro de altura dos campos rupestres da serra do Cipó


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias n

Espaço urbano

presas da região, discutindo qual a explicação para o fato de estas raramente estarem nos setores classificados como de alta tecnologia. Para buscar essa explicação, o artigo percorre vários autores que se debruçaram sobre o tema detendo-se, principalmente, naqueles que fizeram comparações com outras regiões do globo, mormente os países asiáticos, tendo em vista caracterizar os aspectos geográficos decisivos para a ocorrência de inovações. O resultado, segundo o autor, é altamente preocupante, pois são raras as empresas da América Latina que conseguem projeção mundial e as mesmas, quase sempre, fazem parte de setores da economia de conteúdo tecnológico muito baixo.

O texto “Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada”, de Mariana Cavalcanti, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, constitui uma análise etnográfica do fenômeno da consolidação de favelas no Rio de Janeiro contemporâneo concebido como resultado da justaposição de dois processos sócio-históricos aparentemente contraditórios. O primeiro foi a substituição, pelo Estado, de programas de remoção por programas de urbanização, que deu origem a um boom na construção civil e à mercantilização sem precedentes do espaço das favelas, segundo a autora. O segundo processo foi a apropriação do espaço da favela pelo tráfico de drogas, que produz e reforça as fronteiras físicas, sociais e simbólicas entre a favela e o dito “asfalto”, de acordo com o estudo. Esse contexto é explorado pelas autoras a partir de uma concepção da casa como fato social total: a passagem do barraco de estuque à casa de alvenaria (convertida cada vez mais em “fortaleza”) torna legível a maneira pela qual o espaço da favela, e sobretudo da casa, constitui-se como processo, projeto de futuro e instância produtora de valores, tanto monetários como subjetivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais – vol. 24 – nº 69 – São Paulo – fev. 2009

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O artigo “O atraso tecnológico da América Latina como decorrência de aspectos geográficos e de fatores microeconômicos interligados”, de Paulo Roberto Feldmann, Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, trata da relação entre as condições geográficas de uma determinada região e o surgimento de inovações. O texto aborda o problema olhando para as maiores em-

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OUTUBRO DE 2009

Economia e Sociedade – vol. 18 – nº 1 – Campinas – abr. 2009

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História

O papel da mulata no palco Com base na trajetória de Júlia Martins e Otília Amorim, Antonio Herculano Lopes, da Fundação Casa de Rui Barbosa, analisa no artigo “Vem cá, mulata!” como o personagem da mulata no teatro musical do Rio de Janeiro de princípios do século XX foi aos poucos exigindo a presença de corpos mestiços que o representassem. De acordo com o estudo, esse processo foi marcado por dificuldades da sociedade carioca com questões de gênero, raça e classe e se articulou com a criação de uma identidade “mestiça” para a cidade e para o país. Tempo – vol. 13 – nº 26 – Niterói – 2009

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Saúde

Controle da dengue

Economia

Atraso tecnológico

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Leszek Wasilewski

Favelas do Rio

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O estudo “Avaliação do Plano Nacional de Controle da Dengue”, de José Eduardo Marques Pessanha, Waleska Teixeira Caiaffa, Cibele Comini César e Fernando Augusto Proietti, da Universidade Federal de Minas Gerais, teve como objetivo descrever os padrões das epidemias de dengue após a implantação do plano nacional e avaliar os resultados, considerando, como parâmetro, as metas alcançadas em municípios definidos como prioritários. Para tanto, foram feitos estudos descritivos dos indicadores epidemiológicos após a implantação do plano e


Cadernos de Saúde Pública – vol. 25 – nº 7 – Rio de Janeiro – jul. 2009

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Antropologia

Prostitutas americanas O trabalho “As American girls: migração, sexo e status imperial em 1918”, de Thaddeus Gregory Blanchette e Ana Paula da Silva, do Centro Universitário Augusto Motta, do Rio de Janeiro, baseado em pesquisas históricas nos documentos do consulado americano no Rio de Janeiro, analisa um caso envolvendo a prostituição de mulheres norte-americanas naquela cidade, em 1918. Tachadas pelo cônsul norte-americano como “escravas brancas”, as dançarinas da companhia de burlesque Baxter and Willard Company quase foram expulsas do Brasil por causa de suas atividades como prostitutas. Os autores analisam a história delas à luz das pressões políticas e sociais da época. Horizontes Antropológicos – vol. 15 – nº 31 – Porto Alegre – jan./jun. 2009

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Enfermagem

Brinquedo terapêutico Mariana Toni Kiche e Fabiane de Amorim Almeida, da Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, compararam as reações manifestadas pela criança durante o curativo realizado antes e após o preparo emocional com o brinquedo terapêutico instrucional no artigo “Brinquedo terapêutico: estratégia de alívio da dor e tensão durante o curativo cirúrgico em crianças”. Os comportamentos da criança e a avaliação da dor foram considerados durante o curativo em dois momentos: antes e após o brinquedo terapêutico. Comportamentos indicativos de maior adaptação e aceitação ao procedimento tornaram-se mais frequentes após o brinquedo, ao contrário daqueles que indicavam menor adaptação e aceitação. Os escores de dor também diminuíram após o brinquedo terapêutico. De

eduardo cesar

análise estatística considerando as taxas de incidência de dengue do período anterior, dados climáticos, demográficos e socioeconômicos utilizando regressão linear e múltipla. Os autores detectaram associação estatisticamente significativa entre a ocorrência de dengue no período pós-plano (2003-2006) e a incidência pré-plano (2001-2002), após ajuste para indicadores geográficos e climáticos. Os resultados indicam que não foram integralmente alcançadas as metas estabelecidas. De acordo com os pesquisadores, a situação atual da doença, com repetidas epidemias sazonais, sugere a necessidade de alterações nas estratégias atualmente utilizadas e aprimoramento das ações de vigilância.

acordo com o artigo, o brinquedo é uma boa estratégia na redução do medo, da tensão e da dor. Acta Paulista de Enfermagem – vol. 22 – nº 2 – São Paulo – 2009

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Física

Poucas mulheres O número de mulheres na física é pouco representativo, seja na pesquisa governamental, na indústria ou no meio acadêmico. Na maioria dos países, entre 10% e 12% dos profissionais do campo da física, nos últimos 100 anos, são mulheres. A situação não tem se alterado significativamente nos últimos tempos. Uma discussão na revista Physics Today perguntava se essa seria, de fato, uma questão relevante. O artigo “Mulheres na física: poder e preconceito nos países em desenvolvimento”, de D. A. Agrello e R. Garg, da Universidade de Brasília, faz uma revisão do atual status da mulher na física. Nele são discutidas as razões pelas quais a física necessita de mais mulheres e sugeridas algumas estratégias para melhorar a situação atual. Revista Brasileira de Ensino de Física – vol. 31 – nº 1 – São Paulo – abr. 2009

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Dermatologia

Custo do melanoma O objetivo do estudo “Estimativa do custo do tratamento de câncer de pele tipo melanoma no estado de São Paulo” foi avaliar o custo direto de diagnosticar e tratar em seus diversos estádios o melanoma cutâneo em número de casos ocorridos em São Paulo, entre 2000 e 2007. Os autores são Reynaldo José Sant’Anna Pereira de Souza, do Hospital do Câncer de Ribeirão Preto, Adriana Prest Mattedi, Marcelo de Paula Corrêa e Etiene Marques Duarte, da Universidade Federal de Itajubá, e Marcelo Lacerda Rezende, da Universidade Federal de Alfenas. Os custos estimados se baseiam nos valores do tratamento médico pagos pelo setor público (Sistema Único de Saúde - SUS) e pelo setor privado (convênios) em 2007. Foram analisados 2.740 casos no período estudado. O custo total de tratamento dos melanomas malignos diagnosticados no estádio inicial, em valores de 2007, foi estimado em R$ 33.012.725,10 para o SUS e R$ 76.133.662,80 para os convênios. Os resultados apresentados reforçam o argumento de que o diagnóstico do melanoma cutâneo em seus estádios iniciais reduz os custos de tratamento, gerando considerável economia tanto para o sistema público de saúde quanto para o sistema privado. Anais Brasileiros de Dermatologia – vol. 84 – nº 3 – Rio de Janeiro – jul. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

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lINHA DE PRODUÇÃO mundo

No lugar de silício, nanotubos Célula solar de carbono. Assim são as novas de nanotubos células solares criadas na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. A vantagem do novo material é a alta eficiência na conversão de energia solar em eletricidade, quando comparada às células solares convencionais, baseadas em silício, e mesmo às células solares orgânicas, que possuem carbono em sua composição. O segredo do aumento de eficiência reside na excepcional condutividade elétrica dos nanotubos de carbono e a forma como eles conduzem e multiplicam os elétrons, economizando energia da luz solar durante o processo. Os cientistas usaram nanotubos de parede única (uma folha de átomos de carbono enrolada), com a dimensão aproximada de uma molécula de DNA, para construir um fotodiodo, um tipo muito simples de célula solar (Science, 11 de setembro). Em cada extremidade do nanotubo foram presos dois contatos elétricos e colocados juntos a conectores com cargas positiva e negativa. Apesar da viabilidade do protótipo, ainda existem obstáculos para sua produção comercial, entre eles a fabricação de nanotubos em série e a manipulação individual desses dispositivos. Os pesquisadores de Cornell contaram com colegas da Universidade de Michigan e do Instituto Nacional para Nanotecnologia da Universidade de Alberta.

A China deverá investir largamente em usinas eólicas nos próximos anos para diminuir a emissão de dióxido de carbono (CO2) no uso de carvão para gerar eletricidade, prática que corresponde a cerca de 80% do atual consumo chinês. Essas usinas deverão cobrir uma área de 0,5 milhão de quilômetros quadrados (SciDev) e serão espalhadas pelo território chinês, devendo suprir toda a demanda de energia elétrica daquele país projetada para 2030, segundo um estudo publicado na revista Science (11 de setembro) de pesquisadores norte-americanos, da Universidade 62

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Harvard, e chineses da Universidade de Tsinghua. Na China a necessidade de energia elétrica cresce cerca de 10% ao ano. Os pesquisadores utilizaram dados meteorológicos e econômicos para demonstrar que o vento poderia

> Formigas digitais

abastecer sete vezes a soma da energia usada atualmente pelos chineses. O investimento deverá ser de US$ 900 bilhões em 20 anos e o custo de quase US$ 0,08 por quilowatt-hora de eletricidade pelos próximos 10 anos. Eclipse.sx/wikimedia commons

> Ventos da China

Energia eólica substitui carvão

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Olhar para a natureza pode ser uma fonte de inspiração na busca por sistemas de proteção mais eficientes contra as crescentes ameaças digitais que assolam a vida dos donos de computadores. Inspirados no comportamento associativo das formigas, que deixam um rastro no solo para mostrar o caminho a ser seguido por outros membros da colônia, pesquisadores do Pacific Northwest National Laboratory, nos Estados Unidos, estão testando uma estratégia semelhante para combater pragas virtuais que infectam redes interligadas de micros. A ideia é criar um


> Ultrassom nas microalgas As algas marinhas ganharam o mundo primeiro com o sushi da culinária japonesa. De uns tempos para cá, as algas estão cada vez mais presentes nos laboratórios onde se pesquisam biocombustíveis. Uma das mais recentes

novidades é o licenciamento de uma tecnologia de ultrassom do Laboratório Nacional Los Alamos (Lanl, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, pela empresa Solix Biofules, do mesmo país. Ela vai utilizar

Um dispositivo dotado de um sensor óptico do tamanho de um selo postal e um painel com 36 pequenas luzes de cores diferentes é capaz de detectar rapidamente gases tóxicos que podem contaminar certos ambientes de trabalho, sobretudo os frequentados por funcionários da indústria química. Em desenvolvimento pelo National Institute of Environmental Health Sciences, dos Estados Unidos, esse tipo de nariz eletrônico conseguiu identificar em menos de dois minutos a maior parte de um grupo de 19 compostos que são perigosos à saúde humana se presentes em altas concentrações. Cada tipo de gás, como a amônia e o dióxido de enxofre, faz o aparelhinho, feito de materiais baratos, acender um conjunto distinto de luzes e está associado a um padrão específico de cores. A meta dos pesquisadores, que publicaram um artigo sobre o tema na revista Nature Chemistry de setembro, é criar um sensor que possa ser embutido na roupa de trabalhadores constantemente expostos a locais com risco maior de contaminação.

magnético

A nova geração de dispositivos eletrônicos, entre eles os chips, poderá ser baseada no grafono, um nanomaterial semicondutor magnético derivado do grafeno, material que é 200 vezes mais resistente que o aço, além de ter propriedades ópticas e elétrons com alta mobilidade. O feito coube a um consórcio de pesquisadores da Universidade Commonwealth Virginia, nos Estados Unidos, Universidade Tonoku, no Japão, Universidade de Pequim e Academia de Ciência Chinesa, ambos na China, que usaram modelagem computacional para projetar o design do novo material. A principal conquista foi tornar o grafeno magnético, o que potencializa aplicações no campo da spintrônica, área que explora o spin do elétron para processamento de dados.

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Ilustrações laurabeatriz

exército composto de 3 mil tipos de formigas digitais, cada uma delas programada para procurar por pistas de inimigos ocultos no sistema. Quando uma sentinela eletrônica encontra evidências de que há um agente invasor num ponto da rede, ela deixa marcas digitais sinalizando o caminho que leva à potencial infecção. Rastros mais fortes num local do sistema atraem um número maior de formigas e funcionam como um alerta que auxilia a localizar rapidamente o agente invasor. A abordagem obteve sucesso em combater um vírus que fora introduzido de propósito pelos cientistas numa rede de 64 computadores.

> Novo semicondutor

sensor detecta gás tóxico

eduardo cesar

Exército combate pragas que invadem computadores

ondas de som para extrair e aglutinar os lipídios, ou gorduras, de microalgas para produção de um óleo que ao ser refinado pode resultar em biodiesel, gasolina ou querosene de aviação. Esse método dispensa altos gastos com energia elétrica pelo processo convencional, por meio de centrífugas, e deixa de utilizar solventes potencialmente perigosos para o ambiente. O ultrassom concentra as células de algas já colhidas em uma densa massa para ser processada. Uma das vantagens na produção de algas para biocombustíveis é o rápido crescimento desses microrganismos, de cinco a sete dias.

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lINHA DE PRODUÇÃO brasil

Uma estrutura com­ putacional de alto desempenho formada por 2.944 unidades de processamento que tem capacidade de processar 33,3 teraflops, equivalente a 3 trilhões de cálculos por segundo. Esse é o Programa de Integração da Capacidade Computacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), conhe­cido como GridUnesp, que Processamento para várias áreas do conhecimento começou a funcionar em setembro. O complexo computacional vai servir > Teste rápido a vários campos de investigação científica, como proces para gripe suína samento e armazenamento de dados de sequenciamentos genéticos, previsão do tempo, modelagem molecular e celular Um novo método e desenvolvimento de materiais. O que certamente será mais de diagnóstico rápido solicitado é o da física de altas energias, área de atuação do e de baixo custo, capaz coordenador do GridUnesp, o professor Sérgio Ferraz Novaes, de detectar em menos do Instituto de Física Teórica (IFT) da universidade. A equipe de cinco minutos de Novaes é uma das 140 espalhadas pelo planeta, em 33 o vírus da gripe suína, países, que participam do experimento Large Hadron Collider (LHC), na Organização Europeia para Pesquisa Nuclear foi desenvolvido por pesquisadores do (Cern), na divisa da Suíça com a França, que vai gerar bilhões Departamento de Física de dados. A rede de aglomerados computacionais possui da Universidade Federal 2.048 unidades no campus da Barra Funda, em São Paulo, e os demais em seis cidades no interior paulista. de Pernambuco (UFPE),

ALTO DESEMPENHO

UNESP

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liderados pelo professor Celso Melo. O teste, chamado Elinor, se baseia no uso de nanopartículas fluorescentes, que servem como marcadores moleculares da presença de material genético de patógenos presentes no sangue extraído do paciente. A técnica não necessita da amplificação do material genético, já que o nanocomposto colocado em contato com uma amostra infectada é suficiente para gerar uma luminosidade intensa que 64

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pode ser vista facilmente com um microscópio de fluorescência. Além de detectar o vírus H1N1, o método pode ser usado para verificação de doenças como a dengue e o papiloma vírus humano (HPV). Testes de laboratório feitos pelos pesquisadores no ano passado mostraram que o método se mostrou 100% eficaz para o diagnóstico do HPV e 70% para a dengue (SciDev).

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> Orégano baixa glicose Bastante utilizado na culinária por dar um toque especial a molhos, massas e pizzas, o orégano demonstrou em testes ter potencial para baixar os níveis de glicemia do sangue, um problema para os diabéticos. Na pesquisa, feita na Universidade de Franca, no interior paulista, do óleo essencial da erva aromática foi extraído o ácido rosmarínico, um dos vários componentes presentes na planta. Nos ensaios com camundongos diabéticos, conduzidos pela equipe coordenada pelos professores Carlos Martins e Wilson Roberto Cunha, foi feita uma comparação entre a eficácia da substância isolada da planta e de um medicamento comercial. “O princípio ativo isolado demonstrou ser mais eficaz do que o medicamento testado”,


diz Martins. O resultado obtido levou a universidade a entrar com um registro de patente nacional e outro internacional para o processo de obtenção do ácido rosmarínico e compostos para o tratamento de diabetes. “A Herbarium, empresa de fitoterápicos, já nos procurou para assinar um termo de confidencialidade”, relata.

> Diagnóstico integrado Uma solução simples e de baixo custo, que permite a digitalização de imagens do tórax para acelerar o diagnóstico da tuberculose feito remotamente, via internet, foi criada por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) para o projeto de telediagnóstico TIPIRX, coordenado pela professora Alexandra Monteiro, da Faculdade de Ciências

> Luz e eletrodos para resíduos Contaminantes orgânicos da indústria de couros podem ser removidos com o uso de processos fotoeletroquímicos, como mostra pesquisa realizada pela química Carla Regina Costa, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Como os curtumes utilizam cloreto de sódio nos seus processos, os efluentes têm elevada salinidade e alta condutividade, condições ideais para a utilização de processos eletroquímicos. O sistema é composto por dois eletrodos –

Veículos elétricos em alta

Um caminhão elétrico de cabine dupla, com autono­ mia para rodar 100 quilômetros, está sendo desenvolvido pela Itaipu Binacional em parceria com a Iveco, subsidiária da Fiat para veículos de carga. Batizado de Daily Elétrico, o caminhão utiliza três baterias e foi projetado para atender às necessidades de cooperativas agrícolas que produzem energia com biomassa e querem usar os excedentes para locomoção. O veículo com carga completa de 2,5 toneladas atinge a velocidade máxima de 70 quilômetros por hora. Vazio, chega a 85 quilômetros por hora. A recarga completa das baterias, feitas à base de sódio, níquel e cádmio, é feita em oito horas. O caminhão elétrico é a segunda fase da parceria iniciada em 2006 entre a Itaipu Binacional e a Fiat Automóveis, que resultou em um carro elétrico. Atualmente 30 protótipos já estão sendo testados pela Fiat, que se prepara para lançar um modelo comercial em 2011. A demanda por carros elétricos tem crescido também entre os consumidores brasileiros. Hoje as motos elétricas respondem por uma frota de 300 unidades no país, das quais 180 no Rio de Janeiro, onde ainda circulam cerca de 20 automóveis com a mesma característica. Para atender a esse mercado, a Petrobras Distribuidora inaugurou na cidade o primeiro posto para recarga de veículos elétricos a partir de energia solar. Com capacidade para gerar até 100 quilowatts de energia por mês, o eletroposto utiliza tecnologia nacional. Equipado com um painel fotovoltaico de 30 metros quadrados, instalado no telhado do local, o posto tem três tomadas de recarga. Se a luz solar não for suficiente para atender à demanda, a energia é fornecida pela rede elétrica.

PETROBRAS

Miguel Boyayan

Composto do orégano foi isolado para testes

Médicas e coordenadora do Laboratório de Telessaúde da universidade. O processo utiliza um scanner de baixo custo em conjunto com um software original – o ScanX –, que pode ser operado por leigos. Basicamente, um exame de raios X em filme convencional é escaneado em quatro partes – procedimento necessário por causa do tamanho do filme – e a imagem é automaticamente “costurada”, formando uma imagem digital completa. O arquivo é compactado, para que possa ser transmitido de locais com conexões lentas à internet. A solução possibilita o acesso a exames e médicos para pessoas que moram em lugares sem esses recursos. O projeto, apoiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), tem como foco o Programa Telessaúde Brasil, do qual a Uerj é o núcleo no estado do Rio de Janeiro.

Eletroposto movido a energia solar

o ânodo, responsável pelas reações de oxidação, e o cátodo, de redução. Essas duas reações são fundamentais para a redução da matéria orgânica em dióxido de carbono

e água. No processo fotoeletroquímico, o ânodo é submetido à incidência de luz, o que resulta na degradação dos compostos organoclorados, que são potencialmente tóxicos.

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novos materiais

Ourivesaria

colorida

Pó de ouro misturado a outros metais resulta em ligas de cores variadas para a fabricação de joias Dinorah Ereno


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tecnologia

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Joias multicoloridas produzidas pela Jackie-O (à esq.) e Alluvium (abaixo)

eduardo cesar

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primeira vista, as peças de ouro colorido lembram pedras de cores surpreendentes, que podem mudar de tonalidade conforme a luz incide sobre elas. Azuis em vários matizes, púrpura furta-cor e outras cores são obtidas em um inovador processo que, em vez da fundição usada na joalheria tradicional, utiliza uma técnica de moagem em alta frequência para produzir pós utilizados na fabricação de joias coloridas. Para conseguir o amarelo ou vermelho, o ouro é misturado com prata ou cobre, ligas bastante utilizadas tradicionalmente. Já para a obtenção de cores diferenciadas como púrpura, o ouro recebe a mistura de alumínio. Com a adição de ferro é obtida a cor azul, com cromo o verde-oliva e com cobalto o preto. “A escolha do metal depende da cor desejada”, explica o engenheiro metalurgista Edval Gonçalves de Araújo, da empresa Jackie-O Joias, que desde 2003 pesquisa a técnica para a obtenção do ouro colorido, inicialmente em parceria com o também engenheiro metalurgista Ricardo Mendes Leal Neto e a física Eneida da Graça Guilherme. “A alteração de algumas condições de processamento permite, por exemplo, obter um verde intenso também com o cobalto”, explica Leal Neto, pesquisador do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e sócio cotista da empresa Alluvium. A mistura do ouro com outros metais é necessária porque o ouro puro, de 24 quilates, é extremamente flexível. “É um metal tão maleável que se apenas 30 gramas de ouro fossem esticados resultariam em um fio superfino com 100 quilômetros de extensão”, diz Araújo. O de 18 quilates, usado na fabricação de joias, é composto por 75% de ouro e 25% de outros metais. A mesma proporção é usada na nova técnica que dispensa a metalurgia de fundição para a obtenção das ligas de ouro. “Os metais que compõem os 25% restantes, em vez de cobre, prata, paládio e platina usados na ourivesaria convencional, foram substituídos por cromo, ferro, cobalto, entre outros”, relata Araújo. A primeira etapa do processo é a formação da liga por meio da moagem de alta energia. Dentro de um moinho vibratório,

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Ouro em vários tons de azul no colar fabricado pela Jackie-O

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Os Projetos 1. Obtenção de ligas de ouro colorido por moagem de alta energia 2. Processo para manufatura de artefatos de ouro colorido

modalidade

1 e 2. Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe) Co­or­de­na­dores

investimentos

1. R$ 325.664,02 (FAPESP) 2. R$ 497.965,02 (FAPESP)

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1. Eneida da Graça Guilherme – Alluvium 2. Edval Gonçalves de Araújo – Jackie-O

pequenas esferas de aço colidem e fornecem energia à mistura de pós para formar a liga no estado sólido. No final de algumas horas cada partícula de pó apresenta a mesma composição química de todo o material. Esse pó que sai do moinho vai para uma prensa onde é compactado a uma pressão de 2 a 7 toneladas por centímetro quadrado, onde são feitas peças no seu formato final ou chapas de 20 por 25 milímetros e 1,3 milímetro de espessura. As peças são aquecidas em forno abaixo da faixa de fusão, etapa denominada sinterização ou queima. No caso das chapas, após a sinterização, elas podem ser laminadas, chegando a até 0,1 milímetro de espessura, e trabalhadas com processos convencionais de ourivesaria para formar as joias. Quando as peças saem do forno elas são brancas. A cor da liga só aparece quando o material recebe tratamentos térmicos em temperaturas que variam de 100 a 700 graus Celsius (ºC), formando óxidos superficiais nas diferentes cores. A mesma peça pode ter uma cor homogênea ou tons dégradés. O processo permite mudar a cor da joia de acordo com o gosto do cliente. Uma aliança branca de noivado, por exemplo, pode ser transformada em dourada no casamento. Ou ainda nas cores púrpura, azul-claro, azul-escuro, cinza e preto. Para que as joias coloridas tenham proteção contra o desgaste natural dos óxidos metálicos, uma resina especial, que funciona como uma espécie de selante, foi desenvolvida para recobrir as peças prontas. Uma das vantagens em utilizar a técnica de moagem de alta energia na fabricação de joias é a obtenção de ligas que, pelas técnicas tradicionais de fundição, necessitariam de temperaturas de fusão completamente diferentes. Se no processo de fundição convencional fossem utilizados metais como ferro, cobalto e níquel, a temperatura de fusão seria superior a 1.200 ºC. Já com o pó da liga produzido por moagem a temperatura de sinterização fica em torno de 1.000 ºC. Com a moagem de alta energia técnica, também conhecida como mechanical alloying, é possível produzir várias ligas metálicas. A técnica faz parte de uma área conhecida como metalurgia do pó e é usada, por exemplo, na fa-


Alta energia - Araújo aplicou o pro­

cesso de moagem de alta energia durante o mestrado feito no Ipen, no começo da década de 1990. A técnica foi escolhida por ele para a produção de um agente expansor para argamassas feito a partir de escória de alumínio, destinado à construção civil, projeto apoiado pela FAPESP, iniciado em 2001 e encerrado em 2002 (ver Pesquisa FAPESP nº 81). Leal Neto trabalhou com compostos intermetálicos, categoria em que se enquadram algumas ligas de ouro coloridas, durante o seu doutoramento no Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais do Ipen, iniciado em 1993. Os dois juntaram os conhecimentos na área e, em parceria com Eneida Guilherme, criaram a empresa Regulus Ars com o intuito de obter ligas de ouro colorido, projeto financiado pela FAPESP na modalidade Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe), iniciado em novembro de 2003. Na primeira fase eles conseguiram obter pós e pequenas amostras sólidas nas cores azul, vermelha e púrpura. Quando o projeto passou para a segunda fase, a empresa se instalou no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), sediado no Ipen, no campus da Universidade de São Paulo, na capital paulista. Paralelamente um outro projeto Pipe, coordenado por Araújo, para a fabricação de artefatos de ouro colorido, foi aprovado em 2004. A parceria entre os sócios da Regulus foi desfeita em 2006. Duas novas empresas nasceram com essa cisão. Leal Neto e outros sócios criaram a Alluvium, que ficou abrigada no Cietec Pingente de até julho deste ano, ouro colorido e deram continuifeito pela Alluvium dade ao primeiro

eduardo cesar

bricação de peças de carros. Para essa finalidade, os pós de aço, ferro e bronze são compactados em uma prensa hidráulica de alta tonelagem para moldar a peça, que segue então para um forno com atmosfera controlada para sinterização do material. A partir daí são feitas as operações de acabamento e a peça está pronta. “O processo não é novo, mas ele ainda não tinha sido utilizado para a obtenção de ligas de ouro coloridas”, diz Leal Neto.

projeto Pipe, encerrado em abril de 2008. “Fabricamos algumas joias para demonstrar a viabilidade da técnica”, diz Leal Neto. Araújo criou a empresa Jackie-O, instalada na Incubadora Tecnológica de Empresas de Sorocaba (Intes), no interior paulista. Com a nova empresa, ele deu continuidade ao projeto Pipe que coordenava, encerrado em julho deste ano. O processo para a fabricação dos pós de ouro colorido é o mesmo utilizado pelas duas empresas. Mas a partir daí tanto a Alluvium como a Jackie-O começaram a desenvolver suas próprias ligas e técnicas para a obtenção dos produtos de ouro colorido. Atualmente os sócios da Alluvium estão em busca de colaborações para desenvolver aplicações para o material. “Uma das nossas futuras parcerias deverá ser com a joalheira Silvia Furmanovich”, diz Leal Neto. “Como gosta de trabalhar com novos materiais, ela está muito confiante nas possibilidades de utilização dos pós de ouro colorido em joias diferenciadas.” Além de fabricar insumos para a confecção de joias, a empresa tem como estratégia desenvolver a aplicação do produto em outras áreas, como a cerâmica. Nesse caso, os pigmentos seriam empregados na pintura de azulejos de alto padrão. Na avaliação de Leal Neto, é preciso fazer um trabalho de marketing para que o consumidor conheça o ouro colorido, já que inicialmente os engastes coloridos misturados ao ouro amarelo podem ser confundidos com resinas e outros materiais menos nobres. Araújo também aposta na divulgação para colocar suas peças de ouro colorido no mercado. Em parceria com o ourives Rodolfo Penteado e o engenheiro de materiais Oswaldo Vilela da Silva Junior, desenvolveu uma coleção, composta de brincos, pingentes, colares e alianças. A própria empresa Jackie-O vai se encarregar da produção e distribuição das joias coloridas. “A expectativa é colocar o nosso produto no mercado até o final deste ano”, diz Araújo. Para isso, contratou uma empresa júnior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, que fará o planejamento de comunicação do produto, e a consultoria da Fundação Getúlio Vargas, encarregada da análise mercadológica. n


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ENGENHARIA DE MATERIAIS

Finas e

flexíveis

Pesquisadores brasileiros criam telas multimídia com papel transparente e dobrável Yur i Vasconcelos

S

erá provavelmente dispensável em uma viagem no futuro acomodar o notebook numa pasta ou mochila – bastará dobrá-lo e enfiar no bolso. Esse avanço tecnológico se tornará realidade quando as telas flexíveis de diodos orgânicos emissores de luz, os chamados Foleds (da sigla flexible organic light emitting device), chegarem ao mercado num futuro próximo. Vários fabricantes de equipamentos eletrônicos, como Sony, Philips, Fujitsu, e grupos de pesquisa no mundo perseguem esse objetivo, entre eles uma equipe de pesquisadores brasileiros do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp), do campus de Araraquara, no interior de São Paulo, e do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), no Rio de Janeiro. Recentemente, eles desenvolveram o protótipo de um Foled que utiliza um substrato inédito baseado em biocelulose, uma espécie de papel transparente batizado pelos pesquisadores de biopaper, com transparência superior a 90% na região visível do espectro eletromagnético, o que significa deixar passar quase toda a luz incidida sobre ele. O grupo de pesquisadores, que está elaborando um pedido de patente do dispositivo, apresentou a novidade à comunidade científica internacional em dezembro de 2008 por meio de um artigo na revista Thin Solid Films. Além de computadores de mão, os papéis eletrônicos flexíveis também são esperados para uso em painéis publicitários, revistas e jornais eletrônicos, cardápios de restaurantes e

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Protótipo de tela flexível transparente recebe carga elétrica no laboratório do Inmetro


Inmetro

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Substrato do papel flexível: produção sem resíduos tóxicos

A biocelulose possui maior pureza, cristalinidade e melhor resistência mecânica que a celulose de plantas

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cartazes em lojas, por exemplo. Considerados uma das mais promissoras tecnologias de vídeo e imagem do futuro, os Foleds são uma resposta aos esforços para obtenção de um dispositivo eletrônico que combine as propriedades ópticas do papel, como alta refletividade, flexibilidade e contraste com a capacidade dinâmica das telas digitais convencionais que equipam notebooks, telefones celulares e PDAs, os pequenos computadores de mão usados no comércio e em restaurantes. De início, o substrato mais utilizado para a preparação desses dispositivos foi o vidro, material transparente e com boa resistência mecânica, mas com uma limitação evidente: a dificuldade de se fabricar telas e outros equipamentos flexíveis ou dobráveis, porque o material sofre fraturas com facilidade. A segunda aposta recaiu sobre materiais poliméricos, que permitem a obtenção de sistemas mais leves, flexíveis e portáteis, sem perder a transparência e a resistência necessárias. Diversos polímeros, incluindo o PET, sigla de poli (tereftalato de etileno), acetato de celulose, policarbonato e poliuretano, têm sido usados para a produção de dispositivos flexíveis. O problema é que, além de serem sintéticos ou derivados de petróleo, requerem

diversos tratamentos adicionais para gerar um material ideal e, na maioria das vezes, não são biocompatíveis nem biodegradáveis. As vantagens do substrato baseado em biocelulose criado pelos brasileiros estão relacionadas com o fator ambiental e com o sistema produtivo mais simples, além da matéria-prima renovável. Também chamada de celulose bacteriana (CB), ela é produzida pela bactéria Gluconacetobacter xylinus na forma de mantas altamente hidratadas, com 99% de água e apenas 1% de celulose. Seu processo produtivo não gera resíduos tóxicos ao ambiente como ocorre no método tradicional de produção de celulose. Por ser biodegradável e biocompatível, permite também o uso na fabricação de dispositivos médicos. “Embora possua a mesma estrutura química da celulose de plantas, a biocelulose apresenta, em comparação à sua congênere vegetal, maior pureza, alta cristalinidade e excepcional resistência mecânica”, explica o químico Younés Messaddeq, professor do Laboratório de Materiais Fotônicos (Lamf) do IQ-Unesp. Na preparação final do papel transparente, os pesquisadores incorporaram um sistema híbrido contendo alumina e siloxano, um tipo de polímero à base de silício, à estrutura microfibrilar das membranas de biocelulose. A adição desses compostos eleva a transparência do biopaper, que saltou de um índice próximo a 40% na região visível do espectro eletromagnético para mais de 90%, diz Hernane Barud, doutorando em química do Lamf. A síntese do material híbrido alumina-siloxano fez parte da tese de doutorado do pesquisador José Maurício Almeida Caiut, que é bolsista de pós-doutorado da FAPESP no IQ-Unesp. Luz própria - A biocelulose tem a estru-

tura de uma rede tridimensional de fios de dimensões nanométricas (medidas equivalentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão) – as nanoceluloses – e proporciona um amplo leque de aplicações, que vai da medicina, como substituta temporária de pele em curativos que já estão à venda, produzidos pela empresa Fibrocel, de Londrina, no Paraná, à indústria de alimentos, na fabricação de fibras dietéticas, como a nata de coco,


enquanto o Laboratório de Dispositivos Orgânicos (Lador) da Divisão de Metrologia Científica do Inmetro ficou responsável pela fabricação e caracterização do Foled. “Uma das missões do nosso laboratório é realizar pesquisas metrológicas de novas tecnologias baseadas em materiais orgânicos, além de apoiar a indústria nacional e outros centros de pesquisa no desenvolvimento e na caracterização de materiais”, afirma Cristiano Legnani, pesquisador do Lador. “Desde 2006 estamos desenvolvendo no Inmetro pesquisas em Oleds sob vidro e também sob substratos flexíveis poliméricos, como poliuretano e polieteremida.” Corrida ao sucesso - Foi numa visita

a Araraquara, em 2005, que o pesquisador Marco Cremona, professor do Departamento de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e chefe do Lador, conheceu as pesquisas relativas à biocelulose conduzidas pelos professores Messaddeq e Sidney José Lima Ribeiro. Desse encontro surgiu o interesse em fazer, em conjunto, o dispositivo flexível. Segundo Messaddeq, o uso de biocelulose para fabricação de Foleds é inédito, embora um grupo japonês do Research Institute for Sustainable Humanosphere da Uni-

fotos eduardo cesar

passando por substratos flexíveis para a deposição de Oleds, sigla em inglês para dispositivos orgânicos emissores de luz. A vantagem dos Oleds ante as telas convencionais (plasma, LCDs) atualmente em uso é sua capacidade de produzir luz própria. Sua estrutura baseia-se na colocação de películas orgânicas entre dois materiais condutores. Quando uma corrente elétrica passa por ele, o dispositivo emite luz brilhante, num processo conhecido como eletroluminescência. O protótipo preparado pela Unesp e Inmetro é baseado na fabricação de Oleds sobre um substrato flexível, o biopaper, e tem estrutura semelhante à de um sanduíche. Ele é composto por uma série de filmes nanométricos com propriedades e funções específicas. O substrato, por sua vez, é composto pela biocelulose, uma camada de material condutor e uma camada de dióxido de silício (SiO2) que tem a função de retirar a rugosidade do papel que interfere na condução elétrica do dispositivo. O material condutor é nesse caso um filme de óxido de índio dopado com estanho, composto que leva o nome de ITO, ou indium tin oxide, material usado na fabricação de telas de cristal líquido. Na divisão de tarefas, coube à Unesp a criação da biocelulose e do biopaper,

versidade de Kioto já tenha conseguido desenvolver com sucesso um protótipo que usa um substrato feito com celulose vegetal, embora também não tenha um produto final. Os pesquisadores Marco Cremona, Cristiano Legnani e Welber Quirino também esperam que a inovação criada por eles possa ser usada em terapia fotodinâmica para tratamento de câncer de pele e outras doenças dermatológicas. O uso de um substrato flexível com propriedades biocompatíveis, como a biocelulose, é crucial para o desenvolvimento dessa tecnologia. No método convencional dessa terapia, um medicamento fotossensibilizante é aplicado no paciente e se concentra no tumor, que recebe um foco de luz (laser ou LEDs), resultando na destruição do tecido lesado. Com o Foled, que seria alimentado por uma pequena bateria, menor que a de um celular, a droga seria incorporada ao dispositivo e este colocado sobre a pele. “Como ele emite luz própria, o paciente poderia ir para casa e desenvolver suas atividades normais, sem precisar ficar na clínica recebendo a luz do tratamento convencional”, explica Legnani. Os resultados iniciais do Foled de biocelulose foram, segundo Messaddeq, semelhantes aos de dispositivos similares feitos com vidro, mas ainda é preciso reduzir as rugosidades na superfície das membranas de biocelulose e, assim, aumentar a eficiência eletroluminescente do papel eletrônico. Só depois a tecnologia poderá ser repassada à indústria. “A eficiência, entendida como a razão entre a quantidade de energia luminosa fornecida pelo dispositivo e a energia elétrica consumida para isso, e a qualidade devem ser pelo menos comparáveis com as dos dispositivos atualmente no mercado (como as telas de LCD)”, explica Messaddeq, para quem, na previsão mais otimista, os primeiros produtos baseados em Foleds devem estar no mercado em 2015. n > Artigo científico

Curativo produzido com celulose bacteriana já está no mercado

Legani, C.; Vilani, C.; Calil, V.L.; Barud, H.S.; Quirino, W.G.; Achete, C.A.; Ribeiro, S.J.L; Cremona, M. Bacterial cellulose membranes as flexible substrates for organic light emmiting devices.Thin Solid Films. v. 517, p. 1.01620, dez. 2008. PESQUISA FAPESP 164

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Energia

Querosene

vegetal

Na Unicamp pesquisadores desenvolvem biocombustível de alta pureza para aviões Evanild o da Silveira

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aviação mundial é responsável por 2% do total de emissões de dióxido de carbono (CO2) produzidas pelo homem, de acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), que reúne 230 companhias aéreas no mundo. Segundo a entidade, 10% do combustível usado em 2017 deverá ser alternativo e contribuir para a redução das emissões. A União Europeia também vai iniciar, em 2010, o monitoramento dos aviões que operam no continente com o intuito de reduzir o problema. Assim, a busca por combustíveis de aviação mais apropriados já começou. Entre as alternativas que podem se tornar realidade nos aeroportos está um biocombustível desenvolvido na Faculdade de Engenharia Química (FEQ), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para o professor Rubens Maciel Filho, coordenador do projeto, a nova opção para abastecer aviões deverá ser por volta de 30% mais barata na fabricação e muito menos poluente que o querosene de aviação (QAV) tradicional. A equipe de pesquisadores depositou a patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) referente ao processo de produção e de purificação de um bioquerosene feito a partir de óleos vegetais que os pesquisadores preferem não revelar a origem. O novo combustível não emite poluentes como enxofre, compostos nitrogenados, hidrocarbonetos ou materiais particulados, como é comum nos combustíveis que têm origem no petróleo, e contribui com o balanço de emissão de dióxido de carbono (CO2), gás que estimula o aquecimento global, por ser um produto de origem renovável. “Trata-se de um bioquerosene de alta pureza, acima de 99,9%”, diz Maciel, que também é um dos coordenadores do Programa de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) da FAPESP.

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Os próximos passos que os pesquisadores precisam para avançar na consolidação do produto são a realização de testes em motores de avião e a produção em escala semi-industrial. Para isso, a Agência de Inovação da Unicamp (Inova), codetentora da patente, está interessada em negociar com empresas a cessão do direito de explorar comercialmente a nova tecnologia. O mercado é enorme. Segundo a Iata, o movimento em 2007, último dado disponível, foi de US$ 136 bilhões, correspondendo a 28% dos custos operacionais das companhias aéreas. O processo de produção do biocombustível a partir de óleos vegetais é conhecido e semelhante ao do biodiesel, só que mais trabalhoso. Nos dois casos é promovida uma reação química chamada transesterificação, na qual o óleo vegetal, obtido do esmagamento do fruto de plantas oleaginosas e após o refino, reage com um álcool e um catalisador (substância que promove a reação química) e dá origem ao combustível. O processo desenvolvido para a produção do bioquerosene utiliza etanol de cana-de-açúcar como reagente, outra matéria-prima renovável. “Para o caso do bioquerosene, a etapa de engenharia da separação é muito mais elaborada para atender às características e especificações dos combustíveis de aviação que são muito rígidas”, explica Maciel, que contou nos estudos e na patente com participação dos pesquisadores Maria Regina Wolf Maciel, Cesar Benedito Batistella e Nívea de Lima da Silva, todos da Unicamp. “O bioquerosene deve ser muitíssimo puro, livre de vários compostos e impurezas que podem comprometer a qualidade do sistema de combustão a jato, além de ter viscosidade, densidade e poder calorífico muito específicos, o que não é requerido do biodiesel.”

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A transesterificação ocorre dentro de um reator onde os triglicerídios do óleo vegetal reagem com o etanol formando o éster – grupo químico em que se enquadra o bioquerosene –, além de glicerina, água, moléculas de ácidos graxos e glicerídios, e o que restou do etanol não reagido. Um dos avanços nessa fase da tecnologia desenvolvida pela equipe da Unicamp está na área da engenharia das reações, que envolve o balanço preciso das diversas variáveis envolvidas nas reações químicas resultantes no bioquerosene. A fase de separação foi decisiva no desenvolvimento do processo realizado pela equipe da Unicamp, com o isolamento do bioquerosene, do catalisador, da água, da glicerina e das impurezas presentes no meio reacional. É aí que está a inovação do processo desenvolvido pela equipe de Maciel Filho. Ele diz que o isolamento é feito em um processo intensificado de separação desenvolvido por eles, em condições de temperatura e pressão que possibilitam a obtenção do bioquerosene de forma economicamente viável e com as características de querosene de aviação estabelecidas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Esse último ponto foi confirmado por análises realizadas na Unicamp e no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Com mistura - “Os resultados das aná-

lises foram comparados com a tabela de especificação do querosene de aviação da ANP”, explica Maciel. Ficou demonstrado que o bioquerosene desenvolvido na Unicamp possui características semelhantes às do combustível tradicional porque possui ponto de congelamento muito menor que outros produtos reportados na literatura. O bioquerosene sem qualquer aditivo pode ser usado também em misturas com querosene extraído do petróleo, reduzindo significativamente a emissão de enxofre, compostos nitrogenados e particulados e contribuindo com o balanço de CO2. Embora exista uma série de pesquisas e diversos biocombustíveis sendo testados em várias partes do mundo, Maciel Filho ressalta a importância do grau de pureza obtido para o bioquerosene que sua equipe desenvolveu. “Apesar de ser comentada a existência de experimentos e realizações

✈ de testes fazendo uso de bioquerosene, não identificamos trabalhos nem patentes sobre o assunto na literatura técnica que permitisse a obtenção de bioquerosene de alta pureza”, assegura. Pode não haver um produto exatamente igual, mas já existem companhias aéreas que fizeram experimentos com aviões voando movidos a biocombustíveis. É o caso da americana Continental Airlines, a quinta maior empresa do setor do mundo, que anunciou recentemente a realização do primeiro voo de demonstração, com o uso de biocombustível, realizado no dia 7 de janeiro deste ano em Houston, no estado do Texas, nos Estados Unidos. A experiência foi feita com um Boeing 737-800, que teve um de seus motores abastecido com combustível tradicional e outro com uma mistura de querosene e biocombustível, feito a partir de algas e pinhão-manso (Jatropha curcas). O voo durou 90 minutos, durante os quais o avião, que não sofreu nenhuma modificação para o teste, realizou várias manobras bem-sucedidas, tais como reinicialização de motor, acelerações e desacelerações. Segundo a companhia, a mistura do biocombustível obteve melhor desempenho que o combustível tradicional, com uma eficiência de 1,1% superior, em diferentes estágios do voo. Além disso, o índice de gases causadores do efeito estufa emitidos na viagem demonstrativa com o biocombustível teve uma redução estimada entre 60% e 80%, comparado ao combustível tradicional. “O bioquerosene, a exemplo de outros biocombustíveis obtidos de fontes renováveis, é ambientalmente sustentável, contribui com a valoração da nossa agroindústria, agrega valor a produtos nacionais, além de reduzir o consumo de petróleo, viabilizando o deslocamento do uso desse importante produto fóssil para a fabricação de bens mais nobres do que combustíveis, na área química, em plásticos e fertilizantes”, diz Maciel. n PESQUISA FAPESP 164

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agricultura

Detalhes no solo Sistema integra satélite e sensores para elaborar um mapa pormenorizado de áreas de plantio | Marcos de Oliveira

A Geocis/esalq-usp

Método de sensoriamento detecta e avalia pastagens que recebem sangue bovino descartado de forma irregular

agricultura que visa à boa produtividade e ao melhor uso do solo tem à disposição sistemas tecnológicos para análise do potencial da terra. Chamada de agricultura de precisão, essa área está sempre em evolução e acompanha o avanço da microeletrônica com computadores de mão, softwares, receptores GPS (posicionamento por sinais de satélite), além de máquinas agrícolas, do sensoriamento remoto do solo e da geoestatística. Algumas dessas soluções estão reunidas e se tornam mais atraentes para o futuro da agricultura nos estudos do professor José Alexandre Demattê, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). Ele e seu grupo desenvolveram um novo tipo de mapa digital do solo que facilita o planejamento do plantio e pode ser elaborado de forma mais rápida que o convencional. “Utilizamos ao mesmo tempo imagens de satélite, fotos aéreas e sensores portáteis para obter um mapa de solos mais detalhado e permitir ao agricultor escolher as melhores áreas para plantio, estabelecer as áreas de reserva legal de mata, racionalizar a adubação e escolher as melhores variedades para aumentar a produtividade de uma cultura”, diz Demattê. “Os mapas de solo feitos atualmente no Brasil possuem poucos detalhes, têm custo financeiro alto e demoram para ser elaborados porque são muito trabalhosos.” Para formar um mapa mais detalhado e rápido, tornando-o mais barato, Demattê utiliza a análise do solo feito por reflectância, que é a energia refletida do solo e captada na forma de radiação eletromagnética pelos sensores localizados em terra e nos satélites, como os norte-americanos Landsat e Aster. “A radiação eletromagnética está associada com os constituintes do solo como argila, areia, óxidos de ferro, potássio, cálcio, matéria orgânica e minerais.” Para avaliação da camada superficial de uma área por imagem de satélite, o solo precisa estar exposto. Se estiver com vegetação, muda-se o método e utiliza-se o parâmetro de formas de relevo como modelos de elevação do solo geralmente adquiridas pelo sistema shuttle radar topography mission (SRTM), ou missão topográfica por radar do ônibus espacial, realizada em 2000 pelo Endeavour. “O objetivo de utilizar imagens de satélite não é saber a classificação do solo, porque


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Escolhida uma área agriculturável, é possível utilizar várias técnicas para a formação de um mapa digital do solo, com imagens sobrepostas. A número 1 apresenta um modelo de elevação e altitude do solo. A segunda é formada por dados de sensor em terra e geoestatística e a terceira é produzida por satélite

a imagem capta apenas a camada superficial, mas obter mais uma informação que se agregue às outras, permitindo chegar ao provável tipo do solo. ” Outra ferramenta utilizada pelo pesquisador em áreas cobertas e descobertas é um sensor óptico, que pode ser levado em uma mochila. Ainda pouco utilizado na agricultura, esse aparelho custa em torno de US$ 60 mil. “É só apontar a fibra ótica para o solo para captar a energia refletida. Os dados são posteriormente processados e modelos matemáticos quantificam e ajudam a formar um mapa detalhado do solo”, diz Demattê. O sensor não substitui totalmente as análises em laboratório para saber a composição do solo. “Ele permite uma racionalização da coleta de amostras. Por exemplo, se numa fazenda for preciso coletar 500 amostras numa densidade de 1 por hectare (ha), pelo novo método coletam-se as mesmas 500 amostras, mas somente 150 seriam enviadas ao laboratório e o restante quantificado pelo sensor (que faz a leitura em 1 segundo), atingindo um ganho financeiro em análises de solo da ordem de até 64%, conforme mostrou a dissertação de mestrado do aluno Leo­nardo Ramirez Lopez, com bolsa da FAPESP, e participante do grupo.” Demattê propõe uma maior integração de todas as técnicas para a formação de novos mapas. “É possível agregar informações de cada equipamento como os satélites, sensores de campo, modelos de elevação, forma do terreno, entre outros.” Ele diz existirem duas comunidades científicas que pouco se integram e isso é refletido na

comunidade em geral. “São os pesquisadores da área de sensoriamento remoto e os da ciência do solo em que uns não utilizam os conhecimentos de análise do solo e os outros que não veem a real dimensão da aplicação do sensoriamento.” Parâmetros finais - A integração de

softwares para o novo sistema ainda não está pronta para que possa ajudar o agricultor. “Trata-se da próxima fase dos estudos em que vamos sistematizar a entrada de parâmetros para ter um resultado final. Já estamos em contato com outras instituições para estabelecer uma sequência de trabalhos e disponibilizar o sistema para a agricultura em geral.

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Os Projetos 1. Integração de técnicas múltiplas no mapeamento do solo 2. Detecção de subprodutos frigoríficos por sensoriamento remoto espectral nas regiões do ultravioleta, visível e infravermelho

modalidade

1 e 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

1 e 2. José Alexandre Demattê – USP investimento

1. R$ 100.381,20 (FAPESP) 2. R$ 30.514,95 e US$ 35.050,00 (FAPESP)

As pesquisas do professor Demattê também avançaram para o monitoramento ambiental com a utilização do sensor óptico na detecção rápida de sangue bovino despejado de forma irregular em áreas de pastagem e perto de riachos. Cada bovino gera de 15 a 20 litros de sangue, produto que pode ser vendido, pelos frigoríficos, para empresas que o processam para fabricação de plasma e farinha usados em rações. Demattê elaborou um estudo para avaliar as alterações ocorridas no solo. “Foram observadas alterações em solos da região oeste de São Paulo.” Para detectar a presença do sangue na terra, utilizaram-se amostras com e sem o produto, analisadas pelo sensor em laboratório. “Verificamos que os solos são muito alterados na parte química, principalmente com excesso de sódio, com modificação nos teores de nutrientes e do pH.” Os dados indicam que o produto é jogado em locais impróprios e os resíduos se deslocam para os rios e riachos, além de possivelmente contaminarem os lençóis freáticos. O professor conseguiu determinar um método de sensoriamento remoto para detectar e avaliar o problema rapidamente. O grupo de pesquisa em Geotecnologia em Ciência do Solo (GeoCis) da Esalq, coordenado por Demattê, está agora preparando artigos científicos que depois serão transformados em um relatório a ser apresentado para a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), órgão responsável pela fiscalização do destino de subprodutos de origem animal. n PESQUISA FAPESP 164

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BIOTECNOLOGIA

Proteção contra leishmaniose

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e uma doença praticamente silvestre, restrita a áreas rurais, a leishmaniose visceral acompanhou os movimentos migratórios do século XX e instalou-se nas periferias das cidades. No Brasil, as regiões Norte e Nordeste concentraram 1.998 casos dos 3.303 registrados em 2008. Transmitida pela picada da fêmea do mosquito Lutzomyia longipalpis, um inseto de apenas 3 milímetros conhecido como mosquito-palha ou birigui, a doença pode afetar cães, raposas e até gambás, considerados os principais reservatórios do parasita causador da doença, o protozoário Leishmania chagasi. Uma vacina recombinante contra a leishmaniose visceral canina, chamada Leish-Tec, desenvolvida em parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a empresa mineira Hertape Calier Saúde Animal, mostrou eficiência de 90% nos testes conduzidos em uma área endêmica da doença tanto humana como canina, com animais de diferentes raças sujeitos à picada do inseto. “Se há uma diminuição no número de cães infectados, a longo prazo vai ocorrer uma redução nos casos humanos também”, diz a parasitologista Célia Gontijo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte. A vacina é uma das várias frentes de combate à transmissão da leishmaniose visceral, doença que se não tratada a tempo pode levar à morte em 90% dos casos, após comprometimento de órgãos como fígado, baço e medula óssea. A vacina recombinante é feita a partir da inserção da informação ge-

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nética de uma proteína do protozoário Leishmania chagasi em bactérias, que são então replicadas. As bactérias funcionam como uma biofábrica que produz o antígeno para a vacina. Lançada comercialmente em outubro de 2008, a vacina continua a ser alvo de ensaios clínicos pela empresa, para que, encerrada essa fase, possa ter seu uso recomendado pelo Ministério da Saúde. No novo estudo, chamado de ensaio clínico fase 3, que está sendo realizado desde o início de 2008, estão sendo feitos testes com 1.150 cães de uma região endêmica para leishmaniose visceral, tanto humana como canina. “Estamos trabalhando em uma cidade onde existe o controle integral da epidemiologia da doença e monitoramento dos cães”, explica Christiane de Freitas Abrantes, gerente de Biotecnologia da Hertape Calier, empresa fabricante de produtos veterinários. “Nesse estudo temos um grupo de animais vacinado e outro não.” Para fazer uma análise isenta, a metodologia escolhida foi o estudo duplo-cego. Ou seja, nenhum dos donos dos animais participantes do estudo sabe quais deles receberam a vacina. A empresa in-

Vacina contra leishmaniose visceral canina

vestiu até agora cerca de R$ 25 milhões no desenvolvimento da Leish-Tec. “As duas únicas vacinas existentes no mundo para combate da leishmaniose visceral canina foram desenvolvidas no Brasil”, diz a professora Ana Paula Fernandes, da Faculdade de Farmácia da UFMG, que participou do desenvolvimento da Leish-Tec em parceria com o professor Ricardo Tostes Gazzinelli, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas (INCTV). A vacina foi concebida para induzir uma resposta celular do organismo, já que o Leishmania é um parasita intracelular. “O organismo geneticamente modificado expressa o antígeno necessário para estimular o sistema imune a combater a infecção da leishmaniose”, diz Ana Paula. O primeiro passo para chegar

Hertape calier

Proteína usada em vacina recombinante induz resposta celular nos cães e reduz transmissão da doença visceral


JosE dilermando andrade filho e gustavo mayr de lima carvalho/fiocruz

Fêmea do mosquito-palha, vetor da doença no Brasil

à vacina recombinante foi identificar genes importantes do protozoário na ativação do sistema imune para desenvolver uma resposta protetora. No caso, o gene escolhido codifica uma proteína chamada pelos pesquisadores de A2. “A proteína A2 induz a resposta específica de linfócitos T, responsáveis pela imunidade celular”, explica. Tecnologia transferida - Após testes

em modelo experimental de camundongos, a UFMG fez em 2003 a transferência da tecnologia para a Hertape Calier. “Estabelecida a parceria, foram feitos testes adicionais necessários para que a vacina pudesse ser comercializada”, diz Ana Paula. A partir de 2004, foi iniciado um teste, chamado de fase 2, da vacina em cães, conduzido com um número limitado de animais submetidos a infecção artificial do parasita, em condições controladas. “Demoramos três anos para concluir essa fase e os resultados foram muito promissores”, relata. Com base nesses resultados foi concedido o registro pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a vacina ser comercializada. Uma nova instrução normativa, publicada em conjunto entre o Ministério da Saúde e o da Agricultura, exigiu testes adicionais. “A única vacina veterinária

que precisa passar por ensaios clínicos de fase 3 é a da leishmaniose, porque afeta as pessoas e é uma zoonose grave”, diz Christiane. Embora ainda seja cedo para afirmar que há uma efetiva redução nos casos de leishmaniose entre pessoas em função da vacinação em cães, pesquisa realizada pelo grupo da professora Clarisa Palatnik de Sousa, do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta resultados favoráveis nesse sentido. Clarisa foi quem coordenou a pesquisa que resultou no desenvolvimento da primeira vacina contra a leishmaniose visceral canina, feita a partir de antígenos do parasita e lançada em 2004 pela empresa Fort Dodge, multinacional de produtos para saúde animal com fábrica em Campinas, no interior paulista, com o nome comercial de Leishmune. Estudo coordenado pela pesquisadora publicado na revista Vaccine, em junho deste ano, aponta que houve uma redução na incidência de leishmaniose visceral humana e canina após vacinação feita em duas áreas endêmicas no Brasil, de 2004 a 2006. Em Araçatuba, no interior paulista, houve uma diminuição de 25% na leishmaniose canina com um declínio de 61% nos casos em humanos, relata o estudo. Em Belo Horizonte, a curva

de crescimento da incidência da doença em cães e humanos caiu ou se manteve estável após a vacinação de cães. Célia Gontijo, da Fiocruz mineira, alerta que é preciso desenvolver um método de diagnóstico que possa ser utilizado em larga escala para diferenciar o resultado positivo provocado pela vacina. Isso porque os testes aplicados como controle de detecção atualmente podem indicar que o animal vacinado está com leishmaniose quando, na realidade, tem outras doenças que não são transmitidas ao homem. Ana Paula, da UFMG, diz que como a Leish-Tec é constituída por um antígeno recombinante produz pouquíssimos anticorpos, diferentes dos usados no teste sorológico rotineiro de detecção. n

Dinorah Ereno > Artigos científicos 1. Palatnik de Sousa, C.B. et al. Decrease of the incidence of human and canine visceral leishmaniasis after dog vaccination with Leishmune in Brazilian endemic áreas. Vaccine. v. 27, p. 3.505-12. 2 jun. 2009. 2. Fernandes. A. P. et al. Protective immunity against challenge with Leishmania chagasi in beagle dogs vaccinated with recombinant A2 protein. Vaccine. v. 26, p. 5.888-95. 29 out. 2008. PESQUISA FAPESP 164

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humanidades

MÚSICA

Saudades do Jeca no século XXI Música sertaneja é analisada em pesquisas e revela-se um bom retrato do país: disposto a ir em frente mas sempre olhando para trás

Carlos Haag

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criador da mais conhecida e celebrada canção sertaneja, Tristeza do Jeca (1918), não era, como se poderia esperar, um sofredor habitante do campo, mas o dentista, escrivão de polícia e dono de loja Angelino Oliveira. Gravada por “caipiras” e “sertanejos”, nos “bons tempos do cururu autêntico” assim como nos “tempos modernos da música ‘americanizada’ dos rodeios”, Tristeza do Jeca é o grande exemplo da notável, embora pouco conhecida, fluidez que marca a transição entre os meios rural e urbano, pelo menos em termos de música brasileira. Num tempo em que homem só cantava em tom maior e voz grave,

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o Jeca surge humilde e sem vergonha alguma da sua “falta de masculinidade”, choroso, melancólico, lamentando não poder voltar ao passado e, assim, “cada toada representa uma saudade”. O Jeca de Oliveira não se interessa pelo meio rural da miséria, das catástrofes naturais, mas o íntimo e sentimental, e foi nesse seu tom que a música, caipira ou sertaneja, ganhou sua forma. “A canção popular conserva profunda nostalgia da roça. Moderna, sofisticada e citadina, essa música foi e é igualmente roceira, matuta, acanhada, rústica e sem trato com a área urbana. Isso valeu para as canções de Jobim, Chico e ainda vale para boa parte da nossa música. Em todas essas personas há sempre a voz paradigmática do migrante que se faz ouvir para registrar uma situação de desenraizamento, de dependência e falta”, analisa a cientista política Heloísa Starling, vice-reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e organizadora de Imaginação da terra: memória e utopia na canção popular brasileira. A coletânea de textos, fruto do seminário homônimo realizado pelo

Projeto República/UFMG, em 2008, a ser publicado, neste segundo semestre, pela editora da universidade mineira em conjunto com o Nead (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural), traz uma ampla discussão sobre as saudades nacionais de roça e sertão. O site do Projeto República traz também uma página para matar as


montagem com reprodução de o violeiro de almeida júnior, 1899, pinacoteca do estado de são paulo e foto de miguel boyayan

saudades de Matão de qualquer ser urbano (http://www.ufmg.br/projetorepublica/v1/page/tradicao). Mais um fruto do Imaginação da Terra, a página traz uma cronologia da canção caipira e links para que se possa ouvir as músicas mais importantes do gênero, um mapeamento inédito e fundamental. Afinal, essas canções

“rurais” – produzidas em sua maioria no meio urbano por pessoas que vivem entre a cidade e o campo (mas se consideram “do campo”), nota a pesquisadora, falam da ausência da natureza, idealizada, e reiteram a dor da perda, a saudade, uma nostalgia dos bons tempos – surgiram como reação a um momento em que o país estaria

hipnotizado pelo desejo de modernização, com levas de migrantes da zona rural. “Nasce uma canção que procura sugerir que, nesse enredo problemático chamado Brasil, existe algo permanente sem lugar e por isso contendo todos os lugares, todas as ausências, tudo o que pode vir a ser: o fundo arcaico do mundo rural projetado sobre uma soPESQUISA FAPESP 164

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Country - A paixão country, porém, não está mais restrita apenas ao mundo fonográfico, mas rompeu fronteiras do comportamento de parte expressiva da elite urbana em músicas, na

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ciedade primitiva que vive longe do espaço urbano e que é, aparentemente, o seu avesso.” Inusitadamente, o tema também atraiu a atenção do antropólogo americano Alexander Dent, professor da George Washington University, que, após mais de 11 anos de estudos feitos no Brasil, em especial no estado de São Paulo, realizou a pesquisa que será lançada no próximo mês pela Duke University Press, River of tears: country music, memory and modernity in Brazil (312 páginas, US$ 84,95), o primeiro estudo etnográfico sobre a música sertaneja nacional. Dent pretendeu explicar não apenas a produção e a recepção desse gênero no país, mas também as razões que o levaram a experimentar um crescimento tão intenso quanto o verificado no período entre o fim da ditadura militar e a reforma neoliberal. “Os gêneros rurais refletem uma ansiedade generalizada de que as mudanças, a modernização, foram muito rápidas e muito radicais. Ao definir sua música como sertaneja, os músicos brasileiros, cujo trabalho circula largamente nas cidades, querem que suas canções sirvam como crítica à vida urbana crescente e inescapável que toma conta de todo o Brasil e é caracteri­zada pela supressão das emoções e uma falta de respeito pelo passado”, explica Dent. “Suas apresentações evocam um ‘rio de lágrimas’ fluindo por uma paisagem de perda do amor, da vida no campo e das ligações do homem com o mundo natural.”

moda rural, no espetáculo milionário do rodeio. “Apesar de seu crescimento, o fenômeno country permanece ainda difuso, sem contornos nítidos que possam precisar sua definição e compreensão. Não há uma percepção, por exemplo, sobre as particularidades do estilo de vida country no Brasil. Em geral, se dá como certo que se trata de uma cópia do que existe nos EUA”, avisa a socióloga Silvana Gonçal­ves de Paula, professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Ja­­neiro do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Sem dúvida, a emergência desse fenômeno

A paixão country não está restrita ao mundo fonográfico e rompeu fronteiras do comportamento de parte expressiva da elite urbana 82

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tem estreita conexão com a experiência americana, mas não se pode ceder à facilidade de tomar automaticamente essa conexão como mera cópia, uma ideia reducionista de imitação que favorece o clichê nacionalista, que, pela insistência fundamentalista na preservação de algo genuinamente autóctone, acusa a infiltração na nossa sociedade da ‘malévola’ tendência de reproduzir tudo o que vem de fora, em especial dos EUA.” Isso também se reflete na eterna e pouco convincente dicotomia entre música sertaneja, “colonizada, comercial e modernizada”, e música caipira, “digna, das raízes, sincera”, que permeia o preconceito de acadêmicos e, acima de tudo, jornalistas, de tudo o que vem da primeira em detrimento da segunda. “Há um discurso que afirma que, a partir da década de 1950, a música rural perde a sua pureza e seu sotaque ao mesclar as modas de viola com outros gêneros latinos e a incorporação de outros instrumentos, sendo necessário, então, que se preservem as características originais da música interiorana para que ela não se perca”, observa a socióloga Elizete Ignácio, ligada à Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio).


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Inezita Barroso e a dupla Alvarenga e Ranchinho: música do campo feita na cidade

“Existe uma nostalgia da moda caipira de raízes com um sabor amargo do tempo perdido com a modernização que relegou a todos sobreviverem num mundo desencantado, dominado pelos meios de comunicação de massa, cujo controle ideológico transformaria a população em ‘mera consumidora’, e não ‘produtora de seu discurso final’”, continua. Segundo a pesquisadora, a visão que se tem dos sertanejos modernos é o de um reflexo de uma nova elite agrária que nada teria a ver com o caipira, definido por sua simplicidade, rusticidade, cordialidade. As festas populares teriam se perdido em meio ao aparato técnico, e a busca pelo internacional e pelo multi, frutos da modernização, e a adoção de novas tecnologias e linguagens aproximariam o sertanejo mais do country americano do que do caipira brasileiro. “A minha pesquisa com cowboys que vieram ao Brasil participar de rodeios mostra outras realidades, mais sutis. Na sociedade dos EUA é que o estilo de vida country está associado ao labor,

à simplicidade, à dignidade rústica do contato com a natureza. No Brasil o estilo de vida country é quase o avesso de tudo isso, e, entre nós, o country fala a favor de uma inserção da ruralidade nos critérios de civilidade urbana, uma inserção que se faz mediante o pleito da dignificação do ser humano. O estilo de vida country introduz o tema da ruralidade no cenário urbano e dialoga com as fronteiras tradicionais que, aqui, delimitam a relação entre o campo e a cidade”, nota Silvana. Na música, a sutileza das surpresas pode ser ainda maior. “Foi entre 1902 e 1960 que a música sertaneja surgiu como um campo específico no interior da MPB. Mas, se num período inicial, até 1930, sertanejo denotava indistintamente as músicas produzidas no interior do país, tendo como referência o Nordeste, a partir dos anos 1930 sertanejo passou a significar o caipira do Centro-Sul. E, pouco mais tarde, de São Paulo. Assim, se Jararaca e Ratinho, ícones da passagem do sertanejo

nordestino para o ‘caipira’, trabalhavam no Rio, as duplas dos anos 1940, como Tonico e Tinoco, trabalhariam em São Paulo”, explica o antropólogo Allan de Paula Oliveira, que acaba de defender seu doutorado, Miguilim foi pra cidade ser cantor: uma antropologia da música sertaneja, na Universidade Federal de Santa Catarina. Curiosamente, nota o pesquisador, o que houve, no princípio, foi uma “colonização” da música sertaneja pela música caipira por meio dos timbres e dos novos subgêneros, com o estabelecimento da dupla cantando em intervalos de terças como a formação típica, bem como, entre outros fatores, a especialização no universo dito “caipira” pelo uso de maquiagem e vestuá­ rios “a caráter”, até que, por volta de 1950, a música sertaneja, em sua forma “caipira”, estava cristalizada em seu novo formato. Além disso, da mesma forma que os “neossertanejos” de hoje são vítimas do preconceito dos mais puristas, nos anos 1960, lembra Allan, a música sertanejo-caipira foi excluída de processos importantes que acabaram resultando na elaboração da sigla MPB. “Da mesma forma, o gênero não teve destaque nos festivais dos anos 1960, sendo pouco aproveitado na gênese da MPB. Para o público da época, jovem, rural era o baião. ” Alienação - Posteriormente, a música

sertaneja ganharia a triste função de ser exemplo de categorias sociológicas como lúmpen, proletariado, alienação. “Trata-se de uma música que seria colocada à margem por classes dominantes e consumida por um público vasto, porém ‘subalterno’, como se dizia na época. Até a segunda metade dos anos 1980 ela permaneceria à margem no conjunto da música brasileira, um gênero escutado fora do centro. Desse modo, o campo da música sertaneja, até então, estava dividido em duas posições: uma valorizando as raízes caipiras da música sertaneja, e que usava a expressão ‘música caipira’ para denotar sua prática e diferenciá-la da outra posição, formada por uma música sertaneja aberta às influências externas e que usava a expressão ‘música sertaneja’ para se denotar.” O grande boom que esta segunda “facção” musical experimentou aconteceu em 2005 com a divulgação do filme Os dois filhos de Francisco. “Foi um fenômeno, e, ao lado PESQUISA FAPESP 164

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Por meio da dupla de irmãos, o sertanejo revela fragilidades do homem vetadas pelo machismo

Peão - “Curiosamente, a dominação

masculina do peão de rodeio sobre o touro selvagem opera como um tipo de polo oposto à música extremamente expressiva e lacrimosa que acompanha os eventos. Falei com vários peões que me disseram ser a sua fachada lacônica uma cobertura para o seu interior emocional, que, segundo eles, era bem representado naquelas músicas”, conta Alex Dent. “Isso também explica a tradição da dupla sertaneja, em geral constituída por irmãos, com pouco espaço para a

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presença feminina. Por meio da irmandade, a música revela vulnerabilidades masculinas no palco que são, em geral, escondidas, vetadas pelo machismo.” Segundo o antropólogo americano, os músicos definem o seu universo como “sertanejo”, com isso significando que as letras de suas canções são críticas da realidade urbana que suprime as emoções e não dá atenção ao passado, usando o campo “antigo” como modelo e lamentando o que se perdeu com a modernidade. “Rural, no caso dessa música, não significa que os músicos

ou seus fãs sejam necessariamente do meio rural, já que, na maior parte, sua música é produzida e circula no meio urbano. No entanto, essa ‘ruralidade’ não deve ser entendida literalmente como referências ao campo, mas fazer uso do espaço para ressaltar a fragmentação do indivíduo e a perda do passado idílico que seus adeptos acreditam ter sido arrasado pela urbanização”, nota. A música sertaneja, imbuída de um estado de crise emocional, deve provocar o mesmo no ouvinte: a reemergência do coração. “Brasileiros nos lugares

divulgação/projeto república

do axé e do pagode, hoje é um dos três gêneros que mais estiveram em evidência ao longo da década de 1990, ocupando espaços crescentes na mídia”, nota Allan. Segundo o pesquisador, a ascensão desses gêneros musicais até então relacionados a grupos sociais marginalizados no conjunto da sociedade é uma das contrapartidas da entrada desses grupos no universo de consumo. Um índice importante, no caso da música sertaneja dos anos 1990, é o rodeio, evento símbolo do universo rural modernizado, com o peão reelaborado em cowboy. A trilha desses eventos, a música sertaneja, manteve características anteriores, mas aprofundando-as com a entrada da influência do pop e do rock, que se traduz nas formações musicais novas usadas pelas duplas, com bandas de apoio de guitarras, baixo, teclados etc. em que a presença da sonoridade da viola caipira tornou-se secundária, quando utilizada.


almeida júnior, caipira picando fumo, 1893, pinacoteca do estado de são paulo

onde fiz a pesquisa continuam a experimentar o mesmo desconforto com a rapidez da mudança e do progresso. Se sentem que devem absorver as novidades, ao mesmo tempo temem a perda iminente da sua identidade. A música e o estilo de vida sertanejos são algumas das formas por onde esse medo pode transparecer.” Daí, segundo Dent, pode estar outra das muitas razões que explicam o crescimento do gênero com a democratização do país. “A música sertaneja parece, a uma primeira vista, passar por cima da ditadura, já que não há canções sobre tortura, censura ou desaparecidos. Mas o rural por trás do gênero enfatiza a crítica velada às narrativas de progresso que eram centrais aos ‘milagres econômicos’ coercivos das ditaduras militares.” Os “anos de chumbo” podem não estar visíveis, mas uma crítica a seu principal vetor está presente para quem quiser ouvir os lamentos pela “perda forçada da inocência” do campo. “Após 1985, com a redemocratização, muitos grupos passaram a usar o gênero sertanejo como alternativa às narrativas de progresso da ditadura, em especial aquelas associadas com urbanização, industrialização e orientação para o futuro. O olhar para trás, saudoso do passado perdido, foi subitamente mobilizado com vigor para problematizar discursos de brasilidade e da aceitação impensada do progresso pelo progresso”, explica o antropólogo.

Entretanto, não se entenda nisso uma adoção imediata de posições menos conservadoras. “Os gêneros musicais rurais também criticaram a redemocratização, apresentando a modernidade da globalização como tendo mais um caráter corruptor do que progressivo. No lugar do esquecimento do local, da história e da terra, o sertanejo propõe a necessidade de cada um se reconhecer como rural, valorizar o passado ideal e enriquecido com o sangue dos irmãos.” Ao mesmo tempo, porém, que a Tristeza do Jeca toca o coração dos sertanejos com seus suspiros pelo passado, isso não impede que eles possam verter rios de lágrimas ouvindo gravações modernas da canção em sistemas de som de última geração ou em palcos de shows com imensos recursos técnicos. Ideologia - “O mesmo CD que vi na

casa de muitos aprendizes de violeiro em campos do MST estava na estante de milionários para quem ‘era preciso trazer de volta os militares para acabar com a bandalheira no campo e na política’. Já não há mais como restringir o sertanejo a classes ou ideologias”, analisa Dent. Em suma, a música sertaneja é um excelente espelho do país e sua eterna convivência entre o antigo e o moderno. “A questão do irmão, por exemplo, sempre esteve na música sertaneja: se antes ela lamentava as raí­ zes quebradas com a migração, hoje celebra a impotência diante do amor. A viola ainda conecta o passado com o futuro, com estudantes se esmerando para aprender ritmos arcanos por meios digitais. A ruralidade é, acima de tudo, popular porque se vive no campo e na cidade ao mesmo tempo. Silvana Gonçalves concorda. “É uma ambivalência forte do country brasileiro. Os adeptos do gênero estão referidos ao mesmo tempo a dois lugares, porque estão num trânsito incessante de cruzamento de fronteiras. O aspecto intrigante disso é que por causa, justamente, desta possibilidade recente de

ir e vir, isto é, exatamente, no trânsito entre dois referenciais, que este estilo de vida country constrói suas raízes. É precisamente no deslocamento que se produz uma territorialização.” Assim, o “mau” do progresso feito pela ditadura (construção, por exemplo, de estradas, melhoramento do campo, desenvolvimento de uma agricultura moderna) permite agora que se possa ter um território com cidade e campo. Não sem razão, a democratização veio acompanhada, a todo volume, pela música sertaneja como sua trilha sonora. “O estilo de vida country no Brasil, portanto, é uma experiência que não reproduz a vida campestre, agrícola ou pecuária. Antes, é uma experiência que ritualiza nos vários cenários urbanos (torneios esportivos, danceterias, turismo, moda, regras de sociabilidade) os elementos que são atribuídos à relação com a natureza, à agricultura, à pecuária. Assim, o estilo de vida country toma a ruralidade como fonte de inspiração para o delineamento de padrões de sociabilidade urbanos”, observa Silvana. O country (ou “cáuntri”, como ouvido por Dent ao longo de sua pesquisa no Brasil) funciona como uma das instâncias que “produz” o campo, e sua trilha é a música sertaneja, expressão criadora da realidade. “Assim, para o sertanejo não há razão para separar ‘sertanejo’ de ‘caipira’, se tudo faz parte do mesmo espectro. Prova disso eu vi num show em Barretos, em 1999, quando a dupla Xitãozinho e Xororó se uniu à dupla Tião Carreiro e Pardinho para cantar Pagode em Brasília (sucesso da dupla antiga), com todas as conotações que a cidade traz como projeto de modernização e futuro do Brasil. No país do século XXI, a inovação não está em simplesmente mandar essa mensagem num dos maiores rodeios do mundo, mas em combinar uma apresentação do passado com o presente em que uma dupla comercialmente bem-sucedida pode dividir o palco com suas ‘raízes’ agora ditas caipiras”, conta o antropólogo. n

Capa do disco de Boldrin recupera visão idílica do caipira de Almeida Júnior PESQUISA FAPESP 164

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anos de HISTÓRIA

Projeto Memórias Reveladas colocará na internet documentos sobre a repressão na ditadura militar | Gonçalo Junior

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ma revolução está acontecendo nos arquivos públicos de todo país desde maio deste ano. Acervos estaduais e federais, universidades, ministérios e entidades de defesa dos direitos humanos estão empenhados em tornar possível no menor espaço de tempo o Projeto Memórias Reveladas, que pretende reunir na internet milhões de documentos produzidos pelos órgãos de repressão de todos os estados brasileiros sobre presos políticos e luta armada durante a ditadura militar (1964-1985). É a primeira vez na história que os arquivos dos estados da federação se unem para uma empreitada de tamanha magnitude. De modo mais amplo, a interação irá possibilitar o cruzamento dos dados

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que estão sob a guarda do arquivo regional de cada capital. Em sentido mais restrito, deve redimensionar a pesquisa histórica do período de diversas formas. Como, por exemplo, ampliar o volume de documentos disponíveis para consulta e permitir que parentes de mortos e desaparecidos ou vítimas sobreviventes possam saber o que foi registrado sobre elas e como sua vida foi monitorada pelas forças de repressão. E mais: promoverá um barateamento das pesquisas, uma vez que interessados de todo país não precisarão mais buscar recursos para se deslocar até São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília – onde está armazenado um número maior de documentos. Enfim, será possível consultar nomes arquivados em qualquer parte do país sem sair de casa e

fazer uso dos mesmos sem avolumar papéis e reproduções. À frente da iniciativa está a Casa Civil da Presidência da República, com a coordenação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Desde maio, quando foi lançado oficialmente o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, uma média de cinco novos parceiros tem se juntado à iniciativa de vários pontos do Brasil e até do exterior. Eram mais de 40 até a última semana de setembro. A lista inclui arquivos estaduais, centros de documentação, centros de pesquisas e entidades vinculadas às universidades, Comissão de Anistia, Comissão de Mortos e Desaparecidos e a americana Brown University. Em setembro foi a vez da FAPESP fechar uma parceria com o


chumbo on-line

Arquivo Nacional e o Arquivo Público do Estado de São Paulo para participar do financiamento do trabalho de digitalização dos documentos e da compra de equipamentos. Com isso, o trabalho deverá ser retomado em breve – estava parado desde julho, quando foi encerrada a primeira etapa, que começou em novembro passado e durou oito meses, com patrocínio da Petrobras. “A busca pela parceria da FAPESP nasceu da nossa percepção de que um terço dos que desenvolvem o levantamento dos documentos ligados à repressão é de São Paulo, até porque foi o estado onde mais se deu a resistência armada e estudantil ao regime militar”, observa o professor Carlos de Almeida Prado Bacellar, coordenador do Memórias Reveladas pelo Arquivo do Estado

de São Paulo. Os detalhes de como o acordo será colocado em prática, acredita ele, devem ser definidos nas próximas semanas.

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acellar afirma que, “pela tradição da FAPESP, que é bastante atuan­te em pesquisa no Brasil”, foi feito um contato entre a direção do arquivo com o presidente do Conselho Superior da Fundação, Celso Lafer. “Logo finalizamos um compromisso de cooperação que nos deixou muito felizes e certos de que logo retomaremos os trabalhos.” A FAPESP se enquadra como financiadora porque o projeto prevê a organização e tratamento de acervos de diversos fundos documentais sob a guarda de arquivos estaduais e centros de documentação em universidades paulistas.

O Arquivo Público de São Paulo abriga o maior acervo do gênero no país, com aproximadamente 150 mil prontuários, 1,1 milhão de fichas do Deops e 9 mil pastas com dossiês, além de 1.500 pastas de Ordem Política e 2.500 pastas de Ordem Social. Todo esse material data desde a década de 1930, quando foram criados os primeiros órgãos de vigilância e repressão política, durante a Presidência de Getúlio Vargas (1883-1954). Na etapa inicial do Memórias foram microfilmadas 2 mil pastas com dossiês e digitalizadas 340 mil fichas temáticas do Arquivo Geral do Deops, por uma equipe de 25 pessoas. Está previsto o escaneamento de mais 660 mil fichários. “O ideal seria dobrar o número de colaboradores para reduzir o tempo à metade”, sugere Bacellar. Uma PESQUISA FAPESP 164 outubro DE 2009 n

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Manifestações necessidade urgente ainda, foram contatadas pelo contra o regime ressalta, é a aquisição de um Arquivo Nacional. Caso militar (nesta equipamento para transforparticipem do projeto, página); ato mar microfilmes em arquivos como sua área de atuaecumênico pela digitais, uma vez que existem ção é limitada geografimorte de mais de 1,5 milhão de imagens camente, ajudarão com Vladimir Herzog; nessa condição. A máquina recursos os arquivos de Carlos Lamarca, custa cerca de € 55 mil ou R$ seus estados, princiCarlos Marighella 150 mil. palmente aqueles que e Manuel Fiel Vicente Arruda, coordeabrigam as fichas dos Filho, mortos presos políticos produnador nacional do Memópelo regime rias Reveladas pelo Arquivo zidas pelas unidades do Nacional, define a iniciativa Deops. Somente os docomo um projeto de uma geração de cumentos sigilosos não serão dispobrasileiros que lutou contra um regime nibilizados para consulta na rede – os de opressão. “Não é algo que possa ser chamados “ultrassecretos”, com sigilo dimensionado porque é uma iniciativa de 10, 15 ou até 30 anos, renováveis que nos leva a descobertas constantes, pelo mesmo período. Assim, aqueles todos os dias, a todo momento, inclucujo prazo de sigilo já tenha expirado e os que não possuem nenhuma sive por causa de doações de arquivos particulares.” Ele conta que, pela Lei classificação poderão ser livremente Rouanet, foi possível captar em 2005 consultados. R$ 7 milhões de estatais como PeTodo esse trabalho de organização trobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, dos acervos estaduais está sendo feito Caixa Econômica Federal e BNDES. dentro da Norma Brasileira de DescriCom a adesão de diversos organismos ção Arquivística (Nobrad) para que, assim, padronize-se a descrição dos donos últimos meses, como a FAPESP, não se pode ainda quantificar quanto cumentos em todo país. “Compreendo todas movimentam juntas, mas deve o Memórias Reveladas como uma iniser uma quantia superior ao que veio ciativa similar a outras que estão sendo desenvolvidas em outros países. Por das estatais. O coordenador acredita que a isso existe a intenção de expandir a readesão da FAPESP ajudará a atrair de para toda América Latina, vamos novos colaboradores que atuam como tentar fazer uma integração com países fomentadores de pesquisa. Ou seja, que viveram regimes ditatoriais nas outras fundações estaduais. Faperj últimas décadas.” Ele lembra que os argentinos já demonstraram interesse (Rio de Janeiro), Facepe (Pernamrecentemente. A Rádio Nacional, de buco) e Fapemig (Minas Gerais) já 88

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Buenos Aires, fez uma reportagem em agosto sobre o projeto. Arruda explica que, além do objetivo inicial de digitalização das fichas, por intermédio da Rede Nacional de Cooperação e Informação Arquivística, recém-criada por causa do projeto, no futuro, podem-se desenvolver outros projetos nesta rede mundial de computadores. Outra mudança significativa tem sido o fato de que muitos arquivos estaduais estão sendo informatizados para se juntar ao Memórias. “Estamos assistindo à consolidação de uma política pública de valorização do patrimônio documental, que inclui também a formação de técnicos.” Ele lembra ainda que o Arquivo Nacional está lançando uma campanha nacional de divulgação do projeto e para convocar a sociedade a entregar documentos, inclusive agentes da repressão, com a promessa de sigilo total.

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Centro de Referência das Lutas Políticas começou a funcionar com mais de 13 mil páginas de documentos recolhidos pelo Arquivo Nacional. Em 2005 a Casa Civil da Presidência da República determinou que as instituições federais transferissem toda a documentação sobre a ditadura militar para o Arquivo Nacional. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por exemplo, teve de ceder todos os arquivos do Conselho de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI) e do Serviço Nacional de


Arquivo/AE

Folha Imagem

Reproducao/ Fabio Motta Lima/AE primeiras quatro fotos da esq. para dir.: arquivo nacional

Informações (SNI), órgãos encarregados de fazer a vigilância e a repressão política entre as décadas de 1960 e 1980. Desse modo, o Arquivo Nacional aumentou em mais de 10 vezes o seu acervo sobre a ditadura militar. O banco de dados Memórias Reveladas será alimentado on-line pelas instituições parceiras à medida que os documentos forem digitalizados, e não de uma só vez. Também fará parte deste banco de dados a documentação do Arquivo Nacional sobre a ditadura militar. Na verdade, São Paulo saiu na frente no esforço de disponibilizar seus documentos na rede. Bacellar explica que a ideia de criar um centro de referência virtual sobre repressão política durante a ditadura militar no estado foi colocada em prática desde 2005 e tinha como base o acervo do Deops, que é considerado o mais aberto do país – funciona desde 1991. “Sempre trabalhamos com muito cuidado, afirmamos termo de compromisso e responsabilidade pelo uso de informações pessoais com todos os pesquisadores que nos procuram e nunca tivemos processo.” Com parte do acervo na internet, o usuário precisa se cadastrar pessoalmente e pegar uma senha para acessar os documentos. “Trabalhamos com responsabilidade, dentro do conceito de que não se pode negar acesso público a documentos se uma medida assim acoberta ações irregulares cometidas em nome do Estado. O torturador não pode ser protegido pelo Estado.” n

Memória e verdade O resgate da memória da repressão durante o regime militar tem sido feito em várias frentes por instituições oficiais. Como o projeto Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, iniciado em 29 de agosto de 2006. “A diferença do nosso é que enquanto o Memórias Reveladas trabalha com a digitalização de arquivos para a internet, nós promovemos eventos, exposições, publicação de livros etc.”, explica Vera Rotta, conselheira de arquivos da secretaria e assessora. “Embora não tenham ligação direta, formal, os dois possuem uma interface, completam-se nesse esforço de resgatar a história daquele período”, acrescenta. Em 2007, por exemplo, foi lançado o livro Direito, memória e verdade, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A primeira edição do livro teve tiragem de 3 mil exemplares, distribuídos a comissões de familiares, centros de pesquisa, imprensa, parlamentares e bibliotecas públicas. Vera conta que o volume foi lançado em cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença de familiares de vítimas, recebidos antes pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em audiência reservada. Resultou de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos –

Vera integrou a equipe que sistematizou a histórica documentação. São recuperadas as trajetórias políticas e muitas vezes trágicas de 479 militantes políticos que atuaram em oposição às forças do Estado entre 1961 e 1988. Uma dos aspectos que chamam a atenção em Direito, memória e verdade para pesquisadores é o fato de trazer a antiga versão para o que supostamente teria ocorrido com os desaparecidos de acordo com os órgãos de repressão e uma nova versão oficial, obtida depois da pesquisa realizada pela comissão. Dos levantamentos feitos, o saldo foi o seguinte: 136 pessoas já tinham suas mortes ou desaparecimentos reconhecidos oficialmente, outras 221 passaram a ter direito a indenização para as famílias após o trabalho da comissão; e 118 tiveram pedidos de reconhecimento oficial negados. O projeto Direito à Memória e à Verdade também é responsável pela construção de memoriais às vítimas da repressão, como o momumento em frente à reitoria da UFMG aos quatro estudantes mortos nessa universidade; o memorial, em Santa Catarina, em homenagem ao sociólogo Paulo Stuart Wright, ex-militante da Ação Popular (AP); e outro memorial, inaugurado recentemente, para homenagear os cinco estudantes mortos na PUC-SP. PESQUISA FAPESP 164 outubro DE 2009 n

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Muro de Berlim caiu há 20 anos, mas apenas agora se ouviu o barulho do seu impacto real e, ainda que um símbolo do socialismo, seus fragmentos acabaram atingindo, nos últimos meses, outro “muro”, dessa vez um símbolo do capitalismo: Wall Street. Um livro fundamental para entender todo o contexto dessas mudanças é Revolution 1989: the fall of the soviet empire (Random House, 480 páginas, US$ 30), de Victor Sebestyen, que acaba de ser lançado na Europa e nos Estados Unidos. Aliás, num momento histórico em que os dois fatos se entrecruzam, como observou o economista Joseph Stiglitz numa entrevista recente ao jornal espanhol El País, é preciso analisar que o fim do socialismo, se, por um lado, gerou um entusiasmo geral para os adeptos do capitalismo, por outro, agora, traz questionamentos importantes a respeito do funcionamento do sistema nas últimas décadas.“Quando Stiglitz diz que a crise financeira afetará o fundamentalismo de mercado com força devastadora comparável à que teve a queda do Muro de Berlim sobre os destinos do comunismo deixou de dizer que a ligação dos episódios é mais do que meramente simbólica”, explica o economista e diplomata Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia e Administração da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Segundo ele, a atual crise financeira, que trouxe de

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volta discussões antigas sobre o papel do Estado numa economia de mercado, é um fruto tardio da derrubada do ícone socialista. “Na verdade, o desaparecimento do contrapeso representado pelo socialismo ajudou a liberar as forças originadoras dos excessos financeiros que iriam desencadear o derretimento do sistema especulativo dos anos recentes.” O diplomata lembra que em 1990, após o triunfalismo da queda do Muro de Berlim, a única voz sensata foi da Unctad, que, em seu relatório anual, previu que aquela década e a seguinte seriam caracterizadas pela frequência, intensidade e poder destrutivo das crises financeiras e monetárias. “Na raiz do desastre estava a aceleração da tendência para eliminar qualquer controle interno e externo ao fluxo desimpedido de capitais. Por essas razões pode-se prever como vai acabar o século XXI americano: pela desenfrea­ da liberalização financeira e devido ao imoderado gosto da cobiça”, avalia Ricupero. “Há muito tempo que o poder em Washington não é dominado mais pelo complexo militar-industrial, mas pelo financeiro-político-militar. E assim termina o mundo, como vaticinava T.S. Eliot, não com um estrondo, mas com um gemido.” O economista alerta para a concentração excessiva das análises sobre a crise recente apenas nos seus aspectos financeiros, com a política aparecendo às vezes como pano de fundo referencial, se falando ainda menos sobre o processo pelo qual setores ligados às finanças conquistaram posições no sistema político americano.

À queda do Muro seguiu-se outra queda igualmente poderosa para o andamento do capitalismo nas bases atuais: a das torres gêmeas no 11 de Setembro de 2001. “Houve a partir daí um súbito e contínuo reforço do poder do Estado, sua afirmação crescente perante o mercado e a sociedade civil”, observa. “Um dos corolários da mudança àquela época é que a política e a estratégia tinham voltado, como nos tempos da guerra, a ganhar total prioridade sobre a economia. Após os atentados, porém, com a injeção intensa de recursos financeiros no sistema pelo Estado, a economia melhorou e, amortecidos os primeiros impactos dos atentados, retomado o vigor da expansão econômica depois de 2002, criou-se a impressão de que o mercado tinha recuperado sua autonomia em relação ao domínio da política”, analisa. Para o professor, havia uma intensificação de movimento experimentado pelo mercado após a queda do Muro: “O fim do socialismo foi um maremoto político. O vácuo ideológico e o desequilíbrio de forças consequentes tornaram possível aquilo que era antes inconcebível: a absoluta hegemonia dos mercados financeiros e os excessos responsáveis pelo colapso atual”. Afinal, o Muro em ruínas colocara conceitos como “esquerda” e “direita” numa posição delicada. “A queda do Muro e o fim da União Soviética e a redemocratização geral esvaziaram as propostas e a energia social da esquerda. Foram os detergentes de ideologias”, como observa o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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Um POLÍTICA EXTERNA

estrondo que ainda

ecoa duas

décadas Discussão sobre aniversário da queda do Muro de Berlim revela o seu impacto na atual crise mundial

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Queda do Muro de Berlim há 20 anos: entusiasmo gerou crise atual

Ganhou força a “terceira via” pregada por Giddens e praticada por Tony Blair. “Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo o que pudesse limitar as oportunidades dos negócios. A fiscalização, se acreditava, ficaria por conta da suposta capacidade autorregulatória dos mercados.” O que não se percebeu,

> Artigos e livros 1. Sebestyen, V. Revolution 1989: the fall of the soviet empire. Ramdom House, 480 páginas, 2009. 2. Celso Lafer e Gelson Fonseca Jr. Questões para a diplomacia no contexto internacional das polaridades indefinidas (notas analíticas e algumas sugestões). In Fonseca, Gelson e Castro, Sérgio H. N. (orgs.). Temas de política externa II (Brasília/ São Paulo, Funag/Paz e Terra, 1994). 3. RICUPERO, R. A crise financeira e a queda do muro de Berlim. Estudos Avançados. v. 22, n. 64. 2008. 4. Lafer, C. Os novos valores do sistema internacional na década de 90. Estratégia. p. 8-9. 1991.

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continua o diplomata, foi que o papel do Estado passaria a ser cada vez mais permanente como fator de estabilização de uma situação econômica de crescente desequilíbrio interno e externo. “Se a crise de 1929 foi uma crise de mercados, a crise dos anos 1990 foi uma crise do Estado. E esta crise do Estado, deste ponto de vista, se coloca no plano de quem é que vai saldar estes créditos que os indivíduos têm em relação à coletividade. Um crédito para o qual é preciso ter recursos e para os quais um Estado fragilizado, inclusive na sua capacidade de promover bem-estar social, se coloca com clareza”, avalia Celso Lafer, professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ricupero lembra ainda que as crises da década de 1990 (que atingiram México, Argentina, quase todos os países asiáticos, em 1997, Rússia e Brasil) não serviram como lição para o sistema. “Longe de se beneficiar de alguma tendência inelutável derivada da natureza das coisas, a proliferação financeira foi a política oficial perseguida e imposta vigorosamente pelo governo americano, pelos criadores do Consenso de Washington, pela quase totalidade das organizações e dos bancos internacionais liderados pelo FMI

e pelo Banco Mundial”, analisa. “Nos Estados Unidos, como resultado, o setor financeiro saltou de 10% do total dos lucros corporativos em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos.” Daí a justa indignação de Ricupero com a ausência de uma análise política e ideológica da crise atual, incluindo-se aí um retrospecto histórico que remonta ao fim do Muro. “Essas transformações todas não se deram por geração espontânea. Foram o produto de escolhas políticas, da atividade determinante e das decisões do Executivo e do Congresso americano. Constituíram o resultado da ação política de um Estado a serviço de interesses de setores econômicos influentes, em especial o financeiro. A manipulação ideológica esforçou-se, no entanto, em fazer crer que a evolução não passava de imposição irresistível da globalização econômica.” Nikita Krushev, onde quer que esteja, deve estar rindo de ter inventado uma monstruosidade como o Muro, que, mesmo demolido, mostrou-se uma bomba-relógio anticapitalista. Unificação - “Em paralelo com as mo-

dificações que nos EUA reforçavam a convergência entre governo e setor financeiro, o colapso do comunismo


“nova ordem internacional”, que seria a “construção de todos”, movimento que gera uma revalorização das Nações Unidas, a que, pensava-se, livre dos entraves que a impediam de funcionar plenamente na Guerra Fria, se seguiria um novo momento em que a ONU poderia cumprir sua função de instrumento de segurança universal. Realidade - Após essa euforia, seguiu-

se, continuam Lafer e Fonseca, a emergência de forças centrífugas do “segundo pós-Guerra Fria”, iniciado com a derrocada da URSS e o fim da Iugoslávia. Era o fim da crença no triunfo dos valores iluministas universais e o ressurgimento de conflitos étnicos, religiosos, culturais, que foram um forte obstáculo à lógica da globalização. “O Muro de Berlim foi o grande símbolo da realidade que fez da política internacional algo contíguo à guerra, tendo como critério o antagonismo amigo/ inimigo. Daí o realismo da lógica do poder da Guerra Fria. A sua queda gerou expectativas positivas sobre a possibilidade de construção de uma ordem mundial mais pacífica e mais cooperativa. Isso não se manteve, porque o mundo mudou novamente”, observa Lafer. O Muro igualmente movimentou a política externa brasileira. “A chancelaria brasileira, eu costumava dizer, havia sido pensada tendo em vista a relação Leste-Oeste e a relação Norte-Sul como articulada nas brechas da primeira. O fim da relação Leste-Oeste significava que a relação Norte-Sul tinha que ser repensada à luz não de uma nova conjuntura, mas de uma transformação da estrutura de funcionamento do sistema internacional. Minha reflexão era que o mundo continuava mudando e que estávamos operando num jogo de forças centrípetas e centrífugas. As primeiras levavam à globalização e as segundas à fragmentação” nota Lafer. No ruir de uma estrutura edificada escondiam-se problemas futuros e o fim das utopias, agora as democráticas. “É a intuição poética de Camões, no início da globalização dos descobrimentos, ao voltar e encontrar a pátria ‘metida no gosto da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza’”, lembra Ricupero. n

Houve um súbito e contínuo reforço do poder do Estado, sua afirmação perante o mercado Rubens Ricupero

J.F. DIORIO/AG NCIA ESTADO/AE

real e a mudança de rumos na China deram as condições necessárias para consolidar o modelo em ascensão. O primeiro pôs fim à divisão da Alemanha, da Europa e do mundo em dois blocos ideológicos e militares incompatíveis, possibilitando a unificação em escala planetária dos mercados para as finanças e para o comércio”, observa Ricupero. “O segundo deu nascimento ao processo que garantiu 25 anos de crescimento acelerado chinês.” “Efetivamente, se não se alterar de forma radical a correlação de forças, é difícil imaginar que o governo americano aceite um tipo de reforma que lhe reduza o poder de modo substancial. Assim como o setor financeiro, temporariamente enfraquecido, não terá outro remédio senão aceitar por algum tempo a presença intrusiva do Estado”, avalia Ricupero. A queda do Muro, porém, foi saudada de início como o começo de uma nova e melhor era na relação entre os países. “Foi um momento interessante, por reunir líderes em torno de uma centro-esquerda preo­cupada com valores, bem como com a arquitetura financeira. Essa articulação foi afetada pelo fim do mandato desses governantes: Bill Clinton, Schroeder, D’Alema, Jospin, Fernando Henrique Cardoso, Tony Blair. Eles tentaram fixar a agenda pós-Guerra Fria, tomando como marco inaugural desse novo tempo a queda do Muro”, analisa. “Havia a expectativa de que era preciso construir uma ordem mundial mais kantiana, mais cosmopolita, mais humana. Isso tudo foi colocado em xeque após o 11 de Setembro. Ali o mundo mudou.” No artigo “Questões para a diplomacia no contexto internacional das polaridades indefinidas”, Lafer e o diplomata Gelson Fonseca Jr. formulam, a partir do fim do Muro, um diagnóstico do futuro do sistema internacional. Segundo eles, a predominância de forças centrípetas era a característica marcante do primeiro “pós-Guerra Fria, período entre a queda do Muro e a guerra do Golfo, entre 1990 e 1991. Nesse período, observam, houve uma análise otimista e mesmo eufórica das transformações internacionais, apontando para o surgimento de uma “comunidade internacional”, racionalmente orientada pelo mercado e pela democracia. Volta-se a falar em

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RESENHA

Eternamente a discutir a relação Brasil e Estados Unidos continuam não se entendendo, apesar do sucesso efêmero obtido por Kissinger e Silveira CARLOS

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Kissinger

e o Brasil Matias Spektor Jorge Zahar 234 páginas R$ 34,00

eja intermediando rixas entre Chávez e o presidente americano do momento ou mesmo se esforçando em reconduzir líderes depostos ao poder, influindo diretamente na política externa de vizinhos, a diplomacia brasileira dos últimos anos parece cada vez mais aferrada ao espírito ativista do passado, quando os Estados Unidos eram vistos sempre como um obstáculo, e não como um parceiro. "Chegamos ao século XXI sem uma fórmula satisfatória para conduzir negócios com a maior potência do planeta e, apesar das ambições brasileiras de ter status especial no tratamento dado pelos EUA às nações, o argumento de que temos algo diferente a contribuir para a sociedade internacional nunca é decifrado com clareza", afirma Matias Spektor, professor de relações internacionais da Escola Superior de Ciências Sociais/CPDOC, autor do estudo, recémlançado pela editora Zahar, Kissinger e o Brasil, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2007 na Universidade de Oxford, Inglaterra. Segundo Spektor, apesar dessa constante assimetria da relação entre os dois países, mais pautada pela barganha do que por uma relação séria, EUA e Brasil experimentaram uma curta e virginal "lua de mel" entre 1969, com a indicação de Henry Kissinger como conselheiro de segurança nacional da administração Nixon, e 1983, quando o diplomata bra - . sileiro Azeredo da Silveira (1917-1990) deixou o cargo de embaixador brasileiro em Washington, após cinco anos como ministro das Relações Exteriores do governo Geisel, entre 1974 e 1979. Quem, sem querer, uniu os dois representantes de seus países foi Nixon, que em 1971 afirmou que o "Brasil é a chave do futuro". "Ele foi um dos primeiros presidentes a adotar a nova visão global

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pregada por Kissinger, que defendia a necessidade de os EUA manterem relações especiais com poderes-chave regionais." Após décadas em que as "amizades" entre Estados eram resolvidas pela América através da coerção, o conselheiro de segurança defendia o conceito de "devolução", para ele uma forma de hegemonia "benigna": era preciso devolver poder e responsabilidade para um grupo de nações regionais confiáveis, para que os EUA, envolvidos em conflitos do outro lado do mundo, pudessem dormir tranquilos com "amigos" controlando a situação dos vizinhos. Para o pesquisador, Kissinger sabia ser melhor abrir mão de alguns dedinhos do poder para não perder outros anéis além daqueles dos charutos cubanos. Isso significava uma intensa dose de boa vontade do conselheiro para ganhar apoio desses "parceiros", lançando mão da retórica da igualdade e do respeito. "Daí a atenção inusitada que se deu ao Brasil. Tanto fazia se esses governos não fossem democráticos. Pelo contrário: Nixon e Kissinger viam ditaduras como aliados melhores, pois, pensavam, democracias eram sujeitas às mudanças da opinião pública." Ainda assim não foi fácil encontrar um governo brasileiro na medida: quando visitou Nixon na Casa Branca, o general Médici, por exemplo, pareceu mais interessado em posar ao lado do presidente americano para uma foto do que discutir política mundial. Geisel e Silveira vieram para salvar Kissinger. "Foi um momento histórico. Nunca antes as duplas, americanas e brasileiras, coordenaram tão estreitamente suas políticas externas e nunca antes seus diplomatas observaram-se tão mutuamente para acertar o passo." Havia, porém, problemas. Azeredo, em sintonia com Geisel, defendia com firmeza a soberania nacional e acreditava piamente que o destino brasileiro era entrar, com justeza, no clube seleto dos Estados influentes do planeta. Os EUA, é claro, não estavam dispostos a ir tão longe. Mas o mais grave era justamente a virtude do novo acerto: a sintonia Kissinger e Silveira. "Tudo ficou muito centralizado nas figuras dos dois, ou seja, a aproximação se dava a despeito da burocracia diplomática dos países, e não em função dela. Relações pessoais não sustentam relações entre Estados." Saindo um dos jogadores, o time se dispersaria, como aconteceu, mesmo Kissinger tendo aceitado, por um bom tempo, "estripulias" nacionais como o acordo nuclear com a Alemanha. "O gap entre as manifestações oficiais e a realidade das relações bilaterais permanece grande. A noção atual de autonomia, com ênfase no desenvolvimento doméstico, permanece, hoje, como há 30 anos:'


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livros

Antigos e modernos Francisco Murari Pires (org.) Alameda Editorial 504 páginas, R$ 60,00

Esta coletânea de textos apresenta o colóquio realizado pelo Departamento de História da Universidade de São Paulo. Antigos e modernos mostra um conjunto de estudos que problematizam esta modalidade especial de conhecer e versar sobre o mundo, travando diálogos entre as mais distintas definições que caracterizam o ofício do historiador de ontem e de hoje. Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

Cerejeiras e cafezais Jaime Benchimol [et al] Bom Texto 408 páginas, R$ 62,00

O livro é o resultado do trabalho de pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz sobre as relações médico-científicas entre Brasil e Japão e a saga de Hideyo Noguchi. O intercâmbio científico abordado entre os dois países traça uma parte da história da saúde pública. Dividido em duas partes, examina a gênese da medicina japonesa e a contribuição de Noguchi para a compreensão de várias doenças. Bom Texto (21) 2431-8811 www.bomtexto.com.br

Decifrando a Terra

fotos Eduardo Cesar

Wilson Teixeira [et al] Companhia Editora Nacional 624 páginas, R$ 178,00

Depois de quase dez anos, esta segunda edição de Decifrando a Terra foi atualizada em relação ao conhecimento científico e tecnológico e estruturação dos conteúdos para o ensino das ciências geológicas em diversos cursos universitários. O livro repleto de ilustrações se divide em quatro unidades: A Terra e suas origens; A Terra sólida: minerais e rochas; Geologia e descoberta da magnitude do tempo; e A água como recurso. Companhia Editora Nacional (11) 2799-7799 www.editoranacional.com.br

Humor e agudeza em Joseph Haydn Mônica Lucas Annablume / Fapesp 234 páginas, R$ 33,75

Mônica Lucas seleciona críticas de jornais e revistas do século XVIII que discorrem sobre o contexto teórico que envolve a produção de Haydn (1732-1809), concentrando-se nas ideias de humor e agudeza [Witz], que têm sido frequentemente relacionadas ao compositor e sua produção desde sua própria época. A autora desenvolve também a ideia do cômico e as visões sobre o riso que fornecem subsídios para o estudo dos quartetos de cordas op. 33 (1781). AnnaBlume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Os músicos negros Antônio Carlos dos Santos Annablume/Fapesp 206 páginas, R$ 28,50

O livro se baseia numa pesquisa historiográfica e análise de documentos que resgatam a produção musical dos escravos da Real Fazenda de Santa Cruz no Rio de Janeiro durante o período da Corte de dom João VI, nos anos de 1808 a 1871. Ao escrever sobre a produção cultural desse período, o autor recupera o papel, muitas vezes ignorado, dos negros na atividade musical erudita. AnnaBlume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Redes e sociologia econômica Ana Cristina Braga Martes (org.) EdUFSCar 336 páginas, R$ 52,00

Este livro reúne trabalhos clássicos e recentes que tratam destas duas abordagens em expansão no meio acadêmico. Ao se questionarem sobre o modo que as instituições e estruturas sociais conformam os mercados e as organizações econômicas, os autores fornecem importantes subsídios para a compreensão de fenômenos contemporâneos de interesse a todas as áreas das ciências sociais. Editora UFSCar (16) 3351-8137 www.editora.ufscar.br

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ficção

Serpentes exatas

Santiago Nazarian

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professor caminhou até o palco sem olhar para os lados. Sem olhar para trás, sentou-se e ajeitou o microfone, pronto para começar. Pegou o copo d’água. Bebeu. E só então olhou para a plateia de estudantes que se encontrava à sua frente. “Meu Deus...” Há algumas semanas despertara nele um medo terrível de algo que nunca acontecera e que, provavelmente, nunca aconteceria. Era por isso mesmo. Por ele saber que jamais aconteceria, despertou nele o medo e ele sabia: suas palestras nunca mais seriam as mesmas. Não se lembrava de como começara, talvez num dia em que se olhara mais demoradamente no espelho. Talvez num dia em que olhara mais demoradamente para os estudantes, uma ruga a mais cresceu em seu rosto e foi o suficiente. Foi o suficiente para o medo se instaurar e ele tremer diante da possibilidade de qualquer contato com aqueles garotos... “Ah, aqueles garotos...” Dezenas contra ele. Nem precisaria contar. Aquele cheiro de chiclete, de mochilas, de um novo ruído sendo mastigado preenchia a sala até dentro de seu terno e para dentro do ser. Aquilo já era o suficiente para ele se sentir derrotado. Mas era pago para isso; era pago para perder. Melhor começar a falar. Assim, se concentraria em sua própria genialidade e não deixaria que os olhos passeando pela plateia se fixassem num ponto específico, num garoto específico. Seriam todos genéricos, como ele gostaria de vê-los. Mas ele sabia – agora ele sabia – que o genérico era ele. Mais um professor, com suas teses e seus discursos. Suas mentiras e suas desculpas. Talvez até estivesse certo, talvez até tivesse razão, mas não faria a menor diferença, se ele não pudesse tocar seus corações com a beleza que entalava em sua garganta. Ele só podia pigarrear. Beleza. Começou. A nova geração literária. O que ele poderia dizer sobre a nova geração literária se ela estava ali, diante de seus olhos, a beleza, a nova geração, a verdade literária que escapava dos dedos de poetas como suas pa-

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lavras escapariam da atenção desses todos? “Esses garotos querem acabar comigo.” Fixou-se então na primeira fila e sentiu-se aliviado. Uma menina de óculos parecia pronta para anotar que a nova geração literária encontra nos blogs um veículo dinâmico e democrático para a circulação de ideias, apostando numa prosa espontânea, em detrimento de uma literatura elaborada. Ele começava. Sim, ela lhe salvaria. O professor seguiu em frente. Vindo de diversas regiões do Brasil, os escritores se estabelecem no sudoeste. Mas recusava-se a subir o olhar. Recusava-se a olhar para as fileiras mais elevadas e mais distantes do auditório. Sabia que lá encontraria a morte. A sua própria. A morte de suas teses. Para que a literatura, que ele tentava dissecar, sobrevivesse no dia a dia, vigorosa, musculosa, espada em mãos, penas como flechas, cortando sua cabeça. Ele se perdeu ligeiramente. Recorreu a um jovem de óculos da primeira fileira. Sim, a literatura perde espaço para outras formas e busca nelas próprias, no cinema, na música e na televisão, formas fragmentárias de sobreviver. E ele a agarrava firmemente, a literatura, tentava afogá-la, para que ele próprio pudesse triunfar. Trazia consigo um Machado, Proust, Kafka, Baudelaire! Mas, oh, triunfaria realmente se lhes entregasse Rimbaud. Esse, sim, matara a juventude pela vida eterna. Mostraria a todos os garotos que já não era possível, que não seriam capazes. Eles chegaram tarde. Incapaz de acreditar, continuava falando, com medo de ser entregue à verdade. Uma nova geração literária que tem no marketing seu manifesto. Agora uma garota ria. E alto! Não bastava toda aquela felicidade implícita que o fazia cada vez mais triste? Não bastavam triunfais dentes brancos para lhe morder o pescoço? Uma garota ria alto e ele não a procurava. Não, ele não a procuraria. Pois sabia que ela estaria acompanhada de um garoto ainda mais alto, ainda mais branco, que destruiria de vez o grande romance brasileiro.


luana geiger

Foi quando ouviu um estalo. E sabia que estalo era aquele. Aquele estalo veio acompanhado do cheiro dos hormônios, da saliva, da boca no gargalo e da barba por fazer. Algum garoto abrira uma lata de cerveja. Ave! Ele não se atreveria a olhar. Sentia-se cada vez mais seco, sugado, sozinho num julgamento em que ele era o réu. Assassinara a literatura. Sequestro seguido de morte. Onde estavam seus mestres para lhe ajudar? Onde estavam seus cabelos? Seus hormônios? Ah, como ele queria ter sido loiro... Num descuido, captou um sorriso de um jovem da quarta fileira. “Ao menos não é loiro”, pensou. Mas como sorria... Que lábios malvados, que dentes afiados. “Deus me proteja, se ele cravá-los em mim...” Era uma serpente hipnotizando um rato. Ele, entregue num serpentário. O sorriso do garoto colocava os pés na cadeira da frente. Mostrava-lhe a sola, para que o professor tivesse certeza de que estava sendo pisoteado. Ah, era pisoteado. Por mais que tentasse ver os garotos como serpentes, por mais que quisesse ser apenas um rato para alimentá-los, por mais que desejasse ser textura entre os dentes, tecido constituinte, proteína animal, ele sabia, eles sempre teriam pernas para lhe pisar. E por mais que desejasse fazê-los crescer, se derramar, com o que tinha a oferecer, ele sabia, só poderia fazer crescer vegetais. Só poderia adubar. Deveria ter esquecido essa batalha, histórias, História, e ter se concentrado desde o começo em metáforas mais exatas. Deveria ter sido herpetólogo, estudado o comportamento dos répteis. Das cobras. Animais que trocam de pele, mas que nunca, jamais envelhecem. Rejuvenescem, para reafirmar. Animais exatos, para jamais discordar. Veneno denso, para jamais diluir. Ciências humanas? Como os humanos podem ter alguma ciência? Ele não tinha certeza. Mas os répteis, as serpentes, animais exatos diante das ciências humanas têm braços para levantar – e que braços! “Meu Deus...” que braços, que apontam “para mim”, que “me fazem calar”. “Eu queria insistir. Queria prosseguir, queria chegar até o final da estrada, e continuar, me jogar

no mar, afogar. Mas esses garotos me levantam o braço, me desaceleram.” O professor é obrigado a levantar os olhos até a última fileira. E lá está o rapaz de braço erguido – “e que braço!”. O professor poderia se calar para sempre se tivesse um braço como aquele, ereto, levantado, erguendo-o para além das dúvidas e das possibilidades. Da utopia pessoal de cada escritor, enquanto que, em conjunto, são céticos. Pediu a Deus que o garoto não perguntasse nada de complicado. Porque assim estaria se colocando no mesmo barco que o professor, mas com braços mais fortes para remar. Estaria se enganando que também pensava sobre literatura, quando na verdade a literatura era ele próprio, de braço levantado. “Não fale nada, meu jovem, fique quieto. Não sorria em voz alta, porque rirá para me rebaixar. Essa literatura que tomo como minha está em seus braços e eu não posso carregar. Não posso carregar o peso de meus anos, com a agilidade dos seus. Você dança, enquanto tento caminhar.” O professor teve de dar espaço às dúvidas dos alunos. Pausar seu próprio discurso. Teve de focalizar seus olhos no braço levantando, naquele tríceps exposto, embaçando seus óculos de leitura. Foram tantas metáforas. Tantas frases gastas. Tantas palavras para justificar sua existência. E agora ele era obrigado apenas a deixar de ser. Deixar de exercer para que um garoto perguntasse. Não haveria comparações suficientes para sua derrota. Não haveria. Nem alegoria. Por favor, faça sua pergunta. E a saliva umedecendo expectativas. O pomo de adão projetando-se a ele. A juventude disparando suas flechas... perguntou: O senhor pode falar mais perto do microfone? Não dá para ouvir aqui de trás. Santiago Nazarian é paulistano, autor de cinco romances, entre eles O prédio, o tédio e o menino cego, Mastigando humanos e Feriado de mim mesmo. Também é tradutor e colabora com diversos periódicos. PESQUISA FAPESP 164

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