Asma

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Pesquisa

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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

NOVEMBRO 2009

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CIÊNCIA MICROBIOLOGIA

68 NOVOS MATERIAIS

Descobertas sobre

Brocas com diamante

genes de leveduras incentivam a

sintético podem prospectar petróleo

pesquisa para ampliar produtividade de etanol

no fundo do mar e proteger peças de aço 72 FOTÔNICA Luz laser permite criar

49 BOTÃNICA

Árvore da Amazônia

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CAPA

16 Resistente às terapias habituais, a asma grave

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POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

economiza energia para sobreviver a

nanoestruturas potiméricas de

alagamentos de até cinco

geometria

28 PRÊMIO

NOBEL

76 MEDICINA

pode ser um conjunto

Número recorde de

de enfermidades, e não uma doença única

laureadas mostra como cresce o espaço das mulheres

Convivência com seres humanos altera a dieta de bugios e os expõe

no topo da ciência

à febre amarela

Prótese de mandíbula

52 ECOLOGIA

reproduz condições mecânicas originais 78

ENTREVISTA

os desdobramentos futuros da ciência

premiações

5

de

cientistas com quem já trabalharam

HOMENAGEM

biogás do lixo para

Desenhista e

iluminação e geração de eletricidade

entomólogo, João Camargo criou a mais notável coleção de abelhas

34 DIFUSÃO

Projeto da USP

>

80 ARQUITETURA

Projeto temático

56 QUíMICA

da rede pública

Propriedades

analisa participação de imigrantes

inesperadas de reações podem servir como analogia para

36 AVALIAÇÃO

Rankings mostram o lugar da pesquisa

na construção metrópole

brasileira no mundo Equipe de Santa

Banco de dados mapeia migração de

Catarina desvenda enigma de estrela dupla

mão de obra qualificada que ajudou na

GENÉTICA

industrialização pós-1945

39 PARCERIA

Brasil e Canadá vão ampliar colaboração

6

Células-tronco

entre suas empresas

94 RESENHA

90 SOCIOLOGIA Como funcionam os tours pelas favelas cariocas

conforme a fonte

5 CARTA DA EDITORA

6 MEMÓRIA

95 LIVROS

22 ESTRATÉGIAS

96 FiCÇÃO

paulista

de

cordão umbilical têm propriedades distintas

em pesquisa e desenvolvimento

DE PRODUÇÃO

paulista

86 HISTÓRIA 58 ASTRONOMIA

nossas universidades em áreas específicas

64 LINHA

da

entender a vida

e a situação de

SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 4 CARTAS

HUMANIDADES

sem ferrão do país

leva exposição sobre oioloqia e física a alunos

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ENERGIA

Aterro paulista produz

O filósofo e físico Michel Paty examina

62 SCIELO NOTíCIAS

complexa

meses ininterruptos

32 Brasileiros comemoram 8

TECNOLOGIA

40 LABORATÓRIO

98 CLASSIFICADOS


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CARTAS cartas@fapesp.br

PeiaqeTecnüisa

fUNDAÇÃO DE t PESQUISA DO [!

FAPESP

10 anos de Pesquisa FAPESP As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

Parabéns a toda a redação da revista Pesquisa FAPESP pelos 10 gloriosos anos de vida. Como jornalista e leitor atento de boa parte da produção de nossa imprensa, destaco duas qualidades que diferenciam Pesquisa FAPESP: rigor absoluto na apuração e o aprofundamento nos temas. A reportagem da edição 164sobre a digitalização dos documentos sobre a ditadura militar ("Anos de chumbo on-line") é prova acabada desse rigor e profundidade. NELSON MARQUES

São Paulo, SP

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

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Aquecimento

global

foi que o norte estava "para baixo" recende aos ares da influência do hemisfério setentrional sobre a cultura das civilizações austrais. As fotos devem, é claro, estar alinhadas na mesma direção para facilitar a comparação, mas não há regra ou convenção que diga qual ponto cardeal fica acima ou abaixo na folha. Caberia até uma reportagem resgatando eventuais trabalhos de pesquisadores que estudem a influência dos domínios da linguagem para "nortear" nossos escritos, já que não se pode "sulcar" Ficam os cumprimentos pelo altíssimo nível da revista nesta década de existência, ou quase debute, considerando os boletins de antes, todos lidos e muito bem guardados e sempre consultados.

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JOSÉ ARANA VICE'PRESIDE CONSELHO

SU

CELSO LAFER, HORÁCIO lAFE VOORWAlO. JC MARTlNS. JOSÉ BELLUZZO, SE[ VAHAN AGOPYA CONSELHO

RICARDO RENZ' DIRETOR PRE~ CARLOS HENRII DIRETOR CIE" JOAQUIM DIRETOR

J. DE AOM

Pe~ CONSELHO ED LUIZ HENRIQUE I (COOROlHADOROEHi CARlOS HENRIQ fRANClSCQ ANTI JOAQUIM J. DE C MÁRIO .rost AS( PAUlA MONTERe WAGNER DO AMJ DIRETORA DE I MARllUCE MOUfi EDITOR CHEFE NElDSON MARCC

Mais do que ajudar a antever os efeitos do aquecimento global em 2050 ou 2080, os modelos matemáticos apontam o rumo para onde já estamos nos dirigindo. Mesmo com todo o conhecimento científico adquirido, o homem continua a tratar a natureza com descaso. Os esforços dos que respeitam e acreditam poder viver em harmonia com a natureza ainda são tímidos perto da destruição de ecossistemas importantíssimos para nossa fauna e flora. O aquecimento global já é uma realidade e as consequências por séculos de destruição ao meio ambiente já estão aparecendo. A edição 164 de Pesquisa FAPESP, com as reportagens "O futuro da natureza e da agricultura" e "Terra seca, rios cheios",mais uma vez trata do assunto com propriedade e aponta caminhos a serem trilhados para a preservação do meio ambiente e, consequentemente, das lavouras brasileiras e do volume de água dos rios. JORGE LUIZ RICCI

São Paulo, SP

ADILSON

ROBERTO GONÇALVES

Escola de Engenharia de Lorena/USP Lorena, SP

A quase imperceptível foto invertida da edição 162 mereceu a correção na edição 164, mas dizer que o motivo

EDITORES EXEI CARLOS HAAG (H FASRfClO MAROU MARCOS DE OLlV RICARDO ZORZE1 EDITORES ESPf CARLOS FIORAVA EDITORAS ASSI DINORAH ERENO,

Fotos on-üne Gostaria de cumprimentá-Ias pelas fotos da Pesquisa FAPESP On-line (www.revistapesquisa.fapesp.br ). As imagens são sempre caprichadas e complementam as reportagens. Em especial a página da edição 164 (outubro), no ar, está show de bola. Uma sequência de fotos marcantes. Parabéns! VÂNIA PAULA DE ALMEIDA NERIS

Instituto de Computação/Unicarnp Campinas, SP

REVISÃO MÁRCIO GUIMARi EDITORA DE AF MAYUMIOKUYAM ARTE MARIA CECILIA FI JÚLlA CHEREM R fOTÓGRAfOS EDUARDO CESAR SECRETARIA D. ANDRESSA MATII COLABORADOJ; ANA LIMA. ANOR OANIELLE MACIEI LEANDRO NEGRO PIOTR MARKIEWI OS ARTIGOS A NECESSARIAM É PROIBIDA A I DE TEXTOS E F

PARA ANUNCIA (11)3838'4008 PARA ASSINAR fAPESP@TElETI (11)3038'1434 FAX: (11)3038'14 GERÊNCIA DE o PAUlA ILlADIS TI e-meu. publicidad

Correção

GERr:NCIA DE c RUTE ROllO AR~

e-mattruteetece

Na reportagem "Lá no alto da serra" (edição 164) o endereço eletrônico correto de onde encontrar o livro Plantas raras do Brasil é www.plantasraras.org.br.

Norte e sul

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CELSO lAF"ER PRESIDENTE

IMPRESSÃO PLURAL EDITOR,ol TIRAGEM: 36.901 DISTRIBUiÇÃO OINAP GESTÃO ADMIN INSTITUTO UNIEI FAPESP RUA PIO XI, N° 1. ALTO DA LAPA -

SECRET

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@lapesp.br. pelo lax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI.1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

GOVER~

INSTITUTC


carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

As muitas faces da asma

Celso Lafer

Presidente josé arana varela

vice-Presidente

Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler

Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), Danielle Maciel, Gonçalo Junior, Laurabeatriz, Leandro Negro, Marcos Garuti, Rodrigo Lacerda, Piotr Markiewicz e Yuri Vasconcelos

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Secretaria do ensino superior Governo do estado de São Paulo

instituto verificador de circulação

Mariluce Moura - Diretora de Redação

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ão bastasse o próprio sofrimento que a asma grave lhe causava – a angústia da falta de ar, a opressão dolorosa do peito, a tosse que o acordava seguidamente ao longo das madrugadas, como se queixava em cartas à mãe –, Marcel Proust ainda tinha que amargar a incompreensão de parentes, amigos e médicos que viam em sua doença não mais que manifestações exacerbadas de histeria ou de pura neurastenia. O autor da extraordinária obra Em busca do tempo perdido atravessou a vida entre crises que o levaram à semi-invalidez pouco depois dos 30 anos e o cercaram até a morte, assinalada pela falência respiratória aos 52 anos, em 1922. Jamais mereceu o benefício da dúvida quanto à realidade, mais, quanto à materialidade mesmo de sua doença – e no entanto, no final do século XIX, alguma evidência já surgira de que a asma severa tinha um caráter inflamatório, pelo menos de acordo com um dos pesquisadores cujos novos achados a respeito da doença aparecem na reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP. O médico eminente Adrien Proust, por exemplo, pai do sofrido Marcel, preferia apostar no caráter enfermiço de seu filho como fonte de seus males. Não espanta muito essa visão enviesada para a asma no século XIX, quando se constata que, estando em curso o século XXI, este é ainda um problema de saúde cercado por mitos e preconceitos, mesmo sendo tão disseminado na população do mundo inteiro – no Brasil afeta 12% da população adulta. Entre os que se comprazem em psicologizar todas as doenças, por exemplo, há os que estabelecem uma estapafúrdia relação entre asma e mal resolvidos sentimentos de raiva. Curioso determinismo psíquico para uma enfermidade que os especialistas confessadamente ainda mal compreendem e ante a qual pesquisadores respeitáveis manifestam a dúvida fundamental sobre se se trata mesmo de uma ou de muitas doenças. O que é seguro é que um quadro de asma grave é triste, ao cortar a naturalidade da mais primária troca entre o dentro e o fora que assegura a existência. E é doloroso e desesperador, ao produzir a sufocação, a impotência para inspirar o ar que assegura o suprimento de oxigênio indispensável para fazer funcionar o corpo porque cada brônquio, cada bronquíolo, cada alvéolo está a ponto de explodir pelo CO2 que acumula, que não consegue expulsar.

A partir de uma discussão sobre a importância da asma na saúde pública, a reportagem de capa desta edição foi buscar os avanços que os pesquisadores brasileiros, em relação estreita com colegas de outros países, estão obtendo no conhecimento básico da asma, em sua prevenção e tratamento. O maior trabalho de garimpo dos estudos e entrevistas com especialistas foi de Ricardo Zorzetto, editor de ciência, com colaboração de minha parte. E se está longe de esgotar o assunto, a revista certamente oferece com o texto, a partir da página 16, uma contribuição para tornar mais visível o campo das pesquisas sobre a ainda mal compreendida asma. *** Alguns outros destaques: Como faz todos os anos, Pesquisa FAPESP publica nesta edição de novembro os ganhadores do Prêmio Nobel. Desta vez, porém, a notícia merece destaque especial pelo número inusual de mulheres laureadas – foram quatro nas áreas de ciência e uma em literatura. O editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, conta como vêm crescendo o espaço e o reconhecimento para as mulheres que brilham na ciência de todo o mundo (página 28). A falta de brilho é uma das características dos diamantes sintéticos tratados na principal reportagem de tecnologia, escrita pelo editor Marcos de Oliveira (página 68). A cor escura e opaca torna esse material inútil como joia, mas a resistência à corrosão, dureza e condutividade térmica são qualidades muito apreciadas na indústria. Brocas para prospecção em poços de petróleo e cobertura de peças que sofrem ataques químicos e desgaste por atrito são algumas de suas muitas aplicações. Em humanidades, o editor Carlos Haag explica como os estrangeiros que se radicaram em São Paulo foram fundamentais na construção física, demográfica, econômica, social e cultural da maior e mais diversa cidade brasileira (página 80). Um dos pontos altos do trabalho realizado por uma equipe de pesquisadores de quatro unidades da Universidade de São Paulo é um banco de dados com todo o material pesquisado, que ficará disponível na internet para quem quiser saber mais ou realizar outras investigações científicas. É um fecho ideal para uma pesquisa cheia de fôlego. PESQUISA FAPESP 165

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memória

Vigor aos 100 anos Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, de 1909, é a revista científica brasileira de maior impacto

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz

Neldson Marcolin

Q

uem abrisse o primeiro exemplar da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, em abril de 1909, certamente se surpreenderia com o conteúdo de autoria de alguns dos mais capazes pesquisadores brasileiros da época. Embora os assuntos fossem de caráter exclusivamente científico, havia clareza nos textos e beleza nas imagens usadas para ilustrar algumas das pesquisas apresentadas. “Os artigos tinham narrativa, como se fossem depoimentos. Por isso mesmo ainda são muito agradáveis de ler”, diz o pesquisador Ricardo Lourenço de Oliveira, atual editor do periódico. Hoje os textos científicos têm uma estrutura rígida, com resumo, introdução, material utilizado, método, resultado e conclusão (ou discussão), o que torna a leitura mais pragmática, mas menos atraente para o leigo. Memórias foi criada por Oswaldo Cruz para publicar apenas os trabalhos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), cuja produção crescia e englobava não só medicina experimental, mas também entomologia e ecologia. Ainda assim, já no primeiro número os artigos eram

Volume 1: concepção e edição de Oswaldo Cruz

Gutemberg brito/ioc

Desenhos aliavam arte e rigor, como este de Castro Silva


Quando não podia cuidar pessoalmente da revista, a tarefa era delegada a Lutz. No final dos anos 1930 a publicação se abriu para trabalhos de pesquisadores de outras instituições. Durante a década de 1970 vários cientistas do IOC foram obrigados a se exilar em razão do regime militar e a revista ficou sem sair

de 1977 a 1979. Em 1980 o então diretor recém-empossado, José Rodrigues Coura, começou um processo de recuperação da publicação. Instituiu o cargo de editor e um conselho editorial. “Memórias é o cartão de visitas do IOC em todo o mundo”, diz Coura. “E ainda representa uma economia de US$ 30 mil

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz

redigidos em português e traduzidos para outro idioma – normalmente o alemão, mas também para o francês ou o inglês –, o que facilitava a permuta e o interesse de instituições estrangeiras. Cem anos depois, cerca de 45% dos artigos submetidos vêm do exterior, a publicação tem o maior fator de impacto no Brasil entre as revistas científicas (1,450) e é a de maior impacto na América Latina na área de ciências biológicas. Com exceção de Adolfo Lutz, os pesquisadores do IOC eram jovens naquele final da década de 1910. “Eles eram porosos ao conhecimento. Carlos Chagas, Artur Neiva, Henrique da Rocha Lima e o próprio Oswaldo Cruz, entre outros, ainda estavam descobrindo tudo: a melhor maneira de construir uma instituição científica, de prestar serviços ou como fazer uma revista de ciência”, diz Lourenço. Nos primeiros anos não havia ainda o sistema de peer review, no qual pareceristas externos leem os artigos para sugerir mudanças e recomendar – ou não – a publicação. Cruz usava o próprio corpo de pesquisadores do IOC para revisar os textos. E ele mesmo se encarregava de editar, selecionar o papel, a gráfica para impressão e a distribuição para outros lugares do Brasil e do exterior. Também contratava desenhistas para retratar com fidelidade os objetos de estudo dos cientistas.

Gutemberg brito/ioc

Livro de tombo, onde eram registrados os artigos publicados

Artigo sobre doença de Chagas, em português e alemão, foi publicado em 1909 e está entre os mais citados ainda hoje

por ano porque deixamos de comprar por volta de 260 revistas, que vêm como permuta.” Nos anos 1990 o periódico ganhou versão on-line e passou a ser indexado pela biblioteca eletrônica SciELO. Antes de Memórias, ainda no século XIX, houve um periódico médico também de caráter científico, a Gazeta Médica da Bahia, de 1866. “A Gazeta tinha propostas e temas inovadores, seus artigos procuravam discutir problemas de saúde enfrentados pela população baiana e apresentavam investigação original”, diz a historiadora Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias de Estudos de História da Ciência, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). “Se considerarmos a ciência que se realizava em cada um dos períodos de criação das duas revistas, Memórias e Gazeta atendem aos parâmetros de cientificidade, embora fossem revistas muito diferentes”, conclui Márcia.

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entrevista

Michel Paty Um duplo olhar para a ciência O filósofo e físico francês examina as implicações epistemológicas de uma eventual unificação das teorias quântica e da relatividade Mariluce Moura e Fabrício Marques

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que se mostra, aliás, num livro acessível a não especialistas como A física do século XX, publicado no Brasil agora em 2009 pela editora Ideias e Letras, com tradução do também fílósofo e professor da USP Pablo Mariconda. Para os que quiserem se aventurar mais pelo olhar crítico de Michel Paty, há um outro livro seu tradu­ zido para o português, A matéria roubada, publicado pela Edusp em 1995, com tra­ dução de Mary Amazonas Leite de Barros. Os originais franceses das duas obras são respectivamente, de 2003 e de 1988. Nesta entrevista concedida em 18 de setembro passado (ver versão completa em pesquisafapesp.fapesp.br), Michel Paty, a par de discorrer muito à vontade sobre sua trajetória, explicou detida e apaixo­ nadamente sua visão da ciência como um sistema simbólico de pensamento cujas representações permitem, efetivamente, nossa aproximação de um mundo real do qual ainda sabemos muito pouco. Tomando Einstein como seu mestre por excelência (ver, a propósito, Pesquisa FA­ PESP nº 155, de janeiro de 2009, e edição especial de fevereiro de 2009), ele se permi­ tiu falar de forma enfática sobre a ciência como um trabalho também de criação e invenção, que abre espaço para grandes e inspirados momentos de síntese que a fa­ zem avançar por vias antes insuspeitadas. Michel Paty promete para os próximos anos três abordagens, que talvez se tor­ nem três diferentes livros, com base em suas pesquisas mais recentes: “A ciência como pensamento simbólico”, “a ciência como criação” e “a função da racionalida­ de”. Neste último ele promete deixar um pouco sua cautela ante os grandes temas

da filosofia de lado e arriscar compara­ ções entre a ciência ocidental e o conhe­ cimento de outras tradições. n Proponho começar por sua relação aca­ dêmica com o Brasil, antes de entrarmos no tema principal da entrevista, a física do século XXI. — Bom, tem a minha história pessoal e tem a história das relações entre Fran­ ça e Brasil, em particular no campo da filosofia e da filosofia da ciência. Então vou começar pela experiência pessoal: conheço o Brasil há bastante tempo, há 44 anos. Eu tenho uma formação inicial de físico e passei 20 anos ou mais da mi­ nha vida na pesquisa em física.

Dentro da universidade francesa? — Sim. Depois eu comecei uma nova carreira, em continuidade à outra, mas no campo da filosofia. Enquanto eu fazia pesquisa em física, também estudava, di­ gamos, às noites, filosofia. Assisti a aulas de filosofia, fiz todos os trabalhos necessá­ rios. Tenho uma tese em física e uma tese em filosofia, tenho dupla formação. n

n Como se explica seu interesse simultâneo

por física e por filosofia, áreas que normal­ mente as pessoas não juntam assim? — São coisas mais ou menos relaciona­ das com o perfil e a trajetória individual. Na verdade eu entrei na física – para mim isso não era óbvio – levado um pouco pelo acaso. Porque eu me formei ini­ cialmente na França em matemática. Gostava muito de matemática, gostava muito de literatura também, essas eram realmente as minhas duas inclinações.

fotos eduardo cesar

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ificilmente outra personagem pareceria tão ilustrativa do diá­ logo intelectual possível entre duas nações quanto Michel Pa­ ty, no colóquio “Racionalidades franco-brasileiras de ontem e de hoje”, realizado de 14 a 16 de setembro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), dentro das ati­ vidades Ano da França no Brasil. O filó­ sofo e físico francês de 71 anos tem visto sua trajetória profissional, seu trabalho acadêmico e a própria vida pessoal se im­ pregnarem fortemente de experiências brasileiras, desde que aqui aportou pela primeira vez em 1965, para um período de um ano no Departamento de Física da jovem Universidade de Brasília (UnB). Terminou ficando na instituição, assaltada pela violência da ditadura militar naquele ano, por apenas seis meses e preferiu cum­ prir o resto do período acertado para sua cooperação no país no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. Depois disso, Paty esperou a de­ mocracia voltar aos poucos à cena política brasileira e seus amigos cientistas retor­ narem ao Brasil nos voos da anistia, para recomeçar seus trajetos franco-brasileiros, de variadas formas. Ser professor visitante na USP tem sido uma delas. Ao longo desses anos, marcados de forma sensível pelo trânsito do investiga­ dor dos domínios da física de partículas para a filosofia da ciência, as reflexões de Paty sobre o conhecimento científico e, em especial, sobre o presente e o futuro da física ganharam, além de consistência, uma evidente facilidade de expressão. O


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Em seu livro A física do século XX há uma frase sua sobre como a matemática é a representação mais simples do pensa­ mento abstrato. Aproveitando então essa sua entrada na área... — Eu me encantei com a física depois de já começar a pesquisa. Eu ainda não tinha o doutorado de física, mas já tinha terminado todos os outros exames, já es­ tava bem formado, quando entrei um pouco por acaso em uma pós-graduação de física nuclear e de partículas em Bor­ deaux, minha cidade de nascimento, e lá era muito matemática essa formação, o que me agradava muito. Mas tinha físi­ca também, então descobri que essa física era diferente da física do colégio que eu não gostava tanto, na verdade. n

Diferente, em que sentido? –– Diferente porque lá parecia que o raciocínio era muito mais seguro, que era muito mais rigoroso e que realmente se dava muito bem naturalmente com a matemática. Enquanto o que aprendi no colégio não me permitia entender bem a conexão entre a matemática e a física. Tinha professores que insistiam nas experiências no laboratório, outros que insistiam nas fórmulas das equações, então a gente ficava um pouco na dúvida sobre, afinal, o que era a física. n

Isso não é uma deficiência do ensino? –– Eu acho, sim. E só quando você tem um mestre com uma visão muito agu­ da do que é a física consegue vencer essa defi­ciência. O primeiro mestre que eu encontrei rea­lmente, e que depois me en­ cantou, foi Einstein, porque seus escritos permitem entender as razões da física. E eu entendi bem Einstein porque, com a formação que estava fazendo, eu estava entrando no campo mesmo pela reflexão prática, pela experiência do pensamento. n

Tem um momento nesse livro em que emerge sua visão da física como um con­ junto ou um sistema de ideias, a par de ser também esse campo de experimentação e de representação de forças da natureza, e um pouco de invenção, criação. –– É exatamente isso. Na verdade, me voltei para a física quando entendi que ela era um pensamento próprio que per­ mitia alcançar a realidade material, mes­ mo essa realidade material que você não vê, que foge dos sentidos, porque são átomos – a distância entre átomos e nós é enorme e, se você quer em números, é 10 elevado à potência 23. Então é uma diferença muito grande e acontece que a força do pensamento da física é tal que você pode pensar essas entidades que vo­ cê nunca vai ver. Diretamente, claro, porque nós somos seres humanos que te­mos muitos átomos em tudo o que nós somos e encontramos. Eu comecei a en­ tender isso pela prática da pesquisa e de­ pois encontrei escritos de Albert Einstein e de outros. Mas Einstein foi o melhor, eu continuo achando. n

E fundamentalmente em que trabalhos? –– Inicialmente li o Einstein que existia em livros, do gênero “como eu vejo o mundo” ou coisa assim. Só que depois me dei conta de que esses livros eram muito mal traduzidos e que tinha muito mais no pensamento real dele. Então fui atrás de tudo que Einstein já tinha escrito, inclusive os textos científicos. Eu o descobri como um cientista que pensa no sentido do seu mundo, que é a física, primeiro, e, segun­ do, em termos filosóficos, a reflexão. n

n Mas vamos voltar a seu trânsito entre a física e a filosofia. –– Então, precisamente: a física em que eu estava mergulhado era a física das partículas dos campos fundamentais da matéria, quer dizer, física dos átomos e ainda menos, física dos núcleos e dos constituintes dos núcleos; física dessas entidades muito pequenas e que estão por baixo do núcleo, chamadas de par­ tículas elementares e que só podem ser conceitualizadas através de uma noção que parece muito abstrata, que é a no­ ção de campo quântico. Depois se chama essa disciplina de física das partículas e campos fundamentais. Porque não são partículas como a gente imagina. n Mas não têm massa? –– Têm massa, mas não têm uma forma definida, não têm uma ocupação do es­ paço definida, coisas assim. Então, é algo muito difícil de imaginar pela maneira de

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pensar normal, por imagens ou palavras. A única maneira de imaginar é pensan­ do pelos conceitos matematizados, pelos conceitos construídos pela mente huma­ na, como campo, carga elétrica e outros que não vamos detalhar aqui. E esses con­ ceitos são objetos próprios que têm uma forma matemática obtida pelo trabalho dos físicos, desde o início do século XX. n Não é mais fácil se apossar desse pensa­ mento pela ideia de carga elétrica... –– A carga elétrica é uma maneira de in­ tuir o que está em jogo. Que uma carga elétrica é algo que tem influência sobre outras cargas elétricas ou que tem efeitos sobre elas, da mesma maneira que uma corrente elétrica, quando passa na vizi­ nhança de uma agulha magnética, vai movimentar a agulha em uma certa dire­ ção. Foi a teo­ria fundamental do eletro­ magnetismo que explicou isso, que forjou essas noções de campo, por exemplo. Mas ali se fala de campo clássico, de campo eletromagnético. Na física quântica foi construída e elaborada uma noção ini­ cialmente inspirada pela noção de campo, quer dizer, é uma ação de propagação de próximo em próximo entre esses tipos de entidades, como a carga, e que na ver­ dade não são do mesmo tipo porque elas não podem ser representadas no espaço da mesma maneira. E se chama quântico, o que é um marco da diferença.

Mas em sua experiência de falar com não especialistas da física, qual a melhor maneira de fazer essas pessoas a se apro­ ximarem de uma noção adequada dessas partículas que não têm forma e cuja mas­ sa, de tão ínfima, é inimaginável? — Eu escrevi textos de divulgação, inclu­ sive este que você tem na mão [A física do século XX]. Eu o considero de divulga­ ção, mais do que um texto científico pro­ priamente dito, apesar de ter um pouco de coisas precisas que permitem fazer as correspondências entre a ciência e o sen­ so comum, e apesar de eu tentar também pôr de maneira discreta algumas questões filosóficas (que acho inerentes a esta apre­ sentação). A minha experiência é de que na verdade se pode comunicar bastante coisas deste conhecimento muito especializado a pessoas que não são especialistas. n

n Eu insisto nessa questão porque a física, em particular, parece uma área mais di­ fícil de ser traduzida para essa linguagem do senso comum do que, por exemplo, a biologia ou a química. — Claro. E é simples, porque os elementos de conhecimento em biologia se podem


até visualizar no microscópio. Até a mo­ lécula gigante de DNA pode ser vista no microscópio – então é imagem, é visual. Enquanto a física de que eu falo não é visual, escapa totalmente, não se pode atingi-la pela visualização, pela luz, pelos raios de luz, mas por outras radiações adequadas para chegar a essas dimensões muito pequenas. Essas radiações são as próprias partículas ou são os raios gama, por exemplo, ondas eletromagnéticas do mesmo tipo que a luz, só que de energia muito maior, quer dizer, de comprimen­ to de onda muito pequeno que permite alcançar essas dimensões. Ao considerar isso, você pode fazer uma espécie de ana­ logia entre a visão de imagens através do microscópio e a visão indireta por esse tipo de radiação, quer dizer, você trans­ põe o papel da luz para essas radiações. Mas isso é bastante universal, porque essa radiação permite alcançar não só as partículas elementares, mas também os objetos enormes e muito longínquos do Universo, porque são fontes de raios gama muito energéticos, que chegam a nós, observamos, e podem nos revelar o que se passa nesses objetos gigantes. Vamos tentar chegar ao momento do salto da física para a filosofia? — O início da minha carreira em física de partículas elementares foi em um labora­ tório no Cern, em Genebra, onde tinha um acelerador de partículas, que faz essas radiações. E eu pude fazer observações num detector chamado câmara de bolhas, que ainda existia na época, e que permi­ te visualizar por efeito macroscópico de ampliação o caminho de uma partícula, permite identificar essas partículas, medir e calcular as suas características e depois saber o que acontece nessa região da cons­ tituição da matéria. Quando eu vi isso – para mim até então as partículas eram uma abstração –, quando de repente eu vi os perpasses que permitem saber que essas radiações têm efeitos materiais, foi um pouco o meu caminho de Damasco, como o caminho da revelação para São Paulo. Só que a minha revelação não foi de Deus, mas da realidade íntima da ma­ téria. No caso, e para terminar com essa evocação, essas partículas resultavam de interações, na época quase desconhecidas, de neutrinos. São partículas de que se fala muito hoje e os meus primeiros estudos foram nesse campo pioneiro na época. Eu não tinha me dado conta até aí, dada a maneira na qual fui formado (e eu era bastante ágil em equações, em calcular um campo e sua interação), de que tudo isso que era na forma matemática, corres­ n

No Cern, pude olhar numa câmera de bolhas o caminho de uma partícula. Foi o meu caminho de Damasco, a revelação não de Deus, mas da realidade íntima da matéria

n Foi como dar um passo atrás para olhar em perspectiva o conhecimento científico enquanto um campo simbólico de relação, de interação, entre a realidade externa e aquilo que a mente pode entender. — Inter-relacionamento é a palavra cer­ ta. O pensamento que é muito abstrato, que funciona dentro da cabeça, por assim dizer, ele não está isolado, porque ele tem acompanhamento do corpo e dos senti­ dos. Então por essa conexão entre o pen­ samento abstrato e os sentidos é que se pode ter uma relação entre o pensamento e o mundo que existe, no qual eu posso tocar, no qual eu posso agir. É mais ou menos essa a linha de interação, é isso que permite explicar que haja uma correspon­ dência entre o mundo do pensamento e o mundo real. E se tem toda uma corrente de interações que faz com que eu pense o mundo de uma maneira, mas eu o ques­ tione concretamente a partir das minhas experiências por meio de aparelhos, que prolongam os corpos, na verdade.

Cito mais um trecho sobre o futuro da física, em A física do século XX: “Uma re­ presentação não se identifica com o que ela representa, que é dado como exterior ao pensamento. Natureza e matéria são independentes de nós e as representações que delas fazemos são evidentemente im­ perfeitas e sujeitas a transformações”. Aí eu lhe pergunto: mas como são indepen­ dentes de nós? Não somos também nós natureza e matéria? — Sim, mas nesse caso nós somos obri­ gados a não ser “umbiguistas”, porque no que acabei de dizer realmente tem nosso pensamento e tem o mundo que po­de­ mos tocar, por exemplo, ou que não po­ demos tocar, mas sabemos que existe: planetas, astros existem independente­ mente de os tocarmos. Então, o que vo­ cê está perguntando é: será que ao falar­ mos do mundo já nos estamos falando no mundo? Expressando o pensamento, esse mundo já não faz parte de nós? n

pondia, entretanto, a algo que eu até podia ver, mesmo que não diretamente – e foi aí que me dei conta, concretamente por assim dizer, de que é uma realidade física que tem essas propriedades que eu tratava matematicamente. n As experiências no Cern lhe permitiram

sair da alta abstração matemática para entrar no âmbito da existência material. — Isso é que realmente foi o achado em minha primeira experiência na física, posso dizer. Então imediatamente vem a filosofia, porque precisamente ela inclui em seus problemas este da relação entre a representação mental – e essa forma matemática não passa de uma represen­ tação mental – e a realidade do mundo independente de mim. Quer dizer, tais representações não inventaram o mundo, este é concreto, existe, pelo menos todo mundo pensa, com razão, que isso tem um sentido. Esse era o problema fun­ damental: o conhecimento pela mente, simbólico do mundo e do mundo real, apesar de sua diferença de natureza, têm a ver um com o outro. Eu ainda não fala­ va nesses termos, mais tarde desenvolvi minha pesquisa e achei que essa coloca­ ção de que o pensamento científico é um pensamento simbólico era fundamen­ tal. Porque permite dar tudo o que essa representação merece e permite carac­ terizar a referência com o mundo real. Portanto, isso foi o início mais consciente do meu percurso.

n E nós somos também natureza, ao mes­ mo tempo. — Muito bem, este é o ponto: o mundo está dentro de nosso pensamento de uma certa maneira, mas um mundo transfor­ mado pelas condições do pensamento. Poderíamos ser solipsistas e dizer “eu não sei nada fora do meu pensamento, então nada fora existe”, mas permita-me lhe dizer que você não iria muito longe com esse raciocínio. Então tem que fazer uma hipótese: na verdade não só o que eu toco, não só o que eu posso representar, existe. Assim, eu vou colocar: o mundo existe, e

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o mundo é isso que existe independente de mim. Mas depois disso não posso dizer nada deste mundo sem fazer uso dos meios do pensamento. Eu, com o tipo de pensamento que é a ciência, posso repre­ sentar ou tentar representar, posso alcan­ çar até um certo ponto, posso assimilar dentro do meu pensamento, este mundo. O que posso saber dele, só pode ser atra­ vés da minha representação. Nesse momento em que você entende o pensamento científico como um pensa­ mento simbólico, como isso afeta em ter­ mos práticos sua vida profissional? Então, eu saí do Cern, quer dizer, acabei minha tese que tinha feito em física na Universidade de Paris e naquele mo­ mento tinha que fazer o serviço militar. Acontece que lá em Genebra, que é um lugar muito internacional, eu tinha co­ nhecido um físico brasileiro, Roberto Salmeron. E fiquei amigo dele. Naquele tempo ele escolheu voltar ao Brasil para fundar em Brasília uma nova universi­ dade, pioneira. Como eu falara para ele, quando estávamos em Genebra, de meu interesse pelo Terceiro Mundo e dissera que sabia das coisas...

É a conexão entre o pensamento abstrato e os sentidos que cria uma linha de interação capaz de explicar a correspondência entre o mundo do pensamento e o mundo real

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n Era politicamente engajado. — Não tão engajado quanto concernido, porque não pertencia a nenhum parti­ do político. Mas eu era realmente muito interessado. Eu tinha sido engajado no meio estudantil no momento da guerra da Argélia para militar contra a guerra e o colonialismo, coisas assim. Mas de­ pois, quando estava em Genebra, a guerra já tinha terminado e eu me interessava pela situação geral do Terceiro Mundo, pelo problema da fome no mundo e do desenvolvimento. Eu também tinha lido sobre o Brasil através de vários autores, em economia e literatura. Daí, de minhas conversas com Salmeron saiu esse convite: “Olha, eu vou para o Brasil para desenvol­ ver essa universidade, você não quer vir?”. E como na época, na França, quem tinha boa formação universitária podia fazer, em vez do serviço militar, uma coopera­ ção na universidade, em países em vias de desenvolvimento, eu disse: “Eu topo, claro”. Então eu fui nesse quadro. n Para criar a Universidade de Brasília? — Ela já tinha sido criada, mas estava no começo. Salmeron regressou um pouco antes da ditadura militar, que logo em seguida se instaurou. E nesse instante se tratava de continuar as coisas. Mas os seis meses que eu passei lá foram de luta para tentar sobreviver em condições honrosas

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quando a ditadura militar queria realmen­ te esmagar, impor suas exigências que eram completamente anticientíficas e promoveu o afastamento arbitrário de professores e então quase todos os professores se demi­ tiram, dizendo “não aceitamos trabalhar nessas condições”. Eu admirei muito. Foi para mim uma grande experiência huma­ na, uma experiência política em sentido amplo, acho mesmo que foi uma espécie de lição de filosofia e política. Qual era a sua idade naquele mo­ mento? — Eu tinha 27 anos. Eu era muito aberto a tudo, entusiasmado. n

n Sua vinculação era ao Departamento de

Física da UnB? — Sim. E fiquei até o final do ano, porque a universidade fechou, depois não houve possibilidade de conciliação, então... n Então isso aconteceu no segundo semes­

tre de 1965? — Isso. Depois, como eu tinha sido contra­ tado através da cooperação entre a UnB e a embaixada francesa, o acordo foi modi­ ficado e eu fui emprestado para o CBPF do Rio de Janeiro [Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas] para poder completar o meu período. Eu não queria ficar na Uni­ versidade de Brasília, uma vez que meus colegas tinham sido obrigados a sair, então me solidarizei, mas de maneira a não criar problemas com a embaixada francesa, que era responsável por mim. Como estran­

geiro, eu não podia fazer muito. Acontece que eu tinha sido preso um dia nesse pe­ ríodo. O Salmeron menciona isso no livro dele sobre a universidade [A universidade interrompida]. No conjunto, essa experiên­ cia para mim foi grande e posso dizer que me ajudou nessa condição de trânsito pa­ ra a filosofia, porque a Universidade de Brasília era pequena, tinha professores excelentes, uma espécie de seleção dos me­ lhores, e era fácil, sendo de uma disciplina, encontrar pessoas de outras. E no meu caso, como às vezes tinha tempo livre por­ que tinha greve, tinha cursos fechados etc., eu assistia a cursos de sociologia, de cine­ ma... ouvi lições sobre o Cinema Novo pelos protagonistas. Ficava ouvindo o Nelson Pereira dos Santos dando aula? — Sim, e mais Jean-Claude Bernardet. De Nelson Pereira dos Santos eu conhecia filmes, tinha visto Vidas Secas antes de vir para o Brasil. Foi fantástico. Também eu tinha muita discussão com filósofos e so­ ciólogos, e em particular com o professor Paul Arbousse-Bastide, professor francês visitante na UnB naquele período e que tinha sido um dos fundadores da USP. Eu fiz amizade com ele e durante os seis meses da minha vida em Brasília nós con­ vivemos praticamente direto. Eu tinha um jipe, então o levava pelo sertão nos finais de semana e, como ele tinha uma intimi­ dade incrível com o Brasil, eu aproveitei muito. Graças a ele comecei realmente a conhecer e a gostar muito do Brasil. n

Quanto tempo durou seu trabalho no CBPF? — Eu fiquei os seis meses que faltavam para cumprir um ano de contrato. E lá foi bom, porque dei aula tranquilamente, o CBPF naquela época não era persegui­ do, e eu podia conhecer melhor outros físicos, além dos que conheci em Brasília: Jaime Tiomno, Fernando de Souza Bar­ ros etc. José Leite Lopes eu já conhecera antes, porque ele ficou vários anos em Paris ensinando física na Universidade d’Orsay e depois, quando voltei do Brasil, ele ainda estava em Paris. Daí fizemos uma amizade profunda. Quando em sua volta ao Brasil ele terminou cassado pela ditadura, eu falei com os meus colegas de Estrasburgo. Eu tinha sido nomeado para a Universidade Louis Pasteur em Estrasburgo, depois de terminar meu período no Brasil. Lá tinha física nu­ clear e de partículas e eu podia trabalhar bem. Então, em determinado momento fui avisado por Salmeron, por carta, da cassação de Leite Lopes. Falei com os n


colegas, os professores de física ficaram todos interessados e o chamaram para o posto. Ele teve ali um posto de professor titular até se aposentar. O Leite Lopes ficou para mim como um grande amigo e também um mestre. n Quanto tempo durou sua estada na Uni­

versidade Louis Pasteur? — Fiquei 16 anos e lá me formei em filo­ sofia. Eu trabalhava na física, ia à filosofia e na medida do possível assistia às aulas, ou fazia os exames, lia e estudava os textos de história da filosofia, redigia os deveres que tinha que fazer e tudo. Eu gostava da filosofia, os professores ficavam muito contentes com as minhas dissertações e me sugeriam fazer mais filosofia da ciência do que outros campos. Na ver­ dade eu era bastante interessado também na filosofia da existência, na metafísica, na ética, eu gostava muito de filósofos como Paul Ricoeur e o professor dele, Jean Nabert, gente assim. A sua tese em filosofia foi qual? ­ Bem, havia um professor de metafísica — chamado André Canivez, especialista no filósofo francês da educação do final do século XIX, Jules Lagneau. E ele ensinava este autor, mas também filósofos recen­ tes. Então eu não sabia ainda que direção escolher e ele, que gostava de meu perfil e das minhas dissertações, me disse: “Você vai fazer agora o master e depois a tese, então eu aconselho você a trabalhar sobre a filosofia da ciência, porque você é muito bem formado em ciência, você sabe, pra­ tica isso, então seria uma pena perder isso e entrar num campo muito diferente”. E observou que ali, infelizmente, não tinha muitos filósofos da ciência, mas havia um grande especialista da história das ideias e, em particular, do início da ciência moder­ na, quer dizer do século XVIII, Século das Luzes, do Iluminismo, enfim. Este profes­ sor era Georges Gusdorf. Ele tinha escrito muitos volumes sobre o pensamento das ciências humanas e três ou quatro volumes desse conjunto eram dedicados ao sécu­ lo XVIII, dentro dos quais um que falava mais das ciências exatas. Ele enfatizava, em particular, o papel de um grande filósofo e matemático da época, Jean d’Alembert, que foi, com Diderot, o diretor da Enciclo­ pédia. Quando fui vê-lo, já no momento de escolher um assunto de tese de doutorado, ele me disse: “Tem um autor totalmente feito para você, que é o D’Alembert”. Então eu fui mergulhar na obra de D’Alembert, fiz a tese. Levou tempo porque eu estava trabalhando ao mesmo tempo, mas final­ mente defendi minha tese. n

n Ou seja, suas tarefas incluíam dar aula de

física, fazer pesquisa em física e preparar a tese de filosofia, tudo ao mesmo tempo. — Exatamente. Meu trabalho oficial era realmente a pesquisa em física, eu era chefe de uma equipe importante e orientava teses. Houve um momento em que eu fui subdiretor do Centro de Pesquisa em Física em Estrasburgo. E pa­ ralelamente, por conta própria, estudava filosofia. Levei sete anos para redigir a minha tese. O professor Gusdorf de vez em quando dizia “essa tese nunca vai terminar!” Mas ele entendia. n Vou aproveitar para uma pergunta a res­

peito de sua visão filosófica da física. Num trecho de seu livro sobre pensamento físico e pensamento crítico está dito o seguinte: “De maneira mais geral, para além do detalhe das descrições, das explicações e até dos retornos reflexivos e críticos nos diversos campos de relevância, os ensina­ mentos que recebemos da física sobre a natureza e sobre o pensamento da natu­ reza concorrem para formar em nós uma representação do mundo. Trata-se de uma concepção mais ampla do universo, do pensamento e da situação em que cada um vê a si mesmo”. A partir disso, lhe pergunto como uma física que hoje parece não uma disciplina, mas muitas, que transita entre a física quântica, a física de partículas, a astrofísica, a cosmologia, enfim, como esta física tão complexa influi na maneira como nós, no século XXI, vemos o mundo? — Preliminarmente eu gostaria de enfa­ tizar que falo da física aqui, mas deveria estender isso às lições das outras áreas da ciên­cia, da biologia em particular. Hoje não podemos pensar o mundo sem pensar no que sabemos da biologia, por exemplo. Aliás, no livro alerto os físicos quanto à necessidade de às vezes serem um pouco mais modestos, embora agora já não sejam tanto os físicos que pretensiosamente que­ rem reduzir tudo à física: são mais certos biólogos que querem reduzir tudo à bio­ logia. O pensamento, por exemplo, seria reduzido à biologia, a matemática seria somente um efeito da organização bio­ lógica do nosso corpo, do nosso cérebro, o que não acredito, porque matemática é outra coisa. No século XIX muitos físicos pensavam que só a física era uma ciência, enquanto as outras disciplinas não eram tão científicas, porque a física foi a pri­ meira a se desenvolver nitidamente com um método científico bem formulado, bem estabelecido. Entretanto, a ciência foi desenvolvida em áreas muito diversas, cada uma com suas particularidades, mas todas científicas, sem redução às outras.

Todas as ciências deveriam ter parte em nossa representação do mundo. Se sou físico ou era físico, vou privilegiar um pouco a física, que vai me ensinar mais do que as outras (em se tratando de mim, porque a conheço melhor). Mas sou obri­ gado a não ignorar que as outras existem e vou incluir a biologia, ou a sociologia, a psicologia... Também a economia, que se pretende ciência, mas que às vezes, quando se vê como é aplicada no mundo, é bem pouco científica, mas com pretensão cien­ tífica e argumentos de autoridade, o que é muito ruim. Eu não quero dizer que a eco­ nomia não seja uma ciência, mas que ela deve real­mente estar segura de ser ciência quando se formula. Muitos economistas não têm esse recuo e nos fazem tomar por ciência o que é ideologia. n No seu livro há uma referência a Amar­

tya Sem. — Sim, para mostrar que a economia deve ser considerada de uma maneira muito mais ampla e mais aberta do que ela foi de forma predominante durante muito tempo, de maneira mais social­ mente embasada também, claro, por­ que a economia pertence de uma certa maneira à ciência da sociedade, como Amartya Sem me parece ter feito. n Ao abordar os desdobramentos da ciên­ cia no futuro, há uma frase sua de grande impacto: “O que conhecemos faz parte da totalidade do que é, da qual ignoramos a maior parte”. — Essa é a diferença: o mundo que está fora, não precisa de nós. Mas nós tentamos alcançá-lo com a nossa pequena mente – apesar de ser pequena ela é forte, é pode­ rosa, mas ela é pequena comparada com

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o mundo (mesmo tomando em conta sua dimensão social coletiva e histórica que a amplia), ela não inclui o mundo. Como dizia o cientista Henri Poincaré, matemático e filósofo: “O mundo é mui­ to maior do que a mente que está nele e não pode ser incluído em totalidade na mente”. Tem essa outra observação: “É por essa razão que essas apreensões permitem que avancemos progredindo na direção de maior clareza, já que há esse grande desco­ nhecimento para o que é, só que às vezes essa clareza só é obtida à custa de mudanças profundas na própria maneira de pensar”. Em sua visão, onde deve mudar a nossa ma­ neira de pensar para que o conhecimento científico e particularmente a física avancem numa direção bem criativa no século XXI? — Bom, eu coloco o problema, não dou solução. O que eu considero pelos avanços da ciência, utilizando as lições do passado até agora, é que na verdade, a cada mo­ mento em que a gente pensa que detém uma representação praticamente acabada, totalmente coerente, satisfatória, há uma modificação necessária, tudo é abalado e tem que ser repensado de uma outra forma. Foi isso que aconteceu no século XX na física, com a teoria da relatividade e com a física quântica. Acho que a física hoje continua na mesma linha, a grosso modo, não se vê uma grande revolução desde essas teorias. A única coisa substan­ cialmente diferente que se está procuran­ do é a reunião dessas duas grandes teorias, quer dizer, a teoria da matéria contínua e a teoria da matéria descontínua. Esse é um grande objetivo da física, mas não sabemos se vai ser alcançado. Pode ser, até lá é que podemos pensar filosoficamente, de uma certa maneira. E os cientistas têm que se transformar um pouco em filósofos para imaginar como podemos alcançar a tal da perspectiva. Mas não falo de tudo, falo do campo da física. A procura por essa unificação faz sentido, talvez seja me­ lhor uma teoria do que duas para abordar objetos comuns. n

Mas elas têm objetos comuns? — Têm. E a cosmologia moderna, por exemplo, tal como se vê hoje, é tributária das duas teorias. Quer dizer, a cosmologia, ciência do Universo, uma vez que o espaço já é grande e formado, é da competência da teoria da relatividade. Mas a cosmo­ logia primordial, os períodos iniciais da cosmologia, que temos que pensar que existiram porque seus traços estão aí, são da física quântica necessariamente, por­ que se referem a estados da matéria que n

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são os mesmos que os físicos de partículas e dos campos quânticos estudam. São es­ tados ordenados pelas interações fracas, pelas interações fortes, pelos quarks, essas coisas. Então a cosmologia, se se quer ver o conjunto do desenvolvimento da his­ tória do Universo segundo o tempo e o espaço, necessariamente tem que ter uma junção entre a teoria da relatividade e a teoria quântica. O problema está colocado e tem bons argumentos. Se pensarmos bem como vamos conseguir uma visão mais coerente, pode ser que o caminho mais natural seja ou não unificar essas duas teorias que conhecemos. Pode ser que haja adiante um outro princípio mais fundamental, que não corresponderia a uma representação espacial nem às coisas da representação quântica – mas é difícil pensar no vazio. No campo da astrofísica, é posto como um grande desafio para os próximos anos a questão da energia escura do Universo. En­ frentar esse problema não poderia terminar num atalho para a teoria unificada? — Essas coisas são propostas pelos cos­ mólogos que falam da energia escura e da matéria escura. Creio também que os bu­ racos negros são bons objetos para essa articulação, porque são revelados pela teoria da relatividade geral, sabemos pe­ la observação que existem porque têm efeitos que correspondem exatamente ao que estava descrito pela teoria da relati­ vidade geral e, se existem, têm muito a ver com a física quântica, porque sua matéria é quântica. Quanto à massa escura, ener­ gia escura etc., a primeira aparece como necessária, se se quer entender o movi­ mento das galáxias relativamente umas às outras, do qual a teoria da gravitação dá conta normalmente. A massa visível não basta. Nesse movimento há provavelmen­ te uma responsabilidade muito maior de uma massa não visível, negra, “escura”, que não sabemos o que é. Por enquanto, só se pode dizer isso. E a segunda, energia escura, é porque quando se considera o ritmo da expansão do Universo, que é medido indiretamente, se necessita tam­ bém a presença de uma energia que não é visível, mas que seria a causa de uma aceleração da expansão do Universo capaz de explicar certos fenômenos cosmológi­ cos. Não se sabe o que ela pode ser, mas se sabe que se necessita disso. Não sei até que ponto uma explicação por baixo desses fenômenos não podia ser encontrada em termos diferentes. Pode ser que esta “ener­ gia escura” tenha a ver com as proprieda­ des quânticas da matéria no Universo primordial, particularmente com a passa­ n

gem do regime quântico do Universo a seu regime de gravitacão relativista. Mas ago­ ra eu me situo no ponto de vista da filoso­ fia e não vou competir com as hipóteses dos físicos, eu deixo as hipóteses para eles e só sugiro que de vez em quando se refli­ ta sobre as bases do nosso conhecimento físico, clássico, quântico, cosmológico e nas suas interfaces. Minhas últimas pesquisas epistemológicas são sobre o que significa o conhecimento na física quântica. n Eu fiquei com uma dúvida ao terminar de ler o último capítulo do seu livro. Efe­ tivamente dentro do campo científico, que lugar lhe parece estar reservado à física nos próximos anos e nas próximas décadas, comparativamente às outras ciências? — Não reivindico um lugar privilegiado para a física, porque todas as ciências têm o direito de serem desenvolvidas. O pro­ blema são as escolhas que as sociedades fazem, na verdade os estados e as organi­ zacões internacionais que pensam nisso. Essas escolhas não são sempre as melho­ res. Acho que a física merece ser continua­ da, eu não vou dizer que ela merece tomar todas as verbas. Mas penso que se vai um pouco no outro sentido agora: qualquer coisa que seja biologia vai receber mais di­ nheiro do que as outras disciplinas. Tam­ bém isso não é bem equilibrado e as razões podem ser estudadas. Mas uma das razões muitas vezes invocada é a possibilidade de aplicar a ciência. Se uma ciência leva a muitas aplicações que vão ser lucrativas de uma maneira ou de outra, então ela é favorecida. Só que as aplicações geralmen­ te não vêm das ciências conhecidas, vêm dos conhecimentos que ainda não foram adquiridos. Foi isso que aconteceu sempre na física: sem a pesquisa fundamental em física, a engenharia não iria muito longe. Então, tem que se assegurar o mínimo, e um pouco mais do que o mínimo, para continuar inventando, porque se inven­ ta, a física tem que ir além do que sabe já, agora, e para manter esse ritmo, que é necessário para o conhecimento, acho que tem que realmente decidir a conti­ nuar uma pesquisa fundamental neste campo – o que vale para todos os outros. Veja a informática hoje, você sabe como ela se desenvolveu a esse ponto? Graças à física, em particular, à física de partículas, porque a rede internet, essas questões de e-mail e tudo, o maior progresso nisso veio dos engenheiros físicos, de pesquisa, que desenvolveram a informática e essa linguagem de internet para que os labo­ ratórios do mundo todo se comuniquem entre si. Tudo isso é produto da física, indireto, mas produto. n


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Variações sobre um tema

sufocante Velha conhecida, mas ainda pouco compreendida, a asma pode ser um conjunto de enfermidades, e não uma doença única Ricard o Zorzet to e Mariluce Moura

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m setembro passado, na semana em que os brasileiros comemoravam a independência da pátria, um importante periódico científico internacional trouxe em sua versão on-line uma notícia preocupante para o país: o Brasil apresenta um dos mais altos índices de ocorrência de uma doença crônica que afeta 300 milhões de pessoas no mundo e, a cada ano, mata 250 mil, a asma. Um em cada sete brasileiros adultos ­– ou 12% da população com mais de 18 anos ­– já recebeu diagnóstico médico de asma e um em cada quatro (24%) apresentou no último ano respiração com um angustiante chiado, o sinal mais característico da enfermidade marcada por estreitamento das vias aéreas, tosse e uma falta de ar que se agrava à noite, segundo análise da saúde respiratória de 308 mil pessoas de 64 países concluída por pesquisadores da Universidade de Massachusetts, da Escola de Saúde Pública de Harvard e do Instituto do Câncer Dana-Farber, nos Estados Unidos, com base em inquérito da Organização Mundial da Saúde. Publicados em 9 de setembro no European Respiratory Journal, esses dados colocam o Brasil em sexto lugar com respeito à proporção de casos con-

firmados de asma em adultos, atrás de baixa renda, em especial na América Latina, onde os recursos de saúde cosNoruega, Holanda, Reino Unido, Suécia e Austrália. E, pior, o situa no primeiro tumam ser mais escassos. lugar em relação aos casos suspeitos, Sob muitos pontos de vista, a asma muitos deles possivelmente não idense transformou num gigantesco desatificados por falta de acesso de parte da fio da saúde pública. A observação de um padrão de ocorrência distinto do população a serviços de saúde. São ínconhecido até pouco tempo atrás, por dices semelhantes aos encontrados em outro amplo levantamento concluído exemplo, vem fazendo especialistas do mundo todo reavaliarem seus conceipouco tempo atrás, o International Study of Asthma and Allergy in Childhood tos sobre os fatores ambientais associados ao surgimento da enfermidade. A (Isaac), que em sua terceira fase avaliou 300 mil crianças e adolescentes de 55 frequência mais elevada em países de condições socioeconômicas extremas países. Realizado com a participação – é mais comum nos mais ricos, onde de pesquisadores de São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Salvador, o parece ter atingido um patamar, e nos mais pobres, onde está em crescimento Isaac detectou sintomas de asma em uma proporção que variou de 16% a – mostra que a chamada hipótese da higiene, em moda até recentemente, não 29% das crianças brasileiras com 6 e 7 explica muito. Proposta em 1989 pelo anos e de 12% a 31% nos adolescentes epidemiologista inglês David Strachan com 13 e 14 anos. e explorada nos anos seguintes pela Esses números comprovam que a asma, antes mais frequente nas nações alergista alemã Erika von Mutius, essa ideia sugere que a exposição a infecções economicamente mais desenvolvidas, cresceu no Brasil nas últimas décadas. por microrganismos (ou toxinas por eles produzidas) na infância tornaria E não só por aqui, onde se estima que, o sistema de defesa mais propenso a entre crianças e adultos, existam 26 milhões de pessoas com asma, desencadear reações que inibem o desenvolvimento causa da morte de um em cada Sem ar: 700 brasileiros – uma taxa até de alergias. Assim, um sis12% dos 10 vezes superior à de alguns tema imune influenciado brasileiros por esses fatores ambientais países desenvolvidos. Na veradultos têm apresentaria sinais mais têdade, os casos de asma enconasma, que nues de asma, cuja origem tram-se em ascensão em vários mata um em países ocidentais de média e se acreditava até duas ou três cada 700 pESQUISA FAPESP 165 novembro DE 2009 n

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décadas atrás ser predominantemente alérgica. De acordo com essa hipótese, seria então mais recomendável deixar as crianças expostas a ambientes menos assépticos.

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hipótese da higiene explica em parte o que acontece em países ricos e industrializados, com cidades mais limpas, água e esgoto tratados e, em tese, maior acesso à rede de saúde. Mas torna inexplicáveis os índices crescentes de asma em partes do mundo onde uma proporção considerável das pessoas vive aglomerada em ambientes pouco saudáveis como as favelas. Por isso mesmo, a via proposta em 2000 pelo pediatra Eugene Weinberg, da Universidade da Cidade do Cabo, na

África do Sul, para explicar os padrões atuais de expansão da doença provocou a atenção dos pesquisadores da área. Weinberg observou que o risco de desenvolver asma era maior nas cidades do que na zona rural dos países africanos e levantou a hipótese de que ela não seria apenas uma enfermidade associada ao desenvolvimento, mas também – e talvez principalmente – à urbanização. A migração do campo e das vilas para os centros urbanos em crescimento acelerado exporia as pessoas a outros tipos de agentes causadores de infecções e alergias, à poluição do ar e a um maior nível de estresse psicológico. A asma também estaria associada a mudanças na dieta e no nível de atividade física. Outros estudos feitos na África e na Ásia favorecem essa ideia, embora não se conheçam os fatores específicos que nessas situações elevam o risco de asma.

A hipótese pode ajudar a entender o que ocorre em muitas cidades da América Latina, sugerem os pesquisadores Alvaro Cruz e Maurício Barreto, ambos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em artigo publicado este ano na revista Allergy em parceria com Phillip Cooper, da Universidade de Londres, e Laura Rodrigues, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “Se, de fato, a questão da higiene tiver uma influência importante no desenvolvimento da asma, é provável que apenas uma pequena proporção das crianças brasileiras de baixa renda apresente asma do tipo alérgico”, comenta Cruz, professor de pneumologia na UFBA, onde investiga os benefícios socioeconômicos do tratamento da asma grave. “Ao mesmo tempo, essa observação fortalece a ideia de que a falta de higiene aumentaria o risco de manifestação da asma não alérgica.” Ainda que não se possa descartar que as pessoas estejam se tornando mais alérgicas, os especialistas têm por certo que a alergia é apenas parte do problema. Quando muito, explica metade dos casos. A outra metade mantém-se como uma espécie de esfinge a clamar por uma decifração a que, aliás, pesquisadores brasileiros têm se lançado com garra.

Marcel Proust: castigado por crises de falta de ar pela vida toda

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nessa investida é o broncoscópio, um aparelho que permite observar as vias respiratórias de pessoas vivas e coletar pequenas amostras de tecido. Com ele, se começou a alterar a compreensão sobre as origens da asma e seu tratamento. Os pesquisadores notaram que nos portadores de asma os brônquios e os bronquíolos, uma árvore de canais cada vez mais estreitos que conduzem o ar da traqueia aos pulmões, encontravam-se continuamente inflamados. Essa constatação alterou de vez a noção em vigor por mais de meio século de que a asma seria causada por uma alergia passageira, razão por que era combatida só nas crises com medicamentos que relaxam a musculatura dos brônquios – os broncodilatadores ou bombinhas – e doses altas de anti-inflamatórios hormonais, os corticosteroides, administrados por via oral ou endovenosa. Nessa abordagem da asma como inflamação, já há 10 anos as equipes

reprodução fancey.ca/faces

Inflamação - Uma das armas usadas


A inflamação associada à asma causa lesões nas fibras elásticas da parede dos brônquios, que se torna até 50% mais espessa do que a de uma pessoa saudável

dos patologistas Thais Mauad, Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), investigam o que há de errado com as vias respiratórias de quem tem asma grave. Analisando o aparelho respiratório de pessoas mortas asfixiadas em consequência da asma, eles encontraram alterações importantes na estrutura dos brônquios e dos bronquíolos. Nas camadas mais internas da parede desses ductos as fibras elásticas estavam rompidas, revelaram em 1999 em artigo no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. Também havia proliferação anormal desse tipo de fibra nas camadas mais profundas, possível resultado de um processo de reparação incompleta. Essas alterações são parte do chamado remodelamento das vias aéreas e, somadas a outras transformações, deixavam as paredes dos brônquios 50% mais espessas do que o normal, reduzindo o espaço para a passagem de ar. “Essas alterações explicam por que a respiração se torna tão difícil durante uma crise de asma”, diz Thais. No aparelho respiratório essas fibras funcionam

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Os Projetos 1. Fatores relacionados à dificuldade do controle da asma 2. Avaliação da inflamação de vias aéreas na asma

modalidade

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Projeto Temático Co­or­de­na­dores

1. Rafael Stelmach – InCor/USP 2. Milton de Arruda Martins – FM/USP investimento

1. R$ 137.212,12 (FAPESP) 2. R$ 689.642,31 (FAPESP)

como molas. São esticadas na inspiração e retornam espontaneamente ao comprimento normal, expulsando o ar dos pulmões. Com as fibras rompidas, menos ar sai. Thais viu ainda que os pulmões de quem morreu com asma têm danos na conexão dos bronquíolos com os alvéolos, bolsas microscópicas no interior das quais ocorrem as trocas gasosas – o oxigênio do ar inspirado passa para o sangue, que, por sua vez, libera o gás carbônico a ser eliminado.

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ssociada ao remodelamento há uma reação inflamatória intensa, que aumenta a produção de muco. Marisa e Thais descobriram que essa inflamação é mais extensa do que se imaginava: afeta todo o aparelho respiratório – e não só os principais ductos das vias aéreas –, da mucosa nasal ao tecido conjuntivo dos pulmões, onde as pesquisadoras encontraram as transformações mais intensas. Segundo as autoras, em artigo de maio deste ano no Journal of Allergy and Clinical Immunology, há um depósito exagerado de colágeno no tecido pulmonar que contribui para enrijecer as vias respiratórias. “Talvez, no longo prazo, a inflamação leve à produção de fatores de crescimento e altere a estrutura dos pulmões”, suspeita Thais. O material do banco de tecidos paulista, porém, não permitiu chegar a um resultado conclusivo. É que as alterações observadas nos tecidos extraídos nas 73 autópsias podem resultar da crise fatal, e não dos diferentes estágios de evolução da enfermidade. Em vida, a maior parte dessas pessoas não fazia um controle adequado da asma. Apenas 34% tinham acompanhamento médico contínuo e 12% se tratavam com corticosteroides inaláveis. Em parceria com pesquisadores do Canadá e da Austrália, Thais participou de um trabalho que avaliou amostras de seis bancos de tecidos, com material de

pessoas com asma de diferentes níveis de gravidade. Coordenado pelo pneumologista Alan James, da Universidade da Austrália Ocidental, e publicado em março no European Respiratory Journal, esse estudo revelou que a intensidade dos danos – em particular, o aumento da espessura da camada de fibras musculares – está relacionada à gravidade da asma, mas não à duração. O resultado indica que o remodelamento das vias respiratórias ocorre nos estágios iniciais da asma e determina sua severidade. Ou seja, quanto maior a espessura do músculo liso, mais grave a asma. Andrew Bush, da Escola de Medi­ cina Imperial, em Londres, tenta completar esse quadro. Ele conduziu uma série de estudos com amostras de tecido das vias respiratórias de crianças e observou que as alterações nas paredes dos brônquios podem estar presentes a partir dos 3 anos de idade. E independentemente da ocorrência de inflamação. Esses dados sugerem que a asma pode se estabelecer muito cedo e impor uma limitação duradoura na capacidade respiratória. “Isso significa que pode ser muito curta, de apenas três anos, a janela crítica para prevenir o desenvolvimento da asma, tentando, por exemplo, evitar que as crianças tenham infecções virais”, afirma Thais. Tratamento - “A ideia de que por trás

da asma havia uma inflamação importante não era nova”, explica o pneumologista José Roberto Lapa e Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No fim do século XIX, quando o escritor francês Marcel Proust, autor do clássico Em busca do tempo perdido, começou a sofrer as dramáticas crises de asma que o acompanhariam pelo resto da vida, os patologistas já haviam observado sinais de inflamação grave nas vias respiratórias de pessoas mortas com asma. Mas só mais recentemente a conclusão de que a inflamação, além de grave, era duradoura levou os especialistas a repensarem o tratamento. pESQUISA FAPESP 165 novembro DE 2009 n

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Os broncodilatadores empregados apenas nas crises foram substituídos por outros, de uso contínuo e ação prolongada. E, em vez de doses elevadas de anti-inflamatórios orais ou injetáveis, os médicos passaram a indicar terapias longas com baixas dosagens de corticosteroides inaláveis. Administrados desse modo, os corticosteroides agem nas vias aéreas e são destruídos pelo fígado antes de se espalharem pelo organismo, reduzindo os efeitos indesejáveis.

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© Visuals Unlimited/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock

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ssa estratégia mostrou-se eficaz no controle de 90% a 95% dos casos de asma, em geral de gravidade leve ou moderada, com crises esporádicas de dificuldade respiratória que não chegam a inviabilizar o trabalho ou a vida social. O desafio é compreender o que se passa com – e como tratar – o restante. São as pessoas com a chamada asma grave ou de difícil controle, contra a qual os broncodilatadores e os corticosteroides inaláveis são quase inócuos e não evitam crises muitas vezes diárias nas quais o imperceptível ato de encher os pulmões de ar e os esvaziar torna-se tão árduo quanto respirar com a cabeça envolta em um saco plástico. “Essa parcela de asmáticos é a que mais sofre e a que custa mais caro ao sistema de saúde”, conta Thais. Dados do Ministério da Saúde indicam que a cada ano a asma gera 350 mil internações em hospitais públicos, cada uma consumindo de centenas a milhares de reais – um estudo conduzido na Espanha por Joan Serra-Batlles nos anos 1990 mostrou que os gastos com internações representavam um terço dos dispêndios anuais dos asmáticos com consultas, exames e medicamentos. São recursos que poderiam ser mais bem empregados. Poderiam, por exemplo, auxiliar a criação de equipes especializadas em asma na rede pública e o fornecimento de remédios considerados padrão no tratamento da enfermidade, como previsto no Plano Nacional de Asma, ainda em implantação no Brasil. O problema é que sobram dúvidas sobre a doença e as abordagens mais adequadas para tratar as múltiplas formas da asma grave. Os resultados obtidos por Bush, por exemplo, trou-

Árvore doente: 50 anos a asma, conhecida xeram mais incertezas do que inflamação explicações sobre a evolução desde o Egito Antigo, já rereduz a cebeu quase uma dúzia de da doença. Em uma revisão passagem de sobre o tema publicada em definições. Na opinião de ar nos ductos Alberto Cukier, pneumolo2008, ele afirma ser pouco respiratórios provável que as alterações nas gista do Instituto do Coraparedes das vias aéreas sejam ção (InCor) da USP, a atual classificação é simplista por reunir sob disparadas pela inflamação – se forem, teriam o papel de reparar os danos um mesmo nome variações de uma enfermidade que, apesar de sinais clícausados por ela. E levanta duas outras nicos semelhantes, podem ter sido oripossibilidades. Talvez a inflamação e o remodelamento sejam fenômenos indeginadas por mecanismos bioquímicos e fisiológicos distintos. Os pneumolopendentes. Ou, ainda, o remodelamento seja uma consequência de um distúrbio gistas chamam essas variações da asma grave de fenótipos, manifestações clíno mecanismo de reparação dos tecidos. Essas dúvidas, em parte consequência da nicas que resultam da interação entre o ambiente e a constituição genética dificuldade de acompanhar a evolução do indivíduo. Em alguns casos, esses da asma em seres humanos, não são as fenótipos podem até mesmo represenúnicas. Não se sabe, por exemplo, se a tar enfermidades distintas. forma grave é uma progressão da leve ou da moderada, nem se os sinais clí“Classificar as diferentes manifestações da asma apenas pelo nível nicos correspondem aos danos que os patologistas veem nos tecidos. de gravidade possivelmente não é a Diante de tantos questionamentos, melhor forma de definir o tratamento mais adequado para cada uma delas”, especialistas do Brasil e do exterior tentam chegar a uma definição mais preafirma Cukier. “Mas, por enquanto, a classificação por fenótipos é uma cisa do que se compreende por asma grave e de como amenizar seus sinais ideia que só funciona do ponto de de modo eficiente – apenas nos últimos vista didático.”


departamento de patologia/fmusp

Talvez não por muito tempo. Em 2010, o Ano do Pulmão, as mais importantes comunidades de especialistas do mundo – a Sociedade Respiratória Europeia e a Sociedade Americana do Tórax – devem propor novas diretrizes para a classificação e o tratamento da asma grave levando em conta os fenótipos. “Essas diretrizes deverão beneficiar os pacientes, pois podem evitar o uso de medicamentos que não funcionam para determinados tipos de asma”, comenta o pneumologista Rafael Stelmach, do InCor. “Assim, será possível reduzir os efeitos indesejados.” Fenótipos - A construção dos fenótipos

leva em conta ao menos três características: presença ou não de alergia; idade de início das crises; e hospitalização recente. “São informações importantes porque permitem reorientar o tratamento”, afirma Stelmach. Alguns exemplos ajudam a entender. A asma de quem tem alergia a ácaros ou poeira (asma atópica) costuma responder bem ao tratamento com corticosteroides, enquanto a asma não alérgica (não atópica) exige doses mais altas desses remédios ou de outros medicamentos. As crises de falta de ar são em geral mais intensas quando a asma surge depois da infância – e mais brandas quando começa antes dos 12 anos. Nos últimos anos Cukier e Stelmach vêm acompanhando 54 pacientes com asma grave a fim de identificar fatores que ajudem a controlar a enfermidade mais facilmente. São pessoas que enfrentam a doença em média há 30 anos e sofrem crises frequentes a ponto de as impedir de trabalhar, caminhar ou fazer as refeições tranquilamente. Duas de cada três têm alergia. E uma proporção semelhante sofre também de rinite, refluxo gastroesofágico, ansiedade ou depressão. Uma em cada três foi hospitalizada no ano anterior à pesquisa, e metade já passou pela unidade de tratamento intensivo ao menos uma vez na vida por causa da asma. Os pesquisadores trataram essas pessoas por 12 semanas com broncodilatadores de longa duração e corticosteroides inaláveis e tomados via oral. Stelmach e Cukier esperavam controlar a asma de dois terços delas. Ao final da terapia, porém, só um terço não apresentava mais crises diárias. Os pesquisadores tentam entender o que

Quase bloqueado: corte transversal de brônquio de pessoa com asma

ocorreu, mas uma análise preliminar indica que parte das pessoas não tomou os medicamentos como deveriam.

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falta de adesão ao trata­ mento, aliás, é um problema comum no país, onde só 5% das pessoas com asma recebem terapia adequada. Por trás dessa resistência pode haver certa dose de rebeldia de quem tem asma, enfermidade cercada de estigma. Mas também há desinformação – e não só dos pacientes. Em Minas Gerais, a equipe do infectologista Ricardo de Amorim Corrêa avaliou 102 pessoas com suspeita de asma que haviam sido atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS) e encaminhadas para o serviço de pneumologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Os primeiros médicos que as trataram orientaram 90% delas a usar só broncodilatadores de curta duração, em geral indicados para crises. “Os broncodilatadores não ajudam a controlar a asma no longo prazo porque agem sobre os músculos dos brônquios, responsáveis pela menor parte dos sintomas enfrentados nas crises”, explica Stelmach. Na Bahia, Alvaro Cruz vem mostrando que o controle adequado da asma é bom para quem sofre com as crises de falta de ar e também para o sistema público de saúde. Desde 2003 ele desenvolve o Programa de Controle da Asma e da Rinite Alérgica (ProAR), que atende a 4 mil pessoas

carentes em Salvador e Feira de Santana. Quem participa recebe gratuitamente os medicamentos contra a asma e passa por consultas periódicas com médicos, enfermeiros e psicólogos. Aparentemente mais cara que o atendimento do SUS, a estratégia do ProAR é mais barata. O controle da asma reduziu em 74% o número de internações em Salvador, gerando uma economia de R$ 4 milhões em quatro anos. E aumentou a renda familiar dos pacientes, que voltaram a trabalhar. Cruz vê algumas barreiras para disseminar o programa pelo país. Uma é a distância entre o que se sabe sobre terapia eficaz e o que o serviço público oferece. Lapa e Silva, da UFRJ, concorda: “Houve avanço nos últimos oito anos, mas ainda temos de enfrentar uma falta de acesso a medicamentos e informação que países com sistema de saúde bem consolidado, como a Inglaterra, venceram há 30 ou 40 anos”. n > Artigos científicos 1. Mauad, T. et al. Abnormal alveolar attachments with decreased elastic fiber content in distal lung in fatal asthma. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. v. 170, p. 857-62. 2004. 2. Souza-Machado, C. et al. Rapid reduction in hospitalizations after an intervention to manage severe asthma. European Respiratory Journal. 2009. no prelo. 3. Sembajwe, G. et al. National income, self-reported wheezing and asthma diagnosis from the World Health Survey. European Respiratory Journal. 9 set. 2009. pESQUISA FAPESP 165 novembro DE 2009 n

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Estratégias MUNDO

> Pobres gastam mais em ciência

A cultura do photoshop

A manipulação de imagens que ilustram artigos científicos tira o sono dos editores de publicações acadêmicas. Num encontro sobre plágio realizado em Londres, Virginia Barbour, editora chefe da PLoS Medicine, revista publicada pela Public Library of Science (PLoS), apresentou dados de um estudo que vem avaliando imagens de artigos aceitos para publicação. Ao longo de um ano, a revista encontrou adulterações em três artigos, num universo de 13 papers averiguados. Num dos casos, pesquisadores duplicaram a fo­to de um teste western blot. Em outro, fundiram imagens sem informar que buscavam realçar um efeito. Barbour disse que os autores deram explicações satisfatórias e que nenhum dos artigos foi rejeitado. Mas reiterou que modificar imagens sem avisar constitui falsificação. “Há uma cultura nas universidades segundo a qual não há nada de errado em alterar fotos e isso precisa ser discutido”, disse à revista Nature. No rol das investigações sobre má conduta abertas entre 2007 e 2008 pelo Escritório de Integridade da Pesquisa do U.S. Department of Health and Human Services, 68% envolveram imagens falsificadas. No período 2005/2006, o índice era de 40%.

> Biotecnologia para a indústria A Argentina inaugurou um centro de biotecnologia em San Martín, na Região Metropolitana de Buenos Aires, para facilitar a interação entre pesquisa básica e indústria. 22

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O governo investiu US$ 2 milhões no Centro de Biotecnologia Industrial, vinculado ao Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (Inti). A instituição dispõe de uma planta de bioprocessos que servirá de plataforma para desenvolver, por meio

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da biotecnologia, enzimas, vacinas e medicamentos, entre outros produtos de interesse industrial. A iniciativa tem 21 sócios fundadores, dos quais 18 são empresas privadas de setores diversos. “Trata-se do primeiro laboratório estatal da Argentina com capacidade para criar produtos talhados para as necessidades do setor produtivo”, disse à agência SciDev.Net Alberto Díaz, diretor do novo centro. Um dos primeiros alvos da planta será o desenvolvimento de duas proteínas recombinantes para uso terapêutico.

Um relatório divulgado pela Unesco, braço das Nações Unidas para ciência, cultura e educação, mensurou a queda na desigualdade entre países pobres e ricos no investimento em pesquisa. Enquanto os gastos das 149 nações em desenvolvimento avaliadas cresceram 103% entre 2002 e 2007, o avanço nos países ricos foi de 32%. O grupo dos países pobres e/ou emergentes apresentou, em média, um investimento de 1% do PIB em pesquisa e desenvolvimento em 2007 – em 2002 o índice era de 0,8%. Já no rol dos países desenvolvidos o investimento médio foi de 2,3% do PIB. O resultado foi influenciado pela China, que no período aumentou seu investimento de 1,2% para 1,5% do PIB. A tendência deve aprofundar-se, segundo Peter Tindemans, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. “É pouco provável que os Estados Unidos invistam mais do que os atuais 2,75% do PIB, mas países como a China têm espaço


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para crescer”, afirmou. Houve um aumento do contingente de pesquisadores nos países em desenvolvimento – de 1,8 milhão em 2002 para 2,7 milhões em 2007. Com isso, a proporção de pesquisadores por grupo de 1 milhão de habitantes subiu de 344 para 499. O crescimento nos países desenvolvidos foi de 8,6%, alcançando 3.592 pesquisadores por milhão de habitantes. Até os 50 países menos desenvolvidos se beneficiaram. A proporção de pesquisadores por milhão de habitantes cresceu de 40 para 43.

Regiões do oceano serão acompanhadas em tempo real

> Patentes em árabe O Escritório de Patentes do Egito ingressou na rede das 15 instituições internacionais credenciadas pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual para examinar preliminarmente pedidos de patentes e, a depender de seu potencial, recomendá-los para apresentação em outro país. O credenciamento terá impacto na ciência do Oriente Médio, pois o escritório egípcio será o primeiro da rede a avaliar pedidos de patente escritos

> A batalha da berinjela

em árabe, formulados por pesquisadores de qualquer nacionalidade. Mohammed Abd El-Monem, professor egípcio com experiência em apresentar pedidos de patente, comemorou a novidade. Até agora, ele disse à agência SciDev. Net, era forçado a traduzir suas ideias para o inglês antes de submetê-las. Ele acredita que o sistema dará fôlego ao patenteamento de tecnologias no mundo muçulmano. Já Adel Khalil, professor de patologia clínica da Universidade do Cairo, não crê em mudanças radicais. Disse que continuará a apresentar pedidos de patente em inglês, pois a lingua franca da ciência está disseminada nas instituições de pesquisa médica do Egito.

Ilustrações laurabeatriz

Os Estados Unidos vão lançar Profundezas uma rede gigante de vigilânmonitoradas cia submarina. A Ocean Observatories Initiative (OOI) é “o maior passo à frente da ciência oceanográfica nos Estados Unidos em meio século”, conforme disse à revista Nature Tim Cowles, do Consortium for Ocean Leadership, organização não governamental que coordena a iniciativa a partir da capital, Washington. O programa é parte de uma estratégia para construir grandes redes de monitoramento nos oceanos, conferindo aos pesquisadores uma visão em tempo real de locais que eram alvos de observação apenas eventuais. Embora a implantação completa do OOI deva demorar mais de uma década, um recente pacote de estímulo à economia de US$ 106 milhões acelerou em cerca de um ano a implantação do programa. O custo total é de US$ 385 milhões. Plataformas de escala global serão instaladas em quatro regiões oceânicas de altas latitudes, no Atlântico e no Pacífico. A rede será complementada por plataformas regionais, instaladas nas costas leste e oeste dos Estados Unidos, e por duas grandes centrais de monitoramento nos estados do Oregon e Massachusetts.

A liberação de uma variedade geneticamente modificada de berinjela divide o governo da Índia e opõe pesquisadores e ambientalistas. Um comitê encarregado de avaliar a segurança de produtos transgênicos recomendou a liberação da berinjela resistente a uma praga, que seria o primeiro alimento geneticamente modificado comercializado no país. A decisão foi comemorada por pesquisadores como Mathura Rai, do Instituto Indiano de Pesquisa Vegetal e especialista em melhoramento genético. “Haverá ganhos de até 40% de produtividade na colheita da berinjela, cultura que ocupa 530 mil hectares no país”, disse, segundo a agência AFP. Já organizações ambientalistas como o Centro para Ciência e Meio Ambiente protestaram e pediram uma avaliação independente sobre o impacto da liberação. Em meio ao tiroteio, o governo optou por abrir uma consulta pública sobre o assunto e adiar a decisão sobre a liberação para 2010.

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Estratégias MUNDO

A construção do Iter (sigla em inglês para Reator Experimental Termonuclear Internacional) está paralisada desde abril. As escavações em St. Paul lez Durance, no sul da França, só deverão ser retomadas em 2010. O adiamento da construção do primeiro reator de fusão nuclear, tecnologia ainda em desenvolvimento que encarna a promessa de produzir energia limpa e em quantidade infinita, coincide com as negociações sobre o quiO local onde o Iter será construído: obras paradas nhão que caberá a cada um dos países participantes do projeto – além da União EuAno Internacional ropeia, que vai pagar 45% dos custos, o consórcio abriga o da Astronomia, o projeto Japão, a Coreia do Sul, a Rússia, os Estados Unidos, a China e GalileoMobile busca a Índia. ”A conclusão do projeto pode atrasar”, disse à revista promover oficinas e festas Nature Günther Hasinger, diretor do Instituto Max Planck de Física de Plasma em Garching, Alemanha, preocupado com e vai distribuir a escolas os desafios tecnológicos a enfrentar. Autoridades europeias de regiões carentes modelos de telescópios como garantem que os problemas são técnicos, não políticos, e o criado por Galileu Galilei mantêm a previsão de conclusão das obras em 2018.

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Fusão em banho-maria

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> Sob o céu dos Andes

(1564-1642), há 400 anos. A intenção é atingir 20 mil pessoas em oito semanas, cobrindo uma área de 5 mil quilômetros. A caravana, que teve início no dia 5 de

GalileoMobile

Uma expedição de jovens astrônomos e educadores europeus e latino-americanos está levando material de difusão e equipamentos de observação do céu a comunidades pobres do Chile, da Bolívia e do Peru. Apoiado pelo European Southern Observatory (ESO) como parte das atividades do

outubro em Antofagasta, no Chile, vai encerrar seu périplo no Peru, no final de novembro. “Queremos encorajar o sentimento de unicidade sob o mesmo céu entre pessoas de diferentes culturas e experiências”, afirma Philippe Kobel, coordenador do projeto.

> E, no entanto, ela se move

Astrônomos do ESO: expedição 24

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O Vaticano promove até janeiro a exposição Astrum 2009, que celebra o Ano Internacional da Astronomia. Estão em exposição, entre

outros, instrumentos, mapas, manuscritos de Galileu Galilei, silenciado pela Inquisição por questionar a teoria, tida como correta na época, de que o Sol girava em torno da Terra. Em 1992, o Vaticano retratou-se do erro. A exposição é patrocinada pelo Observatório Astronômico Vaticano, pelo Instituto Nacional de Astrofísica da Itália e pelos Museus Vaticanos. “Todos os astrônomos são filhos da astronomia da Itália”, diz o diretor do Observatório Astronômico Vaticano, o jesuíta José Gabriel Funes.


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Estratégias brasil

Ilustrações laurabeatriz

A FAPESP publicou chamada do Programa Piloto para Projetos Multinacionais de Pesquisa em Química de Polímeros apoiado por organismos internacionais de financiamento e pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac). A Iupac coordena a chamada apoiada por um consórcio de instituições de fomento à pesquisa de diferentes países: Alemanha, Brasil (FAPESP), Espanha, Estados Unidos, França, Irlanda e Portugal. O objetivo da chamada é estabelecer um programa de financiamento transnacional de pesquisa em química com burocracia reduzida. Mais informações podem ser obtidas em www.fapesp.br/ chamadas/iupac. O prazo limite para entrega de cartas de intenção é o dia 15 de novembro.

O Programa de Pré-Iniciação Científica da Universidade de São Paulo (USP) acaba de encerrar seu primeiro ciclo e premiou, numa festa na capital paulista, os oito melhores trabalhos de estudantes do ensino médio. Eles receberam um netbook e uma assinatura de um ano de Pesquisa FAPESP. Lançada em outubro de 2008, a iniciativa é uma parceria da USP com a Secretaria Estadual de Educação e oferece R$ 150 mensais para estudantes que participem de pesquisas de professores da universidade. O objetivo é propiciar aos alunos a oportunidade de conhecer procedimentos e metodologias adotadas em estudos científicos. Professores da rede pública podem participar do programa como orientadores, com direito a bolsa de R$ 150. Para pleitear uma vaga, o estudante deve cursar o 1º ou 2º ano do ensino médio em escolas públicas de cidades onde existe campus da USP, ter entre 15 e 18 anos e apresentar boas notas. O programa terá continuidade em 2010, graças à concessão de 400 bolsas a estudantes do ensino médio pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Programa em nova fase

> Projetos multinacionais

> Bolsistas premiados Das três melhores teses de doutorado de 2008 premiadas pelo concurso anual da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), duas foram de bolsistas da FAPESP: Fernando Vieira Paulovich, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP de São Carlos, e Leonardo Oliveira, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Paulovich foi agraciado com o segundo lugar no concurso da SBC com a tese “Mapeamento de dados multidimensionais – Integrando mineração e visualização”, orientada por Rosane Minghim,

professora do ICMC, e Charl P. Botha, da Delft University of Technology, na Holanda. Oliveira ficou em terceiro lugar com a tese “Distribuição de chaves criptográficas em redes de sensores sem fio”, orientada por Ricardo Dahab, da Unicamp, e Michael Scott, da Dublin City University. O primeiro lugar coube a Felipe Paulo Guazzi Bergo, do Instituto

de Computação da Unicamp, pela tese “Segmentação de displasias corticais focais em imagens de ressonância magnética do cérebro humano”, orientada por Alexandre Xavier Falcão. Bergo recebeu bolsa de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Atualmente faz pós-doutorado com bolsa da FAPESP.

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Estratégias brasil

Participação crescente

A 6ª edição da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT - 2009) terminou no dia 25 de outubro com participação recorde. Neste ano foram desenvolvidas 24.978 atividades em 472 cidades. No evento de 2008 houve 10.859 atividades em 445 cidades. O Amazonas foi o estado com o maior número de eventos. Foram 11.083. A cidade de São Paulo contou com as exposições A arte da ilustração científica, no Instituto Butantan, Charles Darwin: evolução para todos, Estudantes em Brasília na Semana de Ciência e Tecnologia no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, Experimentoteca – O ar e o vento > Climatologista Instituto Nacional de (catavento, pipa), na Estação Ciência, e Planeta Inseto: conhe é premiado Pesquisas Espaciais (Inpe), ça este mundo, no Instituto Biológico. Em Campinas, o Grupo coordenador do Centro de Astronômico Aster realizou a exposição Paisagens cósmicas, O climatologista Carlos Ciência do Sistema Terrestre na Biblioteca Central da Universidade Estadual de Campinas. Nobre foi o ganhador do instituto e coordenador A Semana, que busca popularizar a ciência no país, ocorre do Prêmio WWF-Brasil executivo do Programa desde 2004. Neste ano comemorou marcos da ciência e da tecnologia do país, como a construção do primeiro balão de Personalidade Ambiental. FAPESP de Pesquisa sobre Ele foi escolhido pelos Mudanças Climáticas ar quente, realizada por Bartolomeu de Gusmão, há 300 anos, estudos desenvolvidos sobre Globais. Também e o centenário da descoberta da doença de Chagas.

mudanças climáticas e os efeitos do aquecimento global na Amazônia. Nobre é pesquisador titular do Marcia minillo

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participou da elaboração do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Para o pesquisador, o prêmio é um reconhecimento da capacidade crescente do Brasil em pesquisas sobre o sistema climático. “Não é muito comum um cientista receber essa modalidade de prêmio. É um reconhecimento do esforço do cientista em mostrar

Carlos Nobre: personalidade ambiental 26

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seu importante papel na sociedade”, afirmou Nobre. A entrega do prêmio foi feita no dia 13 de outubro, no Rio de Janeiro, a bordo do veleiro holandês Clipper Stad Amsterdã, que refaz o trajeto do naturalista inglês Charles Darwin, cuja expedição há 177 anos levou às descobertas que o ajudaram a formular a teoria da evolução. Esta é a segunda edição do Prêmio WWF-Brasil Personalidade Ambiental. Na primeira, em 2006, a ganhadora foi a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

> Brasileiros na TWAS A Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS) anunciou a eleição de 50 novos membros – sete deles brasileiros. A Universidade de São Paulo (USP) é a casa de três dos acadêmicos. Vanderlei Salvador Bagnato é professor no Instituto de Física de São Carlos da USP e coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof–São Carlos), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e


> SciELO chega à Bolívia

Difusão (Cepids) da FAPESP. Paulo Artaxo é professor do Instituto de Física da USP e coordena um projeto temático sobre efeitos dos aerossóis no clima da Amazônia e do Pantanal, realizado no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. O agrônomo Klaus Reichardt é professor da USP, atuando no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena). No rol dos eleitos também figuram Alcides Nóbrega Sial, professor de geologia da Universidade Federal de Pernambuco; Faruk Aguilera, professor de química da Federal de Santa Catarina; Nelson Ebecken, professor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e a antropóloga Manuela

A Bolívia é o 15º país a integrar a Rede SciELO (Scientific Electronic Library Online), com a publicação on-line em acesso aberto de um conjunto de periódicos científicos do país. A coleção dispõe de oito títulos e 37 fascículos com mais de 500 artigos publicados: Biofarbo, Cuadernos Hospital de Clínicas, Ecologia en Bolívia, Revista Boliviana de Física, Revista Boliviana de Química, Revista de la Sociedad Boliviana de Pediatría, Tinkazos – Revista Boliviana de Ciencias Sociales e Umbrales. A Rede SciELO opera de forma descentralizada, na qual cada país assume a responsabilidade da gestão, e possui coleções do Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Venezuela, Espanha e Portugal. Também há coleções em desenvolvimento de seis países, além da Bolívia: México, África do Sul, Costa Rica, Paraguai, Peru e Uruguai. O programa SciELO foi criado no Brasil em 1997 por meio de uma parceria entre a FAPESP e o Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), reunindo, a princípio, periódicos científicos brasileiros.

> São Paulo corta emissões O estado de São Paulo deverá reduzir em 20% a emissão de gases de efeito estufa até 2020, em relação ao patamar atingido no ano de 2005. A meta foi estabelecida pela Política Estadual de Mudanças Climáticas (Pemc), projeto de lei do Poder Executivo aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa

de São Paulo no dia 13 de outubro. O texto prevê a criação do Conselho Estadual de Mudanças Climáticas, com caráter consultivo, e a permanência da atuação do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas. Outro destaque é a redução do prazo de elaboração da Comunicação Estadual, que conterá o inventário de emissões dos gases estufa resultantes de atividades humanas.

Com o total de 30.871 teses e dissertações em sua Biblioteca Digital, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) se tornou, no início de outubro, a primeira universidade brasileira a ter 100% dessa produção em formato eletrônico e com acesso livre pela internet. Desde 2004, quem quiser baixar uma cópia dos trabalhos precisa se cadastrar, o que tem permitido um controle detalhado dos acessos. “Até o momento foram 4,3 milhões de downloads. A maior média é da área de humanidades e artes, com 1,6 milhão de downloads e 7.705 teses, média de 217 cópias por pesquisa. A média geral, considerando todas as áreas, é de 143 downloads por tese”, disse Luiz Atílio Vicentini, coordenador da Biblioteca Central Cesar Lattes e do Sistema de Bibliotecas da Unicamp. A Biblioteca Digital da Unicamp passou dos 20 milhões de visitas, com um grande salto ocorrido a partir de 2005, quando o acervo foi indexado ao Google. De acordo com o coordenador, há mais de 800 mil usuários cadastrados. O estudo mais acessado, intitulado O conhecimento matemático e o uso de jogos na sala de aula, foi apresentado por Regina Célia Grando na Faculdade de Educação e teve até o dia 13 de outubro 8.485 downloads Produção e 43.784 visitas. transparente Ilustrações laurabeatriz

Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. A TWAS é presidida pelo matemático brasileiro Jacob Palis, que também comanda a Academia Brasileira de Ciências.

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política científica e tecnológica

Prêmio Nobel

Institute of Science

Poder feminino Recorde de laureadas mostra como cresce a presença das mulheres no topo da ciência

UCSF

johns Hopkins School of Medicine

Fabrício Marques

O

Comitê Nobel descobriu as mulheres em 2009. Quatro pesquisadoras venceram as categorias científicas do prêmio, com destaque para a pioneira conquista da cientista política Elinor Ostrom, da Universidade de Indiana, no Prêmio de Economia, até então conferido apenas para homens. A israelense Ada Yonath foi a terceira mulher a ganhar o Prêmio de Química desde que Marie Curie abriu a lista feminina de agraciados da categoria em 1911. Elizabeth Blackburn e Carol Greider foram as primeiras mulheres a dividir um Prêmio de Medicina ou Fisiologia. Com a laureada em Literatura, a romena Herta Müller, o número de mulheres vencedoras de Nobel cresceu de 36 para 41 em 2009, um salto de 14% no total. Tal contingente ainda está a anos-luz dos 761 homens laureados desde que o prêmio foi instituído em 1901 e, computando-se o total de premiados em 2009, elas estão em minoria (oito homens foram agraciados). Mas o movimento teve força para recolocar o debate sobre o reconhecimento da contribuição feminina para a ciência. Elinor Ostrom, 76 anos, lembrou o descrédito que enfrentou, nos anos 1960, quando decidiu seguir a carreira acadêmica. “Não era possível para uma mulher receber um título de doutora em 1965. O conselho que recebi quando me matriculei na pós-graduação foi: ‘Bem, você tem um emprego. Por que você vai tentar fazer um doutorado? Você pode

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AFP PHOTO/PIERRE FRANCK COLOMBIER

Universidade de Indiana

As premiadas em 2009: Ada Yonath e Elinor Ostrom (alto), Carol Greider e Elizabeth Blackburn (esq.), e Herta Muller (dir.)

arrumar um emprego em qualquer lugar em vez de dar aulas. Você tem um emprego melhor’”, disse Elinor, que estuda como grupos de pessoas conseguem explorar recursos naturais de forma sustentável, mesmo sem regulação. Ela lembrou que, naquela época, estava muito animada e decidiu seguir em frente por interesse acadêmico genuíno, não para arrumar um trabalho. “Felizmente, a Universidade de Indiana me contratou para dar aulas às terças, quintas e sábados às 7h30 da manhã. Não fazemos mais isso, fazemos? Entramos em uma nova era, reconhecemos que as mulheres têm habilidade para fazer um bom trabalho científico. É uma honra ser a primeira mulher a ganhar o Nobel de Economia. Não serei a última”, afirmou. A bióloga molecular Carol Greider, 48 anos, da Universidade Johns Hopkins, protagonizou uma cena rara num anúncio de Prêmio Nobel. Laureada juntamente com Elizabeth Blackburn pelas pesquisas relacionadas aos telômeros, estruturas que mantêm a estabilidade estrutural dos cromossomos, Carol concedeu a tradicional entrevista coletiva na companhia de dois filhos, um garoto de 13 anos e uma menina de 9 – uma imagem que encarnou a possibilidade de ser mãe e cientista de primeira linha ao mesmo tempo. Mais tarde, contaria que estava lavando roupas em casa quando foi informada da premiação. “Não costumo cuidar da roupa de manhã cedo, mas eu já havia acordado e tinha aquela roupa toda me esperando”, disse. Filha de pesquisadores, ela explicou por que o estudo dos telômeros reuniu tantas mulheres cientistas. “Não há nada nesse assunto que atraia mulheres. Mas há o chamado efeito do fundador”, disse, referindo-se às oportunidades que Joseph Gall, pioneiro no tema, deu a mulheres pesquisadoras em seu laboratório. “Essas mulheres foram trabalhar em outros lugares do país e treinaram outras mulheres. Acho que há uma leve disposição de mulheres trabalharem com mulheres porque há uma tendência cultural de os homens ajudarem outros homens. Não é que eles tenham alguma coisa contra as mulheres, é que simplesmente não pensam nelas. E frequentemente se sentem mais confortáveis promovendo os colegas homens.” Elizabeth Blackburn, 61 anos, australiana radicada nos Estados Unidos, rememorou a dificuldade que teve em 1985, quando, aos 37 anos, ganhou o posto de professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, EUA, e PESQUISA FAPESP 165

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Press Illustrating Service, New York City/Wikimedia commons

Marie Curie: pioneirismo e dois Nobel

ficou grávida. “Não calculava que seria tão duro ter um filho e fazer minha pesquisa”, disse. “Minha conclusão hoje é que há alguns períodos da vida em que não podemos ficar 100% dedicadas ao trabalho e não é necessário abandonar a carreira só porque momentaneamente você não pode se dedicar a ela. É possível ter 20 ou 30 anos de produtividade no intervalo de várias décadas de atividade profissional”, afirmou. A israelense Ada Yonath, 60 anos, premiada por seus trabalhos pioneiros sobre a estrutura do ribossomo, foi a única a colocar de lado a questão de gênero ao comemorar sua conquista. “Eu não caminho para o laboratório na manhã pensando: ‘Eu sou uma mulher e vou realizar uma pesquisa que vai conquistar o mundo’. Sou acima de tudo cientista, independentemente do gênero. Apenas cientista”, afirmou. Há tempos, a Real Academia Sueca, que concede os prêmios de Física, Química e Economia, era criticada pelo 30

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domínio masculino em suas premiações. “Isso chama a atenção na época em que vivemos e com a importância que damos à igualdade de gêneros aqui na Suécia”, disse Gunnar Oquist, secretário-geral da academia, em entrevista concedida em 2005. “Acontece que leva tempo. O trabalho que recompensamos hoje remonta a 20 anos”, afirmou. Parentesco - Historicamente a atividade científica é masculina. A participação intensiva das mulheres na ciência é um fenômeno recente, iniciado na segunda metade do século passado e impulsionado por fatores como a luta pela igualdade de direitos entre os gêneros e a necessidade de recursos humanos para atividades estratégicas. Antes disso, o acesso das mulheres à carreira científica era eventual e estava frequentemente vinculado a algum parentesco com homens de ciência. Não é considerado uma coincidência o fato de a primeira mulher a conquistar um No-

bel, a francesa de origem polaca Marie Curie, ter ganho o Prêmio de Física em parceria com o marido, Pierre, em 1903 – embora ela também fosse conquistar, sozinha, o Prêmio de Química de 1911. A filha do casal, Irene Curie, também dividiria o Prêmio de Química em 1935 com o marido, Jean Frederic Joliot. A integração das mulheres à carreira científica avançou nas últimas décadas, mas se deu de maneira desigual. Concentrou-se em determinadas áreas, como as ciências biológicas e sociais, em detrimento das chamadas ciências duras, como a física, e as tecnológicas, como as engenharias e a computação. Um dos primeiros estudos a debruçar­-se sobre o fenômeno foi publicado em 1965 pela norte-americana Alice Rossi, da Universidade de Chicago, que discutia as razões de nos Estados Unidos as mulheres representarem apenas 1% dos empregados no campo das engenharias, enquanto chegavam a 27% na biologia. A autora discutia aspectos sociais e psicológicos vinculados ao fenômeno, como a prioridade do casamento e da maternidade em relação à carreira, a determinação cultural de atitudes tidas como “femininas” ou “masculinas” e diferenças entre homens e mulheres em comportamentos como a persistência e o distanciamento do convívio social. Embora a desigualdade tenha diminuído desde a década de 1960, persistem questões ligadas ao desempenho profissional ou ao compromisso com a carreira, tidos como inferiores aos dos homens devido à dedicação à família, e seus efeitos colaterais, como o escasso acesso a altos cargos acadêmicos e a remuneração relativamente menor. Há três anos a discussão sobre as raízes desse fenômeno gerou um grande curto-circuito em Harvard, uma das mais importantes universidades do planeta. O então reitor da universidade, Lawrence Summers, perdeu apoio político e foi obrigado a renunciar ao comando da instituição depois de sugerir que a reduzida participação das mulheres nas ciências e na matemática se explica por uma natural inaptidão feminina para tais campos do conhecimento. Além de demitir Summers, a Harvard Corporation, que controla a instituição, criou duas forças-tarefa, uma sobre Mulheres Professoras e outra sobre Mulheres em Ciência e Engenharia, com o objetivo


de “desenvolver propostas para reduzir as barreiras ao avanço das mulheres em Harvard”. E escolheu uma mulher para o lugar de Summers, a historiadora Drew Gilpin Faust. Carol Greider, Elizabeth Blackburn, Ada Yonath e Elinor Ostrom são mulheres que se destacaram em campos da ciência nos quais Summers sugeriu que elas não conseguem equipararse aos homens. “Summers perguntou onde estavam as mulheres cientistas. No caso das vencedoras do Nobel de 2009, estavam ocupadas fazendo pesquisa de primeiro nível”, disse Sharon McGrayne, autora de um livro sobre as mulheres laureadas com o Nobel. Se existe literatura científica sugerindo razões biológicas para comportamentos distintos de homens e mulheres, no campo da ciência as evidências apontam origens sociais e culturais para as diferenças de desempenho e de interesse. Estereótipos como o da aptidão masculina para as ciências influenciam as mulheres no momento da escolha profissional e as afastam de determinadas áreas. Pesquisa feita em 2009, que comparou a situação em 34 países, concluiu que nações em que os estereótipos são mais enraizados os meninos conseguem melhores resultados do que as meninas em ciências e matemática. “Os estereó­ tipos e o abismo entre os sexos em sua capacidade de êxito na ciência se reforçam mutuamente”, disse Brian Nosek, professor de psicologia da Universidade de Virginia, autor do estudo, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. “Quando as pessoas veem que os homens trabalham mais nos campos científicos, se desenvolve um preconceito segundo o qual os homens são mais aptos para as ciências”, diz. No caso da ciência da computação, que viu decrescer a participação feminina nos últimos anos, as hipóteses vão do aumento da competição no ambiente acadêmico e profissional ao estereótipo de que se trata de uma profissão que privilegia o isolamento.

Outra pesquisa recente buscou mapear as razões de os homens pedirem mais patentes que as mulheres nos Estados Unidos. A pesquisa, publicada na revista Science, foi realizada com uma amostragem de 4.227 norte-americanos que obtiveram seus títulos de doutor entre 1967 e 1995. Os dados mostram que 5,65% das 903 mulheres analisadas tinham alguma patente em seu nome. Entre os 3.324 homens a taxa foi de 13%. Os autores fizeram entrevistas com grupos específicos para tentar entender o desequilíbrio. Conclusão: o hiato de gênero persiste devido às escassas ligações com o setor privado cultivadas pelas mulheres e por sua visão tradicional sobre a carreira acadêmica. Elas não apenas se preocupam menos em patentear como também se dedicam pouco a outras atividades vinculadas ao “empreendedorismo acadêmico”, como a prestação de consultoria a empresas. Mas isso não é uma característica inata. Segundo os autores, as pesquisadoras mais jovens já apresentam a cultura masculina de expandir suas ligações com empresas. Flexibilidade -A questão aparece de

forma distinta em diferentes culturas. O rigor do ambiente acadêmico do Japão tolhe a participação feminina. Em 2004 as mulheres compunham apenas 11,1% da força de trabalho acadêmica do país, a mais baixa participação entre os 30 países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – Portugal tem a taxa mais alta, de 40%. Na Europa, apesar de políticas que buscam dar oportunidades e flexibilidade às mulheres cientistas, os resultados são tímidos. “Estudos feitos na França e na Alemanha mostram que, ao longo das últimas duas décadas, as mulheres tiveram maior acesso à carreira científica, mas seguem sendo minoria nos cargos de maior prestígio”, diz Jacqueline Leta, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa das questões de gênero na ciência. No Brasil, a situação é menos dramática. O censo de grupos de pesqui-

sa do país, divulgado em agosto pelo CNPq, mostra que, entre os pesquisadores cadastrados em 2008, 49% eram mulheres e 51% homens. Quando a liderança dos grupos é analisada, a participação feminina cai para 45%. Apesar disso, os números indicam uma evolução da presença feminina nos laboratórios. Em 1993, de cada 100 pesquisadores apenas 39 eram mulheres. Na opinião da socióloga da ciência Léa Velho, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os avanços do Brasil na questão de gênero em ciência, que se traduzem numa maior participação feminina nas universidades públicas do que em países avançados, tem duas causas principais. “De um lado, temos uma estrutura social em que as mulheres da classe média podem contar com todo tipo de ajuda para as tarefas domésticas e cuidado com os filhos. São as mulheres das classes baixas que viabilizam a carreira das de classe média. De outro, o acesso à carreira por concursos públicos tende a diminuir os vieses de julgamento”, afirma. Jacqueline Leta levanta a hipótese de que as mulheres estejam ingressando nas universidades e predominando em certas carreiras porque não são alvos da pressão para trabalhar precocemente. “Para muitos homens, é inviável passar quatro anos fazendo um curso de graduação sem trabalhar. Essa opção pelo mercado pode abrir, cada vez mais, espaço nas universidades para as mulheres”, afirma. Segundo ela, não significa que as mulheres estejam conquistando as melhores posições. Um recente estudo de sua autoria analisou a situação de 1.946 docentes da UFRJ. Constatou que, com exceção das áreas de letras, artes e humanidades, o porcentual de mulheres envolvidas com a atividade de pós-graduação é sempre menor do que a fração feminina do total de docentes. Isso sugere uma tendência a uma divisão de trabalho, na qual cabe mais aos homens a atividade de pesquisa, que é a de maior prestígio e reconhecimento na academia, enquanto as mulheres tendem a trabalhar com o ensino. n

A desigualdade diminuiu, mas as mulheres ainda têm dificuldade de alcançar as posições de maior prestígio no mundo acadêmico PESQUISA FAPESP 165

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Pete Souza Rob Allen, Black Star

Steve McConnell

David Dobkin

Festa em rede Brasileiros comemoram premiações de cientistas com quem já trabalharam

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trabalho em redes de pesquisa e a internacionalização da ciência do país fizeram com que algumas vitórias do Nobel fossem comemoradas por brasileiros que conviveram e trabalharam com os laureados. Um exemplo é o de Mateus Batistella, pesquisador da Embrapa Monitoramento por Satélite e professor da Universidade Estadual de Campinas, que teve uma colaboração profícua com a vencedora do Nobel de Economia, Elinor Ostrom, sobretudo no período em que se doutorou na Universidade de Indiana, instituição em que a pesquisadora fez carreira. Batistella e colegas do Brasil, Madagascar, Uganda, Nepal e Guatemala publicaram em 2003 com Elinor um artigo num suplemento on-line da revista Science. O texto apresentou estudos de caso que dão base a um artigo anterior publicado pela Nobel

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de Economia e outros autores, em que ela explora seu prato de resistência: o desafio de governar recursos comuns. Elinor Ostrom desafia a armadilha social conhecida por “tragédia dos comuns”, na qual interesses individuais se sobrepõem a um objetivo coletivo, resultando em destruição dos bens públicos e dos recursos escassos. Ela comprovou, na prática, que os interesses isolados de certos grupos podem ser mais benéficos à economia e ao meio ambiente do que uma intervenção do Estado ou do próprio mercado. O estudo de caso feito por Batistella narra o exemplo de um assentamento agrícola em Rondônia. O brasileiro também mantém colaboração estreita com Emilio Moran, professor da Universidade de Indiana (ver entrevista em Pesquisa FAPESP nº 125) que foi codiretor, ao lado de Elinor, do Center for the Study of Insti-

O economista Williamson (esq.), os físicos Kao e Boyle e o Nobel da Paz Barack Obama

tutions, Population and Environmental Change. Os resultados dos primeiros anos de trabalho desse centro abasteceram o livro Ecossistemas florestais – Interação homem-ambiente, organizado por Elinor e Moran, lançado no Brasil pela Editora Senac SP e pela Edusp – Batistella foi um dos tradutores. Elinor Ostrom divi­diu o Nobel de Economia com Oliver Williamson, de 77 anos, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, agraciado por suas análises da governança econômica. Também foi festejado no Brasil o anúncio do Nobel de Química, dividido por três cientistas que desvendaram um dos processos mais fundamentais para a existência da vida: como a informação contida no DNA é traduzida pelo ribossomo, compartimento celular responsável pela síntese das proteínas em todos os organismos, do homem às bactérias. Yvonne Mascarenhas, professora do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), comemorou a conquista da israelense Ada E. Yonath, do Weizmann Institute of Science. Yvonne encontrou Ada em vários congressos internacionais, como o da União Internacional de Cristalografia, realizado em 1984, em Moscou, na Rússia. “Nessa ocasião ela me convidou para visitar seu grupo no Labora-


divulgação

yaleUniversity

Jussi Puikkonen

Ramakrishnan e Steitz (abaixo), que levaram o Prêmio de Química, e Szostak (dir.), vencedor em Medicina

tório Síncrotron de Hamburgo. Aceitei e tive a satisfação de encontrá-la”, lembra. Yvonne convidou-a para participar de um simpósio sobre cristalografia e biologia molecular que se realizou no Guarujá em 1990. “Ela aceitou o convite e, com sua natural curiosidade, além de vir ao simpósio ainda achou tempo para visitar Manaus e Salvador.” Coral - Outro professor da USP, Jo-

sé Riveros, do Instituto de Química, escreveu um artigo recordando-se de sua amizade com Thomas Steitz, da Universidade Yale, que venceu o Nobel de Química ao lado de Ada e do indiano Venkatraman Ramakrishnan. No texto, disponível no site de Pesquisa FAPESP (www.revistapesquisa.fapesp. br), Riveros rememora o convívio com Steitz, quando ambos eram alunos de pós-graduação da Universidade Harvard, nos anos 1960. “Tivemos oportunidade de assistir a vários concertos da Sinfônica de Boston e o Tom participava ativamente do coral nos serviços religiosos na capela de Harvard”, escreveu Riveros. “Ele mantém a mesma simplicidade e o mesmo entusiasmo da época que compartilhei com ele e me sinto orgulhoso de poder ter tido um convívio muito rico com ele no plano científico e pessoal”, disse.

No caso do Nobel de Física, a premiação do chinês Charles Kao, que desenvolveu a primeira fibra de vidro óptica em 1966, o reconhecimento foi festejado pela comunidade de pesquisadores que se formou no Brasil a partir da década de 1970 e ajudou a impulsionar a tecnologia nacional nesse campo. A descoberta de Kao ganhou aplicação comercial em 1973 – quatro anos mais tarde, em abril de 1977, era puxada a primeira fibra óptica no Brasil, numa torre do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp. “O Brasil acompanhou bem cedo o desenvolvimento internacional”, diz Hugo Fragnito, professor da Unicamp e coordenador do projeto KyaTera, estrutura de cabos de fibras ópticas que interliga centros de pesquisa entre São Paulo, Campinas e São Carlos, dentro do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) da FAPESP. “A primeira fibra óptica experimental utilizável em telecomunicações foi fabricada no Brasil em 1976, três anos depois de ganhar viabilidade nos EUA. Para uma tecnologia de ponta foi um logro apreciável. Trata-se de um caso de sucesso de tecnologia feita na universidade e transferida para o setor produtivo de forma pioneira no Brasil. O desenvolvimento

no mundo foi feito em laboratórios privados”, diz o professor. Fragnito lembra que um ingrediente essencial foi o surgimento do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), da Empresa Brasileira de Telecomunicações (Telebrás), inaugurado em Campinas em 1976 e que buscava transferir inovação para o setor industrial. Enquanto a Unicamp fez protótipos em laboratório, o CPqD testou a tecnologia em escala piloto e a transferiu para o setor produtivo. “Essa iniciativa gerou conhecimento e pessoal qualificado, que se tornou um acervo humano importante, e viabilizou o surgimento de empresas como a Padtec”, diz, referindo-se à maior fabricante de equipamentos para comunicação óptica do Brasil, sediada em Campinas. Charles Kao dividiu o prêmio com Willard Boyle e George Smith, reconhecidos pela invenção, nos Bell Laboratories, de um circuito semicondutor de imagens, o sensor CCD, o olho eletrônico das hoje populares câmeras fotográficas digitais. Estudos de grande importância para a compreensão de mecanismos biológicos que regulam o processo de envelhecimento celular deram o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia para três pesquisadores que trabalham nos Estados Unidos: Elizabeth Blackburn, da Universidade da Califórnia, Carol Greider, da Escola Médica da Universidade Johns Hopkins, e Jack Szostak, da Escola Médica de Harvard e do Instituto Médico Howard Hughes. Cada um deles receberá por seus estudos iniciados na década de 1980 sobre como os cromossomos são protegidos pelos telômeros e pela enzima telomerase. Os telômeros são estruturas que protegem o material genético da degradação no processo de cópia e divisão celular. As premiações nas categorias não científicas foram fonte de polêmica. O Prêmio de Literatura conferido a Herta Müller, 56 anos, alemã nascida na Romênia, gerou críticas pelo baixo reconhecimento internacional da obra da escritora, o que não é novidade na trajetória do Nobel. Mas a maior controvérsia marcou a concessão do Nobel da Paz, conferido ao presidente norte-americano, Barack Obama, que, a despeito do discurso antiarmamentista, não teve tempo de levar as ideias à prática em apenas nove meses de mandato. n PESQUISA FAPESP 165

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Difusão

O museu vai à escola

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studantes da rede pública das regiões metropolitanas de São Paulo e de São Carlos estão conhecendo, sem sair do ambiente escolar, uma espécie de museu de ciências em escala reduzida. Inaugurada em 2008, a exposição itinerante A USP vai à sua escola já percorreu algumas dezenas de colégios estaduais difundindo conceitos sobre biologia e física por meio de instalações lúdicas e painéis interativos. Trata-se de uma iniciativa conjunta de dois Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP: o Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH), do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), e o Grupo de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. “Em alguns casos, a exposição propicia a primeira oportunidade para os estudantes conhecerem algo semelhante a um museu de ciências”, diz Vanderlei Bagnato, professor do IFSC e coordenador do Cepof. “A intenção é levar os estudantes à reflexão e motivá-los a fazer perguntas ao professor, melhorando o ensino de

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Projeto da USP leva exposição sobre biologia e física a alunos da rede pública

ciências”, diz Eliana Dessen, professora da USP e pesquisadora do CEGH. A exposição é composta por dois conjuntos de objetos. A seção de biologia dispõe de uma série de cinco painéis iluminados (Do organismo ao genoma), um vídeo (Explorando a natureza molecular do ser humano), três painéis interativos (Organização da célula eucariótica e funções das principais organelas, Obtenção de células-tronco embrionárias e do adulto e Uso de células-tronco em terapias), um livro interativo (Livro do corpo humano: principais sistemas) e uma seção de microscopia (Descobrindo estruturas não visíveis a olho nu). Na seção de física, os objetos

expostos abordam conceitos e fenômenos de óptica, por meio também de painéis interativos (Ilusão de óptica e Fluorescência e fosforescência de materiais), três hologramas e uma imagem que, visualizada com óculos especiais, ganha forma tridimensional. Desde o ano passado, o conjunto de instalações passa o primeiro semestre em São Carlos e o segundo em São Paulo. Em geral, a exposição fica instalada em cada escola durante dois dias e duas noites, mas pode permanecer por uma semana se a unidade de ensino for muito grande. A ideia é alcançar pelo menos os estudantes de 2º e 3º anos do ensino médio, embora os alunos de outras séries também possam participar. Os professores de biologia e de física das escolas visitadas passam por um curso de capacitação de oito horas, no qual conhecem o material e têm a chance de fazer perguntas sobre o conteúdo. Também são abastecidos com apostilas, produzidas por pesquisadores da USP, com informações teóricas e sugestões para abordar temas em sala de aula. Monitores recrutados entre universitários (no caso de São Paulo) ou


fotos eduardo cesar desenho Fibonacci/wikimedia commons

entre estudantes dos próprios colégios visitados (em São Carlos) estimulam a curiosidade dos alunos, mas, sempre que possível, sugerem que as dúvidas sejam tiradas com os professores, para potencializar o impacto da exposição na sala de aula. A repercussão é positiva, de acordo com uma pesquisa feita com 1.289 estudantes e 11 professores de escolas públicas da cidade de São Paulo que receberam a exposição em 2008. As avaliações mais favoráveis foram feitas por estudantes do sexo feminino e de menor nível socioeconômico. Do total de estudantes entrevistados, 84,5% tiveram a sensação de ter aprendido alguma coisa com o evento. A diferença entre “gostar” e “achar que aprendeu” com cada uma das seções de biologia foi significativa entre as escolas visitadas e está vinculada ao período em que os alunos estudam. Alunos do período noturno tendem a “gostar” mais do que “achar que aprenderam”. A exposição também serviu de dínamo para um aprendizado posterior, pois 89% escolheram palavras como “vontade de saber mais”, “curiosidade” e “interesse” para descrever seu sentimento em relação à exposição. “Os resultados permitem concluir que a opção de levar

exposições para o espaço escoserá produtivo se servir paEstudantes na exposição: lar, além de proporcionar um ra reforçar a autoestima dos o objetivo é momento de prazer, é uma alunos e mostrar que está ao motivá-los forma eficiente de estimular alcance deles ingressar numa a fazer o interesse do aluno para a das universidades públicas do perguntas na aprendizagem”, diz Eliana Desestado”, afirma. sala de aula sen. Os estudantes acionaram Criados em 2000, os 11 seus professores em sala de auCepids da FAPESP são cenla com perguntas específicas tros multidisciplinares que sobre a exposição. Dos 11 professores buscam fazer pesquisa em áreas de que responderam ao questionário, 10 fronteira do conhecimento. Os gruafirmaram que os alunos fizeram copos dedicam-se a temas diversos, desmentários espontâneos sobre a exposide a identificação de genes expressos ção, durante aulas subsequentes à visiem doenças até o desenvolvimento de ta. Nove professores afirmaram que os novos diagnósticos para a formulação alunos fizeram perguntas específicas de drogas mais eficazes, passando pesobre o conteúdo exposto, enquanto la análise das estruturas de proteínas, dois declararam que a formulação das de novos materiais cerâmicos e até da perguntas ocorreu apenas quando os violência que atinge a Região Metropoestudantes foram estimulados. litana de São Paulo, entre outros. Além de fazer pesquisa de ponta, os pesquiCarreiras - Em São Carlos a repersadores dos Cepids têm a responsabicussão pôde ser mensurada de outra lidade de difundir o conhecimento que maneira. “Depois de ver a exposição, produzem, para compartilhá-lo com a alguns estudantes nos procuram para sociedade. A exposição A USP vai à sua saber o que precisam fazer para enescola integra esse esforço de difusão. “Se há algo que os Cepids podem fazer trar na USP”, diz Vanderlei Bagnato. “O sentido da exposição não é apenas em conjunto é a difusão do conhecio de incentivar carreiras na ciência, e mento, tornando-o mais amplo e efesim estimular o pensamento lógico e n tivo”, diz Vanderlei Bagnato. ajudar as escolas a tirar seus alunos Fabrício Marques da ignorância científica. Mas também PESQUISA FAPESP 165

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divulgação de uma recente safra de rankings internacionais de instituições acadêmicas atualizou o retrato da pesquisa brasileira no cenário mundial e destacou a situação em áreas específicas de instituições paulistas, como as universidades de São Paulo (USP) e a Estadual de Campinas (Unicamp). É o caso, por exemplo, das Ciências da Saúde, em que a USP despontou em 92º lugar no ranking do Times Higher Education, do jornal britânico The Times, divulgado no mês passado. Segundo o ranking, no campo das Ciências Naturais a USP aparece na 130ª posição e a Unicamp em 160º lugar; enquanto na categoria Engenharias e Tecnologia a USP está em 128º e a Unicamp em 155º. Há outros destaques setoriais, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), respectivamente, com a 138ª e a 252ª posições em Ciências da Vida, ou a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 248º lugar, em Engenharias. No cômputo geral do ranking, a USP é apontada como a 207ª melhor universidade do mundo

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e a Unicamp a 295ª – no ano anterior, ambas estavam em posição melhor, respectivamente 195ª e 249ª. “Nosso desempenho no ranking é lastreado pelo respeito que temos no exterior”, diz Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da USP. A UFRJ aparece no levantamento em 383º lugar e a Unesp entre as 600 melhores. O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, destaca a evolução das universidades estaduais paulistas. “Elas têm progredido bastante e estão enfrentando com efetividade o desafio de ter uma maior presença internacional. O regime de autonomia com vinculação orçamentária tem sido essencial para os avanços observados e a FAPESP as tem apoiado intensamente e acompanha com satisfação o progresso de cada uma.” O ranking do The Times tem uma especificidade: 40% da nota das instituições está vinculada a uma análise de pares. Um conjunto de 5 mil pesquisadores de todos os continentes foi entrevistado e cada um deles indicou um conjunto de universidades que considera excelen-


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AVALIAÇÃO

Peso internacional

ilustrações marcos garuti

Rankings mostram o lugar da pesquisa brasileira no mundo e a posição de nossas universidades em áreas específicas

tes. Uma crítica recorrente ao levantamento é que esse caráter subjetivo da avaliação às vezes provoca mudanças bruscas nas posições das universidades, que nem sempre são reflexo de uma melhora ou de uma piora no período. Mas também tem peso na fórmula a opinião de empresas que contratam recém-graduados, além de indicadores de produção acadêmica e de inovação, entre outros. “Tem havido algum questionamento se o ranking não estaria direcionado por fatores regionais, pois, das 10 melhores do mundo, quatro são britânicas”, diz Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. Um concorrente direto do ranking britânico é o levantamento divulgado anualmente pela Shanghai Jiao Tong University, da China, que incluiu no cômputo a existência nos quadros de cada instituição de vencedores do Prêmio Nobel e pesquisadores cuja produção tem um elevado índice de citação, assim como a quantidade de artigos publicados nas revistas Science e Nature, entre outros. A edição de 2009 deve ser divulgada neste mês. Na de 2008 a USP estava entre as 150 melhores, a Unicamp en-

tre as 250, as federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio de Janeiro (UFRJ) entre as 400 e a Unesp entre as 500. Além dos dois rankings tradicionais, um novo levantamento vem sendo valorizado, principalmente pelas universidades de pesquisa. Trata-se do ranking do Higher Education Evaluation & Accreditation Council, de Taiwan, que avalia a produção científica das 500 maiores universidades em seis áreas do conhecimento. Coordenado por Muhsuan Huang, da Universidade Nacional de Taiwan, utiliza métodos bibliométricos empregando indicadores da base Thomson Reuters. Leva em conta critérios de produtividade (número de artigos publicados em determinados períodos), impacto (número de citações) e excelência (artigos altamente citados e o índice H das instituições). Segundo o levantamento, a USP está em 78º lugar, a Unicamp na 288ª posição, a UFRJ na 331ª e a Unesp na 437ª. “Mesmo assim, subimos 48 posições em relação a 2008, devido ao aumento de 85% de nossa produção científica indexada na base Thomson nos últimos três anos”, diz Maria José Giannini, próreitora de Pesquisa da Unesp.

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base de dados Scopus, da Editora Elsevier, concorrente da Thomson Reuters, abastece um outro levantamento, o SCImago Institutions Rankings, calcado no volume da produção científica e produzido por um grupo de pesquisadores da Espanha. Nesse ranking, que leva em conta não a qualidade, mas o número de publicações, a USP aparece em 16º lugar, a Unicamp em 137º, a UFRJ em 187º, a Unesp em 204º e a Federal do Rio Grande do Sul em 301º. O aumento da visibilidade da pesquisa brasileira, impulsionado pelo ingresso recente de dezenas de publicações científicas do país em bases de dados internacionais, é apontado como um dos motores do desempenho brasi-

leiro nos rankings internacionais. Mas existe um ranking em que esse fenômeno tem peso preponderante. Trata-se do Webometrics, que avalia a exposição da produção acadêmica de cada instituição por meio dos links que elas e seus pesquisadores mantêm na internet. Em vez de se ater a números de pesquisa e de produtividade acadêmica, o Centro de Informação e Documentação (Cindoc) do Conselho Nacional de Pesquisa da Espanha (CSIC), criador do ranking, leva em conta a ideia de que as universidades devem disponibilizar ao público a sua produção científica através da internet – e mede esta visibilidade no indicador. Por esse critério, as universidades brasileiras se destacam. A USP aparece em 38º lugar, a Unicamp na 115ª colocação e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no 134º lugar. A UFRJ é a 196ª e a Unesp a 269ª. O Brasil é o segundo país com mais instituições avaliadas. São 1.576 universidades e institutos de pesquisa. “Há uma cultura de divulgação da produção científica na internet no país e a biblioteca SciELO, que disponibiliza revistas científicas brasileiras com acesso aberto na web, é um grande exemplo disso”, diz Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil. A popularização dos rankings é um fenômeno recente. No Brasil, até a década de 1990, o mais conhecido ranking de universidades do país era feito por uma revista masculina, a Playboy. Há quem critique a sacralização desse tipo de indicador como um norte a ser seguido pelas instituições. “Esses rankings surgiram com propósitos específicos, como ajudar estudantes de graduação e pós-graduação de determinados países a escolher uma universidade no exterior, e acabaram se tornando ferramentas de políticas acadêmicas”, diz Meneghini. “Devíamos discutir o que queremos para as universidades e criar um ranking nosso baseado nesses critérios. Na prática, os rankings mosPESQUISA FAPESP 165

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tram o que já sabemos: as universidades estaduais paulistas são responsáveis por uma parte significativa da ciência feita no Brasil, a USP é referência em medicina e em várias outras áreas ou a Unicamp tem excelência em física, materiais e nanotecnologia”, afirma. Para Carlos Henrique de Brito Cruz, da FAPESP, é bom saber o que dizem os rankings, mas as universidades devem ter discernimento na utilização desses indicadores. “Cada um dos rankings conta uma parte da história e todos juntos não contam a história completa. Vale a pena conhecer os resultados, mas uma boa instituição universitária não vai se mover pelo ranking, mas por seus objetivos acadêmicos específicos”, afirma. Exageros à parte, o fato é que indicadores desse tipo, quando consagrados internacionalmente, produzem oportunidades para as universidades bem cotadas. “Quanto melhor uma instituição aparece num ranking sério, mais facilmente ela consegue captar no exterior recursos e alunos”, diz Mayana Zatz, da USP. Na sua avaliação, a Universidade de São Paulo tem espaço para melhorar nos rankings internacionais. “Precisamos incentivar ainda mais as colaborações internacionais. É melhor produzir 10 artigos em revistas de alto impacto, com parceiros de outros países, do que 100 artigos em revistas de impacto menor. Quanto mais se cola38

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bora, mais se tem chance de atrair colaborações”, diz. Mayana sustenta, ainda, que a USP não tem sabido divulgar adequadamente seus feitos. “Recentemente, nosso ex-reitor José Goldemberg ganhou um importante prêmio no Japão, mas a instituição não soube valorizar o feito”, diz, referindo-se ao respeitado prêmio Planeta Azul, que a Asahi Glass Foundation concedeu a Goldemberg (ver Pesquisa FAPESP nº 142 e nº 150). Mayana enfatiza o apoio da FAPESP no desempenho da USP. “Quem está em São Paulo e tem um bom projeto não pode se queixar de falta de financiamento”, observa. O apoio da Fundação foi importante para o destaque obtido pela USP no campo das Ciências da Vida, uma vez que as unidades vinculadas a esse campo, como medicina, química e biociências, são as que têm a maior fatia de projetos financiados pela FAPESP.

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Unicamp prepara políticas para ampliar sua inserção internacional e, como consequência, ascender nos rankings acadêmicos. O objetivo é refletir sua posição de liderança entre as instituições nacionais em número de trabalhos per capita na base de dados ISI/WoS, da Thomson Reuters. Segundo o pró-reitor Ronaldo Pilli, a universidade vai instituir comitês de busca em cada unidade para identificar pesquisadores do país e do exterior que

gostaria de atrair para seus quadros – e convidá-los para passar inicialmente períodos de três a seis meses na Unicamp. A ideia é aumentar a competição nos concursos para docentes. “Outra possibilidade é concedermos bolsas de jovens pesquisadores”, diz Pilli. A universidade também planeja divulgar seus concursos em anúncios das revistas Science e Nature. “A Unicamp foi construída atraindo cérebros. Queremos retomar essa tradição, trazendo pesquisadores brasileiros que estão fazendo pós-doutorado fora e pesquisadores estrangeiros”, afirma. A Unesp também desenvolveu estratégias em várias frentes. Como o desempenho destacado em Ciências da Vida não se reproduz em áreas como as Engenharias e as Ciências Humanas, a Unesp criou programas voltados para estimular a pesquisa colaborativa entre as unidades da instituição espalhadas por 23 cidades paulistas. “Os programas Renove Humanas e Renove Engenharias buscam aumentar a nossa produção nessas áreas”, diz a pró-reitora Maria José Giannini. No caso das Ciências Sociais e Humanas, o desempenho das três universidades paulistas medido nos rankings está em patamar inferior ao das Ciências da Vida, Ciências Naturais e Engenharias. Outra medida foi a uniformização do nome da universidade nos artigos científicos de seus pesquisadores. O padrão adotado agora é Unesp – Univ. Estadual Paulista. “Descobrimos que o nome era escrito de cinco modos diferentes nos artigos publicados em revistas da base Thomson Reuters, o que certamente nos prejudicou na hora de computar a produção acadêmica no ranking de Taiwan, que utiliza essa fonte”, diz Maria José Giannini. A universidade quer enfrentar o desafio de aumentar seu prestígio no exterior. Declarou 2010 como o Ano da Internacionalização da Unesp, procurando aumentar as parcerias com pesquisadores do exterior, e vai debater os requisitos para se enquadrar no conceito de universidade de classe mundial. “Os rankings fornecem indicadores importantes sobre o que precisamos fazer para estarmos entre as melhores ainda que, internamente, nem sempre esse esforço seja bem compreendido”, afirma. n

Fabrício Marques


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PARCERIA

Inovação

bilateral

Brasil e Canadá vão ampliar colaboração entre suas empresas em pesquisa e desenvolvimento

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Brasil e o Canadá vão reforçar os laços entre suas empresas inovadoras e instituições de pesquisa. Três chamadas de propostas lançadas em ou­ tubro e celebradas por insti­ tuições públicas dos dois paí­ ses prometem estimular parcerias no campo da pesquisa e desenvolvimento (P&D). Uma das chamadas, divulgada no dia 2 de outubro pela FAPESP e o International Science and Technology Partnerships Canada Inc (ISTPCana­ da), busca incentivar projetos conjuntos entre o Canadá e São Paulo nas áreas de tecnologia da informação e comu­ nicação; energias renováveis e células a combustível; e ciências da vida. Os pro­ jetos deverão obrigatoriamente envolver pesquisadores paulistas e canadenses vinculados a empresas com fins lucra­ tivos e ter como alvo o desenvolvimento de produtos ou processos inovadores e comercialmente viáveis. Pesquisadores vinculados a instituições de pesquisa também podem se integrar ao projeto. Subordinado ao governo do Ca­ nadá, o ISTPCanada agiliza o desen­ volvimento de novas parcerias em P&D entre empresas canadenses, or­ ganizações de pesquisa e similares em outros países e investe em projetos de pesquisa cooperativos com grande po­ tencial comercial. “A cooperação com o ISTPCanada amplia as oportunida­ des de pesquisa e de financiamento disponíveis a instituições e empresas e promove a ciência e a tecnologia em setores fundamentais da economia bra­ sileira”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. Henri Rothschild, presidente do ISTPCanada, destacou que a chama­ da de propostas permitirá a empresas a ampliação de seu potencial de pesquisa e desenvolvimento e dos recursos dis­ poníveis para inovação. “Isso deverá resultar na aceleração do tempo de

comercialização de novos produtos e serviços”, disse. Segundo o diretor cien­ tífico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, as pesquisas colaborativas alavancarão a experiência e o conhe­ cimento em pequenas empresas em São Paulo, criando acesso ao mercado canadense e aumentando a competi­ tividade. “Para as empresas maiores associadas a pesquisadores no estado, a chamada de propostas da FAPESP e do ISTPCanada expande as fronteiras do acesso ao conhecimento científico essencial para a competitividade e o desenvolvimento”, disse. Além de chamada conjunta com a Fapesp, o ISTPCanada lançou outros dois editais no âmbito de um acordo de cooperação assinado em novem­ bro de 2008 pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, e pelo ministro do Comércio Internacional do Canadá, Stockwell Day. A primeira chamada de propostas está aberta à participação de projetos de empresas e institutos de pesquisa canadenses que possuam parceiros em qualquer lugar do Brasil. O outro edital prevê oportu­ nidades para a realização de workshops, seminários e eventos para o aprofun­ damento da cooperação bilateral em ciência, tecnologia e inovação. “Os pró­ ximos projetos servirão para fortale­ cer nossas relações na área de ciência e tecnologia com o Brasil, que figura entre as economias mais diversificadas e que crescem mais rapidamente no mundo”, afirmou o ministro canadense Stockwell Day. “Eles também irão faci­ litar o desenvolvimento de novas tec­ nologias capazes de oferecer benefícios econômicos e sociais aos cidadãos de ambos os paí­ses.” As propostas para as três chamadas devem ser enviadas até n o dia 13 de novembro.

Fabrício Marques PESQUISA FAPESP 165

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laboratório mundo

Aprender a ler não é tarefa fácil, e não é à toa que os adultos têm muito mais dificuldade do que as crianças, cujos cérebros estão ainda em formação. Pesquisadores da Espanha, da Colômbia e da Inglaterra recentemente desvendaram o que acontece no cérebro durante a alfabetização. O material de estudo é curioso: exames de imagens do cérebro de 20 guerrilheiros colombianos, alfabetizados ao abandonar as armas e reintegrar-se à sociedade. Segundo artigo na Nature, os guerrilheiros são ideais porque não tiveram outra escolaridade que pudesse causar as alterações cerebrais. Comparados a 22 analfabetos, os adultos alfabetizados têm mais massa cinzenta em áreas associadas ao processamento visual, ao processamento fonológico e ao processamento semântico; têm também mais massa branca numa região associada à leitura. Não é só a estrutura que se altera: ler aumenta as conexões entre os lados direito e esquerdo do cérebro. E quando a pessoa lê em voz alta, o giro angular modula as interações funcionais entre processamento de imagens e do discurso. Agora será possível reavaliar as imagens de funcionamento do cérebro de pessoas com dislexia: até então era impossível saber se as alterações observadas eram causa ou consequência da dificuldade em ler.

miguel boyayan

A anatomia da leitura

Letras decifradas: alfabetização altera o cérebro

Um olhar detalhado revelou aspectos até agora desconhecidos da Via Láctea, a galáxia que abriga o Sistema Solar. Em cinco cores diferentes no espectro do infravermelho distante, as novas imagens não só revelam material até agora desconhecido na galáxia, mas também mostram quanto material há, além de sua massa, temperatura e composição. As imagens localizaram regiões frias e densas, características típicas das zonas formadoras de estrelas, e revelaram que a região estudada é um reservatório riquíssimo de matéria fria num estado de atividade insuspeito. Surge assim uma nova faceta da Via Láctea, como uma galáxia incansável que constantemente produz novas gerações de estrelas. 40

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A descoberta é resultado da combinação, pela primeira vez, de duas câmeras pelo Observatório Espacial Herschel, lançado em maio deste ano pela Agência Espacial Europeia: a Spire e a Pacs. A investigação se concentrou num quadrado de 2 graus por 2 graus, uma área cerca de 16 vezes maior do que o tamanho da

> As mutações do câncer

Lua vista da Terra. A combinação dos instrumentos foi festejada como uma tecnologia de ponta que pode expandir o conhecimento dos astrônomos sobre os estágios iniciais do Universo. ESA

> Via Láctea de perto

Galáxia a nu: câmeras revelam atividade inédita

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O perfil genético do câncer de mama muda à medida que a doença avança. A conclusão é de um grupo de pesquisadores liderados por Marco Marra e Samuel Aparicio, do Centro de Pesquisa em Câncer de British Columbia, no Canadá. A equipe analisou o genoma e o nível de atividade dos genes (transcriptoma) de um tumor de mama ao longo da progressão da doença. Em artigo publicado em 8 de outubro na Nature, eles contam que das 32 mutações encontradas na metástase, 5 já eram bem comuns no DNA do tumor encontrado nove anos antes, 6 já estavam lá, mas eram


Steve Hasiotis e Jon Smith

Tempo petrificado: vestígios na rocha indicam tamanho de fauna antiga

As aves aquáticas japonesas estão recebendo tratamento contra gripe. Mas não é uma medida de saúde pública, muito pelo contrário. Um grupo liderado por Gopal Ghosh, da Universidade de Kyoto, amostrou a água que sai de três usinas de tratamento do esgoto em vários pontos de dois rios da região (Environmental Health Perspectives). Verificaram que o oseltamivir, medicamento mais conhecido pelo nome

> Quanto mais quente, menor O calor pode tornar a fauna nanica. É o que aconteceu durante a Máxima Térmica do Paleoceno-Eoceno, período cerca de 55 milhões de anos atrás marcado por

Os peixes ciclídeos dos lagos no leste da África são um exemplo ímpar de evolução, com milhares de espécies das mais diferentes formas e cores. Uma nova descoberta vem do lago Malauí, onde manchas alaranjadas ajudam os peixes a se esconderem entre rochas com padrão parecido. Parece um ótimo negócio para fugir de predadores, mas cria um problema para os machos: aqueles manchados de laranja não são reconhecidos como parceiros pelas fêmeas e assim não deixam descendentes. Pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, identificaram o gene responsável pela cor e, perto dele, encontraram outro gene que parece ter surgido recentemente e que tem o efeito de determinar o sexo feminino (Science). Trata-se de um novo sistema de determinação sexual, a partir de uma espécie ancestral em que o sexo era definido por um gene específico dos machos. Por sua proximidade com o determinante da cor, o novo gene sexual garante que praticamente todos os peixes com manchas alaDisfarce de pedra: privilégio das fêmeas ranjadas sejam fêmeas.

As cores do sexo

> Antiviral nos rios

Tamiflu, não é degradado pelo tratamento e chega aos rios em quantidade suficiente para ter efeito nas aves que frequentam aquelas águas, portadoras habituais de vírus da gripe – tanto da gripe comum como da aviária. O achado é alarmante porque pode resultar em cepas dos vírus resistentes aos medicamentos. Ainda mais preocupante, as amostras foram coletadas antes que o Tamiflu passasse a ser muito usado no combate à gripe suína. A concentração agora deve ser ainda maior. Ad Konings

pouco frequentes, e 19 não existiam na época do diagnóstico. Os resultados do estudo, feito em um tipo de tumor responsável por 15% dos casos de câncer de mama, deixam claro que o tumor constantemente adquire novas mutações que lhe permitem continuar a crescer e se disseminar. Com base nesse trabalho, os autores propõem que, para encontrar genes que ajudem a entender os eventos que desencadeiam o câncer, é preciso analisar o DNA do tumor inicial, logo depois de diagnosticado.

um pico nos níveis de dióxido de carbono (CO2) e nas temperaturas – condições que agora se repetem. Já se sabia que os mamíferos dessa época eram menores. Agora geólogos do Kansas Geological Survey e da Universidade do Kansas, Estados Unidos, mostraram que organismos subterrâneos não são imunes às mudanças climáticas. Parentes antigos das atuais formigas, cigarras, besouros e minhocas encolheram de 30% a 46% durante esse período (PNAS). As mudanças climáticas atuais podem ser responsáveis por mudanças no solo que talvez cheguem a afetar a agricultura, além dos ecossistemas.

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laboratório Brasil

Há no país uma tendência ao uso inadequado e até danoso do antidepressivo fluoxetina. O medicamento vem sendo administrado por alguns médicos por causa de um de seus efeitos adversos: induzir à perda de peso. Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, apresenta evidências desse mau uso no de farmácias: antidepressivo é receitado por motivos errados Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Em parceria com a Vigilância Sanitária de Santo André, município da Grande São Paulo, a intermedia – comum nas regiões Sul e Sudeste equipe de Carlini analisou 39,8 mil receitas especiais retidas por 13 farmácias de manipulação e 27 drogarias da cidade do país. Com base nessa entre agosto de 2005 e julho de 2006. Nesse período, o descoberta, publicada na Toxicon, o grupo grupo identificou 10,9 mil receitas contendo fluoxetina, a produziu uma proteína grande maioria (85%) aviada por farmácias magistrais – as drogarias atenderam os 15% restantes. As receitas criadas sintética e verificou seu pelos médicos quase sempre continham de quatro a sete efeito imunizante em testes com camundongos substâncias psicotrópicas de outras classes, geralmente usae coelhos. Depois de das para emagrecer (anorexígenos, diuréticos e ansiolíticos). “Isso indica que essas formulações estão sendo dispensadas imunizados, os camundongos resistiram para perda de peso, mas essa é uma estratégia ineficiente e a doses letais do veneno perigosa”, afirma Carlini. “Vários estudos já mostraram que só da aranha e os coelhos não se emagrece de modo consistente com reeducação alimentar sofreram necrose da pele e exercício físico. Essas pessoas estão tentando resolver os problemas com pílulas mágicas.” A associação desses comquando expostos à proteína postos aumenta muito o risco de reações adversas. rLiD1 do veneno da aranha.

fotos eduardo cesar

Mau uso da fluoxetina

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Manipulação

> Perigo sobre oito patas Comuns em áreas urbanas, as aranhas-marrons não são vizinhas bem-vindas. Elas se escondem em qualquer canto da casa, no meio das roupas e nas frestas das calçadas e picam os incautos. Na hora quase não se nota, mas 24 horas depois pode surgir uma necrose em volta do local picado. Em casos mais graves, o veneno destrói células do sangue e pode causar falência dos rins, levando à morte. Em colaboração com pesquisadores franceses, um grupo da Universidade Federal de Minas Gerais, liderado pelo bioquímico Carlos Olórtegui, encontrou uma proteína que estimula o sistema imunológico a combater o veneno da aranha-marrom Loxosceles 42

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> De mãe para filho

Acidentes nas cidades: aranha-marrom

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Durante o período de amamentação, as mulheres devem evitar certos tratamentos contra a leishmaniose. A biomédica Karen Friedrich, da

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que o antimônio, elemento principal do antimoniato de meglumina, o medicamento mais usado para tratar a doença que infecta cerca de 30 mil pessoas a cada ano no Brasil, pode passar para


1º Encontro Ibero-americano de Toxicologia e Saúde Ambiental – revela um dilema social, além de um problema de saúde pública.

eduardo cesar

o bebê pelo leite materno. Durante seu doutorado, concluído em 2008, Karen administrou o medicamento a ratas lactantes e detectou o antimônio nos filhotes. Ainda falta fazer testes em seres humanos, mas para ela o resultado já é suficiente para recomendar que não se usem remédios com antimônio durante a lactação. Mas surge um problema: a leishmaniose atinge sobretudo a população mais carente, com acesso limitado a substitutos ao leite materno caso o tratamento seja necessário. A pesquisa – que recebeu menção honrosa no

por diferentes tipos de bactérias no sistema digestivo do ruminante. Um grupo liderado por Romualdo Shigueo Fukushima, da Faculdade de Medicina Veterinária

Pasto calculado: novo método mede nutrientes

base nas equações da Cornell, ele espera os resultados determinados por elas. Na verdade, as bactérias do rúmen estarão recebendo elementos diferentes, o que pode alterar a produção do animal”, explica Fukushima. O método norte-americano usa detergente neutro para separar a planta em fibra e nutrientes solúveis. Em vez de detergente neutro, o grupo brasileiro analisou a parede celular da planta e obteve resultados mais precisos do que os baseados nas equações convencionais da Cornell. O trabalho foi premiado na 46ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Zootecnia.

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Jean Carlos Santos

Extinção quase invisível

Muitas espécies estão desaparecendo nos lugares mais ricos em biodiversidade mundo afora, conhecidos como hotspots. O alerta é do ecólogo Carlos Roberto Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que se interessou por animais que costumam passar despercebidos: insetos monófagos, especializados em comer uma única espécie de planta. “Um exemplo clássico são os insetos galhadores, que entram nas folhas e fazem com que elas produzam uma estrutura chamada galha; ali eles se alimentam e vivem a Galhas: induzida, folha produz abrigo e alimento para insetos maior parte de suas vidas”, explica. Se o desmatamento elimina uma espécie de planta de uma região, os insetos que dependem dela deixam de > Dieta balanceada e Zootecnia da para bovinos Universidade de São Paulo poder viver ali. Por meio de modelos ecológicos, Fonseca em Pirassununga, mostrou, avalia que a Mata Atlântica pode já ter perdido entre 15 mil e 38 mil espécies de insetos herbívoros, o que a torna a sexta Para criar vacas e bois em artigo publicado área do mundo em perda de espécies de insetos. O Cerrado, saudáveis não basta na revista Animal, que soltá-los num pasto o método proposto pela outro hotspot, pode ter perdido de 6 mil a 15 mil espécies qualquer. O pecuarista Universidade Cornell, (Conservation Biology). Para o ecólogo, é essencial que as precisa medir a nos Estados Unidos, deixa estratégias de conservação deem mais peso aos insetos, contribuição relativa a desejar em precisão. que ficam esquecidos diante de mamíferos, aves, répteis e de quatro categorias de “Quando o nutricionista anfíbios. “É hora de prestar atenção às minúsculas criaturas que são o grosso da biodiversidade mundial.” carboidratos, processadas elabora uma ração com


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ciência

microbiologia

As artesãs do etanol Descobertas sobre genética de leveduras incentivam a pesquisa para ampliar a produtividade de álcool Carlos Fioravanti | fotos Eduard o Cesar de Nova Europa

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m menos de cinco minutos, as correntes de um guindaste inclinam uma carreta e despejam 30 toneladas de cana em uma esteira no início da linha de produção de açúcar e álcool da Usina Santa Fé, em Nova Europa, região central do estado de São Paulo. A carreta sai e um trator traz outra e depois outra, dia e noite, sem parar. A cana segue pela esteira, passa por máquinas que a trituram e extraem o caldo verde que se transforma em açúcar após purificação e evaporação. Mais adiante, nas dornas de fermentação – tanques de 25 metros de altura –, começa a transformação de açúcar em etanol, que depende de linhagens específicas de um tipo de fungo, a levedura Saccharomyces cerevisiae, o mesmo microrganismo unicelular usado para fazer pão, cerveja e vinho. “Até pouco tempo atrás, não sabíamos o que acontecia lá dentro”, conta Cláudio Câmara, gerente de processos da usina, apontando para os tanques. “Só sabíamos que a fermentação terminava bem.” Depois de usar várias linhagens de Saccharomyces cerevisiae adequadas a menores volumes de produção, a Santa Fé adotou uma combinação de quatro variedades de leveduras para dar conta da produção de 1 milhão de litros de álcool por dia, que enchem 30 caminhões. “Foi o melhor que conseguimos”, diz. Ele gostaria de usar menos variedades de levedura ou menos levedura – a fermentação começa com 600 quilos de leveduras colocadas em um tanque com 80 mil litros de mosto, o açúcar diluído. “Mas, com esse volume de produção, não podemos correr riscos.” Antes reconhecidas apenas pela capacidade de transformar açúcar de cana em álcool combustível, essas linhagens de leveduras são agora um pouco mais conhecidas e respeitadas.

Dois estudos – um da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – examinam o conjunto de genes (genoma) das linhagens de leveduras usadas na produção de etanol e descrevem os mecanismos que permitem a elas produzir álcool com rapidez e eficiência. A partir dessas informações, os pesquisadores estão agora motivados para buscar – ou construir – variedades mais adaptadas às dornas de fermentação. “Talvez o desempenho das leveduras de uso industrial melhore se conseguirmos remover ou desativar alguns genes”, acredita Gonçalo Pereira, coordenador da equipe da Unicamp. Um dos argumentos que alimentam essa possibilidade é que o rendimento da produção de álcool ainda está abaixo do máximo teórico. Hoje as leveduras produzem 0,46 grama de etanol para cada grama de açúcar, segundo Sílvio Andrietta, pesquisador da Unicamp. “O máximo teórico é de 0,51”, diz ele. “Chegamos a 90% do máximo teórico.” Se der certo, o impacto econômico pode ser grande. “Se a eficiência do processo aumentar 5%, já será um ganho extraordinário, em vista dos elevados volumes de produção”, diz o engenheiro químico Saul Gonçalves D’Ávila, professor emérito da Unicamp que acompanha uma das equipes. Este ano 350 usinas devem produzir Hora do descanso: 27,5 bilhões de litros de etanol. leveduras se Agora conhecido, o conjunto recompõem em de genes próprio das leveduras ácido sulfúrico que produzem etanol explica codiluído antes mo essas variedades se tornaram de voltarem robustas como um jipe, capazes para os tanques de sobreviver ao calor intenso e de fermentação PESQUISA FAPESP 165

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de vencer a competição com leveduras selvagens que vêm com a cana e com outros microrganismos, todos ávidos pelo açúcar abundante nos tanques. “O processo de produção de etanol no Brasil é bastante suscetível à contaminação por microrganismos, que reduzem a produtividade”, comenta Gustavo Goldman, professor da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, especialista em genoma de fungos. Genes de resistência - Esses trabalhos

mostram que as linhagens produtoras de etanol acumularam características genéticas próprias, que as fazem bem diferentes da linhagem adotada como referência, a S288c. Mantida no conforto do laboratório, essa linhagem tem sido examinada e manipulada há mais de 10 anos: seu genoma foi o primeiro 46

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Transformação: de um microrganismo dotavos estudos esclarecem coa queima do de núcleo a ser sequenmo as primeiras conseguem de bagaço ciado e apresentado em 1996 sobreviver. produz o vapor em um artigo científico. As Em um dos trabalhos, que move variedades usadas para propublicado no mês passado as máquinas duzir vinho e cerveja tamna Genome Research, espeque moem a bém têm sido bastante estucialistas de três universicana e geram dadas, enquanto as que fadades paulistas (Unicamp, energia elétrica zem etanol ganharam mais USP e Universidade Federal de São Carlos) e de duas dos atenção nos últimos anos. Em um trabalho publicado em 2008, Estados Unidos (Carolina do Norte e uma equipe da USP liderada por Luiz Duke) analisaram uma variedade basBasso havia mostrado que as linhagens tante usada na produção de etanol, a Pedra 2, uma das adotadas na usina que começam a digerir os açúcares do Santa Fé, e a compararam com a licaldo de cana geralmente não eram as nhagem de referência S288c. Ambas que chegavam ao final: só as mais robustas sobreviviam às altas temperatutêm 16 cromossomos e cerca de 6 mil ras e à concentração crescente de álcool genes, mas cada linhagem ganhou ou e tendiam a dominar, enquanto as mais perdeu genes em relação à outra. Juan delicadas, uma delas usada para fazer Lucas Argueso, pesquisador brasileiro pão, eram substituídas. Agora esses noatualmente na Duke que coordenou a


análise genética, conta que a Pedra 2 possui 16 genes que não são encontrados na linhagem de laboratório e devem favorecer a sobrevivência nos tanques de fermentação. Dois desses genes conferem resistência à toxicidade do etanol, cuja concentração aumenta com o avanço da fermentação. “Esses genes foram identificados há cerca de 10 anos em linhagens de leveduras usadas para produzir saquê, que sobrevivem em ambientes mais tóxicos, com uma concentração de etanol ainda maior”, diz Argueso. “Linhagens que não têm esses genes são mais sensíveis ao etanol e morrem mais facilmente.” Outros dois genes da Pedra 2 são novos, sem similaridade com qualquer outro já identificado, e os pesquisadores ainda não sabem que função poderiam ter.

A região central dos cromossomos das duas linhagens é estruturalmente idêntica. As regiões periféricas – ou subteloméricas – dos cromossomos da linhagem de uso industrial, porém, são diferentes e ricas em genes que conferem tolerância a estresses ambientais como a temperatura elevada e provavelmente ampliam a eficiência na produção de álcool. Nas pontas dos cromossomos está a maioria dos genes próprios dessa linhagem, muitas vezes repetidos. “As repetições de genes facilitam a troca de material genético entre os cromossomos, que podem se recombinar rapidamente a cada nova geração, criando formas bastante distintas”, diz Argueso. “Essa flexibilidade genômica provavelmente explica como essa e outras linhagens de uso industrial sobrevivem à competição com outros microrganismos.” De acordo com esse estudo, essa variedade produz 50% mais álcool e 30% mais rapidamente que a linhagem de laboratório. “A Pedra 2 faz o que pode, não o que os industriais gostariam”, diz Pereira. “Começamos a ver o que é possível mudar no genoma das leveduras usadas na produção de etanol, em busca de linhagens mais produtivas”, comenta Boris Stambuk, professor da UFSC que coordenou o outro estudo, a ser publicado na Genome Research. Ele, Basso e uma equipe de Stanford, Estados Unidos, já haviam sequenciado o genoma de outra linhagem bastante usada, a CAT-1. Agora, com Stanford, Stambuk coordenou a análise do genoma das cinco principais leveduras adotadas na produção de etanol no Brasil. Segundo esse trabalho, as cepas – ou variedades – de uso industrial, quando comparadas com a S288c, têm mais cópias de genes que participam da síntese das vitaminas B1 (tiamina) e B6 (piridoxina). Essa peculiaridade facilita a transformação de açúcares em álcool, que pode matar microrganismos mais delicados. “Em ambientes ricos em açúcar como o da produção industrial de etanol”, diz Gold­man, “essas cepas poderiam ter vantagem adaptativa sobre outras”. Goldman confia na possibilidade de “construir cepas mais adaptadas, por engenharia genética ou cruzamentos”. As equipes da Unicamp e da UFSC já exploram alguns caminhos para aprimorar as leveduras que produzem o álcool brasileiro, mas sabem que não

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Os Projetos 1. Rotas verdes para o propeno 2. Bioetanol: desenvolvimento de leveduras industriais brasileiras para fermentação eficiente dos açúcares presentes na biomassa

modalidade

1. Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) 2. Auxílio a Pesquisa (edital MCT) Co­or­de­na­dores

1. Gonçalo Amarante Guimarães Pereira – IB/Unicamp 2. Boris Ugarte Stambuk – UFSC investimento

1. R$ 3.805.396,60 (FAPESP) 1. R$ 3.500.000,00 (Braskem) 2. R$ 648.717,64 (CNPq)

será fácil nem rápido, nem os resultados estarão garantidos, por causa da própria robustez desses microrganismos. Uma das barreiras a serem superadas é a membrana externa das leveduras de uso industrial, que impede a entrada do etanol que lhe seria prejudicial e teria de ser vencida para induzir modificações nos genes. “Parte da resistência dessas linhagens às técnicas de transformação genética se deve justamente à capacidade de não permitir a entrada de coisas estranhas”, diz Stambuk. Cautela - Mesmo que os pesquisado-

res consigam criar novas variedades de leveduras, sabem que não devem comemorar antes da hora: organismos modificados geneticamente que funcionem bem em laboratório podem ser um desastre em fermentadores maiores, como os das usinas. Pereira já se decepcionou uma vez. Em 2003 ele apresentou uma cepa de levedura geneticamente modificada que se depositava no fundo dos tanques de fermentação depois de produzir álcool. “No laboratório era lindo, funcionava como um relógio”, recorda. Poderia ser uma forma de simplificar a produção de etanol e de reduzir custos. Em equipamentos de maior porte, porém, as leveduras produziram menos que as linhagens usadas normalmente. Desta vez Pereira se cercou de gente que acompanha o que sua equipe está PESQUISA FAPESP 165

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Resíduos por fazendo e vive alertando que início sabíamos que não poenquanto os resultados obtidos em laderíamos fazer tudo sozinhos inevitáveis: boratório devem também ser e teríamos de nos associar.” a produção de viáveis do ponto de vista técAo menos uma vez por mês açúcar e álcool nico, econômico e ambiental. Queiroz vai à Unicamp plaainda gera “Pode ser que encontremos nejar os próximos passos com morros outras linhagens melhores as equipes. A seu ver, o trabade bagaço estudando o genoma e enlho corre bem, mas em breve como estes tendendo o comportamento necessitará de outras alianças. das leveduras”, diz Andrietta, “Não posso fazer tudo com a engenheiro químico e coautor do artigo universidade. Sei até onde posso ir.” na Genome Research de outubro. Queiroz sabe também que uma Esse trabalho das equipes de Pereifábrica de plásticos derivados de cara e de Andrietta integra um plano de na dificilmente surgirá em menos de produção de resinas plásticas a partir de 10 anos, mesmo se tudo correr bem. Em etanol coordenado pela Braskem, uma menos tempo outra empresa do grupo das maiores petroquímicas do país, Odebrecht, a ETH Bioenergia, poderá se ligada ao grupo Odebrecht. Hoje esse beneficiar de leveduras adaptadas a proprojeto mobiliza uma equipe de três duzir mais etanol. Em fase de expansão, unidades da Unicamp que começou a as cinco usinas da ETH devem dobrar a se formar em 2007. Foi quando Antonio capacidade de moagem para 10 milhões Queiroz, diretor de competitividade e de toneladas de cana na próxima safra. inovação da Braskem, concluiu que a “No médio e no longo prazo, queremos produção de polímeros verdes passausar a biomassa da cana para fazer proria por processos biotecnológicos ainda dutos alternativos, como alcoóis espepouco conhecidos pelos pesquisadores ciais”, diz Luis Felli, vice-presidente de operações agroindustriais da empresa. da empresa. Em seguida procurou um de seus ex-professores de engenharia A equipe da UFSC também tem um química, Saul D’Ávila, e começou a forpé na indústria. Stambuk começou a mar “um grupo de pessoas que confiam estudar leveduras industriais em 2004 umas nas outras e têm prazer em tracom Henrique Amorim, ex-professor balhar junto”, como ele diz. “Desde o da USP em Piracicaba e proprietário 48

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da empresa Fermentec. Eles reforçaram o time com uma usina paulista disposta a testar em equipamentos de maior porte as leveduras modificadas em laboratório. “Os resultados que Boris tem obtido com Henrique são consequência da pesquisa básica que continua a ser feita em nossos laboratórios”, diz Pedro Soares de Araujo, do Instituto de Química da USP, que integra o grupo e orientou Stambuk no doutorado. “O notável em nosso trabalho é exatamente isso: a pesquisa básica forneceu os elementos necessários para a pesquisa aplicada com gente que tem uma sólida formação científica.” Stambuk comenta: “Até 2012 saberemos se teremos sucesso ou não no ambiente industrial”. Quem lida diariamente com a produção de etanol, como Câmara, na Usina Santa n Fé, aguarda ansiosamente.

> Artigos científicos 1. Argueso, J.L. et al. Genome structure of a Saccharomyces cerevisiae strain widely used in bioethanol production. Genome Research. out. 2009. 2. Stambuk, B.U. et al. Industrial fuel ethanol yeasts contain adaptive copy number changes in genes involved in vitamin B1 and B6 biosynthesis. Genome Research. No prelo.


> Botânica

Submersa em modo stand-by Árvore da Amazônia adaptada à várzea economiza energia para sobreviver a alagamentos constantes de até cinco meses ininterruptos

Marcos Pivet ta

2005 Finding Species/Gonzalo Rivas

or que algumas plantas con­ seguem viver quase metade do ano em meio à escuri­ dão líquida, totalmente submersas pelas cheias dos rios da Amazônia, enquan­ to outros exemplares da mesma espécie não resistem sequer duas semanas embaixo d’água? De­ pois de comparar sementes e mudas de uma perfumada árvore da Região Norte, a sucuuba (Himatanthus sucuuba), obtidas em zonas inundadas de várzea e em áreas secas de ter­ ra firme nos arredores de Manaus, uma equipe nacional de botânicos e ecólogos encontrou uma série de pistas que ajudam a entender esse enigma evolutivo. Embora apre­ sentem aparência externa idêntica à de suas irmãs encontradas nas por­ ções não alagáveis da floresta, as plantas da várzea desenvolveram uma forma particular de armazenar e gastar energia que lhes garante a sobrevivência nesse ambiente dupla­ mente hostil à maioria dos vegetais, sem luz e com escassa quantidade de oxigênio. Provavelmente como resultado de um longo processo adaptativo que permitiu sua proli­ feração à beira dos rios, as sucuubas instaladas nas margens alaga­diças armazenam cer­ ca de 30% mais Flor de carboi­dratos em sucuuba: se suas raízes e con­­­ alagada, árvore somem os açúca­ consome mais res que lhes servem lentamente de combustível de os carboidratos PESQUISA FAPESP 165

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A sucuuba – uma árvore que chega a durar 70 anos, atinge na idade adulta 25 metros de altura, a cujo látex se atri­ buem propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e vermicidas­ – está longe de ser a única planta que se desenvolve tanto em áreas secas como inundadas da Amazônia. Os especialistas estimam que cerca de 30% das espécies de várzea também ocorrem em terra firme. Mas a planta é um caso extremo de adaptação, ideal para um estudo que tenta enten­ der os mecanismos que possibilitam a sobrevivência de vegetais em zonas ala­ gadas. “Garimpamos uma espécie bem emblemática dessa questão”, comenta Maria Teresa. Seu hábitat por excelência é o mais extremo em termos do conta­ to com o meio líquido, a várzea baixa, colada às margens dos rios, justamente o primeiro ponto a sentir os efeitos das cheias e o último a se livrar delas. Nessa região, as águas inevitavelmente avan­ çam sobre as bordas dos rios, mesmo em anos pouco chuvosos, diferentemente do que se passa na várzea alta, onde nem sempre há alagamentos e, quando há, sua extensão e duração são menores. resistência ao meio aquático da sucuuba é impressionante. Até atingir os 10 anos de idade, quan­ do provavelmente terá adquirido al­ tura suficiente (uns seis metros) para manter a parte superior do tronco e a copa fora do alcance das cheias, a plan­ ta terá passado quase metade de sua vida totalmente submersa pelas águas. Como outras plantas que vivem em

áreas alagadiças, onde a luz penetra no máximo três metros água adentro, os exemplares adultos da sucuuba exibem em seu caule as marcas deixadas pela última enchente.

 Quando se encontram mergulhadas nas trevas aquáticas, cobertas durante cinco meses seguidos por uma coluna de até seis metros de água, as sucuu­ bas da várzea entram numa fase que lembra vagamente a hibernação dos bi­ chos no ambiente gelado: gastam mais lentamente suas reservas de energia e não investem em crescimento vertical. Economizam ao máximo seus açúcares para que possam usá-los no momento mais adequado, na época de estiagem, quando a prioridade será ganhar altu­ ra suficiente para escapar da próxima inundação sazonal ou minimizar seus efeitos. Afinal, no período em que as águas retornam aos leitos dos rios, elas contam com apenas três meses para germinar e espichar seu caule o mais que puderem antes de serem engolidas novamente pelas águas. A estratégia de sobrevivência é surpreendente, visto que, num ambiente sem luz, as plan­ tas não fazem fotossíntese (ou a fazem marginalmente) e tendem a queimar todo o seu estoque de carboidratos pa­ ra se manter vivas. É isso o que ocorre com a sucuuba de terra firme se inseri­ da numa zona inundada – ela germina muito rapidamente e morre “de fome” –, mas não com a da várzea. 


 Um experimento feito pelos cientis­ tas brasileiros com mudas (plântulas no jargão dos botânicos) de sucuuba com

fotos cristiane ferreira

maneira mais econômica do que as plantas oriundas da área seca.

 Apesar de serem constituídas das mesmas reservas químicas, as sementes de sucuuba da várzea e as de terra fir­ me apresentam concentrações díspares desses compostos – e essas desigualda­ des também ajudam a explicar por que apenas as primeiras não perecem no meio liquido. As sementes originárias das áreas alagadas são mais duras (têm uma quantidade maior de polissacarí­ dios que formam sua parede celular) e se mostram quase impermeáveis. “Se, do ponto de vista da morfologia, as árvores que vivem nesses dois ambientes dis­ tintos são iguais e pertencem à mesma espécie, podemos dizer que, fisiologi­ camente, elas já se comportam como se fossem duas espécies diferentes”, diz a botânica Cristiane Ferreira, da Uni­ versidade de Brasília (UnB), primeira autora de um artigo científico publicado sobre a planta, informalmente chamada de jasmim da Amazônia por ter flores e aromas semelhantes aos do jasmim, na edição de novembro da revista Annals of Botany. “Flagramos a sucuuba no meio do processo de especiação”, afir­ ma a ecóloga Maria Teresa Fernandez Piedade, do Instituto Nacional de Pes­ quisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, outra autora do estudo. “E é provável que o mesmo esteja ocorrendo com outras espécies da região que também estão adaptadas a diferentes ambientes.” Análises genéticas preliminares ainda indicam que o DNA das duas variedades tende ao distanciamento.

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um mês de vida e 10 centímentros de altura ilustra as diferentes habilidades adaptativas de cada população da árvo­ re. Os exemplares da planta provenien­ tes da várzea conseguiram sobreviver quando foram cultivados e mantidos por mais de um mês em recipientes alagados por água e privados de luz externa, um ambiente artificial que tenta simular as condições naturais da várzea baixa. Eles também vingaram se plantados em vasos que não sofreram inundação. Já as amostras da espécie vindas da terra firme não venceram as barreiras do excesso de água e da escu­ ridão. Morreram no ambiente tomado pelo líquido.

 Segundo o botânico Marcos Bucke­ ridge, da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou os estudos so­ bre carboidratos, as duas populações de sucuuba mostram como plantas de uma mesma espécie adaptadas a ambientes distintos podem usar seus estoques de energia em momentos e para funções completamente diferen­ tes. É verdade que os exemplares de várzea acumulam mais açúcares na raiz do que os de terra firme, porém não é isso que faz o metabolismo de ca­ da ocorrência da espécie funcionar de maneira distinta. “Não é a quantidade total de carboidratos que diferencia as duas populações de sucuuba, mas sim a forma como esses compostos estão estruturados na planta e como ela faz

fotos florian wittmann

Várzea amazônica na cheia e baixa dos rios (outra página) e detalhes da sucuuba: árvore de zona inundada tem 30% mais carboidratos

uso de cada tipo de reserva energéti­ ca”, comenta Buckeridge. As sementes das sucuubas oriundas da várzea, por exemplo, contam com cinco vezes me­ nos açúcares solúveis – consideradas reservas de uso rápido – do que as de terra firme. Evolutivamente, essa distri­ buição de carboidrato faz todo sentido. Afinal, quando submersa, uma árvore de zona alagada deve usar sua energia de forma controlada para garantir a sobrevivência por mais tempo.

 a aparência externa, as plantas de várzea e as de terra firme ainda são absolutamente iguais. Mas, a exemplo do que ocorre com os gêmeos, que nascem biologicamente idênticos, mas têm comportamentos distintos, as duas populações da árvore adotam, digamos, estilos de vida particulares em função do ambiente em que vivem. É possível que os exemplares das duas zonas de floresta também estejam se distanciando do ponto de vista anatô­ mico (alterações na estrutura interna de suas raízes já foram verificadas). No entanto, essa questão só poderá ser esclarecida no futuro. Por ora, apesar de exibir um metabolismo distinto, as sucuubas de várzea e de terra firme

ainda produzem sementes no mesmo período, entre junho e julho, após a época das cheias, e sua dispersão se dá pelo vento ou por flutuação no caso do meio aquático. Além de ser importante para entender os mecanismos que via­ bilizam a adapatação de uma árvore a áreas inundadas da Amazônia, o es­­ tudo das duas populações de sucuuba também é relevante por um motivo bem prático. A planta desperta grande interesse comercial por suas proprie­ dades medicinais e também por sua madeira leve, boa para revestimentos de pisos. “Se alguém um dia for plantar sucuuba numa várzea, precisa ter cer­ teza de que os exemplares ali introdu­ zidos são adaptados a áreas alagadas”, adverte Cristiane. Caso contrário, o manejo da espécie à beira dos rios não será viável.

 n > Artigo científico FERREIRA, C.S. et al. The role of carbo­ hydrates in seed germination and seedling establishment of Himatanthus sucuuba, an Amazonian tree with populations adap­ ted
to flooded and non-flooded conditions. Annals of Botany. v. 104 (6), p.1.111-19. nov. 2009. PESQUISA FAPESP 165

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Ecologia

Vizinhos próximos demais Convivência com seres humanos altera a dieta de bugios e os expõe à febre amarela Maria Guimarães

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o sítio da minha avó os bugios invadem o galinheiro para roubar ovos.” Especialistas em macacos por muito tempo ouviram relatos assim e os ignoraram como se fossem lendas. Eles sabiam muito bem que esses macacos só comem plantas. Agora isso mudou. A equipe do primatólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mostrou que os bugios-pretos (Alouatta caraya) de fato roubam ovos de ninhos ou de galinheiros para complementar a dieta quando as folhas e frutos disponíveis não bastam para matar a fome. A escassez do passadio preferido, porém, não é o único problema enfrentado por esses primatas no sul do país: a febre amarela tem feito vítimas entre os primatas, que ainda são injustamente acusados de ser responsáveis por disseminar a doença. As suspeitas quanto aos lanches pouco ortodoxos dos bugios começaram há 20 anos. Enquanto fazia pesquisa de mestrado, na região de Alegrete, no oeste do estado gaúcho, o casal de primatólogos Bicca-Marques e Cláudia Calegaro-Marques ouviu relatos do dono da propriedade e desconfiou do interesse com que bugios examinavam ninhos nas árvores. Os macacos do gênero Alouatta, os bugios, são os mais estudados na natureza entre os primatas das Américas. Nas últimas décadas, grupos de pesquisa de vários países passaram ao todo mais de 50 mil horas observando bugios desde o México até a Argentina. Mesmo com todo esse tempo de observa-


Fotos David Santos de Freitas

ção, ninguém tinha Louro de nascença: até agora registrado só os uma dieta que não machos fosse de um vegeadultos são tarianismo radical. escuros “Eles preferem comer frutos maduros e folhas novas”, explica o primatólogo. Mas na zona rural gaúcha, há muito povoada por pessoas que se dedicam à agricultura e à pecuária, pomares e eucaliptais tomaram o lugar de florestas nativas. Sem as matas de galeria, aquelas que acompanham os rios e produzem a maior parte dos frutos e folhas que compõem o cardápio dos bugios, esses macacos se veem obrigados a improvisar. É assim que Bicca-Marques justifica a dieta alternativa dos bugios gaúchos. Para corroborar a hipótese, ele tem concentrado o trabalho de seus alunos em áreas com vegetação alterada. Num pomar dominado por laranjeiras próximo à área onde ele e Cláudia trabalhavam 20 anos atrás, Helissandra Prates descobriu que os bugios se refestelam na época das laranjas e até comem as folhas dessas árvores, repletas de um óleo em geral pouco apreciado por herbívoros. Helissandra também viu dois macacos lambendo o interior de um ninho. Numa propriedade com um bosque dominado por eucaliptos no município de Tupanciretã, mais no centro do estado, Carina Muhle viu bugios comerem flores e até casca dessas árvores que também não fazem parte da flora natural da região. Nessa fazenda, ela viu os macacos invadirem o galinheiro para roubar ovos, mesmo tendo que se esgueirar por uma fresta acima da porta fechada. As observações, publicadas na edição de outubro do International Journal of Primatology, foram bem recebidas por especialistas. “Demorou 20 anos para publicar­mos, mas o resultado compensou a espera”, comemora o primatólogo, que tem sido procurado por colegas brasileiros e de outros países, interessados na descoberta. Muitos deles só agora, depois de verem a descoberta impressa em artigo científico, começaram a levar a sério relatos ouvidos ao longo dos anos sobre invasões de galinheiros por bugios e responsa-

bilizando os macacos pela escassez de aves como as caturritas em praças de cidades do interior. Assim, o trabalho do grupo gaúcho pode catalisar novas descobertas sobre os hábitos alimentares em várias espécies de bugios. O próximo passo é fazer experimentos para avaliar o interesse desses macacos pelos ovos e observar seu comportamento alimentar com mais detalhe em diversas regiões. Anjos da guarda - Ter que recorrer a

uma dieta alternativa não é o único problema – nem o mais grave – que os bugios enfrentam por conviver com seres humanos. Várias centenas dos macacos morreram em 2008 e 2009 durante um surto de febre amarela silvestre. “A febre amarela surgiu na África e veio nos navios negreiros”, conta Bicca-Marques, “por isso os macacos do Novo Mundo, como os bugios, são sensíveis à doença”. A história mais longa de convivência do ser humano com o vírus nos dá uma resistência maior. É por isso, segundo o primatólogo, que as pessoas são as grandes responsáveis por espalhar a doen­ça – não só no século XVI, mas agora também. Entre 40% e 60% das pessoas infectadas não têm sintomas aparentes, mas espalham o vírus. Com os bugios é diferente: du-

rante os três a sete dias em que a doença faz estragos no organismo eles ficam prostrados e inativos, e a maioria morre. Assim, não têm oportunidade de disseminar o vírus. “Os bugios são na verdade sentinelas que podem indicar aos órgãos de saúde a necessidade de vacinar a população humana”, afirma Bicca-Marques. Por isso, ele diz que proteger os bugios é também uma questão de saúde pública. Veio daí a campanha “Proteja seu anjo da guarda”, lançada por ele para impedir que os habitantes das áreas rurais matem os bugios por medo de que disseminem a febre amarela. A iniciativa põe em evidência uma relação de mão-dupla: assim como os macacos podem proteger as pessoas anunciando a presença do vírus, a vacinação das pessoas é também uma questão de proteção da biodiversidade. n > Artigos científicos 1. BICCA-MARQUES, J. C. et al. Habitat impoverishment and egg predation by Alouatta caraya. International Journal of Primatology. v. 30, n. 5, p. 743-48. out 2009. 2. BICCA-MARQUES, J. C. Outbreak of yellow fever affects howler monkeys in southern Brazil. Oryx. v. 43, n. 2, p. 169-175. abr 2009. PESQUISA FAPESP 165

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homenagem

A arte do cientista Desenhista e entomólogo, João Camargo criou a mais notável coleção de abelhas sem ferrão do país Neldson Marcolin

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iência e arte se reuniram por 48 anos na figura discreta de João Maria Franco de Camargo. Amigos, colegas pesquisadores e alunos não sabem o que falava mais alto – se os desenhos que saíam de seu bico de pena com a naturalidade de quem escreve bilhetes ou se o interesse e cuidado com que coletava e nomeava abelhas, seu objeto de estudo. Ele criou uma das melhores e maiores coleções de Meliponini neotropicais (abelhas sem ferrão), grupo no qual era especialista, e descreveu três novos gêneros e 86 espécies em colaboração com outros cientistas ou sozinho. Camargo morreu em setembro em consequência de câncer no pulmão, aos 68 anos, em Ribeirão Preto, onde trabalhava no Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP).

“O professor João Camargo foi o naturalista mais importante de nossa área no Brasil no século XX”, afirma a bióloga Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP e coordenadora de um projeto temático financiado pela FAPESP sobre abelhas Meliponini. Essa qualidade era reconhecida por cientistas que conheceram seu trabalho. “Ele ajudou a colocar Ribeirão Preto na vanguarda dos lugares do mundo onde abelhas, especialmente as sem ferrão, são estudadas, identificadas e onde estudantes e colegas podem ir em busca de ajuda nas pesquisas sobre elas”, escreveu um dos grandes especialistas no tema, Charles Michener, professor emérito da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, em correspondência a João Atílio Jorge e Carlos Alberto Garófalo, da USP, quando soube da morte de Camargo.


Silvia Regina de Menezes Pedro desenhos de João maria Franco de Camargo

Esses elogios ganham outro sabor quando se conhece a carreira desse entomólogo, nascido em Anhembi, interior paulista. Em 1961, Warwick Estevam Kerr, então professor de genética na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, abriu concurso para contratar um desenhista para o departamento. “Desenhista é importante para a biologia porque a fotografia não resolve tudo”, diz Kerr, de 87 anos, primeiro diretor científico da FAPESP (1962-1964), atualmente trabalhando como professor colaborador da Univer-

sidade Federal de Uberlândia. Camargo prestou concurso aos 20 anos e ganhou em primeiro lugar ao desenhar uma Melipona quadrifasciata (mandaçaia). O desenhista envolveu-se completamente com o estudo de abelhas e começou a ilustrar os trabalhos dos pesquisadores de Rio Claro e, depois, de Ribeirão Preto, para onde foi em 1965 quando Kerr se mudou para a USP. “Os desenhos melhoravam tanto meus próprios artigos que muitas vezes tive de colocá-lo como coautor, para ser justo”, testemunha o geneticista. “Ele foi especialmente importante numa época em que não havia facilidade para tirar fotografias ao microscópio”, conta Carminda da Cruz Landim, professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Graças ao espaço aberto por Kerr, João Camargo começou a montar uma coleção de abelhas por ocasião de sua primeira expedição à região de Manaus. Foram os espécimes coletados lá, identificados pelo padre Jesus Santiago Moure – conhecido como um excepcional taxonomista –, que constituíram o embrião da atual coleção, sediada em Ribeirão Preto. As expedições por todo o país, a coleção de abelhas e a publicação de trabalhos como pesquisador colaborador tornaram Camargo um cientista respeitado, mas sem título acadêmico. Em 1975, porém, ele foi aceito para cur-

Camargo no rio Negro (acima), as abelhas Centris leprieuri (acima à esq.) e Xylocopa frontalis (ao lado) e detalhe de ninho (acima à dir.): extrema precisão nos desenhos

sar mestrado em entomologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a orientação do padre Moure. Para tanto, foi formada uma comissão que julgou seu currículo e deu a ele o título de graduado em ciências biológicas por equivalência universitária. Mesmo contratado como técnico, sem ter feito curso de graduação, Camargo tornou-se mestre (1978) e doutor (1991). Posteriormente, em 1996, foi admitido como docente na FFCLRP/ USP após prestar concurso. Os desenhos de João Camargo ilustraram capas e miolos de numerosos livros em edições nacionais e internacionais. Em 1972 lançou o Manual de apicultura (Editora Agronômica Ceres), como organizador. Orientou oito mestrados, oito doutorados e dois pós-doutorados e foi visitante na Universidade Federal do Maranhão. Sua colaboradora mais constante foi Silvia Regina de Menezes Pedro, a quem orientou no doutorado e com quem trabalhou nos últimos 21 anos na USP de Ribeirão. Silvia é hoje quem mais conhece a Coleção Camargo. “O acervo foi sendo ampliado nas viagens e grandes expedições de coleta organizadas por ele, financiadas principalmente pela FAPESP e CNPq, no Brasil e no exterior, com a colaboração de alguns pesquisadores, técnicos e ex-orientandos, além de intercâmbio com museus e outros cientistas”, conta. O acervo total é estimado em 250 mil espécimes de abelhas. Desses, 150 são de Meliponini neotropicais, as abelhas sem ferrão, especialmente da Amazônia. “Trata-se de uma coleção única, em nível mundial, que inclui 800 peças de ninhos.” n PESQUISA FAPESP 165

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Propriedades inesperadas de reações podem servir como analogia para entender a vida

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m químico observa um frasco de vidro conectado a vários tubos de borracha. Dentro do aparato, um líquido amarelo é constantemente agitado. À primeira vista pareceria um experimento de química daqueles para crianças, não fosse o computador ao lado do frasco – uma célula eletroquímica, na verdade, em que a eletricidade ativa reações químicas – registrar incontáveis gráficos que quantificam as substâncias que surgem e desaparecem na reação. O grupo do engenheiro químico Hamilton Varela, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo em São Carlos (IQSC-USP), está imerso em reações químicas que podem funcionar como analogia para entender como sistemas vivos se mantêm estáveis mesmo que constantemente sujeitos a variações no ambiente. “Em estados afastados do equilíbrio termodinâmico, as reações químicas podem oscilar”, explica Varela. Para ele, é isso que define os sistemas vivos: eles oscilam, ou variam entre um estado e outro. É uma propriedade característica do coração, dos ritmos circadianos e do cérebro, entre outros aspectos da vida, e essa flexibilidade é exatamente o que torna esses sistemas resistentes à instabilidade do ambiente. “Claro que uma reação química é uma representação muito rudimentar da complexidade da vida, mas até agora ninguém propôs um análogo melhor”, justifica. Até meados do século passado, acreditava-se que as reações químicas só iam num sentido: reagentes davam origem a produtos. Hoje se sabe

fotos stephen morris/flickr.com

Química

tubo de ensaio

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que uma reação pode ir e voltar, com substâncias intermediárias aparecendo e desaparecendo à medida que o tempo passa. Um exemplo célebre é a reação de Belousov-Zhabotinski, que ilustra estas páginas. Numa placa de vidro se vê que a reação se propaga em ondas, formando desenhos concêntricos. “Foi a primeira reação oscilatória levada a sério”, resume Varela. Por volta de 1950, o russo Boris Belousov percebeu que uma mistura que incluía bromato de potássio e alguns outros reagentes gerava uma reação com intermediários cuja concentração oscilava, fazendo a cor da solução variar entre amarelo e incolor. A proposta quase herética de uma reação oscilatória demorou a ser aceita, até que alguns anos depois Anatol Zhabotinski, também russo, chegou à mesma conclusão. A cor da mistura retratada aqui, com bromato e ácido malônico, varia entre vermelho e azul conforme o pH da solução. Varela investiga o comportamento oscilatório em reações muito estudadas em eletroquímica por sua simplicidade e interesse prático. Dentro da célula eletroquímica a equipe instala uma placa de platina com cerca de cinco milímetros numa solução de ácido fórmico, cujas moléculas contêm um único átomo de carbono, dois de oxigênio e dois de hidrogênio (HCOOH). Na reação, ela se liga temporariamente à platina e, depois de alguns passos intermediários, libera gás carbônico (CO2) ou monóxido de carbono (CO), que reveste o eletrodo de platina. Esse sistema de platina e ácido fórmico tem uma propriedade curiosa, Varela descobriu. Ao contrário do que é típico em reações químicas, o processo não fica mais rápido quando a temperatura sobe. As etapas intermediá­rias da reação do ácido fórmico com a platina

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O Projeto Auto-organização dinâmica na interface sólido-líquido

modalidade

Programa Jovem Pesquisador Co­or­de­na­dor

Hamilton Varela – IQSC-USP investimento

R$ 371.700,56

se acoplam de tal forma que a frequência das oscilações permanece constante quando a temperatura aumenta, como o grupo mostrou no ano passado no Journal of Physical Chemistry A. É mais um paralelo com sistemas vivos, que mantêm um funcionamento estável mesmo quando a temperatura do ambiente varia dentro de uma certa faixa. O pesquisador explica que essa estabilidade bioquímica, ou homeostase, é responsável pela temperatura corporal constante em organismos vivos homeo­ térmicos, como mamíferos e aves. A fundo - Varela agora estuda o sistema

em detalhes para entender de onde vêm essas particularidades. O grupo testou diferentes parâmetros experimentais e verificou que em algumas condições o ácido fórmico quase não requer energia de ativação para perder uma molécula de água e produzir monóxido de carbono – algo incomum em reações do tipo, que precisam de energia para acontecer. Os resultados foram publicados em outubro deste ano no Journal of Physical Chemistry C e sugerem que talvez essa particularidade esteja por trás do comportamento do ácido fórmico com o eletrodo de platina. Varela viu também

que as oscilações capazes de com­pensar mudanças de temperatura não são características gerais de moléculas simples. O metanol, também composto por um único átomo de carbono (mais um de oxigênio e quatro de hidrogênio), se comporta, nas palavras do pesquisador, de maneira “completamente trivial”, como mostrou em artigo deste ano na Physical Chemistry Chemical Physics. Varela é também um dos 20 integrantes da iniciativa internacional Ertl Center for Electrochemistry and Catalysis, centro de pesquisa sediado na Coreia do Sul e dirigido pelo ganhador do Prêmio Nobel de Química em 2007, Gerhard Ertl, e pretende ir longe na investigação de como as reações químicas podem ajudar a entender a vida. O próximo passo será montar eletrodos de platina em série para observar o surgimento de propriedades emergentes, em que o funcionamento do conjunto é diferente do de suas partes. É o que acontece no cérebro ou num formigueiro, ele exemplifica. O cérebro como um todo cumpre funções que um único neurônio não tem. Da mesma maneira, o comportamento de uma formiga sozinha não faz sentido; só olhando o formigueiro como um conjunto surge uma organização complexa. O engenheiro da USP quer fazer uma estrutura com 80 eletrodos em série para estudar as propriedades emergentes do sistema. Raphael Nagao, doutorando em seu laboratório, está trabalhando nesse feito técnico e afirma que por enquanto tem capacidade para testar 32 eletrodos em série. Ultrapassados os obstáculos técnicos, Varela pretende contribuir para ampliar a integração de disciplinas como a química, a física e a biologia. Uma integração algumas vezes limitada até pelo jargão peculiar a cada um dos n campos do conhecimento.

Maria Guimarães > Artigos científicos

Belousov-­ -Zhabotinski: demonstração clássica de ­ uma reação oscilatória

1. NAGAO, R. et al. Temperature (over) compensation in an oscillatory surface reaction. Journal of Physical Chemistry. v. 112, n. 20, p. 4.617-24. abr. 2008. 2. ANGELUCCI, C. A. et al. Activation energies of the electrooxidation of formic acid on Pt(100). Journal of Physical Chemistry. set. 2009. PESQUISA FAPESP 165

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Astronomia

O farol de

Hércules Equipe de Santa Catarina desvenda enigma de estrela dupla Ricard o Zorzet to

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MARK GARLICK/SCIENCE PHOTO LIBRARY

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as primeiras horas de 13 de dezembro de 1934 o astrônomo amador John Philip Manning Prentice viu surgir no céu de Suffolk, interior da Inglaterra, uma das estrelas mais brilhantes do hemisfério Norte. Apaixonado pela observação de meteoros, Prentice sabia ter testemunhado um evento importante. Tomou seu carro e dirigiu algumas horas até o Observatório de Greenwich, onde relatou o fenômeno a pesquisadores profissionais. O que Prentice havia presenciado não fora o nascimento de uma estrela, mas um raro suspiro de um sistema duplo que atualmente define toda uma categoria de objetos celestes: as estrelas chamadas novas, cujo brilho aumenta subitamente centenas de milhares de vezes em consequência de uma grande explosão. O comportamento dessa dupla de estrelas estudada continuamente nos últimos 75 anos passa agora a ser mais bem compreendido graças ao trabalho de dois astrofísicos catarinenses. Raymundo Baptista, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Roberto Saito, atualmente pesquisador visitante na Universidade Católica do Chile, passaram os últimos cinco anos analisando imagens obtidas no Observatório Palomar, na Califórnia, dessa estrela binária que ganhou o nome de nova Herculis por se encontrar na constelação Hércules, que homenageia o mitológico herói grego. Usando uma técnica sofisticada para avaliar a variação de


A anã e a gigante: estrela principal, menor e mais densa, atrai matéria do disco formado pelo gás da companheira

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Luz emitida pela anã branca é reprocessada no disco de gás que a envolve, explicando variação no ritmo de cintilação da nova Herculis

brilho durante o eclipse causado pela passagem da estrela maior e menos brilhante diante da menor e mais luminosa, eles conseguiram reconstruir a configuração tridimensional das estrelas e estabelecer a origem dos rápidos pulsos de luz detectados pelos telescópios em terra. Hoje se sabe que o brutal aumento de brilho observado em 1934 foi resultado de um evento passageiro, que só se repete a intervalos de dezenas de milhares de anos e torna cerca de 200 mil vezes mais luminosa a dupla de estrelas em geral invisível a olho nu. O que Prentice acompanhou no céu da Inglaterra foi a mais recente explosão sofrida pela nova Herculis, fenômeno de proporções catastróficas comum a sistemas estelares duplos de pequeno porte no final da vida. Nessa explosão, na verdade ocorrida cerca de 1.500 anos antes (sua luz leva todo esse tempo para chegar à Terra), a estrela principal – conhecida como anã branca, um objeto com a massa do Sol comprimida em um volume 60 vezes menor, semelhante ao da Terra – expeliu sua camada mais externa a velocidades altíssimas para o meio interestelar. Remodelada, a anã branca passou a emitir a cada 71 segundos pulsos de luz que, embora muito menos intensos que o da explosão, ofuscam o brilho de sua companheira. Desde as primeiras observações, astrônomos e astrofísicos do mundo todo tentam entender uma peculiaridade da nova Herculis: a variação no ritmo dos pulsos de luz. De tempos em tempos, os pulsos, em geral repetidos a cada 71 segundos, sofrem aceleração ou retardamento. Medições já mostraram que em determinada década a anã branca emite pulsos de luz uma vez a cada 69,5 segundos, enquanto em outras o intervalo entre cada cintilação sobe para 71,5 segundos. Meio segundo a mais ou a menos não faz diferença para qualquer ser humano que leva a vida apressada dos dias de hoje. Mas representa muito para uma anã branca, que gira a velo60

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cidades altíssimas, completando uma volta em torno de si mesma em apenas 71 segundos – se a Terra rodasse à velocidade da anã branca da nova Herculis, o dia começaria e terminaria antes que fosse possível caminhar da sala à cozinha e encher uma xícara de café. As explicações propostas até recentemente pareciam elaboradas demais. Ou exigiam condições que de tão especiais são improváveis – em uma delas o aumento ou a diminuição do ritmo do brilho dependeria da presença de uma quantidade de massa muito maior do que a existente naquela região do espaço para acelerar ou frear o giro da anã branca. “Era uma situação desconfortável”, afirma Baptista, especialista no imageamento de estrelas. Agora, não mais. Canibalismo - A partir da reconstrução

desse sistema, Baptista e Saito conseguiram determinar a fonte de luz da nova Herculis e chegaram a uma explicação bem mais simples e aceitável para a variação no ritmo de seu brilho. Depois da explosão em que se livra da casca, a estrela principal passa a devorar sua companheira: o campo gravitacional da anã branca arranca as camadas mais externas da secundária – uma estrela maior, mas menos densa que a principal –, que vai se desfazendo enquanto completa em 4 horas e 40 minutos um giro completo ao redor da primeira. Nesse processo de canibalismo espacial forma­-se um disco de gás aquecido composto por partículas eletricamente carregadas, que nutre a anã branca. Campos magnéticos milhares de vezes mais intensos que o do Sol direcionam o gás do disco para os polos da estrela primária, onde o choque com a atmosfera origina um feixe cônico de raios X. Mas havia pontos a esclarecer. Não se sabia se havia só um feixe de luz ou se existiam dois, um em cada polo, varrendo sentidos opostos, como um farol portuário. Também se acreditava que a luz detectada pelos telescópios havia sido originada diretamente nos polos da anã branca. Em artigo publicado este

ano no Astrophysical Journal, Baptista e Saito respondem as duas questões com um único modelo, mais simples que os anteriores. “Nossos resultados indicam que a anã branca da nova Herculis emite dois feixes de raios X, que bamboleiam a um ângulo bem próximo ao plano do disco de gás”, conta Saito. “Mas, na Terra, só é possível ver a luz emitida por um deles.” Eles descobriram também que a radiação detectada por aqui não é a emitida pelo polo, mas sim a refletida pelo disco de gás que alimenta a anã branca. A energia dos feixes de raios X aquece o disco, que passa a emitir outro tipo de luz. “É como se, em vez de ver a luz emitida pelo farol, observássemos a luz refletida pelo mar que ele ilumina”, compara Baptista. Esse novo modelo permite também compreender a variação na frequência dos pulsos de luz. “O que determina a velocidade dos pulsos de luz é a quantidade de massa fornecida pela estrela secundária para a anã branca”, afirma Baptista. Quando a estrela companheira perde uma quantidade maior de matéria, a borda mais externa do disco fica mais espessa. Já nos momentos em que o ritmo de degradação da secundária diminui, o disco se torna mais fino e estreito. Como o gás espirala a velocidades diferentes nas faixas distintas do disco – quanto mais próximo da anã branca mais rápido gira o gás –, o ritmo dos pulsos de luz varia. “É uma explicação mais simples e natural”, diz Baptista. Essa resposta, que parece pôr fim a um mistério de 75 anos, também ajuda a entender o que acontece com as estrelas binárias de pequeno porte semelhantes à nova Herculis – calcula-se que sejam um terço dos pontos brilhantes no céu – antes de apagarem definitivamente. n > Artigo científico SAITO, R. K.; BAPTISTA, R. Spin-cycle eclipse mapping of the 71 s oscillations in dq herculis: reprocessing sites and the true white dwarf spin period. The Astrophysical Journal. v. 693, p. L16-L18. mar 1. 2009.


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Genética

Preciosidade descartada Células-tronco de cordão umbilical têm propriedades distintas conforme a fonte | Maria Guimarães

ilustração sobre estudos de embrião, 1509-14, leonardo da vinci

A

s células-tronco presentes no sangue do cordão umbilical e na parede do cordão, tecidos que podem ser armazenados para o caso de futuras necessidades terapêuticas, têm perfis genéticos diferentes. A descoberta é das equipes de Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), e de Sergio VerjovskiAlmeida, do Instituto de Química da mesma universidade, e pode afetar o uso médico dessas células caso fique comprovado que as diferenças genéticas representam uma redução em sua versatilidade. “A função de cada gene depende do contexto, como por exemplo todos os genes que funcionam ao mesmo tempo”, explica Verjovski, especialista em usar a técnica conhecida como microarranjo para estudar os genes como um conjunto. O ensaio de microarranjo desenvolvido por ele inclui genes codificadores, que carregam o código para a fabricação de proteínas, e outros não codificadores, com papel central na regulação do funcionamento do DNA. Mariane Secco e Eder Zucconi, doutorandos no laboratório de Mayana, e Yuri Moreira, do grupo de Verjovski, olharam 40 mil genes (10 mil deles codificadores) e procuraram o que há em comum e o que é diferente entre células-tronco mesenquimais extraídas do sangue de cordão umbilical e aquelas do cordão propriamente dito. Mariane e Zucconi coletaram tecidos pareados de 65 bebês recém-nascidos – de cada um deles extraíram as células-tronco mesenquimais tanto do sangue como do cordão. “Precisamos de mais de 60 recém-nascidos para conseguir um número suficiente de amos-

tras do sangue, porque ele é muito pobre em células-tronco mesenquimais”, lembra Mariane. As amostras pareadas deixam bem claro que o tipo de tecido de onde são retiradas as células-tronco é o mais importante para determinar a atividade dos genes. “Células com a mesma origem – sangue, por exemplo – de indivíduos diferentes tinham um perfil genético mais parecido do que células da mesma pessoa mas de tecidos diferentes”, explica. “Os 30 genes mais expressos no sangue e os 30 mais expressos na parede do cordão são completamente diferentes”, resume Verjovski. Essas diferenças estão nos genes codificadores de proteínas, e não nos regulatórios, e podem ser uma indicação de que essas células já tenham começado a definir a que tipo de tecido darão origem. Nas retiradas do sangue estão mais ativos os genes ligados à fabricação de células de osso e do sistema imunológico. Já nas células da parede do cordão umbilical estão mais ativos os genes responsáveis por produzir neurônios e vasos sanguíneos. Isso não quer necessariamente dizer que essas células já estejam com o destino definido. “Será que as células de cordão têm um potencial maior para se transformar em neurônios?”, questiona Mariane. Ela já começou a fazer os testes para verificar como essas células se comportam em organismos vivos. Mas uma coisa ela toma como certa: o achado enterra a hipótese de que as células encontradas no sangue na verdade residiriam na parede do cordão e teriam vaza­do

por acidente para dentro dos vasos. “As células não são as mesmas”, conclui. O grupo do Centro de Estudos do Genoma Humano – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP – já tinha mostrado, em 2008, que no cordão há muito mais células-tronco do que no sangue daquela região. O trabalho mais recente, que acaba de ser aceito para publicação na Stem Cells Reviews and Reports, reforça o que Mayana já vinha sugerindo: se for guardar uma fonte de células-tronco para uma eventualidade futura, que seja o cordão umbilical inteiro, com o sangue inclusive. Ela critica o procedimento normal nos bancos especializados de armazenar o sangue n e descartar o resto. > Artigo científico SECCO, M. et al. Gene expression profile of mesenchymal stem cells from paired umbilical cord units: cord is different from blood. Stem Cells Reviews and Reports. 2009.

O tubo que nutre o feto durante a gestação pode dar origem a tecidos diversos

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

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Mudanças climáticas

Aerossóis da Amazônia Os aerossóis atmosféricos respondem por uma das maiores incertezas na investigação dos cenários de mudança climática. A margem de erro associada às estimativas nas contribuições dos aerossóis no balanço energético global ainda é elevada, particularmente no que diz respeito ao chamado “efeito indireto”. Ainda que o nível de compreensão científica acerca do efeito indireto tenha avançado significativamente nos últimos anos, este ainda é muito baixo, quando comparado com o entendimento que se tem do papel dos gases de efeito estufa, afirmam os pesquisadores Alexandre Araújo Costa, da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos, e Theotonio Pauliquevis, do Instituto Astronômico, Geofísico e de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo. Particularmente no Brasil, as medidas realizadas dentro do contexto LBA-SMOCC-EMfiN! (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia – Smoke Aerosols, Clouds, Rainfall and Climate – Experimento de Microfísica de Nuvens) possibilitaram uma base de dados ampla sobre aerossóis e microfísica de nuvens. No trabalho “Aerossóis, nuvens e clima: resultados do experimento LBA para o estudo de aerossóis e microfísica de nuvens”, Costa e Pauliquevis apresentam uma revisão de alguns dos principais resultados relacionados a essa base de dados, tanto via análise de resultados experimentais quanto via modelagem numérica. Eles concluem que alterações significativas no processo de desenvolvimento da precipitação podem ocorrer em associação com a grande quantidade de aerossóis produzidos em queimadas, mas que diversas questões, principalmente referentes ao papel dos núcleos de condensação gigantes e núcleos de gelo, ainda precisam ser elucidadas. Revista Brasileira de Meteorologia – vol. 24 – nº 2 – São Paulo – jun. 2009

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Saúde pública

Antropologia e doença de Chagas O artigo “Como as ações de saúde pensam o homem e como o homem as repensa: uma análise antropológica do controle da doença de Chagas” é um estudo sobre a percepção cultural de um grupo de residentes no municí-

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pio de Bambuí, Minas Gerais, em relação à experiência de doença de Chagas e ao impacto das ações de saúde na vida social. Claudia Magnani, da Universidade de Bolonha, na Itália, João Carlos Pinto Dias, do Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, e Eliane Dias Gontijo, da Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, realizaram uma pesquisa etnográfica baseada no instrumento de entrevista aberta, buscando identificar a percepção individual de 35 habitantes de Bambuí (chagásicos e não) que viveram na região desde os anos 1940, quando as ações de saúde foram promovidas para combater a doença de Chagas. Dentro de uma ampla análise da percepção social do efeito das ações de saúde implementadas, os autores procuraram observar as representações culturais do processo do adoecer. O estudo pretende contribuir para que as intervenções de saúde possam atuar de forma integral, incluindo os aspectos socioculturais com a população à qual se dirigem. Segundo os pesquisadores, a perspectiva cultural assume um importante papel para evitar sofrimento social. Cadernos de Saúde Pública – vol. 25 – nº 9 – Rio de Janeiro – set. 2009

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Saúde mental

Machado de Assis e a loucura Em Machado de Assis, a loucura, seu lugar na sociedade de então e as tênues fronteiras que a separam da razão tornaram-se preocupação constante a partir de 1880, quando houve uma inflexão em sua obra, de acordo com a pesquisadora Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Por outro lado, o escritor foi referido inúmeras vezes em estudos clínicos interessados na investigação das relações entre arte e loucura. No artigo “Machado de Assis e a psiquiatria: um capítulo das relações entre arte e clínica no Brasil”, a autora indica de forma breve a visão da psiquiatria brasileira a respeito das artes, dos artistas e do processo de criação nas primeiras décadas do século XX. E apresenta três estudos dedicados ao escritor

reprodução

Notícias


e sua obra produzidos nesse período por psiquiatras que interpretaram fenômenos artísticos sob o ponto de vista da psicopatologia, buscando explicitar a lógica interna a essas abordagens.

versidade de Taubaté, foi estimar o papel de poluentes no baixo peso ao nascer numa cidade de porte médio. O estudo ecológico utilizou dados obtidos da Declaração de Nascido Vivo relativos a São José dos Campos, São Paulo. Os dados ambientais foram fornecidos pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). O estudo incluiu recém-nascidos a termo, com mães entre 20 e 34 anos de idade, segundo grau completo, sete ou mais consultas realizadas no pré-natal, gravidez única e parto normal, para minimizar o efeito de confusão destas variáveis. Utilizou-se regressão logística para estimar o efeito de cada poluente. Baixo peso ao nascer foi considerado aquele inferior a 2.500 gramas. Foram incluídos 2.529 dados de 2001 que atenderam aos critérios de inclusão (25,6% do total) e identificados 99 recém-nascidos (3,95% dessa amostra) com baixo peso e os poluentes dióxido de enxofre e ozônio como associados ao baixo peso ao nascer. Assim, os pesquisadores apontaram o dióxido de enxofre e ozônio como responsáveis pelo baixo peso ao nascer numa cidade de porte médio do Sudeste brasileiro.

História, Ciência, Saúde-Manguinhos – vol. 16 – nº 3 – Rio de Janeiro – jul./set. 2009

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Endocrinologia

Dieta nikkei

Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia – vol. 53 – nº 5 – São Paulo – jul. 2009

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Cadernos de Saúde Pública – vol. 25 – nº 8 – Rio de Janeiro – ago. 2009

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Microbiologia

Interação planta-bactéria

Cambridge 2000 gALLERY

O casamento interétnico entre brasileiros nikkeis e não nikkeis pode favorecer a ocidentalização da dieta, de acordo com o artigo “União interétnica de nipo-brasileiros associada a hábitos alimentares menos saudáveis e ao pior perfil de risco cardiometabólico”, de Carla Yamashita e Sandra Roberta G. Ferreira, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Renata Damião, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Rita Chaim, da Faculdade de Nutrição, Universidade do Sagrado Coração, Helena Aiko Harima e Mário Kikuchi, da Universidade Federal de São Paulo, e Laércio J. Franco, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Nikkei é a denominação japonesa para descendentes de japoneses nascidos fora do Japão ou para japoneses que vivem no exterior. No estudo, compararam-se consumo alimentar, dados clínico-laboratoriais e frequências de doenças metabólicas em população nipo-brasileira, com casamento intraétnico ou interétnico. Em 1.009 nipobrasileiros havia 18,9% de casamentos interétnicos, mais frequentes entre homens nikkeis. Estes apresentaram maiores médias de Índice de Massa Corpórea (IMC), cintura, pressão arterial, glicemia e triglicérides que as mulheres. As frequências de obesidade, hipertrigliceridemia e síndrome metabólica foram 47,7%, 68,1% e 45,2%, sendo maiores nos casamentos interétnicos comparados aos intraétnicos. Comparando-se indivíduos com casamento interétnico, hipertrigliceridemia foi mais frequente nos homens e HDL-c baixo nas mulheres. O consumo de calorias, gorduras e dos grupos de álcool, doces e óleos foi maior nos casamentos interétnicos. Indivíduos casados intraetnicamente consumiam mais carboidratos, proteínas, fibras, vitaminas, minerais, hortaliças, frutas/sucos, cereais e missoshiru. Comparando­-se indivíduos com casamento interétnico, homens nikkeis apresentavam padrão mais ocidental que mulheres nikkeis. Os autores concluíram que o casamento interétnico associa­-se a hábitos alimentares menos saudáveis e pior perfil de risco cardiometabólico.

As interações planta-bactéria resultam de um reconhecimento recíproco de ambas espécies. Estas interações são responsáveis por processos biológicos essenciais para o desenvolvimento e a proteção das plantas. O trabalho “Avaliação da diversidade de comunidades bacterianas associadas às plantas”, de Fernando Dini Andreote, João Lúcio de Azevedo e Welington Luiz Araújo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, revisa as metodologias aplicadas na investigação de alterações nas comunidades bacterianas associadas às plantas. Uma descrição das técnicas é feita desde o isolamento até a aplicação de técnicas independentes de cultivo, construção e análise de bibliotecas de clones, a aplicação de análise multivariada em dados de ecologia microbiana e as novas metodologias de alto processamento de amostras como microarranjos e pirossequenciamento. Esta revisão fornece informações sobre o desenvolvimento das técnicas tradicionais e uma visão geral sobre as novas tendências dos estudos de comunidades bacterianas associadas às plantas.

Ambiente

Poluição e baixo peso O objetivo do artigo “Os poluentes ambientais são fatores de risco para o baixo peso ao nascer?”, de Luiz Fernando C. Nascimento e Douglas A. Moreira, da Uni-

Brazilian Journal of Microbiology – vol. 40 – nº 3 – São Paulo – set. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

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lINHA DE PRODUÇÃO mundo

A capacidade tecnológica e o conhecimento científico de 10 instituições europeias de pesquisa da indústria e da academia estão reunidos num consórcio que pretende facilitar o acesso de tecnologias emergentes em micro e nanotecnologia para o desenvolvimento de novos produtos. A Infraestrutura Europeia de Pesquisa em Multimaterial Micro e Nanotecnológico, EuminaFab na sigla em Conhecimento nanométrico para novos produtos inglês, vai prestar serviços gratuitos para projetos de instituições Durante um ano públicas ou pagos para empresas ou institutos particulares. mil automóveis de diferentes O EuminaFab está centralizado no Instituto de Tecnologia Karlsruhe, na Alemanha, mas funcionará de forma virtual marcas serão monitorados pelo projeto EuroFOT com um leque de 36 instalações especializadas em micro e (European Field Operational nanotecnologia. As outras nove instituições participantes são Test ou teste operacional os centros de pesquisa das empresas Philips, na Holanda, da de campo europeu). Fiat, na Itália, além do Laboratório Nacional de Física (NPL), na O objetivo do projeto Grã-Bretanha, Instituto Fraunhofer, na Alemanha, IMS Nanofaé fornecer respostas bricação, da Áustria, Instituto de Tecnologia Real, da Suécia, Universidade Cardiff, da Grã-Bretanha, Comissão de Energia tanto para os fabricantes Atômica (CEA), na França, e Fundação Tekniker, na Espanha. como para os consumidores Criado pela Comissão Europeia, o EuminaFab recebe projetos do real impacto desses sistemas sobre a segurança, desde setembro deste ano. Aqueles de instituições públicas eficiência e conforto passam por análise de pares (pesquisadores ou profissionais da área) de acordo com os padrões internacionais do motorista.

Universidade de Washington em Saint Louis

Estrutura continental

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> Europa testa carros inteligentes

laurabeatriz

Oito diferentes sistemas inteligentes embarcados em veículos serão testados e avaliados por 28 organizações europeias a partir do início de 2010.

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Entre as tecnologias que serão avaliadas estão o controle adaptativo de cruzeiro, que monitora a distância em relação a outros veículos, o alerta de colisão traseira, o sistema de controle de velocidade previamente programada, o sistema de monitoramento do ponto cego do motorista, que usa câmeras nos espelhos laterais para avisar quando um carro

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ou moto se encontra nesse trecho, o sistema de alerta de mudança de faixa, de velocidade inadequada nas curvas, de eficiência de combustível e a interação homem-máquina dos sistemas de navegação, com tecnologias desenvolvidas para simplificar o acesso às informações do veículo.

> Onda de rádio localiza pessoas Um dispositivo desenvolvido por cientistas da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, poderá ser muito útil para policiais, bombeiros, agentes de fronteira e idosos que moram sozinhos. Trata-se de uma rede de transmissores de


No atual estágio do dispositivo, os pesquisadores do Departamento de Engenharia Elétrica e da Computação da universidade só conseguiram detectar os movimentos das pessoas, mas acreditam que, no futuro, poderão captar também suas imagens.

ar

> Energia do hidrogênio A General Motors anunciou o desenvolvimento da segunda geração do sistema de células a combustível da empresa, equipamento que dispensa o motor tradicional dos automóveis ao transformar hidrogênio em energia elétrica e sem emissão de gases poluentes.

fotos Universidade de Utah

rádio sem fio que consegue identificar e rastrear pessoas se movimentando por trás de paredes, muros de concreto e árvores. O equipamento poderá ser utilizado, por exemplo, para encontrar vítimas de terremotos que se encontram soterradas em escombros ou para precisar a localização de reféns mantidos presos por sequestradores. O método usa uma tecnologia conhecida como “variação de rádio baseada em imagem tomográfica”. A detecção de indivíduos em movimento se dá pela alteração da força dos sinais das ondas de rádio entre os pontos da conexão wireless.

eduardo ces

Pesquisadores da UniversiReciclagem de dade de York, na Inglaterra, telas de LCD conseguiram encontrar um caminho que permite reciclar o cristal líquido das telas de TV, telefones celulares e computadores após o descarte. E aproveitá-lo para a fabricação de novas telas de LCD e também de compostos para utilização na medicina. As telas de cristal líquido são formadas por duas lâminas de vidro, entre as quais é depositado um filme fino do viscoso cristal líquido, material constituído por cerca de 15 a 20 compostos químicos diferentes, entre os quais o álcool polivinílico, ou PVA, material biocompatível já utilizado em formulações farmacêuticas, como a lágrima artificial. Na reciclagem, o filme viscoso é aquecido em uma solução contendo água dentro de um forno de micro-ondas e depois é lavado em etanol para produzir o PVA expandido. O material poderá ser usado em pílulas e como revestimento para nanomedicamentos direcionados para determinadas partes do corpo. A tecnologia de reciclagem, desenvolvida pela equipe do professor Avtar Matharu em parceria com outros nove grupos de pequisa, evita que as telas de LCD sejam incineradas ou descartadas em aterros sanitários.

Sensores mostram imagem na tela de um computador

O sistema é mais leve que o anterior em 100 quilos e usa cerca de 30 gramas de platina no catalisador, para promover a reação química dentro da célula, ante 80 gramas da primeira geração que equipou 100 Chevrolet Equinox, um utilitário esportivo usado em testes em mais de 1,6 milhão de quilômetros nos Estados Unidos. A diminuição do uso de platina pode fazer cair o preço desses equipamentos. Enquanto decide em que veículo vai instalar a nova geração, a empresa, que já investiu US$ 1,5 bilhão em células a combustível, planeja vender carros a hidrogênio a partir de 2015. Falta para isso uma infraestrutura com bombas de gás hidrogênio nos postos de abastecimento. Nesse sentido, a Alemanha já anunciou a criação de 100 estações de abastecimento com hidrogênio para 2015. Um grupo de 13 companhias de petróleo e gás do Japão anunciou planos semelhantes.

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lINHA DE PRODUÇÃO brasil

Um aparelho que utiliza o ozônio para esterilizar instrumentos e materiais cirúrgicos foi desenvolvido pela Brasil Ozônio, empresa graduada pelo Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), sediado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). O processo utiliza o gás produzido a partir do oxigênio presente no ar, que tem alto poder germicida para inativar bactérias, vírus e fungos. A principal vantagem do equipamento, batizado de Autoclave Ozônio, é que ele sozinho consegue esterilizar qualquer tipo de material, tarefa que atualmente é feita por dois ou três tipos de equipamentos diferentes. A empresa ressalta que 66

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Michael Apel/wikimedia commons

> Ozônio esteriliza materiais cirúrgicos

o ciclo de esterilização do aparelho é de apenas sete horas. Pelos processos convencionais a mesma tarefa pode levar até 24 horas. Com a redução do tempo do processo, há uma economia significativa no consumo de energia. Para a fabricação do produto foi firmada uma parceria com a empresa Ortosíntese, que faz o equipamento base para inserir o sistema de ozônio. Segundo a Brasil Ozônio, algumas empresas já estão na lista de espera para comprar a autoclave de ozônio, mas a venda só será

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liberada quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) terminar o processo de registro do novo produto.

Autoclave completa ciclo em apenas sete horas

> Papel feito com açaí e peixe Dois materiais que normalmente são descartados nos processos produtivos, o pó do couro de peixe e os pelos do caroço do açaí, foram utilizados por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) para a fabricação de papel em substituição à celulose da madeira. No processo de transformação da pele de peixe em couro, sobra um pó, que é descartado pelos curtumes. Esse pó entra na composição da pasta celulósica criada pelos pesquisadores do Inpa para a fabricação de um papel especial, mais emborrachado, que pode ser usado para impressão ou embalagens. Dependendo dos produtos químicos utilizados no tratamento, torna-se impermeável. Já o papel

Brasil Ozônio

O orvalho que cai durante a madrugada pode transformar-se em água potável para pequenas localidades do semiá­­ rido. Pesquisas conduzidas nos municípios paraibanos de Campina Grande e São João do Cariri mostraram a viabilidade de produção de água a partir da condensação do vapor-d’água da atmosfera em superfícies refrigeradas por sistemas convencionais. “Inicialmente começamos com um refrigerador normal, depois fizemos adaptações e passamos para superfícies mais expostas que pudessem receber o ar diretamente, para obter um melhor rendimento”, explica o professor Genival da Silva, da Universidade Estadual da Paraíba, que conduz a pesquisa em parceria com o professor Francisco de Assis Salviano de Sousa, da Universidade Federal de Campina Grande. Na primeira etapa do trabalho, iniciado em 2007, para cada litro de água produzida utilizou-­ -se 0,75 quilowatt/hora (kW/h). As modificações nos equipamentos resultaram na obtenção da mesma quantidade de água com gasto energético de 0,50 kW/h. “A região do Cariri tem oferta de água, mas ela é salobra”, diz Silva.

Orvalho potável

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feito com os pelos que cobrem o caroço do açaí, descartados na produção de óleo ou mesmo quando se utiliza o caroço para artesanato, é semelhante ao papel comum.

O espumante brasileiro ganhou uma taça para seu par perfeito: uma taça de criso espumante tal especialmente criada para realçar as qualidades da bebida. Feito manualmente por artesãos, o copo tem formato alongado, um bojo sinuoso que estimula a formação das bolhinhas de gás carbônico e uma boca propositadamente estreita para concentrar a liberação dos aromas. O modelo bateu outros 26 tipos de taça num concurso promovido pela Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, em parceria com a Associação Brasileira de Enologia e a Cristallerie Strauss, fabricante de cristais de Blumenau. Na competicão, da qual participaram como jurados profissionais do setor vitivinícola, foram analisados três aspectos: originalidade do design, beleza estética e funcionalidade. As seis taças mais bem avaliadas foram para a etapa seguinte da disputa, na qual um espumante nacional foi experimentado em cada uma delas. Dois copos foram para a finalíssima. Antes da degustação decisiva, os copos ainda sofreram pequenos ajustes em sua altura e diâmetro.

obtidas são enviadas para um laptop e processadas por meio de um programa que mostra os dados na forma de gráficos em tempo quase real para o atleta ou treinador. O sistema microcontrolado foi concebido pelo mestrando Yull Heilordt Henao Roa, orientado pelo professor

Uma estufa especial, consEstufa para truída pelo Instituto Agronôproteger citros mico (IAC) de Campinas em uma área de 2.400 metros quadrados na cidade de Cordeirópolis, no interior paulista, vai abrigar cerca de 30% da coleção de 1.700 plantas vivas usadas nas pesquisas de melhoramento genético de citros, grupo vegetal que abrange laranjas, limões, tangerinas, limas e pomelos. A partir dessa coletânea, é possível identificar as características agronômicas e comerciais desejáveis e, por meio de cruzamentos, desenvolver variedades de citros com melhor resistência a pragas e doenças, sabor, cor e aroma apreciados pelos consumidores e com o necessário tempo de prateleira para o comércio. A estufa foi criada para garantir a preservação dos materiais indispensáveis à pesquisa agrícola, especialmente da ação de pragas e doenças como o greening, que obriga à destruição total das plantas. Plantas mais velhas, que não têm cópias em clones novos, já foram encaminhadas para o sistema protegido. Cada exemplar fica em um vaso de 65 litros.

Fabiano Fruett, coordenador do Laboratório de Sensores Microeletrônicos da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp, em colaboração

com os professores Sérgio Augusto Cunha e Luiz Eduardo Barreto, da Faculdade de Educação Física, nos testes de campo com ciclistas. Henrique Santos

Um dispositivo de apenas 40 gramas, que pode ser fixado em qualquer parte do corpo, foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para monitorar atletas no próprio campo de treinamento, no local onde praticam o esporte, e não dentro de laboratórios como se faz usualmente. Baseado em sensores de aceleração e de rotação, o aparelho, que está em fase de protótipo, permite obter informações biomecânicas para mapear a trajetória e o giro de uma determinada parte do corpo. As informações

eduardo cesar

> Atletas monitorados

Laranjas preservadas em coleção do IAC PESQUISA FAPESP 165

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tecnologia

A Novos materiais

Diamante eclético Produto sintético é usado em brocas para perfurar o fundo do mar e na proteção de peças de aço Marcos de Oliveira

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inda sem a transparência dos naturais, os diamantes sintéticos, de cor escura e sem brilho, não são obviamente produzidos para compor joias, mas para trazer benefícios a vários setores industriais. Mesmo sem a beleza dos originais, os sintéticos têm propriedades físicas e químicas equivalentes, como resistência à corrosão, dureza e condutividade térmica. Essas qualidades ajustadas ao desenvolvimento tecnológico de produção levaram a empresa Clorovale Diamantes, de São José dos Campos, no interior paulista, a conceber dois novos projetos com esse material: uma broca para prospecção em poços de petróleo e coberturas protetoras de superfícies de aço de produtos ou peças que sofrem corrosão química e desgaste por atrito. “Duas brocas nós vamos entregar para a Petrobras ainda neste ano. A empresa deverá testar as peças no fundo do mar, mas não ainda no pré-sal, embora elas possam ser candidatas a essa função”, diz Vladimir Jesus Trava Airoldi, um dos sócios da empresa e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde os estudos iniciais foram desenvolvidos em um Projeto Temático financiado pela FAPESP, entre 2002 e 2007. Na área espacial a importância dos diamantes sintéticos está principalmente na forma de filmes finos para uso na superfície de peças de satélites, inclusive em painéis solares, para dissipar o calor dos raios do Sol e proteger o


lhento. Outras vantagens são a melhor precisão e maior durabilidade. “Cerca de 4 mil dentistas no Brasil já possuem essas brocas. Exportamos para países da América Latina, como México e Cos­ ta Rica, além de Israel. Estamos agora começando a negociar com a Europa. Duas empresas se mostraram inte­ ressadas em revender o material para mais 49 países”, conta Airoldi. Mas a empresa aposta ainda no mercado na­ cional composto por 140 mil dentistas na ativa, portanto um mercado ainda a ser conquistado. O mercado externo de pontas de alta rotação odontológica é calculado em US$ 500 milhões por ano e o mercado brasileiro em US$ 12 milhões por ano. Sócio e contatos - A empresa se pre­

para para receber até o final do ano um aporte financeiro do Fundo de Capital Semente (Criatec), via Banco Nacio­ nal de Desenvolvimento Econômico e

Social (BNDES) e Banco do Nordeste do Brasil (BNB), numa operação de venture capital, ou capital de risco em que a instituição entra como sócio na empresa. No caso, o nono sócio que irá compor com os outros oito, cons­ tituídos principalmente por pesqui­ sadores do Inpe. Apenas dois sócios trabalham diretamente com pesquisa e desenvolvimento na empresa, e não no instituto, e um na administração. “O Criatec vai nos ajudar a identificar e explorar mais o processo de marketing e vendas no sentido de acelerar a produção e desenvolver o mercado, inclusive no exterior. Eles vão trazer novos contatos para demonstrarmos a nossa tecnologia”, explica Airoldi. “Não basta ter um produto excelente, é preciso saber informar a novidade aos clientes.” A empresa já havia profissio­ nalizado as áreas de venda e parte da área administrativa e financeira e conta atualmente com 17 funcionários.

fotos clorovale

equipamento do bombardeio de partí­ culas cósmicas e ainda funcionar como um lubrificante sólido. A tecnologia transferida e poste­ riormente desenvolvida pela empresa recebe financiamento do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Em­ presas (Pipe) da FAPESP. “Esses dois projetos foram gerados no Projeto Temático e se transformaram em dois projetos do Pipe depois de realizarmos estudos de mercado para os dois pro­ dutos”, diz Airoldi. Os coordenadores de cada projeto Pipe, que tiveram iní­ cio em 2007, são Alessandra Venân­ cio Diniz e Leônidas Lopes de Melo, pós-doutorandos no Projeto Temático coordenado por Airoldi no Inpe. A em­ presa também recebeu financiamen­ to, em 2006, por meio de um projeto de Subvenção Econômica à Inovação aprovado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A empresa foi criada em 1998 co­ mo forma de absorver a tecnologia de diamante sintético desenvolvida no Inpe que não encontrava interessados no mercado. A Clorovale Diamantes nasceu com financiamento de outro projeto Pipe e lançou, em 2003, o pri­ meiro produto, um conjunto de pon­ tas de diamante sintético para brocas odontológicas (ver Pesquisa Fapesp n° 78) que recebeu a marca de CVDen­ tus. Elas funcionam acopladas a um aparelho de ultrassom e vibram em vez de trabalharem por meio de rota­ ção, o que resulta em um tratamento menos agressivo e bem menos baru­

Coroa com pinos de diamante CVD instalada na ponta da broca para perfuração de solo e sondagem mineral pESQUISA FAPESP 165

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Dentro do reator, faca passa por processo a plasma de deposicão de filme de diamante

A Clorovale Diamantes se utiliza de um processo químico para produzir os diamantes sintéticos já utilizados em al­ guns setores industriais e as coberturas protetoras de DLC, ou Diamond-Like Carbon, que é o Chemical Vapor Depo­ sition (CVD), ou deposição química na fase vapor. É uma tecnologia conhecida em vários países, principalmente para novos usos e conceitos, como é o ca­ so da broca odontológica no Brasil. A base de produção desses dois tipos de diamante está em gases como hidrogê­ nio, metano e nos halogênios, como o tetrafluoreto de carbono. A produção 70

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dos diamantes acontece em reatores que funcionam a altas temperaturas, mais de 2.300°C, e na presença de plas­ ma, um gás com perda de elétrons e modificações moleculares. O plasma é a fonte de energia necessária para causar a nucleação e o crescimento da cobertura de diamante. Uma série de outros materiais, como silício, quart­ zo e metais como molibdênio e nióbio também fazem parte dos ingredientes na produção dos diamantes. A tecnologia CVD tanto está na ponta das brocas odontológicas como nas brocas para perfuração do fundo

do mar na busca por petróleo. “Nos protótipos das brocas que serão entre­ gues à Petrobras, apenas as partes que servirão para desgastar a rocha é que levam tarugos de diamantes CVD, por meio de soldas especiais, na haste de metal”, diz Airoldi. A broca tem cer­ ca de 50 centímetros (cm) de altura e a parte diamantada possui quase 20 cm. O diâmetro varia de 10 cm a 40 cm. A peça completa está sendo mon­ tada por uma empresa que já presta serviços nessa área para a Petrobras. Uma versão menor foi desenvolvida pela Clorovale e está em testes também para servir a áreas ligadas à geologia. “Ela é dotada de uma coroa anelar que perfura solos e rochas e colhe amos­ tras para análise posterior.” O mesmo diamante CVD também está indicado para compor cortadores de granitos e cerâmicas, substituindo o diamante natural, além de afiadores de instru­ mentos industriais. O campo das aplicações do DLC é amplo, com possibilidades de uso nas indústrias automobilística, têxtil, espacial, de válvulas e tubulações e na medicina. “O DLC é considerado um diamante pobre porque não é tão duro quanto o natural, mas as suas carac­ terísticas permitem o uso em revesti­ mentos que aderem em superfícies de aço”, diz Airoldi. Essa capacidade pre­ sente nos filmes feitos com esse mate­ rial abre caminho para a proteção do aço em situações de corrosão química e desgaste de material, em peças que trabalham em contato constante com outras superfícies. Vários tipos de en­ grenagens e discos industriais, além de implantes dentários e facas, podem receber o revestimento de filmes DLC para se manterem eficientes, com me­ nor desgaste, ao longo do tempo. O material funciona também como um lubrificante sólido. Estudos em muitos países apontam o uso de filmes DLC em peças de motores automotivos. Dois


fotos clorovale

componentes que sofrem muito des­ gaste são o pino de pistão e o êmbolo da válvula de escape que fazem parte do motor. “É possível, nos reatores que possuímos na empresa, depositar de dois a cinco micrômetros de espessura de DLC nessas peças”, diz Airoldi. No Japão, anualmente mais de 2 milhões de peças automotivas de apenas uma das indústrias de automóveis já recebem essa proteção. “Aqui nós já temos um projeto em andamento com uma em­ presa de autopeças”, diz o pesquisador sem revelar o nome da indústria.

mais relacionado aos diamantes, que são as joias. O diamante CVD é po­ licristalino, composto com mais de um tipo de cristal, que o torna um diamante negro, de difícil e caro pro­ cesso para torná-lo monocristalino e transparente. “Estamos estudando essa possibilidade para o futuro”, diz Airol­ di. Todas essas soluções em diamante sintético ganharam de alguma forma contribuições do Projeto Temático fi­ nalizado por Airoldi no Inpe. No total esse projeto resultou em 13 doutores, 7 mestres e 11 projetos de iniciação científica. Participaram alunos da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e das universidades federais da Amazônia, Pará, Rio de Janeiro e São Carlos, em São Paulo. O projeto contou também com pes­ quisadores da Universidade São Fran­ cisco (USF), de Bragança Paulista, Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá. n

Os Projetos 1. Novos materiais, estudos e aplicações inovadoras em diamante-CVD e Diamond-Like Carbon (DLC) 2. Pesquisa, desenvolvimento e industrialização de produtos nanoestruturados (Diamante-CVD e DLC) 3. Diamante-CVD para um novo conceito de ferramentas de alto desempenho para perfuração e corte 4. Filmes de DLC para aplicações em superfícies antibacterianas, antiatrito, espaciais, industriais e para tubos de perfuração de poços de petróleo

modalidades

1. Projeto Temático 2. Programa Subvenção Econômica à Inovação 3 e 4. Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dores

1 e 2. Vladimir Jesus Trava Airoldi – Inpe/Clorovale 3. Leônidas Lopes de Melo – Clorovale 4. Alessandra Venâncio Diniz – Clorovale investimento

1. R$ 585.337,11 e US$ 24.638,00 (FAPESP) 2. R$ 906.000,00 (Finep) 3. R$ 488.601,34 e US$ 52.182,73 (FAPESP) 4. R$ 415.876,72 e US$ 65.852,00 (FAPESP)

Aço bactericida - Outras possibilidades

do uso do DLC estão na deposição desse material no interior de tubulações para transporte de petróleo, gases, celulose, minério, álcool ou outra substância agressiva ao aço. “É possível fazer uma cobertura interna uniforme com DLC, permitindo uma sobrevida elevada dessas tubulações”, diz Airoldi. Uma inovação nesse sentido, na qual a empresa aposta, é um filme DLC bactericida, capaz de tornar a superfície de aço mais rica, sendo útil para a fabricação de instru­ mentos cirúrgicos na medicina e na odontologia e no revestimento de peças ortopédicas. “Isso é possível ao agregar nanopartículas cerâmicas ou de prata e elevar o nível bactericida do DLC que já é de 30% para cerca de 70%.” A empresa já requereu uma patente sobre esse processo, tem produtos em fase de protótipo e procura outras empresas para formar parcerias que possam colocar a inovação no mercado. Mesmo com muitas áreas de atua­ ção e outras a prospectar, a Clorovale Diamantes não se afasta do produto

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Acima, ponta de diamante sintético para afiadores de ferramentas. Ao lado, tubo revestido com filmes resistentes ao desgaste mecânico pESQUISA FAPESP 165

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FOTテ年ICA

Esculpindo

com a luz Tテゥcnica permite criar micro e nanoestruturas polimテゥricas de geometria complexa

ifsc/usp

Yuri Vasconcelos


A

utilização do laser na medici­ na, nas cirurgias de olhos, por exemplo, e nas telecomuni­ cações, no interior das fibras ópticas, já é bem conhecida. Mas os vários tipos de laser ainda podem ser mais explo­ rados em outras atividades. Atualmente o que se busca na pesquisa científica e tecnológica com esses feixes concentra­ dos de luz é o uso mais ampliado nas escalas de tamanho em micrômetros e nanômetros. Nesse sentido, um passo importante foi dado por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC/USP). Em parceria com um grupo de pesqui­ sadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, eles dominaram a téc­ nica óptica que utiliza pulsos ultracur­ tos de luz laser para fabricar estruturas

Laboratório poliméricas tridimensionais e pelo pesquisador japonês Sa­ no IFSC: de geometria complexa que toshi Kawata, professor espe­ estruturas não se podem ver a olho nu. cializado em nanotecnologia diminutas O domínio desse novo pro­ da Universidade de Osaka. Ape­ para uso na nas em 2001, com a publicação cesso permitirá, no futuro, eletrônica e de um artigo na revista Nature a fabricação de dispositivos na medicina miniaturizados para circuitos pelo grupo de Kawata, ela ga­ elétricos, microcápsulas para nhou projeção nos meios cien­ entrega controlada de medica­ tíficos internacionais. Atual­ mentos, microagulhas de uso médico, mente, poucos grupos de pesquisa no memórias ópticas de dimensões micro mundo, notadamente no Japão, Estados ou nanométricas, microplataformas Unidos, Alemanha e Coreia do Sul, con­ para crescimento de tecidos biológicos, seguem reproduzi-la, incluindo agora o microguias de onda em aparelhos de te­ Brasil com o grupo de São Carlos. lecomunicações e minúsculos elemen­ Para dimensionar o avanço que re­ tos para sistemas de processamento de presenta essa técnica, é necessário antes informações, como os ainda inéditos saber que a polimerização é uma rea­ computadores ópticos. ção química pela qual são fabricados Denominada de fotopolimerização os mais variados tipos de plástico. Por por absorção de dois fótons, a técnica meio desse processo, moléculas cha­ é muito recente e foi proposta em 1997 madas monômeros são ligadas quimi­ PESQUISA FAPESP 165

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camente, resultando em materiais sóli­ dos constituídos por macromoléculas. A reação de polimerização pode ser ini­ ciada de diversas maneiras, inclusive opticamente com a incidência de luz, quando recebe o nome de fotopolime­ rização. Nesse caso, utiliza-se um com­ posto chamado fotoiniciador, o qual, ao absorver a luz que incide sobre ele, inicia o processo de transformação da resina líquida e viscosa num material sólido. O principal diferencial da fo­ topolimerização por absorção de dois fótons é que a reação fica confinada à região focal da luz, o que significa que apenas nesse ponto ocorre a solidifica­ ção do material. Com a movimentação do feixe de laser e, portanto, de seu foco, é possível fabricar estruturas tridimen­ sionais complexas com resolução micro e nanométrica – da ordem de milési­ mos ou milionésimos de milímetro. “De uma forma mais simples, pode­ mos dizer que na medida em que o feixe de laser, controlado por computador, vai percorrendo a resina polimérica o material vai endurecendo. É como se o feixe de laser fosse desenhando – pela solidificação – a estrutura desejada no espaço tridimensional – e não apenas no plano”, afirma o físico Cleber Men­ donça, professor do IFSC e líder das pesquisas. “No processo tradicional de fotopolimerização, onde apenas um fó­ ton é absorvido pelo composto fotoini­ ciador, não dá para fabricar estruturas tridimensionais tão pequenas”, destaca o pesquisador, ressaltando que a nova técnica depende de altas intensidades luminosas geradas por lasers pulsados 74

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de femtossegundos, unidade de tempo que corresponde a um segundo dividi­ do por um quatrilhão de vezes ou 10-15 segundos. Atualmente, pulsos laser de femtossegundos são usados em pesqui­ sas que visam principalmente ao desen­ volvimento de transistores ópticos. A parceria com a Universidade Harvard, que permitiu o domínio da técnica, teve início em agosto de 2005 quando Cleber Mendonça fez seu pós-

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Os Projetos 1. Dinâmica ultrarrápida e determinação da função dielétrica em materiais orgânicos 2. Microfabricação e microestruturação em materiais poliméricos utilizando laser de femtossegundos

modalidade

1. Bolsa de Pesquisa no Exterior – Novas Fronteiras 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

1 e 2 – Cleber Renato Mendonça USP investimento

1. R$ 61.633,61 (FAPESP) 2. US$ 87.731,25 e R$ 3.450,00 (FAPESP)

-doutorado, finalizado em dezembro de 2007, no grupo do professor Eric Mazur, no Departamento de Física e Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da ins­ tituição. Mazur é considerado uma das maiores autoridades mundiais na utili­ zação de pulsos ultracurtos de laser para a microfabricação e microestruturação de materiais. A temporada no exterior foi apoiada por uma bolsa da modali­ dade Novas Fronteiras da FAPESP, des­ tinada ao financiamento de estágios de longa duração em centros de excelência internacionais em áreas de pesquisa ain­ da deficientes no estado de São Paulo. “O Grupo de Fotônica do Instituto de Física de São Carlos já trabalhava com processos ópticos não lineares – que dependem da intensidade luminosa – e pulsos ultracurtos de luz laser há vários anos. Mas foi durante o tempo que pas­ sei em Harvard que tomei contato com a técnica de fotopolimerização por absor­ ção de dois fótons”, afirma Mendonça, que conta também com financiamento da FAPESP por meio de um projeto de auxílio regular a pesquisa. Dentro desse projeto, o pesquisador também investiga a utilização de laser de femtossegundos na estruturação superficial (bidimen­ sional) de materiais. Embora seja uma técnica bastante promissora na área de microfabricação, Mendonça diz que ainda não existem produtos feitos em escala comercial com esse processo, apenas protótipos.


ifsc/usp

Microscopia eletrônica de diferentes estruturas produzidas com feixes de lasers e polímeros

“Acreditamos que em poucos anos as primeiras microestruturas comerciais fabricadas pelo processo de fotopoli­ merização por absorção de dois fótons deverão estar no mercado. Os estudos mais avançados concentram-se na área de MEMS (Micro-Electro-Mechanical Systems), sistemas microeletromecâ­ nicos projetados em escalas micro­ métricas, como sensores, motores e atuadores”, diz o pesquisador da USP. Uma das empresas pioneiras na nova técnica é a americana Focal Point Mi­ crosystems LLC, uma spin-off (empresa de tecnologia originária de uma insti­ tuição) fundada por pesquisadores do Instituto Tecnológico da Georgia, mais conhecido como Georgia Tech, dos Es­ tados Unidos, que está desenvolvendo um equipamento comercial de bancada para fotopolimerização via absorção de dois fótons visando a aplicações comer­ ciais em MEMS. Compostos dopados – Um importante

diferencial do trabalho realizado em São Carlos é a dopagem das microestruturas poliméricas com compostos orgânicos de interesse. Dopagem é o termo científico para designar a adição de substâncias estranhas a um material qualquer com propósitos bem definidos, como, por exemplo, a melhora de algumas de suas propriedades mecânicas. A dopagem permite fabricar micro ou nanoelementos com características ópticas, elétricas ou biologicamente ativas indicadas para determinadas aplicações. “Em nos­ sos trabalhos já fizemos dopagem das resinas-base com corantes orgânicos, polímeros eletroluminescentes e bio­ compatíveis. Nos três casos a dopagem é realizada anteriormente ao processo de fabricação a laser”, diz Mendonça.

Segundo o pesquisador, a técnica de dopagem em si é amplamente utilizada por grupos de pesquisa no mundo todo, mas a dopagem de resinas utilizadas na fabricação de micro e nanoestruturas por meio do processo de fotopolimerização por absorção de dois fótons é um tema extremamente novo. Um desses estudos teve como foco a área de sistemas de engenharia voltados para crescimento de tecidos biológi­ cos, como osso, cartilagem e pele. Um passo importante nessa pesquisa, que pode trazer avanços para a produção de próteses humanas, é o entendimento da movimentação e adesão celular. O estudo desse fenômeno em laborató­ rio depende da existência de matrizes micro ou nanométricas onde as células possam se movimentar e aderir. Aí en­ tra a fotopolimerização por absorção de dois fótons. “Por meio dessa técnica po­ demos desenvolver estruturas 3D com desenhos específicos que propiciam uma investigação sistemática da adesão e migração celular. Essa pesquisa pode facilitar o desenvolvimento de novas técnicas em engenharia de tecido por­ que permite um estudo mais adequado do comportamento das células”, afirma Mendonça. Um grupo de pesquisadores finlandeses da Universidade de Tampe­ re, na Finlândia, anunciou há alguns anos avanços no desenvolvimento de estruturas usadas como suporte para crescimento de tecidos vivos. Outro trabalho feito pelo Grupo de Fotônica da USP, cujos resultados foram publicados no jornal Applied Physics Letters, em setembro deste ano, concentrou-se no desenvolvimento de microestruturas contendo compostos orgânicos emissores de luz com pro­ priedades ópticas diferenciadas. Esses

dispositivos poderão ser utilizados na fabricação de circuitos ópticos ou sen­ sores ópticos. Nesse caso, a fonte lumi­ nosa miniaturizada estaria integrada no dispositivo e diretamente acoplada aos demais elementos que constituem o circuito óptico. O grupo também pre­ vê a confecção de estruturas contendo moléculas orgânicas que, na presença de uma fonte de excitação luminosa, são orientadas numa dada direção. “Es­ sa orientação poderia ser usada como método de armazenamento de infor­ mação. Regiões onde as moléculas estão orientadas corresponderiam à presença de informação, enquanto áreas onde elas estão aleatoriamente distribuídas corresponderiam à ausência de dados, processo similar ao que ocorre com CDs ou HDs de nossos computadores”, destaca Mendonça. Todos esses avanços na área da fotô­ nica, segundo o pesquisador, se devem em certa medida à escolha de resinas poliméricas como o material básico a ser trabalhado. A vantagem de usá-las no lugar de outros materiais, como ce­ râmica, vidro ou metal, é a possibilida­ de de fazer a reação nas condições am­ bientais de temperatura e pressão. Com outros tipos de materiais isso não seria possível. “Eles teriam que ser utilizados na forma de pós para que, com a inci­ dência da luz, as partículas se unissem por um processo de difusão”, afirma. Nesses casos, contudo, haveria um me­ nor controle do processo de fabricação. “Além disso, materiais poliméricos são mais fáceis de dopar e as propriedades dos produtos finais fabricados com eles são completamente distintas daquelas fabricadas com cerâmicas e metais, co­ mo flexibilidade, transparência óptica n e índice de refração.” > Artigos científicos 1. Mendonça, C.R.; Correa, D.S.; Marlow, F.; Voss, T.; Tayalia, P.; Mazur, E. Three-dimensional fabrication of optically active microstructures containing an electroluminescent polymer. Applied Physics Letters. v. 95, p. 11.330-9. 2009. 2. Correa, D.S.; Tayalia, P.; Cosendey, G.; Dos Santos Jr, D.S.; Aroca, R.F.; Mazur, E.; Mendonca, C.R. Two-photon polymerization for fabricating structures containing the biopolymer chitosan. Journal of Nanoscience and Nanotechnology. v. 9, p. 5.845-9.2009. PESQUISA FAPESP 165

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eduardo cesar

MEDICINA

Uma mandíbula artificial com as mesmas características mecânicas do osso original, como resistência, rigidez e flexibilidade, feita com um material sintético concebido de modo inovador por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no interior paulista, foi implantada com sucesso em novembro do ano passado em uma paciente com câncer. O material sintético utilizado na prótese cirúrgica é composto por um polímero de poli(metacrilato de metila) ou PMMA, um tipo de acrílico, reforçado internamente com fibras de carbono. “O implante é denso internamente e poroso na superfície, sendo que os poros são revestidos com um estimulador de crescimento ósseo”, diz o professor Benedito de Moraes Purquerio, coordenador do grupo de pesquisa e desenvolvimento de implantes e próteses cirúrgicas para reconstruções ósseas do Laboratório de Tribologia e Prótese de mandíbula Compósitos (LTC) da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da universidade paulista (leia mais sobre o assunto na edição nº 150 reproduz condições de Pesquisa Fapesp). O grupo de pesquisa já efetuou o depósito mecânicas originais de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) para o processo de fabricação da estrutura porosa dos implantes. “O gel de carboximetilcelulose é o agente que induz a criação de Dinorah Ereno poros na superfície do material, identificados pelas características dimensionais bem definidas, pela densidade e pelo fato de serem abertos e interconectados, o que propicia condições para ancorar

Mimese óssea


da, a partir da qual é criado um modelo tridimensional que reproduz a face do paciente. “Com o modelo produzido por prototipagem rápida, é feita uma prótese cirúrgica muito semelhante ao osso que precisa ser substituído”, relata o engenheiro mecânico Jonas de Carvalho, do LTC. Além do ganho estético, é possível prever o resultado da cirurgia.

onde serão feitos os implantes dentários”, diz Antunes. Com isso será reconstruída a parte de mastigação e estética dentária do paciente. As cirurgias são realizadas com apoio da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), parceira do hospital fluminense. A Uerj e outras instituições, como a Universidade Católica de Petrópolis, a USP de São Carlos, o Centro de PesNa operação realizada no ano pasquisas Renato Archer, de Campinas, sado, todos os músculos da mandívinculado ao Ministério da Ciência e bula, retirada em função de um tuTecnologia, e a Universidade Federal mor que destruiu completamente o osso, Fluminense, se uniram para montar foram suturados na prótese. “Quando a no Hospital Santa Tereza um centro de tratamento e pesquisa das deformidades paciente acordou da cirurgia e colocou craniofaciais. “O objetivo dessa iniciatia língua para fora, já apresentava todos va é, além da pesquisa, treinar os profisos movimentos normais de deglutição”, relata Antunes. A rápida resposta da pasionais da área de engenharia aplicada à ciente deve-se ao uso de um material que medicina dentro de todos os protocolos se aproxima das qualidades mecânicas que desenvolvemos com esses novos do osso, o que melhora a relação do temateriais”, diz Antunes. “Entre as vancido com o material implantado. tagens do uso de um material artificial Como nesse primeiro implante a homologado está o tempo menor de principal preocupação do cirurgião era cirurgia e de recuperação do paciente”, prender corretamente os teciressalta. Para uma retirada dos à prótese e a língua à nova completa da mandíbula com mandíbula, a colocação dos colocação da prótese de maEstrutura dentes ficou para outra etapa. terial artificial gastam-se cerca porosa “Estamos preparando outras de duas horas e meia a cinco (à esq.) ajuda cirurgias em que as próteses horas, enquanto pelo método na fixação receberão, em pontos estratradicional de enxerto ósseo de prótese esse tempo pode ser estendido tégicos, pequenos enxertos cirúrgica até por 10 horas, em média. n ósseos do próprio paciente de mandíbula Laboratório de Tribologia e Compósitos/USP

um estimulador de crescimento ósseo”, explica o engenheiro de materiais Carlos Alberto Fortulan, que participa do grupo de pesquisa do LTC. O estimulador de crescimento ósseo escolhido para revestir os poros é a hidroxiapatita, o mineral básico da composição dos ossos. Os poros do material têm dimensões que variam de 50 a 400 micrômetros, compatíveis com os processos de reparação óssea. “Os orifícios têm tamanho adequado para que a mucosa e os músculos possam penetrar e se ligar na estrutura, estimulando o crescimento de tecidos”, diz o cirurgião Edelto dos Santos Antunes, chefe do serviço de cirurgia bucomaxilofacial do Hospital Santa Tereza, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, que está à frente dos implantes de mandíbula com o novo material. “A flexibilidade parecida com a do osso gera estímulos elétricos na superfície do material, que sinalizam para os tecidos ao redor, resultando em um campo adequado para a fixação do implante.” Atualmente, quando há necessidade de reconstruir uma mandíbula, o cirurgião retira o osso de outros lugares do corpo e modela o enxerto, fixado com placa de titânio, durante a cirurgia. “Embora seja um osso do próprio paciente, quando retirado do local de origem ele perde a condição de um tecido vivo e fica sujeito a infecções e ao processo de reabsorção do organismo”, diz Antunes. Alguns meses depois, como grande parte do osso implantado é reabsorvida pelo organismo, o resultado é a piora do quadro obtido logo após a cirurgia. “Isso significa que não há previsibilidade nem estabilidade do resultado, duas características importantes para o sucesso de uma substituição de ossos ou parte deles por próteses cirúrgicas artificiais”, diz o cirurgião, que faz doutorado em engenharia mecânica na USP de São Carlos, orientado pelo professor Purquerio. Ou seja, ao longo do tempo ocorrem mudanças significativas no enxerto ósseo originalmente implantado, resultando muitas vezes na necessidade de cirurgias corretivas. “As próteses cirúrgicas que desenvolvemos são feitas de forma personalizada, copiadas da geometria do osso que será retirado”, diz Antunes. O processo começa com a tomografia computadoriza-

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Eletricidade do lixo Aterro paulista produz biogás para iluminação e funcionamento de motores

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gás metano produzido pela decomposição do lixo nos aterros sanitários pode ser aproveitado para produção de energia elétrica e redução de impacto ambiental provocado pela emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, como mostra um projeto desenvolvido pelo Centro Nacional de Referência em Biomassa (Cenbio), grupo de pesquisa em bioenergia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP). A principal novidade dessa iniciativa é um levantamento detalhado da quantidade de gás emitida anualmente pela central de tratamento de resíduos de Caieiras, controlada pelo grupo Essencis Soluções Ambientais, que diariamente recebe cerca de 10 mil toneladas de lixo, 75% da quantidade recolhida da cidade de São Paulo. Com base nesses dados, é possível saber a potência energética disponível no local e analisar a possibilidade de replicar a iniciativa em aterros sanitários de pequeno porte espalhados pelo Brasil. “No aterro de Caieiras implementamos um sistema pioneiro de iluminação a gás, que ainda está em fase de testes, e também um sistema de geração de energia elétrica, que já está operando”, explica a engenheira química Vanessa Pecora, que participa do projeto coordenado pelo professor Geraldo Francisco Burani, financiado pelo Ministério das Minas e Energia. O biogás é produzido pela biodigestão anaeróbia – sem a presença de oxigênio – de resíduos

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orgânicos presentes no lixo. A central de tratamento de Caieiras, localizada no km 33 da rodovia dos Bandeirantes, possui um sistema de captação e queima que inclui poços para extração de biogás do interior do aterro por meio de sopradores – que sugam o biogás – e uma rede de tubulações que faz o transporte do gás, encaminhado para um cilindro fechado de grandes proporções chamado flare. Nesse equipamento é feita a queima do biogás, processo necessário para transformar o metano em dióxido de carbono, gás com menor potencial de geração do efeito estufa. Créditos de carbono - “O metano é

21 vezes mais prejudicial ao ambiente em termos de aquecimento global que o dióxido de carbono”, diz Vanessa. Quando o gás metano produzido a partir da decomposição do lixo orgânico deixa de ser emitido para a atmosfera, a empresa pode vender os créditos de carbono no mercado internacional, conforme diretrizes estabelecidas no Protocolo de Kyoto, que tem como meta a redução de gases de efeito estufa até 2012. Nos aterros mais antigos, sem uma planta de extração de gás, drenos espalhados pelo terreno captam o gás produzido no interior que aflora à superfície e é queimado manualmente. “Nesse sistema a eficiência de queima do metano é de apenas 20%”, explica Vanessa. Quando todo o gás produzido é captado pelas tubulações e enviado ao flare, a eficiência da queima sobe para 90%. “É esse ganho de 70% que entra

na conta dos créditos de carbono.” Se além da queima houver um aproveitamento energético do biogás, o cálculo da eficiência atinge 100%. No projeto conduzido pelo Cenbio foi utilizado um motor nacional de combustão interna ciclo Otto de 200 quilowatts de potência, que tem o mesmo princípio de funcionamento do motor dos carros, para conversão do biogás em energia. “Escolhemos esse motor porque é o de maior potência fabricado aqui”, explica a pesquisadora. Acima disso só existem motores importados, o que eleva o custo de investimento para o projeto. A energia produzida no processo é utilizada pelo soprador do equipamento. “Com isso há uma economia no gasto de energia elétrica proveniente da rede”, diz Vanessa. A produção atual do aterro de Caieiras é de 12.600 metros cúbicos por hora de biogás, mas apenas cerca de 200 metros cúbicos por hora são utilizados. “Se todo o biogás produzido fosse aproveitado, daria para gerar cerca de 15 megawatts de potência”, diz Vanessa. É energia suficiente para abastecer uma cidade de 250 mil habitantes. Na atual fase do projeto, iniciado em janeiro de 2006 e que será encerrado em dezembro deste ano, os pesquisadores estão finalizando uma análise técnico-econômica do empreendimento. O estudo para aproveitamento do biogás produzido em aterro sanitário é um desdobramento de dois outros projetos desenvolvidos anteriormente pelos pesquisadores do Cenbio. O primeiro


Cilindro fechado onde o biogás extraído do aterro é queimado

eduardo cesar

deles, implementado na Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) de Barueri, teve como objetivo comparar duas diferentes tecnologias de conversão – uma microturbina de 30 quilowatts e um motor ciclo Otto adaptado a biogás, com a mesma potência – para geração de eletricidade a partir do biogás produzido no tratamento de esgoto. A produção de biogás é feita a partir do esgoto tratado em biodigestores, equipamentos fechados onde é feita a digestão anaeróbia da matéria orgânica pela ação de bactérias. Nesse processo ocorre a fermentação do esgoto e a produção de biogás. “A energia gerada pelas duas tecnologias de conversão eram interligadas na rede da Sabesp”, diz Vanessa. Durante o mesmo período, outro projeto de geração de energia do biogás tomava forma na própria USP, como parte do Programa de Uso Racional de Energia e Fontes Alternativas (Purefa). “O Cenbio participou desse projeto com a meta de utilizar o gás que era produzido no biodigestor que captava parte do esgoto proveniente do conjunto residencial dos estudantes da USP, o Crusp, e transformá-lo em energia”, explica Vanessa. Os pesquisadores desenvolveram um sistema de purificação e tratamento do esgoto. O biogás produzido era armazenado e enviado a um motor, que o convertia em energia suficiente para acender um painel demonstrativo do experimento. n

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humanidades Arquitetura

Pauliceia desvairada Projeto temático analisa participação de imigrantes na construção da metrópole paulista Carlos Haag

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ostureirinha de São Paulo,/ ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,/ Gosto dos teus ardores crepusculares,/ crepusculares e por isso mais ardentes, / bandeirantemente!”, escreveu Mário de Andrade em Pauliceia desvairada, descrevendo apaixonadamente a cidade nova com sua “boca de mil dentes” capaz de deglutir e sintetizar todas as etnias e todas as classes em suas estruturas. Ainda que não intencionalmente baseado no credo andradiano, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-FAU; Escola de Engenharia de São Carlos; Departamento de Antropologia da FFLCH; Museu Paulista – reuniu-se no projeto temático São Paulo: os estrangeiros e a construção da cidade, apoiado pela FAPESP, e coordenado pela professora Ana Lúcia


reproduções do livro Lembranças de São Paulo/gerodetti e cornejo

e estrangeira Duarte Lanna, da FAU, para justamente tentar entender como os estrangeiros moldaram as estruturas da metrópole. “A pesquisa tomou como fio condutor as presenças estrangeiras, fundamentais nos processos de transformação física, demográfica, econômica, social e cultural da cidade, para estudar suas mudanças arquitetônicas e urbanísticas desde fins do século XIX. Mas os estrangeiros não foram reduzidos aos imigrantes, ainda que a situação particular da imigração fosse tratada. O estrangeiro foi considerado em relação ao universo do trabalho: o do trabalho livre, operário e fabril, e também do

intelectual, das práticas artesanais, das projeto temático igualmente contribuirá, ao seu final, com a solução desses profissões liberais, como a do arquitelimitantes de pesquisa. O temático está to e também do intelectual”, explica a digitalizando acervos do Museu Paulispesquisadora. O projeto, além das pesquisas teórita, em especial a Coleção Aguirra, um cas, também trará como resultado final precioso arquivo de informações sobre um acervo virtual, um banco de dados títulos de propriedades imobiliárias, disponível via web, com digitalização de entre outros acervos históricos. Para todo o material pesquisado nos arquios arquitetos, porém, o grande acepipe vos utilizados durante as pesserá, sem dúvida, a recupequisas. Como boa parte dessa ração do acervo de projetos Escola Modelo documentação não se enconda biblioteca da FAU-USP, no Brás (à esq.) tra em condições adequadas que inclui as coleções de três e residência de higienização e catalogação, dos maiores nomes do mopresidencial limitando seu uso e até inviadernismo paulista: Jacques nos Campos Elísios (acima) bilizando sua divulgação, o Pilon, Gregori Warchavchik PESQUISA FAPESP 165

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cenário para embates sobre o modernismo mundial. Os estrangeiros, porém, começaram a mexer com São Paulo muito antes disso, é claro. A chamada Linha 1 da pesquisa trata de bairros centrais (Bexiga, Bom Retiro, Campos Elísios) e o universo de estrangeiros são os imigrantes que não se inserem na relação com a cafeicultura nem com a imigração subsidiada e que fazem da cidade seu destino primeiro e preferencial. “Os bairros selecionados fazem parte do cinturão de chácaras e foram escolhidos pelas particularidades do seu processo de constituição e pelas formas de inserção de estrangeiros na conformação de seus territórios”, explica Ana Lanna. A afirmação do Bexiga como bairro italiano se deu pela eliminação, entre final do século XIX e início dos anos 1920, das referências que associavam a região com local de dejetos urbanos e também pela eliminação de marcas e referências negras, fazendo dele um bairro europeu, branco e pobre em que convivem imigrantes e uma certa classe média. Bom Retiro - O Bom Retiro é enfocado como bairro que se caracteriza pela ocupação por sucessivos grupos de estrangeiros, entre 1920 e 1940, e apesar da presença de grandes indústrias se diferencia dos locais fabris por apresentar pequenos negócios “por conta própria”, a meio caminho entre indústria e comércio. A pesquisa, coordenada por Sarah Feldman, revela como as atividades vinculadas à indústria e ao comércio de confecções prescindem da demolição e se instalam nas estruturas físicas pree­ xistentes. O trabalho também mostrou que no núcleo onde se concentram essas atividades prevalecem a ampliação e reforma do patrimônio construído e a permanência do traçado antigo. Há ainda o elevado grau de organização da comunidade judaica, que, desde o início da imigração, constitui uma rede de apoio aos recém-imigrados, tendo o suporte tanto de judeus paulistanos já pertencentes à elite industrial como de organizações internacionais. O bom funcionamento desse sistema vem sendo repetido, de acordo com a pesquisa, pelos novos imigrantes coreanos no bairro, estudados pela professora Maria Ruth Amaral de Sampaio.

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reprodução do livro Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940

e Giancarlo Palanti, que somam 14.600 desenhos originais, os quais, após serem restaurados, catalogados e digitalizados, estarão disponíveis para consulta na internet no banco de dados do projeto temático. O grupo aparece dentro da pesquisa quando As visões se discute um novo perfil de bem-humoradas estrangeiro em São Paulo sobre o ligado à institucionalização trabalho dos da profissão de arquiteto, estrangeiros entre as décadas de 1920 e em terras 1960, que coincide com o paulistanas deslocamento para a cidade de novos estrangeiros, urbanizados e intelectualizados. Era um período de dispersão de modernos pelo planeta em que muitos deles chegam ao Brasil conferindo prestígio à cena local e ao mesmo tempo a utilizando como


casa modernista, 1930 - reprodução do livro Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940

Nos Campos Elísios, com a pesquisa coordenada por Paulo Marins, o padrão de residências isoladas no lote, embora preponderante, foi limitado pela restrição do público-alvo priorizado por Victor Nothmann, alemão que chega a São Paulo na década de 1860. O empreendedor adquire grande quantidade de terras em parceria com o compatriota Friedrich Glette, que permaneceu no Rio de Janeiro. O plano da dupla foi criar o “primeiro bairro exclusivo das elites”. De início, a pesquisa levou os professores a considerar que a condição de estrangeiro familiarizado com a expansão das cidades europeias de meados do século XIX favorecera a Nothmann a adoção de padrões urbanísticos que promoveram a especialização de classe e a intensificação de isolamento das residências no lote, a defini-

ção do público-alvo do empreen­dimento, assim como a convivência desses padrões com soluções de alinhamento convencionais. Assim, no caso dos Campos Elísios, o foco é sobre a figura do empreendedor imobiliário, no caso Nothmann. “Atualmente, porém, não creio mais que havia um plano de bairro exclusivo das elites nos Campos Elísios, nem as residências isoladas no lote eram mais numerosas. Acredito que houve uma adequação ao mercado em oferecer um produto que, embora distante dos padrões de bairros de elite parisienses, adotavam algumas de suas características, numa elitização possível e fragmentária”, diz Ana Lanna. O trabalho dos pesquisadores mostra, porém, a presença estrangeira ainda no momento da constituição do retalhamento das chácaras que originaram

os bairros, e antes mesmo das sociabilidades que os constituem ou que a identidade de dados grupos étnicos estivesse estabelecida, estrangeiros já eram agentes de constituição de seus territórios. “No Bexiga, dados revelam estrangeiros participando ativamente do retalhamento de glebas em lotes e promovendo a construção de edificações já em 1890. Já nos Campos Elíseos, estrangeiros atuam simultaneamente em seu parcelamento e como adquirentes de terrenos, como Nothmann e Glette”, observa Ana. “Assim, tanto no Bexiga como nos Campos Elísios, evidenciaram-se condições para que estrangeiros pudessem ser agentes de suas configurações de maneira distinta. Atuaram quando esses espaços ainda eram apenas loteamento, e não propriamente bairros.” PESQUISA FAPESP 165

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reprodução do livro A obra e a trajetória do arquiteto Giancarlo Palanti, Itália e Brasil - fonte: Arquivo GP/FAU-USP/Boer

No Bom Retiro, como mostra Sarah Feldman, o ciclo diferenciado acontece entre os anos 1920 e 1940, quando judeus começam a adquirir propriedades no bairro. “As transformações que ocorrem se caracterizam menos pela lógica dominante na cidade apoiada no binômio demolição/reconstrução, e mais por sucessivas Construtora apropriações de uma mesma Alfredo estrutura física. Configuram-se Mathias e a permanência do tecido urbaPalanti: no e o contínuo movimento de Ed. Conde de entrada e saída de imigrantes”, Prates, 1952 analisa Ana. A região se especializa e se consolida como centro de indústria e comércio de roupas feitas, intimamente ligado à indústria e estruturado em função da venda ao consumidor. Entre 1928 e 1945, mais de 300 estabelecimentos se instalam no bairro e os não pertencentes a judeus não somam uma dezena. Durante a mesma década de 1940, em que o Bom Retiro se consolida a 84

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cidade de São Paulo passa por um acentuado adensamento populacional que faz nascer um novo tipo de sociedade de massas adequado a um novo meio de comunicação, no entanto ainda não existente entre os paulistas. É o que, no projeto temático, corresponde à chamada Linha 2 de pesquisa – a transformação dos campos profissionais: práticas, redes, atores e circulação dos saberes, ou seja, quando o universo de estrangeiros se caracteriza pelos deslocamentos de cidades para cidades, pelo perfil mais profissionalizado e intelectualizado e pelo papel destacado nos vários campos profissionais nos quais atuam. Com a proposta da criação do Museu de Arte de São Paulo (Masp), dirigido pelo jornalista italiano Pietro Maria Bardi, surge a oportunidade para que venha à capital paulista um grupo de intelectuais italianos que viviam no circuito Milão-Roma do entreguerras, participando dos debates arquitetô-


período para o sistema de metrô subterrâneo ou em superfície”, observa a pesquisadora. Duas questões abordadas no programa, a indicação de compra de ônibus para suprir o transporte coletivo e a proposta de uma corporação com a participação da Light Tramway and Power (com quem o Ibec já fizera uma parceria anteriormente em outro projeto) para urbanizar as terras ao longo do Pinheiros, abriam a possibilidade de um campo de negócios entre empresários estrangeiros, nacionais e a prefeitura. Henrique Dumont Villares, que já tentara abocanhar propinas de Henry Ford em seu empreendimento de extração de borracha da Fordlândia, na Amazônia (ver Pesquisa FAPESP nº 158), estava mais uma vez envolvido numa intermediação nebulosa. “É justamente a heterogeneidade de inserções e experiências, assim como as marcas que esses diversos estrangeiros deixaram impressas na cidade e as imagens e reflexões que produziram sobre ela, que este projeto visa apreender e analisar”, completa Ana Lanna. “Enguirlandemo-nos de café-cereja!/ Taratá! e o pean de escárnio para o mundo!/ Oh! este orgulho máximo de ser paulistamente!!!”, era como brincava Mário de n Andrade com esse jeito paulista.

reprodução do livro lina por escrito org. rosana rubino e marina grinover/cosac naify

nicos e culturais do período: Lina Bo chavchik (analisados pelo estudo de Bardi, Roberto Sambonet, Gastone José Lira), contribuindo para as transNovelli e Leopold Haar (o único não formações urbanas e inserções da metrópole em circuitos internacionais. italiano do grupo). “Eles trazem uma experiência europeia em espaços pouco explorados pelos paulistas, como Rockefeller - Em 1945, no ano em que o desenho de móveis, a produção de o Masp foi inaugurado, no contexto do cartazes, a diagramação de revistas e pós-guerra e com o restabelecimento jornais, o projeto de estandes para exdos ideais democráticos, o planejamento posições, a produção de vitrines etc. urbano igualmente ganha novos ares poAssim, em 1951, começa a funcionar líticos, revelados no trabalho de Cristina junto ao Masp o Instituto de Arte ConLeme. Em 14 de julho de 1950 é firmado temporânea, o IAC, que tinha por fium contrato entre a prefeitura de São Paulo, representada pelo prefeito Lineu nalidade formar profissionais aptos a atuar na área de desenho industrial, Prestes, e o International Basic Economy artes gráficas e comunicação visual, Corporation, o Ibec, do empresário norfortalecendo o debate sobre as tente-americano Nelson Rockefeller, para dências construtivas em São Paulo.” A elaborar o Plano de Melhoramentos Púintenção do IAC, que funcionou como blicos para a Cidade de São Paulo, que uma experiência de “Bauhaus tupiniseria coordenado pelo notório Robert quim”, era se aproximar da indústria Moses, responsável pelo polêmico urbapaulista para fornecer projetos, já que nismo feito em Nova York. “Do ponto a avaliação dos italianos era que reide vista urbanístico, o programa pode nava um supremo mau gosto na meser considerado uma continuidade do trópole do café. Ao mesmo tempo, São Plano de Avenidas de Prestes Maia, de Paulo é palco de visitas importantes 1930, ao enfatizar, mais uma vez, como de vários arquitetos e intelecsolução o transporte sobre tuais estrangeiros, que paspneus em sistema de vias exO Masp em sam pela capital, em viagens pressas. Polêmico e criticado obras: museu ou se estabelecendo, como por urbanistas e arquitetos, trouxe cabeças o programa não contemplaRichard Neutra, Bernard pensantes va os estudos realizados no Rudofsky ou Gregori Warpara a cidade

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acelerada industrialização de São Paulo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (19391945) – um dos mais importantes capítulos da história do estado – já pode agora ser mais bem contada. O que pouca gente sabe é que nesse processo se tornou fundamental, por exemplo, a presença de grandes levas de imigrantes qualificados vindos da Europa e do Japão, duas das regiões mais afetadas durante o conflito. Aconteceu, então, não apenas um incremento das entradas de trabalhadores na indústria da Grande São Paulo. Deu-se também na agricultura, que se modernizava e caracterizava “os novos imigrantes” no sentido de uma mão de obra mais especializada, não tanto em termos formais, mas de qualificação mais técnica e prática. Essa nova visão começa a ser delineada graças ao projeto Os novos imigrantes – Fluxos migratórios e

São Pau lo S .

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Banco de dados mapeia fluxo migratório de mão de obra qualificada que ajudou na industrialização paulista pós-1945 | Gonçalo Junior


os apátridas etc.”, avalia Maria Do trem de do Rosário. De acordo com ela, imigrantes entre as conclusões, destaca-se europeus até a chegada, o perfil diferenciado de pessoas com a família, provenientes dos países europeus aos centros tradicionalmente fornecedores nacionais de imigrantes ao Brasil, além de outras nacionalidades da Europa Central e do Leste, em relação ao perfil menos qualificado das entradas que caracterizaram a grande imigração de finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. “As origens dos imigrantes são interessantes também”, ressalta. Por exemplo, com relação aos italianos, eram procedentes das regiões meridionais da Itália, ao contrário do que se poderia esperar, uma vez que se tratava de áreas menos desenvolvidas, cuja mão de obra apresentava uma especialização mais técnica do que formal. Para compreender melhor o processo, a professora recomenda voltar ao século XIX. Podem-se identificar alguns períodos bastante significativos de entradas de imigrantes no país a partir dos anos de 1870, momentos mais longos e de maior intensidade, sobre o crescimento da população brasileira. Como a expansão da cafeicultura no oeste paulista, o início da política de subsídios, a vinda maciça de imigrantes – entre os quais predominavam os italianos. “Esse perío­do terminou em 1902, com a proibição da emigração subsidiada pela Itália, pelo conhecido decreto Prinetti e o redirecionamento da imigração italiana para os EUA”, afirma. O segundo ciclo se caracterizou pelo Con­ vênio de Taubaté (1906) e pela chegada maior de portu­ gueses e espanhóis e o começo das entradas dos japoneses (1908) e vai até a Primeira Guerra Mundial. O período seguinte se caracteriza por uma menor vinda de imigrantes, devido a uma série de fatores: restrições que se colocaram já na década de 1920, fotos divulgação

industrialização em São Paulo (1947-1980), do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), em que foram cadastrados ao longo de cinco anos, entre 2003 e 2008, mais de 60 mil documentos que perfazem um banco de dados com aproximadamente 200 mil registros de pessoas que chegaram ao país e passaram a fazer parte do mercado de trabalho. O farto acervo, que promete fazer a alegria de pesquisadores tanto do Brasil quanto do exterior, foi montado de modo que as informações possam ser exploradas de diversas formas: por nome, nacionalidade, profissão, região de origem, empresa empregadora etc. Não só isso. Podem-se cruzar dados mais detalhados como, por exemplo, todos os mecânicos de automóveis de nacionalidade alemã, solteiros ou aqueles com grau de escolaridade “universitário” – nesse caso, independentemente da nacionalidade. É possível também elaborar gráficos, tabelas e outras formas de consolidação de dados, o que pode ser uma importante ajuda em estudos de demografia, só para citar uma possibilidade. O banco de dados já está disponível no Nepo/Unicamp e no Memorial do Imigrante, em São Paulo. A disponibilização fez com que a equipe do projeto considerasse o trabalho encerrado enquanto contribuição coletiva para outros pesquisadores. Mas o grupo permanece unido para o que chama de continuidade do trato com as informações e o diálogo com outros interessados. À frente estão os pesquisadores Maria do Carmo Carvalho Campello de Souza (USP e Idesp, coordenadora entre 2003 e 2006), Teresa Sales de Mello Suarez (Nepo/Unicamp), Célia Sakurai (Museu da Imigração Japonesa e Nepo/Unicamp), Odair Paiva (Unesp e Memorial do Imigrante), José Renato de Campos Araújo (USP e Idesp) e Maria do Rosário Rolfsen Salles (Unesp e Idesp, coordenadora de 2006 a 2008). A socióloga Maria do Rosário Rolfsen Salles, idea­ lizadora do projeto ao lado de Célia Sakurai, explica que na primeira etapa buscou-se a identificação, organização, catalogação, informatização e arquivamento dos documentos depositados no Memorial do Imigrante em São Paulo, relacionados à chegada de aproximadamente 500 mil estrangeiros, muitos dos quais estiveram alojados na então Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. A segunda etapa do projeto consistiu no desenvolvimento de pesquisas temáticas que resultaram na produção de trabalhos que discutiram aspectos pouco explorados pela historiografia sobre a imigração no período. “O grande mérito do nosso projeto, se assim podemos falar, é a possibilidade de novos pesquisadores terem acesso a um tipo de documentação, agora informatizada e que pode orientar um sem-número de pesquisas sobre o período, as nacionalidades, os organismos internacionais, os refugiados,

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O último ciclo migratório começou com a reabertura da política imigratória pelo Brasil no final da guerra na cidade de São Paulo. Notou-se também concentração desses imigrantes em bairros industriais da Zona Leste à Zona Sul, além de outra regiões como Centro, Zona Norte, Vila Leopoldina, Lapa e Zona Oeste de maneira geral. “Enfim, será preciso pesquisar cada uma das nacionalidades para determinar a direção seguida em São Paulo.”

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ara a doutora em ciências sociais pela Unicamp Célia Sakurai, o banco de dados que resultou da pesquisa abriu a possibilidade de se refletir com maior acuidade o peso dos imigrantes em São Paulo. Ela observa que não sabia da amplitude da imigração do pós-guerra, sobretudo em relação ao perfil dos imigrantes, bastante diferente dos que vieram antes da Segunda Guerra. “A variedade de ocupações também chamou a atenção, assim como o perfil das empresas, desde as multinacionais japonesas que vieram no final da década de 1950 até as pequenas, algumas até familiares, que acolheram esses imigrantes.” Para os japoneses, diz ela, chamou a atenção para o número elevado de agricultores para projetos de colonização. A pesquisadora acredita que mudou na imigração depois da Segunda Guerra

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como o fim da política de subsídios, a crise do café que atingiu seu auge em 1930, caracterizando-se como a fase de entradas de portugueses e os classificados como de “outras nacionalidades” (poloneses, russos, romenos, judeus etc.), além de japoneses. O último ciclo migratório começou com a reabertura da política imigratória pelo Brasil no final da Segunda Guerra Mundial, com a aber­tura política surgida do fim do Estado Novo, e representou um volume de entradas bem inferior ao anterior, tendo imigrado sobretudo italianos, espanhóis e os classificados de “outras nacionalidades”, como vimos, da Europa Central e do Leste etc., além dos japoneses a partir dos anos de 1950. Uma das características desse contingente, diz Maria do Rosário, foi a presença de refugiados entre 1947 e 1951 e de apátridas, pessoas que haviam perdido a nacionalidade por diversas razões durante a guerra e que não podiam ou não queriam retornar aos seus países de origem. Durante o trabalho, os pesquisadores tiveram inúmeras surpresas. Como o grande número de italianos e espanhóis, assim como de japoneses, que vieram para o interior do estado a fim de trabalharem em empresas agrícolas e

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o perfil dos imigrantes japoneses, que eram jovens, solteiros, com especialização profissional que contrastava com os patrícios vindos no período anterior à guerra. Esses novos imigrantes, prossegue ela, encaixavam-se no processo de industrialização de São Paulo nos postos que exigiam qualificação. Vieram técnicos de setores novos como eletrônica, metalurgia, desenho de projetos de circuitos de ar-condicionado, por exemplo. “A contribuição que esse tipo de informação dará para o estudo da imigração no Brasil será apresentar uma face diferente e muito pouco conhecida dessas pessoas em nosso país.” O custo total do projeto foi de aproximadamente R$ 130 mil, aplicados na criação do programa para o desenvolvimento do banco de dados, constituição de equipes de digitadores, tratamento e velatura dos documentos, compra de material permanente e bibliografia nacional e internacional sobre os processos migratórios de pós-guerra, constituição de organismos internacionais como International Refugees Organization (IRO), Comitê Internacional para as Migrações Europeias (Cime) e Japan Migration and Colonization (Jamic). Segundo Maria do Rosário, ajudou na consolidação do projeto a oportunidade de duas equipes de pesquisadores ligadas ao tema: do Instituto de Pesquisas Econômicas, Políticas e Sociais de São Paulo (Idesp) e do próprio Memorial do Imigrante, que posteriormente incorporou também uma pesquisadora do Nepo/Unicamp. O professor Odair da Cruz Paiva, doutor em história social pela USP, entrou no projeto quando trabalhava no Memorial do Imigrante. Uma das suas funções, então, era a organização do acervo documental. Naquele momento, tudo referente à imigração pós-Segunda Guerra estava bastante disperso pelo acervo e sem nenhuma organização, o que inviabilizava eventuais pesquisas sobre o assunto. Ele recorda que a ideia do projeto Os novos imigrantes surgiu a partir de conversas com as professoras Célia e Maria do Rosário. “Aos poucos,


divulgação

fomos definindo o que se tornou seu maior objetivo: a organização e informatização dos dados constantes naquela documentação.” Quando da elaboração do projeto, a equipe já estava formada e com alguma discussão acumulada do que seriam os seus rumos. As funções foram divididas em dois núcleos centrais. No primeiro estavam os trabalhos de organização do acervo e a inserção dos dados no banco informatizado. “Esta tarefa ficou a cargo de uma equipe de estagiários contratados pelo Memorial do Imigrante.” A turma de pesquisadores – na qual Paiva se incluía – supervisionava e orientava o trabalho dos estagiários, ao mesmo tempo que fazia as correções no banco de dados e os levantamentos dos dados. Cada pesquisador elaborou e desenvolveu um projeto individual que era alimentado com os dados que iam sendo inseridos. “No meu caso, desenvolvi uma pesquisa sobre a inserção desses imigrantes no mercado industrial paulista nas décadas de 1940 a 1970.” Célia ficou com a imigração japonesa e Maria do Rosário com os refugiados de guerra que adentraram de 1947 a 1951 em São Paulo.

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icou sob a responsabilidade de Paiva também a concepção do banco de dados, tarefa dividida com um técnico de informática, Paulo Eduardo de Vicente. “Queríamos inicialmente a inserção das informações da documentação sobre a imigração nesse período. A maior parte dela é composta por registros individualizados com dados pessoais, profissionais e familiares dos imigrantes provenientes da Europa, Japão e Oriente Médio.” Esse propósito se manteve durante todo o projeto, mesmo porque esse era o seu objetivo principal. “O que ocorreu no transcurso dos quatro anos de duração do mesmo foi a necessidade de adaptações e mudanças na sistemática do trabalho de inserção das informações e mesmo na estrutura do banco de dados; isso se deveu em muito à multiplicidade de suportes documentais.” Paiva acredita que todo o sistema montado tem feito com que os dados revelem informações muito mais precisas sobre esse momento do processo migratório brasileiro. “No meu caso, por exemplo, agora é possível um ma-

peamento completo das empresas que receberam essa mão de obra, o perfil profissional desses trabalhadores e sua experiência pretérita na Europa.” Trata-se, acrescenta ele, de um conjunto de informações muito rico e variado. “Creio que o projeto tem potencial para auxiliar ainda muitos pesquisadores e produzir um conhecimento fundamental sobre a imigração nesse período.” No momento, os coordenadores de Os novos imigrantes querem dar o máximo de publicidade à iniciativa como forma de incentivar outros pesquisadores a trabalharem com as informações Pedido de visto para as autoridades brasileiras: fluxo de refugiados

agrupadas. A equipe, destaca Paiva, tem plena consciência de que muitos outros “olhares” são fundamentais para potencializar a infinidade de dados. De outro modo, pretende-se continuar o trabalho de análise das informações e paulatinamente levá-las a público. Este ano foi organizado o livro Migrações pós-Segunda Guerra Mundial, editado com auxilio da FAPESP. “Neste texto, algumas das questões que surgiram no exercício da pesquisa foram anotadas, particularmente com as contribuições de especialistas que trabalham com o tema das migrações no período.” De certa forma, finaliza o pesquisador, trata-se de uma documentação praticamente inédita e que tem potencial para desvendar muitas dimensões n da imigração para São Paulo. PESQUISA FAPESP 165

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John Stillwell/WPA Pool/Getty Images

> SOCIOLOGIA

Laje cheia de turista Como funcionam os tours pelas favelas cariocas


tes locais, se transformaram em atrações muito apreciadas pelos turistas estrangeiros. Seguindo a mesma lógica do turismo ‘pró-pobreza’ do resto do mundo, o da favela é vendido aos visitantes do Primeiro Mundo como o que permite o envolvimento numa ação de fundo altruísta e com um sentido de boa cidadania, sem, ao mesmo tempo, motivar aventura”, observa Bianca. Hoje, somente na Rocinha já são sete agências que atendem, em conjunto, a uma média de 3,5 mil turistas por mês, os chamados favela tours, que chegam a cobrar US$ 35 por pessoa por um passeio de três a quatro horas. “A maioria dos moradores entrevistados, porém, desconhece que os estrangeiros paga tal quantia pelo passeio e alguns reagem indignados.” Cerca de 70% dos entrevistados, aliás, afirmaram que não cobrariam para ciceronear as visitas, numa posição que poderia ser ilustrada pela frase: “É algo que se faz por amor e amor não tem preço; eu poderia levá-los para ver a Rocinha e ficaria feliz em fazer isso”.

O príncipe Charles, uma família francesa (abaixo) e os “mendigos” da favela

M.CHARGEL/AFP PHOTO

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m 1884 já era difícil ao Dicionário Oxford achar a definição precisa para a palavra slumming, que caracterizava a recente tendência vitoriana de visitar as áreas pobres das cidades, ação que, afirmava o vernáculo, podia ser feita como filantropia ou como curiosidade de conhecer a miséria do outro. Séculos mais tarde ainda causa estranheza ver estrangeiros em jipes subindo o morro para conhecer a Rocinha, após terem assistido à Cidade de Deus, ou brasileiros animados para ver de perto a favela de Dharavi, em Mumbai, iguais às da novela Caminho das Índias. “Se consumo e turismo são temas de investigação que causam controvérsia, fonte de acusações morais, o que dizer do consumo da favela turística?”, pergunta a socióloga do Cpdoc/FGV Bianca Freire-Medeiros, autora da pesquisa “Para ver os pobres: a construção da favela carioca como destino turístico”, financiada pelo CNPq, e que acaba de ser transformada no livro Gringo na laje (FGV Editora, 163 páginas, R$ 17). “Visto que o mercado não é naturalmente concebido como lugar adequado à expressão da solidariedade, fazer da pobreza uma mercadoria, uma atração turística pela qual se cobra e se paga pode ser avaliado como algo abjeto”, analisa. “Não surpreende que os que optam por consumir a favela turística se esforcem para convencer, a si e aos demais, que sua visita não é um exercício voyerístico, mas um ato ético e solidário. Infelizmente, a maioria desconhece que o pago pelo passeio é retido pelas agências de turismo e não reverte para os moradores das favelas”, explica a pesquisadora. O mais impressionante, porém, é como a favela conquistou, positivamente, o Brasil e o mundo em tão pouco tempo. Basta lembrar que, em 1996, quando Michael Jackson veio ao Brasil gravar um clipe no Morro Dona Marta, Zona Sul carioca, políticos brasileiros ficaram indignados ao ver o pop star americano sendo recebido como o “rei da favela”. “Ele agora quer virar o rei da miséria e da pobreza”, acusou, na época, o então governador do Rio Marcello Alencar. Apenas uma década depois, em 2006, outra favela, a Rocinha, viu-se transformada em um dos pontos turísticos oficiais da cidade. “A onda atual internacional de ‘favela chic’ tornou até a mais humilde mercadoria brasileira, a sandália de borracha, em um objeto de fetiche”, observa a brasilianista Lorraine Leu. Isso levou, em 2005, a socióloga Bianca, recém-doutorada, a dar início a uma investigação sobre o fenômeno da conversão inesperada da favela carioca em destino turístico, observado em quatro morros da cidade do Rio de Janeiro: Rocinha (o caso mais emblemático), Morro dos Prazeres, Morro da Babilônia e Morro da Providência. “As favelas, evitadas pelas eli-

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Marco Siqueira/AE

Essa cordialidade já foi para se tornar uma atração O pop star Michael estendida a inúmeros visitanaltamente lucrativa e dispuJackson tes, do futurista Marinetti a tada. Por outro lado, todos os incomodou operadores com quem conOrson Welles, passando por políticos ao Le Corbusier, todos felizes viversamos apontam o sucesso virar “rei do filme Cidade de Deus como sitantes informais das favelas. da favela” “Nossos informantes apontam largamente responsável pelo a Eco-92 como o marco funcrescente interesse pela favela dador da favela como destino como atração turística. O filme foi promovido mundo afora como turístico, o que não deixa de ser irônico se lembrarmos que as autoridades um testemunho sobre a vida nos ‘guegovernamentais investiram muitos estos’ cariocas”, observa a pesquisadora, forços para isolar as favelas dos olhares que lembra, no entanto, da inexistência estrangeiros, inclusive contando com de interesse dos turistas em conhecer o Exército.” Mas foi num passeio de o local da real Cidade de Deus em devolta pela floresta da Tijuca, passando trimento das vistas espetaculares da por São Conrado, que surgiu o inteRocinha. O turista “descoberto” por resse de um grupo de estrangeiros de Bianca é, em sua maioria esmagadofotografar a favela, então cercada por ra, estrangeiro e, nesse grupo, a maior canhões de um grupamento militar. parte é de europeus, mais de 60%. “É As agências viram o potencial e comum grupo heterogêneo cuja ansiedade é diferenciar-se. Eles querem se difepraram a ideia. “Foi então que a favela saiu das margens da cultura turística renciar dos turistas convencionais, dos 92

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turistas-voyeurs e, por fim, da elite carioca”, afirma a pesquisadora. Segundo Bianca, a “nova burguesia” constrói o cerne de sua identidade em oposição à “burguesia de tradição”: se esta passa suas férias nas cidades hidrominerais, a nova tem o prazer como exigência, ainda que ele venha da contemplação da miséria alheia. “É comum os turistas justificarem sua presença na favela com base tanto nos benefícios que adviriam para a localidade, quanto nos efeitos positivos daquela experiência para suas vidas”. Nas palavras de um turista americano em seu blog: “Rocinha é um ‘must-do’ no Rio, porque vai iluminar sua vida ao dar um insight único em um lugar fascinante”. “Os turistas se dizem transformados, capazes de dar valor ao que realmente importa. Ao mesmo tempo, as vantagens, os confortos e os benefícios do lar são reforçados por meio


“Os turistas gastam muito pouco durante a visita e a maioria compra apenas uma garrafa de água” da exposição à diferença e à escassez. Em um interessante paradoxo, o contato em primeira mão com aqueles a quem vários bens de consumo ainda são inacessíveis garante aos turistas seu aperfeiçoamento como consumidores.” A grande maioria, observa a autora, acredita que os tours trazem dinheiro fundamental para a comunidade. “Ao mesmo tempo, apesar de o bem-estar da localidade não ser sua motivação central, todos os agentes turísticos se definem como éticos. Acreditam que seu business tem uma ‘dimensão social’ importante na medida em que ‘aumenta a autoestima dos favelados que recebem gente do mundo todo querendo conhecê-los.” Segundo a autora, a favela não raro emerge como um território autossuficiente, portador de uma cultura própria, em que os habitantes se mantêm unidos em oposição à sociedade egoísta que os cerca, uma “comunidade” enfim. “O que eu vivi lá me fez sentir muito mais seguro dentro da favela do que do lado de fora, nas praias e nas redondezas de Copacabana. Eu andei com uma câmera fotográfica de US$ 5 mil durante o tour, coisa que jamais faria fora da favela”, confessou um entrevistado. Isso não impede, porém, o caráter terrível e invasivo do passeio, já que algumas agências, observa Bianca, encorajam, sim, uma relação de “zoológico” com a localidade, já que sem foco direcionase aos favelados, incentivando inclusive que os turistas fotografem o interior das casas, e não os aspectos sociais, culturais e políticos da favela. Fotografias - Após analisar 710 fotos

postadas em 50 fotologs a pesquisadora Palloma Menezes, do grupo de Bianca, e autora do estudo Gringos e câmeras na favela da Rocinha, descobriu que casas e moradores são de longe o principal foco das fotografias durante os tours, ainda que segundo as agências os turistas sejam dissuadidos a tê-los como elementos centrais de seu registro fotográfico. “Nunca hou-

ve tamanha reprodução e difusão de imagens de favela como há nos dias de hoje”, afirma Palloma. Isso é fonte de controvérsia na comunidade, pois, como se verá a seguir, ao mesmo tempo que a comunidade prefere que se mostrem apenas os melhores lados da favela, há quem defenda que se “fotografe a miséria, a parte mais chocante, aquela que machuca, uma lembrança da Rocinha que machuca lá na terra deles”, como disse uma moradora em entrevista. Por outro lado, se os turistas não poupam os chips das máquinas, economizam na hora de gastar com a comunidade, achando que comprando o pacote turístico já foi contribuição suficiente. “Os turistas gastam muito pouco durante a visita (a maioria compra apenas uma garrafa de água) e não há passeios agenciados por moradores, o que resulta na ausência de capitais gerados pelo turismo sendo apropriados pelos locais e reinvestidos na própria favela”, observa a pesquisadora. Segundo ela, até hoje, portanto, o turismo na Rocinha beneficia economicamente um segmento muito específico e minoritário, não promove uma distribuição efetiva de lucros e as agências de turismo raramente estabelecem qualquer diálogo com as instituições representativas da comunidade. O que há são contribuições ocasionais, a chamada “gorjeta”, o dinheiro que o turista dá por caridade ou simpatia e que marca o morador e a figura do turista como sendo alguém generoso e interessado em melhorar a vida da comunidade. No geral, no entanto, o turista é visto como rude, grosseiro, invasivo, pouco interessado na vida da comunidade, preferindo visitar o espaço como se visita um zoológico e decidido a gastar o mínimo e levar o máximo. “O turismo na favela é um pouco invasivo, sim, sabe? Porque você anda naquelas ruelas apertadas e as pessoas deixam as janelas abertas. E tem turista que não tem ‘desconfiômetro’: mete o carão dentro da casa das pessoas! Isso

é realmente desagradável. Já aconteceu com outro guia. A moradora estava cozinhando e o fogão dela era do lado da janelinha; o turista passou, meteu a mão pela janela e abriu a tampa da panela. Ela ficou uma fera. Aí bateu na mão dele!”, conta um guia. “Nos passeios em que acompanhamos, nunca deixamos de presenciar algum momento em que a vitrine se invertia e os turistas é que passavam a ser a atração dos moradores”, conta Bianca. A pesquisadora lembra como os favelados atribuem qualidades infantis aos turistas: “Eles têm a linguinha enroladinha, uma gracinha”; “adoro ver quando eles passam em dia de chuva com aquelas capinhas amarelas, tudo parecendo uns pintinhos”. Talvez seja por esse jogo de cintura que, apesar de tudo, a grande maioria dos entrevistados, 83%, vê com simpatia a presença de turistas nas favelas. “Tudo ainda envolto com um paradoxo: apesar de compreenderem que os grandes atrativos da Rocinha como destino turístico são justamente pobreza e violência, o vasto contraste entre sua realidade cotidiana e aquela dos turistas, muitos não querem que os aspectos negativos (barracos precários, lixo, desorganização do espaço, violência) sejam os predicados associados à Rocinha turística.” Quando os gringos sobem nas lajes estabelece-se a confusão. “A favela turística é uma série de idealizações: turistas idealizam os favelados, que podem ser vistos como ‘guardiões’ dos valores autênticos e do que ‘realmente importa’, mas também como ‘coitados’ e ‘miseráveis’; moradores idealizam os turistas, considerados ao mesmo tempo ‘generosos’ e ‘solidários’, mas também ‘rudes’ e ‘sem noção’; agências idealizam tanto turistas como moradores e, com base nessas idealizações, traçam seus roteiros, respondem a demandas e in­ termedeiam conflitos.” Coisas para nenhum Dicionário Oxford dar conta. n

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resenha

Ele pode falar com Deus Se na Europa igrejas viram museus, nos EUA cinemas viram igrejas Antonio Pedro Tota

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m novembro de 2004 estava pesquisando nos arquivos da Família Rockefeller e tive a oportunidade de acompanhar a campanha e a reeleição de George W. Bush. Uma forte base da propaganda era o apelo religioso de W. – forma como Maureen Dowd, a colunista do New York Times, até hoje grafa o nome do ex-presidente. Numa vinheta do Partido Republicano, transmitida por várias estações de rádio, ouvia-se a voz de Pat Robertson falando do principal motivo para votar em George Bush: “Ele” podia falar diretamente com Deus. Pat Robertson, para quem não sabe, é um pastor tele-evangelista de grande audiên­ cia nos Estados Unidos. Enquanto na Europa as igrejas estão se transformando em museus e casas de espetáculos, nos Estados Unidos os cinemas e casas de espetáculos vêm se transformando em igrejas. Pelo menos até a eleição de Barak Hussein Obama. É sobre tudo isso que o livro or­ ganizado por Carlos Eduardo Lins da Silva trata. Com introdução do falecido professor Gilberto Dupas e seis capítulos de vários autores – entre eles o próprio organizador – ficamos sabendo, por exemplo, que o título foi emprestado de Chesterton, o mordaz escritor inglês. Ficamos sabendo tam­ bém por que, nos Estados Unidos, é possível um fenômeno como Pat Robertson, mas continuamos intrigados com a eleição de Obama. A introdução de Dupas instrumentaliza teoricamente o leitor para acompanhar os ensaios esclarecedores que compõem o livro e afirma que a eleição de 2008 representa o começo de um novo capítulo da relação entre religião e política nos EUA. Carlos Eduardo é o autor de dois capítulos intitulados “Barak Obama e a pós-religiosidade

Uma nação com alma de igreja – Religiosidade e políticas públicas nos EUA Carlos Eduardo Lins da Silva (Org.) Editora Paz e Terra 288 páginas, R$ 36,00

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americana” e “Do alto da colina: religião e política na história dos Estados Unidos”. O que ficou evidente na eleição de 2008 foi que, pela primeira vez, um negro foi eleito presidente da nação mais racista que se conhece. Mas o que passou despercebido foi que, além de negro, Obama foi o primeiro presidente que não foi criado por uma família cristã nos moldes tradicionais americanos. Duas exceções que, segundo Carlos Eduardo, deixam a população branca conservadora dos Estados Unidos em constante estado de tensão. Religião e política interagiam, mas atuavam cada uma no seu nicho. Não havia exatamente um projeto de transformar crenças em políticas públicas. Isso começou realmente a mudar em 1973, quando foi aprovada a lei que garantiria o aborto como um direito fundamental da mulher. A partir daí, formou-se um poderoso lobby contra o aborto. O país ficou divido, como numa nova guerra civil: a favor e contra o aborto. A eleição de Barak Obama só acentuou a divisão. Os americanos sempre se reinventaram. Se a direita cristã foi se alojar no Partido Republicano, depois de 1973, a eleição de Obama só engrossou as fileiras dos republicanos. Em especial os batistas do sul. O terceiro capítulo, “Formação, crescimento e apogeu da direita cristã nos Estados Unidos”, de Ariel Fengerut, dá continuidade aos aspectos abordados pelo capítulo anterior. O autor lembra que a direita cristã, depois da lei de 1973, pressionou para mudar o perfil da Suprema Corte, ganhando força. Uma direita intelectualizada, na maioria composta por judeus (Saul Bellow, Paul Wolfowitz, William Kristol, entre outros) que colaboram com o governo Ronald Reagan, inaugurou a corrente dos neoconservadores. O notável é que esse grupo acaba dando uma alma teórica à direita cristã. Kristol é o criador do termo neoconservador. O principal alvo do grupo é a sociedade do bem-estar e o liberalismo. “O impacto do 11 de Setembro sobre política, religião e sociedade nos Estados Unidos” (capítulo 4), de Alessandro Shimabukuro, trata da radical mudança do projeto de Bush com os ataques. Os atentados uniram a nação americana como um novo grande despertar, segundo o próprio Bush. No capítulo 5, “A influência da religiosidade sobre as políticas públicas no governo Bush”, de Paulo José do Reis Pereira, o “direito divino” de Bush confirma a boutade de Pat Robertson. Antonio Pedro Tota é professor de história contemporânea e dos Estados Unidos na PUC-SP


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livros

A recolonização do Brasil pelas Cortes

Do formalismo estético trovadoresco

Antonio Penalves Rocha Editora Unesp 136 páginas, R$ 28,00

Segismundo Spina Ateliê Editorial 230 páginas, R$ 43,00

Ao discutir as várias interpretações que o termo “recolonização” recebeu ao longo do tempo, o autor debate o próprio sentido de uma identidade nacional nos primeiros anos de nossa independência. Para ela, o uso político desta expressão tornou-se corrente sempre que, após 1822, era necessário reagir contra o intervencionismo português e legitimar a consolidação do estado nacional brasileiro.

Neste estudo Segismundo Spina, professor emérito da USP, faz uma abordagem ampla da produção trovadoresca. A novidade é a sua visão integral sobre um movimento poético que, tendo suas formas originais na Provença, desdobrou sua manifestação às formas do trovadorismo ibérico, francês, inglês e do Minnesang alemão.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Revista Política Externa: O Islã e o mundo Vol. 18, nº 2, Set./Out./Nov. 2009 Editora Paz e Terra 242 páginas, R$ 25,00

A presente edição trimestral da revista Política Externa, que se propõe a tratar dos principais assuntos de Relações e Economia Política Internacionais sob uma perspectiva brasileira, traz como tema “O Islã e o mundo”. Diversos autores – entre eles, Rubens Ricupero e Barack Obama – deixam suas contribuições a esta questão que, desde 2001, tem dominado grande parte da agenda internacional.

Genética de microrganismos João Lúcio de Azevedo Editora UFG 536 páginas, R$ 50,00

O livro de João Lúcio de Azevedo, em sua segunda edição, relaciona os aspectos clássicos e modernos da genética de microrganismos e biologia molecular de uma multiplicidade de organismos. O trabalho ressalta alguns experimentos importantes que resultaram em descobertas sobre o desenvolvimento atual das áreas relacionadas. Editora UFG (62) 3521-1107 www.cegraf.ufg.br

Antropologia dos militares

Editora Paz e Terra (11) 3337-8399 www.politicaexterna.com.br

Celso Castro e Piero Leirner (orgs.) Editora FGV 244 páginas, R$ 34,00

Entre desalento e invenção

Este livro visa investigar os significados que o desemprego assume na vida dos indivíduos a partir de situações reais, interpretando a história de sete pessoas da Região Metropolitana de São Paulo, que narram suas diferentes experiências e expectativas na busca por um novo trabalho.

Os pioneiros no estudo antropológico dos militares brasileiros, Celso Castro e Piero Leirner, reúnem neste trabalho uma série de reflexões etnográficas acerca da hierarquia das instituições militares, suas relações internas e externas, entre outros temas afins. O livro retrata os diversos aspectos do cotidiano dos quartéis, o processo de construção da identidade militar, fornecendo um quadro de informações que contribui imensamente para a compreensão deste universo.

Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Editora FGV (21) 2559-4427 www.fgv.br/editora

Fabiana Jardim Annablume/Fapesp 238 páginas, R$ 40,00

fotos Eduardo Cesar

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

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ficção

Polinização

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le já chegou ansioso, transportado até ali pela excitação, com o barulho de suas asas ecoando pela floresta. Era abril, início da primavera. A abelha, cujos feromônios o zangão deve ter rastreado a quilômetros de distância, o aguardava rente à folhagem rasteira. Ele foi se aproximando por trás, vendo crescer diante de si o dorso arredondado, protuberante, coberto de cerdas macias, no qual o azul do céu parecia refletido. As asas da fêmea, em descanso momentâneo, eram como um véu sobre seu corpo colorido. Quando o zangão finalmente pousou sobre ela, a abelha, submissa, aceitou sem resistência os movimentos abdominais vigorosos e as estocadas do macho enlouquecido de desejo. Levou algum tempo até ele perceber que algo estava errado. Aquela fêmea era... uma planta!?! Ao se desfazer o encanto, só lhe restava sair voando à procura de outra parceira. Mesmo nessa hora, o zangão não percebeu os dois pequenos cilindros amarelos grudados em suas costas.

Piotr Markiewicz

Rodrigo Lacerda

Eu larguei o botão do disparador e abri o sorriso largo de quem conseguiu todas as imagens que precisava. Aquela era nossa primeira incursão nas florestas da Sardenha. Ainda que por lá as chamadas orquídeas prostitutas cresçam como mato, foi muita sorte flagrarmos em tão pouco tempo sua pseudocópula com o zangão. A bióloga responsável pelo trabalho até duvidou: “Você tem certeza que pegou tudo?” Tirei a máquina do tripé e mostrei para ela. Cada etapa do processo estava lá: a flor da Ophrys, imitando direitinho o formato e as cores de uma abelha de costas, o pouso do zangão, o logro sexual e, por fim, o momento em que as polínias, as duas bolsas cheias de pólen, grudaram no dorso do pobre macho ludibriado. Salomé balançou a cabeça, satisfeita. Nos próximos dois meses, ela ia precisar que eu fosse bom no meu trabalho. Começamos a recolher nosso equipamento. “A maioria das flores recebe várias espécies de insetos durante a polinização”, Salomé falou. “Mas orquídeas como a Ophrys só atraem um tipo de polinizador. Você acha justo que ela tenha o apelido de orquídea prostituta?” “A bióloga aqui é você, eu só tiro as fotos”, respondi, achando que iria agradar. Ela me olhou meio torto, e disse: “Para mim, é machismo. A Ophrys é muito menos promíscua que as outras.” “Pensando bem, eu concordo. O apelido é injusto. E sobretudo por um detalhe que você não mencionou.” “Qual?” “A realização efetiva da cópula é a única certeza com as prostitutas.” A orquídea Cryptostylis atrai o polinizador emitindo um cheiro igual ao feromônio de um tipo de vespa. O zangão dessa espécie, porém, cai no logro até o fim. Ele de fato ejacula na flor, desperdiçando seu esperma. Chegava a ser cruel a forma como

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a Cryptostylis usava o agente polinizador sem dar coisa nenhuma em troca. Já as flores da Angraecum produzem néctar em tubos longuíssimos, de modo a que somente possam alcançá-lo certas mariposas com línguas tão longas quanto. Essas pelo menos têm a recompensa da comida. As orquídeas do gênero Dracula, por sua vez, encantam mosquitos produzindo odores de fungo, carne putrefata, urina de gato e fezes. Outras orquídeas ainda imitam zangões em voo, incitando o polinizador a um combate imaginário. “Dá um pouco de pena das orquídeas que não usam polinizadores para reproduzir, não dá?” “Por quê, Salomé?” “São como mulheres destituídas de qualquer poder de atração.” “É... ou então incapazes de se entregar.” Ela me olhou, pensando em uma resposta. “De um jeito ou de outro, são obrigadas pela natureza a se bastar.” Estávamos já há um mês viajando juntos quando ouvi isso. Passaríamos mais quatro semanas fora do Brasil, pagos para mapear as estratégias de polinização das orquídeas em seus habitats naturais. Salomé era extremamente reservada, mas interessante, e com ela eu trabalhava em harmonia. Tínhamos paciência nas buscas, gostávamos do isolamento. Na ilha Celebes, por exemplo, passamos dias superando pacificamente a decepção e o desconforto, até encontrarmos a mais perturbadora das orquídeas, uma Bulbophyllum echinolabium. Quando a vi pela primeira vez, julguei estar diante de um mandarim do reino vegetal; um daqueles velhinhos chineses com duas longas barbichas caindo-lhe do queixo. No meio da flor estava seu rosto, pequeno e rosado. Mas Salomé soube me fazer enxergar as coisas de outro modo. Primeiro recomendou que eu fechasse os olhos e percebesse o cheiro forte, indefinível, com o qual a flor convocava os polinizadores. Subitamente, sem maior esforço, ele ficou muito nítido, mesmo para mim. “Agora preste atenção no labelo que sai da flor, a pequena haste cor de pele, ou vermelho-claro, entre as duas pétalas inferiores. Não parece uma cartilagem?” Sim, parecia, e Salomé soube exatamente quando a imagem se formou dentro de mim. “O labelo fica preso apenas por um pontinho. A menor brisa é suficiente para acariciá-lo, fazendo-o balançar. Viu?” Vi. E você, se fosse um inseto vendo aquilo, ficaria em ponto de bala, garanto. Era impossível não querer chegar mais perto, tocar. Mas, na estratégia reprodutiva da echinolabium, ainda faltava o elemento realmente impróprio para menores. “Repare na coluna, o centro da flor, como ela ganha um vermelho forte, cor de morango maduro.” Eu reparei. Ela se abria em dois lábios intimamente fri-

sados, de bordas quase roxas de tão intensas, desenhando-se ao redor de um ponto pequeno, mais escuro. Qualquer polinizador que se preze saberia exatamente onde penetrar. Algumas orquídeas, em troca da polinização, oferecem substâncias perfumadas. As abelhas, machos e fêmeas, usam a cera da flor para produzir os feromônios com que atraem seus parceiros. Assim como nós, humanos, também recorremos ao perfume das flores em nosso processo de sedução. Por isso estávamos numa floresta no Panamá, no sexto dia da última expedição, há 52 dias longe de casa. Eu, na barraca, deitado, matando as saudades da minha mulher. Salomé, examinando amostras de plantas. O guia que havíamos contratado, um panamenho com cara de inca, fumando um cigarro mais fedorento que uma orquídea Dracula no cio. Mais cedo naquele dia, Salomé havia dito uma frase estranha de se ouvir de uma mulher, estando sozinho com ela no meio da floresta: “Alimentação e reprodução, não necessariamente nessa ordem, são as duas únicas coisas na qual eu penso o tempo todo, todos os dias da minha vida.” Na manhã seguinte, finalmente encontramos o espécime que faltava. As pétalas amarelo-canário da Coryanthes panamenha exalavam um cheiro forte de especiarias adocicadas, atraindo da mata zangões do tipo Euglossina. Pareciam feitas de um material borrachoso, brilhante e envernizado, que se redobrava sobre si mesmo. Em suas pregas escorregadias, os zangões competiam por espaço e pelo direito de raspar maior quantidade das fragrâncias na superfície cerosa da flor. Tais aromas, combinados a outros ingredientes, iriam ser espalhados pelos machos em seus próprios corpos, numa estratégia infalível para conquistar as fêmeas da espécie. Mas havia um preço a pagar. O labelo da Coryanthes, em forma de balde e cheio do líquido viscoso presente nas pétalas, estava pronto para receber qualquer zangão que, menos prudente, viesse a escorregar nas suas paredes. Logo aconteceu. Ao cair na piscina melada, um dos insetos teve as asas temporariamente inutilizadas. Para não morrer afogado, agora precisava escalar de volta, passando por uma passagem estreita, até a parte posterior da Coryanthes. Atordoado e ensopado, ele se espremeu nesse túnel, passando embaixo de uma estrutura que lhe pregou nas costas um par de polínias. Nove meses depois de voltarmos do Panamá, Salomé teve um filho com cara de inca. Rodrigo Lacerda é escritor, trêz vezes vencedor do Prêmio Jabuti, tendo publicado, entre outros, os romances Outra vida (Alfaguara, 2009), O fazedor de velhos (Cosac Naify, 2008) e Vista do Rio (Cosac Naify, 2004). PESQUISA FAPESP 165

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