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Nacional de Desenvolvimento Tecnol6glco
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NSF/NOAA
imagem do mês
Erupção
ancestral Imagens registradas pelo robô submarino Jason, da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), dos Estados Unidos, flagraram a erupção do vulcão suboceânico West Mata, situado a 1,2 mil metros de profundidade nas proximidades das ilhas de Samoa, Fiji e Tonga, no Pacífico. Amostras recolhidas pelo robô indicam que o vulcão produziu um tipo de lava entre os mais quentes já observados, encontrado em vulcões extintos há mais de um milhão de anos. “A composição primitiva e atípica da lava terá muito a nos dizer sobre a formação da crosta terrestre”, disse Barbara Ransom, diretora da Divisão de Ciências Oceânicas da National Science Foundation, que patrocinou a pesquisa. O robô pôde aproximar-se a poucos metros da erupção porque a violência da explosão do vulcão é contida pela pressão da água – e a lava fica sólida quase instantaneamente.
PESQUISA FAPESP 167
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JANEIRO 2010
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CAPA
16 Em conjunto,
especialistas
Códigos de barras de
do Pará 28 MUDANÇAS
CLIMÁTICAS
I
um acordo em Copenhague foi adiada
ENTREVISTA
para a próxima conferência do clima, no
10 O pesquisador
Carlos Nobre avalia a COP-15,
DNA identificam novas espécies e contribuem
A esperança de obter
animais da Amazônia
para estudos de ecologia e evolução
Persistência da pobreza amplia incertezas das pesquisas de medicamentos e tratamentos contra
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CIÊNCIA
ANATOMIA
GEOFíSICA
Dieta pobre em proteína Microrganismos
reduz o tamanho e o número de neurônios do
FAPESP e Vale
podem explicar a
sistema digestivo
o programa do clima da
celebram acordo para
origem de eletricidade
FAPESP e delineia o
investir R$ 40 milhões em projetos de
terrenos contaminados
contribuições científicas, reflete sobre
grande laboratório de experiências ambientais em construção
no
32 COOPERAÇÃO
encontrada
em
conhecimento
SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS
GENÉTICA
Análise de fragmentos das barbatanas consegue mapear a
vários campos do
estrutura genética do tubarão-martelo
estado de São Paulo
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SAÚDE PÚBLICA
tuberculose
México, em dezembro
apresenta suas novas
48
36 BIODIVERSIÓADE
E TECNOLÓGICA
e de São Paulo investigam toxinas de
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POLíTICA CIENTíFICA
CAPA
7 CARTA DA EDITORA
8 MEMÓRIA
22 ESTRATÉGIAS
40 LABORATÓRIO
60 SCIELO NOTíCIAS
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EDITORIAS
> POLíTICA
C&T
> CIÊNCIA
> TECNOLOGIA
> HUMANIDADES
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
asti)
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56 BOTÂNICA
76
72 ENGENHARIA
Reedição de livro de 1949 resgata
Pesquisadores
orquídeas e os espaços
Unicamp desenvolvem
que ocupavam
eguipamento para facilitar a obtenção do
da
fármaco contra Aids pode facilitar o tratamento
HUMANIDADES
de. 80 CIÊNCIA
pOlíTICA
Corrupção, uma prática velha como
para
a humanidade
crianças e idosos
etanol celulósico
HOMENAGEM
Pioneiro na física,
85
78 ENGENHARIA
Marcello Damy
74 BIOTECNOlOGIA
instalou o primeiro reator nuclear no país
Nanopartículas envolvem substâncias ativas de protetor
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FARMÁCIA
Nová formulação
AGRíCOLA
solar desenvolvido em parceria entre
TECNOLOGIA
LITERATURA
BIOMÉDICA
Projeto resgata
Látex é matéria-prima
literatura
para controle de
expressão germânica
obesidade e outros produtos usados por
90
nacional de
HISTÓRIA
Arquivo Público
diabéticos
paulista cria mega site com 360 mil
UFRGS e Biolab 66 ENERGIA
documentos
Casa que funciona com eletricidade produzida pelos raios solares participará de competição internacional
CAPA
................................... 62 LINHA DE PRODUÇÃO
94 RESENHA
95 LIVROS
96 FiCÇÃO
98 CLASSIFICADOS
MAYUMI
OKUYAMA
FOTO CRIANÇAS DA COMUNIDADE JURITI, OESTE DO PARÁ/ACERVO
DE GALlLEIA, EM INSTITUTO BUTANTAN
CARTAS
PeiqeTecnüisa
cartas@fapesp.br
FAPESP
Asma As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. • Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. • Para anunciar Ligue para: (11)3838-4008 • Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br ou ligue: (11)3038-1434 Mande um fax: (11)3038-1418
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6 • JANEIRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 167
Acabei de ler a reportagem sobre a asma ("Variações sobre um tema sufocante", edição 165). O assunto me interessa bastante, visto ser asmática desde que nasci, tendo hoje 46 anos. Vivo fora do Brasil desde os 24 anos, num país arquipelágico da África chamado Cabo Verde. Antes de sair do Brasil tinha a asma clássica e grave: muitos internamentos, dependência de medicamentos, dificuldade de brincar e ir às aulas, problemas para dormir. Entretanto, depois que cheguei a Cabo Verde, com exceção dos dois primeiros anos, já não tomo medicamentos, resolvo crises esporádicas - duas vezes por ano - com ginástica respiratória. Se essas crises acontecem à noite e estou com preguiça de fazer a ginástica respiratória por 10 minutos, tomo uma colher de sopa de salbutamol e basta. A minha filha mais nova também é asmática, doença que apareceu nela aos 2,5 anos. Mas desde que ela ficou maior controlamos crises com ginástica respiratória ou atuando na prevenção quando a doença dá os primeiros sinais. Não consigo entender que não se tenha descoberto, até aqui, uma cura para essa doença. MARILENE PEREIRA Cabo Verde
Vídeos no site Parabéns pelo novo espaço para vídeos de ciência no site da revista. JULIO o. HERRMANN Curitiba, PR
Henrique Dumont Villares Venho solicitar uma correção da informação que consta na reportagem "Pauliceia desvairada e estrangeira" (edição 165). Refiro-me ao seguinte parágrafo: "Henrique Dumont Villares, que já tentara abocanhar propinas de Henry Ford em seu empreendimento de extração de borracha da Fordlândia, na Amazônia, estava mais uma
vez envolvido numa intermediação nebulosa". No texto encaminhado à revista, base da reportagem, há referência a Henrique Dumont Villares vereador de São Paulo, empresário e responsável pela abertura do loteamento industrial Iaguaré às margens do rio Pinheiros. Ele foi o contato entre Nelson Rockefeller, Robert Moses e a prefeitura de São Paulo, como pode ser verificado pela pesquisa em arquivos que realizei, amplamente referenciada no artigo. O empresário a que se refere o autor da reportagem é Jorge Dumont Villares, que não pesquisei e não tem relação com os empreendimentos de São Paulo. Esse empresário esteve envolvido com outros empreendimentos na Amazônia, conforme pode ser verificado no trecho extraído de Pesquisa FAPESP nv 158: "Não faltou na história o típico espertalhão: Jorge Dumont Villares, sobrinho de Alberto Santos Dumont. Segundo Grandin, ciente do interesse potencial dos americanos na região, Villares teria se aliado a funcionários americanos, incluindo-se um cônsul e um membro da comissão científica enviada em 1923 ao Brasil, para garantir junto ao governo do Pará a opção de compra de uma área de 2,5 milhões de acres no vale do Tapajós. Quando Ford enviou uma equipe para avaliar o melhor lugar a instalar sua plantação de borracha, conta o historiador, mostraram a eles apenas a área sob controle de Villares, que lucrou na negociata US$ 125 mil em terras que as autoridades paraenses pretendiam doar para a empresa americana". A observação equivocada induz a sério erro de interpretação sobre o papel dos empresários no período do pós-guerra, que atuam em outras redes sociais e inserção política diferente daquele empresário do início do século XX. MARIA CRISTINA DA SILVA LEME FAU/USP São Paulo, SP
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@lapesp.br. pelo lax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
Celso Lafer
Presidente
Um clima atravessado por incertezas
josé arana varela
vice-Presidente
Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano
Mariluce Moura - Diretora de Redação
Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani
U
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
Diretor Científico
Joaquim J. de Camargo Engler
Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de dados), Daniel das Neves, Danielle Maciel, Gonçalo Júnior, Laurabeatriz, Luiz Carlos de Oliveira Cecilio, Marcos Garuti, Reinaldo José Lopes e Yuri Vasconcelos
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP
É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização
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Secretaria do ensino superior Governo do estado de São Paulo
instituto verificador de circulação
ma certa decepção e alguma inquietação em relação ao futuro do ambiente neste nosso precioso planeta Terra arremataram o ano de 2009. E observe-se que não ficaram restritas às hostes dos ambientalistas militantes nem contidas nas fronteiras da comunidade científica internacional ou dos grupos de pressão política. Disseminados de múltiplas formas pela mídia, ou melhor, por praticamente todas as mídias do mundo inteiro, esses sentimentos espalharam-se pela sociedade e embrenharam-se por muitos segmentos sociais simplesmente interessados e preo cupados com a sobrevivência minimamente saudável de seu velho hábitat dentro do vasto Universo. Tudo culpa, claro, do muito mais que relativo fracasso político da Conferência de Copenhague, arrastada melancolicamente até 19 de dezembro, na tentativa meio desesperada de vários líderes mundiais para chegar a um acordo consistente sobre as mudanças climáticas globais que, afinal, não veio à luz. *** Mas esta primeira edição de 2010 de Pesquisa FAPESP não dá espaço ao meio ambiente apenas para relatar os descaminhos da procura de um acordo internacional pósKyoto. Na verdade, podemos dizer que ele está em cena de uma forma bem diferente, positiva, na reportagem de capa elaborada pelo editor especial Carlos Fioravanti sobre um amplo programa de trabalho que há quatro anos vem aproximando pesquisadores do Instituto Butantan e de centros científicos do Pará numa investigação que envolve da química de toxinas de cobras, escorpiões e outros bichos locais ao estudo da biodiversidade amazônica, passando pela história da saúde e outros processos sociais vinculados ao ambiente cultural da região. A Amazônia, sempre objeto de tão intensas preocupações quando se discute o aquecimento do planeta, entra em cena no texto sensível de Fioravanti, a partir da página 16, com a riqueza e os traços
específicos de uma biodiversidade que, bem auscultada, parece capaz de oferecer respostas novas e importantes a algumas indagações no campo da toxinologia e da farmacologia. Vale a pena conferir. O ambiente sob outra vertente: destaco a reportagem do editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, sobre uma casa que funciona exclusivamente com energia gerada pelos raios solares, a Casa Solar Flex, projetada e construída por um consórcio de seis universidades brasileiras que, em junho próximo, participará em Madri de uma competição internacional desse gênero de projetos saudáveis para o planeta (página 66). Para fechar de forma circular, volto à Conferência de Copenhague, objeto de reportagem do editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques (página 28), e a uma bela análise da pesquisa em mudanças climáticas globais que emerge da entrevista pingue-pongue de um dos mais respeitados cientistas brasileiros dessa área, além de personagem que com certeza vale a pena conhecer: Carlos Nobre (página 10). Desejo a todos os leitores um 2010 fascinante, marcado por descobertas – científicas ou não, vitais sempre. PESQUISA FAPESP 167
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miguel boyayan
Diretor Presidente
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memória
fotos Fordham University
Hess posa em um balão (esq. e abaixo) em 1912, ano de sua descoberta
Enigmas do espaço Há 100 anos começavam as pesquisas sobre raios cósmicos Neldson Marcolin
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e simples curiosidade científica, os raios cósmicos têm hoje um extraordinário status dentro das pesquisas físicas. Eles podem ajudar a saber quais são os mecanismos de produção e aceleração das partículas mais energéticas até hoje na natureza, além de contribuir para a nossa compreensão de processos raros, tais como as flutuações quânticas do espaçotempo. O maior laboratório a céu aberto do mundo, o Observatório Pierre Auger, localizado nos pampas argentinos, foi concebido para tentar responder às perguntas que foram surgindo sobre o fenômeno. No início do século XX, no entanto, o que se desejava era apenas medir a radiação natural do ambiente. Sabia-se que o subsolo tem elementos químicos que emitem radiação e acreditava-se que essa força diminui quando nos afastamos da superfície. O físico alemão Theodor Wulf fez uma primeira experiência em 1910: levou um eletroscópio (detector de radiação) à torre Eiffel,
Unicamp
César Lattes expondo chapa em Chacaltaya (acima) e Pierre Auger (esq.)
CERN
em 1935, e notou que todos disparavam juntos. “Para Auger, havia partículas com uma energia extraordinária entrando na atmosfera, se chocando com outras partículas e provocando uma chuva de partículas secundárias.” O francês chamou o fenômeno de chuveiros aéreos extensos. Em 1939, os brasileiros Marcello Damy, Paulus Pompeia e o russo Gleb Wataghin detectaram no túnel da avenida 9 de Julho, em São Paulo, os chuveiros
penetrantes – partículas capazes de atravessar o solo (leia reportagem sobre Damy na página 60). A maior repercussão desses trabalhos no Brasil ocorreu em 1947, quando César Lattes e o italiano Giuseppe Occhialini detectaram o méson-pi nos Pireneus, em equipe liderada pelo inglês Cecil Powell. Lattes confirmou a existência dessa partícula na montanha Chacaltaya, na Bolívia. O brasileiro soube usar o prestígio
The New York Times
300 metros acima do solo. Descobriu que a radiação era menos intensa no alto do que no chão, confirmando o que se pensava na época. O físico austríaco Victor Hess decidiu tentar algo mais radical e fez 10 voos levando um eletroscópio e uma tripulação de três homens. Em um deles, no dia 7 de agosto de 1912, constatou que a 5 mil metros de altura o nível de radiação era 16 vezes maior que no solo – quanto mais alto, menos atmosfera há para nos blindar da radiação. “Os resultados dessas observações parecem ser mais bem explicados por uma radiação de grande poder penetrante entrando na nossa atmosfera”, escreveu Hess. Em 1936 ele ganhou o Nobel pela descoberta. “O grande mérito de Hess foi ter a audácia de interpretar aquele fenômeno corretamente”, diz Carlos Escobar, físico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos líderes do consórcio internacional de 19 países que gere o projeto Auger. Antes do reconhecimento a Hess, houve uma discussão sobre a natureza dos raios cósmicos que chegou à primeira página do New York Times. Robert Millikan achava que eles eram uma forma de radiação eletromagnética, como os raios gama. Mas Arthur Compton demonstrou que eram partículas carregadas e encerrou o debate, em 1932. As experiências do francês Pierre Auger foram o divisor de águas da física de radiação cósmica, segundo Escobar. Ele espalhou detectores distantes uns dos outros no Pic du Midi, nos Alpes,
O debate entre Millikan e Compton chegou ao Times, em 1932
adquirido e foi um dos criadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio, e de laboratórios na Universidade de São Paulo, Unicamp e Chacaltaya. Os estudos sobre radiação cósmica avançaram até surgir o Observatório Pierre Auger, em 2005. O objetivo do projeto é investigar as partículas cósmicas de energia altíssima – 1020 elétrons-volt, o 1 seguido de 20 zeros –, muito mais raras de serem detectadas do que as de baixa energia. Estas últimas atingem a Terra aos bilhões a cada segundo. Os pesquisadores do Auger já descobriram em 2007 que as partículas de alta energia vêm de galáxias vizinhas à Via Láctea (leia Pesquisa FAPESP nº 142). Agora, entre outras dúvidas, é preciso saber que tipo de partículas elas são exatamente.
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entrevista
Carlos Nobre
Um modelo ambiental do Sul São Paulo pode se tornar um grande laboratório para o avanço do conhecimento sobre mudanças climáticas globais | Mariluce Moura
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arlos Nobre, 58 anos, um dos mais respeitados e premiados estudiosos brasileiros do clima e das mudanças climáticas globais, chegara de uma estada de seis dias em Copenhague, Dinamarca, na manhã daquele domingo, 20 de dezembro, depois de ver até o final dissiparem-se todas as esperanças de assinatura de um tratado internacional consistente de prevenção e combate aos efeitos do aquecimento do planeta. À tarde, em sua agradável casa num condomínio em São José dos Campos, a 97 quilômetros da capital paulista, na companhia atenta e carinhosa de Ana Amélia Costa, com quem fará em julho 25 anos de casado, mantendo a alguma distância seus oito cachorros e nove gatos, ele estava certamente cansado, depois da travessia transoceânica. Mas foi num clima de simpático acolhimento, com a tranquilidade e a notável capacidade expressiva e argumentativa de sempre, que ele falou durante quase duas horas para a equipe de Pesquisa FAPESP. Os resultados da COP-15 foram objeto, claro, de suas considerações, mas Nobre foi muito além disso: conseguiu delinear, numa espécie de antevisão, o grande laboratório de experiências ambientais avançadas que vê em começo de montagem no estado de São Paulo e procurou mostrar por que o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, do qual é o coordenador-geral, tem enorme potencial para ampliar a já razoável influência do Brasil no debate científico e nas decisões políticas globais relativas às mudanças climáticas. Abordou seu percurso de pesquisador e duas novas contribuições científicas, inéditas ainda – uma que traz novos elementos
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para o aprofundamento de sua teoria de savanização da Floresta Amazônica e outra voltada à compreensão da persistência de uma larga zona de transição entre a floresta e o Cerrado na região –, cujos artigos científicos estão em fase de análise em publicações internacionais. O trabalho de Nobre, como se sabe, é fundamental para uma melhor compreensão das relações entre o clima, a floresta tropical, os impactos do desmatamento e o aquecimento global na Amazônia. Engenheiro eletrônico formado pelo Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), doutor na área de meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e, a rigor, um especialista em modelagem matemática de cenários climáticos, com um pós-doc nesse campo na Universidade de Maryland, Nobre acumula muitos prêmios decorrentes de seu trabalho científico, entre os quais podemse incluir, como membro do IPCC que é, o Nobel da Paz de 2008 e o mais recente recebido este ano, o WWF-Brasil Personalidade Ambiental. São vitórias que parecem justas para quem sempre se inclinou com determinação para os caminhos mais desafiadores que foram lhe surgindo pela vida afora. E são, sem dúvida, extraordinariamente gratificantes para o descendente de imigrantes italianos, por parte de mãe, que se fixaram inicialmente em Salto, São Paulo, e de migrantes baianos que se estabeleceram em Conquista, Triângulo Mineiro. Ou para o filho mais velho de Wilson Nobre, um jogador profissional de futebol, ex-operário em São Paulo, que morreu cedo, deixando ao então jovem estudante de engenharia eletrônica, ex-aluno de escola pública da periferia de São Paulo, a tarefa de levar adiante a manutenção da família e a educação dos irmãos.
n No olhar do cientista, a Conferência de Copenhague foi um completo fracasso? — Obviamente não foi um sucesso. Agora, “um completo fracasso” eu não diria, porque todos ali reconheceram o papel da ciência. Os vários discursos, os vários textos, colocaram o papel da ciência, destacaram o papel do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] e destacaram que números e metas de qualquer acordo serão revisados periodicamente em função do que a ciência indicar. Então, hoje a ciência está estabelecida no arcabouço dessas negociações e dá a palavra final sobre o que é necessário fazer em termos de metas e quanto aos riscos de a temperatura subir. Agora, isso é quase tudo, pelo menos na visão do cientista, que deu para salvar. A urgência que a ciência coloca para o problema não foi levada devidamente em consideração, porque senão todos esses anos de negociação já teriam levado a alguma decisão muito mais abrangente. n Mas houve algum espaço para o debate
científico no meio da conferência? — Não, as COPs não são espaços onde se discute ciência, e qualquer assunto sobre o qual pairem muitas dúvidas científicas é retirado. Por exemplo, entrar ou não com medidas de mitigação do tipo captura e armazenamento geológico de carbono. Como existe muita incerteza científica sobre isso, ainda que seja uma técnica muito estudada e com algum potencial, ela chega a ser sugerida, mas não entra. Mas, simbolicamente falando, o fato de todos os países concordarem que devem fazer o esforço necessário para que a temperatura não suba mais do que 2 graus Celsius é um feito devido à ciência, assim como o fato de realisticamente se começar
a pensar, ao se observar a velocidade com que o nível do mar está subindo e as projeções do que deve subir neste século e no próximo, que 2 graus é muito. Talvez seja muito difícil aquecer só 1,5 grau, mas é possível que todos os esforços tenham que ir na direção de não deixar a composição da atmosfera mudar muito mais em relação a hoje. n Mas, apesar do suporte todo dos dados da ciência, há um
limite para sua influência sobre as decisões diplomáticas, as decisões políticas, a superação dos impasses provocados por interesses econômicos divergentes. — Existe, sim, um limite da própria ciência. A ciência é e sempre será limitada, mas ela vai avançando e avançou muito rapidamente nos últimos anos. A preocupação dos cientistas é que, se formos esperar muito tempo até que a ciência tenha uma certeza absoluta ou, dito de outra maneira, se só se acreditar no que se vê e não no que se projeta para o futuro – em outras palavras, estamos vendo o gelo flutuando sobre o Ártico desaparecer –, se formos esperar que ela faça não mais o prognóstico, mas o diagnóstico no sistema climático, será talvez muito tarde. E para projetar o futuro a ciência sempre será intrinsecamente limitada. O sistema climático é muito complexo e, por princípio, é impossível prever tudo que pode acontecer porque são infinitas trajetórias possíveis. O que a ciência faz muito bem é conseguir saber o que está acontecendo, por isso o IPCC disse em 2007 que o aquecimento é inequívoco, e hoje é ainda mais. A intenção de atuar, agir em função de um cenário que não é 100% certo, tem que ser uma decisão política, econômica, diplomática. Os exemplos mostram que a incerteza vai nas duas direções: muito pouco tempo atrás, projetava-se que o gelo ártico poderia desaparecer no verão do hemisfério Norte em torno do final do século e projetava-se também que para isso a temperatura precisava subir muitos graus, 3 ou 4 graus. Hoje todas as projeções da glaciologia indicam que, com 2 graus, não há mais como impedir que aquele gelo desapareça. A realidade se mostrou muito mais rápida, então a diplomacia, a política e a economia têm que ficar do lado mais seguro, sem imaginar que a incerteza sempre penderá para o lado mais tranquilo.
fotos eduardo cesar
n A distância, tivemos a impressão de que a discussão sobre
as incertezas das projeções do IPCC ganhou em Copenhague um espaço inesperado. Talvez por conta da invasão dos hackers naquele centro científico da East Anglia e o consequente vazamento dos e-mails de Phil Jones em novembro [ver página 31] e, depois, pelo posicionamento de alguns cientistas como Joanne Simpson, Ivar Giaever, Prêmio Nobel de 1973, Kiminori Itoh, enfim, gente séria da própria área científica que teria dado chão para os céticos militantes. — Nenhum desses nomes é de céticos realmente, no sentido de negacionista. Na verdade, que seja respeitado cientificamente, acho que só existe um cético no mundo, que é o professor Richard Lindzen, do MIT. Os outros são pessoas que colocam questões da incerteza, da dificuldade de se prever como os extremos meteorológicos vão se comportar no futuro. n Esses cientistas não dizem “o planeta não está aquecendo”?
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— Não, Joanne Simpson e outros acham que a ciência precisa amadurecer muito para termos capacidade de prever o que o aquecimento global vai fazer, por exemplo, na questão dos fenômenos meteorológicos extremos. Quem esteve em Copenhague percebeu que nos primeiros dias da conferência ainda havia um rescaldo da discussão dos hackers e dos e-mails pirateados, mas no fim já não estava mais presente com força. É lógico que os negacionistas devem estar comemorando, porque quanto mais tempo continuar a inação, mais se estará no território deles, que acham que não se precisa fazer nada. Mas é interessante ver como mesmo alguns céticos têm um olhar diferente. Por exemplo, Lindzen, um físico muito bom, sabe que o planeta está aquecendo e que injetando gases vai aquecer mais. Só que ele acha que esse aquecimento é pequeno e que mesmo dobrando a quantidade de gás na atmosfera continuará pequeno, menor do que a média das projeções do IPCC. E, mais do que isso, ele tem um posicionamento filosófico de que isso não é necessariamente ruim, isto é, de que o planeta mais quente é melhor. Mas isso equivale a ignorar os enormes impactos que as mudanças climáticas podem trazer. Quanto aos e-mails pirateados do Phil Jones, eles terão que ser devidamente esclarecidos. Eu o conheço pessoalmente há mais de 15 anos, e tenho certeza de que, como é comum entre pessoas que trocam e-mails, ele usou com certa informalidade uma palavra em inglês, trick, que é, traduzida para o português, “jeitinho”, para se referir ao que fizera com determinados números. Pode também ser engano, mas falar “eu dei um jeitinho” seria talvez uma maneira de dizer em português que se resolveu um problema numa análise de dados, sem se confundir isso com algum tipo de fraude. E, bem, há milhares de trabalhos científicos publicados analisando as séries históricas de dados climáticos, então não há a menor possibilidade de se questionar que o planeta está aquecendo. Acho que esse assunto perdeu um pouco a proeminência, mas há uma série de ações, há várias academias de ciência que estão fazendo uma investigação independente nos e-mails, assim como o IPCC e a Universidade de East Anglia. As instituições na Inglaterra têm uma atitude que acho muito correta de afastar imediatamente qualquer pessoa da posição que ocupa se sobre ela há qualquer suspeita. E Phil Jones está afastado temporariamente da posicão de diretor do Climate Research Unit daquela universidade até que essa in12
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A única frase que ficou de Copenhague foi que não se pode deixar a temperatura subir acima de 2 graus vestigação se conclua. Para resumir, acho que cientistascomo a Joanne Simpson, que questiona alguns aspectos em que a ciência precisa avançar, são importantes justamente para que a ciência avance. E, até onde eu sei, nenhum dos nomes que você citou são de pessoas ligadas aos lobbies de petróleo e carvão. A dúvida é se as visões dessas pessoas não terminaram jogando um pouquinho de água no moinho desses lobbies. — Acho que não. Quem teria o maior interesse em pôr qualquer dúvida em toda essa questão? A China. Mas esse é o país em que, já há vários anos, o aquecimento global é percebido como capaz de trazer uma dificuldade enorme para o desenvolvimento. Existem estudos da ciência chinesa mostrando que o efeito do aquecimento já está presente: ondas de calor, secas, chuvas, inundações, perturbações na agricultura... Essa questão não se coloca mais para os países que contam em porcentagem de população. E é por isso que a única frase que ficou de Copenhague é que não se pode deixar a temperatura subir acima de 2 graus (e os países da África e as pequenas ilhas em conjunto querem 1,5 grau que, em alguns lugares semiáridos, significa 2,5 graus, 3 graus, o que é uma perturbação muito grande porque modifica os recursos hídricos, tornando-os muito mais escassos, produz secas mais intensas etc). n
Hugh Lacey, filósofo da ciência, disse hoje em artigo na Folha de S. Paulo que só a própria ciência pode levar à redução das incertezas presentes nas investigações das mudanças climáticas. As linhas de pesquisa em curso no Brasil, dentro do pron
grama do clima da FAPESP ou fora dele, vão na direção de reduzir tais incertezas? — Essa é uma das principais ênfases dessas linhas de pesquisa. Elas têm três eixos: primeiro, estudar as mudanças climáticas e seus impactos em todos os sistemas. Outra é o enfoque tecnológico: o que o Brasil tem que fazer para reduzir as emissões? O terceiro eixo é o da redução das incertezas nas projeções: são os modelos do sistema climático global. No programa FAPESP temos uma linha muito forte de financiamento para desenvolver, pela primeira vez, um modelo autenticamente brasileiro do sistema climático global. Nele, partindose de experiências existentes em todo o mundo, porque não é preciso reinventar a roda, se vai colocar o melhor do nosso conhecimento, reunir todos os componentes, todos os elementos – oceano, atmosfera, vegetação, o ciclo de carbono, as queimadas, as perturbações mais características do ambiente brasileiro que conhecemos bem –, para criar esse modelo próprio. Estamos adquirindo o ferramental, supercomputadores para permitir estabelecer cenários por décadas e séculos (já em fase de licitação), em função do conhecimento que temos aqui. E será uma contribuição à ciência mundial. Traremos coisas típicas da América do Sul, incluiremos as variações do clima que conhecemos bem, dispondo de uma ferramenta que nos dará bastante autonomia para fazermos quantos cenários julgarmos importante e aprendendo sempre mais e mais com isso. Esse ferramental é um elemento que nos colocará, talvez em dois ou três anos, no mesmo patamar dos países desenvolvidos. O esforço para reduzir incertezas é, na verdade, mundial. E nós já expandimos o esforço brasileiro para que ele possa ser, na verdade, o esforço de modelagem de três países, ou seja, do Brasil com África do Sul e a Índia, talvez Argentina e Chile também. Eu diria que é quase um modelo “do Sul” . E é bom que seja um esforço compartilhado, porque só quando somamos a comunidade científica que trabalha em modelagem nesses países começamos a chegar perto dos números mínimos necessários para tal empreendimento. Qualquer centro nos EUA, Europa, Japão tem no mínimo 100, 120 doutores nessa atividade de modelagem, e nós, juntos, temos menos de 150. n O programa FAPESP do clima foi lançado
em 2008 e agora estão em curso dentro dele 10 projetos. Isso está de bom tamanho? — Foi lançado em agosto de 2008, na primeira chamada selecionou 10 propostas que estão em andamento e uma segun-
da parte da primeira chamada voltou-se exatamente para um consórcio capaz de desenvolver um modelo brasileiro matemático de sistema climático global. Essa proposta está quase em fase final de análise. Como a primeira chamada acabou trazendo um grande número de excelentes propostas, a Fapesp tomou a decisão de, em vez de fazer uma nova chamada em 2009, revisar os projetos que foram muito bem avaliados mas não conseguiram passar na primeira fase. Imagino que disso surgirão mais 4, 5 ou 6 propostas aprovadas e em 2010 podemos ter o que considero o primeiro pacote, estruturado em torno de 15 a 17 propostas. A previsão inicial era que a FAPESP investisse, em 10 anos, R$ 100 milhões no programa, não? — Um pouco mais do que isso. A FAPESP se comprometeu com uma média de R$ 12 milhões por ano em 10 anos e conseguiu uma parceria com o governo federal, que não é exatamente 50%-50%, mas é muito boa, até porque os recursos federais vêm para um componente importantíssimo do programa que são as bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado para capacitar uma nova geração de pesquisadores. Quer dizer, daqui a cinco, seis anos, vamos ter só desses primeiros projetos uns 50 novos doutores. Em modelagem do sistema climático, especificamente, o Brasil inteiro tem hoje entre 40 e 50 doutores, a maior parte no estado de São Paulo. E se o país quiser ter plena autonomia, precisará em 10 anos formar mais 100 doutores nesse campo e ter emprego para todos eles. De uma maneira mais geral, a conta que podemos fazer é a seguinte: se daqui a 10 anos a FAPESP tiver uma carteira de 20 projetos, tendo conseguido manter a cada ano 15 projetos em andamento, teremos formado uns 200 doutores. Só o seu programa terá então multiplicado por quatro o número de pesquisadores existentes hoje em todas as subáreas ligadas a mudanças climáticas. Como há programas também do governo federal, a Rede Clima, em 10 anos o Brasil poderá ter algumas centenas de doutores – e espero que as instituições possam abrigar uma grande parte deles e o setor privado outra parte. n
pactos das mudanças climáticas projetadas na agricultura, nas zonas costeiras, na biodiversidade, na energia, nos recursos hídricos, nas cidades... O foco é desenvolver modelos, mas aplicá-los também. E quem sabe – isso já é um pouco de otimismo de minha parte – possamos até compartilhar o desenvolvimento tecnológico. Porque o nó górdio de toda essa questão de acordo sobre mudanças climáticas é a questão tecnológica da mitigação. A grande questão que não avança, e não avançou em Copenhague, é uma visão excessivamente nacionalista da tecnologia que os países mantêm. Quer dizer, ninguém compartilha desenvolvimento tecnológico, todos querem vender – assumindo que os países que têm capacidade de inovar tecnologia são os desenvolvidos e que essa é a mola propulsora do desenvolvimento econômico. Então, talvez em nossos países, com histórias parecidas, possamos quebrar alguns paradigmas e começar a desenvolver projetos tecnológicos conjuntos para a redução das emissões. Quem esteve em Copenhague percebeu que enquanto EUA e China não se acertarem na questão da tecnologia será difícil imaginar um acordo abrangente. n É uma falsa impressão ou, de fato, grupos
de outros países vêm acumulando muito mais conhecimento sobre a Amazônia do que os grupos brasileiros? — As bases de pesquisa, na verdade, sempre foram de instituições brasileiras, e parcerias com pesquisadores de outros países, principalmente Estados Unidos, permitiram projetos conjuntos, o maior dos quais é o experimento do LBA [Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia]. Mas de fato, quando olhamos os últimos 20, 30 anos, vamos notar uma predominância de artigos científicos cujo primeiro autor não é brasileiro. E isso reflete o fato de que os países desenvolvidos que colocam muitos recursos na pesquisa científica têm uma visão global da ciên-
cia. Ao longo dos últimos 10 anos, porém, estabelecemos uma série de colaborações científicas e, com isso, conseguimos iniciar o desenvolvimento de uma comunidade aqui no Brasil que faz pesquisa de padrão internacional sobre a Amazônia, mas principalmente no sudeste do país. Como alterar isso? Fortalecendo as instituições científicas da Amazônia, processo que felizmente já começa a ter resultados expressivos. Há uma limitação a vencer, que é o modelo sequencial de desenvolvimento científico e tecnológico, pelo qual só depois de um grande impulso de desenvolvimento econômico deriva-se um pouco da riqueza obtida para a pesquisa científica. A FAPESP é um típico modelo nesse sentido: recebe um percentual do ICMS, se o estado vai bem economicamente, os fundos para pesquisa aumentam e isso realimenta o processo econômico através da inovação, através da capacitação, da força das universidades... Esse foi o modelo com que praticamente o mundo inteiro se desenvolveu. Mas a Amazônia e as regiões pobres da África e do sul da Ásia precisam realmente de outro modelo, se faz necessário um tipo de “modelo antártico” de desenvolvimento científico. A Antártida não tem nenhuma exploração econômica, mas o mundo gasta com pesquisa antártica – onde por lei internacional é proibida a inversão para fins econômicos – mais que todo o investimento do Brasil em ciência e tecnologia. Temos que fazer com a Amazônia algo similar, sem a restrição ao investimento com fins econômicos. Dos US$ 166 bilhões de investimentos na área de mudanças climáticas que o presidente Lula anunciou em Copenhague para os próximos 10 anos, uma parte não desprezível é para reduzir desmatamento da Amazônia, colocar novos institutos, novas universidades... Acho que esse é o caminho. Fizemos os cálculos na Academia Brasileira de Ciências e concluímos que, em 10 anos, precisamos colocar, no mínimo,
n E então, se a articulação com Índia, Áfri-
ca do Sul, mais alguns países da América do Sul, de fato se adensa, a contribuição do hemisfério Sul pode ser significativa. — Sem dúvida. Vamos poder melhorar nossa capacidade de estudar quais os imPESQUISA FAPESP 167
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2 mil novos pesquisadores na Amazônia. O ideal seriam 4 mil novos pesquisadores e engenheiros. Eu sempre observo o seguinte: coletivamente, somados todas as universidades e todos os institutos de pesquisa da Amazônia, eles não chegam a gastar o equivalente a 50% do orçamento da USP. Ora, são 4 milhões de quilômetros quadrados, 25 milhões de habitantes, imensas potencialidades, será que tudo isso não merece uma USP? Como começou seu interesse por meteorologia e como se deu seu trânsito para a pesquisa em clima, sistemas terrestres etc.? — Se eu fosse hoje um adolescente de 17 anos buscando entrar numa universidade, não faria o ITA. Mas eu era um adolescente no final da década de 1960 e, naquela época, quem não tinha um referencial familiar de estudos só via o seguinte: gosta de ver sangue, plantas e bichinhos, vai para medicina; é bom em matemática, vai para engenharia; quer ficar rico, vai para direito. Apontado como bom em matemática, prestei vestibular para engenharia na Politécnica da USP e no ITA. Passei nos dois, comecei na Politécnica, não gostei do trote e meu pai sugeriu que eu experimentasse o ITA por uma semana. Aí adorei o ITA e fiquei. Como sempre gostei de desafios, resolvi fazer o curso mais difícil, que era, naquela época, engenharia eletrônica. No meio do curso meu pai morreu, nos deixou numa situação econômica ruim e eu, o mais velho, assumi a responsabilidade familiar. Em paralelo, desde a adolescênn
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cia eu era muito interessado na questão ambiental. Conheci o doutor Paulo Nogueira Neto antes mesmo de ele formar a Sema, Secretaria Especial de Meio Ambiente, do governo federal, e fui a muitas palestras e atividades organizadas por ele. A meteorologia apareceu um pouco por coincidência: eu tinha desenvolvido no Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] meu trabalho de fim de curso de engenharia, um modelo matemático para calcular a poluição que a refinaria da Petrobras, em construção, ia trazer a São José dos Campos. Fiz umas investigações arriscadas em pleno regime militar, porque precisava saber onde ia ser a chaminé, sua altura etc. Voei com um colega de turma do ITA, Oswaldo Saback, já falecido, piloto do aeroclube, fotografei em filme infravermelho com minha Nikon F2... Mas o fato é que, no Inpe, os alunos do ITA ficavam numa sala próxima à nascente área de meteorologia e eu conheci várias pessoas ali. Uma delas, o professor Luís Carlos Molion, que hoje está em Alagoas e é conhecido como o cético brasileiro, começou a botar minhoca na minha cabeça para eu estudar meteorologia. Quando me formei em 1975, fiquei uns meses em São José e segui para Manaus, para trabalhar no Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] como engenheiro. Isso graças a um amigo do Inpe, Mostafa Nosseir, que conhecia o então presidente da Academia Brasileira de Ciências, Pacheco Leão, que, sabendo de meu interesse pela Amazônia, me mandou falar com o então presidente do CNPq, José Dion de Mello Telles, que por sua vez ligou de seu gabinete no Rio para Warwick Kerr, um dos fundadores da FAPESP e, àquela época, diretor do Inpa. Dion mandou emitir a passagem e nem voltei para São Paulo: do CNPq fui direto para o Galeão. Comecei a trabalhar como engenheiro de manutenção de equipamentos no Inpa e Kerr logo me colocou em outros projetos. A determinada altura passou por lá uma expedição científica do MIT, e o doutor Kerr me pôs como uma espécie de ajudante de ordem, só porque eu falava um inglês mais ou menos. O chefe do grupo, o professor John Edmonds, geoquímico, soube que eu era engenheiro eletrônico e me convidou para ir ao MIT aprender a trabalhar em seu laboratório com um equipamento idêntico àquele que, doado ao Inpa pelo governo japonês, permanecia encaixotado porque nenhum engenheiro sabia montá-lo. Fui, fiquei três meses, aprendi tudo e voltei. Mas nessa passagem o chefe do departamento de meteorologia, professor Jule Charney, terminou me propondo que eu me can-
didatasse ao doutorado. Assim me candidatei simultaneamente ao departamento de meteorologia de Wisconsin, às ciências ambientais na Universidade da Califórnia em Berkeley e ao MIT. Como tinha feito ITA, pensava que era muito bom – todo aluno de lá saía achando isso. Fui aceito nas três instituições e escolhi o MIT, com Charney como meu orientador. Trabalhei aspectos muito teóricos de meteorologia, fiz uma tese teórica em modelagem e tive ali uma formação muito boa. Em seu retorno você se ligou ao Inpe? — Achei que eu ia voltar para o Inpa. Mas numa conversa com Enéas Salatti, em 1979, então diretor do instituto, ele viu que eu tinha ficado muito teórico, julgou que não teria o que fazer no Inpa e me recomendou que fosse para o Inpe. Ele mesmo, em 1981, falou a meu respeito com o diretor, Nélson de Jesus Parada. n
n Nos EUA, você estava com bolsa de onde?
— De lá. Uma bolsa de um ano da OEA [Organização dos Estados Americanos] e nos outros quatro anos e meio tive bolsa do MIT. Ofereceram-me um pós-doc direto, eu tinha a possibilidade de um emprego, mas não pensei nisso um minuto sequer: queria voltar. Minha mãe estava muito doente, Manaus era muito longe, São José me permitiria ficar perto dela, que morava em São Paulo. Nessa época a contratação no Inpe era bem simples, éramos celetistas e fui contratado no início de 83. Mas eu continuava interessado em Amazônia, minha tese de modelagem foi baseada em circulações tropicais... Em 83, o Molion me convidou para participar de um experimento junto com os ingleses na Amazônia. Fui em agosto, fiquei dois meses diretos no noroeste de Manaus. Então comecei a voltar a me interessar pelo ambiente, pela floresta e aí foi uma sequência: em 85 e em 87 fizemos um experimento em conjunto com a Nasa. Em 87 assumi a responsabilidade de coordenar a parte de meteorologia do experimento com a Nasa. Em 90, um grupo de ingleses veio fazer um grande experimento em colaboração com pesquisadores daqui, que envolveu três sítios na Amazônia, e fui o coordenador brasileiro. Tratava-se de entender como são os fluxos da Floresta Amazônica. Fluxo de calor, de vapor d’água e de carbono – já começa a entrar aí o carbono. E eu não era dessa área, mas fui o coordenador do experimento como um todo. Fizemos em Marabá, em Rondônia – Ji-Paraná – e em Manaus. Em 93, começamos a desenhar o experimento do LBA.
Como já tinha acontecido a essa altura a Rio-92, a questão do meio ambiente tornara-se bem quente no Brasil... — De certo modo, pode-se dizer que o LBA é um produto da Rio-92. Na verdade, a pré-proposta do LBA surgiu no final de 92 nos EUA. Eu fui lá e comecei a organizá-lo junto com a Nasa e os europeus em 1993. E, com isso, aos poucos comecei a abrir minha linha de pesquisa para além da meteorologia mais tradicional, da modelagem atmosférica, porque comecei a olhar para questões de vegetação. Em 88 tinha passado um ano em Maryland, num pós-doc, o que me ajudou muito porque ali fiz um dos primeiros estudos sobre o impacto do desmatamento da Amazônia no clima. Esse estudo se tornou muito importante e, para dar uma ideia, publicamos dois papers, um na Science em 90 e outro no Journal of Climate em 91. E este último, sem ser da Science ou da Nature, já tem mais de 200 citações. O estudo da Science tem 230 citações. Foi no paper de 1991 que fizemos a proposta teórica, a hipótese, da savanização da Amazônia. n
n Essa é considerada a sua principal contribuição científica para o debate sobre as mudanças climáticas, não? — Sim, e no fundo continuo na mesma linha. Acabamos de submeter um paper importante que reafirma isso. Lógico, orientei alunos em muitas áreas, inclusive em meteorologia clássica, em previsão de tempo, mas isso é uma produção dos meus alunos comigo, que teve menos destaque. A produção mais conhecida internacionalmente é muito relacionada com a Amazônia, até porque esta região atrai interesse mundial. n Sim, e ao propor o conceito de savaniza-
ção você, de fato, estava lançando alguma coisa muito provocativa. — Sim, e agora, quase 20 anos depois da publicação do primeiro paper, essa ideia é abraçada mundialmente. Hoje eu contaria mais 100, 200 papers que foram nessa linha. Segui nisso, ainda que tenha ficado muitos anos envolvido com a criação do CPTEC [Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos], 12 anos como chefe do centro. Não me afastei da ciência, mas diminuiu minha produção nesse período. Em 2003, um aluno e eu publicamos um paper que mostra como a savanização poderia acontecer e, na semana retrasada, vimos que ele já tinha 59 citações. Publiquei com meus alunos também dois papers importantes em
Pretendo que tenhamos no Brasil a capacidade de detectar os primeiros sinais da savanizacão da Amazônia 2007, um mostrando como a savanização poderia acontecer pelo aquecimento global e outro definindo qual o limite de desmatamento para causar savanização. Então, essa é uma ciência que tem muita visibilidade. Acabamos de submeter um novo paper em que, pela primeira vez, conseguimos explicar a importância das descargas elétricas, do fogo da vegetação causado por descarga elétrica, por relâmpago, por raio, para determinar onde começa a Floresta Amazônica e onde acaba o Cerrado, uma questão que sempre esteve em minha cabeça. Mostramos que, se não fossem os relâmpagos, os raios, a Floresta Amazônica invadiria 300 a 400 quilômetros do que é hoje o Cerrado. É o fogo que empurra a floresta 400 quilômetros.
ajudou muito. A Marina é matemática da Unicamp e conseguimos fazer um modelo matemático no qual ela tem muito mérito. Estou acabando de revisar um outro paper que vamos submeter ao PNAS – nesse eu sou o primeiro autor –, em que juntamos o aquecimento global, o desmatamento, o incêndio florestal e examinamos o que acontece com a Amazônia. Há alguma mudança no horizonte da savanização da Amazônia? — Estou para propor um experimento de longo prazo, que é um sistema de observações no sul-sudeste da Amazônia. Quero que a gente tenha aqui no Brasil a capacidade de detectar quando os sinais da savanização vão começar realmente a aparecer. Segundo nossos cálculos, se o aumento da temperatura da região passar de 3,5 graus – estamos longe ainda, está chegando em 1 grau – ou se o desmatamento se tornar muito grande, vamos começar a ter, sim, os sinais da savanização. n
Você vê um paralelismo entre o desenvolvimento da sua carreira científica e a constituição do campo das ciências ambientais, das ciências do sistema terrestre aqui no país? — Isso aí vai parecer meio... mas acho que sim. Se você pegar 10 pessoas que desde a década de 1980 têm dedicado um tempo muito grande de suas carreiras a essa questão, eu estaria nessa lista. Ao coordenar muitos desses experimentos científicos, penso que realmente ajudei o desenvolvimento dessa área no Brasil. E ela tem muita visibilidade internacional. n
n O pessoal que estuda relâmpagos no Inpe
participou desse trabalho? — Meu colega Osmar Pinto foi quem sempre liderou essa área de raios e relâmpagos. Trouxemos as pessoas desse campo para o novo centro que formamos no Inpe e que hoje dirijo (Centro de Ciências do Sistema Terrestre). O Osmar está conosco. Esse paper saiu porque propus para uma aluna de doutorado, Marina Hirota Magalhães, a seguinte questão: aqui está cheio de raios, se não tivesse raio teria menos fogo e, se não tivesse fogo, a floresta invadiria o cerrado. Quero saber se isso é real. E, lógico, tudo o que faço dentro de minha linha de modelagem matemática é quantitativo. Numa abordagem qualitativa, os ecólogos de cerrado já sabem há 50 anos que o fogo é importante – mas eu queria quantificar. Desenhamos um tipo de estudo em que a parte mais difícil estava sendo como colocar o fogo originado pela descarga elétrica. E aí o Osmar Pinto nos
Em que medida o programa do clima, sob sua coordenação, se articula com o Bioen e com o Biota-FAPESP? — Há uma grande oportunidade que se abre para o Brasil de explorar racionalmente seus recursos naturais renováveis, todos os seus biomas e se tornar uma espécie de potência ambiental tropical, na linha de frente de produção de um biocombustível limpo para o mundo, com respeito à qualidade ambiental e os ecossistemas, se ele estiver muito bem embasado numa ciência e tecnologia avançadas. Esses três programas são modelos articulados nesse sentido. O Bioen é o grande programa de expansão do uso e das possibilidades do biocombustível como tal e como pilar da futura alcoolquímica. Vejo os três programas como exemplo para o Brasil e como os três primeiros pilares do conhecimento que será a base de um novo e real desenvolvimento do país. n n
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Os venenos da floresta
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INSTITUTO BUTANTAN/ANTONIO COR DA COSTA
Carlos Fioravanti, de Santarém e Belterra
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m dezembro, Hipócrates Chalkidis começou a ir com frequência à Floresta Nacional do Tapajós, próxima à cidade paraense de Santarém, às margens do Tapajós, um dos mais largos afluentes do Amazonas. Chalkidis e um grupo de estudantes de biologia das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT) vão enterrar dezenas de baldes para coletar serpentes durante um ano e meio. Os escorpiões e aranhas que caírem nas armadilhas não servirão apenas para ampliar o conhecimento sobre a riqueza biológica da região. Denise Cândido, bióloga do Instituto Butantan, entregou em dezembro para Chalkidis um aparelho portátil de extração de venenos construído por estudantes de engenharia elétrica e professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Os venenos alimentarão pesquisas de novas toxinas, em uma das vertentes de um amplo programa de trabalho que há quatro anos tem aproximado especialistas do instituto paulista e os de centros científicos e médicos do Pará. Com sorte Chalkidis e sua equipe coletarão vários exemplares do escorpião-preto do Pará, o Tityus obscurus. Todo negro,
eduardo cesar
Em conjunto, especialistas do Pará e de São Paulo investigam toxinas de animais da Amazônia
Competências dispersas Pardal já havia mostrado em um artigo publicado em 2003 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical que os acidentes causados por picadas de escorpiões apresentavam características únicas em Santarém, com sintomas predominantemente neurológicos – provavelmente porque, de acordo com os estudos de Lourival Possani, pesquisador brasileiro que trabalha no México, uma das cerca de 60 toxinas do veneno, a Tc1, é bem pequena, e por essa razão poderia atravessar as barreiras que protegem o cérebro. As picadas do escorpião-preto causam intensas contrações musculares – ou espasmos –, além da dificuldade de falar, taquicardia e hipertensão arterial. No hospital municipal de Santarém, a médica Mariana Quiroga e o médico Paulo Abati verificaram que o diazepam, usado para aplacar ansiedade e convulsões, pode ajudar a controlar os espasmos das pessoas picadas por escorpiões-pretos.
Habitantes da Amazônia: escorpião-preto do Pará (Tityus obscurus), cascavel (Crotalus durissus) e surucucu (Lachesis muta)
“Foi o único jeito que encontramos”, diz ela, argumentando que os espasmos causados pela picada do escorpião-preto assemelhavam-se aos sintomas neurológicos causados por quadros graves de tétano que podem ser tratados com diazepam. A equipe que reúne os mais experientes pesquisadores do Butantan está identificando, reunindo e mobilizando especialistas antes dispersos nos centros de pesquisa do Pará como Chalkidis, Pardal e Mariana. Ou como Rosa Mourão, à frente de um grupo da UFPA em Santarém que encontrou compostos químicos capazes de deter a hemorragia causada por venenos de serpentes em extratos de 18 plantas da região que os moradores usam normalmente. “Os caboclos tomam um xarope de plantas antiofídicas antes de ir para a mata”, diz ela. “Ou aplicam a planta macerada sobre a picada para tirar a dor ou reduzir a inflamação.” Segundo ela, os
extratos vegetais podem conter inibidores de enzimas como fosfolipases e proteases, que, se devidamente investigadas, poderiam embasar novas drogas antiofídicas ou contra outras doenças marcadas por processos inflamatórios intensos, como a artrite. “Não teria sentido fazer nada em paralelo, sem aproveitar as competências locais”, comentou Otávio Mercadante, diretor do instituto paulista, ao abrir o quarto encontro anual que expôs os avanços e os planos das equipes dos dois estados em um auditório das Faculdades Integradas do Tapajós, no final de outubro. “O Butantan nunca
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INSTITUTO BUTANTAN/OTAVIO MARQUES
com até nove centímetros de comprimento, ele causa a maioria dos 1.300 casos anuais notificados de picadas de escorpiões na Região Norte. Com mais bichos à mão, a equipe do Butantan poderá trabalhar mais rapidamente para resolver o que ainda é um mistério: o soro do instituto paulista, feito contra o veneno do Tityus serrulatus, parece não ser capaz de neutralizar os efeitos do veneno do escorpião-preto de Santarém sobre o sistema nervoso, embora seja eficaz contra a ação neurotóxica do escorpião-preto de Belém, capital do Pará. “Podem ser espécies diferentes, ainda que morfologicamente idênticas”, cogita o biólogo do Butantan Antonio Brescovit. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, Pedro Pardal estuda a genética dos escorpiões para saber o que de fato os diferencia.
Belterra: floresta, casas de madeira e herança de Ford. Abaixo, Escola Cajueiro: jogo dos peçonhentos, com fotos de animais da região
vai substituir ou concorrer com as instituições locais. Nosso trabalho será complementar.” Desde que começou a visitar o Pará em busca de espaços favoráveis à pesquisa, Mercadante aliouse a quatro universidades (a estadual, a federal, as FIT e o Instituto Esperança de Ensino Superior, Iespes), o Museu Paraense Emilio Goeldi, de Belém, e uma organização social, o Projeto Saúde e Alegria (PSA), que atende comunidades ribeirinhas.
instituto butantan/Giuseppe Puorto
Resistência aplacada “Esta é nossa grande chance de aprendizagem”, observou Mercadante, que costurou também o apoio de prefeituras, governo estadual, fundações de financiamento à pesquisa do Pará e de São Paulo e dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia para levar adiante pesquisas em três vertentes: biodiversidade amazônica, ação de toxinas de animais e história da saúde na região. De modo complementar, corre um trabalho com médicos e agentes de saúde locais sobre tratamentos de aci-
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dentes com animais venenosos. Logo ele viu que teria de ir com cuidado. “Não podemos chegar às comunidades sem a mediação da cultura local, sob o risco de sermos vistos como invasores.” As colaborações amenizam os temores de resistência contra os paulistas. “Milhares de teses são feitos sobre os saberes e sabores da região e nunca retornam”, lembrou Magnólio de Oliveira, vice-coordenador do PSA, “mas agora temos um bom time com vontade de vencer”. Durante três dias, 80 estudantes e profissionais de medicina e enfermagem participaram de um curso sobre acidentes causados por animais peçonhentos como serpentes, aranhas, escorpiões, lagartas e raias. Em Santarém, 37 estudantes e biólogos acompanharam outro curso sobre diversidade de animais peçonhentos na Amazônia, que incluiu atividades práticas na cidade vizinha de Belterra. Giuseppe Puorto, pesquisador e diretor do Museu Biológico do Butantan, esteve à frente de apresentações para professores, estudantes, agentes da saúde, líderes comunitários e bombeiros de Santarém. Com a equipe e o barco Abaré, do Projeto Saúde e Alegria, visitou comunidades ribeirinhas do rio Tapajós e conversava descontraidamente enquanto tirava animais empalhados da mochila. Ouvia relatos de acidentes com animais venenosos e, mesmo respeitando os tratamentos caseiros, recomendava aos moradores que nunca amarrassem ou cortassem os ferimentos causados pelas picadas. A equipe do Butantan já fez e distribuiu um livreto sobre animais venenosos, mas ainda há muito a fazer. Já faz tempo que o Butantan tem contato com animais da Floresta Amazônica. Essa região permaneceu isolada das outras regiões até o início do século XX, por causa da dificuldade de comunicação e transporte. Mesmo assim, de
acordo com um levantamento de Maria de Fátima Furtado e Myriam Calleffo publicado no Cadernos de História da Ciência, Emília Snethlage, então diretora do Museu Goeldi, enviou em 1914 uma coleção de serpentes do Pará ao Butantan para identificação e guarda. O envio de animais não parou mais, e hoje o instituto paulista reúne 6.625 exemplares de 213 localidades da região amazônica. Em 1924, Vital Brazil Mineiro da Campanha, o primeiro diretor que então reassumia a direção do instituto, contratou o médico Jean
Carlos fioravanti
Vellard para ajudar na identificação de aranhas venenosas. Vellard trabalhou com Vital Brazil no soro contra o veneno de uma aranha-de-grama, a Lycosa raptoria, estudou a toxidade de outras aranhas, identificou espécies novas e fez muitas expedições de coleta de animais à região. Mais recentemente, há cerca de 20 anos, Brescovit percorreu as matas da região, também em busca de aranhas amazônicas, numa época em que as alterações ambientais ainda eram poucas na região. A viagem de Belém a Santa-
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O Projeto Subprograma ações na Amazônia
Coordenadora
Ana Moura da Silva – Instituto Butantan investimento
R$ 345.000,00 (INCT-Tox/FAPESP)
rém só podia ser feita de barco e demorava uma semana (hoje pode ser feita em menos de duas horas por avião). A médica Fan Hui Wen, ao lado de outros médicos, visita há 10 anos comunidades ribeirinhas distantes para mostrar como evitar e tratar de picadas de animais venenosos sem fazer torniquete, que pode agravar o ferimento e ainda é bastante usado na região. Mariana Quiroga conta que há pouco tempo tratou de um homem que chegou ao hospital com um torniquete feito com a cobra que o havia picado. PESQUISA FAPESP 167
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detalhes 45 acidentes. “Fazer pesquisa, aqui, é paixão pura.” Ana Moura está integrando as equipes paraenses com as outras do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas (INCTTox), sediado no Butantan. “O trabalho colaborativo entre as equipes pode facilitar a pesquisa de medicamentos a partir de toxinas animais e de plantas, aproveitando os investimentos já feitos em prédios e equipamentos”, diz ela. “Para as colaborações avançarem”, diz Osvaldo Augusto Sant’Anna, coordenador do INCT, “é fundamental que os pesquisadores do Pará conheçam a maneira de fazer ciência em São Paulo. O INCT quer gerar conhecimento em conjunto, não apenas transferir o saber técnico”. Os paulistas estão sendo bem recebidos. “O conhecimento do Butantan vem com o intuito de empoderar [fortalecer] as pessoas”, afirmou Geraldo Pastana de Oliveira, prefeito de Belterra, município de 12 mil habitantes a 48 km de Santarém, a cidade mais próxima,
Crianças da Amazônia: em uma praia do Tapajós e na Comunidade de Galileia, em Juriti, oeste do Pará (direita e ao lado) 20
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Acervo Butantan
instituto butantan/Giuseppe Puorto
Agora o Butantan enfatiza ações conjuntas. “Queremos que o estudo desses venenos resulte na formação de pesquisadores de Santarém que depois voltem para atuar na região”, disse Ana Moura, pesquisadora do Butantan e professora do curso de pós-graduação em recursos naturais da Amazônia da UFPA em Santarém. Até agora vieram dois, José Pedro Marinho de Souza e Andria de Paula Santos da Silva, ambos recém-formados pelas FIT, que depois de um ano no Butantan, em São Paulo, voltaram a Santarém para a coleta de animais e devem retornar em março para completar o curso de especialização no instituto paulista. “Tem muita gente brilhante por aí, mas é muito caro sair do Pará”, conta Marta Fernandes, bióloga recém-formada que acompanhou durante um ano as pessoas picadas por escorpião atendidas no hospital municipal de Santarém. “Me sentia como em um hospital de guerra”, conta. Marta saía de bicicleta atrás das pessoas e dos bichos; acabou reconstituindo em
de quase 300 mil moradores. O porte de cada cidade não é o único contraste. Santarém move-se continuamente em torno do porto, um dos principais do Norte, e do calçadão à beira de um rio a perder de vista, o Tapajós, cujas águas azul-esverdeadas se misturam ali com as águas barrentas do Amazonas. Belterra é menos explícita. Quem chega no início da tarde tem a impressão de que encontrou uma cidade abandonada, com casas de madeira que lembram filmes do início do século passado. Não há ninguém à vista. Óbvio: todos dormem para fugir do calor intenso, úmido, amazônico. Agora sai pouca poeira das ruas principais, longas e retas, asfaltadas há poucos anos, ainda margeadas por hidrantes, outro sinal da peculiar história desta cidade. Belterra foi uma das cidades criadas no século passado pelo empresário norte-americano Henry Ford para produzir borracha natural, a partir da seringueira (ver Pesquisa Fapesp nº 158, de abril de 2009). A outra foi Fordlândia, a 130 quilômetros de distância, cujas plantações com quase 2 milhões de seringueiras logo ruíram por causa de uma inesperada doença. Os 3,2 milhões de seringueiras de Belterra se deram melhor, cresceram em solo mais fértil e sobreviveram à praga. Durante décadas a cidade produziu
Outro olhar Pantoja foi funcionário público federal no final dos anos 1970, durante os tempos mais difíceis. Saiu e viveu alguns anos em outros estados. Preferiu voltar e durante 10 anos liderou a batalha pela emancipação do município, conseguida em 1997. “Não queríamos ficar subordinados a Santarém”, argumenta. Agora ele e os outros moradores, que no final da tarde se sentam para conversar nos bancos em frente às casas, acompanham com satisfação os movimentos da equipe do Butantan, aparentemente ávidos por participar de outra aventura grandiosa. “Desde o início [os pesquisadores do Butantan] me procuraram e tiveram a consideração de me colocar a par do que estão fazendo”, relatou Pantoja. “Estão procurando se integrar na sociedade e ajudar a resolver nossos problemas.” O Butantan deve instalar em Belterra – em um terreno de 64 hectares ainda completamente tomado por mata – sua base avançada de pesquisas na Amazônia. “Meu sonho é ter ali também um laboratório de ciências para atender os estudantes e os professores da rede fundamental de ensino”, diz
Acervo Butantan
muita borracha, em uma rotina interrompida às vezes por incêndios – daí os hidrantes por toda parte. Chardival Moura Pantoja nasceu em Belterra há 70 anos, cresceu nas “creches de Henry Ford”, como ele diz, estudou nas escolas construídas por Henry Ford e trabalhou nas plantações de seringueira e na produção de borracha natural. Ele viveu os tempos de prosperidade, quando os moradores mais ricos iam ao campo de golfe e os mais simples ao cinema. Logo depois da Segunda Guerra Mundial começou a derrocada, causada pela emergência da borracha sintética, mais barata que a natural, e pelo abandono dos seringais. O hospital da cidade, que antes atendia toda a região, pegou fogo e jamais se recuperou inteiramente.
Mercadante. “É perfeitamente viável.” Uma equipe multidisciplinar que inclui a médica Fan Hui Wen reconstrói a história da saúde em Belterra. Em colaboração com Maria Amélia Mascarenhas Dantes, da Universidade de São Paulo (USP), o grupo tem gravado e filmado longas conversas com pessoas como Pantoja, que ajudaram a construir a cidade. Moradores como Edineusa Medeiros Alves, dona de uma farmácia, também conhecida como Neusa, e Arlison José Santos Reis, o Lica, dono de uma hospedaria, chamam Hui de doutora, como se doutora fosse um sinônimo mais simples de seu nome. Ela trata a todos respeitosamente, como se eles é que fossem doutores e donos de vasto currículo acadêmico. O que realmente importa é passar pelo olhar de raio X dos moradores, aceitar os silêncios das conversas e mostrar capacidade para ouvir. “Alguns animais que são perigosos para nós não são para eles. A jiboia, dizem, normalmente não é venenosa; por alguma razão, dizem, só
é venenosa em agosto”, diz Hui. “Temos de ter outro olhar.” Por ali, para tratar picadas de arraia, os moradores jogam água quente ou baforadas de fumo. “Faz sentido”, atesta Francisco Siqueira França, médico do Butantan, “porque o veneno é sensível a temperatura alta”. A maioria dos pa raenses toma remédios caseiros, à base de plantas, para evitar ou tratar mordidas de cobra. Magnólio, que costuma visitar as vilas ribeirinhas nos barcos do Projeto Saúde e Alegria, conta que já listou cerca de 200 remédios caseiros. Um deles, chamado Pau-X, é especial. Ana Moura verificou que esse chá de raízes inibe as hemorraginas, enzimas do veneno de serpentes que causam hemorragia, e esses inibidores poderiam ter outras aplicações médicas. O problema é que a formulação do Pau-X é sigilosa e passa por uma tradição religiosa mantida por pajés da região. “Quem sou eu, uma bioquímica, diante de um pajé?”, questiona-se, diante de um impasse ainda sem saída. n
PESQUISA FAPESP 167
n
janeiro DE 2010
n
21
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ESTRATÉGIAS
La.I
Um grupo de universidades
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francesas vai receber € 11bilhões
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::> C)
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La.I C
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MUNDO
de um programa do governo que busca formar uma elite de centros de pesquisa. A iniciativa, que deverá criar até 10 campus de excelência, contraria uma tradição do sistema de ensino superior, que costumava tratar igualitariamente as instituições públicas em termos de financiamento
e
de salário. O dinheiro faz parte de um pacote de € 35 bilhões anunciado pelo presidente Nicolas Sarkozy para melhorar a competitividade
do país. O
C
financiamento deve dar às universidades liberdade e fôlego para atrair talentos de fora, pois garantirá.
La.I
salários competitivos
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e infraestrutura
para pesquisa.
Alguns pesquisadores dizem que o esquema mascara cortes de pessoal e se apropria de recursos que já existiam. "A ideia de investimento maciço é uma miragem", diz o matemático Bertrand Monthubert, porta-voz para
o ensino superior e pesquisa do Partido Socialista. Philippe Froguel, diretor do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), teme que o dinheiro flua somente para as grandes instituições.
"A iniciativa vai ignorar
os bolsões de excelência em universidades
menores", disse
à revista Nature. Ele advoga o reconhecimento das melhores redes de pesquisa onde quer que elas estejam.
22 • JANEIRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 167
> O gargalo da banda larga Os países da América Latina e do Caribe não conseguiram cumprir todas as metas do Plano de Ação Regional sobre a Sociedade de Informação (eLAC2010) estabeleci das para este ano, embora tenha havido avanços. Essas são as conclusões de um relatório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), apresentado
em dezembro em Santiago, Chile. O eLAC20 1O é um esforço conjunto da região para promover o uso das tecnologias de informação e comunicação. Para 2010, o plano contemplava 83 metas concretas em áreas como educação, infraestrutura, saúde e governo eletrônico. O problema mais grave, segundo o informe, é o ainda limitado acesso à banda larga: apenas 4,8% dos habitantes da região têm acesso a ela, ante 26% nos países desenvolvidos. As tarifas são elevadas. Na Nicarágua, por exemplo, correspondem a 33% do PIB per capita mensaL "São necessárias políticas de desenvolvimento da infraestrutura, com a construção de centros de acesso compartilhado", disse à agência SciDev.Net Mario Cimoli, da CepaL Entre os avanços, o relatório mostra que 79,5% dos habitantes da região têm telefone móvel e que vicejaram iniciativas em telemedicina, serviços públicos on-line e sites governamentais de compra eletrônica.
> Sementes preservadas A China inaugurou um banco de germoplasma com mais de 30 mil sementes de plantas, algumas delas ameaçadas de extinção, além de amostras de DNA e microrganismos. O banco faz parte do
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A Cidade do México abrigará a Biometró-
"La.I
campus de pesquisa
C
polis, um gigantesco
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biomédica especiali-
O
m
zado em oncologia,
La.I
nutrição,
diabetes,
geriatria,
cardiolo-
gia e infectologia. A construção
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U Z La.I
deve
demorar pelo menos 10 anos. O complexo vai espalhar-se por 71 hectares, metade dos quais com áreas verdes, e congregará 70 edifícios, entre eles nove institutos
Instituto de Botânica Kunming, na província Yunnan. "O germoplasma é importante não só para a pesquisa, mas também para a segurança alimentar, a oferta de energia e a ecologia", disse à agência SciDev.Net o pesquisador do banco Gao Lizhi, que estuda plantas capazes de produzir bioenergia. A iniciativa começou a ser montada em 2004 e, além de espécies chinesas, abriga 590 tipos de sementes de 21 países estrangeiros. A meta é preservar mais de 190 mil amostras biológicas nos próximos 15 anos.
médicos especializados, oito hospitais, cinco laboratórios
e
11instituições
e
de ensino, além de empresas tecnológicas
prédios residenciais e comerciais. O projeto reunirá a pesquisa biomédica da Universidade
Nacional Autônoma
do México
(Unam), do Centro de Pesquisa e de Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, dos institutos nacionais de saúde pública e das universidades públicas e privadas do Distrito Federal. Gloria Soberón, diretora do Instituto
de Pesquisas
Biomédicas da Unam, disse à agência SciDev.Net que já há acordos com a indústria e planos estratégiCOS. "Os recursos virão da iniciativa privada, que gozará de incentivos fiscais", apontou. O projeto arquitetônico foi encomendado à empresa londrina Foster+Partners.
> A prova
dos alternativos
O Centro Nacional de Medicina Alternativa e Complementar (NCCAM, na sigla em inglês), vinculado aos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), segue dividindo a comunidade científica norte-americana. Sua criação, em 1999, foi imposta pelo Senado, apesar da oposição do então diretor dos NIH, Harold Varmus. A queixa dos cientistas é que o simples ato de estudar tais terapias já é uma forma de legitimá-Ias. O fato, contudo, é que a maioria
.
dos estudos clínicos patrocinados pela instituição condenaram terapias em vez de endossá-Ias. Um estudo publicado em julho de 2005 mostrou que a planta
, Equinácea: extrato
equinácea não previne nem alivia os sintomas das infecções por rinovírus, o principal causador dos resfriados. "Somos imparciais e rigorosos", disse à revista Nature Iosephine Briggs, que assumiu a direção do centro no início de 2009. O instituto patrocinou testes clínicos para estudar se a erva-de-são-joão pode aliviar a depressão e se a vitamina E e o selênio podem prevenir câncer de próstata, entre outros. Os resultados foram desanima dores. Para Steven Novella, neurologista da Universidade Yale, esse tipo de trabalho é desperdício de tempo e de dinheiro. "Os pacientes dessas terapias não as abandonam mesmo quando as evidências científicas mostram sua ineficácia. Então para que isso serve?", indaga. Iacqueline Briggs defende um novo modelo para o NCCAM, que deveria investir em estudos básicos sobre os mecanismos fisiológicos dos remédios alternativos antes de gastar dinheiro com ensaios clínicos.
-
é ineficaz para resfriados
PESQUISA FAPESP 167 • JANEIRO DE 2010 • 23
>
ESTRATÉGIAS
MUNDO
« o:
A elite científica japonesa mo-
O
jado pelo governo. O estopim
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foi a recomendação de reduzir
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bilizou-se fortemente contra o corte de investimentos plane-
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as verbas de 220 programas
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de trabalho convocados pelo
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mundo, o orçamento do labo-
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de pesquisa feita por grupos governo.
Os cortes
devem
atingir, entre outros, um propara construir
o mais
rápido supercomputador
do
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ratório de radiação síncrotron
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Spring-8 e do observatório de
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neutrinos Super-Kamiokande,
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além de dotações para bolsas.
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Os presidentes das nove principais universidades do Japão emitiram
uma declaração
dizendo que as políticas
do
governo "estão se movendo
o observatório
de neutrinos
Super-Kamiokande:
corte de verbas
na direção oposta à do resto do mundo", segundo a revista Nature. Líderes dos 17 centros
> Verbas
para energia solar
o Banco
Mundial anunciou que irá destinar US$ 5,6 bilhões para financiar projetos de exploração de energia solar, utilizando novas tecnologias, no norte da África e no Oriente Médio. Cerca de US$ 750 milhões sairão do Fundo de Tecnologia Limpa do banco, criado para estimular projetos com baixa emissão de carbono, e se destinarão a 11 iniciativas na Argélia, Egito, Iordânia, Marrocos e Tunísia. Outros US$ 4,85 bilhões virão de fontes privadas. O investimento vai gerar cerca de um gigawatt de capacidade de energia solar nos próximos
cinco anos. "Os recursos garantirão massa crítica para o início dos projetos e ajudarão a atrair o interesse do setor privado", disse um comunicado do Banco Mundial, de acordo com a agência AFP.
~ de excelência na Universidade de Tóquio também apelaram ~ por seus orçamentos.
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Em 26 de novembro, uma delegação
liderada por quatro laureados com o Prêmio Nobel, o químico
~ Ryoji Noyori, o imunologista Susumu Tonegawa e os físicos Reona Esaki e Makoto Kobayashi, reuniu-se com o premiê Yukio Hatoyama e defendeu a tese de que o corte, ao enfraquecer a pesquisa, terá impacto no desenvolvimento Hatoyama tentou contemporizar.
"Apoio firmemente
do país. a ciên-
cia", disse. O governo ainda avalia onde passar a tesoura.
> Observatório vetado A comunidade de físicos da Índia perdeu a batalha para construir um observatório de neutrinos - um dos maiores projetos de pesquisa no país - nas montanhas Nilgiri, no estado de Tamil Nadu. Grupos conservacionistas convenceram o governo de que a construção traria impacto à vida selvagem
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na Reserva da Biosfera Nilgiri, um importante hábitat de elefantes e tigres. A controvérsia sobre a localização do laboratório, que custará US$ 150 milhões, arrastava-se desde 2006 e foi encerrada por um anúncio feito pelo ministro do Meio Ambiente e das Florestas Iairam Ramesh. "Estamos aliviados", disse Tarsh Thekaekara, coordenadora da NBR Alliance, grupo
que liderava a campanha contra a construção do observatório. "Com a decisão perdemos mais um ano num projeto que já está quatro anos atrasado", disse Naba Mondal, porta-voz do projeto e físico do Instituto Tata de Pesquisa Fundamental, em Mumbai. Procura-se agora um sítio no mesmo estado, mas fora do corredor ecológico de Nilgiri.
>
ESTRATÉGIAS
BRASIL
> Professor emérito
..-....--...,...
o Instituto
de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP) concedeu postumamente o título de professor emérito a Imre Simon, professor titular aposentado do Departamento de Ciência da Computação do IME, que morreu de câncer em agosto, aos 65 anos. Segundo o instituto, a homenagem foi um reconhecimento do docente como um dos pioneiros e um dos mais importantes líderes na área de ciência da computação no país. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Matemática e membro da Academia Brasileira de Ciências, Simon foi um dos idealizadores do programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) da FAPESP.
> Câmara
segue à frente do Inpe
Fioravanti em Cancún e a reportagem de capa
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ado
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Z
A reportagem "Drama mortal",
publicada na
edição de abril de 2008 de Pesquisa FAPESP e assinada pelo
editor especial Carlos Fioravanti, competição
conquistou
o segundo lugar em uma
internacional,
o stop TB Partnership
Award for Excellence in Reporting on Tuberculosis, promovida pela Stop TB Partnership. O prêmio foi entregue no dia 3 de dezembro em Cancún, Méxi-
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on Lung Health. O primeiro lugar foi para Charles
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tagem "A woman's face in tuberculosis",
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co, como uma das atividades do World Conference Mpaka, de Malauí, na África Oriental, com a reporpublicada
pelo The Dai/y Times. O terceiro vencedor foi Neway Tsegaye, da Etiópia, com "TB awareness and treatment challenges", que saiu no Addis Lissan News. Este é o primeiro
prêmio internacional
recebido
por Pesquisa FAPESP. A reportagem trata de dois estudos
o engenheiro eletrônico Gilberto Câmara Neto foi reconduzido pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, ao cargo de diretor-geral do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos (SP). Câmara, que cumprirá novo mandato até 20l3, era o primeiro nome da lista tríplice encaminhada ao ministro pelo comitê
sobre o bacilo Mycobacterium
tuberculosis,
causador da
tuberculose, e retrata a dramática situação da doença no mundo. A Stop TB Partnership é uma instituição
ligada à
Organização Mundial da Saúde e se dedica à prevenção e tratamento
da tuberculose no mundo.
de busca nomeado para a seleção do novo diretor. A escolha que deu origem à lista tríplice foi realizada por um grupo de especialistas composto por Marco Antônio Raupp,
presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Alberto Passos Guimarães, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Carlos Henrique de
Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, Hadil Fontes da Rocha Vianna, do Ministério das Relações Exteriores (MRE), e Michal Gartenkraut, da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLus). De acordo com Câmara, a nova gestão dará continuidade aos atuais projetos de pesquisa, mas direcionará esforços para duas questões apontadas como prioritárias pelo MCT. Uma é o envolvimento de outros ministérios, como o da Agricultura, do Meio Ambiente e de Defesa, no Programa Espacial Brasileiro, para garantir-lhe mais visibilidade. A outra questão é a ampliação da coleta de informações meteorológicas, com o objetivo de subsidiar estudos sobre mudanças climáticas.
PESQUISA FAPESP 167 • JANEIRO DE 2010 • 25
>
> Acervo
ESTRATÉGIAS
ganha
espaço
o Arquivo
Edgard Leuenroth (AEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ganhou uma nova sede. A área construída de 1.432 metros quadrados, quase o triplo da anterior, poderá quadruplicar o atendimento que, em 2008, chegou a 2.593 estudantes e pesquisadores e envolveu a consulta a 4.027 rolos de microfilmes, 2.735 manuscritos e 3 mil jornais brasileiros, além de livros, folhetos, revistas, áudios e vídeos, entre outros documentos. Fundado em 1974, com a aquisição do acervo do militante anarquista Edgard Leuenroth, o AEL tinha como proposta preservar a memória operária do Brasil republicano. A doação de fundos e coleções ampliou sua temática. Foram incorporados documentos relativos a movimentos sociais, como o feminista, o homossexual e o estudantil, à repressão política sob a ditadura militar (19641985), como a coleção de documentos do projeto
BRASIL
Brasil Nunca Mais, à formação da opinião pública e à história cultural e agrária do Brasil republicano. Atualmente são 550 metros lineares de manuscritos. O Fundo Ibope, com relatórios de pesquisas de opinião das décadas de 1940 a 1990, foi o primeiro transferido, ocupando estantes deslizantes com controle eletrônico. "Esse armário foi adquirido há seis anos, graças a recursos da FAPESP, mas só agora está montado também porque não havia espaço"; disse ao Jornal da Unicamp Elaine Zanatta, diretora do AEL.
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o Programa
Biota-FAPESP foi um dos laureados pelo
14° Prêmio Ford de Conservação Ambiental, concedido anualmente pela montadora de automóveis Ford. É a segunda vez que o programa de pesquisas, voltado para caracterizar
e conservar
a biodiversidade
do
estado de São Paulo, conquistou o prêmio. A primeira premiação ocorreu em novembro de 1999, quando o programa, recém-lançado,
venceu na categoria
ciativa do Ano, em reconhecimento articulação
da comunidade
científica
Ini-
ao esforço de e da FAPESP
em criar um programa de pesquisas integrando pesquisadores e instituições do estado de São Paulo. A segunda premiação acontece 10 anos depois, agora
t-
na categoria Ciência e Formação de Recursos Huma-
O
110S,
m
e se justifica, segundo a Ford, pela contribuição
do programa para o aperfeiçoamento paulista na área de conservação biodiversidade
da legislação
e recuperação
da
nativa e na formação de 169 mestres,
108 doutores e 80 pós-doutores, além da geração de 750 artigos em periódicos nacionais e internacionais, 16 livros e dois atlas. Também foram agraciados o entomólogo Vitor Becker, na categoria Conquista Individual; o Instituto de Pesquisas
> Novos
Ecológicas - IPÉ (Negócios em Conservação); a Oficina Escola
membros
daABC A Academia Brasileira de Ciências (ABC) elegeu, em dezembro, 21 novos membros titulares e seis membros correspondentes. Foram escolhidos Luiz Eugênio Mello, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto Tecnológico Vale, Miguel Nicolelis, da
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de Lutheria da Amazônia (Meio Ambiente nas Escolas); e a empresa Elring Kliger (Fornecedor).
Universidade Duke e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, e Julio Scharfstein, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no campo das ciências biomédicas; Ivan Chestakov, da Universidade de São Paulo (USP), José
Mario Martínez Pérez, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Karl-Ottostôhr, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), em ciências matemáticas; Takeshi Kodarna, da UFRJ, e Thaisa Storchi-Bergman, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), em ciências físicas; Fernanda Barbosa Coutinho, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Lauro Kubota, da Unicamp, em ciências químicas; Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da USP, e Valderez Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em ciências da terra; Luiz Drude de Lacerda, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Moacir Wajner, da UFRGS, em ciências biológicas; José Eduardo Krieger, da Faculdade de Medicina da USP, em ciências da saúde; Ricardo Antunes de Azevedo, da USP, e Sérgio Costa Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em ciências agrárias; Eugênio Foresti, da USP, José Carlos Costa da Silva Pinto e Renato Machado Cotta, ambos da UFRJ, em ciências da engenharia; e Ricardo Paes e Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em ciências sociais. Os seis membros correspondentes são José Onuchic, da Universidade da Califórnia, em San Diego; Franklin Sher, do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos; Herbert Tanowitz, da Universidade Yeshiva, em Nova York; Hervé Chneiweiss, do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), da França; José Abrunheiro da Silva Cavaleiro, da Universidade de Aveiro, Portugal; e Serge Haroche, do College de France.
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O
o Instituto
de Pesquisas Tecnológicas (lPT) contará
até o final deste ano com um centro de bionanotecnologia. Com investimento de R$ 46 milhões, o instituto construirá
nos próximos meses um prédio de 8 mil
metros quadrados
para estudos em biotecnologia
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(desenvolvimento
O
nova edificação, que faz parte de um amplo projeto
de partículas
com organismos vivos), tecnologia
(microencapsulação
de componentes
químicos e terapia medicinal, como em cosméticos), micromanufatura
de equipamentos
e metrologia. A
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de modernização do IPT,terá custo de R$ 21 milhões.
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Outros R$ 25 milhões estão previstos para a compra de equipamentos. Esses recursos são provenientes
O Z
do governo paulista - o IPT é vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento.
O prédio abrigará
no pavimento térreo o setor de micromanufatura.
O
térreo ainda terá uma sala limpa com nível de 100 partículas
por metro cúbico de ar. Ela terá filtros
especiais para evitar a contaminação
e trabalhará
com pressão positiva - a pressão dentro da sala será maior do que a de fora. No primeiro andar ficará o laboratório biotecnologia,
gundo andar será instalado o laboratório partículas.
sala de gerenciamento,
nacional A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou na sua última reunião de 2009 . a liberação comercial do primeiro organismo geneticamente modificado que teve a participação de uma instituição nacional em sua construção genética. Em parceria com a multinacional Basf, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
e uma central de trabalho
com várias estações de trabalho.
ainda com um anfiteatro
> Transgênico
de tecnologia
O prédio terá uma área de administração,
pesquisadores,
de
com cerca de 2 mil metros quadrados. No sede com
para os Contará
para 200 pessoas.
(Embrapa) desenvolveu um tipo de soja transgênica tolerante a herbicidas do grupo químico das imidazolinas. A cooperação que deu prigem à variedade começou em 1997. A multinacional foi responsável pelo fornecimento do gene, enquanto os pesquisadores da Embrapa incumbiram-se do processo de inserção do gene na soja. Essa tarefa coube à Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, unidade de pesquisa da
Embrapa em Brasília, e foi coordenada pelo pesquisador Elíbio Rech. Em seguida, a soja foi submetida a testes por outra unidade da empresa, a Embrapa Soja, localizada em Londrina (PR). A decisão da CTNBio ainda será apreciada pelo Conselho Nacional de Biossegurança, composto por ministros de Estado. A nova variedade poderá ser uma opção à soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, resistente ao herbicida glifosato.
PESQUISA FAPESP 167 • JANEIRO DE 2010 • 27
Part铆culas de carbono que envolvem o planeta: sem metas de corte obrigat贸rias 28
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janeiro DE 2010
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PESQUISA FAPESP 167
>
política científica e tecnológica
Mudanças climáticas
discórdia em
copenhague A esperança de obter um acordo global para enfrentar o aquecimento foi adiada para dezembro, na conferência da Cidade do México Fabrício Marques
PESQUISA FAPESP 167
n
janeiro DE 2010
n
nasa
F
rustrou-se redondamente quem esperava um acordo capaz de orquestrar compromissos de países pobres, emergentes e ricos contra os efeitos do aumento da temperatura no planeta na 15ª Conferência sobre Mudança Climática (COP-15), de Copenhague. Após duas semanas de muitos debates e negociações, o encontro convocado pelas Nações Unidas teve um final dramático no dia 18 de dezembro, com chefes de Estado tentando, em vão, aparar arestas mesmo após o encerramento oficial da conferência. O resultado final foi um documento político genérico, firmado só pelos Estados Unidos, China, Brasil, Índia e África do Sul, que prevê metas para cortes de emissões de gases estufa apenas para 2050, mesmo assim sem estabelecer compromissos obrigatórios capazes de impedir a elevação da temperatura em mais do que 2 graus Celsius, meta que Copenhague buscava atingir. Também foi proposta uma ajuda aos países pobres de US$ 30 bilhões nos próximos três anos, embora sem estabelecer parâmetros sobre quem estará apto a receber o dinheiro e quais instrumentos serão usados para distribuí-lo. O documento, costurado no último momento, não pôde sequer se converter num acordo. Faltou-lhe aval dos delegados de países como Sudão, Tuvalu, Cuba, Nicarágua, Bolívia e Venezuela, inconformados por terem sido escanteados nas conversas finais. “O que temos de alcançar no México é tudo o que deveríamos ter alcançado aqui”, disse Yvo de Boer, secretário-executivo da conferência, remetendo as esperanças para a COP-16, que vai acontecer de 29 de novembro a 10 de dezembro de 2010, na Cidade do México. A COP-15 tinha como meta principal fechar um acordo para suceder o Protocolo de Kyoto, celebrado em 1997, cujos signatários – 37 países industrializados – comprometeram-se em reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa em 5,2% até 2012, considerando-se o patamar de emissões de 1990. A ideia para Copenhague era dar um passo adiante
29
e garantir uma soma das metas dos países ricos capaz de reduzir em pelo menos 25% as emissões de gases estufa, também em relação a 1990. Com isso, avalia-se, seria possível circunscrever o aumento global de temperatura a 2 graus Celsius.
O
impasse principal girou em torno de um jogo de empurra sobre as responsabilidades dos países ricos e pobres. As nações desenvolvidas queriam que os países emergentes tivessem metas obrigatórias, o que não foi aceito pela China, país que mais emite carbono na atmosfera atualmente. E os Estados Unidos, que se abstiveram de ratificar o Protocolo de Kyoto e tentam recuperar-se da maior crise econômica desde 1929, não se dispunham sequer a cumprir a meta de 1997 – sua proposta era cortar apenas 4% de suas emissões em relação ao patamar de 1990. As negociações emperraram nas discussões sobre as novas metas pós-Kyoto. O chamado Plano de Ação de Bali, fechado durante uma conferência de 2007, previa conversas em duas frentes: buscando, de um lado, um acordo abrangente e, de outro, a extensão e a expansão das metas de Kyoto. Mas um texto preliminar alinhavado pelo governo dinamarquês foi bastante criticado por abandonar Kyoto e privilegiar o interesse norte-americano. No dia 14 de novembro, delegações de países africanos chegaram a abandonar as negociações por cinco horas,
30
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insatisfeitas com a proposta de se concentrar apenas em um novo acordo, em vez de trabalhar paralelamente em uma extensão do Protocolo de 1997. O impasse levou a ministra do Meio Ambiente da Dinamarca, Connie Hedegaard, a renunciar à presidência da COP-15 na reta final da conferência, na véspera da chegada dos chefes de Estado. Outra questão fundamental na conferência dinamarquesa era o financiamento para políticas de mitigação das emissões para os países pobres. Os países desenvolvidos exigiam que os emergentes ajudassem a financiar os menos desenvolvidos. A tese foi rechaçada pelos emergentes, que esperavam obter ajuda externa para suas políticas de combate ao aquecimento – embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num discurso no último dia de negociações, tenha admitido colocar dinheiro no fundo global proposto pelos Estados Unidos. Na véspera do encerramento da conferência, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, anunciou em Copenhague a disposição dos EUA de se juntar a outros países ricos para arrecadar US$ 100 bilhões por ano e ajudar os países em desenvolvimento, mas estabeleceu condições, como a exigência de que todos os países fossem transparentes no cumprimento de suas metas e aceitassem um monitoramento internacional. A China rejeitou prontamente a ideia. O premiê chinês, Wen Jiabao, afirmou na capital dina-
JEWEL SAMAD/afp
Delegados reunidos no Bella Centre, em Copenhague: divergências
marquesa que a China não submeteria suas ações voluntárias sobre a mudança climática à verificação internacional, por “princípios e soberania”. O Brasil teve um papel de destaque nas negociações finais, quando o presidente Lula tentou, juntamente com o colega francês Nicholas Sarkozy, forçar uma nova negociação. O governo brasileiro apresentara um plano para reduzir em 39% a projeção de emissões para 2020, gastando US$ 166 bilhões (R$ 282,2 bilhões) nos próximos 10 anos. Dos recursos, entre US$ 110 bilhões e US$ 113 bilhões devem ir para a construção de hidrelétricas e outros R$ 32 bilhões devem ser destinados à agricultura, com ações de plantio direto e recuperação de áreas degradadas. Conter o desmatamento na Amazônia, responsável pela metade das emissões nacionais, custaria US$ 21 bilhões. A situação do Brasil é privilegiada, uma vez que a matriz energética brasileira é limpa (com 46% da energia proveniente de fontes renováveis) enquanto o padrão mundial é de 13% de energia renovável. O ponto frágil do país é o descontrole sobre o desmatamento, sobretudo na Amazônia. Trata-se de uma atividade econômica predatória, que não representa mais do que 1% do PIB do país. “Devemos evitar o desmatamento da Amazônia, porque é de nosso interesse”, disse o chanceler Celso Amorim.
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liás, São Paulo, estado com matriz energética ainda mais limpa que a nacional, com 56% da energia gerada por fontes renováveis, também esteve em Copenhague mostrando suas estratégias. O governador de São Paulo, José Serra, participou de um evento no dia 14 de dezembro, no qual defendeu o potencial do etanol brasileiro como fonte de energia limpa capaz de contribuir com os esforços de mitigação e de adaptação ao aquecimento global. Ao apresentar as ações ambientais do governo paulista, Serra destacou o papel da pesquisa científica e, em particular, dos programas da FAPESP voltados para mudanças climáticas, bioenergia e biodiversidade. O evento Agricultura – Florestas Plantadas – Bioenergia, promovido pela Aliança Brasileira pelo Clima, reuniu cerca de 30 organizações não governamentais que atuam no Brasil, além de empresários e autoridades
como o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o secretário do Meio Ambiente de São Paulo, Francisco Graziano, e o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz.
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erra criticou a visão de algumas lideranças internacionais sobre o etanol brasileiro e classificou como “mitos” as ideias de que a produção de etanol possa invadir a Amazônia ou resultar na escassez de alimentos no mundo. “Essa fantasia do etanol como fator de destruição da Amazônia e causa de crise alimentar é uma confusão que parte do menosprezo ao progresso tecnológico que, no entanto, é uma variável crucial. A produtividade da cana por hectare em São Paulo aumentou 40% desde a década de 1970 só com base em inovações de institutos de pesquisa no estado e do setor privado”, disse. Para o governador, a exploração irracional da madeira e a expansão da pecuária e da soja são os verdadeiros
problemas ambientais para a região amazônica – e não o etanol. “Os centros produtores de cana-de-açúcar estão a 2 mil quilômetros da Amazônia. Não vejo essa ameaça à floresta por causa do etanol”, afirmou. Segundo Serra, com investimentos em pesquisa científica, será possível maximizar consideravelmente a produção de etanol sem aumentar a área plantada. “O fomento e a coordenação de pesquisas científicas nessa área têm sido feitos por meio da FAPESP”, disse. O governador destacou três programas que têm contribuído para o combate ao aquecimento global: o Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e o Programa Biota-FAPESP. “O PFPMCG, inclusive, é associado ao governo federal, que entra com metade dos recursos, sendo que o programa todo dispõe de R$ 64 milhões. O Bioen tem parcerias com a iniciativa privada e se dedica a pesquisas que vão da fisiologia
da planta à alcoolquímica. E o Biota-FAPESP, que produz estudos sobre a biodiversidade, é um dos maiores programas de pesquisa do mundo”, apontou. “Ciência e tecnologia estão no cerne do debate mundial sobre mudanças climáticas e meio ambiente e os programas da FAPESP contribuem para que as estratégias do Brasil possam ser, sempre que o governo assim o desejar, baseadas em conhecimento, como tem demonstrado o governo de São Paulo ao promulgar resoluções e decreto baseados nos resultados obtidos pelo Biota-FAPESP”, destacou Brito Cruz. Outra política ambiental do governo paulista mencionada por Serra foi a Lei de Mudanças Climáticas. “A lei paulista prevê uma redução das emissões em termos absolutos – isto é, não se baseia em cortes por unidade de PIB, nem em desaceleração. Isso não é uma tarefa fácil, até porque a energia utilizada em São Paulo é mais limpa que a de outros centros industriais”, afirmou. n
As dúvidas dos céticos Indagações de cientistas são usadas por políticos que buscam negar as mudanças climáticas Como os modelos usados para projetar os efeitos das mudanças climáticas têm um certo grau de incerteza, existem cientistas sérios que consideram demasiado categóricas as previsões feitas pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). São nomes como o da norte-americana Joanne Simpson, primeira mulher a receber um PhD em meteorologia. Ao se aposentar em 2008, disse que se sentia aliviada por poder falar francamente sobre suas dúvidas – ela considera ainda tênues as evidências de que a ação humana no aumento das emissões de carbono na atmosfera seja a causa do aquecimento global. “Essa correlação é baseada apenas nos modelos climáticos e nós sabemos que eles ainda são frágeis”, afirmou. Na mesma linha, Kiminori Itoh, professor de química da Universidade de Tóquio, afirma que o IPCC negligenciou outras causas do aquecimento, como as mudanças na atividade solar. O físico norueguês Ivar Giaever, vencedor do Prêmio Nobel de 1973, também não está convencido de que o carbono seja a chave para entender o aquecimento. Classificados como “céticos” desde que o estatístico dinamarquês Bjorn Lomborg usou o adjetivo no título de seu livro famoso (O ambientalista cético), esses pesquisadores formam uma ala minoritária na comunidade científica, mas cumprem o papel de colocar à prova o conhecimento, aprimorando-o com suas dúvidas. Seus argumentos são frequentemente utilizados por representantes de países ou de empresas atingidos pelas ações para enfrentar as mudanças climáticas. Na Conferência de
Copenhague, Mohammed Al-Sabban, delegado da Arábia Saudita, país exportador de petróleo, disse que duvida do aquecimento do planeta e que é necessário controlar os trabalhos dos climatologistas. Um dos membros da comissão de meio ambiente da União Europeia, o político de extrema direita Nick Griffin, do Partido Nacional Britânico, fez coro ao saudita. “Na Grã-Bretanha, mais de 50% da população recusa a teoria do aquecimento. Estou feliz em estar aqui para representá-los”, afirmou. Uma polêmica envolvendo e-mails de cientistas divulgados por hackers apimentou os bastidores da Conferência de Copenhague e serviu de combustível para os políticos incrédulos. Em novembro, piratas da internet divulgaram e-mails obtidos nos servidores do Centro de Pesquisas Climáticas (CRU), da Universidade East Anglia, no Reino Unido, nos quais há insinuações sobre manipulação de dados em favor da tese de que o aquecimento terá efeitos dramáticos. A mensagem mais constrangedora, datada de 1999, teve como autor o meteorologista Phil Jones. Ele falava de um estratagema para “mascarar as quedas das temperaturas”. Embora seja impossível negar a tendência de elevação da temperatura, os e-mails causaram confusão. “Muitas pessoas são céticas e ficam ainda mais preocupadas quando supõem que os cientistas manipulam informações em certa direção”, disse Yvo de Boer, secretário executivo da conferência. “Mas as evidências sobre as mudanças climáticas são sólidas e não foram arranhadas pelos e-mails”.
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COOPERAÇÃO
parcerias abrangentes FAPESP e Vale celebram acordo para investir R$ 40 milhões em projetos de vários campos do conhecimento
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ilustrações marcos garuti
FAPESP e a Vale S.A. celebraram um acordo de cooperação para envolver a comunidade científica do estado de São Paulo em temas de pesquisa de interesse da maior empresa privada do país e segunda maior mineradora do mundo. Nos próximos quatro anos serão investidos R$ 40 milhões – sendo uma metade proveniente da FAPESP e a outra da Vale – em projetos capazes de contribuir para o avanço do conhecimento nas áreas de mineração, processos ferrosos para siderurgia, energia, ecoeficiência e biodiversidade e que, simultaneamente, contemplem a aplicação do conhecimento no desenvolvimento tecnológico. O acordo foi assinado no dia 23 de dezembro, numa cerimônia na sede da FAPESP, em São Paulo, que teve a participação do vice-governador paulista, Alberto Goldman, do presidente da Vale, Roger Agnelli, do presidente da FAPESP, Celso Lafer, do diretor do Instituto Tecnológico Vale (ITV), Luiz Eugênio Mello, e do diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. “Com a mobilização dos pesquisadores das instituições paulistas, buscamos o desenvolvimento de tecnologias e de processos capazes de mudar paradigmas dentro da Vale”, diz Luiz Eugênio Mello, diretor do ITV, que é o braço de pesquisa da mineradora. “Não se trata de obter apenas ganhos incrementais ou pontuais, pois, para isso, continuaremos investindo em pesquisa própria e em parcerias com universidades e pesquisadores.” Segundo ele, em 2008 foram investidos US$ 38 milhões em convênios para desenvolver projetos de interesse da empresa. “Temos parcerias com a Universidade de São Paulo na área de logística, com a
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Federal de Minas Gerais em hidrometalurgia e com a Federal de Ouro Preto em mineração”, diz. A Vale aplicou em 2008 US$ 1,13 bilhão em pesquisa e desenvolvimento (P&D), situando-se no 101o lugar no ranking mundial das mil empresas de capital aberto que mais gastam em P&D, divulgado pela consultoria Booz & Company. Possui em seus quadros cerca de 500 pesquisadores no Brasil e no exterior – sendo a metade deles doutores. Em 2008 teve faturamento de US$ 38,5 bilhões. Segundo Mello, a parceria com a FAPESP se justifica pelo tamanho da comunidade científica de São Paulo, que é a maior do país e responde por 51% do número de artigos publicados em revistas internacionais indexadas, e pela experiência da Fundação na colaboração com empresas – um exemplo é a criação, em 1995, do programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). De acordo com Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, os temas contemplados no acordo de cooperação, alguns bastante abrangentes, refletem a complexidade das atividades da Vale e os desafios que a companhia enfrenta. “Essa amplitude abre múltiplas oportunidades em várias áreas do co34
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nhecimento”, diz. Segundo Brito Cruz, o acordo de cooperação é mais uma oportunidade que a FAPESP oferece à comunidade de pesquisa do estado de São Paulo de participar de temas de pesquisas relevantes para uma grande empresa e para a sociedade brasileira. “A FAPESP investe tradicionalmente na formação de recursos humanos e no apoio à pesquisa acadêmica em todas as áreas do conhecimento e, ao mesmo tempo, considera importante fomentar a pesquisa em projetos que explorem as possibilidades de interação entre universidades e empresas”, diz, referindo-se a recentes acordos de cooperação celebrados com companhias como a Microsoft, a Dedini, a Braskem e a Sabesp, entre outras. Em 2008, 9% dos investimentos da Fundação destinaram-se ao apoio à pesquisa com vistas a aplicações, num total de R$ 57,4 milhões. A formação de recursos humanos respondeu por 35% e o apoio à pesquisa acadêmica, 56%. Sensoriamento remoto - O acordo
entre a FAPESP e a Vale tem uma extensa lista de temas de pesquisa. No campo da mineração, o interesse engloba, para citar apenas dois exemplos, a busca de métodos de prospecção mineral por sensoriamento remoto e estudos so-
bre a formação geológica de cavernas e sobre as espécies que as habitam. No campo da energia, busca-se desde desenvolver novas rotas de obtenção de biocombustíveis, por meio de algas e resíduos florestais – uma área em que a Vale não tem expertise –, até estudar modelos capazes de melhorar a eficiência da geração hidrelétrica, entre outros. Há, ainda, interesse em investir em pesquisas no campo da ecoeficiência e biodiversidade, a fim de acelerar a recuperação de ambientes degradados ou reduzir os danos ambientais das atividades da empresa, além de aperfeiçoar o uso de recursos hídricos e identificar materiais sustentáveis para uso em construções próximas às minas. Outra linha de pesquisa é a de produtos ferrosos para siderurgia, que contempla o aprimoramento dos processos de obtenção da matéria-prima, o desenvolvimento de novos produtos ou a modelagem matemática de todas as etapas do beneficiamento dos minérios a fim de aperfeiçoar sua eficiência, entre outros. “Algumas dessas áreas, como a busca de novas rotas de biocombustíveis e a contabilidade ambiental, são novas para a Vale”, diz Luiz Eugênio Mello. “Outras, como a melhoria da eficiência energética e a biodiversidade, já eram alvos de parcerias com pesquisadores. E também há áreas, como a de geotecnia, em que temos pesquisa própria, mas consideramos que um olhar externo pode nos beneficiar”, continua. A iniciativa é resultado de uma nova estratégia da Vale em pesquisa e desenvolvimento. Se, em seus primórdios, a empresa teve uma atuante diretoria de tecnologia, a partir dos anos 1990 as atividades de pesquisa espalharam-se pelas diversas unidades de negócio – inclusive para outros países, como o Canadá, com a aquisição de concorrentes estrangeiras. “Um efeito colateral desse modelo é que as unidades de negócio não tinham outorga para promover ações mais abrangentes. E a relação com o meio acadêmico era incipiente”, afirma Mello. Esse modelo foi revisto no ano passado, com a criação do Instituto Tecnológico Vale (ITV), concebido para coordenar as ações de ciência e tecnologia da empresa, e o convite para que Mello, professor de fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), assumisse o seu comando.
Há dois anos, Mello, então pró-reitor de Pesquisa da Unifesp, foi à sede da Vale formalizar uma proposta de parceria para a formação de engenheiros. Ao final de sua exposição, foi convidado a trabalhar na empresa. “Não fazia ideia de que se tratava de uma reunião de recrutamento”, diz Mello, cujo currículo profissional registra, entre diversas atividades, o cargo de coordenador adjunto da diretoria científica da Fapesp entre 2003 e 2006. “Agora montamos uma governança tecnológica matricial que coordena todas as ações envolvendo o meio acadêmico”, afirma. Bolsas - O ITV concedeu 86 bolsas pa-
ra alunos de mestrado e doutorado no Pará que pesquisam temas de interesse direto da Vale, como mineração, energia e biodiversidade. O instituto contará com três centros de pesquisa, cada um com uma vocação específica. A de Minas Gerais será erguida em Ouro Preto e se especializará em temas de mineração. A unidade do Pará ficará em Belém e priorizará as pesquisas em desenvolvimento sustentável. A de São Paulo será voltada para as inovações em energia, tendo como um dos principais parceiros o centro tecnológico da empresa Vale Soluções em Energia, em São José dos Campos. “Em grande medida, o crescimento da Vale não se deveu apenas à excelência em gestão, mas a investimentos em tecnologia. Se o porto de Tubarão é considerado o mais eficiente do país, houve muita pesquisa no campo das análises computacionais e matemáticas para lastrear essa competência”, afirma, referindo-se ao porto privado em Vitória (ES) operado pela Vale. A Vale também está celebrando acordos de cooperação em moldes semelhantes ao da FAPESP com outras duas fundações estaduais de amparo à pesquisa, a de Minas Gerais (Fapemig)
e a do Pará (Fapespa). “São dois estados em que a Vale tem uma atuação importante em suas atividades produtivas”, explica Mello. A Fapemig investirá R$ 20 milhões e a Fapespa, R$ 8 milhões, para uma contrapartida da Vale que é de R$ 20 milhões em Minas Gerais e de R$ 32 milhões no Pará. Somando o total de investimentos com as três fundações, o investimento chega a R$ 120 milhões. Para o presidente da Fapemig, Mario Neto Borges, esta parceria incentiva a articulação entre três elos – empresa privada, meio acadêmico e governo – que historicamente têm deficiências de comunicação. “Estamos quebrando paradigmas. O peso do nome da Vale abre portas para que outras empresas se interessem em fazer parcerias”, acredita. Segundo Mello, terá mais chances de ser contemplado o projeto que propuser o desenvolvimento de pesquisas em redes interestaduais, ou seja, uma universidade do Pará em parceria com uma de Minas ou de São Paulo e vice-versa. “Um de nossos principais objetivos é promover a troca de experiências e o intercâmbio de conhecimento, recursos e infraestrutura entre as instituições”, explica. Parcerias com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também estão no escopo da nova estratégia. “Nosso objetivo, ao ampliar nosso investimento em pesquisa, é fazer com que a Vale, num horizonte de alguns anos, opere com impacto ambiental e custos energéticos cada vez menores e recorra a novas tecnologias para, cada vez mais, prevenir a degradação e diminuir o problema no nascedouro, recuperando rapidamente áreas degradadas. E, é claro, procuramos obter novos métodos de prospecção mineral”, conclui Mello. n
Fabrício Marques
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Biodiversidade
Mais do que um catálogo
Códigos de barras de DNA identificam novas espécies e contribuem para estudos de ecologia e evolução Maria Guimarães
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magine um mundo em que você possa saber o nome de qualquer animal, qualquer planta, qualquer fungo, qualquer organismo – no local, num instante, em qualquer lugar do nosso planeta. Essa é a promessa contida no folheto de apresentação do Projeto Internacional do Código de Barras da Vida (iBOL, na sigla em inglês), sediado na Universidade de Guelph, no Canadá. E foi a proposta que Paul Hebert, diretor científico do iBOL, trouxe ao Simpósio Internacional sobre DNA Barcoding do programa Biota-FAPESP, nos dias 4 e 5 de dezembro. Hebert é conhecido como o “inventor” dos códigos de barras de DNA, trechos curtos (cerca de 650 pares de bases) do genoma mitocondrial que permitem distinguir espécies diferentes. Na palestra de abertura do simpósio, o pesquisador mostrou como um banco de dados disponível pela internet, que integre informações genéticas e ecológicas, pode cumprir o propósito de catalogar e identificar toda a diversidade biológica do planeta. O Brasil, detentor de uma
eduardo cesar
diversidade biológica invejável, é parceiro cobiçado por iniciativas internacionais, como o iBOL e o Consórcio para o Código de Barras da Vida (CBOL). Tanto que David Schindell, secretário executivo do consórcio, veio de Washington para dar sua palestra e voltou no mesmo dia. Mas os pesquisadores brasileiros presentes demonstraram que a colaboração não se limitará a enviar amostras de material genético para o exterior. David Oren, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi e coor denador de biodiversidade da rede Geoma, que reúne vários institutos do Ministério da Ciência e Tecnologia, ressaltou a necessidade de se instituir um programa nacional de barcoding e ao mesmo tempo depositar espécimes da biodiversidade nativa nos museus brasileiros. “Não podemos perder esse bonde”, disse. É por falta de uma organização central que reúna os esforços que, apesar da riqueza biológica, o Brasil está só em 11o lugar entre os países que forneceram dados para o banco de dados internacional Barcode of Life Data Systems (Bold).
Além da ausência de uma coordenação nacional, o processo de inventário no Brasil promete ser infinitamente mais laborioso do que no Canadá. O botânico Alberto Vicentini, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), usou um pedacinho da Floresta Amazônica como exemplo: a reserva Ducke, próxima a Manaus, uma das regiões mais bem conhecidas da Amazônia. Ali em 1990 se estimava que haveria 825 espécies de plantas vasculares – árvores e arbustos. Com trabalho constante de inventários, em 1994 esse número subiu para 1.199, e em 1999 para 2.175, praticamente triplicando em uma década. Os levantamentos da flora demoram muito a serem feitos não só porque a diversidade é gigantesca, mas também porque se conhece tão pouco dela. O resultado são pilhas de amostras sem especialistas que possam identificá-las. Para Vicentini, sequenciar o código de barras e fazer um diagrama com o parentesco entre essas árvores não resolveria o problema, já que as plantas continuariam sem nome. “A Amazônia é uma região continental, com uma enorme diversidade e provavelmente muita diversificação recente com variação molecular insuficiente para que se possam distinguir as espécies”, disse. Mas já é um começo. O código de barras ajuda a triar a variedade e classificá-la de alguma maneira. Quanto mais da diversidade estiver representada – e identificada – no banco de dados, mais rápido avança o processo de inventário. O uso possível da técnica vai muito além de catalogar a diversidade. Os pesquisadores estrangeiros e brasileiros que apresentaram seus resultados no simpósio mostraram que é um método inovador e importante para se iniciarem estudos de evolução e ecologia: inferir quando as espécies surgiram
O método vem se mostrando útil para identificar peixes e comparar comunidades de espécies de bacias diferentes
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e se elas são duradouras, comparar a diversidade entre áreas diferentes e muito mais. O geneticista Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi um dos primeiros pesquisadores a participar do consórcio internacional CBOL e a inserir dados no Bold. Em 2006, seu grupo mostrou que o código de barras de DNA é eficaz para identificar aves dos trópicos – quando o método falha é porque há problemas na classificação que precisam ser resolvidos por estudos mais detalhados. Em uma pincelada rápida de como vem usando a técnica, ele mostrou também que é possível distinguir as cinco espécies de tartarugas marinhas que ocorrem na costa brasileira, como relata artigo de 2009 na Genetics and Molecular Biology. E, em um estudo sobre morcegos publicado em 2008 na Molecular Physiology and Evolution, o grupo mineiro encontrou casos de espécies ocultas, em que duas ou mais espécies são erroneamente
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consideradas uma única. O método vem se mostrando igualmente útil para identificar peixes e comparar as comunidades de espécies de bacias diferentes, como mostrou Cláudio Oliveira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, e pererecas, segundo projeto piloto conduzido por Mariana Lyra, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coexistência - Um bom exemplo de aplicação eco-
lógica vem do laboratório de Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Para entender a coexistência de duas espécies de gatos-do-mato na região central do estado gaúcho (ver Pesquisa FAPESP nº 159), sua equipe vem tentando, em colaboração com especialistas em roedores, identificar as espécies encontradas dentro do estômago dos felinos. A tarefa agora ficou bem mais fácil, com os marcadores genéticos. Por enquanto, os dados vêm confirmando as suspeitas de que cada espécie de gato-do-mato come presas diferentes, não exatamente o mesmo tipo de roedores. Os resultados também trouxeram surpresas para os especialistas em ratos: o DNA de espécies que não estão no banco de dados. Os gatos-do-mato provavelmente conhecem melhor a fauna de pequenos mamíferos do que os especialistas humanos. Num exemplo mais próximo do cotidiano extrauniversitário, a geneticista Cristina Miyaki, da Universidade de São Paulo (USP) – uma das organizadoras do simpósio, junto com as colegas de
eduardo cesar
Biodiversidade faz do Brasil um parceiro cobiçado pelas iniciativas internacionais de catalogação
instituto Mariana Cabral de Oliveira e Lúcia Lohmann –, mostrou um caso de polícia. Um homem detido em 2003 no aeroporto de Recife vestia, por baixo da camisa, rolos feitos com meias femininas cheios de ovos que ele declarou serem de codorna. Não convencida, a polícia avançou com a investigação e pediu ajuda à especialista da USP. Eram 50 embriões, que a equipe de Cristina identificou serem da arara-canindé (Ara ararauna), do periquito sabiá-cica (Triclaria malachitacea), do papagaio-galego (Alipiopsitta xanthops) e de papagaios do complexo Amazona aestiva/ Amazona ochrocephala. Para a sorte do traficante, nenhuma delas ameaçada de extinção, o que lhe valeu a liberdade depois de ficar detido alguns dias e pagar uma multa.
guem rumos evolutivos independentes mesmo com materiais genéticos muito semelhantes, talvez porque ainda não tenha passado tempo suficiente para que as diferenças se acumulassem. De qualquer forma, parece haver um consenso entre os pesquisadores brasileiros que participaram do simpósio: muitos avanços no conhecimento estão à vista se todos os especialistas, das várias áreas, se reunirem em torno desse novo instrumento. “Seria preciso um financiamento amplo para se fazer um grande centro de investigação da biodiversidade por meio de códigos de barras”, diz Vi-
foi um rápido passeio por uma imensa riqueza que poderá ser revelada com o uso mais sistemático dos códigos de barras no Brasil. No entanto, o uso dessa ferramenta genômica ainda enfrenta preconceitos. Alguns pesquisadores não acreditam que analisar as sequências genéticas funcionará como foi prometido por Paul Hebert, o diretor científico do iBOL, sem que se conheça mais a fundo a biologia dos organismos. “Os códigos de barras vão ajudar a delimitar o que é uma espécie? Eles vão substituir a necessidade de dar nome às plantas?”, questionou Vicentini, do Inpa, em sua apresentação. Muitos discordam, por exemplo, do princípio usado pelo canadense para definir espécies diferentes: bastaria uma divergência de 2% entre os trechos de DNA analisados. A ideia não é considerada realista porque algumas espécies abrigam grande diversidade e mesmo assim funcionam como uma unidade evolutiva. O contrário também pode acontecer: duas espécies que se-
miguel boyayan
Preconceitos - O simpósio
centini. “Um centro desse tipo pode impulsionar as atividades de inventário e descrição da biodiversidade brasileira, mas precisa estar atrelado ao fortalecimento da taxonomia e da sistemática e, principalmente, à formação de profissionais. O código de barras molecular deve ser visto como uma ferramenta adicional ao entendimento da diversidade biológica, e não como substituto das formas tradicionais de pesquisa em taxonomia e sistemática”, defende. n
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LABORATÓRIO
Para nós, os macacos de uma mesma espécie podem parecer todos iguais. Mas não é assim para eles. Macacos-prego (Cebus apella) reconheceram
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MUNDO
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fotos de outros macacos da mesma espécie que perten-
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ciam à mesma comunidade, diferenciando-os daqueles que
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não integravam seu grupo de companheiros habituais. Como as imagens eram em preto e branco, todos tinham faces muito similares. Em um artigo publicado na revista PNAS, Jennifer Pokorny e Frans Waai, da Universidade Emory, Estados Unidos, apresentam os detalhes desse experimento, feito com dois grupos de 15 animais cada um e um total de 108 imagens.
Reconhe-
cem, porém, que não sabem que tipo de informação integrantes
os animais usam para discriminar
do grupo a que pertencem e de outros grupos.
Como os humanos, talvez confiem na face como elemento indicador de identidade, além de, ao menos para nós, idade, sexo e estado emocional. Os pesquisadores suspeitam que o reconhecimento
das faces se apoia no grau de familiaridade
ou proximidade com os indivíduos retratados.
> Um alerta
sobre células-tronco
Vistas como a mais recente esperança de novos tratamentos contra doenças incuráveis, as células-tronco padecem de um sério problema: a escassez de diversidade genética nas linhagens mais pesquisadas, alertaram nove especialistas dos Estados Unidos, da República Checa e da Espanha em uma carta publicada em 16 de dezembro na revista
New England [ournal of Medicine. Com base em análises genéticas realizadas na Universidade de Michigan, Estados Unidos, eles argumentam que a maioria das células-tronco estudadas pertence a pessoas com ancestrais no norte e oeste da Europa ou no Oriente Médio - apenas duas linhagens eram do leste da Ásia. Os dados coincidem com a origem das variedades mais usadas de células, que provavelmente saíram de Israel e da Espanha, mas
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preocupam porque podem limitar a pesquisa e suas potenciais aplicações médicas. O que fazer? Ampliar (J número de doadores de células-tronco e disseminar linhagens de populações ainda pouco representadas nas pesquisas, de modo a determinar como a ancestralidade pode influenciar a evolução e o tratamento de doenças.
> O tamanho nos genes O biólogo norte-americano Michael Crickmore ajudou a explicar por que estruturas semelhantes os dedos das mãos de uma mesma pessoa ou as patas de um rato e um elefante - podem ter tamanhos tão
diferentes. Como o tamanho das células pouco varia, Crickmore apostou que a explicação estaria na quantidade de células das estruturas. Estudando moscas-da-fruta, ele descobriu que o tamanho de duas estruturas anatômicas com a mesma origem e tamanhos distintos - as asas e os halteres (asas menores e não funcionais) - são determinados pelo nível de atividade de genes que regulam a proliferação celular. Seus achados, descritos em artigos recentes, foram resumidos em um ensaio que lhe rendeu o primeiro lugar do GE & Science Prize for Young Life Scientists e saiu na revista Science de 4 de dezembro. Ainda falta responder uma pergunta importante: só a regulação desses genes explicaria a diferença de tamanho entre ratos e elefantes?
animais com receptores celulares deficientes. Um gosto agradável, uma refeição prazerosa ou mesmo a expectativa do prazer à mesa, concluíram os pesquisadores, estimulam a utilização da glicose e portanto reduzem os níveis de açúcar no sangue durante uma refeição ou um lanche.
> Uma
jornada de dois dias
> Os olhos
atiçam queima de açúcar
Apenas ver um doce já dispara os comandos para que as células dos músculos comecem a incorporar mais açúcar do sangue. Uma comunicação por meio de um neurotransmissor chamado orexina, que sai dos neurônios do hipotálamo para o sistema nervoso simpático, é que aciona esse comando, de acordo com um estudo
realizado em camundongos e em ratos, publicado em dezembro na CeUMetabolism. Dois pesquisadores do Instituto Nacional de Ciências Fisiológicas do Japão, Yasuhiko Minokoshi e Tetsuya Shiuchi, confirmaram essa possibilidade injetando orexina-A no hipotálamo de camundongos e ratos; em resposta, as células começaram a captar mais glicose, armazenada nos músculos esqueléticos. Esse efeito foi muito tênue em
Quão longe uma vespa polinizadora pode ir? Em busca de uma boa resposta, biólogos da Universidade Leeds, Inglaterra, usaram marcadores moleculares para caracterizar uma população isolada de figueiras Ficus sycomorus das margens do rio Ugab, no deserto da Namíbia. Comum no sul da África, essa espécie de árvore depende de uma pequena vespa de hábitos noturnos, a Ceratosolen arabicus, para ser polinizada. Seguindo os movimentos desses insetos entre árvores reconhecidas individualmente por meio
TERRA PARA AS FLORESTAS
de seus pólens, os pesquisadores verificaram que essas vespas podem visitar árvores distantes até 160 quilômetros entre sia distância média foi de 88,6 quilômetros. Os insetos seguiram em especial rumo a oeste, em direção ao mar, refletindo a direção dos ventos noturnos, que podem atingir uma velocidade de 60 quilômetros por hora. As vespas assim podem voar muito e aproveitar bem a vida adulta, que dura somente 48 horas.
Em alguns poucos séculos as atividades humanas consumiram quase metade das flores· tas do planeta, transformadas em plantações e cidades. Ante as evidências do aumento da
temperatura global e do contínuo crescimento da população humana, que em breve deve chegar a 7 bilhões de pessoas, surgem esforços para frear a derrubada de mais florestas e restaurar as degradadas. Usando imagens de satélite, pesquisadores da Parceria Global para a Restauração de Florestas (GPFLR) produziram um mapa mundial das áreas desmatadas com potencial de recuperação. São 1 bilhão de hectares (6% das terras do planeta) que podem voltar a abrigar florestas sem prejudicar atividades como a produção de alimentos. "Sabemos como restaurar florestas e torná-Ias sustentáveis.
Também sabemos onde fazer isso. Logo, deveríamos nos
dedicar a essa tarefa", diz Tim Rollinson, diretor da Comissão Britânica de Florestas e presidente da GPFLR. Segundo dados preliminares, a recuperação de florestas degradadas pode retirar da atmosfera um volume de gases responsáveis pelo aquecimento global semelhante ao que deve deixar de ir para o ar caso se evite mais desmatamento.
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LABORATÓRIO
BRASIL
> A evolução
da febre amarela
Animais como este tamanduá reforçam a dieta dos caiçaras
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Embora menos que no passado, os caiçaras, habitantes tradicionais
da Mata Atlântica litorânea, ainda
caçam animais silvestres como jacus, papagaios, sabiás, pacas, raposas, capivaras, tatus, onças, jacarés e lagartos. Os animais servem principalmente
como
fonte suplementar de proteínas, mas podem ter também valor medicinal, como a carne de jacu, jacaré e capivara, de acordo com um estudo realizado por Natalia Hanazaki, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Cata ri na (UFSC), publicado em novembro na Journal of Ethnobiology
and Ethnomedicine.
Ela en-
trevistou 116residentes de comunidades tradicionais da Mata Atlântica da Região Sudeste, cumpriu cerca de
1&.1
80 dias de trabalho de campo e verificou os hábitos
I-
de caça e os usos dos animais: por exemplo, o caramujo-
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-do-mato é tostado, triturado
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e servido com o propó-
sito de depurar o sangue das pessoas. Os recursos naturais usados pelos caiçaras ultrapassam 300 espécies de plantas, como o alecrim, e animais, como
o tamanduá, além de peixes. A abertura de estradas, o uso de barcos motorizados, que facilitam a pesca, e as restrições da lei tornam a caça uma atividade esporádica.
> Mais picadas nas cidades Os casos de picadas de cobras aumentaram no norte de Minas Gerais. Um levantamento da Universidade Estadual de
Montes Claros publicado em setembro do ano passado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical registrou que o número de acidentes ofídicos atendidos no Hospital Universitário
Clemente de Faria passou de 1.715 em 2002 para 2.137 em 2006, em razão, provavelmente, do desmatamento e da expansão das áreas de cultivo, principalmente de cana-de-açúcar, que forçam o deslocamento das serpentes para áreas urbanizadas. A maioria (61 %) das pessoas que sofreram uma picada residia em áreas consideradas urbanas, onde geralmente ocorreu o acidente (54% dos casos). Em 66% dos casos notificados nos 86 municípios da macrorregião do norte de Minas as vítimas chegaram aos postos de atendimento em menos de três horas após o acidente. Os pesquisadores de Minas avaliaram 10.553 casos notificados de 2002 a 2006, quase metade dos cerca de 20 mil registra dos por ano em todo o país.
Os vírus da febre amarela continuam a se diversificar. Pesquisadores de São Paulo e de Londres compararam trechos do genoma de 11 amostras de vírus da febre amarela isolados de macacos e seres humanos que apresentaram sintomas da doença em 2000, 2004 e 2008 e viram que as sequências genéticas das variedades de 2004 e 2008 formaram um novo subgrupo, o l E, As variedades desse subgrupo começaram provavelmente a se diversificar em 1975. Conduzido por Renato Souza, do Instituto Adolfo Lutz, e publicado na [ournal of Medical Virology, esse estudo sugere que as linhagens mais antigas tendem a desaparecer e ser
Variedades substituem
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/
recentes as antigas
A epidemia mundial de gripe espanhola matou cerca de 50 . milhões de pessoas (35 mil no Brasil) em poucos dias ou horas em 1918 e 1919.A causa pode ir além da capacidade de uma variedade de vírus causar infecções evoluíam
intensas
que
rapidamente:
as
pessoas morriam em poucos dias, às vezes horas, depois do aparecimento
dos primeiros
sintomas, sufocadas pelo flui-
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do que tomava conta dos pulmões. Maria Inês Azambuja, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresentou outras possibilidades na edição de dezembro da revista Medical Hypotheses. A epidemia que matou mais
normal. Essas comparações saíram de um estudo realizado por Alex Florindo, da Universidade de São Paulo, e publicado no
que a Primeira Guerra Mundial, encerrada em 1918 com um saldo estimado de 16 milhões de mortes, pode ter resultado da emergência de uma variedade de vírus cuja letalidade, por si só elevada, se ampliou por meio da convivência ou da competição com variedades que se manifestavam habitualmente, espe-
Iournal of Physical Activity and Health. Florindo e
cialmente no inverno. A pesquisadora prediz um aumento da severidade da epidemia de influenza no hemisfério Norte.
substituídas pelas mais recentes, eventualmente causando outras manifestações clínicas da doença. Outra conclusão: casos amenos ou assintomáticos de febre amarela, somados ao desmatamento e à expansão das áreas urbanas, podem facilitar a dispersão, a transmissão e a evolução dos vírus.
outros pesquisadores analisaram dados de 1.318 pessoas com 18 a 65 anos que haviam participado do Inquérito de Saúde no Município de São Pauto. De modo geral, os moradores da maior cidade brasileira apresentam insuficiente atividade física relacionada ao trabalho, ao laser e aos afazeres domésticos.
relacionadas ao trabalho doméstico e nas atividades físicas em geral. Pessoas com 12 anos ou mais de estudos são menos ativas nas atividades de trabalho e da casa que as com até três anos de escolaridade. Obesos são menos ativos nos espaços de trabalho que os indivíduos com peso
> Quem faz
menos exercícios físicos
,;.
Mulheres são menos ativas que os homens em atividades físicas relacionadas ao laser, ao trabalho e ao transporte, enquanto homens são menos ativos que as mulheres nas atividades )
> Malária
reduz as notas na escola
Casos amenos de malária não matam, mas atrapalham. Podem fazer com que as crianças tenham de faltar mais às aulas, prejudicando o rendimento escolar, de acordo com um estudo realizado por pesquisadores de Manaus e Brasília. À frente desse levantamento, Sheila Vitor-Silva, da Universidade do Estado do Amazonas, acompanhou durante nove meses 198 crianças de 5 a 14 anos de idade que estudavam em Careiro, município do estado do Amazonas em que a malária é endêmica; 35% dos estudantes desse grupo já haviam passado por episódios não severos de malária, de acordo com o artigo publicado na Malaria [ournal. Quedas nas notas finais de duas disciplinas, português e matemática, atestaram que mesmo casos não graves de malária podem prejudicar o rendimento escolar.
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ciência
Geofísica
Bactérias
tess izaannte letr eele triz
Microrganismos podem explicar a origem da eletricidade encontrada em terrenos contaminados Reinald o José Lopes
Estella atekwana/oklahoma state university
U
m aterro sanitário ou um terreno encharcado de petróleo que vazou de um oleoduto estão longe de ser ambientes favoráveis à vida do ponto de vista humano. Mas, para certas bactérias, o solo contaminado com esse tipo de poluente pode representar um banquete, uma vez que os microrganismos conseguem usar os resíduos ricos em matéria orgânica como fonte de energia. Essa atividade microbiana, aliás, pode até ser bastante desejável. É que, ao se alimentar, as bactérias degradam os compostos orgânicos e ajudam na limpeza das áreas poluídas. O geofísico brasileiro Carlos Alberto Mendonça e colaboradores nos Estados Unidos e na Europa acreditam ser possível descobrir quando as bactérias estão em ação sem precisar escarafunchar o solo. Nos últimos anos eles conseguiram indícios de que o repasto bacteriano deixa no solo uma trama de material condutor de eletricidade bastante sutil, mas detectável com o auxílio de equipamentos relativamente simples. Se outros experimentos confirmarem a ocorrência desse fenômeno – chamado pelos pesquisadores de biogeobateria –, o rastreamento da corrente elétrica pode se tornar uma ferramenta útil para indicar os locais onde os microrganismos estão ajudando eliminar os contaminantes do solo e aqueles nos quais a ação bacteriana não está dando conta da faxina. Os pesquisadores apresentam um modelo explicando o funcionamento dessas biogeobaterias em um artigo a ser publicado em breve na revista científica JGR-Biogeosciences. Na verdade, esse conceito é uma extensão de um fenômeno geofísico bem estabelecido e estudado, as geobaterias, conta Mendonça, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Essa anomalia elétrica freSob o solo: quentemente está associada à presença de filamentos minerais condutivos no subsolo, em especial conectam sulfeto de ferro ou sulfeto de cobre”, explica. exemplares “Por isso mesmo ela se tornou um indício da bactéria importante para a prospecção mineral, prinShewanella oneidensis cipalmente na mineração de cobre.”
minerais no solo. Mas nada se sabia sobre a possível relação desse fenômeno com a biodiversidade microscópica encontrada na terra. Esse conhecimento começou a mudar com os dados oriundos do aterro sanitário de Entressen, no sul da França. Em artigo de 2003 na Geophysical Research Letters, a equipe de André Revil – pesquisador da Escola de Mineração do Colorado, nos Estados Unidos, e da Universidade de Savoia, na França, com quem Mendonça colabora – demonstrou a ocorrência de anomalias elétricas muito semelhantes às geobaterias no aterro de Entressen.
O
que se viu em Entressen foi depois observado em outros lugares: nas vizinhanças de uma refinaria em Berre, também no sul da França, onde ocorrera um derramamento de óleo cru; e numa antiga usina de gás natural em Portadown, na Irlanda do Norte, onde o solo e o lençol freático foram contaminados por compostos orgânicos após a desativação da usina. O potencial elétrico detectado era de centenas de milivolts – um terço do que
é produzido por uma pilha comum. Parece pouco, “mas a corrente associada é considerável”, diz Mendonça. Em todos esses casos, era natural esperar a ação de microrganismos sobre as moléculas orgânicas que contaminavam o solo – em Berre, aliás, sabia-se que havia biodegradação do petróleo. Se a anomalia elétrica estava presente, talvez não fosse ousado demais propor que os microrganismos tivessem algo a ver com ela. “Esse é o grande desafio, a grande pergunta que queremos responder”, afirma Mendonça. Sinais de que o grupo estava no rumo certo vieram de outro trabalho, publicado em 2007 na Geophysical Research Letters pela equipe de Yuri Gorby, do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos. Gorby e seus colegas tinham descoberto que a bactéria Shewanella oneidensis era capaz de produzir filamentos de apenas 100 nanômetros (milionésimos de milímetro) de espessura condutores de eletricidade. Segundo esse estudo, os filamentos poderiam funcionar como fios elétricos, pelos quais as bactérias lançariam os elétrons que
CELIO MESSIAS/AE
As geobaterias surgem quando no subsolo há contato de água com uma massa de mineral metálico se estendendo mais na direção vertical (do mais raso para o mais profundo) do que na horizontal. Nessas condições a porção mais superficial da massa metálica entra em contato com maior quantidade de oxigênio do ar, enquanto a mais profunda permanece em situação de quase anóxia (ausência de oxigênio). A diferença de concentração desse elemento químico favorece a transformação de energia química em energia elétrica: é a chamada reação de oxirredução, na qual um dos compostos transfere partículas de carga elétrica negativa (elétrons) para outro. No caso do mineral metálico, a região em contato com o ar perde elétrons (sofre oxidação) e a mais profunda ganha (sofre redução). O fluxo de elétrons gera uma corrente cujo efeito, o potencial elétrico, pode ser detectado com a ajuda de um par de eletrodos e um voltímetro. Até poucos anos atrás, a detecção desse tipo de anomalia fornecia uma pista interessante sobre a presença de
Depósito de lixo: fonte de energia para bactérias que degradam compostos orgânicos 46
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sobrassem de seu metabolismo no solo, onde poderiam ser absorvidos por minerais. No trabalho de 2007 a equipe de Gorby deu um passo além. Os pesquisadores preencheram uma coluna com areia molhada para simular em laboratório uma camada de solo. Depois colocaram os micróbios na mistura e observaram o que acontecia. Dias mais tarde viram que tinha surgido uma corrente elétrica que atravessa o solo artificial de baixo para cima. Eles também verificaram que uma rede de filamentos unia as bactérias. O grupo, então, propôs que o emaranhado era o responsável por fazer essa espécie de bateria microbiana funcionar. Segundo Mendonça, se essa rede de filamentos alcançasse a escala de metros de comprimento, permitiria explicar as observações feitas em terrenos contaminados. “Até agora ninguém conseguiu contestar experimentalmente o trabalho de 2007, mas muitos microbiologistas o criticam porque lhes parece impossível que a transmissão de elétrons entre as bactérias possa atingir a escala de metros”, explica o geofísico da USP. “Para eles, deveria haver perda de energia e a transmissão deveria ocorrer, no máximo, entre poucas bactérias.” Mendonça e seus colegas, no entanto, acreditam que a dissipação de energia pode ser bem menos severa – o que viabilizaria a ideia de que certas espécies de bactérias, como a Shewanella oneidensis, estariam por trás das biogeobaterias. “Sem isso, fica muito difícil explicar o sinal elétrico que detectamos”, diz ele. O modelo desenvolvido pela equipe de Mendonça se inspira nas chamadas células a combustível bacterianas, já bem estudadas em laboratório para explicar o funcionamento das biogeobaterias. Tal como nas células a combustível, as moléculas orgânicas do solo poluído serviriam
>
O Projeto Aparato de laboratório para simular campos de potencial espontâneo na perfilagem geofísica de poços
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenador
Carlos Alberto Mendonça – IAG/USP investimento
R$ 21.988,37 (FAPESP)
de combustível para as bactérias, que transfeririam elétrons de um polo a outro da bateria. Como nas geobaterias, o fluxo de elétrons surgiria das áreas mais fundas e anóxicas rumo à superfície, mais oxigenada. “Assim se teria um emaranhado de nanofios com propriedades elétricas produzido por essa comunidade microbiana eletrificando, de certa forma, boa parte da Terra”, compara Mendonça. O grupo que Mendonça integra precisa agora de dados mais robustos em favor de seu modelo. Um caminho para os obter é testar as ideias em estudos de campo. A equipe tem duas áreas em vista: um local onde houve derramamento de petróleo, nos Estados Unidos; e um aterro, com o tamanho de um quarteirão e 6 metros de profundidade, perto do rio Pinheiros, em São Paulo. “Nesse aterro são jogados os dejetos após a flotação e a centrifugação feitas para diminuir a quantidade de poluentes num trecho do rio”, explica o pesquisador da USP. “Infelizmente, nesse caso, limpa-se uma coisa [o rio] e se suja outra [o solo].”
> Artigo científico Revil, A.; Mendonça, C. A. et al. Understanding biogeobatteries: where geophysics meets microbiology. JGRBiogeosciences. Special issue. No prelo.
S
e a hipótese do grupo estiver correta, deverá ser possível detectar uma assinatura elétrica diferente em profundidades distintas do solo – reações de redução ocorrendo nas regiões mais profundas da área poluída e as de oxidação mais acima, tudo mediado pela trama de microrganismos interligados. “Teremos de ver se é possível verificar esse efeito diretamente, porque esses terrenos muitas vezes têm uma complexidade espacial que pode atrapalhar a análise”, ressalva Mendonça. Caso o experimento funcione, a detecção de biogeobaterias em terrenos contaminados pode se tornar um indicador de que nesses locais existem condições favoráveis à degradação natural de poluentes. Já a ausência de corrente elétrica pode significar que, deixada à própria sorte, a natureza não será capaz de decompor o contaminante. “Nesse caso, a contaminação poderia durar séculos e seria necessário uma intervenção direta para resolver o problema”, afirma. Bastaria espetar os eletrodos no solo para poder diferenciar um cenário do outro. Mendonça lembra que muitos pesquisadores consideram possível que a trama eletrificada formada pelas bactérias seja um elemento antigo da biosfera – surgido há mais de 2 bilhões de anos, quando a atmosfera da Terra era mais pobre em oxigênio e os microrganismos consumiam o ferro do solo para gerar energia e se manterem vivos. E comenta: “É incrível encontrar um processo que talvez remonte ao surgimento da atmosfera atual do planeta em algo, por assim dizer, tão moderno quanto o n solo contaminado por poluentes”. PESQUISA FAPESP 167
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> Saúde Pública
Árduos avanços Persistência da pobreza amplia incertezas das pesquisas de medicamentos e tratamentos contra tuberculose Carlos Fioravanti (texto), de Cancún | Evelyn Ho ckstein (fotos), de Kibala*
Nurdinir Mayoyo (direita) entrega um maço de verdura para reforçar a dieta de Celestine Benja, em tratamento
A
s promessas de ter em mãos rapidamente novos medicamentos contra tuberculose não se concretizaram. A Stop TB Partnership, uma ramificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), previu em 2006 que pelo menos um novo remédio contra uma das doenças mais antigas da humanidade estaria pronto para uso até 2010. “Não conseguimos”, reconheceu Christian Lienhardt, um dos representantes da Stop TB Partnership no congresso sobre tuberculose realizado no início de dezembro em Cancún, cidade litorânea do sudeste do México, “mas estamos perto de nossas metas”. Pela primeira vez, 20 novas moléculas aparentemente capazes de deter as colônias de Mycobacteria tuber culosis encontram-se em desenvolvimento ao mesmo tempo. A maioria atravessa os estudos preliminares em animais de laboratório, mas três já estão na fase inicial de testes de segurança e eficácia em seres humanos, outras três na segunda etapa e duas na etapa final. O cenário otimista é que dois ou três novos medicamentos estejam aptos para registro nos órgãos governamentais e liberação para uso amplo em seres humanos em 2015. “Esta é uma oportunidade histórica para mudarmos o modo como a tuberculose é tratada”, enfatizou Zhenkun Ma, diretor científico da Global Alliance for TB Drug Development (TB Alliance), instituição que reúne institutos de pesquisa, empresas e governos em busca de novos remédios contra uma doença que matou 1,8 milhão de pessoas em 2008, incluindo 500 mil com o vírus HIV, causador da Aids. Em média 4.500 pessoas morrem por causa da tuberculose a cada dia – ou uma a cada 20 segundos. No Brasil, de acordo com um relatório da OMS distribuído no início de dezembro, 92 mil pessoas (incluindo 13 mil com HIV) descobriram em 2007 que estavam com tuberculose. Esse documento reconhece os avanços dos programas de controle, mas alerta que as taxas de detecção e de tratamentos bem-sucedidos ainda estão abaixo dos níveis globais propostos pela OMS. Mesmo que apresentem uma toxicidade aceitável, não interfiram em outros remédios e se mos* Fioravanti acompanhou em Cancún, México, o 40th Union World Conference a convite da Stop TB Part nership e da National Press Foundation. Com apoio da Organização Mundial da Saúde, Evelyn acompanhou em Kibala, Tanzânia, ex-portadores de tuberculose que ajudam a tratar quem ainda tem a doença.
trem eficazes contra as bactérias causadoras dessa doença, os novos medicamentos terão de enfrentar outras barreiras antes de chegar às mãos de pelo menos uma parte dos 9 milhões de pessoas que a cada ano recebem o diagnóstico positivo de tuberculose. O que se espera das novas drogas é que permitam tratamentos mais simples e mais breves que os atuais, que consistem no uso de quatro antibióticos por pelo menos seis meses. “Tratamentos mais curtos implicam mais adesões, maior índice de cura, menos sacrifícios para os pacientes e risco menor de surgimento de linhagens de bactérias resistentes a medicamentos”, comentou William Wells, diretor de acesso ao mercado da TB Alliance. As linhagens de Mycobacterium tuberculosis resistentes aos antibióticos mais usados contra tuberculose preocupam por várias razões. Primeiramente porque se espalham pelo mundo, com registros em pelo menos três estados brasileiros, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás. Outra razão é que essas formas mais graves da doença, que exigem tratamentos mais longos e intensivos, têm sido subdiagnosticadas. “Menos de 3% dos estimados 500 mil casos de tuberculose multirresistentes são detectados e tratados”, afirmou Jeremiah Chakaya, diretor do Instituto de Pesquisa Médica do Quênia, no congresso em Cancún. As drogas hoje disponíveis contra a tuberculose multirresistente ainda são poucas, caras e causadoras de intensos efeitos colaterais. duas doenças Outra expectativa que cerca os medicamentos em testes é a possibilidade de uso conjunto com outros medicamentos, especialmente os antirretrovirais usados para deter o HIV, que se manifesta em 1,4 milhão de pessoas portadoras de tuberculose (15% do total). Atualmente os antibióticos reduzem a ação dos medicamentos contra o HIV, criando situações bastante difíceis para quem tem ou se dispõe a tratar as duas doenças. “A tuberculose mata as pessoas com HIV”, afirmou Lee Reichman, professor de medicina preventiva na Universidade de Nova Jersey, Estados Unidos. “É um paciente, duas doenças e um só sistema de saúde. Os programas de prevenção e tratamento de tuberculose e de Aids deveriam trabalhar juntos, mas isso nem sempre ocorre.” Como exigência adicional, os novos medicamentos terão de ser produzidos em larga escala e ter preços acessíveis mesmo para os países mais pobres do mundo, onde vive a maioria das pessoas com tuberculose, geralmente em casas precárias repletas de gente. PESQUISA FAPESP 167
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“Se você não tem ar fresco e luz do na revista Human Vaccines, Antony sol, está sujeito a um risco muito maior Hawkridge, coordenador da Aeras na de contrair a doença”, disse Peg WillinÁfrica instalada na Cidade do Cabo, gham, diretora de políticas externas da África do Sul, comentou que os testes Aeras Global, instituição não lucrativa clínicos dependem do acesso a popuà frente das pesquisas que possam levar lações com altas taxas de tuberculose e a vacinas mais eficazes que a BCG para da capacidade de recrutar milhares de prevenir a infecção latente e o aparecipessoas em um curto período de tempo, de manter esses participantes no mento da doença. Usada desde 1921, a BCG deixou de apresentar resultados estudo e de detectar e documentar ousatisfatórios. Em colaboração com unitros problemas de saúde que possam versidades, empresas farmacêuticas e apresentar ao longo dos testes. Por governos, a Aeras coordena as pesquisas vezes as próprias instituições responde seis das 14 novas vacinas em desensáveis pelos testes fornecem ou reforvolvimento – quatro delas em testes em çam a infraestrutura para a realização seres humanos na África. Peg acredita de exames clínicos ou laboratoriais que os estudos de avaliaindispensáveis para ção de uma vacina noavaliar a segurança e a va, mais efetiva, segura eficácia de moléculas na china, e acessível que a BCG promissoras. O médico inglês possam estar prontos até 2016. Mas, em uma Anthony Harries 9 milhões de conversa com jornalisconhece bem as cotas, preveniu: “Não há nexões entre tuberestudantes garantias de sucesso em culose e uma de suas principais causas e pesquisa médica”. aprenderam A cautela se justifica agravantes: a pobreza. porque os obstáculos são Hoje ele vive em Paris, a identificar muitos. Segundo ela, os é conselheiro sênior da testes da terceira e últiUnião Internacional os sintomas ma etapa de avaliação contra Tuberculose e Doenças Pulmonares da eficácia e segurança de tuberculose (The Union), uma de apenas uma dessas associação de 10 mil candidatas a novas vacinas podem custar US$ integrantes em 145 entre os países, e professor de 160 milhões e mobilizar 5 mil participantes vomedicina em Lonfamiliares dres. Durante 22 anos luntários ao longo de Harries trabalhou coquatro anos. Um dos mo médico em Madesafios é conseguir o apoio de representantes de órgãos de lauí, um dos países mais pobres do governo, que podem demorar alguns mundo, situado no sudeste da Áfrianos para responder aos pedidos de reaca, com uma das mais altas taxas de lização dos testes clínicos, e depois, caso prevalência de tuberculose (12% da os estudos tenham sido bem-sucedidos, população). Lá ele constatou o óbvio: para conceder o registro final do mesem dinheiro, as pessoas mais pobres dicamento para uso em campanhas de comem pouco e mal. A desnutrição e saúde pública. a escassez de proteínas e de vitaminas À falta de compromisso político enfraquecem as defesas do organismo dos governantes com a pesquisa mécontra microrganismos causadores de dica somam-se dificuldades logístidoenças como a tuberculose e Aids. cas. Como em muitos países da Áfri“Essas deficiências são mais graves nas pessoas com menos massa corporal”, ca faltam laboratórios, microscópios, médicos e enfermeiros que possam observou. Em um de seus estudos, confirmar o diagnóstico – o primeiHarries notou que o risco de morrer ro passo para iniciar o tratamento –, de tuberculose nas primeiras quatro semanas de tratamento variava de 6,5% a não é fácil levar adiante as avaliações 11% de acordo com a maior ou menor de novos medicamentos. Em um artigo publicado em outubro de 2009 massa corporal. 50
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Em Malauí, quem tosse continuamente e suspeita que possa ter contraí do tuberculose por vezes tem de percorrer longas distâncias até um centro de saúde em que poderia se tratar. De acordo com Harries, muitas vezes as pessoas doentes adiavam a viagem não só por causa da distância, mas também por temerem o isolamento social que acompanha os portadores de tuberculose e por não confiarem em medicamentos alopáticos, preferindo adotar os conselhos e remédios de curandeiros tradicionais. O médico inglês notou contrastes intensos. Malauí tem 13 milhões de habitantes e 270 médicos. Os gastos per capita por ano em saúde são de US$ 15 per capita e os casos novos de tuberculose por ano, 26 mil. O Reino Unido tem 60 milhões de pessoas e 135 mil médicos. Os gastos per capita em saúde são de US$ 2.500 e os casos novos de tuberculose por ano, apenas 6.700. proteção social “As vozes da sociedade civil precisam ser mais fortes”, diz Harries, que conheceu outras causas silenciosas da doença além das colônias de bactérias que crescem nos pulmões e causam febre e suores noturnos. A maioria de um grupo de 770 pessoas que ele atendeu vivia em casas sem água encanada e eletricidade e com menos de US$ 10 por mês. Mesmo assim, segundo Jeremiah Chakaya, os moradores de muitos países africanos têm de pagar o equivalente a US$ 10 ou US$ 20 por um exame de raio X que confirme se realmente têm tuberculose. Apenas medicamentos novos ou novas formas de tratamento, ainda que notáveis, podem não ser o bastante para desfazer as conexões entre tuberculose e pobreza, intensamente debatidas no congresso de Cancún. Em uma das conferências, Mario Raviglione, diretor do Departamento de Tuberculose da OMS, lembrou que a taxa de sucesso de tratamento atingiu em 2007 o nível mais alto, 87%, com 78% dos casos detectados nas Américas e 47% na África, mas só poderá avançar com a melhoria dos sistemas de saúde, maior proteção social e redução da pobreza. A dificuldade em combater essa doença está fortalecendo uma nova abordagem de desenvolvimento de fár-
macos – não mais fechada e quisas abertas e compartiEm Kibala, lhadas de antibacterianos conduzida apenas por granna Tanzânia, Rajabu Saidi des empresas farmacêuticas, de amplo espectro de ação. ampara mas aberta, fundamentada “Novos medicamentos conMariam tra doenças negligenciadas na cooperação entre goverAbdala, que nos, fundações filantrópicas, como a tuberculose têm de volta a andar universidades e empresas, ser um bom negócio para após meses todos”, reiterou Barros. mediada por instituições de cama com As descobertas também não lucrativas chamadas tuberculose parcerias público-privadas são comunicadas publicacomo a TB Alliance, Aeras mente em vez de correrem Global e a New Medicines em segredo como acontece for Tuberculosis. Agora os com a maioria dos medicamentos para outras doenças. Os limites limites de cada participante são recoe as possibilidades de uso da moxifloxanhecidos e compartilhados. “As empresas privadas não têm como justificar cina, antibacteriano usado para tratar investimentos e a academia não sabe pneumonia e infecções respiratórias ir até o fim com o desenvolvimento em fase avançada de testes clínicos pede novos medicamentos”, reconheceu la TB Alliance, têm sido apresentados e intensamente debatidos por meio William Wells. “Não temos dinheiro suficiente para fazer tudo sozinho”, disde artigos científicos, alguns de acesso livre. Em junho de 2009, o The New se David Barros, da GlaxoSmithKline (GSK), empresa que estabeleceu um England Journal of Medicine apresentou os resultados positivos do uso de um programa de testes de quatro novas drogas com a TB Alliance e pretende novo composto, o TMC207, no tratamento de tuberculose multirresistente. neste ano ampliar sua estratégia de pes-
Os testes resultam de um acordo entre a empresa farmacêutica Tibotec e a TB Alliance que permite que a empresa licencie o medicamento, se aprovado pelas autoridades regulatórias, sem cobrar royalties, como forma de ampliar o tratamento das formas mais severas de tuberculose. Outros tipos de colaboração estão funcionando. Conexões com profissionais da saúde já experientes em tratar outras doenças infecciosas como malária e hanseníase nos lugares em que a tuberculose também é comum têm facilitado os testes de novas vacinas contra a doença. “Não é tão difícil estabelecer essas colaborações quanto esperávamos”, celebra Peg Willingham, da Aeras Global. Na Indonésia, a The Union mobilizou médicos de clínicas privadas para fortalecer serviços de controle de tuberculose e, na China, 9 milhões de estudantes, que aprenderam a identificar os sintomas de tuberculose nos familiares e assegurar que fossem n atendidos pelos médicos locais. PESQUISA FAPESP 167
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Danos da fome >
Anatomia
Dieta pobre em proteína reduz o tamanho e o número de neurônios do sistema digestivo
Ricard o Zorzet to
candido portinari, Menino do Tabuleiro, 1947, óleo sobre tela, arquivo gentilmente cedido pelo projeto portinari. reprodução autorizada graciosamente por joão candido portinari
A
fome é mais fome entre os povos pobres que entre os ricos. O prato dos 34 milhões de famintos dos países industrializados é mais farto que o dos 790 milhões de homens, mulheres e crianças que todos os dias acordam e se deitam de estômago vazio nas 98 nações mais carentes do mundo. O primeiro grupo consome em média 130 quilocalorias (um bife) a menos por dia que o indicado para a maioria das pessoas, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação. Essa energia faz falta, mas prejudica menos o corpo do que a carência imposta ao segundo grupo, que deixa de ingerir 450 quilocalorias diárias. Os danos da fome não são determinados apenas pelo teor de calorias consumidas. Estudos com ratos conduzidos em São Paulo mostram que a carência de proteínas prejudica o funcionamento do sistema digestivo, gerando um círculo vicioso em que a fome alimenta a fome. Roedores mantidos sob uma dieta pobre em proteínas na fase crucial do desenvolvimento do sistema nervoso apresentaram redução no tamanho e no número de neurônios que controlam o funcionamento do intestino delgado, a porção do sistema digestivo responsável pela absorção de nutrientes. No Laboratório de Estereologia Estocástica e Anatomia Química (LSSCA) Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo, a equipe do estereologista Antonio Augusto Coppi alimentou por seis semanas ratos com duas dietas distintas. Nos 21 dias da gestação e nos primeiros 21 dias de vida, um grupo consumiu a ração tradicional (com 20% de proteína), enquanto o segundo recebeu uma ração com idêntico valor calórico, mas só 5% de proteína. As consequências da dieta pobre em proteínas impressionam. Houve uma redução de 63% no número de neurônios do gânglio celíaco dos animais que consumiram menos proteínas, em comparação com os tratados com a ração normal. Situado no abdômen, esse gânglio controla a motilidade gastrointestinal e, indiretamente, a absorção de nutrientes. Além de se encontrarem em quantidade menor, os neurônios restantes eram em média 24% menores
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O Projeto Inervação dos vasos cerebrais de roedores durante o desenvolvimento pós-natal. Possíveis modelos para o estudo do acidente vascular cerebral (avc).
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenador
Antonio Augusto Coppi Ribeiro – FMVZ/USP investimento
R$ 305.527,35 (FAPESP)
(atrofiados) do que os dos ratos tratados com níveis normais de proteína. O gânglio celíaco encolheu 78%. “Os ratos que ingeriram menos proteínas eram caquéticos e tinham sinais de desidratação”, conta Coppi, que trabalhou com Patrícia Castelluci, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, responsável por criar o protocolo de desnutrição usado no estudo. Publicados em dezembro de 2009 no Journal of Neuroscience Research, esses resultados preocupam. É que o mau funcionamento dos intestinos pode, nos casos mais graves, matar. Cavalos das raças mangalarga e paint horse, por exemplo, costumam nascer com um defeito genético que impede ou limita a formação adequada do gânglio celíaco e de neurônios do intestino. “Esses potros não absorvem nutrientes e morrem de cólica em três ou quatro dias”, explica Coppi. Dogma antigo - A abordagem da equi-
pe do LSSCA pode ajudar a desfazer um antigo dogma da biologia: o de que a carência de proteínas não diminui o número de neurônios do intestino. “Estudos anteriores usando modelos semelhantes de desnutrição proteica só reportaram a redução no tamanho dessas células”, diz Coppi. Ele atribui a diferença vista agora ao método de contagem de células usado em seu laboratório: a estereologia, que permite a análise quantitativa em três dimensões (comprimento, largura e espessura) das amostras de células ou tecidos. “Em ge-
ral os morfometristas usam técnicas que avaliam os perfis ou contornos das células em apenas duas dimensões”, conta. “Mas as células são tridimensionais e ainda podem se mover.” Nas estratégias de contagem bidimensionais como a morfometria 2D calcula-se a área dos perfis das células de um tecido e o número de perfis no campo de visão do microscópio com base na forma aparente deles e na área total do órgão estudado. Um dos problemas é que no preparo das amostras células são cortadas com diferentes orientações e, por exemplo, uma célula esférica pode aparecer em duas dimensões com o formato de elipse e tamanhos variados. “Esse tamanho não corresponde ao tamanho real da célula”, afirma Coppi. Em seguida, projeta-se o número de perfis por área para a área total do órgão analisado. “Eles assumem erroneamente que a distribuição de perfis corresponde à distribuição real de células e que ela é constante em todo o órgão”, critica. Usando a estratégia bidimensional, pesquisas anteriores avaliaram o efeito da restrição proteica sobre os neurônios da parede dos intestinos e mostraram redução apenas no tamanho celular. Esse resultado chegou a induzir interpretações bem diferentes: já se propôs até que essa privação favorecesse a proliferação de neurônios, pois se observavam mais células menores (supostamente mais jovens). “Isso deixa claro que o uso de métodos de contagem inadequados pode levar a conclusões desastrosas”, afirma Coppi, treinado em estereologia por Terry Mayhew, da Universidade de Nottingham, Inglaterra, e por Hans Gundersen, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, dois dos pioneiros na aplicação da estereologia às ciências médicas e biológicas. n > Artigos científicos 1. Gomes, S.P. et al. Atrophy and neuron loss: effects of a protein-deficient diet on sympathetic neurons. Journal of Neuroscience Research. v. 87 (16). p. 3.568-75. Dez. 2009. 2. De Sousa, F.C. e Neto, M.H. Morphometric and quantitative study of the myenteric neurons of the stomach of malnourished aging rats. Nutritional Neuroscience. v. 12(4). p. 167-74. Ago. 2009. PESQUISA FAPESP 167
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Genética
No rastro No rastro
ao longo da costa brasileira em relação a essas áreas e melhor avaliar a evolução contemporânea da espécie”, explicou. Além das barbatanas, o estudo também comparou o DNA de 177 amostras de indivíduos selvagens de S. lewini do Atlântico e determinou a variabilidade genética dos estoques existentes. Pelas análises foi possível identificar três estoques distintos no Atlântico Ocidental, compreendendo a parte norte do Atlântico (Estados Unidos e golfo do México), a parte central (mar do Caribe) e o Atlântico Sul, que englobaria todo o litoral brasileiro. Uma das possíveis explicações para partir da análise de fragmentos do DNA mitocondrial de bara diferenciação genética dentro de uma batanas, um grupo norte-americano, com participação de pesmesma área se daria pela existência dos quisador brasileiro, conseguiu reconhecer a região geográfica berçários ao longo da costa, constituí oceânica na qual tubarões-martelo da espécie Sphyrna lewini da de águas rasas, calmas e ricas em – globalmente explorada pela pesca – foram capturados. alimento. “As fêmeas escolhem essas O estudo analisou parte da sequência do DNA mitocondrial exáreas porque há segregação entre neo traído de nadadeiras comercializadas. Um dos objetivos do trabalho, natos e adultos machos que ali não publicado na revista Endangered Species Research, é propor a moratória ou a habitam e, assim, não predam seus restrição da captura dessa espécie de tubarão-martelo, atualmente ameaçada próprios filhotes, uma das estratégias de extinção devido à caça predatória e ao comércio ilegal de barbatanas. da espécie”, disse. As barbatanas alimentam um mercado clandestino, principalmente A alta fidelidade das fêmeas ao na Ásia, onde atingem alto valor comercial. A sopa de barbatana de tulocal de nascimento seria outro mobarão é considerada pelos povos orientais uma iguaria, muito apreciada tivo para explicar a presença de estoem cerimônias como casamentos e banquetes. ques distintos da espécie no Atlântico “Conseguimos associar todas as barbatanas analisadas a uma deterOcidental. “Não só verificamos que a minada área dentro dos oceanos, onde essa espécie de tubarão-martelo tendência de filopatria, ou seja, a chanhabita, com base na similaridade entre a composição genética das barce de as fêmeas retornarem ao local batanas e estoques genéticos dos indivíduos dessas águas”, disse Danillo de nascimento para ter os filhotes, é Pinhal, doutorando no Instituto de Biociências da Universidade Estadual muito maior do que se pensava, como Paulista (Unesp), em Botucatu, à Agência FAPESP. percebemos que há uma grande difeA pesquisa foi coordenada por Demian Chapman, da Universidade renciação entre populações de pontos Stony Brook, em Nova York, e por Mahmood Shivji, diretor do Instituto relativamente próximos”, apontou. de Pesquisa Guy Harvey, da Universidade Nova Southeastern, na Flórida, Estados Unidos. Segundo ele, esPinhal se integrou à equipe para desenvolver sas características seriam responsáveis parte de seu doutorado, intitulado “Estrutura gepela diferenciação nético-populacional do tubarão-martelo Sphyrna Análise de genética nessas áreas. lewini (Elasmobranchii: Sphyrnidae) utilizando fragmentos Além disso, a contimarcadores moleculares de microssatélites”, que nuidade da pesquisa tem apoio da FAPESP na forma de bolsa. O projeto das barbatanas de doutorado busca se insere no âmbito de um Auxílio Regular a Proconsegue também entender jeto de Pesquisa, coordenado pelo professor Cesar melhor a movimenMartins, do Instituto de Biociências da Unesp. mapear Segundo Pinhal, o objetivo da pesquisa de tação dos machos. a estrutura “Mostramos que doutoramento é entender a dinâmica populaexiste diferenciação cional da espécie Sphyrna lewini ainda mais degenética do entre as populações talhadamente, ao longo da costa brasileira. “Realizo uma análise em fina escala compado tubarão-martelo tubarão-martelo S. lewini não somente rando um grande número de indivíduos oriunentre os oceanos, codos de múltiplas localidades, na costa do Brasil. mo já havia sido puTambém utilizo amostras do Caribe e do golfo do Alex Sander Alcântara, blicado, mas também México e marcadores genéticos de microssatélites, da Agência FAPESP em menor escala, enalém do DNA mitocondrial, para estabelecer uma tre áreas relativamencomparação da composição genética dos animais
dos tubarões dos tubarões
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te próximas. Observamos que dentro de um mesmo oceano, no caso o Atlântico, se encontram populações geneticamente bastante distintas”, disse Pinhal.
“Os tubarões são particularmente sensíveis à exploração excessiva em razão de apresentarem crescimento lento, maturidade sexual tardia e baixa fecundidade relativa, características biológicas que os aproximam dos mamíferos”, destacou. O pesquisador ressalta que o trabalho tem como meta fornecer mecanismos que possibilitem a adoção de medidas para o adequado manejo e conservação dessas espécies de peixes. O grupo pretende utilizar dados publicados no artigo para propor medidas de proteção na Convention on International Trade in Endangered Species, que será realizada em março no Qatar, n no Oriente Médio.
> Artigo científico Chapman, D. D.; Pinhal, D.; Shivji, M.S. Tracking the fin trade: genetic stock identification in western Atlantic scalloped hammerhead sharks Sphyrna lewini. Endangered Species Research. No prelo.
seawatch.org
Ameaça - O estudo destaca que as espécies de tubarão-martelo são alvo da pesca predatória. As barbatanas chegam a custar de 20 a 30 vezes mais do que o quilo da carne do animal. Hong Kong é o principal centro de comércio mundial de barbatanas, mas a prática está disseminada em todo o mundo. “O problema é a falta de fiscalização da pesca e do comércio do pescado. Os pescadores empregam o finning, método em que o animal é capturado e, depois de cortadas as barbatanas, é jogado no mar ainda vivo. Como não consegue mais nadar, agoniza até a morte”, contou Pinhal. No artigo publicado, os pesquisadores concluíram, a partir da análise da região controle do DNA mitocondrial (mtCR), que 21% das barbatanas analisadas eram provenientes do Atlântico Ocidental, região onde
o tubarão-martelo já entrou na lista de espécies consideradas “em perigo”, segundo a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). De acordo com o biólogo, é a primeira vez que um estudo conseguiu determinar a origem geográfica de barbatanas utilizando o DNA. De acordo com diversas pesquisas, o declínio global do tubarão-martelo já o coloca como uma espécie em perigo de extinção. “Na costa brasileira, como temos verificado que há falta de peixes, os pescadores têm capturado e aproveitado também a carne. Podemos dizer que a prática do finning caminha para não ocorrer mais, porque estão tentando aproveitar tudo em função da queda nas pescarias tradicionais, ou seja, de outras espécies que eram comumente comercializadas”, disse Pinhal. Segundo ele, as análises de DNA estão contribuindo significativamente para o conhecimento acerca da distribuição e da saúde das populações de espécies marinhas criticamente ameaçadas de extinção.
Sphyrna lewini: três populações distintas no Atlântico Ocidental
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Botânica
As flores do tempo Reedição de livro de 1949 resgata orquídeas e os espaços que ocupavam
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ara quem se aflige com os congestionamentos cada vez mais comuns nas avenidas que contornam os rios Pinheiros e Tietê, na cidade de São Paulo, talvez sirva de consolo saber que por ali havia muitas matas repletas de orquídeas. “Nas matas ciliares do Rio Pinheiros, encontramos ainda em 1917-1922 muitas lindas céspides de Cattleya Loddigesii, Bifrenaria Harrisoniae, ocupando bifurcações de algumas árvores tortuosas (...). Nas matas mais sêcas, vimos muitas enormes touceiras de Miltonia Regnellii e Gomesa crispa; a Stanhopea graveolens existia ainda em alguns troncos menos acessíveis nas baixadas”, escreveu o botânico Frederico Carlos Hoehne, fundador do Jardim Botânico de São Paulo, no livro Iconografia de Orchidaceas do Brasil (gêneros e principais espécies em texto e em pranchas), agora reeditado pelo Instituto de Botânica de São Paulo. Publicado pela primeira vez em 1949, o livro de 640 páginas é um dos clássicos da botânica no Brasil. Parece uma longa carta
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Hormidium tripterum (acima, à esquerda) e Laelia crispa (ao lado)
reproduções do livro Iconografia de Orchidaceas do Brasil
Menadenium lindeniae (esquerda) Sauroglossum elatum (direita) e Sobralia augusta
de Hoehne para colecionadores de orquídeas, a quem, em tom amigável, ele conta como identificar, cultivar, colher, embalar e transportar essas plantas. À botânica se somam muitas histórias, como a de uma Bletia verecunda nativa da América Central que floresceu na Inglaterra pela primeira vez em 1735, e o que ele chama de “excursão mental pelo país das Orchidaceas” – um passeio que percorre as matas de São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Pará e Amazonas. Com base em suas observações de viagens, Hoehne vai mostrando as orquídeas, mas não deixa de apresentar as árvores, os insetos, os pássaros e uma ou outra cobra aos seus hipotéticos companheiros de viagem. Em Angra dos Reis, litoral fluminense, ele encontrou uma Laelia crispa com 86 flores abertas ao mesmo tempo, e comentou que essa espécie de orquídea era “infelizmente bastante difícil de conservar sem ser em arvores vivas”. Jardim paulista - Filho de alemães, nas-
cido em 1882 na cidade mineira de Juiz de Fora, Hoehne saiu do Rio de Janeiro em 1917 para estabelecer em São Paulo um horto para cultivo de plantas medicinais. Era o início do Jardim Botânico paulista, o segundo mais antigo do país – o primeiro
é o do Rio de Janeiro, criado em 1808 com o nome de Jardim de Aclimatação, para cultivar plantas como noz-moscada, canela e pimenta-do-reino, trazidas das Índias orientais e usadas como temperos. O Jardim Botânico paulista começou a tomar forma em 1928 com a construção do orquidário, um dos espaços mais procurados pelos visitantes. “Num domingo à tarde, quando estamos na época das floradas, é interessante observar-se os visitantes”, Hoehne escreveu no relatório de 1950 do Instituto de Botânica, instituído em 1942, do qual foi o primeiro diretor. “Os operários que fazem as vezes de guardas, colocando um boné na cabeça, têm bastante trabalho para obstar que alguns penetrem nas picadas e ali se entreguem a atividades menos respeitáveis.” Hoehne não deixava seu encanto pelas orquídeas sobrepor-se ao senso de realidade. “É provável que, com as Orchidaceas, se dê ou venha a dar-se o mesmo que se deu com o ouro do nosso subsolo e com o pinheiro de S. Paulo, Paraná, Santa Catarina e Sul de Minas”, preveniu no Iconografia. “Trata-se de tomar providencias repressivas quando não mais forem acessíveis. Isso já se vem verificando no Espírito Santo, onde as Catleya labiata Warnerii e C. granulosa foram tão comuns e deram tanta margem de lucros aos tiradores.” Se hoje ele andasse pelas margens dos rios Tietê e Pinheiros, veria que as mudanças podem n às vezes ser radicais.
Carlos Fioravanti
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Arquivo do instituto de física da USP
homenagem
Damy, aos 25 anos, em experimento na mina de Morro Velho, em 1939
Talento e energia Pioneiro na física experimental do Brasil, Marcello Damy instalou o primeiro reator nuclear no país | Neldson Marcolin
O
físico Marcello Damy de Souza Santos viveu 95 anos e sempre recebeu numerosos elogios em reconhecimento aos trabalhos conduzidos em sua longeva carreira. Um deles, no entanto, o acompanhou desde antes de ele entrar na Escola Politécnica de São Paulo, em 1933, um ano antes da criação da Universidade de São Paulo (USP): competência. Damy era bom para consertar rádios em Campinas, onde nasceu, ou em São Paulo, para onde se mudou com os pais aos 17 anos. Era melhor ainda para construir máquinas complicadas, como um detector de raios cósmicos, montar um acelerador de partículas ou um reator nuclear. Também foi competente na sala de aula, ao formar alunos como César Lattes, Oscar Sala e José Goldemberg, e como gestor, segundo atestam seus colaboradores. Damy morreu no dia 29 de novembro de 2009 em consequência de um acidente vascular cerebral e falência múltipla de órgãos. “Além de sua conhecida habilidade como físico experimental, Marcello Damy foi um criador de núcleos de pesquisa importan-
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tes em várias instituições”, diz o físico Sérgio Mascarenhas, coordenador do Instituto de Estudos Avançados da USP de São Carlos. “Ele pesquisou e ensinou a vida inteira e foi um pioneiro da física experimental no Brasil”, diz a ex-aluna Amélia Império Hamburger, do Instituto de Física da USP, autora de vários trabalhos sobre história da física. Junto com Paulus Aulus Pompeia, Damy migrou da engenharia elétrica para a física atraído pelos conhecimentos novos e jeito entusiasmado do russo naturalizado italiano Gleb Wataghin, um dos professores estrangeiros da primeira fase da USP. O mesmo aconteceu com Mario Schenberg, que foi da ma-
Arquivo familiar
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epois de formado, em 1936, começou a trabalhar em raios cósmicos (leia mais sobre o assunto na página 8), a mesma linha de pesquisa do mestre. Em 1938, Giuseppe Occhialini veio da Itália a convite de Wataghin. No mesmo ano Damy foi para a Inglaterra estagiar no Laboratório Cavendish, na Universidade de Cambridge. Lá trabalhou com o Nobel de Física William Lawrence Bragg e começou a construir um equipamento eletrônico de alta resolução para estudar raios cósmicos penetrantes. Mas, com a iminência da Segunda Grande Guerra, foi obrigado a retornar. Nessa volta, em 1939, ele trouxe o detector que havia feito em Cavendish, o que permitiu a ele e a Pompeia, sob a orientação de Wataghin, a descoberta dos chuveiros penetrantes. As primeiras experiências foram feitas no túnel da avenida 9 de Julho, na capital paulista, então em construção, e confirmadas em outros lugares, como a mina de ouro de Morro Velho, em Minas Gerais. O artigo saiu na Physical Review, em 1940. Durante a guerra, a Marinha pediu ajuda dos pesquisadores para desenvolver algo que alertasse os navios brasileiros sobre submarinos inimigos. Damy e Pompeia construíram então o primeiro sonar brasileiro. Depois dos conflitos, entre 1945 e 1951, Damy montou na USP o betraton, o primeiro acelerador de partículas da América Latina, adquirido no Canadá. Também, mais tarde, trabalhou na criação de quartzos artificiais, que se tornaram importantes para a indústria. Nos anos 1950 esteve na comissão que estudou o modelo ideal de reator
nuclear para o Brasil. “Quando Joaquim da Costa Ribeiro era diretor do então Conselho Nacional de Pesquisa, o antigo nome do CNPq, perguntei a razão de o Damy ter sido escolhido para instalar o reator nuclear”, conta Mascarenhas. “Costa Ribeiro me disse que ele era o único que tinha competência científica e de gestão para a missão.” Damy instalou um reator de piscina em 1956 no Instituto de Energia Atômica (IEA), criado e dirigido por ele, hoje Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). “Havia muito entusiasmo naquele tempo”, lembra o químico Alcídio Abrão, do Ipen. “Damy gostava de ensinar e era comum passar a noite trabalhando com a equipe.” Posteriormente ele presidiu a Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN), mas foi demitido logo depois do golpe militar de 1964. A partir de 1968, a convite de Zeferino Vaz, começou a trabalhar para erguer o Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que se chamaria Gleb Wataghin, e do qual foi o primeiro diretor. Levou para lá César Lattes e Sérgio Porto, entre outros físicos de prestígio. Generoso, Lattes considerava Damy o grande físico brasileiro. Quando saiu da Unicamp, em 1971, Damy foi ensinar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na pós-graduação do Ipen. “Até pouco tempo antes de sofrer o AVC, ele ainda recebia colaboradores para trocar ideias e ajudar no que podia”, conta a pianista e pintora Lucia Toledo de Souza Santos, com quem foi casado por 61 anos. Em memória de Damy, Mascarenhas doou R$ 5 mil para que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) crie um fundo que possa crescer e laurear jovens cientistas com o Prêmio n Marcello Damy. Damy (esq.) na homenagem a Gleb Wataghin (de pé) em 1971, na Unicamp
Arquivo do instituto de física da USP
temática para a física. “Na década de 1930 os professores ensinavam física da seguinte maneira: eles estudavam a aula na véspera para no dia seguinte ensinar para os alunos. A diferença do conhecimento do professor para o aluno era de 24 horas”, contou em entrevista à Pesquisa FAPESP (edição de março de 2003). “Quando começamos a seguir os cursos de Wataghin e Luigi Fantappié, em matemática, abriu-se um mundo novo”, disse ele em outra entrevista, desta vez a Amélia Hamburger e Carmen Weingrill, em 1992, para o Canal Ciência do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Primeiros físicos da USP: Occhialini é o terceiro da esq. para a dir., seguido de Damy. Wataghin é o segundo da dir. para a esq. seguido de Schenberg PESQUISA FAPESP 167
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
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Sei
Notícias • Sociologia
Perfil do internauta o artigo "Internauta brasileiro: perfil diferenciado, opiniões indiferenciadas", de Rogerio Schlegel, da Universidade de São Paulo, pretende contribuir para melhorar a compreensão das relações entre o uso da internet, de um lado, e a participação política dos cidadãos, de outro. Sua ênfase é nos fatores que determinam o uso regular da internet e no perfil do internauta em termos de participação e valores relacionados à política. A análise dos dados do instituto chileno survey Latinobarómetro de 2007 aponta a idade e a escolaridade como principais determinantes do uso da internet no Brasil, sendo que ocupação e renda não tiveram impacto consistente na chance de conectarse, contrastando com os casos de Argentina e Chile. Ao mesmo tempo, o público que integra a comunidade on-line mostrou maior mobilização, em termos de participação política tradicional, e pouca diferenciação em matéria de opiniões sobre política, na comparação com os não usuários da nova tecnologia. Essas evidências sugerem que a conexão ao mundo digital tende a dar voz a segmentos que já contam com acesso privilegiado a governantes e elaboradores de políticas, sobretudo por seu capital cultural. Também indicam que a importância do chamado digital divide - a distância entre os que estão incluídos no mundo digital e os que estão fora dele - no país deve ser relativizada, uma vez que os internautas não apresentam opiniões com orientação claramente destoante do restante da população.
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REVISTA
DE SOCIOLOGIA
E POLÍTICA
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CURITIBA - OUT. 2009
• Paleontologia
Novo pterossauro Um novo pterossauro de cauda longa, Wukongopterus lii, foi descrito por pesquisadores chineses e brasileiro baseados em um esqueleto quase completo de um indivíduo com abertura alar estimada em 730 milímetros. O exemplar foi encontrado nas camadas Daohugou (ou formação Daohugou) em Linglongta, Iianchang, província de Liaoning, China. Wukongopterus lií é um pterossauro não pterodactiloide diagnosticado pela presença de dois pares de dentes pré-maxilares posicionados antes do início do dentário, vértebras cervicais alongadas e a segunda falange
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do quinto dígito do pé fortemente curvada. Este espécime também apresenta uma tíbia quebrada indicando que a quebra ocorreu com o animal em vida. A análise filogenética difere de resultados anteriores indicando que mais trabalhos são necessários até que uma estabilidade da relação de parentesco entre os pterossauros não pterodactiloides seja alcançada. Os dados foram publicados no artigo "An unusuallong-tailed pterosaur with elongated neck from western Liaoning of China', de Xiaolin Wang, da Academia Chinesa de Ciências, Alexander W.A. Kellner, do Museu Nacional (Rio de Janeiro), e Shunxing Iiang e Xi Meng, da Universidade da Academia Chinesa de Ciências. ANAIS
DA ACADEMIA
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BRASILEIRA
DE CIÊNCIAS
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• Agricultura
Bactérias e crescimento vegetal A associação de plantas com rizobactérias benéficas pode promover o crescimento vegetal e o biocontrole de doenças, reduzindo custos de produção e diminuindo o impacto dos agrotóxicos no ambiente. Com o objetivo de avaliar os efeitos de rizobactérias aplicadas às sementes de cebola bola precoce (foto) no desenvolvimento de plantas e na produção de bulbos, foi conduzido o estudo "Tratamento de sementes com rizobactérias na produção de cebola", de Oscar Emilio Ludtke Harthmann, do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Catarinense, de Rio do Sul (SC), Átila Francisco Mógor e Luiz Antonio Biasi, da Universidade Federal do Paraná, João Américo Wordell Filho, Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina, de Chapecó (SC), e Wilmar Cório da Luz, da Revisão Anual de Patologia de Plantas, Passo Fundo (RS). Foram avaliadas as rizobactérias Pseudomonas spp.,
Bacíllus megateríum, Pseudomonas alcaligenes,Paenibacillus polymyxa, Bacillus cereus e Pseudomonas putida, juntamente com uma testemunha não microbiolizada. Verificou-se que existe influência das rizobactérias testadas no desenvolvimento da cebola. Os isolados que apresentaram melhor rendimento de bulbos foram Pseudomonas spp. e Bacillus
cereus. Os aumentos de rendimento de bulbos em razão das rizobactérias variaram entre 3% e 48%. Essas bactérias apresentam-se promissoras como bioinoculantes para serem utilizados na produção de cebola. CIÊNCIA
RURAL
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SANTA
MARIA
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• Produção
Preparo de máquina
o capítulo 24 de Caetés e as crônicas "Sertanejos", "Chavões" (inéditas), "Milagres" e "Lampião': Desde esses textos, Graciliano formalizou em toda a sua obra, de singular rigor estético e ético, o impasse da educação/das letras num mundo de violência, tema central da revista, segundo a pesquisadora. ESTUDOS
O artigo "Desenvolvimento e implementação de uma metodologia para troca rápida de ferramentas em ambientes de manufatura contratada", de Samuel Vieira Conceição, Iana Araújo Rodrigues, Andressa Amaral Azevedo e João Flávio AJmeida, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Fabrício Ferreira e Adriano Morais, da Iabil Indústria Eletro-Eletrônica do Brasil, apresenta o desenvolvimento de uma metodologia de redução do tempo de preparação de máquina (tempo de changeover) para ambientes voláteis de manufatura contratada do setor eletroeletrônico e de informática. As empresas desse setor fabricam uma grande variedade de produtos caracterizados por um alto valor agregado, curto ciclo de vida e instabilidade da demanda, exigindo flexibilidade das empresas para acompanhar o dinamismo do mercado. Com isso, a produção enxuta surge como uma alternativa, já que tem como características fluxo contínuo de produção, altos níveis de qualidade, redução de custos e agilidade na introdução de mudanças, fatores primordiais para se atingir a flexibilidade. O presente estudo tem como foco a redução do tempo de troca de ferramentas em uma linha de produção que utiliza a tecnologia de montagem em superfície conhecida como Surface Mount Technology (SMT). A diminuição desse tempo é relevante, pois possibilita a redução da necessidade de estoques intermediários; aumento da flexibilidade de produção com lotes e lead times menores; aumento de produtividade; respostas rápidas a mudanças de volume; e velocidade na programação da produção. O artigo traz contribuições teóricas e práticas além da aplicação da metodologia desenvolvida no setor de manufatura contratada. GESTÃO
& PRODUÇÃO
JUL.!SET.
2009
- VOL. 16 - N° 3 - SÃo
CARLOS
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• Literatura
Graciliano e a Novidade O cerne do ensaio "Graciliano Ramos e a revista Novidade: contra o lugar-comum", de Ieda Lebensztayn, da Universidade de São Paulo, é a apresentação do periódico editado em Maceió, em 1931, tendo por horizonte compreender a formação da obra de Graciliano Ramos. O estudo dessa publicação revela como o grupo nordestino ao qual Graciliano pertenceu se manifestou contra chavões na arte e na política. O romancista publicou na revista
AVANÇADOS
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SÃo
PAULO
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• Saúde pública
Crianças asmáticas O artigo "Conhecimento sobre asma das mães de crianças acometidas pela patologia, em área coberta pelo Programa Saúde da Família': de Ana Maria Siga Stephan, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e [uvenal Soares Dias da Costa, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, objetivou avaliar o conhecimento sobre asma das mães de crianças com essa patologia e os fatores associados a esse conhecimento. Realizou-se um estudo censitário para identificar as crianças com asma utilizando-se o questionário da International Study of Asthma and Alergies in Childhood. As mães das crianças identifica das responderam a outro questionário que levantou dados demo gráficos, socioeconômicos, ambientais, biológicos, comportamentais, aspectos relacionados ao manejo da doença e utilização de serviços de saúde. Foi considerado como conhecimento o preenchimento de três critérios: manejo inicial adequado das exacerbações, reconhecimento do agravamento dos episódios de sibilância e dos fatores desencadeantes. Das 258 mães entrevistadas, 67 (26%) foram consideradas como tendo conhecimento adequado. Na análise dos fatores associados ao conhecimento materno permaneceu associado ao desfecho, após ajuste: o sexo da criança, a prematuridade, a criança ter outras doenças atópicas e possuir medicação em casa para o manejo das exacerbações. O estudo mostrou que, apesar de relatarem ter recebido orientações, apenas um terço das mães efetuou mudanças ambientais e comportamentais. Além disso, quando se estabeleceu que o conhecimento adequado devesse ser o preenchimento dos três critérios, o número de mães classificadas foi ainda menor entre as respondentes . Os achados reforçam a necessidade de intervenções educativas focadas nas deficiências do conhecimento, como meio de possibilitar às crianças asmáticas o desenvolvimento de atitudes de automanejo bem-sucedidas. REVISTA NO
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BRASILEIRA
SÃo
PAULO -
DE EPIDEMIOLOGIA
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VOL.
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DEZ. 2009
> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo· níveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br
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LINHA
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DE PRODUÇÃO
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biodiesel é uma alternativa cada vez mais forte quando se fala em do petróleo. O que muita gente não sabe é que o seu processo de fabricação gera subprodutos tóxicos
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e indesejáveis ao ambiente se não
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> Nanopartículas em prol da saúde
energia renovável não dependente
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O
MUNDO
forem devidamente
tratados. Co-
mo forma de minimizar esse problema, a empresa TransBioDiesel, com sede em Shfar'am, em Israel, acaba de desenvolver uma solução baseada num catalisador, substância que transforma
o óleo vegetal
junto com um álcool - o metanol
é o mais usado - em biodiesel, para reduzir a água tóxica residual gerada na produção desse combustível. A novidade está no uso de uma enzima natural baseada em microrganismos
em substituição aos
catalisadores químicos durante a transesterificação, processo largamente empregado para a produção de blodlesel, Além de reduzir a geração de efluentes tóxicos, a empresa diz que o processo consome menos energia e os custos diminuem. A nova tecnologia está em testes numa planta piloto em Israel, que tem uma produção de 500 litros de biodiesel por dia. Fundada pelo engenheiro Sobhi Bsheer, a Transbiodiesel recebeu US$l,S milhão em investimento do Fundo Aquagro de capital de risco e está situada no The Galilee Society, um centro árabe de pesquisa e desenvolvimento em Israel.
Biocatalisador para diminuir subprodutos indesejáveis na produção de biodiesel
62 • JANEIRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 167
A companhia norte-americana NonoPacific Holdings anunciou, no início de dezembro, que adquiriu uma licença exclusiva da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla) para usar uma tecnologia relativa à produção de nanopartículas supramoleculares desenvolvidas na instituição. Essa tecnologia permitirá a síntese de uma nova geração dessas nanopartículas para aplicações médicas com alto índice de controle morfológico e de tamanho, além de uma superfície equilibrada do ponto de vista químico e elétrico. Essas propriedades .são fundamentais para a produção de nanopartículas biodegradáveis com elevada estabilidade fisiológica, reduzida toxicidade e baixa capacidade de provocar uma resposta imunológica do organismo. Os executivos da NanoPacific acreditam em desenvolvimentos futuros feitos a partir da aquisição dessa tecnologia na terapia gênica, no campo de diagnósticos moleculares e na área de entrega controlada de medicamentos no organismo humano, como no combate direto a tumores cancerígenos sem afetar os tecidos saudáveis.
> Embalagens animadas Imagens se movendo ou mesmo filmes publicitários poderão estar presentes nos mais variados tipos de embalagens como produtos de limpeza, DVDs, pacotes de biscoito e refrigerantes. A tecnologia surgiu da parceria entre o instituto de microeletrônica Imec, a empresa Artist Screen, ambos sediados na Bélgica, e a Universidade Hasselt, na Holanda. Eles criaram uma empresa, a Lumoza, que passa a ser a primeira
companhia europeia especializada na fabricação de tela para materiais impressos, tecnologia que permitirá o desenvolvimento de rótulos animados. A tela combina uma tinta eletroluminescente com um circuito eletrônico que controla a sequência e o tempo das animações. Os inventores dizem que ela pode ser usada em praticamente todos os tipos de superfície, incluindo embalagens plásticas, mas não revelam qual é exatamente a composição da tinta. Eles esclarecem que não se trata de Oleds, os diodos orgânicos emissores de luz. A indústria de capas de DVD já demonstrou interesse nos rótulos animados.
> Transistores de nanofios Uma nova geração de chips para computadores poderá surgir dentro de algum tempo por meio de um desenvolvimento feito em parceria com pesquisadores das universidades Purdue e da Califórnia em Los Angeles (Ucla), nos Estados Unidos, e da IBM. Eles conseguiram fabricar em escala laboratorial
e a base de silício. O desafio agora será fabricar em larga escala nanofios com padrões que possam ser usados pela indústria.
> Voos espaciais mais seguros
transistores de nanofios com camadas de silício e germânio, que poderão ser usados na fabricação de equipamentos eletrônicos menores, mais rápidos e mais potentes do que os atuais. Nanofios são estruturas capilares tão finas que seu diâmetro pode ser medido em átomos. Os transistores são responsáveis por amplificar ou modificar sinais eletrônicos e possuem formato plano, construídos sobre pastilhas de silício. Os transistores de nanofios seguem a mesma lógica, mas são montados verticalmente, em camadas bem definidas. A imagem do nanofio lembra a de um cogumelo, com uma camada superior formada por uma liga de ouro e alumínio, uma intermediária de germânio
Um novo sistema de proteção baseado em sensores de fibras ópticas desenvolvido sob encomenda para a Agência Espacial Europeia (ESA) por pesquisadores da Universidade Politécnica de Valência, do Instituto de Ciências Fotônicas e das empresas Tecnalia e Emxys, todos da Espanha, deverá tornar mais seguras e confiáveis as missões
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espaciais. O sistema permitirá monitorar em tempo real a temperatura dos vários elementos que formam o escudo de proteção térmica, uma das partes mais sensíveis dos foguetes e ônibus espaciais. A inovação integra os chamados Sistemas de Monitoramento da Saúde (HMS, na sigla em inglês) da estrutura de veículos espaciais, cujo objetivo é criar elementos de segurança muito mais robustos e capazes de enfrentar possíveis perturbações eletromagnéticas e altas temperaturas no momento do lançamento e na reentrada das naves na atmosfera.
Pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, conseguiram acender uma lâmpada usando um papel comum, desses usados em impressoras, como bateria. Para chegar a esse resultado, eles pintaram um
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pequeno pedaço da folha com um tipo especial de tinta
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formada por nanotubos de carbono e nanofios de prata.
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• Depois mergulharam o papel numa solução contendo lítio e um eletrólito - um condutor de eletricidade -,
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que possibilitou a reação química indispensável para a geração de corrente elétrica. Pedaços de platina foram colocados nas pontas do papel tratado e o passo final foi colocar o conjunto numa pequena bolsa de plástico selada. Fios com eletrodos foram ligados em cada uma das pontas do papel e, em seguida, foram acesas pequenas lâmpadas com tensão elétrica de 2,3 volts. Liangbing Hu, um dos pesquisadores envolvidos com o estudo, afirmou que a bateria feita de papel pode ser uma solução para armazenagem de energia de forma mais eficiente
e barata e ser
usada em equipamentos de energia eólica ou solar.
a
abastecimento
de car-
ros híbridos ou elétricos também poderá ser uma das possíveis aplicações da nova tecnologia.
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>
LINHA
Acoplada a uma prancheta, uma lupa com aumento de até seis vezes facilita a leitura para pessoas que sofrem com o problema
de baixa
visão, também chamada de subnormal, que corresponde a um campo de acuidade visual entre 5% e 30% no melhor olho e atinge cerca de 3 milhões de pessoas no Brasil, segundo o Conselho Brasileiro de Oftalmologia.
DE PRODUÇÃO
BRASIL
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O produto, desenvolvido pela empresa Bonavision, abrigada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec) instalado na Cidade Universitária em São Paulo, mantém fixos tanto a linha de leitura como o foco, o que é fundamental
para indiví-
duos em que a região central da retina, a mácula, está comprometida.
O preço de
venda é de R$ 580,00. As principais causas no adulto
Lupa com aumento
de até seis vezes
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que levam a esse problema são patologias degenerativas decorrentes de diabetes, degeneração macular relacionada
> Automóvel
à idade e antigas cicatrizes de infecção na retina. Nas crianças,
inteligente
a cicatriz de lesão macular decorrente de glau,coma congênito é a principal causa da baixa visão. O comprometimento
visual
permanece mesmo com o uso de óculos, lentes de contato, medicamentos ou cirurgia. A lupa desenvolvida pela Bonavision, com ajuste de foco individualizado,
tem um anel deslizante
com ímãs na parte de baixo que facilitam o percurso sobre um trilho que se movimenta verticalmente.
"No caso de um
destro, a mão esquerda é usada para segurar a prancheta,
Um carro que trafega sem motorista foi concebido pelo Grupo de Pesquisa e Desenvolvimento de Veículos Autônomos da Escola de Engenharia da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Alunos e professores, sob a coordenação do professor Guilherme Augusto Silva Pereira, adaptaram sistemas de automação e softwares num automóvel Astra comercial ganho numa competição por outro grupo da universidade. "Desenvolvemos um sistema de função sensorial que combina sensores de posicionamento por satélites GPS, acelerômetros e girômetros (que medem a velocidade angular) entre outros, e fornece a posição e a orientação do veículo", diz Pereira. "Com isso, alguém pode dirigir o veículo em um determinado trajeto e a informação é armazenada no computador instalado no carro. Depois, sozinho, o carro repete a rota." Outra possibilidade é controlar o carro por meio de comando de voz ou por joystick para executar as ações de acelerar, frear e virar o volante realizadas de fora do veículo. O próximo passo é instalar um sistema de visão computacional, com cârneras, para que o controlado r do carro possa frear ou desviar de qualquer obstáculo à frente.
onde o livro se encontra ajustado, e a direita o anel", diz José Américo Bonatti, coordenador do projeto e pesquisador da Clínica Oftalmológica
de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O projeto, que teve apoio da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) e do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi), foi concebido por Fernanda Alves da Silva Bonatti, mulher de José Américo, no seu trabalho de conclusão do curso de arquitetura na Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo (FAU) da USP. "Com apoio do Pipe,
transformou-se
Astra da UFMG:
do Hospital das Clínicas da Faculdade
em um produto", diz o pesquisador.
64 • JANEIRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 167
ca rro gua rda traj e'tl,o~:::1~~~~~~;;:;;~~:l:! na memória .-.
> Inovação
> Máxima velocidade
nacional Na edição 2009 do Prêmio Finep de Inovação, concedido pela Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia, a Região Sul ficou com quatro dos seis troféus entregues aos vencedores. Os outros dois prêmios ficaram com empresas do Sudeste. A Natura, de São Paulo, que em 2008 investiu R$ 103 milhões em pesquisa e desenvolvimento, foi a vencedora na categoria Grande Empresa. A Opto Eletrônica, de São Carlos, no interior paulista, que desenvolve equipamentos que aliam tecnologia óptica e eletrônica, foi a premiada na categoria Média Empresa. Desde a sua criação em 1985 por pesquisadores da Universidade de São Paulo, a Opto e suas afiliadas foram apoiadas com oito projetos na modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP (ver Pesquisa
FAPESP n" 162). Na categoria Pequena Empresa a vencedora foi a Angelus, de Londrina, no Paraná, que fabrica materiais inovadores para a odontologia, como pinos em fibras de vidro e carbono mais resistentes e flexíveis, e é parceira do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da FAPESP. A Fundação Centros de Referência em Tecnologias Inovadoras (Certi), sediada no campus da Universidade Federal de Santa Catarina, um instituto
Um plástico feito a partir do etanol da cana-de-açúcar
de tecnologia privado sem fins lucrativos, foi premiada como Instituição de Ciência e Tecnologia. A Embrapa Clima Temperado, do Rio Grande do Sul, foi a vencedora na categoria Tecnologia Social com o projeto Quintais Orgânicos de Frutas, que já implantou mais de 910 pomares na Região Sul, com cerca de 63 mil árvores. O catarinense Roberto Zagonel foi o vencedor na categoria Inventor Inovador, por um chuveiro elétrico com cinco opções de temperatura, a Master Ducha Zagonel, há 14 anos no mercado e líder de vendas na Região Sul.
Um grupo de pesquisa internacional, liderado por Rogério Luiz lope, engenheiro de sistemas do Núcleo de Computação Científica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutorando em engenharia da computação pela Universidade de São Paulo (USP), bateu o recorde de transmissão de dados entre os hemisférios Norte e Sul com uma taxa de 16,4 gibabytes por segundo (Gbps) - ou 8,2 Gbps nos dois sentidos - sustentada por mais de uma hora. Eles utilizaram um dos dois links de 10 Gbps que ligam São Paulo a Miami, financiados pela FAPESP , e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Participaram do desafio pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cem), reunidos na SuperComputing 2009, realizada em Portland, no Oregon, Estados Unidos.
I
pela petroquímica
POLíMERO VERDE
Braskem será utilizado como tampa plástica de embalagens cartonadas pela Tetra Pak, líder mundial no fornecimento de embalagens feitas com fibras de celulose. A matéria-prima, totalmente renovável, sairá da primeira planta de polietileno verde em escala comercia] do mundo, localizada em Triunfo, no Rio Grande do Sul, prevista para entrar em funcionamento
no último trimestre de 2010. O acordo
celebrado entre as duas empresas garante o fornecimento, partir de 2011, de 5 mil toneladas de polietileno
a
verde de alta
densidade por ano para a produção de tampas plásticas e lacres destinados à indústria alimentar
e embalagens de bebidas. O
processo utilizado transforma 99% do carbono contido no álcool em etileno, matéria-prima
do polietileno. O principal subproduto
é a água, que pode ser purificada e reaproveitada. As pesquisas que resultaram
no polfrnero verde a partir do álcool da cana
foram iniciadas em 2005 (ver Pesquisa FAPESP nO 142).
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tecnologia
Energia
Fonte estelar Casa que funciona com eletricidade dos raios solares vai a competição internacional Marcos de Oliveira
U
ma rede na varanda será o diferencial brasileiro mais visível da Casa Solar Flex, uma habitação projetada e construída por um consórcio de seis universidades que terá autossuficiência em energia elétrica obtida dos raios solares. Ela vai participar de uma competição em junho, em Madri, na Espanha. É a Solar Decathlon Europe, uma prova entre universidades de nove países que será realizada pela primeira vez no continente europeu. As outras quatro competições anteriores, as American Solar Decathlon, aconteceram nos Estados Unidos sob a organização do Departamento de Energia (DOE) norte-americano que também participa da organização do evento na Europa. Os objetivos das Decathlons são mostrar à sociedade que é possível morar com sustentabilidade, ampliar o conhecimento no campo da energia solar e formar profissionais neste tipo de tecnologia. A mostra competitiva é aberta ao público, inclusive com visitas ao interior das casas, o que colabora para a disseminação do uso da radiação solar para a produção de energia elétrica. Será a primeira vez que uma equipe da América do Sul participa da Decathlon. Os desafios serão enormes. Como numa prova de decatlo no atletismo, os competidores têm que se submeter a 10 provas e a base que garante a não perda de pontos está na sustentabilidade da energia, capaz de prover toda a ilu-
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minação e o funcionamento de aparelhos eletrônicos dentro da casa, além de manter o conforto térmico com temperatura adequada. O projeto brasileiro está sendo elaborado há mais de um ano e leva em conta as necessidades e regras da prova. “Recebemos o convite para a competição do professor José Manuel Páez Borrallo, vice-reitor da Universidade Politécnica de Madri, que esteve em agosto de 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O grupo de pesquisadores que estava presente representando as universidades resolveu formar um consórcio para somar as habilidades e dividir os custos”, explica o coordenador-geral do projeto, professor Adnei Melges de Andrade, vicediretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE), da Universidade de São Paulo (USP). “Depois, ainda em 2008, elaboramos um concurso entre alunos de arquitetura das universidades brasileiras com o objetivo de ter uma casa autônoma, bonita, funcional e com características sustentáveis, capaz de ser instalada em diferentes tipos de clima brasileiro, do frio ao calor, seco e úmido, do Rio Grande do Sul ao Ceará”, conta Andrade. A ideia do grupo é que ela possa ser reproduzida possivelmente por uma empresa no futuro e destinada a ser instalada em locais isolados, como, por exemplo, na Amazônia. Seria destinada ao turismo sustentável para que a presença humana em determinado local não gere impacto ambiental.
cons贸rcio brasil
Desenho arquitet么nico com vis茫o lateral da Casa Solar Flex projetada para os diferentes tipos de clima brasileiro
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montagem e testes. Em abril, ela vai ser desmontada e enviada de navio para a Espanha. Lá, no início de junho, serão 10 dias de montagem até a abertura da competição no dia 18. Espaço interno - A casa brasileira
terá 43 metros quadrados (m2) de área construída e será instalada numa área de 74 m2. Ela não tem fundação e estará ancorada a 50 centímetros do solo. É toda flexível no sentido de que é possível mexer com facilidade no espaço interno moldado em divisórias de madeira de reflorestamento, uma das exigências do regulamento, baseado em conceitos sustentáveis de produção, e esquadrias metálicas intercambiáveis. Existe apenas um espaço reservado para cozinha e banheiro. Por fora ela terá aletas reguladoras dos raios solares e da ventilação. Uma das inovações da casa está em parte dos painéis fotovoltaicos, que captam os raios do sol. Instalados verticalmente, eles podem ser movimentados automaticamente para os três lados da casa onde a radiação solar ao longo do dia é mais forte. No telhado, os painéis são horizontais e fixos. Umas das regras da competição diz que esses
dispositivos precisam ser adquiridos do mercado para mostrar a viabilidade do projeto. Na casa serão 64 painéis, sendo 48 no telhado. Em conjunto vão gerar 15 quilowatts (kW) de potência total instalada quando o Sol estiver no zênite – posição que ocorre ao meio-dia. “Estamos negociando com empresas que revendem esses painéis no Brasil”, diz Andrade. Até agora não existem fabricantes desses equipamentos no país (leia quadro na página 73). A competição europeia vai apresentar uma inovação que é uma tendência mundial relativa à energia solar. A eletricidade produzida pelos painéis solares será injetada na rede elétrica da cidade de Madri. Dessa forma a companhia local de distribuição de energia elétrica recebe a eletricidade gerada ao longo do dia e supre a casa nos momentos em que ela não produz qualquer quilowatt. “Existem dois medidores, um para a saída de energia e outro para a entrada da eletricidade que vai manter a casa. Esse equilíbrio ou balanço energético faz parte de uma das provas, a específica de sustentabilidade energética”, explica o aluno de arquitetura Lucas Sabino Dias, da UFSC.
Na Decathlon de 2009, em Washington, as casas do Instituto Politécnico da Virgínia, dos Estados Unidos, e de um consórcio de universidades canadenses 68
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consórcio brasil
No concurso foram apresentados 17 projetos, e um júri com três arquitetos brasileiros e dois espanhóis escolheram quatro. O primeiro e o terceiro lugares foram da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o segundo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Empatado em terceiro ficou um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os vencedores levaram à formação de uma equipe que, ao aproveitar as melhores características de cada um, elaborou o projeto final. Formou-se uma grande equipe interdisciplinar com mais de 100 pessoas entre alunos de graduação de arquitetura, a maior parte, engenharia, design, marketing e jornalismo, além de dois doutorandos em arquitetura e engenharia civil. Os alunos pertencem às seis universidades que formam o Consórcio Brasil: USP, UFSC, Unicamp, UFRGS, UFRJ e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde eles têm a coordenação de um ou mais professores dessas unidades. A casa começa a ser construída neste mês de janeiro na Cidade Universitária em São Paulo, na área do IEE na USP, onde será executada a fase de
dia, o aquecimento do sol liquidifica essa substância, que absorve calor e mantém a temperatura agradável. À noite, em temperaturas baixas, ela solidifica, libera calor e aquece os cômodos. “Também vamos introduzir água na parede, no piso e no teto. A água também absorve e libera o calor num processo chamado de inércia térmica”, diz o professor Roberto Lamberts, da UFSC, coordenador técnico do projeto. Mesmo com todos esses cuidados, a casa terá um sistema de ar-condicionado para regular a temperatura de acordo com as regras da prova.
Painéis solares em duas disposições: na vertical, que podem ser movimentados, e fixos no teto
Stefano Paltera/U.S. Department of Energy Solar Decathlon
Controle geral - A casa terá também
Nas competições nos Estados Unidos, realizadas em 2002, 2005, 2007 e 2009, a casa era totalmente autônoma, com a energia captada do sol armazenada em grandes baterias semelhantes à de carros – que são muito caras e ocupam espaço – para o uso à noite. Entre as tarefas relacionadas ao consumo de energia algumas são curiosas, como a de um jantar que a equipe precisa oferecer para seis convidados escolhidos de equipes de outros países. O cardápio ainda não foi definido. Funções triviais também estão no regulamento, como aquecer 60 litros de
água duas vezes ao dia, simulando o uso para a higiene dos moradores. “Mas o que conta mesmo são a inovação e a sustentabilidade, que valem pontos em todas as provas”, explica Andrade. Outra inovação que a equipe brasileira vai colocar na casa é o uso de uma camada de parafina nas paredes de madeira para manter a temperatura entre 22 e 24 graus Celsius (ºC), uma das regras da competição. A parafina – que estará encapsulada em microesferas e incorporada ao gesso usado no acabamento interno – muda de estado de acordo com o calor. Durante o
um sistema de automação residencial para que possam ser realizadas várias operações como abrir e fechar aletas externas, controlar num painel eletrônico o nível de captação de eletricidade e o quanto é preciso gastar e economizar de energia, entre outras funções. O software para esse controle já está pronto e o grupo negocia com uma empresa paulista de automação. A estrutura da casa também traz novidades. É a utilização de madeira protendida em que as vigas possuem um cabo de aço passando por dentro. Isso permite um menor gasto de madeira, o que conta pontos no item sustentabilidade. Soluções prontas também estão no projeto da casa, como banheiros secos, em que os excrementos são aquecidos e transformados em pó. Esse equipamento é de origem sueca e aceito pela União
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Stefano Paltera/U.S. Department of Energy Solar Decathlon
Jim Tetro/U.S. Department of Energy
A vencedora em 2009, da Universidade de Darmstadt, na Alemanha, e da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos
Europeia. Eletrodomésticos como TV, ar-condicionado, geladeira, fogão, lava-roupa e lava-louça também são comprados do mercado. “A iluminação será com leds, que gastam menos energia”, diz Lamberts. A rede para descanso será adquirida de uma Organização não governamental (ONG) ou de uma comunidade que produza artesanalmente esse material. Apoio fundamental - Para a competição
em Madri já estão inscritas 19 equipes de nove países da Europa, Américas e Ásia, sendo as maiores representações a da Espanha, com seis equipes, Alemanha, com quatro, além de França e Estados Unidos, com duas, e Brasil, México, China, Finlândia e Inglaterra com uma. Nas duas últimas edições, nos Estados Unidos, em 2007 e 2009, a universidade ganhadora foi a alemã de Darmstadt, que neste ano não participa. Para a prova europeia cada equipe recebe uma dotação de € 100 mil, cerca de R$ 255 mil, do Ministério da Habitação espanhol para custear parte das despesas. O custo total da empreitada é grande, entre R$ 3,5 milhões e R$ 4 milhões. Até dezembro, o projeto brasileiro tinha como certo, além do financiamento espanhol, mais R$ 1,5 milhão
da Eletrobras e R$ 500 mil da Petrobras. Portanto, metade do dinheiro necessário para a casa chegar a Madri. “A falta de dinheiro limita muita coisa e precisamos num curto espaço de tempo conseguir mais apoio. Comparo a Decathlon com a Fórmula 1 e não com um carro de passeio”, comenta o professor Roberto Lamberts. “Ainda corremos o risco de não ir a Madri”, diz. Apenas o transporte da casa em um navio e a entrega de caminhão na capital espanhola, que fica no interior do país, custam cerca de US$ 200 mil, quase 20% do orçamento. Não é possível contar com o apoio das fundações de amparo à pesquisa ou de órgãos de fomento à ciência e tecnologia porque não há como enquadrar este tipo de evento nos programas dessas instituições. Resta ao grupo obter apoio das empresas e de outras instâncias dos governos federal e estaduais. “Já tivemos a colaboração nas viagens da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério das Relações Exteriores, em apoio logístico e de hospedagem na Casa do Brasil em Madri para reu niões preparatórias”, conta Andrade. Em maio de 2009 nove estudantes e três professores foram a Espanha acertar
Visão geral das casas competidoras da prova no centro de Washington no ano passado 70
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detalhes do projeto e conhecer o local da exposição. “Esse apoio será fundamental também para exportar a casa e trazê-la de volta depois.” A Capes estuda um projeto de apoio para pagar as despesas dos 36 brasileiros, entre alunos e professores, que seguirão para a competição na Espanha. O local de exposição e competição, chamado de Vila Solar, será num parque perto da sede do governo espanhol. “Nos dias da competição, de 18 a 27 de junho de 2010, está marcada uma reunião dos primeiros-ministros da Comunidade Europeia em Madri e eles devem visitar as casas solares”, diz o professor Adnei Andrade. “O governo espanhol espera superar os 100 mil visitantes da última Decathlon em Washington, nos Estados Unidos.”
Eduardo cesar
Outro aspecto da grande equipe que se formou para o projeto da Casa Solar Flex é a mobilidade acadêmica que se instalou para 11 estudantes da graduação (sete da UFSC, dois da UFRGS e dois da Unicamp). Como têm que se dedicar ao projeto que está centrado em São Paulo, esses estudantes de arquitetura estão cumprindo normalmente seus cursos na USP, assistindo a aulas, fazendo trabalhos e provas de forma equivalente às suas unidades de origem. “Existem acordos nesse sentido entre as universidades paulistas e tivemos a boa vontade dos diretores das federais e estaduais”, diz Adnei Andrade. “Nós precisamos formar profissionais que consigam projetar e montar equipamentos de energia solar integrados à arquitetura.” Além de um produto didático, a Casa Solar Flex vai ajudar na expansão da cultura de energia solar no Brasil. “Ela é uma maturação de um novo conceito de morar. Mas isso não é só tecnologia, ela mexe com o hábito das pessoas”, diz o professor Lamberts. “Imaginamos que depois da competição em Madri ela possa circular pelo país. Seria ótimo se ela pudesse ser instalada ao lado do Museu de Ciências na Unicamp”, diz a professora Lucila Labaki, professora da Faculdade de Engenharia Civil e Arquitetura e coordenadora do projeto Casa Solar Flex na Unicamp. n
Painel fotovoltaico no IEE-USP: custo menor e incentivos para expansão
Stefano Paltera/U.S. Department of Energy Solar Decathlon
Confusão e perspectivas Os leigos confundem os sistemas mais comuns de energia solar. Existem os coletores solares para aquecer água e substituir o chuveiro, normalmente caracterizados por um painel preto em que o líquido passa por dentro desse equipamento e se aquece, e os painéis fotovoltaicos, também de cor preta ou azul- -escuro, constituídos de silício purificado. É nessa tecnologia de uso mais amplo que se depositam esperanças de uma alternativa universal para obteção de eletricidade de forma limpa e sem resíduos. A limitação principal tem sido o preço da compra e instalação dos equipamentos. “Mas o custo cai de 5 a 7% ao ano com o aumento da produção de painéis”, conta o professor Ricardo Rüther, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A tecnologia evoluiu e os painéis duram mais de 20 anos. “A produção de células e painéis fotovoltaicos no mundo cresceu 82% entre 2007 e 2008”, diz o professor Roberto Zilles, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP. No Brasil, esses sistemas ainda são restritos a setores não servidos pela rede convencional, como na eletrificação rural, estações remotas de telecomunicações e sistemas de bombeamento de água. Estima-se um total de 20 megawatts (MW) instalados no país. Desse número apenas cerca de 170 quilowatts (kW) fazem intercâmbio com a rede elétrica de distribuição e operam sem bateria. A maior parte está nas universidades e companhias de distribuição de eletricidade. Um exemplo é o prédio da administração do
IEE que possui 50% de sua demanda de eletricidade atendida por painéis fotovoltaicos. A Alemanha, país líder em energia solar, possui 6,5 mil MW instalados, valor que representa quase a metade da potência da Usina Hidrelétrica de Itaipu. “A conexão com a rede não está regulamentada no Brasil para pequenas unidades de geração, uma situação que deve mudar com um projeto de lei do governo federal (PL630) que tramita no Congresso Nacional e deve beneficiar a microgeração de pequenos produtores de energia fotovoltaica”, informa Zilles. “Ela também deve desonerar mecanismos de incentivo e obrigar a concessionária a pagar tarifa maior que a convencional para quem injetar energia solar na rede”, diz Rüther. Isso contribuirá para o abatimento dos valores de compra e instalação dos painéis e dos equipamentos de energia solar que atualmente no Brasil custam mais de R$ 10 mil por kW instalado (uma casa precisa de 3 a 5 kW). Para sua maior disseminação, os impostos também devem diminuir ou ser eliminados. Essas ações devem incentivar a criação de empresas produtoras de equipamentos, principalmente o de painéis fotovoltaicos, tipo de indústria inexistente por aqui. “Acredito que de cinco a 10 anos vai acontecer a paridade tarifária entre o preço da energia solar e o cobrado pelas companhias de eletricidade, porque o primeiro está descendo e o segundo subindo. Então será atrativo para uma pessoa tirar o dinheiro da poupança, comprar o equipamento e colocar no telhado”, prevê o professor Rüther. pESQUISA FAPESP 167
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Engenharia Agrícola
Pesquisadores da Unicamp desenvolvem equipamento para facilitar a obtenção do etanol celulósico Fábio Reynol, da Agência Fapesp
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A
utilização do bagaço de cana-de-açúcar ocorre principalmente na queima em usinas para gerar energia elétrica. Mas pesquisadores estão desenvolvendo novos usos para o resíduo, que é considerado o mais importante na indústria sucroalcooleira. Uma alternativa é a geração de combustível, no chamado etanol de segunda geração. O potencial é enorme, especialmente por causa da disponibilidade de matéria-prima. O volume desse subproduto representa cerca de um terço da produção de cana-de-açúcar no Brasil, que vem batendo recordes a cada ano. A safra de 2009, anunciada em dezembro pelo Ministério da Agricultura, ultrapassa 600 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, o que representa
eduardo cesar
Bagaço de qualidade
Resíduo da cana: biomassa vegetal para produção de eletricidade e combustível
em torno de 200 milhões de toneladas de bagaço. Melhorias genéticas obtidas em laboratório também contribuem para aumentar a biomassa do vegetal. Isso refletirá em plantas de maior porte e, consequentemente, com mais bagaço no fim do processo convencional de produção de açúcar e de etanol. Foi pensando em dar um tratamento preliminar a esse rejeito que pesquisadores da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Feagri-Unicamp), coordenados pelo professor Luis Augusto Barbosa Cortez, desenvolveram um equipamento capaz de separar esse material heterogêneo em partes semelhantes. Após a última moenda da cana, o bagaço torna-se praticamente um pó formado de partículas e fibras de vários tamanhos. A porção mais dura dessa mistura é rica em lignina e oriunda da parte externa do caule, sendo praticamente seca. Já o material mais mole e úmido deriva do interior da planta. Essa é a melhor parte para entrar no processo de produção de etanol, por ser rica em celulose. “A lignina é mais difícil de degradar, por isso a parte de dentro, com menor teor de lignina, é a ideal para ser submetida à hidrólise”, explicou Cortez, referindo-se ao processo que quebra o açúcar da celulose e o transforma em álcool. “A lignina é um agregador que oferece resistência à quebra das moléculas. Quanto menos lignina contiver o material, mais fácil é o processo de obtenção do álcool celulósico”, explicou. Por isso, a classificação do bagaço obtida por meio da tecnologia desenvolvida pelo grupo da Feagri tende a ganhar cada vez mais importância à medida que avançam as pesquisas sobre a nova geração do etanol. Criar uma tecnologia para classificar de maneira contínua e automática essas diferentes partes do bagaço da cana foi o desafio dos pesquisadores. Para isso, o grupo contou com o apoio da FAPESP, por meio da modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa, e com a participação do professor Guillermo Roca, da Universidade de Oriente, em Cuba, que veio ao Brasil para participar do projeto. Foram os trabalhos de Roca que estabeleceram os princípios gerais para construção do invento, um tipo de classificador pneumático. Nele, o bagaço é inserido por um orifício diagonal, localizado em sua parte superior, e empurrado por uma válvula rotativa sobre um fluxo constante de ar. “As partículas grossas são então depositadas no fundo, as de tamanho médio ficam em um coletor na parte intermediária do dispositivo e as menores e mais leves são levadas pelo
ar por um tubo curvo até um depósito mais alto”, explicou Cortez. “Não é preciso preparar o bagaço antes de colocá-lo na máquina”, ressaltou. Isso faz seu custo operacional ser interessante à indústria. Mesmo antes de se começar a produção do etanol de celulose a separação do bagaço pode melhorar a qualidade dos vários destinos que esse subproduto tem recebido. A parte seca do bagaço, por exemplo, proporciona uma queima mais uniforme e eficiente para produzir energia termelétrica. Outras aplicações - Enquanto a tecnologia não
estiver pronta para a indústria, o bagaço continuará sendo empregado na produção de ração animal, fertilizante e, principalmente, de material de queima para alimentar caldeiras geradoras de energia elétrica dentro das usinas. Para isso, ele não recebe nenhum tratamento. “Ele não é sequer secado antes de ser queimado, o que diminui a eficiência da queima”, disse Cortez. Quando se iniciar a segunda geração do etanol, a parte mais valorizada do bagaço será retirada do depósito inferior do classificador desenvolvido na Unicamp. Por meio de análises, o grupo averiguou que a fração mais grossa tem maior teor de celulose e quantidades menores de lignina, sendo a mais apropriada para a produção do álcool. Além da indústria sucroalcooleira, o invento poderá ser útil em qualquer ramo de atividade que necessite separar materiais sólidos granulados heterogêneos. Por exemplo, grãos moídos na indústria alimentícia, hidrato de cal, na área de mineração, e o pó resultante da moagem de pedras, na construção civil. A eficiên cia e a versatilidade do equipamento motivaram o depósito do pedido de patente por meio da agência n de inovação Inova Unicamp.
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O Projeto Desenvolvimento de uma tecnologia para a separação contínua das partículas sólidas de biomassa mediante um novo tipo de classificador pneumático: bagaço da cana-de-açúcar e outros
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenador
Luís Augusto Barbosa Cortez – Unicamp investimento
R$ 73.013,50 (FAPESP)
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> biotecnologia
Pele protegida Nanopartículas envolvem substâncias ativas de protetor solar desenvolvido pela UFRGS e Biolab Dinorah Ereno
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anopartículas biodegradáveis e resistentes à água, feitas com óleo de buriti e outros materiais usados pela indústria cosmética, foram incorporadas de forma inovadora a um filtro solar desenvolvido em parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a empresa Biolab Farmacêutica, de São Paulo. “As substâncias ativas são encapsuladas e envoltas por um polímero que controla sua liberação, sendo depois totalmente eliminado pela pele”, diz a professora Adriana Pohlmann, do Instituto de Química da UFRGS, que participou do projeto de desenvolvimento do protetor solar coordenado pela pro-
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fessora Silvia Guterres, da Faculdade de Farmácia da universidade gaúcha. “Como o tamanho das nanopartículas varia entre 240 e 250 nanômetros, elas permanecem retidas no estrato córneo, que é a camada mais externa da epiderme e, portanto, da pele”, ressalta. Isso faz com que os filtros do protetor solar não sejam absorvidos pela derme, camada que se encontra logo abaixo da epiderme e abriga nervos e vasos sanguíneos. “Dependendo da ação esperada do produto, muda-se o tamanho das partículas”, diz Dante Alário Júnior, presidente técnico-científico da Biolab. Na faixa abaixo de 100 nanômetros – um nanômetro equivale a um milímetro dividido por um milhão de vezes – elas penetram na corrente sanguínea. Para alguns produtos que a empresa está desenvolvendo, como um antimicótico para unhas, por exemplo, as nanopartículas têm que ser menores para penetrar nas camadas de queratina. O desenvolvimento de produtos cosméticos baseados em nanotecnologia é um caminho que vem sendo trilhado há tempos por empresas internacionais como as francesas L’Oréal e Chanel (leia mais sobre o assunto na edição nº 146 de Pesquisa FAPESP). “Fizemos uma formulação que permite ao produto ficar mais tempo na pele e, mesmo quando em contato com a água, ele não sai tão facilmente”, diz Alário. Na composição entram principalmente filtros químicos, que são moléculas orgânicas que absorvem a radiação ultravioleta (UV). E também um filtro solar inorgânico, que reflete os raios UV. Essa associação é necessária para a obtenção de filtros solares com fator de proteção mais alto. Mas o que permanece a maior parte do tempo na pele são os ácidos graxos e seus derivados não hidrofílicos, que repelem a água, fazendo com que o protetor solar tenha maior duração após aplicado. “O fato de a partícula ser em escala nanométrica ajuda a manter o produto aplicado, porque sendo pequena ela gruda na porosidade natural que temos na pele”, diz Alário. Lançado em novembro de 2009 com o nome comercial de Photoprot fator de proteção solar 100, com 40 mililitros, o produto protege contra a radiação ultravioleta dos tipos B (UVB) e A (UVA). O primeiro tipo, o UVB, com maior in-
cidência entre 10 e 15 horas, provoca vermelhidão, ardor, descamação, queimadura e câncer de pele. O UVA é responsável pelo envelhecimento precoce e alguns tipos de câncer. O sol emite ainda um terceiro raio ultravioleta, o UVC, bastante prejudicial, mas barrado pela camada de ozônio. Além do óleo de buriti, um agente antioxidante, a fórmula contém os filtros solares orgânicos avobenzona e octocrileno, substâncias fotoestáveis que mantêm a eficácia dos filtros por várias horas. “Embora todos os fatores de proteção solar tenham sido desenvolvidos para o produto, a Biolab optou por lançar o fator 100 para atingir uma fatia de mercado mais direcionada”, diz Lilian Lopergolo, gerente do departamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação da empresa. “Escolhemos um produto que se diferencia pelo
tetor como também outros produtos baseados na biodiversidade brasileira para fora do país”, diz Alário. Aplicações terapêuticas - O desenvol-
vimento do fotoprotetor foi iniciado em 2005, como parte de um projeto maior apoiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. Na época a UFRGS já tinha uma parceria com a Biolab, por meio de um projeto que resultou na patente de um nanoanestésico. “Foi quando surgiu a oportunidade de fazer um outro projeto do edital Finep, uma chamada específica para nanocosméticos”, diz Adriana. O grupo de pesquisa da UFRGS detinha um amplo conhecimento de produção e caracterização de nanocápsulas poliméricas destinadas a anti-inflamatórios, antitumorais e outras aplicações terapêuticas. “Desde
1995, quando a professora Silvia voltou ao Brasil, após ter trabalhado no seu doutorado com nanopartículas poliméricas, ela criou na UFRGS um grupo para atuar especificamente nessa área”, diz Adriana, que foi convidada a participar. “Criamos muito conhecimento em torno desse tema”, relata. “Temos cerca de 80 trabalhos publicados, 70 dos quais indexados em bancos internacionais.” O projeto aprovado pela Finep foi finalizado em 2007, após dois anos de trabalho conjunto. Em 2008 foram feitos testes exigidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para registro do produto. Para o projeto específico do fotoprotetor com nanotecnologia a Finep destinou R$ 600 mil, a mesma contrapartida dada pela empresa. A tecnologia de nanocápsulas biodegradáveis foi patenteada e registrada com a marca Nanophoton. n Artgraphic Publicidade
alto fator de proteção, indicado para ser usado por pessoas que se submeteram a tratamentos clínicos, estéticos e cirúrgicos, como peelings, terapia fotodinâmica, preenchimento cutâneo e aplicação de toxina botulínica”, diz Alário. Ou como prevenção e terapia de melasmas, mais conhecidas como manchas na pele. O preço de venda nas farmácias está em torno de R$ 70,00. Como a empresa tem uma destacada atuação na área farmacêutica e só recentemente começou a trabalhar com a linha Cosmiatric, de produtos cosméticos com ação terapêutica, inicialmente o fotoprotetor está sendo divulgado entre os médicos. Mas, ao que tudo indica, em pouco tempo o Photoprot também estará no mercado externo. “Estamos em negociação com uma empresa alemã, que tem filiais em oito países, para levar não só o fotopro-
Representação artística de nanocápsulas poliméricas que revestem as substâncias ativas do fotoprotetor
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Menor e mais eficiente
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FARMÁCIA
Nova formulação de fármaco contra Aids pode facilitar o tratamento para crianças e idosos
Yuri Vasconcelos
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o lugar de um comprimido grande e difícil de engolir, alguns grânulos bem menores contendo o mesmo fármaco encapsulado em microesferas. Essa foi a saída tecnológica de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A solução poderá tornar mais eficiente o tratamento de Aids no país, principalmente entre pacientes idosos e crianças. Trata-se de uma formulação farmacêutica inédita do fármaco didanosina (DDI), largamente usado no combate à doença. O novo produto ainda em estágio experimental é formado por bolinhas de um milímetro (mm) de diâmetro com capacidade de aderir à mucosa do intestino. Elas são compostas de um aglomerado com centenas de microesferas de quitosana, um polímero natural obtido a partir do esqueleto de crustáceos como camarão, caranguejo e lagosta. Dentro dessas microesferas encontra-se encapsulado o fármaco antirretroviral didanosina. A nova forma farmacêutica e o seu processo de produção já renderam ao grupo de pesquisadores um pedido de patente, depositado em 2007 no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com validade no exterior via Tratado para Cooperação em Patentes (PCT na sigla em inglês). A próxima etapa do estudo, de acordo com a engenheira química Maria Helena Andrade Santana, professora que coordenou os trabalhos, deverá ser a realização de testes em humanos, última etapa antes de o produto estar pronto para ser comercializado. A didanosina, um fármaco fabricado por laboratórios farmacêuticos nacionais, faz parte do coquetel antirretroviral administrado a pacientes com infecção em estágio avançado pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Sua função é inibir a replicação do HIV. Tomado por via oral, na forma de comprimidos distribuídos pelo SUS, o medicamento apresenta o inconveniente de ser grande demais, em torno de um centímetro, o que dificulta a ingestão por crianças e idosos, prejudicando a adesão ao tratamento. A fim de prevenir que seja degradado quando exposto ao pH ácido do estômago, o fármaco é administrado em comprimidos tamponados, que contêm substâncias, como o hidróxido de magnésio, que lhe conferem essa proteção. O uso do
tampão aumenta expressivamente seu tamanho, tornando difícil sua deglutição. Quebrar o comprimido, por sua vez, pode causar a desativação do fármaco, que deve chegar intacto ao intestino, onde será absorvido pelo organismo. As principais vantagens do produto desenvolvido no Laboratório de Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos da FEQ-Unicamp são a redução do tamanho do medicamento, a adesão à parede do intestino e a liberação gradativa do fármaco. “O medicamento que nosso grupo desenvolveu é um grânulo que, em vez de ser composto pelas moléculas livres dos ingredientes, contém embutidos na sua matriz esferas micrométricas (dois micrômetros) de quitosana com a didanosina encapsulada no seu interior”, explica Maria Helena. “O nosso produto é fácil de deglutir e, para que o paciente ajuste a dose, no lugar de quebrá-lo, basta contar o número de grânulos a serem ingeridos. Isso facilita a terapia para crianças e idosos.” Segundo ela, já existe um antirretroviral à base de didanosina revestido com polímero gastrorresistente que assegura a proteção do fármaco. Acontece que ele não pode ser partido – por exemplo, para fracionar a dose do remédio – porque quando isso ocorre as arestas criadas ficam desprotegidas. “Esses grânulos são caros e importados e são distribuídos restritamente na rede pública para pacientes com HIV-Aids.” Uma vantagem adicional da nova formulação, cuja pesquisa integrou o doutorado do engenheiro químico Classius Ferreira da Silva, e o mestrado da farmacêutica Patrícia Severino, ambos na FEQ, é a liberação gradual e controlada da didanosina, o que aumenta a eficiência de absorção do fármaco pela mucosa do intestino e torna o tratamento mais eficaz. “Nossos grânulos são capazes de encapsular e liberar de modo mais
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O Projeto Caracterização do revestimento polimérico e farmacocinética in vivo de grânulos contendo micropartículas de quitosana incorporando didanosina
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadora
Maria Helena Andrade Santana – Unicamp investimento
R$ 57.632,50 (FAPESP)
Maria Helena Andrade Santana/UNICAMP
Grânulos formados por aglomerados de microesferas de quitosana contendo o fármaco didanosina
lento e controlado o composto ativo do medicamento”, diz Maria Helena. Resultados experimentais a partir de ensaios com cachorros mostraram que a liberação da didanosina ocorreu num período longo, de 36 horas, e que a quantidade de fármaco absorvida pelo organismo neste tempo é o dobro quando comparado com os comprimidos convencionais e grânulos comerciais. Os autores do estudo destacam, ainda, que os grânulos de quitosana podem ser revestidos com polímeros gastrorresistentes, de forma a protegerem a atividade de compostos ativos sensíveis ao pH do estômago. Outro diferencial da patente é o processo de fabricação da formulação. Durante os estudos em laboratório, a produção avançou em relação às suas variáveis operacionais, tornando-a passível de escalonamento e de aplicação no setor industrial. O processo envolve tanto a produção das micropartículas que encapsulam o fármaco como os grânulos mucoadesivos. Inicialmente, o composto ativo é encapsulado em
micropartículas de quitosana, em dispersão aquosa. Em seguida, essas partículas são separadas por centrifugação e removido o meio aquoso. As partículas úmidas são secas e a própria quitosana é adicionada à massa para produção dos grânulos. Liberação gradual – Um estudo de
farmacocinética, que é o tempo de permanência da droga na corrente sanguínea, desses grânulos foi realizado durante o mestrado de Patrícia Severino com apoio da professora Teresa Dalla Costa, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e mostrou a superioridade dos grânulos em relação ao comprimido revestido comercial. “Com isso será possível reduzir a frequência de administração do fármaco e, provavelmente, a dose”, diz Maria Helena. Segundo a pesquisadora, em função da associação de suas três propriedades – proteção do fármaco ou ingrediente ativo, liberação gradual e direcionamento específico para a mucosa intestinal –,
esses grânulos poderão ser usados para outras aplicações nas áreas farmacêutica, médica e veterinária, além da produção do medicamento antirretroviral. A etapa final de desenvolvimento do novo medicamento, essencial para sua comercialização, depende do estabelecimento de uma parceria com uma indústria farmacêutica que se encarregue da realização dos ensaios clínicos em humanos, complexos e principalmente caros para serem realizados no âmbito da universidade. “Repassar a tecnologia para uma empresa interessada é a nossa ideia, mas ainda não temos negociações em andamento”, diz Maria Helena. n
> Artigo científico Da Silva, Classius Ferreira; Severino, Patrícia; Martins, Fernanda; Chaud, Marco Vinicius; Santana, Maria Helena Andrade. The intestinal permeation of didanosine from granules containing microspheres using the everted gut sac model. Journal of Microencapsulation. v. 26, p. 523-28. 2009. PESQUISA FAPESP 167 janeiro DE 2010 77 n
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o látex extraído da seringueira amazônica os pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) estão desenvolvendo novos produtos para a área da saúde, destinados principalmente a pacientes diabéticos. “É uma matéria-prima de fácil manuseio e barata, porque o litro de látex custa cerca de R$ 17,00”, diz a professora Suélia Rodrigues Fleury Rosa, do Laboratório de Engenharia e Inovação da UnB do campus de Gama, a 30 quilômetros da capital federal, coordenadora da pesquisa. O primeiro projeto desenvolvido pelo grupo é uma prótese de esôfago para controle da obesidade e do diabetes tipo 2. “É um dispositivo biocompatível e flexível que tem a função de controlar a ingestão alimentar pela redução do diâmetro do esôfago, órgão que funciona como um tubo condutor entre a faringe e o estômago”, diz Suélia. Ao ser inserido no esôfago por via endoscópica, o dispositivo, indicado para ser usado por até 10 dias, causa resistência à passagem dos alimentos, tornando a ingestão mais lenta devido à necessidade de mastigação prolongada. “Esse efeito sobre a mastigação exerce influência nos mecanismos desencadeadores da saciedade e ajuda na reeducação alimentar de pacientes obesos, com consequente perda de peso e melhora nos níveis de glicemia”, diz Suélia. Nos testes experimentais feitos em cães, endoscopias comparativas feitas antes da colocação do módulo no esôfago e após a retirada do dispositivo, que permaneceu no organismo entre sete e 15 dias, mostraram que toda a área do órgão se manteve íntegra, sem nenhuma alteração. Atualmente, além da cirurgia bariátrica – redução do estômago, que é o último recurso usado contra a obesidade extrema, mas impõe uma série de limitações aos pacientes –, existem outras formas de tratamento, também classificadas como cirúrgicas e menos radicais. São as chamadas técnicas restritivas, como a banda gástrica ajustável e o balão intragástrico, similares ao módulo criado na UnB, chamado de controlador de fluxo esofagiano (CFE).
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A principal diferença entre eles é o local onde são aplicados, porque os dois dispositivos que estão em uso atuam na compressão do estômago. A banda gástrica ajustável consiste em uma fita de silicone colocada na parte alta do estômago. Após ser insuflada leva a um estreitamento do órgão, diminuindo sua capacidade em torno de 30 mililitros, o que restringe o volume da alimentação. “Essa técnica é indicada para pacientes não muito obesos, já que a perda de peso fica em torno de 20%, que não gostem de doces e álcool”, diz Suélia. “Entre as complicações pós-cirúrgicas estão dilatação do esôfago pela dificuldade de esvaziamento do órgão, obstrução total do estômago e infecção por contato com líquido digestivo.” A outra técnica é o balão intragástrico, prótese de silicone de formato esférico introduzida pela boca e levada ao estômago. É uma técnica útil para coibir a ingestão de alimentos de consistência pastosa ou sólida, mas não para líquidos. “Bebidas alcoólicas e outros líquidos com grande teor calórico são bem tolerados e, quando usados compulsivamente, se tornam a causa de insucesso do método para perder peso”, ressalta a pesquisadora.
O dispositivo da UnB tem o formato de um balão cilíndrico de oito centímetros de comprimento, com a superfície interna lisa e a externa ondulada com ranhuras. A aplicação é feita por endoscopia, com o balão vazio, na parte superior do órgão. Depois de posicionado no local correto, ele é inflado com oxigênio. “O objetivo do tratamento é que o paciente aprenda a mastigar e a comer corretamente com a ajuda de fonoaudiólogos, médicos especialistas e psicólogos”, diz Suélia. O projeto de desenvolvimento do CFE, que começou a tomar forma em 2006, durante o doutorado de Suélia, recebeu o Prêmio Santander de Empreendedorismo e de Ciência e Inovação em 2008 e o Prêmio Jovem Inventor da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal em 2009. A ideia surgiu a partir da observação de que pessoas com patologias obstrutivas de esôfago, como anel esofágico inferior e membranas esofágicas, apresentam grande perda de peso, mas não desnutrição. Método inovador - “A minha men-
tora foi a professora Fátima Mrué, da Universidade Federal de Goiás (UFG), que desde 1994 estuda o látex”, diz
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Engenharia biomédica
Borracha
versátil Látex é matéria-prima para controle de obesidade e outros produtos usados por diabéticos
cerca de um quilo por dia”, diz Suélia. “O estudo em um grupo pequeno deve-se à inovação do método e também para que todas as questões referentes à metodologia, aos riscos e aos desconfortos possam ser tratadas com maior grau de segurança.” O pedido para testar em voluntários está sendo avaliado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, onde os testes serão feitos, e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), vinculada ao Ministério da Saúde. “A fase dos testes em humanos deverá se estender por cerca de um ano e meio”, diz. Depois disso, se tudo correr conforme o previsto, a pesquisadora pretende estabelecer parceria com uma empresa para a fabricação do produto.
daniel das neves
Suélia. Fátima desenvolveu junto com o professor Joaquim Coutinho Netto, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, uma biomembrana à base de látex usada como curativo para feridas crônicas (leia mais sobre o assunto na edição 88 de Pesquisa FAPESP), lançada comercialmente com o nome de Biocure pela empresa Pele Nova Biotecnologia. Para o desenvolvimento da prótese de esôfago, a pesquisadora contou com a orientação dos professores Adson Ferreira da Rocha, da Faculdade de Tecnologia da UnB, e José da Conceição Carvalho, da Faculdade de Medicina da UFG. A próxima etapa do projeto consiste em testar a prótese em cinco voluntários durante um período de 10 dias. “A perda de peso esperada é de
O látex também foi a matéria-prima escolhida para ser usada na fabricação de uma palmilha que controla a pressão da pisada dos pés de diabéticos, como forma de prevenir futuras amputações. “Quando o diabético pisa incorretamente, por causa da má circulação no pé, começam a surgir feridas em alguns pontos mais sensíveis, que acabam evoluindo para a perda de dedos ou mesmo parte do pé”, diz Suélia. A palmilha terá um circuito eletrônico de baixo custo que vai monitorar as pisadas dos pacientes. “O controle possibilitará que seja feita uma fisioterapia dirigida para a ferida não evoluir”, relata. Ela também poderá ter em sua composição produtos químicos que ajudam na regeneração do tecido. Outra possibilidade que está em estudo é colocar na peça um laser de baixa frequência para ajudar na regeneração tecidual da ferida. A palmilha já tem um depósito de patente e está sendo analisada pelo comitê de ética da universidade para ser testada em pessoas. Em um terceiro projeto o látex, depois de seco em estufa e submetido ao processo de vulcanização, é utilizado para fabricação de um colchão inteligente destinado a pessoas que passam longos períodos em repouso, como diabéticos, pacientes internados em unidades de tratamento intensivo e recém-nascidos hospitalizados, como forma de evitar a formação de escaras. O diferencial desse colchão é que os gomos serão inflados e desinflados automaticamente por um circuito interno pré-programado. “O objetivo é fazer uma distribuição de pressão uniforme, mas não contínua”, diz Suélia. Um colchão em escala reduzida está sendo testado pela equipe de pesquisadores para avaliar qual o intervalo de tempo que determinado ponto da pele suporta a pressão, quanto tempo aguenta e outros parâmetros. Com base nessas informações, será feita a configuração do colchão de acordo com as necessidades de cada paciente. As três pesquisas fazem parte de um projeto chamado Bioenglatex – desenvolvimento de dispositivos de látex aplicados à medicina. n
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humanidades
ciência Política
o rato roubou a roupa do rei de roma Corrupção, uma prática velha como a humanidade Carlos Haag
da vida pública”, observam os organizadores (Leonardo Avritzer, Newton Bignotto e Heloísa Starling) de Corrupção: ensaios e críticas, um imenso survey sobre o fenômeno mais discutido nos tempos recentes, lançado pela Editora da UFMG (598 páginas, R$ 55) com textos de Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, Lilia Schwarcz, Evaldo Cabral de Mello, Olgária Mattos, Isabel Lustosa, Bruno Speck, entre outros. “Essa constatação povoa as páginas dos jornais, mas não gera necessariamente uma melhor compreensão da corrupção, de seus efeitos e suas raízes. À justa indignação contra aqueles responsáveis pelos atos corruptos segue-se uma condenação moral que, embora essencial, não conta de toda a complexidade do fenômeno”, alertam os coor denadores. Afinal, observam os autores, do ponto de vista do cidadão, o país enfrenta um dilema no combate à corrupção: quanto mais é combatida, mais ela é noticiada, e quanto mais ela é noticiada, maior é a sua percepção. “Do ponto de vista do cidadão, o combate à corrupção gera a aparência de uma maior presença desta na vida administrativa do Brasil.” O perigo é de se continuar a ver sempre na vida nacional um “mar de lama”. Outro perigo é enxergar esse mar apenas no Brasil. “A explicação tautológica de que o Brasil é corrupto em razão de sua identidade quase prescinde de refletir teoricamente e estudar empiricamente o fenômeno da corrupção. Não deixa de ser, apesar da crítica aparente, uma forma de se conformar à sua realidade. Por essa visão, o país seria inevitável e definitivamente corrupto devido a certos valores e práticas que, presentes desde a origem, tornaram-se parte de seu caráter. Essa explicação, além de preconceituosa, essencializa
reproduções do livro ecce homo, de george grosz
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ão é de hoje, tampouco é uma “honra” brasileira: já em 343 a.C. Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.) em seu discurso sobre a falsa embaixada acusou Ésquines de corrupção e foi acusado, por sua vez, por Dinarcos de receber suborno para deixar escapar um preso político. Andócides, outro clássico, que fazia parte da equipe que negociava paz com Esparta, foi tachado de corrupto, e Lísias, um orador ático, foi denunciado como sendo capaz de defender em seus discursos, brilhantes, qualquer opinião mediante pagamento. “A história recente mostra que a redemocratização do país tornou visíveis fatos que antes não chegavam ao conhecimento da opinião pública, mas não evitou que o fenômeno da corrupção se repetisse e há evidências de que ela está longe de ser um acontecimento marginal no interior
a história e simplifica ao atribuir uma sobrecarga explicativa à cultura em detrimento de suas articulações variadas com outras dimensões da vida social”, analisam os organizadores. “A organização Transparência Internacional, hoje, assegura que em todos os países pesquisados não há um só em que se possa registrar a ausência do fenômeno da corrupção. Países ricos como os EUA, a França, a Alemanha ou a Argentina comparecem nas listas em que se verifica a rotina do suborno, que é a forma de corrupção mais disseminada no mundo, uma prática de mão dupla: os países sofrem internamente, mas também promovem externamente em seus negócios com outros países”, lembra o cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Wanderley Guilherme dos Santos.
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artindo do famoso aforismo, poderíamos criar outras derivações como: ‘Se o poder oligárquico corrompe oligarquicamente, o poder democrático corrompe democraticamente’. A democracia oferece, comparada a outros sistemas políticos, uma multiplicidade de meios para a
corrupção, pelo número de transações entre pessoas privadas e poderes públicos que estimula e, normalmente, pelo volume dos recursos a serem distribuí dos mediante a deliberação coletiva. Comparada às ordens absolutistas e oligárquicas, a democracia seria, em princípio, o mais vulnerável dos sistemas políticos conhecidos”, analisa. Em comparação com os sistemas anteriores, num Estado democrático moderno, é bastante elevada a quantidade de postos de poder público cuja ocupação é submetida à escolha de um eleitorado universalizado, observa o cientista político. Assim, a sociedade não teria tanto o que reclamar sobre a corrupção, já que estaria responsável por essa distribuição do poder. “Transfere-se para a sociedade os atributos do poder absolutista e na mesma extensão em que se distribui o poder distribuem-se as oportunidades de corrupção nele implícitas. Por isso, a corrupção democrática identifica a face deteriorada do direito de participação popular na constituição e exercício do poder político tal como Aristóteles havia antecipado”, avalia Wanderley dos Santos. Há outras formas de entender esse fenômeno. “Alessandro Sartori afirma que toda decisão política produz riscos
externos que afetam aqueles obrigados a consumir a decisão da qual não participaram: riscos de tirania, incompetência e corrupção. Logo, a corrupção é um dos riscos externos que pode afetar negativamente a operação e os resultados dos sistemas políticos. Mas, se há corrupção, que haja escândalos, pois dar publicidade à corrupção é sinal de robustez, e não de fragilidade do sistema político”, observa a cientista política Fátima Anastasia da UFMG. E no Brasil, como se observa esse movimento? “A corrupção brasileira é antiga e mutante: a corrupção de hoje não é a mesma de há 100 anos ou, melhor, mudou o sentido da corrupção nacional. As acusações de corrupção dirigidas ao Império e à
Primeira República não se referiam a pessoas, mas principalmente ao sistema. Não se chamava d. Pedro II de corrupto, de presidir uma administração corrupta, ou, em 1930, quando os revolucionários chamavam os políticos da República Velha de carcomidos não queriam dizer que eram ladrões. Corruptos eram os sistemas porque não promoviam o bem público”, explica o historiador José Murilo de Carvalho. Foi a partir de 1945 que houve uma alteração semântica na acusação de corrupção. “A oposição a Vargas, comandada pelos políticos da UDN, voltou suas baterias contra a corrupção individual, contra a falta de moralidade das pessoas. Nessa chave, corruptos eram os indivíduos, porque roubavam dinheiro público para enriquecer a si mesmos e a seus amigos. Postura semelhante presidiu à justificativa do golpe de 1964, feito, como se alegou, contra subversivos e corruptos”, lembra. O discurso atual é herdeiro desse discurso udenista, presente hoje na grita contra mensaleiros e outros predadores da coisa pública, lembra o historiador. Ao final do governo Sarney, o grito de guerra de Collor, que o levou à Presidência, foi também a caça a pessoas, aos marajás.
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as, no debate atual sobre corrupção, está também presente um ingrediente sistêmico de caráter ideológico, análogo ao do Império e da Primeira República. A reação mais lúcida à corrupção envolve, sim, o comportamento individual, mas o enquadra em perspectiva política sistêmica, não moralista. Para essa posição, a corrupção
seria inaceitável por minar a própria essência do sistema democrático-representativo, a busca do bom governo como gestão correta, eficiente e honesta do bem público”, nota José Murilo. “Para outros, essa crítica seria apenas udenismo e a visão de um bom governo seria um instrumento de promoção da igualdade, sem maior preocupação com a correção dos meios adotados.” O perigo ético que decorre disso é latente, mas intenso. “Daí os políticos de esquerda parecem se sentir mais injustiçados quando seus eleitores manifestam mais indignação diante das notícias de corrupção em seus partidos do que diante da corrupção entre os conservadores. Não há razão para espanto. As grandes decepções são diretamente proporcionais às grandes esperanças”, observa a psicanalista Maria Rita Kehl. “Quando se revela que PESQUISA FAPESP 167 janeiro DE 2010 n
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A malandragem é subproduto da modernização e se evidenciará quão mais perversa for um político eleito a partir de compromissos com interesses populares agiu em interesse próprio a sociedade fica desnorteada, há uma fratura no campo simbólico e a indignação no campo simbólico pode rapidamente descambar em autorização cínica para a falta de ética generalizada, em todos os níveis: ‘ou restaura-se a moralidade...’”, avalia Maria Rita. Se os governantes, que ocupam o lugar simbólico do pai, colocam-se acima da lei, a violência tende a se disseminar por toda a sociedade. “No Brasil, em 2005, a ‘crise do mensalão’ mobilizou contra o governo do PT sentimentos de desilusão e revolta mais dramáticos do que contra outros partidos que tenham se revelado corruptos, já que o PT se elegera sob a bandeira da transparência”, analisa. Segundo a pesquisadora, é compreensível que quando o governo eleito em nome da esperança e da transformação se revela como os outros o cinismo suceda a decepção e a perplexidade iniciais e a ação política se desmoralize. Nasce, então, o ressentimento. “O cidadão que se imagina puro, mas admite com amargo realismo a corrupção mascara sua cumplicidade e age como a vestal que se queixa de ter sido a vítima passiva de seu sedutor. Ele negociou, inadvertidamente, seus interesses de classe na esperança de que o caixa dois viesse um dia a beneficiá-lo. O ressentimento é o ponto de encontro entre essas duas correntes psíquicas: a cumplicidade inconsciente com o agravo; de outro, a frustração por não ter se beneficiado dela. O avesso do ressentimento seria a retomada do sentido da ação política.” Disso decorre certo desafogo da classe política, porque a corrupção não seria um privilégio dos políticos, 84
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mas estaria espalhada pela população em geral. Mas se engana quem quer ver nessa malandragem um traço impresso no nosso DNA cultural, como já se alertou anteriormente. De onde ele viria, então? “A malandragem é um subproduto que a modernização recebe e tenderá a se evidenciar quão mais perversa ela se mostrar, como é o caso brasileiro, e quão mais distante estiver a sociedade civil de seu controle. Nesse sentido, a malandragem não é outra coisa, mas uma resposta apolítica às fissuras deixadas pela ideologia moderna em sua tarefa de moldar a sociedade”, explica o soció logo Venceslau Alves de Souza, autor do doutorado Malandragem e cidadania, defendido na PUC/SP sob orientação de Vera Chaia. Segundo ele, em qualquer ambiente social de modernização nefanda, seja aqui, seja em partes dos EUA, seja no México, a causa comum da malandragem é a precarização das condições de vida dos trabalhadores e o surgimento da corrupção do “jeitinho”, independentemente das características físicas, psíquicas ou da raiz de onde se origina este ou aquele povo, mas resulta da ideologia que permeia e configura dada sociedade. Logo, descarta-se a tese de um DNA nacional da corrupção.
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ouve entre nós, por um longo período, uma resistência dos segmentos mandões em admitir um modelo de dominação fundado na igualdade de oportunidades e condições afastando qualquer possibilidade de mudança social, o que será determinante para o surgimento da figura do malandro. Acostumados a
mandar incondicionalmente, os mandões não se reconhecerão no modelo regulador e classificatório moderno, achando difícil assimilar a noção de direitos e igualdade”, observa o pesquisador. Isso, continua, desestimula as classes baixas a acolher esses imperativos, e assim a tradição venceu a modernidade. “Nesse sentido, os mandões se transformavam e transformavam em malandros os indivíduos que mantinham sob controle, pois a malandragem não é outra coisa que um fenômeno que se nega a reconhecer a legitimidade da ordem moderna, procurando agir ao largo de suas instituições, ainda que numa espécie de dialética da ordem e da desordem. O que se reproduzirá por longa data será uma massa humana que parece querer se esquivar da racionalidade moderna sempre que pode. Ao serem impedidos de competir em pé de igualdade desde que nascem, os indivíduos são levados a crer que há sempre um ‘jeitinho’ para se amolecer a rigidez da hierarquia social e levar vantagem, dando-se bem”, analisa o pesquisador. É daí que o habitus malandro passa a valer para os mais variados segmentos sociais, uma busca incessante do capital cultural diferencial que autoriza todas as classes sociais a usar a ginga sempre que necessário. Não é por outra razão que as próprias classes médias, em geral moralistas, usarão os recursos da malandragem sempre que indispensáveis. A resposta, como ao político corrupto, é a mesma: “É ele que acaba ditando o ritmo geral aos indivíduos moralmente precarizados do lado periférico do mundo moderno, e que somente um choque radical n de cidadania irá afungentar”.
> Literatura
Tema brasileiro, sotaque alemão Projeto resgata literatura nacional
de expressão germânica
reproduções do livro o brasil dos viajantes/ana maria de moraes belluzzo Floresta brasileira, 1864/Martin Johnson Heade
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uando, em 1821, no Wilhelm Meister, Goethe (1749-1832) liberou seus compatriotas germânicos com um “apressai-vos a emigrar”, um dos destinos privilegiados foi justamente o Brasil, visto por eles como um eldorado, uma nova Canaã, com suas florestas encantad as e intocadas e sua natureza luxuriante e bela. O país já aparece nos sonhos do herói do romance Simplicius Simplicissimus, de Grimmelshausen, de 1688, como uma terra de livre comércio, de paz e abundância, de animais exóticos e fartura, uma espécie de paraíso terrestre, e esse imagotipo, ou estereótipo de uma nação, acompanharia o imaginário alemão por longos séculos, a ponto de fazer nascer toda uma literatura germânica calcada no Brasil. Ou melhor, uma literatura brasileira de expressão alemã, já que feita por imigrantes e seus descendentes e continuada até os dias de hoje, título, aliás, do projeto de pesquisa que reúne pesquisadores da USP, sob Pequenez do coordenação de Celeste Ribeiro homem diante de Sousa, professora aposentada da natureza: da USP, em conjunto com o Instiperder-se no paraíso tuto Martius-Staden.
Lagoa Rodrigo de Freitas, 1844/Eduard Hildebrandt
Imigrantes ouviam sobre o novo país como sendo terra de grandezas
“Pretende-se recuperar o acervo desta produção literária, autores e obras, resgatar esse universo, traduzi-lo e colocá-lo on-line para facilitar o acesso de pesquisadores interessados em trabalhar com eles. Os textos literários produzidos encontram-se espalhados num grande número de Kalender (livros almanaques que até o passado eram comumente publicados na colônia alemã) e num gigantesco número de jornais. Quando comecei o projeto pensei em iniciar pela primeira geração de imigrantes e depois passar para a seguinte e assim por diante, mas isso se mostrou inviável. Como saber quem era de que geração se não se conhecia o total de autores e obras? É um trabalho de levantamento e de desbravamento que avança pouco a pouco. Somos apenas 12 pesquisadores, a maioria doutores, e uma pesquisadora alemã, da Universidade de Viena, mas é pouco para o tamanho do projeto”, 86
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conta Celeste. Depois de localizados os textos, é preciso centralizar um polo de referência para as informações sobre o assunto para evitar repetições e facilitar o acesso de pesquisadores ao material on-line. Feito isso, a terceira etapa é a confecção de uma história da literatura brasileira de expressão alemã. O projeto foi iniciado em 2006 quando ficou pronto o e-book sobre Alfred Reitz (1886-1951) e, hoje, já estão prontos os acervos de Robert Weber (1895-1975), Hilda Siri (1918-2007), Matthaeus Braun (1872-1954) e já caminham para a finalização os de Karl von Koseritz (1830-1890), Elly Herkenhoff (19062004), Georg Knoll (1861-1940), Margret Kuhlmann (1892-1984) e Wilhelm Rotermund (1843-1925). “A grande maioria dos brasileiros desconhece por completo esta produção literária, silenciada pela barreira da língua e também por motivos ou-
tros como a perseguição getulista a esta minoria étnica que foi proibida de usar a língua alemã. Penso que ao colocar on-line os textos originais e algumas de suas traduções será possível levar à sala de aula este segmento quase desconhecido da cultura e da literatura. Vale lembrar que esta literatura em língua alemã não é escrita só por imigrantes de língua alemã; ela é produzida também por seus descendentes, que continuam cultivando a língua e a cultura da pátria de seus ancestrais. Aliás, esta questão não é simples. Pelo jus solis, é brasileiro todo indivíduo que nasce no Brasil. Pelo jus sanguinis é alemão todo indivíduo nascido de mãe e pai alemães”, explica Celeste. Daí, continua a pesquisadora, que a grande maioria dos imigrantes, embora tenha na Europa proveniências diferentes, logo desenvolve no país de adoção um sentimento de pertença conhecido co-
zeiro,/ outrora Santa Cruz, descoberta por Lusitânia./ Sublime tu despontas do mar,/ comparável ao paraíso,/ imagi nado para que o coração/ a saudade não corroesse,/ a fim de que o além não se tornasse/ um delírio para nós”, escreveu Georg Knoll (1861-1939) em Brasilíade. Difícil imaginar um alemão perdendo sem razão a sua razão, mas esse poema, um entre tantos, mostra o entusiasmo pela paisagem brasileira de um poeta nacional de expressão alemã. Há como entender, de certa forma, esse entusiasmo, da primeira geração dessa literatura de expressão alemã, bastando verificar o que acontecia na própria Federação Alemã, já que ainda não existia a Alemanha. Entre os anos 1815 e 1848, lembra a pesquisadora, o período conhecido como Vormärz, aconteceram várias reformas na federação germânica, em especial, exigiu-se que ela se transformasse num Estado unitário fundamentado num Parlamento, quando surge uma solidariedade entre as camadas burguesas oprimidas contra as forças monárquicas que impedem a unificação e o desenvolvimento econômico das populações. No campo grassa a miséria entre os camponeses. “A Revolução Industrial chegou tarde à Alemanha por
causa desse estilhaçamento político, que criou muitas barreiras alfandegárias à circulação de mercadorias, fato que, aliado à entrada fácil de bens de consumo estrangeiro, faz com que haja muita miséria no país. No Império brasileiro havia um projeto de se estimular a vinda de imigrantes e com a presença de d. Leopoldina privilegiou-se a entrada de gente de fala alemã. Junto com pessoas, vieram animais e plantas tipicamente europeus para aculturá-los ao clima do Brasil.” O país surge então, nota Celeste, aos olhos dos imigrantes, como o paraí so na terra, um refúgio para onde correr, seja para ficar rico, seja para fugir da Justiça europeia ou da discriminação social, seja para fugir das guerras. “Há narrativas de imigrantes que ilustram sua decepção após esse entusiasmo inicial, a quebra do imagotipo, de modo claro, como, por exemplo, o conto de Otto Grellert, de 1954, A cada um seu paraíso, em que ele, um pastor enviado para prestar serviço nas igrejas batistas das colônias brasileiras, revela a história de pessoas de língua alemã atraídas ao Brasil por ofertas mirabolantes publicadas em jornais. ‘Alemão! Por que trabalhas como servo para senhores estranhos? Por que sofres ainda
Música na proa da fragata Áustria, desenhado durante viagem no oceano, 1817/Thomas Ender
mo Deutschtum, que se pode traduzir como germanidade, ou o sentimento de “ser alemão”, um sentimento veiculado e propagado por jornais, folhetos, almanaques e textos literários de ficção. Esse Deutschtum chega mesmo a sofrer alterações com o passar do tempo, sendo caracterizado, mais tarde, como Deutschbrasilianertum ou teuto-brasilianidade. “Esse sentimento tem subjacente à ideologia a ideia de solidariedade e igualdade entre os que participam de uma identidade étnica comum, e oposição em relação ao que tem identidade nacionalista transformada ou modificada em ideologia étnica.” Isso era compreensível naqueles tempos. “Se hoje as pessoas se movem das chamadas periferias para as metrópoles, onde almejam o entrosamento, a inclusão, no século XIX as pessoas deixavam as periferias das metrópoles, o campo, para se estabelecerem em mundos intocados, onde era supostamente possível iniciar do zero. Nesse contexto, muitos alemães chegaram ao Brasil a partir de 1824, data que oficializa o começo da imigração alemã para o nosso país”, observa Celeste. Apesar da data, a presença de gente de língua alemã se faz quase em simultâneo com o descobrimento e continua até 1818, com a chegada na Corte de d. João VI de d. Leopoldina, filha de Franz I da Áustria, para desposar d. Pedro I, que torna as terras brasileiras mais visíveis na Europa e vira referência para a vinda ao país de cientistas e artistas germânicos, bem como uma gama de outros imigrantes da mesma origem (basta lembrar a fundação de Nova Friburgo, em 1819). Imaginário - Em 1824, porém, oficiali
za-se a imigração e chegam cerca de 350 mil alemães de diversos pontos. “Os imigrantes de língua alemã não carregaram para cá apenas a ideia do Deutschtum, mas igualmente trouxeram em seu imaginário uma ‘arqui-imagem’ fantasiosa do Brasil que receberam quer de narrativas de viagem em idioma alemão, quer de textos da própria literatura alemã, imagem esta que foi realimentada pela propaganda produzida pelo Brasil e veiculada nos países de fala alemã, principalmente no tempo dos imperadores d. Pedro I e d. Pedro II”, conta a pesquisadora. “Eu te saúdo, sagrada terra do Cru-
Viagem a bordo da fragata Áustria traz novos moradores PESQUISA FAPESP 167
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Cachoeira de Paulo Afonso, Pernambuco, 1850/E.F.Schute
Imensidões que faziam lembrar paisagens românticas de Caspar David Friedrich
de fome num pedaço de terra acanhado? Vem para o Brasil! O país mais rico do mundo com suas florestas imensuráveis espera por ti. Lá podes, também tu, tornar-te um senhor, em solo e terra próprios. As melhores terras do Brasil estão sendo divididas e vendidas em nossos dias. Já está sendo demarcado o lugar onde deve ser construída a cidade mais moderna, com igrejas, hospitais, escolas, bancos e lojas. O planejamento já está concluído. Estradas largas e excelentes deverão em breve ser construídas 88
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e também se pode contar para logo com a construção da estrada de ferro’. E essa gente, que no começo do século XIX atravessava uma situação econômica precária na Europa, vem mesmo para o Brasil e também para outros países. Se prestarmos atenção na propaganda, vemos que no presente estão só os verbos relativos ao planejamento, às ideias no papel; os demais verbos estão no futuro, tudo são promessas; mas, na cabeça de pessoas que ambicionam uma vida melhor, as promessas são imaginadas
já como concretizações”, analisa Celeste. “Entre o emissor da mensagem e o seu receptor cria-se um ruído enorme, traduzido no conto como uma enorme quebra de expectativa ao contato com o Brasil. Procuram a moderníssima cidade e só encontram o local ainda coberto de floresta; procuram as estradas largas e só encontram picadas; procuram as escolas e nem sinal delas etc. Enfrentam, porém, a realidade, pois não têm dinheiro para voltar. E, neste embate com a floresta, acabam por conseguir
construir uma casinha de madeira, fazer um jardim, plantar um pomar e, nesse processo, acabam por desenvolver um amor por sua propriedade, que se estende ao país de adoção”, diz a autora. Carência - A concentração em áreas restritas, isoladas da sociedade brasileira, facilita a manutenção dos costumes e o uso cotidiano da língua alemã. A carência de serviços públicos leva à formação de uma organização assistencial comunitária e à criação de uma rede escolar
particular, a “escola alemã, criada para atender necessidades de ensino elementar, mas que vai aos poucos tomando feições étnicas, instrumento de germanidade, de perpetuação da língua e da cultura alemãs. No Deutschtum, a língua está em primeiro lugar, traço fundamental da identidade alemã, a raça, o sangue ou a origem étnica. É a partir da língua que se pode ler os chamados anuários ou Kalender que veiculam os patrimônios de germanidade ou de teuto-brasilidade. Neles coexiste o amor à pátria de origem e ao Brasil e é nesses livros (com até 200 páginas e tiragens superiores a 12 mil exemplares), ao lado dos jornais, que serão veiculados os contos, histórias e poesias da literatura nacional de expressão alemã. Os primeiros datam de 1870 e chegam a durar até os anos 1970 e são eles os principais divulgadores da cultura germânica em solo brasileiro até a proibição do uso do idioma alemão em qualquer atividade cultural ou social, bem como o fechamento de todas as escolas alemãs em 1939, durante o Estado Novo, quando, observa a pesquisadora Valburga Huber, da UFRJ, esse patrimônio cultural misto é desmantelado após um século de florescimento. “Após o movimento de nacionalização getulista, portanto, há uma lacuna cultural e só lentamente volta-se a escrever novamente em alemão, mas são poucos os veículos de divulgação que sobrevivem à Segunda Guerra Mundial e esta literatura reaparece, bem mais frágil, geralmente nas cidades maiores”, observa Valburga. Ainda assim, o sentimento de germanidade era forte demais para ser erradicado. Ele permaneceu, por exemplo, nota Celeste, na manutenção dos costumes alemães durante o Natal, como por exemplo no conto Imigrantes, de Gertrud Grimm, ela própria uma imigrante: “E então chegou o primeiro Natal no estrangeiro. Sob o sufocante calor do verão, contemplando o pinheiro modestamente enfeitado, todos sentiam saudades do inverno no antigo lar e do perfume aromático da árvore de natal alemã e muito baixinho, contendo o choro, cantavam tristemente a bonita canção de Natal alemã ‘Noite serena, noite sagrada’”. Embora não exista uma relação direta entre a produção dos imigrantes e a visão dos alemães sobre o Brasil, Celeste observou pontos em comum
entre as duas literaturas e a forma como o espaço brasileiro é visto pelos estrangeiros e pelos brasileiros de expressão alemã ora como paraíso terrestre (com elementos de bucolismo, refúgio político, força telúrica produtiva), ora como paraíso interior (fuga de pressões sociais e políticas na terra natal ou busca da perfeição como ser humano, próximo à experiência do sagrado) ou ainda como paraíso destruído, associado à ideia de destruição da natureza e dos problemas sociais das cidades. Um exemplo notável e pouco conhecido é a trilogia de livros escrita por Alfred Döblin (1878-1957) entre 1935 e 1937 que, a partir de 1963, ficou conhecida como o romance Amazonas, uma imagem daquilo que poderia ter sido a conquista da América com direito a todos os efeitos de colagem e estrutura interna revolucionária nos moldes do seu Berlin Alexanderplatz. Há a história da revolta das mulheres de uma nação indígena chefiadas por Toeza, mulher do cacique, que decidem matar os maridos e prescindir dos homens; há jesuítas chefiados por Manoel da Nóbrega que deixam São Paulo e tentam criar uma Canaã indígena, uma narrativa das primeiras reduções jesuíticas na região do rio Guairá e de seu fracasso com o paraíso perdido; há histórias desconhecidas passadas em São Paulo; e assim por diante. “Os conceitos intrínsecos em sua trilogia sul-americana são: a falência do projeto europeu de civilização, a esperança que pode residir no projeto primitivo de vida, consubstanciado num mundo em que homens se sentem parte integrante da natureza e a aceitam, com tudo o que ela tem de atração fatal. No final, não há salvação para ninguém. Não há salvação para os índios: perseguidos por séculos pelos europeus, só encontram a terra sagrada dos seus mitos pela morte. Não há salvação para europeus: esquecidos de seus mitos, a sua crença na força irrefreável do progresso material os arrasta para um fim inglório, mesmo que procurem se refugiar no mundo mítico dos indígenas”, analisa George Sperber, da USP. Seja onde for, os alemães buscavam a sua Canaã onde pudessem cantar, ao lado do pinheirinho, o seu “O, tannenbaum!” n
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História
Tempo
de recontar
fatos
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ão é fácil consultar arquivos públicos e todo pesquisador sabe disso. O principal problema é a falta de tempo de ir ao local, de procurar documentos e de seguir os horários preestabelecidos. Desde dezembro, porém, parte deste trabalho pode ser feita de casa, no que se chama de “pesquisa remota”. O Arquivo Público do Estado de São Paulo (www.arquivoestado.sp.gov. br) acaba de lançar um mega-acervo digital que reúne mais de 360 mil imagens de documentos e fotos que podem ser baixados com alta resolução. A iniciativa pretende ampliar consideravelmente não apenas o número de pesquisadores que consultarão o arquivo, mas a qualidade, completude e diversidade dos estudos. “Não podemos ainda fazer uma estimativa, mas tudo será redimensionado em grande escala”, observa entusiasmado o professor Carlos de Almeida Prado Bacellar, Coordenador da instituição. O novo site reúne, entre outros tesouros, a coleção completa do jornal Última Hora e outra da revista feminina A Cigarra, editada entre 1914 e 1956, além de documentos dos Núcleos Coloniais, fazendas coletivas que recebiam os imigrantes chegados ao Brasil no começo do século. O usuário pode ter acesso à publicação eletrônica Revista Histórica e ao portal Memórias Reveladas, com um riquíssimo banco de dados sobre a luta contra a ditadura. Há também notícias sempre atualizadas sobre sistema de arquivos públicos, oficinas pedagógicas e cursos de preservação. E não termina aí. A página de Memória da Imprensa apresenta coleções de diversos tipos de publicações, como o jornal anarquista A Lanterna, editado por Edgard Leuenroth no começo do século passado. Algu-
mas dessas publicações, inclusive, têm coleções completas no site. Noventa dos 200 funcionários do arquivo estão envolvidos nas diferentes etapas do projeto, até o documento chegar à tela dos usuários. O Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, observa o diretor Marcelo Lopes, continua trabalhando em ritmo intenso para ampliar o volume de informações do site. Responsável pela custódia da documentação permanente depositada no arquivo, entre as diversas ações que promove, ele destaca o Memória Pública, programa de ação permanente cujo objetivo é promover o acesso aos documentos que constituem uma parte da memória da sociedade sob responsabilidade do Estado. No espaço dedicado ao setor na rede, o internauta pode conhecer detalhes de sofisticados processos de restauração e também receber dicas para a preservação dos seus próprios documentos. Boa parte está relacionada à microfilmagem e digitalização do acervo – fundamental para o site. São nada menos que 60 mil imagens digitalizadas e/ou microfilmadas mensalmente. Com estes processos, além de facilitar a consulta do material, o centro também ajuda a preservar os originais. “A princípio, todos os documentos são higienizados, reconstituídos ou acondicionados”, conta Lopes. De acordo com ele, seu departamento trabalha com 35 pessoas especializadas em restauro e outros funcionários que recebem treinamento. A prioridade ainda é microfilmar porque é a forma mais segura de conservação. Todos os rolos são guardados num espaço climatizado. “A gente digitalizou todas as imagens que vão para o site e tem guardado em alta definição. Depois convertemos para internet.” Os documentos da PESQUISA FAPESP 166
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arte de júlia cherem com imagem de PSD Graphics sobre fotos do arquivo do estado
Arquivo Público paulista cria mega site com 360 mil documentos e sistema de orientação para professores | Gonçalo Junior
Acervo traz tanto imagens (grupo de crianças orientais) como documentos antigos
rede têm leitura em duas resoluções: para ler, de 150 DPIs, e de 300, para baixar. Tudo, finaliza Lopes, é feito com empenho para que o conhecimento chegue ao maior número de brasileiros. Sala de aula - O portal é algo grandioso para os padrões brasileiros que promete iniciar uma nova era na pesquisa histórica brasileira, que vai refletir inclusive no uso da internet em sala de aula. Embora pesquisadores de pós-graduação sejam os principais interessados, um dos focos será estender e estimular a consulta em salas de aula por estudantes de todos os níveis de graduação. Para isso, uma equipe de educadores da instituição criou uma série de atividades dirigidas a professores para ampliar as possibilidades de aprendizado de seus alunos com tudo que o arquivo oferece. São exercícios que podem ser aplicados diretamente pelo computador, que inclui busca ou impressão de documentos e fotos e exercícios ou temas para debate. “A ideia era criar algo bastante interativo, informar o que temos e fazemos dentro do arquivo, propor um módulo com roteiro, porque, muitas vezes, o professor fica perdido quanto a encontrar meios que fixem mais informações junto aos alunos”, explica Bacellar. “No caso de história em sala de aula”, prossegue ele, documentos são pouco usados, uma vez que os educadores se orientam por livros. Com o site, acrescenta ele, “o aluno poderá ver a fonte primária de importantes acontecimentos do nosso país, aprender como se davam os fatos na prática, de que modo a polícia política agia contra os cidadãos”. Ao mesmo tempo, saberá de outras formas de conhecimento, como a linguagem, a caligrafia de cada época. “Enfim, é um complemento que vai muito além do usual, do modelo convencional desse tipo de site.” Bacellar acredita que em tempos de internet é preciso pensar em formas mais agradáveis para seduzir os estudantes que não os da universidade. “Uma coisa é falar da escravidão pelos livros, outra é ver um anúncio de venda de escravos ou de busca daqueles que eram foragidos.” O coordenador observa que não apenas professores do interior de São Paulo terão um grande
manancial de informações, mas de todo país, uma vez que muitos fatos importantes da história do Brasil tiveram mais relevância aqui, como a imigração e a repressão durante o regime militar. E explica que a reformulação completa do site foi baseada em dois conceitos. Primeiro, a democratização do acesso ao acervo da instituição. Depois, a contextualização do que o arquivo vem armazenando, tratando e publicando ao longo desse tempo – antes da reformulação, 85 mil documentos e fotos estavam na rede. Agora o número pulou para 360 mil e deve passar de 2 milhões até o fim do ano. O portal tem ainda outras atividades educativas, como as exposições temporárias, semelhantes às feitas em qualquer museu físico. A primeira celebra os 30 anos da anistia política rea lizada durante a ditadura militar. Nas imagens e registros documentais, os cinco anos de luta até que a mesma se concretizasse. Para facilitar a pesquisa, tudo foi organizado em forma de sites temáticos. Inicialmente são três: Memória da Imprensa, Cotidiano em São Paulo e Imigração, com um guia eletrônico para navegar por todo esse conteúdo. Assim, o pesquisador pode descobrir material desconhecido para seu trabalho ou usá-lo como ponto de partida para o estudo de uma determinada época ou tema histórico. A diretora do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa, Haike Roselaine Kleber, diz que não é possível dimensionar o aumento nos trabalhos acadêmicos desde que o arquivo passou a colocar suas coleções na internet. Mas acredita que o crescimento na procura tanto física quanto virtual é bem expressiva. Segundo ela, a instituição tem procurado, em outra frente, construir uma relação forte com escolas e professores, valorizando o acesso às fontes primárias e ensinando a usar o material do seu acervo em sala de aula. “Os sites temáticos não são fechados e terão atualizações constantes, além dos novos que virão no próximo ano. O carro-chefe do modelo será sempre o trabalho na sala de aula.” Não significa que os serviços convencionais serão abandonados. Pelo contrário. O departamento editorial para obras impressas está sendo reativado, com a montagem de uma nova equipe. Ainda
em 2009 serão lançados dois títulos e mais cinco virão no começo do ano que vem. “Nosso foco é explorar todas as possibilidades do acervo”, ressalta. Preciosidades - O Centro de Acervo Iconográfico e Cartográfico do Arquivo Público conta com cerca de 1,5 milhão de imagens, entre negativos, cópias fotográficas, postais, caricaturas, ilustrações, mapas e plantas. Uma riqueza que está refletida no site também, como destaca Bacellar. Através do guia do acervo – instrumento de busca presente em todas as páginas – o pesquisador pode, por exemplo, olhar todo o material do Centro de Acervo Permanente, que inclui sete quilômetros lineares de documentos públicos e particulares. Também abriga o chamado Fundo Deops, com fotos históricas tiradas dos arquivos da repressão – uma das atrações do site, aliás, que exibe desde a ficha de identificação da comunista Olga Benário (entregue aos nazistas por Getúlio Vargas) até uma foto do integralista Plínio Salgado, festejando as bodas de prata da AIB (Ação Integralista Brasileira). Ainda na página do Fundo Deops existe uma série de instruções para realizar a pesquisa nos arquivos da repressão, ou para resgatar um dossiê relativo ao consulente ou a alguém de sua família. No momento estão disponíveis 5 mil imagens on-line e até junho de 2010 entrarão mais 82.500 fotos. Parte do site deve oferecer uma “genealogia” dos municípios paulistas mais importantes. A começar, é claro, pelo mais antigo: São Vicente, fundado em 1532. Há ainda as séries documentais de ofícios ao governo paulista de 1822 a 1919, com informações fundamentais para quem quiser entender a história administrativa brasileira. Lauro Ávila Pereira, diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, observa que até então o site apresentava uma lógica arquivística, mas que era pouco funcional para a maioria dos usuários, não arquivistas. “Agora valorizamos o conceito de memória pública para ir além dos pesquisadores e chegar a graduações e a professores do ensino médio.” Pereira recorda que o novo site começou a ser discutido em julho e já em agosto teve início sua preparação. “Estabelecemos no decorrer da montagem outras ferramentas para reforçar a ação educativa que sempre nos orientou.”
Fapesp - Desde 1994 a FAPESP mantém acordos de parce-
ria com o Arquivo Público para montagem e ampliação de infraestruturas diversas. O primeiro deles, por exemplo, foi fundamental para a criação da primeira rede de informática da instituição. No ano seguinte, recursos da Fundação foram usados para compra de equipamentos de microfilmagem e conservação do material fotografado. Em 2000 foram destinados R$ 497 mil para a montagem do laboratório fotográfico e climatização dos documentos, além de atualização no setor de microfilmagem. Nessa fase, 40 mil documentos foram digitalizados – os pesquisadores podiam copiar os mesmos em disquetes ou CDs e continuar suas pesquisas em casa. “Tudo isso permitiu que ocupássemos o prédio atual (ao lado do metrô Tietê)”, observa Lauro Pereira. Para Carlos Bacellar, pela tradição da Fundação, a formalização de um acordo de cooperação foi fundamental para manter e ampliar o trabalho. “Estamos aprimorando e descobrindo novas necessidades a todo instante e esperamos continuar contando com apoio da FAPESP porque somos um centro de preservação da memória pública e agente multiplicador para a pesquisa em São Paulo e no Brasil”, acrescenta Lauro Pereira. n PESQUISA FAPESP 167
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Jorge Amado (de bigode) no Congresso da Paz, em Varsóvia, e licença do Zeppelin
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resenha
A imagem da revolta Livro condensa olhar sobre as revoluções Carlos Haag
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ocê pode multiplicar por 10 o surrado clichê de que uma imagem vale por mil palavras quando o assunto são revoluções políticas, como se vê no livro Revoluções, organizado por Michel Löwy – e o professor dá as razões para tanto. “É claro que as fotografias não podem substituir a historiografia, mas elas captam o que nenhum texto escrito pode transmitir: certos rostos, certos gestos, certas situações, certos movimentos. A fotografia possibilita que se veja, de modo concreto, o que constitui o espírito único e singular de cada revolução.” A foto das usinas Krupp, continua o pesquisador, não acrescenta nada, mas a do senhor Krupp cumprimentando Hitler, em companhia de outros industriais e banqueiros, é um documento fascinante sobre a cumplicidade entre capitalistas alemães e nazistas. O livro com suas mais de 500 páginas é um terrível e fascinante painel da história dos séculos XIX e XX, desde a Comuna de Paris (com certeza, o maior acervo de fotos do movimento) até a sublevação zapatista de Chiapas (1994-1995), passando pelas revoluções mexicana, russa, alemã, húngara, chinesa, cubana, a Guerra Civil Espanhola, o Maio de 1968, a Revolução dos Cravos em Portugal, a Revolução Nicaraguense e a queda do Muro de Berlim. “As fotos de revoluções revelam ao olhar atento do observador uma qualidade mágica ou profética que as torna sempre atuais, sempre subversivas. Elas nos falam ao mesmo tempo do passado e de um futuro possível”, escreve o organizador. São imagens que reúnem idealismo elevado e terror, ideolo-
Revoluções Michel Löwy (org.) Boitempo Editorial 550 páginas R$ 68,00
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gia e verdade nua, crua e feia, utopia e sofrimento, imagem e história. Antes de cada movimento, historiadores descrevem cada ação e guiam o espectador nas imagens que serão vistas, de anônimos e de rostos de líderes conhecidos, de cenas inéditas e outras tantas clássicas, já tantas vezes reproduzidas. “Vemos aparecer a revolução não como uma abstração, uma ideia, um conceito, uma ‘estrutura’, mas como uma ação de seres humanos vivos, homens e mulheres que se insurgem contra uma ordem que se tornou insuportável”, escreve Löwy. “Não quisemos privilegiar a obra de alguns fotógrafos célebres: as cenas mais surpreendentes, mais belas ou mais ‘históricas’ não são obra em geral de anônimos? O conjunto, fruto de dois anos de pesquisas intensas, oferece uma viagem no tempo e no espaço revolucionário, um mergulho numa história que está longe de acabar”, analisa o organizador. Alguns desses fotógrafos profissionais simpatizavam com a causa revolucionária, mas seu trabalho estava submisso a restrições externas. Assim, por exemplo, a existência de dezenas de fotos da execução de 10 reféns feitos pelos revolucionários em Munique em 1919 e apenas duas das 1,5 mil pessoas mortas pela repressão no mesmo ano em Berlim. “À medida que se avança no tempo, a fotografia torna-se não apenas um espelho, necessariamente deformador, dos eventos revolucionários, mas também um ator histórico, um instrumento de combate. Cada campo, nos enfrentamentos ou nas guerras civis, usa a fotografia como meio de propaganda, símbolo de união, sinal de reconhecimento. E, é claro, as fotografias das revoluções anteriores inspiram cada nova revolução.” As fotos dos líderes, lembra Löwy, são sempre as dos vencidos: Zapata, Lênin, Trotski, Guevara, Rosa Luxemburgo, entre outros. “Mas a maioria das fotos é povoada por multidões anônimas, por desconhecidos: o povo insurgente. O que a objetiva capta em movimento, em ação, é a transformação dos excluídos, das ‘classes subalternas’ em protagonistas de sua história. Os fotógrafos registram o momento histórico privilegiado em que a longa cadeia da dominação se interrompe. A sequência descontínua dessas interrupções revolucionárias constitui a tradição dos oprimidos, tradição que remonta a tempos muito anteriores à invenção de Daguerre.” Pare de ler e veja que é melhor.
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livros
A força elétrica de uma corrente
Paisagem e academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil
André K. T. Assis e Júlio A. Hernandes Edusp/Edufal 256 páginas, R$ 48,00
Elaine Dias Editora da Unicamp 400 páginas, R$ 48,00
Este livro apresenta uma discussão histórica, conceitual e matemática sobre as cargas superficiais em condutores com corrente constante. Ele discute experiências e cálculos analíticos que comprovam a existência de uma força elétrica entre um fio resistivo com corrente constante e uma carga elétrica parada próxima ao fio, contrariando afirmações de diversos cientistas.
Elaine Dias faz uma biografia de Félix-Émile Taunay (1795‑1881), além de reunir vasta documentação sobre aspectos de sua múltipla atividade. O artista contribuiu muito para a estruturação moderna do campo da arte no Brasil, criando em suas pinturas uma interpretação original do gênero da paisagem histórica de sua época.
Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br
Calúnia: Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai Michael Lillis e Ronan Fanning Editora Terceiro Nome 312 páginas, R$ 48,00
Elisa Lynch, companheira irlandesa de Solano López, tem sua história resgatada. O livro reconta a trágica história da Guerra do Paraguai sob o enfoque de uma mulher e traça um pouco da cultura e dos costumes parisienses da segunda metade do século XIX, bem como os inéditos padrões de conduta das paraguaias daquela época.
fotos Eduardo Cesar
Editora Terceiro Nome (11) 3816-0333 www.terceironome.com.br
Editora da Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br
Pensamento alemão no século XX – vol. 1 Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (orgs.) Editora Cosac Naify/Goethe-Institut 312 páginas, R$ 69,00
Inicialmente um ciclo de palestras realizadas no Goethe-Institut, em São Paulo em 2007, são abordados temas levantados pelos grandes protagonistas do pensamento alemão, como Weber, Freud, Heidegger, Hannah Arendt, Benjamin, Adorno, Ernst Bloch, Marcuse, Habermas e Luhmann, por intelectuais de primeira linha. Editora Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br
Império de várias faces
Poesia reunida / Euclides da Cunha
Ronaldo Vaninfas & Rodrigo Monteiro (orgs.) Alameda Editorial 400 páginas, R$ 60,00
Leopoldo Bernucci e Francisco Foot Hardman (orgs.) Editora Unesp 492 páginas, R$ 43,00
Constituído por 17 artigos reunidos sobre as relações de poder no mundo ibérico da época moderna, recortadas a partir da noção de império, o livro procura compreender a sociedade portuguesa marcada por uma dimensão imperial, levantando aspectos pertinentes às monarquias, aos movimentos sociais, às instituições e práticas religiosas, à escravidão, entre outros.
O perfil poético de Euclides da Cunha é agora integralmente revelado. Em Poesia reunida é possível entender os traços estilísticos e retóricos do autor. A poesia euclidiana mostra a transição do romantismo ao modernismo no país, abordando temas como o repúdio à escravidão e a utopia revolucionária republicana à metafísica do eu e da vida humana desgarrada da religião.
Alameda Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
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ficção
Os caminhos na floresta de vidro
Luiz Carlos de Oliveira Cecilio
E
ra um plano muito ambicioso, de elaboração muito complexa. Um projeto que o absorvia totalmente, uma vida inteira de dedicação. Pretendia nada mais, nada menos que inaugurar um novo conhecimento da Natureza e de suas leis. Algo que revolucionasse tudo o que se sabia até então. Uma nova maneira de pensar o mundo. Uma segunda revolução copernicana. Um plano solitário que ele conduzia perseverante, isolado por anos na grandiosa floresta de árvores de vidro. Escolhera a floresta por conta da visibilidade e clareza que ela permitia de todas as coisas, o tempo todo. Ele precisava de luz e visibilidade, queria afastar-se das trevas. Buscava e esperava pacientemente algum sinal que surgiria na floresta que se estendia esplêndida por vales e montes. Um dia, deparou-se com uma ampla clareira que nunca havia notado antes. Dela partiam dois caminhos que se diferenciavam com vigor e nitidez. A ideia de que essa forquilha pudesse ser o sinal esperado golpeou com um punho de aço o seu peito desprevenido. Afinal uma pista de boa qualidade, pensava com o coração descompassado de excitação. Do lugar em que estava podia vislumbrar os caminhos se desenvolvendo até razoavelmente bem longe e ter uma primeira ideia de como eram. O da direita era pavimentado por peças de concreto com o formato de números, ora arábicos, ora romanos, perfeitamente encaixadas umas nas outras. A disposição das peças não era fortuita e resultava em mosaicos que eram a evidente expressão de fórmulas e equações que ele bem conhecia. As paredes eram forradas por placas de material polido e brilhante, nas quais se viam também gravadas complexas fórmulas e equações e algoritmos e derivadas e placas de sinalização de todos os tipos. O caminho era estruturado por arcos que iam se articulando entre si como imensas vértebras que se encaixavam perfeitamente, até comporem um túnel que perfurava preciso a floresta de vidro, e aparentava a solidez de uma catedral, embora recendesse a náusea das cores neutras de um corredor de hospital. Sentiu-se desassossegado com a
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insipidez que vislumbrou e duvidou que desse caminho pudesse brotar alguma verdade não conhecida. Lançou então o olhar para o outro caminho, aquele que se abria à sua esquerda. Percebeu logo que não tinha uma estrutura tão clara como o primeiro, pois suas paredes e sustentação eram menos evidentes. Coros de falas e cantos e récitas e jograis, sem sinalização visível. Múltiplas vozes sem um regente aparente iam compondo um caminho fluido, sinuoso, que mudava de forma e tamanho o tempo todo, conforme se avançava com o olhar. Havia beleza e emoção, mas também tanta incerteza na sua constituição movediça que ele temeu progredir por ele, duvidando que fosse possível brotar verdades definitivas desse vibrante e sonoro caos. O segundo caminho anunciava uma beleza caótica e ameaçadora. Por tudo isso começou a imaginar que o que devia ser decifrado era a existência mesma dos dois caminhos de naturezas tão distintas que se abriam à sua frente. A relação entre eles era o signo a ser decifrado. Sentia-se atraído pela solidez da construção do primeiro, embora o achasse insípido e pouco provocador. O desenho regular de suas estruturas, previsíveis em sua combinação e resultados, dava-lhe segurança, mas ao mesmo tempo o aborrecia. O outro caminho o provocava, mas suas irregularidades e surpresas lhe davam medo. Como descobrir verdades em um caminho que se modifica com o olhar? Seguindo sua intuição, decidiu que não sobrevoaria a floresta para encontrar a resposta para suas dúvidas, embora fosse esse seu impulso inicial. De cima, poderia descobrir a urdidura dos caminhos, mas a ilusão prepotente de uma gestalt nunca captaria possíveis verdades ocultas em sua matéria mais íntima, pensou. Precisava trilhá-los no chão, para, de dentro deles, descobrir o possível código criptografado na sua dupla existência. Uma cartografia feita com os pés. Decidiu seguir sua intuição. Por onde começar então? Pressentiu que não importava por onde começasse. Se houvesse de fato uma relação entre eles, acabaria descobrindo o código de ligação. Precisava palmilhar com pés humildes os
miguel boyayan
túneis, qualquer que fosse o início. E assim o fez, não sem alguma ansiedade, ao decidir pelo trajeto da direita, com seu percurso iluminado e previsível. Caminhava e sentia o pavimento firme sob seus passos e a iluminação forte lhe antecipava tudo o que vinha pela frente, a se perder de vista. A temperatura era agradável e havia um cheiro de cimento recente no ar. Seguia, previsível, as fórmulas, algoritmos e prescrições e ia em frente. Já desanimado com o que vira e prestes a voltar, descobriu o que parecia uma fenda estreita na parede de concreto. Aproximou-se cauteloso e não demorou a escutar vozes e cantos vindos do seu fundo negro. Os sons eram melodiosos e lhe agradaram. Era delicioso ver a simetria do túnel quebrada pelas ondas da música. Mas não era apenas música. Havia também sussurros e psius e chamados e cantos de sereias e seduções, compondo uma polifonia irresistível. Logo descobriu que havia uma fenda maior um pouco mais à frente, bem mais larga, pela qual entrava luz natural, competindo com as luzes amarelas das lâmpadas que o iluminavam. E sons cada vez mais nítidos. Havia contatos entre os dois caminhos! À medida que ia seguindo, descobriu que podia transitar de um para outro caminho, sem dificuldade, a ponto de não saber mais por onde andava. As fendas agora eram amplos portais, que se abriam e fechavam como grandes bocas se movendo ao falar ou cantar. Salões se abriam com pisos luzidios e seus grandes vitrais atravessados pela luz do dia. Levíssimo, dançava ao som dos cantos, aquecido pelo sol e pela incandescência das lâmpadas e tudo o que era estruturado parecia se mover e compor novos signos que se transformavam e se expandiam. Agora as letras não formavam apenas fórmulas, mas palavras e frases que se moviam e se recombinavam reproduzindo toda a poesia e toda a prosa de todos os textos profanos e sagrados já escritos pelos homens. E ele caminhava e caminhava e transitava entre um caminho e outro, cada vez mais entrelaçados. Agora tudo era movimento e beleza e as vozes dos poetas e os cânticos dos cânticos e os épicos e os dramas e todas as óperas e orquestras e todos os instrumentos mu-
sicais do mundo e os números e as fórmulas formavam um grandioso coro que ecoava por espaços pulsantes de cores e acordes. A floresta resplandecia com as surpreendentes transformações que seu caminhar produzia. Movendo-se, ele atualizava o adormecido e o latente e o mágico e o virtual que se materializavam como uma chuva de fogos de artifício sobre a grande floresta. Não havia caminhos, havia apenas a humaníssima humanidade do seu caminhar e o que ele podia produzir de novo. Caminhava e produzia e produzia e se espantava com o bailado das árvores e já não havia mais os dois caminhos originais, mas apenas fluxos e contrafluxos e correntes e volteios e zigue-zagues e ondas e tantos caminhos pra se perder. Brotavam clareiras entre as árvores dançantes e lugares de descanso e lagos de água fria e sombras e claros e toda espécie de delícias, fazendo-o esquecer sua busca original, posto que agora tudo se abraçava, se confundia e se fundia e se separava e se juntava para voltar a se individuar e depois dobrar-se sobre si mesmo em incontáveis múltiplos. Não se lembrava mais das perguntas que afligiram sua alma por tantos anos. Estava sob efeito do encantamento e da fruição. Esquecera a compulsão de encontrar verdades e sequer se ocupava em resgatar perguntas ou hipóteses, epistemes ou pressupostos, metodologias ou métodos, nem mesmo conhecer a teoria conservada em todas as bibliotecas do mundo desde tempos imemoriais. Entregava-se à amnésia seca de sequoias milenares. E à liberdade de borboletas que se arremessam incólumes pelos ásperos desvãos da mata. A floresta de vidro o enfeitiçara e ele experimentava a sensatez dos que praticam a nudez resoluta e se alimentam de luz. A floresta liquefeita afogou-se na luminosidade cósmica que o esvaziou de todas as suas pretensões e dúvidas. Luiz Carlos de Oliveira Cecilio é médico sanitarista, professor adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp. PESQUISA FAPESP 167
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CLASSIFICADOS
VIAS CELULARES:·
Regulação de Cromatina • Adesão • Angiogênese
Lipídeos • Ciclo celular • Sinalização de Citoesqueleto
• Anticorpos
Monoclonais
XMrM
Quinoma Humano • Anticorpos Conjugados Crescimento APLICAÇÕES:
• Tráfego vesicular
• Anticorpos anti-Motifs
ELlSA • Citometria
Screening • In Cell Western • Imunoprecipitação
Nucleares •
/ l.inhaqens " Sinalização de TGF-
• WnUHedgehog/Notch
e XPTM • Técnicas de Screening • Reagentes para ensaios com Quinases •
• SignalSilence ™ siRNA • Reagentes Customizados • Pathêcan"
de Glicose • Vias Jak/Stat
• Sinalização de NF-KB • Receptores
Estabilidade e Folding de Proteínas " Marcadores de Células-Tronco
(3/Smad • Controle de Tradução • Vias de Tirosina-Quinases PRODUTOS:
• Sinalização de Ca, cAMP e
• Dano e Reparo de DNA • Metabolismo
Sinalização de Linfócitos • Sinalização de MAP Quinases • Neurociência Sinalização PI3K/Akt·
• Apoptose/Autofagia
• PathScan ™ Antibody Arrays • Citocinas & Fatores de • PhosphoScan ™
de Fluxo • Imunohistoquímica
• Imunofluorescência
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de Cromatina (ChiP,
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