As veias cortadas

Page 1

FAPESP

Julho 2010· N° 173· R$ 9,50

ENTREVISTA

J

,/

' N,us(senzvelg I. M oyses Da ópt!ca à política I1

Bateria para carro elétrico

I) I

A invenção dos índios

fls veias cortadas Proteína interrompe proliferação de vasos que causa cancer e cequetre A


Revista atual Quinll-f •••• 01 de J~ho de ~IO

NOticIaS

eandidatOS ao Conselho Superior

",.",,,,,,,toS

F,\PESP tli\ul!.a "'~ dos inscritas no ~ de esc:o\h> deum .01'0 ",,,,,lheiro; e1eili<>será reaJi>ada•• 1r<as dias 28/06 e 02/<1/

Lafer na presidência da FAPFSP

'PeSClU§a ..••.. .-

..--

Indice completo > Ciência > Humanidades >PolíticaC&T > Tecnologia > Carta da Editora > Entrevista > Estratégias > Laboratório > Unha d.1'1oduçio > l.ivros ) Memória > Sei.lo Noticias

c;overnador de São Paulo, AlbertoGoIdInan._til ~,da Faculdad.de Oil<ito da uSP pua '" ,",," mandato de três"" na FundaIi<> ercerUIIl

ª~" "

«

8

Excelência concentrada (N~ unh-ersidades.pa~istaS,t:sp

e Unicamp, e uma .,.,acana.uoam.saoUderes,mproduti'idade . naAméricaLatina' PeninsuJ.lbérica a entir""

!('um~ros ant~riores

Edições Especi,


eduardo cesar

imagem

Um marco da ciência brasileira A edição de 13 de julho de 2000 da Nature trouxe um registro histórico para a ciência brasileira ao publicar o primeiro sequenciamento completo do DNA (acima) de um patógeno, o da bactéria Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais. O trabalho foi feito por uma rede paulista de 192 pesquisadores apoiados pela FAPESP e, pela primeira vez, levou uma pesquisa realizada no país à capa de uma das revistas científicas de maior prestígio do planeta. A revista circulou menos de um mês depois do anúncio do primeiro rascunho do mapeamento do genoma humano, no dia 26 de junho de 2000, por Francis Collins, pelo consórcio público internacional, e Craig Venter, pela empresa privada Celera. A realização dos cientistas brasileiros mostrou que o país havia adquirido capacidade científica para fazer trabalhos de fôlego em áreas pioneiras e de grande futuro, como a genômica. O fato levou algumas das principais publicações do mundo, como The Economist, Newsweek, The New York Times, Financial Times e Le Figaro, a começar a prestar atenção na ciência que se fazia no Brasil – algo que se tornou rotineiro 10 anos depois.

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

3


:'l73

I

JULHO 2010

SEÇÕES 3 IMAGEM 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA

8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 40 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTíCIAS 64 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FiCÇÃO

98

CLASSIFICADOS

18

44

WWW.REV1STAPESOU1SA.FAPESP.BR

CAPA 18 Ataque a veias e artérias indesejadas pode combater cegueira e câncer

ENTREVISTA 10 Estudioso dos fenômenos da luz, o físico Herch

POLÍTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

CIÊNCIA

28 RECURSOS HUMA,NOS

44 BIOQuíMICA

38 FOMENTO

física e ácidos

AI

Atividade

Projeto busca levar à

financia traduções

sala de aula os avanços

e estimula editoras

graxos insaturados como o ômega-3

dE

da matemática no século XX

a manter coleções científicas

revertem inflamação que desencadeia

AI hé

iSI

obesidade e diabetes

32 ECONOMIA

39 AVALIAÇÃO

Estudiosos oferecem caminhos para

Líderes de ranking ibero-americano,

Moysés Nussenzveig

aproveitar

apresenta seu projeto de relançar

os bens da floresta

USP e Unicamp discutem como

kits científicos

56CI

Auxílio a publicações

melhor

36 RECONHECIMENTO

para crianças e

Resumo dos resultados

adolescentes

da primeira década do programa Biota-FAPESP sai na revista Science

elevar o impacto de sua pesquisa

58G 50 BIOLOGIA

In

Neurônios de paciente apresentam

disfunção

cc o

química ligada ao

e

desenvolvimento

ar

cerebral

52 ECOLOGIA

60 Fi

Densidade populacional

N,

influencia longevidade de cupins

e> dE er

CAPA DETALHE DA OBRA QUE INTEGRA A SÉRIE (lN)TENSÕES DE SIMONE ROCHA DA CONCEÇÃO


80

HUMANIDADES

TFeNOI aGIA 56 CIÊNCIAS DA TERRA ácidos

tão

68 ENERGIA

Antigo oceano que

Empresa desenvolve

isolava a Amazônia dos

bateria para

demais blocos da

veículos elétricos

América do Sul secou há 520 milhões de anos

e sistemas solares e eólicos

tes

58 GEOLOGIA

72 TRANSPORTE

Interação de água ente ção

com rochas facilitou o acúmulo de cobre e a formação

erebral

de

ametistas

Coppe constrói veículo a hidrogênio e bateria

74 ENGENHARIA BIOMÉDICA

80 ANTROPOLOGIA Análise de etnografias

Primeiro stent produzido no país

produzidas

para corrigir

desmonta a noção do antropólogo

estreitamento em artérias ganha

por

missionários

salesianos

como tradutor

mercado

86 DEMOGRAFIA 78 NOVOS MATERIAIS Nanotubos de carbono incorporados a cimento e polímeros

Censo 2010 vai revelar quantos povos e línguas indígenas existem no país

resultam em produtos

60 FíSICA ional ~ade

mais versáteis

90 LITERATURA

Nova teoria ajuda a

Estudo afirma que

explicar comportamento de íons diluídos

Nelson Rodrigues era o "Montaigne do Brasil"

em água


CARTAS FUNDAÇÃODE AMPARO À PESQUISADO ESTADODE SÃO PAULO

cartas@fapesp.br

CELSO LAFER PRESIDENTE

.ost

ARANA VARElA VICE-PRESIDENTE

da primeira coluna, está a informação de que as empresas vão pagar para o SFB, mas é preciso lembrar que este pagamento é distribuído entre o SFB, o ICMBio, o estado do Pará, o Fundo de Desenvolvimento Florestal e os municípios.

CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, HERMAN JACOBUS CORNElIS VOORWALD, JOst ARANA VARELA, .iose DE SOUZA MARTINS, .iose TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

A criaçio d. vldaartlflclal

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTfFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

ADRIENE COELHO

Itaituba, PA

CORAÇAo CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR atnttncov: CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANT6NIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER. JOÃO FURTADO, .iost ROBERTO PARRA, uns AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, FERNANDES LOPEZ, MARIE ANNE VAN SlUYS, MÁRIO .iosr ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, StRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLlI

FLÁCIDO seose reduz cecacdeoe oe ccntrecêc cc ecscnc eerencc

Número de doutores

uns

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOllN

Bactéria

EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRfclO MARQUES (POLfTlCA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CltNC/AI EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDiÇÃO ON-LlNE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARG6 NEGRO EDITORA DE ARTE LAURA DAVINA E MAYUMI OKUYAMA (COORDENAÇÃO) ARTE MARIA CECILIA FELLI E JÚllA

CHEREM RODRIGUES

FOTÓGRAFO EDUARDO CESAR WEBMASTER SOLON MACEDONIA SOARES SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS COLABORADORES ANA LIMA, DANIELLE MACIEL, FRANCISCO BICUDO, GUILHERME SCALlILLI, BEL FALLEIROS, JOSELlA AGUIAR, LAURABEATRll, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS. OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO PARA FALAR COM A REDAÇÃO 3087-4210 cartas@fapesp.br (11)

PARA ANUNCIAR (11)3087-4212 mpiliadis@fapesp.br

sintética

A reportagem ''A síntese da criação" (edição 172), em especial o texto de Mayana Zatz, foi como um oásis de bom senso em meio a um deserto de informações jornalísticas imprecisas. Merece ser ressaltada a informação de que Craig Venter e sua equipe não criaram vida artificial, mas uma técnica que pode ser muito útil em vários ramos tecnológicos. Também gostei de saber por Pesquisa FAPESP que o assim chamado cromossomo sintético foi, na verdade, montado dentro de uma levedura, ou seja, um ser vivo, e não num computador, como a maior parte da imprensa informou. ROGÉRIO PIETRO MAZZANTINI

São Paulo, SP

PARA ASSINAR (11)3038-1434 tapespeecsolucoes.corn.or TIRAGEM: 36.900 EXEMPLARES DISTRIBUiÇÃO OINAP

Mudanças na selva

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP RUA JOAQUIM ANTUNES, N° 727 - 100 ANDAR, CEP 05415-012 PINHEIROS - SÃO PAULO - SP FAPESP RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

J;;S

FSC

Fontes Mistas Grupo de produto proveniente de florestas bem manejadas e outras fontes controladas www.fsc,org Cert no, IMO·COC.(I2n52 C 1996 ForestStewardshipCouncil

Este produto é impresso na PLURAL com papel certificado FSC - garantia de manejo florestal responsável, e com tinta ecológica Agriweb - elaborada com matérias-primas bioderivadas e renováveis.

INSTITUTO

VERIFICADOR

DE CIRCULAÇÃO

6 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

Na reportagem "Democracia na selva" (edição 172) é interessante como dá para reconhecer as falas e o retrato da realidade local no texto. Parabéns ao autor, Carlos Fioravanti. Senti falta de alguma informação ou citação sobre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (I CMBio), que é o responsável pelas Unidades de Conservação, gestor das Florestas Nacionais e principal parceiro do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), nesta proposta. Outra coisa é que na página 23, último parágrafo

As estatísticas sobre a pesquisa no estado de São Paulo, apresentadas na edição de maio ("A contribuição de São Paulo", edição 171), são muito esclarecedoras. Creio que a queda no número de doutores se deve, sobretudo, à falta de perspectiva de trabalho. É improvável que alguém inicie a carreira acadêmica sem imaginar que no futuro trabalhará também com pesquisa, porém isso acontece e muito em nosso estado. Não gosto de articular a palavra "mercado" com "pesquisa", "ciência" ou "educação", mas é preciso imaginar que não se pode fazer ciência em casa, tampouco sem remuneração. E o que resta para os cientistas que vivem em São Paulo? Apenas três universidades federais (UFSCar, Unifesp e UFABC, esta última sem as ciências humanas e sociais), a Unesp (com poucas vagas abertas) e as Fatecs (dizem, sem ênfase na pesquisa). Sem contar as universidades e faculdades particulares que já não contratam doutores ou, quando o fazem, pagam como mestres ou graduados (e o MEC fecha os olhos para isso). O quadro não está positivo para a carreira acadêmica. HUÉLINTON

CASSIANO RIVA

Unesp São José do Rio Preto, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10° andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

Liberdade para criar conhecimento Mariluce Moura - Diretora de Redação

A

ntes mesmo de qualquer comentário sobre a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, gostaria de recomendar a vocês a leitura da bela entrevista pingue-pongue do físico Moysés Nussenzveig, feita pelo editor de ciência, Ricardo Zorzetto (página 10). E ela é bela, insisto na palavra, menos pela extraordinária plasticidade de fenômenos ópticos como o arco-íris e a auréola, objetos da investigação do cientista em que ele pouco – ou quase nada – se detém aqui, e mais pelo testemunho das batalhas que vem travando ao longo da vida pela criação de espaços para a livre produção e a transmissão criativa, inteligente, do conhecimento no país, em especial na física. É isso que está em cena quando ele conta do mais novo front para difusão do conhecimento em que está envolvido, o da reedição e venda em bancas dos kits de ciência que foram um sucesso nacional nos anos 1970. Ou quando relembra todas as articulações nacionais e internacionais de que participou para proteger cientistas ameaçados pelo furor da ditadura brasileira (1964-1985). A propósito, o professor Nussenzveig cedeu dois documentos de seu arquivo pessoal relativos a essas perseguições do regime a cientistas para reprodução fotográfica em nossa revista (página 15). E é, por fim, à ideia de rede, da cooperação necessária entre muitos para criar conhecimento que ele alude quando faz desfilar por suas memórias praticamente todos os nomes importantes da física do século XX. Vale a pena conferir. Aproveito o pé deste parágrafo e a afinidade dos campos para recomendar também a leitura da reportagem elaborada pelo editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, sobre um notável esforço que vem sendo feito para que se incorporem os avanços da matemática nos últimos 100 anos ao ensino dessa disciplina no Brasil (página 28). Agora, sim, vamos à reportagem de capa. Penso que é difícil imaginar de pronto que a multiplicação de veias e artérias possa ser algo ruim. A imagem mental formada no momento mesmo em que escrevo essas palavras carrega a sugestão de um bom processo orgânico, cheio de vitalidade. Talvez porque vasos sanguíneos se ramificando, crescendo, se dividindo, se espalhando – como descrito nas primeiras linhas da

reportagem elaborada pela editora assistente de ciên­ cia, Maria Guimarães – configurem antes de mais nada o que é normal e altamente desejável no tempo de desenvolvimento de um embrião humano (e de outros também, claro). Na fase adulta, entretanto, esse processo não promete nada de bom e tem relação com doenças graves como o câncer ou condições penosas como a cegueira. Em meio ao conhecimento crescente desse processo patológico, surgiu a boa notícia que motivou o bem elaborado texto que terminou ganhando a capa: um peptídio ou fragmento de proteína montado pelo bioquímico Ricardo Giordano, da Universidade de São Paulo (USP), consegue localizar e destruir esses vasos sanguíneos indesejáveis, valendo-se de um verdadeiro jogo de espelhos para driblar o sistema de defesa do organismo. Todos os detalhes dessa original construção bioquímica, que mais adiante talvez resulte num fármaco para combater essa angiogênese negativa, estão descritos a partir da página 18. Vou me deter ainda brevemente na seção de ciên­ cia para recomendar uma reportagem que fornece mais uma peça para remontar a história de Gondwana, o supercontinente que no passado remoto reunia a maior parte das terras hoje situadas no hemisfério Sul. A partir da página 56, o editor especial Marcos Pivetta relata como pesquisadores brasileiros e norte-americanos, valendo-se de novas datações de rochas e análises do campo magnético em trechos de uma cadeia de montanhas no Brasil Central, concluíram que o evento final que formou Gondwana ocorreu não há 620 milhões, mas há 520 milhões de anos. Isso significa, entre outras coisas, que a Amazônia passou muito mais tempo separada do supercontinente do que se pensava até aqui. Para encerrar, não posso deixar de destacar a reportagem de abertura da seção de tecnologia, sobre um novo tipo de bateria construída no Brasil para carros elétricos, elaborada pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira (página 68), e mais a reportagem que abre a seção de humanidades, a respeito de uma instigante pesquisa que desloca o antropólogo do velho lugar de tradutor e o re-situa como inventor, elaborada pelo editor de humanidades, Carlos Haag, e por mim mesma. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

7


memória

Os primeiros anos da siderurgia Falta de conhecimento técnico dificultou implantação de uma nova indústria no país há 200 anos

reprodução do livro retratos de ipanema. foto julio w. durski/ Instituto Histórico, geográfico e Genealógico de Sorocaba

Neldson Marcolin

8

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

O

primeiro grande investimento em siderurgia feito no Brasil começou com um fiasco que durou quatro anos, no início do século XIX. Apesar do esforço do governo português em planejar e apoiar empreendimentos em metalurgia, essa indústria demorou a se firmar no país. A ocorrência de minério de ferro em Minas Gerais e São Paulo era conhecida havia muito tempo. No final do século XVIII os portugueses tinham patrocinado o treinamento de brasileiros e portugueses nos melhores centros metalúrgicos europeus. Mas apenas quando a Corte se transferiu para o Brasil é que foi autorizado ao intendente Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt lançar, em 1809, os fundamentos da fábrica Patriótica em Gaspar Soares, hoje Morro do Pilar, em Minas. Quase ao mesmo tempo a administração portuguesa ordenou a construção da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, em Iperó, São Paulo, inaugurada em 1810. As duas empreitadas demoraram anos para produzir algum metal. “A falta de técnicas apropriadas e de mão de obra especializada só foi parcialmente superada no Brasil na segunda metade da década de 1810”, conta Fernando Landgraf, diretor de Inovação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas e pesquisador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Portugal sempre soube que era importante dominar todo o ciclo de exploração de minério de ferro e sua transformação nas três famílias de produtos conhecidos no começo do século XIX: gusa (ferro com teor de carbono em torno de 4%), ferro maleável (teor menor que 0,1%) e aço (teor perto de 1%). Na Europa, ingleses, suecos e alemães da Saxônia e de Hesse eram quem tinham tradição em siderurgia, com centenas de altos-fornos construídos na região. Foi lá, na primeira década de 1800, que os portugueses contrataram Frederico Luiz Guilherme Varnhagen e Guilherme Eschwege, alemães que assessoravam José Bonifácio de Andrada e Silva na Fábrica de Ferro de Figueiró dos Vinhos, em Portugal. E foi na Suécia que a administração do Império contratou uma equipe de técnicos, com o experiente Carl Gustav Hedberg à frente, para começar a produzir o metal no Brasil.


Ilustração de J.B. Debret/40 paisagens-Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina/Cia Editora Nacional/Acervo FAU/USP

Acima, a Real Fábrica de Ferro retratada por Debret, em 1821, e em foto de 1890, cinco anos antes de ser fechada

Conhecer a técnica de construção de alto-forno era fundamental para o sucesso da produção de ferro. “Altos-fornos têm funcionamento contínuo, nunca param, e isso faz toda a diferença para se obter o metal”, diz Landgraf, autor de artigo recém-publicado na Metalurgia e Metais – em conjunto com Paulo Eduardo Martins Araújo e o sueco Sven-Gunnar Sporback –, que investigou aquele período. Hedberg foi escolhido por sua experiência em altos-fornos e trouxe para Iperó outros técnicos e máquinas compradas no exterior. O resultado, porém, foi

decepcionante. De 1811 a 1814, ele construiu quatro pequenos fornos de fusão, uma casa de fundição, forjas de refino, canais, roda-d’água, represa, mas abandonou a ideia consagrada de alto-forno e produziu em quatro anos apenas três toneladas de ferro, que se mostraram de péssima qualidade. Ainda hoje se discute o que levou o sueco a agir daquela forma. “Há a hipótese da sabotagem – para evitar concorrência com a Suécia –, mas acredito na hipótese de ele não ter os técnicos mais competentes, que soubessem trabalhar da maneira correta”,

avalia Landgraf. Havia outro problema: faltava conhecimento para lidar com o tipo de minério de ferro da região. Com a demissão de Hedberg, Varnhagen assumiu a fábrica em 1815, construiu finalmente um alto-forno, contratou técnicos alemães e produziu ferro – algo em torno de 30 toneladas por ano, muito menos do que as 600 toneladas pretendidas. Na outra fundição, no Morro do Pilar, em Minas, o alto-forno construído teve um rendimento pior ainda. “Sem usar a técnica correta, o intendente Câmara só conseguiu fundir ferro por três dias.”

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

9


entrevista

Herch Moysés Nussenzveig

Além do arco-íris Estudioso dos fenômenos da luz, o físico apresenta seu projeto de relançar kits científicos para crianças e adolescentes Ricard o Zorzet to

E

ntre os pesquisadores, Herch Moysés Nussenzveig talvez seja mais conhecido por seus trabalhos em óptica. Desde a década de 1960, esse paulista graduado em física na Universidade de São Paulo (USP) – e radicado há quase 50 anos no Rio de Janeiro, onde atualmente é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – investiga dois dos fenômenos mais belos da natureza: o arco-íris e a auréola. O primeiro, com sua gama de cores projetadas na ordem que todos conhecem, surge no céu quando os raios de sol são desviados de seu caminho e se espalham ao atravessar gotículas de água da atmosfera. Já os círculos luminosos que caracterizam o segundo, bem mais raro de se ver e apresentado em foto na página 16, são produzidos por uma propriedade da luz pouco familiar à maioria das pessoas, o tunelamento, concluiu Nussenzveig em 1969 em uma teoria que recentemente completou com novas evidências. Mas conhecer esse físico de 77 anos apenas por seu trabalho em óptica é pouco. Desde o início de sua carreira Moysés, como é conhecido pelos amigos, sempre atuou intensamente no ensino da física: organizou cursos, escreveu uma coleção de livros ainda hoje usada nas universidades, criou departamentos de física e ajudou a organizar a estrutura de financiamento da pesquisa nacional. Durante o regime militar, quando vivia nos Estados Unidos, fez o que pôde para ajudar os pesquisadores vítimas de perseguição política. Acolheu os que tiveram de deixar o país, revelou à comunidade científica internacional o que se passava aqui e articulou protestos que chegaram

10

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

ao presidente Arthur da Costa e Silva (ver documentos na página 15). Em família, está rodeado pela ciência. Seus dois irmãos são médicos – um deles, Victor, é um imunologista internacionalmente conhecido por seus estudos sobre a malária –; sua mulher, Micheline, é química; e seus três filhos também são pesquisadores: Helena é matemática, Paulo é físico e Roberto é bioquímico. Há cerca de três anos, Nussenzveig se impôs um novo desafio: reeditar os kits de ciência que existiram nos anos 1970 e estimularam crianças e adolescentes a se tornarem pesquisadores. Apesar da dificuldade, jamais pensou em desistir. “É a melhor coisa que podemos fazer pela educação nos próximos anos, para criar bases sólidas para o país se desenvolver”, afirma. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Nussenzveig concedeu à Pesquisa FAPESP no dia 28 de maio, em seu apartamento, no bairro carioca de Copacabana. ■■O senhor faz parte do grupo que trabalha para relançar os kits de ciência que eram vendidos em bancas de jornal nos anos 1970. Como anda o projeto? ——Você conheceu os kits? ■■Nunca vi um deles. Sei apenas que no passado foram produzidos pela Editora Abril. ——Na época o Isaias Raw tinha feito um trabalho belíssimo na Funbec [Fundação Brasileira para o Ensino de Ciência] e preparado os kits, mas com distribuição local, em escala modesta. Ele entrou em contato com o Roberto Civita [publisher da Editora Abril], que resolveu criar o projeto


leo ramos

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

11


Os Cientistas. Os kits vinham em caixinhas de isopor muito benfeitas, cada edição dedicada a um dos grandes cientistas da história. A parte mais importante era feita de material simples, mas tinha de funcionar bem para que quem o comprasse pudesse repetir experiências cruciais do cientista que tinham levado a leis fundamentais de alguma área das ciências. Havia, por exemplo, um kit sobre [o químico e físico inglês Michael] Faraday. Para testar a lei da indução, o kit trazia ímã, fio, uma bobina e pilhas. Tudo tinha de ser montado pelo garoto ou garota que o comprava. A coleção era quinzenal e trazia um folheto com a biografia do cientista e a história da descoberta. Também vinham instruções dizendo como montar o aparelho e o que deveria ser medido, além de perguntas sobre os resultados. ■■Foi bem-sucedido? ——Fantasticamente bem-sucedido. Meus filhos na época já estavam no Brasil e adoravam aquilo, que tinha sido pensado para o pessoal do ensino médio. Quando me ocorreu recriar o projeto há três anos, eu participava do DNA Brasil [instituto criado pela Fundação Ralston Semler para discutir estratégias de desenvolvimento para o país] com muitos cientistas conhecidos. Verifiquei que vários tinham resolvido fazer ciência motivados pelos kits, entre eles o [Carlos Henrique de] Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, e o Jerson Lima e Silva, diretor científico da Faperj. Apresentei a proposta para o grupo e ela foi aprovada. Entramos em contato com o ministro de Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, que gostou da ideia, e com Isaias Raw, que topou relançar. Planejamos uma reunião inicial, incluindo o Civita e o Isaias. Minha ideia era ter um conselho coordenador formado por cientistas que vestissem a camisa do projeto. ■■Isso não é simples. ——Desde 2008 a gente vem se reunindo. A ideia é ter isso em bancas de jornal e a Abril tem distribuição no país inteiro. Isso garantiria que os kits chegassem a um vilarejo na Amazônia assim como chegariam a São Paulo. O fundamental é que as crianças descubram o kit e ele desperte nelas o entusiasmo de fazer algo com objetos reais. São experimen12

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Quando me convidaram para ir para a UnB, pensei: “Se vou ficar um tempo curto nos Estados Unidos, vou experimentar outro lugar antes de voltar”. Escrevi para Oppenheimer e ele disse que eu podia ir para Princeton tos que, como acontece em laboratório, nem sempre dão certo. É preciso descobrir por que não deu certo e consertar. Isso é o que falta no ensino de ciências no Brasil. Quase não há laboratórios em escolas de ensino médio. E nada substitui isso. ■■Quem participa do projeto? ——Formamos uma espécie de conselho científico. Além do Isaias, tinha a Myriam Krasilchik, da Faculdade de Educação da USP. Na biologia, a Mayana Zatz e a Eliana Dessen. Em física, além de mim, há o Vanderlei Bagnato, da USP em São Carlos. Em astronomia temos a Beatriz Barbuy e, em química, o Henrique Toma. A gente tem se comunicado com o Brito Cruz, que não tem tempo para ir às reuniões com tanta frequência. Já tivemos um bom número de reuniões, preparamos a lista dos kits e do que conteriam. Já nas primeiras reuniões achei que para viabilizar financeiramente o projeto deveria haver participação do MEC [Ministério da Educação]. O MEC viabiliza a existência da revista Ciência Hoje [publicada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC] porque

compra a Ciência Hoje das Crianças e distribui nas escolas. A ideia é que o MEC fizesse algo parecido com os kits. Como o número de escolas públicas é grande, poderia baratear a venda nas bancas. O Isaias e o Civita concordaram comigo que não adiantaria ter os kits só nas escolas, porque provavelmente iriam parar em uma gaveta onde ficariam pegando poeira. ■■Por quê? ——Os professores não estão preparados para isso. É totalmente diferente ter algo que é uma obrigação para a criança e algo que ela faz brincando e vai descobrindo as coisas. ■■Algo que ela procura por prazer. ——Isso é o que falta. Motivação. Isso vai influir no ensino porque a criança faz, tem alguma dúvida e leva para a escola. Ela vai provocar o professor, que terá de aprender para responder. O que está sendo feito, reciclar professores e formar melhor os novos, é importante. Mas é projeto para décadas. Enquanto isso se perde o potencial enorme de crianças que poderiam ser motivadas. Quando o Brasil conseguir fazer as indústrias entenderem que desenvolver tecnologia de ponta é fundamental para competir no mundo atual vai faltar mão de obra. ■■É um problema que começa lá atrás, no ensino mais básico. ——A mão de obra que temos é tão malformada que não vai saber executar tarefas simples, porque em alguns serviços tudo é informatizado. Por isso a gente acha esse projeto crucial. O Civita tinha ficado tão entusiasmado que no início disse que iria assumir o financiamento e não precisaria da contribuição do MEC. No fim do ano passado, porém, ele disse que precisaria do apoio do MEC e, para isso, propôs um projeto para funcionar em sala de aula, e não pela venda em bancas, o que desvirtua­ ria a essência do projeto. Foi um golpe sério, mas a gente resolveu apresentar ao BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], que, por meio do Funtec [Fundo Tecnológico], aplica verbas a fundo perdido. Ao menos nos primeiros anos, o projeto terá de ser subvencionado dessa forma e com apoio do MEC, que compraria a sobra das bancas e a enviaria para as


leo ramos

escolas. Mesmo que fosse feito só nos estados do Sudeste, o projeto exigiria um investimento de, no mínimo, R$ 10 milhões. Na banca deve sair por R$ 15 a R$ 20, o preço de uma revista. ■■Qual o número de kits da coleção? ——De 15 a 20, abrangendo todas as áreas. Parte integrante é um telescópio chamado Galileuscópio. Comprei um por US$ 15 nos EUA. A empresa faria no Brasil por menos, o que torna viável para distribuir nos kits. O Bagnato vem fazendo um esforço em São Carlos para que seja fabricado um microscópio de preço acessível. ■■Vocês não desistiram. ——De maneira nenhuma! No final de julho temos uma reunião na USP para preparar um vídeo para exibir para o BNDES. O protótipo do primeiro kit, fabricado por Bagnato, está em minha mesa. Não há nada no mundo que se compare a esse projeto. No médio prazo, isso poderia gerar uma indústria com fins lucrativos para distribuir inclusive em outros países. Essa carência existe no mundo todo. O problema é que no Brasil estamos numa situação pior do que a média dos países desenvolvidos. Se o BNDES comprar a ideia, essa é a melhor coisa que podemos fazer pela educação nos próximos anos, para criar bases sólidas para o país se desenvolver. ■■Mudando de assunto, gostaria de saber sobre sua trajetória na física, que, aliás, não começa na física. ——Quase comecei pelo cinema. Fui um dos organizadores do que pode ter sido o primeiro festival de cinema do Brasil, no Museu de Arte de São Paulo, em 1950. ■■Como optou pela matemática? ——Na Aliança Francesa fiz um curso de literatura de dois ou três anos. No último ano, eles conseguiram uma bolsa do governo francês, que estava em concurso. O concurso era fazer uma redação sobre, se lembro bem, o legado cultural da França. Ganhei o prêmio, uma viagem e uma bolsa de um ano para estudar em qualquer lugar da França. Fiquei em dúvida entre ir para o Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris, e ir para a matemática. Optei pela matemática e fiz um curso

Conjunto de lentes que deve integrar kit de ciência

de um ano chamado Mathématiques Générales, na Sorbonne. Por causa de um colega, Ernest Hamburger, que trabalhava com o Oscar Sala na montagem do acelerador Van de Graff da USP, mudei para a física. Passei parte do bacharelado como aprendiz de físico experimental. Após o 3o ou 4o ano do curso de física comecei a me interessar pela física teórica. Tive a sorte de que veio um professor visitante estrangeiro, um físico americano importante, o David Bohm. ■■Ele havia trabalhado com J. Robert Oppenheimer, coordenador do projeto da bomba atômica americana, não? ——Ele trabalhou com o Oppenheimer e foi um dos pivôs do interrogatório em que o Oppenheimer foi questionado sobre segurança. Bohm tinha fama de ter sido comunista. Volta e meia perguntavam ao Oppenheimer, tenho a transcrição dos interrogatórios, sobre o David Bohm. Bohm foi da Califórnia para Princeton e foi chamado a depor na comissão de atividades antiamericanas do [senador Joseph] McCarthy. A conselho de Einstein, Bohm se recusou a testemunhar e a universidade o demi-

tiu. É uma vergonha para Princeton. Fui professor da Universidade de Rochester por 10 anos onde tinha havido um caso semelhante. O reitor, de direita e amigo do Nixon, não demitiu o professor e disse: “Isso é contra a liberdade acadêmica”. Deu um exemplo melhor do que Princeton. Bohm veio para a USP com cartas de recomendação do Einstein e do Oppenheimer. O chefe do departamento era Mario Schönberg. Volta e meia questionavam Oppenheimer por ele ter dado uma recomendação para um comunista, Bohm, trabalhar com outro conhecido comunista, Schönberg. Para mim foi uma sorte. ■■Como o senhor o conheceu? ——Bohm deu um curso de física teórica excelente e também meu primeiro curso de mecânica quântica. Aqui ele continuou sofrendo perseguição política. Quando chegou ao Brasil, foi à embaixada americana no Rio de Janeiro, onde pediram o passaporte dele e disseram que não devolveriam enquanto ele não voltasse aos Estados Unidos. Ele se naturalizou brasileiro e quando viajou para Israel, a convite do Technion [Instituto de Tecnologia de Israel], foi com passaporte brasileiro. Depois foi para Londres, onde se casou com uma inglesa. Muitos anos depois, a mãe dele estava muito mal e ele quis visitá-la nos Estados Unidos, já com nacionalidade inglesa, mas o visto foi negado. Para substituir Bohm, veio outro estrangeiro. Era o professor Guido Beck, um físico austríaco formado quando se criou a mecânica quântica. Na época o número de físicos importantes não superava algumas dúzias e ele passou por todos os grandes institutos e laboratórios. Ele conhecia os fundadores da mecânica quântica. Nos anos 1940, quando a França já estava ocupada [pelo Exército alemão], Beck foi internado num campo de estrangeiros. Há uma carta do Max Born para Einstein, pedindo ajuda financeira para o Beck, que conseguiu escapar para Portugal e, de lá, a convite da Argentina, foi para o observatório de Córdoba. Ele passou vários anos na Argentina, onde foi um dos fundadores da Associação de Física Argentina. ■■O que aconteceu a seguir? ——Beck veio para o Brasil e se instalou no CBPF [Centro Brasileiro de Pesquisas PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

13


leo ramos

Físicas, no Rio], na época uma instituição privada. Quando Bohm se afastou, Beck foi convidado por Schönberg para substituí-lo e passou dois anos em São Paulo. Chegando à USP, Beck pediu ao Schönberg que indicasse um estudante para trabalhar com ele. E o Schönberg me indicou. Mudei da física experimental para a teórica e comecei o doutorado, que só existia na USP, com Beck. Fiz a tese na área de óptica e teoria da difração. Beck mandou a tese ao Max Born, que estava na Escócia, e aconteceu algo curioso. Emil Wolf, um dos grandes nomes da óptica, trabalhava com Born e foi convidado para ir para a Universidade de Rochester, no estado de Nova York. Quando ia embarcar, o Born lhe disse: “Acabei de receber essa tese, você vai de navio, leia na viagem”. Mais tarde foi Wolf quem me convidou para ir para Rochester, quando eu estava em Princeton. ■■Antes disso o senhor passou por vários institutos da Europa. ——Fiquei um ano na Holanda, principalmente em Utrecht, um instituto de altíssimo nível. Passei uma temporada também em Birmingham, que era o mais famoso departamento de física da Europa, com o grande físico Rudolf Peierls, e outra em Zurique, com outro físico famoso, o Res Jost. Voltei ao Brasil em 1960 para o CBPF, que apesar de privado era subvencionado por verba federal. Todo ano o Congresso Nacional votava o orçamento do CBPF. Quando a inflação desenfreou, o orçamento do CBPF despencou. Em 1963 um professor titular ganhava perto de US$ 60 por mês, talvez uns US$ 300 de hoje, e o Beck recomendou que eu saísse do país. ■■Era o começo de sua fase de trabalho nos Estados Unidos. ——Fui convidado para o Instituto Cou14

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

rant de Ciências Matemáticas da Universidade de Nova York e, em setembro de 1963, fui para lá com Micheline e nossa filha, Helena, na época com 4 meses. Por recomendação da embaixada, tiramos um visto permanente, mas a intenção era ficar um ou dois anos e voltar. Logo em seguida o Darcy Ribeiro organizou a Universidade de Brasília [UnB] e convidou o Roberto Salmeron para organizar os institutos da UnB. De passagem pelos Estados Unidos em fevereiro ou março de 1964, Salmeron me chamou para ser professor em Brasília. Em princípio, aceitei. Mas Micheline perguntou: “Escuta, Roberto, isso não está muito instável?”. E ele disse: “Não se preocupe, conversei com Darcy antes de vir para cá e ele disse que tem um esquema militar absolutamente sólido, o governo está firme”. Aí, pensei: “Se vou ficar um tempo curto nos Estados Unidos, vou experimentar outro lugar antes de voltar”. Escrevi para o Oppenheimer e ele disse que eu poderia passar um ano em Princeton. ■■Enquanto isso, no Brasil, as coisas se complicavam. ——Com a invasão da Universidade de Brasília e a demissão de todos os professores, Micheline e eu pensamos: “Não dá para voltar agora”. Foi então que o Emil Wolf, que tinha lido minha tese no navio, me convidou para ser professor visitante em Rochester. Em 1965 a gente foi para lá e em 1968 vim ao Brasil dar cursos na PUC do Rio sobre óptica quântica, acredito que um dos primeiros no país. O próprio Sergio Rezende [atual ministro da Ciência e Tecnologia] contou que começou a trabalhar num tema relacionado em função desse curso. Enquanto a gente adiava a volta ao Brasil, em Rochester o governo do estado de Nova York criou

uma posição chamada Albert Einstein Professor, para atrair pessoas de altíssimo nível para ensinar em Nova York. Elliott Montroll, um grande físico, aceitou a cátedra, criou o Instituto de Estudos Fundamentais e me convidou para fazer parte. Isso foi em 1968. No mesmo ano recebi uma carta de um colega da PUC dizendo que o melhor estudante da física tinha sido expulso por causa do decreto 477, que determinava a expulsão dos alunos considerados subversivos. Esse estudante se chamava Luiz Davidovich. Na carta, meu amigo perguntava se eu poderia acolher o Davidovich em Rochester. Era fora do período de admissão, mas conversei com colegas e eles aceitaram. ■■O senhor recebeu outros convites? ——Em 1969 recebi outro convite para voltar ao Brasil e ser o A do Impa [Instituto de Matemática Pura e Aplicada], que não tinha matemática aplicada. De novo, aceitei. Em abril de 1969, quando Maurício Peixoto chegava a Rochester para acertar o meu retorno, recebi um telegrama do Ernest Hamburger, que estava como presidente da Sociedade Brasileira de Física, comunicando que o [Jayme] Tiomno e o José Leite Lopes tinham sido aposentados. Fui ao aeroporto falar com Peixoto, mostrei o telegrama e disse: “Nessas circunstâncias não posso aceitar o convite”. A situação era dramática e procurei fazer algo para ajudar os cientistas perseguidos. ■■Eles eram da primeira geração de físicos formada no país. ——Tiomno, Leite Lopes e Schönberg, os três foram aposentados. O telegrama que recebi era de 27 de abril e no dia seguinte mandei uma carta ao Robert Marshak, professor de Rochester e membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos, falando da perseguição política aos cientistas brasileiros e contando que 69 professores tinham sido demitidos das universidades. ■■Esse tipo de ação era comum entre os pesquisadores que estavam fora do Brasil? ——Do que conheço, isso foi feito por mim, nos Estados Unidos, e pelo Salmeron, em Paris. Eu entrei em contato com os cientistas que conhecia, dando as informações sobre o que estava


acontecendo no Brasil. Pouco depois, o conselho da Sociedade Americana de Física mandou uma carta para o embaixador brasileiro, que era o Mário Gibson Barbosa, comentando que o Leite Lopes e o Tiomno tinham sido perseguidos e pedindo que fosse feito o possível para defendê-los. Tenho um arquivo enorme que hesitei em trazer para o Brasil, porque quando voltei, em 1975, ainda não era seguro estar com esses documentos aqui.

arquivo pessoal

■■Nessa época a ditadura começava a amainar. ——Era já a ditabranda. A partir dos contatos que fiz, muitos telegramas de protesto foram enviados. Um deles foi diretamente para o Costa e Silva [Arthur da Costa e Silva, então presidente da República], assinado por praticamente todos os professores do departamento de física de Rochester. Escrevi também um artigo para a Science sobre a “Migração de cientistas da América Latina”, porque essas perseguições tam-

bém ocorriam na Argentina. Uns anos depois houve uma viagem ao Brasil do governador de Nova York, Nelson Rockefeller, e o [Chen Ning] Yang, que eu tinha conhecido em Princeton e era Prêmio Nobel, me consultou sobre o que ele e Rockefeller podiam fazer. A pedido de Yang, Rockefeller falou com o Costa e Silva. ■■Como o senhor conseguiu retornar ao país? ——Em 1975 fui convidado a voltar para a USP pelo [José] Goldemberg, que era o diretor do Instituto de Física. Fiz um concurso para titular e eu tinha imposto uma condição: criar um departamento de física teórica, que acabou se chamando física matemática. Comecei a dar aula no curso de pós-graduação, mas logo percebi que o curso mais importante a ser dado era o de graduação, particularmente física básica. Como não tinha um texto disponível que eu achasse adequado, resolvi fazer o meu.

■■Foi assim que surgiu a série de livros Curso de Física Básica? ——À medida que dava o curso, eu escrevia anotações sobre os diferentes temas. O Enio Candotti, que era professor na UFRJ, soube disso e me pedia cópias para usar nas aulas. Em parte por insistência dele, redigi o curso todo. ■■Enquanto estava na USP, o senhor chegou a dirigir o Instituto de Física, não? ——Naquela época o Goldemberg saiu da direção do instituto e, pelo regimento, os titulares se tornavam automaticamente candidatos a diretor. Eu tinha criado o Departamento de Física Matemática e queria consolidá-lo. Um dia chego ao instituto e dizem que o Diário Oficial tinha publicado minha nomeação como diretor, sem consulta. Mandei uma carta ao reitor, na época o matemático Valdir Oliva, dizendo que não aceitava. Ele comunicou ao instituto que, caso eu não aceitasse, nomearia uma espécie de interventor. Meus colegas me puseram contra a parede e

Cartas de protesto contra a perseguição de cientistas brasileiros

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

15


tive de aceitar. Foi nesse período que comecei a participar do comitê assessor de física do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Na época se começava a falar em anistia e eu, a pedido da SBPC, integrei a comissão que entregou o projeto de anistia dos professores aposentados pelo AI-5, aqueles 69, ao ministro da Justiça, o Petrônio Portela. Como eu era diretor do instituto, pude convidar o Schönberg a voltar para a USP. No meu mandato, por volta de 1980, o governador de São Paulo, Paulo Maluf, deu um golpe na FAPESP fazendo uma interpretação diferente da lei que define os recursos da Fundação. Fiz uma campanha a partir do instituto para que o Conselho Universitário protestasse contra o governo. Conhecendo a USP e seu Conselho Universitário, foi algo nada trivial. No fim o governo recuou. Em 1981 eu ainda estava na USP quando fui eleito presidente da Sociedade Brasileira de Física. A Argentina estava se livrando da ditadura militar e a Associação de Física Argentina me convidou para uma reunião, a primeira no regime democrático. Nela se falou do projeto atômico que os militares argentinos tinham para construir uma bomba. Voltei

com a SBPC que procurava defender a pesquisa e o financiamento de projetos. Na ditadura quem mandava no orçamento da Ciência e Tecnologia era a Secretaria de Planejamento, a Seplan, cujo ministro era o Delfim Netto. A Seplan, com participação de um economista, o Luiz Paulo Rosenberg, e do Claudio de Moura Castro, fez um projeto de reformulação do financiamento à pesquisa para mexer na Finep, no CNPq e na Capes. Seria um desastre. A situação já era ruim porque a comunidade científica não participava da aprovação dos orçamentos. Uma comissão reunindo a SBPC, a ABC e no início a Seplan começou a mostrar o que queria fazer. Conseguimos mobilizar a comunidade científica e apresentar outra proposta, reformulando o estatuto do CNPq e da Finep e criando um conselho deliberativo para cada um, com participação da comunidade científica.

da reunião com o presidente da associação argentina e tivemos a ideia de fazer uma declaração conjunta das sociedades recomendando aos físicos dos dois países não participar de projetos com fins militares. Aqui criei a Comissão de Acompanhamento da Questão Nuclear, formada por Luiz Pinguelli Rosa, Fernando de Souza Barros e Sergio Rezende, para investigar a existência de um projeto militar no Brasil. O Pinguelli e o Barros descobriram, já no governo Collor, o poço na serra do Cachimbo e conseguiram fazer Collor reconhecer que tinha havido um projeto. ■■Nunca se testou nada ali? ——Não. Tudo foi bloqueado. A Sociedade Brasileira de Física e a Associação Física da Argentina tiveram um papel importante nessa história. Foi criado um projeto de inspeção mútua entre os dois países. ■■Por que o senhor saiu da USP? ——Eu estava em evidência lá em razão dessa manifestação do Conselho Universitário e tive um grande choque quando soube dos marajás da USP, o que levou a minha saída.

■■Vocês tentavam trazer os pesquisadores para dentro do CNPq para ajudar a decidir como investir o dinheiro. ——Exatamente. Nosso projeto não só levou à criação do conselho deliberativo do CNPq como influenciou a criação do MCT. Um pouco como castigo, me elegeram representante da comunidade científica no primeiro conselho deliberativo. Participei também da redação do regimento interno do CNPq, que era presidido pelo [Crodowaldo] Pavan.

■■Foi quando veio para a PUC do Rio? ——Vim para a PUC como professor visitante e depois me tornei titular. Nesse período fui indicado pela Academia de Ciências para uma comissão conjunta

reprodução

Auréola: criada pelo tunelamento da luz

16

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

■■Como foi sua participação na criação do Pronex, o programa de financiamento aos núcleos de excelência? ——Quando entrei no conselho deliberativo do CNPq, resolvi apresentar essa ideia, resultado de uma das últimas coisas que fiz no Brasil em 1963 antes de ir para os Estados Unidos. O José Pelúcio Ferreira tinha criado o Funtec, precursor da Finep, em parte inspirado nos artigos que o Leite Lopes escrevia sobre a importância de financiar ciência para o desenvolvimento econômico. O primeiro projeto para o Funtec de apoio à pós-graduação foi escrito pelo Leite Lopes e por mim. Toda a pós-graduação brasileira é filhote do Funtec e da Finep. O Pelúcio me pediu um parecer sobre um pedido do Instituto de Física Teórica de São Paulo, o IFT, hoje ligado à Unesp, que na época era privado. A ideia era criar


uma forma de subvencionar um instituto desse tipo. O Pelúcio disse: “Por que você não olha o sistema francês de laboratórios associados?”. Na França, conversei com o Pierre Jacquinot, que fundou os laboratórios associados ao CNRS. Gostei da ideia e propus ao IFT. O IFT não aceitou, mas inspirado naquelas conversas achei que o problema mais sério sobre o financiamento da pesquisa no Brasil era a instabilidade no longo prazo. Então apresentei a ideia das Entidades de Pesquisa Associadas ao conselho deliberativo e foi aprovado por volta de 1985. ■■Ainda que privados, os institutos poderiam receber financiamento federal? ——A ideia era que fossem projetos de longo prazo, de pelo menos quatro anos e renováveis. A história de como esse projeto levou ao Pronex está publicada em uma entrevista que dei para a Ciência Hoje. Depois de criado o ministério, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, essa se tornou uma reivindicação da comunidade científica. Fernando Henrique se sensibilizou e criou o programa, com os pontos essenciais preservados. O programa se chamou Pronex, um nome de que não gostei. ■■Por quê? ——Uma das razões é que passa a ideia de que teria de ser de altíssimo nível para pertencer a esse grupo. E não era isso. Na França também não é. A ideia era que os bons institutos tivessem financiamento estável. Não era para selecionar dois ou três. Fernando Henrique esperava que tivesse não mais que uns 20 ou 30 núcleos no país. No primeiro projeto foram 77 e no segundo, 84. O Pronex foi a origem dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Uma das ideias centrais era fazer uma avaliação nacional da pesquisa. Os projetos são apresentados pelo país inteiro e só os melhores são escolhidos, com julgamento de nível internacional. Fiz parte da comissão de coordenação do primeiro Pronex e mandamos muitos projetos para serem avaliados no exterior, pedindo que o rigor no julgamento fosse o de um projeto da National Science Foundation. Isso melhorou a maneira de julgar os projetos. Também participei da avaliação dos institutos do CNPq e do MCT.

Na USP, comecei a dar aula na pós-graduação, mas logo percebi que o curso mais importante a ser dado era o de graduação. Como não tinha um texto disponível que achasse adequado, resolvi fazer o meu

■■Qual tipo de instituto vocês avaliaram? ——Todos os institutos, como o Impa, o CBPF e o Inpa Amazônia. Avaliamos institutos no país inteiro e fizemos recomendações. Uma delas é que passassem a funcionar de modo semelhante ao atual do Impa, com base em contratos de gestão e mais autonomia. Na Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada em Brasília em maio, a principal reivindicação dos cientistas foi a desburocratização das importações de material científico. ■■E como o senhor foi para a UFRJ? ——Minha última mudança de instituição foi há uns 15 anos, quando acabou o apoio do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] ao Centro Técnico Científico da PUC no Rio. Com isso, os professores titulares da física na PUC foram para a UFRJ. Antes de ingressar na UFRJ, o reitor, na época era o Nelson Maculan, havia convidado a mim e ao Jacob Palis para participar de um instituto de estudos avançados. Eu nunca

quis fazer parte desse tipo de instituto porque em geral há pouca interação com a universidade e os estudantes. Em vez disso, criamos a Copea, Coordenação de Programas de Estudos Avançados. Seu papel é fomentar pesquisa interdisciplinar em assuntos de fronteira, que não seriam abordados espontanea­mente pela universidade. É a tendência mundial. Também achamos importante ter conferências abertas ao público e ter um grupo de pesquisas próprio. Como tinha de ser uma área interdisciplinar de fronteira que não existisse aqui na UFRJ, decidi me afastar da óptica quântica e criei o Laboratório de Pinças Ópticas. ■■Estou curioso para saber sobre a teoria do arco-íris e da auréola, que o senhor começou a abordar nos anos 1960. ——Há trabalhos bem mais recentes. Um artigo sobre a teoria da auréola está para sair na Scientific American. O arco-íris e a auréola são dois dos fenômenos mais bonitos da natureza. ■■O que é a auréola? ——A melhor forma de descrever é mostrar. Você pode observar em viagens de avião. Tem de saber a posição do Sol e ser capaz de localizar a sombra do avião sobre as nuvens. Com sorte, enxerga a sombra do avião e, em volta, o que parece um arco-íris circular. Não é. É a auréola, que é diferente. Dá para ver vários anéis concêntricos. A ordem das cores é diferente. Um dos grandes nomes da óptica, Joseph von Fraunhofer, propôs que fosse uma espécie de reflexão na nuvem. Estava errado. A explicação decorre de um fenômeno intrigante, o tunelamento. A luz pode se comportar como onda ou partícula. Como partícula, não poderia penetrar nas gotículas de água. Como onda, atravessa a superfície por tunelamento. No interior da gota, ela reverbera antes de emergir por tunelamento e produzir a auréola. ■■Esse foi o trabalho premiado? ——Ganhei o prêmio Max Born em 1986 pela teoria do arco-íris e da auréola. Mas, na época, ainda faltava boa parte da explicação da auréola, que foi se acumulando ao longo dos anos. A demonstração final de que é um fenômeno de tunelamento é um dos meus n trabalhos mais recentes. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

17


capa

Para desenredar a trama Ataque a veias e artérias indesejadas pode combater cegueira e câncer Maria Guimarães


I

magine veias e artérias que se ramificam, crescem, se dividem, se espalham. Normal durante o desenvolvimento de um embrião, na idade adulta essa formação e proliferação de vasos sanguíneos pode estar na origem de problemas graves, como cegueira e câncer. O bioquímico Ricardo Giordano, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), vem encontrando formas de localizar – e exterminar – esses vasos sanguíneos que brotam fora de hora e de lugar. Ele desenvolveu um peptídio (fragmento de proteína) que reúne qualidades altamente desejáveis para um fármaco em potencial contra esse problema: a molécula encontra vasos que não deveriam estar sendo produzidos – e faz isso driblando as defesas do organismo, que não conseguem reconhecer o peptídio como uma substância intrusa a ser combatida. A molécula, conhecida como D(LPR) por ser composta por leucina, prolina e arginina, nasceu do trabalho desenvolvido por um casal de pesquisadores brasileiros que juntos coordenam um laboratório no Instituto do Câncer M.D. Anderson, no Texas, Estados Unidos: a bióloga molecular Renata Pasqualini e o médico oncologista e pesquisador Wadih Arap. Ao longo de 10 anos de pós-doutorado nesse fervilhante ambiente equipado com aparelhos, mentes e motivação voltados para descobrir proteínas que atuam em doenças humanas, Giordano usou o conceito de CEP desenvolvido por Renata e Arap: cada tipo de célula, em cada tecido do organismo, tem uma assinatura molecular única que pode ser reconhecida por peptídios específicos, assim como o número 05415-012 designa um espaço de duas quadras


onde o carteiro encontra a redação que produz esta revista. E deu certo, como mostra o artigo publicado em março na revista científica PNAS. Para construir rastreadores que escapassem ao radar do sistema imunológico, Giordano usou um truque conceitualmente simples baseado nas duas categorias de peptídios, caracterizadas por terem determinados grupos químicos voltados para a direita (D) ou para a esquerda (L). “A natureza escolheu fazer proteínas na forma L”, explica o bioquímico. Por isso ele optou pela forma espelhada D, que por não existir na natureza não é reconhecida pelo sistema de defesa do organismo. É como se os peptídios que circulam no sangue e nas células tivessem todos a forma de mãos esquerdas. As enzimas encarregadas de destruir as impurezas, que seriam como luvas específicas para mãos esquerdas, deixariam escapar as mãos direitas. Assim, o D(LPR) foge à detecção sem deixar de cumprir a função de seu gêmeo espelhado, o RPL. A função, no caso, é inibir a produção do fator de crescimento vascular endotelial (VEGF), principal responsável pela proliferação de vasos sanguíneos. “Mas não se pode inibir por inteiro a atividade desse fator de crescimento: a função basal do VEGF é importante para a manutenção dos vasos”, afirma Giordano. Ele buscou então uma mão direita que conseguisse afetar apenas a geração de novos vasos, função desempenhada com sucesso pelo D(LPR), conforme mostrou no artigo da PNAS para casos de retinopatia da prematuridade.

C

ausa da deficiência de visão do músico Stevie Wonder, a retinopatia da prematuridade atinge sobretudo bebês que precisam passar um tempo na incubadeira ao nascer. Como nesse aparelho a pressão de oxigênio é muito alta, cerca de 70%, quando a criança sai para a atmosfera natural, com 20% de oxigênio, as células da retina interpretam a situação como falta de oxigênio e produzem mais VEGF. O resultado é uma teia vascular na retina, densa a ponto de impedir a visão. Giordano mostrou que o peptídio D(LPR) consegue encontrar essa formação de vasos indesejados reconhecendo moléculas específicas na membrana da célula vascular. “Por ser pequeno, o peptídio tem

20

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

provoca a degeneração macular do tipo molhado, principal causa de perda de visão relacionada ao envelhecimento. Um medicamento à base de D(LPR) poderia ser aplicado na forma de colírio, o que seria um alívio em relação ao tratamento atual para degeneração macular, feito por meio de injeções aplicadas diretamente no olho. Wadih Arap já precisou tomar uma injeção no olho por causa de um descolamento da retina, e avisa: é péssimo. Bomba rastreadora - No laboratório

produção mais barata e a possibilidade de efeitos colaterais é pequena, porque a parte externa da célula é a mais seletiva e por isso a ação é localizada.” Quando se encaixa na superfície da célula, o D(LPR) perturba a cadeia de ativação do VEGF e assim inibe a proliferação vascular excessiva. Nos testes feitos por Giordano, o sistema foi bem-sucedido em células em cultura e também em camundongos vivos. Por ser pequeno, estável e solúvel em água, o peptídio desenvolvido pelo bioquímico tem tudo para ser um sucesso aos olhos de quem tem problemas de visão desse tipo, caso chegue de fato a dar origem a um medicamento. Além da retinopatia que ataca bebês prematuros, a proliferação vascular na retina também

O Projeto Identificação de novos marcadores moleculares da retina angiogênica e desenho racional de novos agentes terapêuticos para doenças oculares com um componente vascular – nº 2008/54806-8 modalidade

Jovem Pesquisador Co­or­de­na­dor

Ricardo José Giordano – IQ/USP investimento

R$ 774.669,76

que criou no ano passado, quando voltou do Texas e foi contratado pela USP, Giordano vem buscando em camundongos novas regiões do VEGF que possam servir como alvos terapêuticos. Os benefícios podem se estender muito além das doenças da visão. A proliferação vascular, ou angiogênese, estimulada pelo VEGF, também é o que caracteriza tumores malignos: eles secretam fatores de angiogênese para estimular a produção de vasos que alimentem as massas de células cancerosas. “Se conseguirmos combater esse processo que normalmente não acontece em adultos, teremos mais uma arma contra o câncer”, prevê o pesquisador.

A

tacar o VEGF não é ideia nova. Já existem medicamentos – aprovados e em uso – à base de anticorpos contra esses fatores, mas, segundo Giordano, eles não se mostraram tão eficazes quanto se esperava e causam efeitos colaterais indesejáveis, problema que ele espera evitar com ação direcionada do peptídio que desenvolveu. “Há centenas de laboratórios no mundo procurando desenvolver esse tipo de medicamento, é uma corrida.” Para ele, mais importante do que chegar primeiro é desenvolver um fármaco no Brasil. Não só para ter medicamentos mais acessíveis, mas também para ter propriedade intelectual sobre eles, que podem contribuir para novas pesquisas. Uma das prioridades de Renata e Arap agora é continuar os testes para desenvolver um medicamento baseado no peptídio desenvolvido pelo colaborador da USP. “Queremos fazer em São Paulo um braço da companhia que está licenciando a propriedade intelectual do M.D. Anderson, para conseguirmos parcerias e investimento para o


desenvolvimento de drogas”, conta a pesquisadora. Uma vantagem de fazer os testes clínicos aqui é já testar a sua eficácia na população brasileira, uma validação independente dos efeitos da droga num número maior de pacientes. No futuro, o D(LPR) pode ser eficaz também contra os vasos que irrigam tumores, mas o grupo priorizou estudar as doenças oculares para evitar a imensa competição em torno da guerra contra o câncer enquanto, nas palavras de Renata, “existe um vácuo em termos de tratamentos para a retina”. O casal de pesquisadores está no lugar certo. O M.D. Anderson é um enorme centro de pesquisa e hospital especializado em câncer. Nesse lugar que é um dos centros de referência no mundo para tratamento do câncer, e por isso recebe os casos mais difíceis, os pesquisadores têm acesso a um grande número de pacientes e a enormes desafios científicos. Além da pesquisa, Arap atende pacientes no hospital. No laboratório texano, a dupla que se graduou na USP vem usando a ideia de CEP para combater câncer e obesidade. Eles desenvolveram uma droga contra câncer de próstata que já está em fase inicial de testes clínicos em humanos. “Já tratamos seis pacientes”, conta a pesquisadora. Essa fase inicial com poucos pacientes, depois que o medicamento foi testado em outras espécies – em geral camundongos, cães ou macacos –, é obrigatória para avaliar possíveis efeitos tóxicos do tratamento. Ao localizar a droga em biópsias de tumores, o estudo valida o conceito dos CEPs no combate ao câncer e outras doenças

“Se conseguirmos combater a angiogênese, teremos mais uma arma contra o câncer”, diz Giordano

– método que se mostrou eficaz contra células de gordura, conforme artigo do grupo em 2004 na Nature Medicine. O peptídio encontra a assinatura molecular específica do tumor ou da gordura e leva consigo uma bomba – a molécula klaklak (ver Pesquisa FAPESP nº 115). “É uma estrutura em forma de saca-rolhas rica em cargas negativas, que ataca a membrana das mitocôndrias”, descreve Giordano. Ao destruir as mitocôndrias, usinas de energia das células, o klaklak elimina especificamente as células indesejadas, como os vasos que irrigam o tumores. Numa fase mais inicial de pesquisa, a catalã Marina Cardó-Vila trabalhou junto com Giordano no M.D. Anderson, usando técnicas semelhantes em moléculas diferentes. Ela demonstrou, em artigo publicado também na edição de março da PNAS, que um sistema de peptídio invertido (forma D), como o produzido pelo colega, é eficaz para inibir o crescimento de tumores mamários em fêmeas de camundongos. Fôlego - Além de potenciais fármacos,

o peptídio rastreador de Giordano ainda se mostrou uma eficaz ferramenta de pesquisa. Em colaboração com o patologista lituano Rubin Tuder, que se formou na USP e é professor na Universidade do Colorado, ele mostrou em 2008, no Journal of Biological Chemistry, que a técnica permite encontrar e destruir vasos que mantêm a estrutura dos alvéolos pulmonares e causar lesões semelhantes às que existem nos pulmões de fumantes

com enfisema. Nesse caso, os peptídios funcionam como um antirremédio. A utilidade é produzir, em laboratório, camundongos com características pulmonares de enfisema, permitindo estudar a doença mais a fundo.

T

uder agora também busca empregar o método para ajudar no diagnóstico de hipertensão pulmonar, caracterizada pela proliferação de células nos vasos dos pulmões e que no Brasil é associada à esquistossomose (ver Pesquisa FAPESP nº 158). Hoje, para espiar o interior dos vasos é preciso inserir um cateter, pela virilha, veias adentro. O plano do pesquisador é acoplar partículas de ouro, por exemplo, a peptídios rastreadores. O ouro é reconhecido pela tomografia, um exame muito menos invasivo do que o cateterismo. “Estou procurando identificar peptídios que localizem essas lesões pulmonares para auxiliar no diagnóstico por imagem”, explica o patologista. Ele já encontrou, em culturas de células de pacientes, moléculas promissoras para esse papel e em dois meses espera ter mais detalhes para contar. Embora o método seja promissor contra doenças importantes, os pesquisadores não esperam que ele seja uma panaceia. Muito menos planejam injetar peptídeos carregados de klaklak para atacar, de forma preventiva, tumores ainda não diagnosticados. “O câncer é uma doença muito difícil”, comenta Renata. “São passos pequenos, os benefícios são incrementais; mas se não se n tenta, não se consegue nada.” » Ver infográfico no site: www.revistapesquisa.fapesp.br Artigos científicos 1. GIORDANO, R. J. et al. From combinatorial peptide selection to drug prototype (I): Targeting the vascular endothelial growth factor receptor pathway. PNAS. v. 107, n. 11, p. 5.112-17. 16 mar. 2010. 2. CARDÓ-VILA, M. et al. From combinatorial peptide selection to drug prototype (II): Targeting the epidermal growth factor receptor pathway. PNAS. v. 107, n. 11, p. 5.118-23. 16 mar. 2010. 3. GIORDANO, R. J. et al. Targeted induction of lung endothelial cell apoptosis causes emphysema-like changes in the mouse. Journal of Biological Chemistry. v. 283, n. 43, p. 29.447-60. 24 out. 2008. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

21


ESTRATÉGIAS MUNDO

A GUERRA DA INFORMAÇÃO o jornal

britânico Sunday Times pediu desculpas ao

especialista em florestas Simon Lewis, da Universidade de Leeds, e a dois membros da entidade ambientalista WWF,após um episódio da guerra da informação sobre os efeitos do aquecimento global. Em feverei-

Bfi

ro, o repórter do jornal Jonathan Leake publicou um artigo alegando que o Painel Intergovernamental

de

I

N(

Mudanças Climáticas (IPCC) divulgara em seus relatórios dados tendenciosos sobre a Amazônia. Lewis foi ouvido pelo jornalista e atestou que estava correta a informação em questão, segundo a qual 40% da floresta poderia sofrer danos com o aumento de temperatura,

ainda que a fonte declarada não fosse

um trabalho científico, mas um relatório

do WWF. A

matéria, porém, atribuiu a Lewis críticas que ele não

CENÁRIO DESOLADOR Pesquisadores noruegueses e alemães descobriram, por acaso, um dramático impacto ambiental no mar que cerca o Parque Nacional da região de Aysén, no Chile, provocado pela indústria de criação de salmão. O objetivo original era estudar a comunicação entre as baleias, mas os pesquisadores encontraram um ambiente tão desolador que enviaram uma correspondência à revista Nature relatando o fato. Nas proximidades das fazendas de salmão depararam com grandes volumes de fezes de peixes e de alimentos em excesso flutuando na água. Medições feitas pela equipe mostraram que não existem outras formas de vida próximo das fazendas, devido ao uso de medicamentos e pesticidas para os peixes. O dano para os leões-marinhos foi

documentado. Filhotes apanhados pelas redes de proteção das fazendas morrem sufocados quando crescem, devido às consequências de ter pedaços de rede presos ao corpo.

havia feito e classificou os autores do relatório do WWF,Andrew Rowell e Peter Moore, de militantes sem lastro científico. Lewis reclamou à Comissão de Queixas sobre a Imprensa do Reino Unido. O jornal teve de retratar-se,

informando que o

dado era baseado num estudo do Instituto de Pesquisa Am-

do nOl

jornalista

ambiental"

Rowell um

e Moore, um especialista

TALENTOS PLANIFICADOS

22 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

COI

esquecida. O Sunday Times afirmou considerar

em manejo florestal, apesar das sugestões em contrário.

O Partido Comunista da China apresentou, no início de junho, o Plano de Desenvolvimento de Talentos em Médio e Longo Prazo, que estabelece metas ambiciosas para o ano

indi fora pale da} Am par' Ch] do Cre aE

biental da Amazônia (lparn), embora a referência tenha sido "experiente

I

Repi

de 2020. O alvo principal é alcançar o índice de 43 pesquisadores para cada grupo de 10 mil chineses o índice atual é de 25 cientistas por 10 mil habitantes. Isso significa

acumular um exército de 3,8 milhões de pesquisadores no final desta década, sendo 40 mil deles cientistas de alto nível dedicados à inovação. Doze projetos estão sendo lançados para dar lastro ao plano. Eles buscam distribuir profissionais de nível superior pelas áreas rurais do país, criar fóruns nos quais pesquisadores de elite trabalhem juntos na solução de problemas de pesquisa e lançar programas piloto para a promoção de talentos, vinculados a universidades e institutos de pesquisa.

oa de de po eve me dir Na cri qu pa

no Ja, ca

d~ a"

at

g eJ Ilí

ai

ai a

" a


çÃO culpas ao niversidar,mbientaIformação fevereiblicou um

BARRADOS NO CONGRESSO

ental de seus rela-

I

ia. Lewis tava cor-

Representantes de indústrias farmacêuticas foram proibidos de dar palestras no congresso da Associação Médica Americana, programado para o final do ano em Chicago. O veto partiu do Conselho de Credenciamento para a Educação Médica Continuada, órgão do sistema de saúde norte-americano, com o argumento de que ações de marketing das indústrias de medicamentos não podem ter como alvo eventos de educação médica. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), criticou a medida, alegando que ela prejudica os esforços para incentivar a pesquisa no setor privado. Já Iames Stein, professor de cardiologia da Universidade de Wisconsin, acha que a proibição chega com atraso. "Essas palestras, em geral, servem para gerar expectativas na comunidade médica com drogas que ainda não receberam aprovação", disse, segundo a agência McClatchy- Tribune. "A proibição deveria atingir inclusive médicos

ua140% mento de ão fosse

o WWF.A e ele não WWF,Ancientífico. rensa do do que o uisa Amenha sido owell um ecialista trário.

:ito ai desta il !to nível ao. sendo stro I

m

nais de : áreas fóruns ~ores untos em as ara ntos, sidades uisa.

que trabalham como consultores das indústrias." Para Adriane Fugh-Berman, médica da Universidade Georgetown, a proibição atende a critérios técnicos. "Funcionários de indústrias farmacêuticas não são interlocutores habilitados para eventos de educação médica", afirmou.

O SIlÍCIO DE MOSCOU O presidente russo, Dimitri Medvedev, conseguiu um aliado em seu projeto de criar uma cidade tecnológica no subúrbio de Moscou. Em visita aos Estados Unidos, obteve da gigante da tecnologia da

ABALOS NA REPUTAÇÃO Seis sismólogos italianos estão sendo investigados por homicídio, num caso relacionado ao terremoto

ocorrido em

L'Áquila, em 2009. Uma semana antes do'abalo que matou 308 pessoas, o grupo esteve em L'Áquila e teria afirmado que, apesar dos tremores que a região já vinha sofrendo, não

informação Cisco promessa de investimento de US$ 1 bilhão no pala de Skolkovo, que abrigará instituições de ensino, centros de pesquisa privados e empresas tecnológicas nascentes. O investimento da Cisco assumirá várias formas, desde o fornecimento da arquitetura de redes das instalações do pala até uma dotação de US$ 100 milhões em capital de risco para novas empresas e uma filial de seu Grupo de Tecnologias Emergentes, centro que procura identificar e patrocinar o desenvolvimento de tecnologias promissoras. Medvedev deu garantias aos investidores da cidade tecnológica de que serão poupados de conhecidas mazelas do país, como a corrupção na burocracia e um sistema judiciário criticado pela falta de transparência. "É preciso garantir que o dinheiro chegue às mãos certas, seguindo as normas corretas", disse, em discurso na Universidade Stanford, de acordo com a revista FastCompany.

parecia haver o risco de um terremoto: Segundo a revista Nature, os investigados se dizem traídos pela Agência de Proteção Civil da Itália, que os convidou para a reunião e depois convocou uma entrevista coletiva relatando as conclusões. "A reunião deveria ter durado horas se a agência realmente quisesse analisar todos os dados. Em vez disso, durou uma hora e foi seguida por uma conferência de imprensa sobre a qual nós nem sequer fomos informados", disse Enzo Boscchi, presidente do Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia, órgão encarregado do monitoramento

sis-

mológico do país, que encabeça a lista dos investigados.

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 23


0

CHANCE DE SOBREVIDA Ainda sem um substituto

1

viável,

o programa dos ônibus espaciais norte-americanos

pode ganhar

uma sobrevida de alguns meses. Diz o cronograma da Nasa que o penúltimo voo, uma missão à Estação Espacial Internacional da nave Discovery, aconteceria em setembro, mas a viagem deve ser adiada para o mês seguinte. Com isso, o derradeiro voo, a bordo do Endeavour, ocorreria não em novembro, como anunciado, mas em fevereiro de 2011.O porta-voz da Nasa, Mike Curie, nega que a agência queira ganhar tempo e alega que, no caso do Discovery, o adiamento se deve a problemas técnicos. Já os meses de dezembro e janeiro terão uma agenda agitada, com a chegada à estação de missões de carga e de uma cápsula russa Soyuz com astronautas. Com isso, a melhor data para a última missão seria fevereiro. A decisão de aposentar os ônibus espaciais, programa iniciado na década de 1980, deve-se à preocupação sobre a idade avançada das naves e o perigo da repetição de tragédias como as que atingiram o Challenger, em 1986, e o Columbia, em 2003, que mataram todos os seus tripulantes.

NA ÁFRICA, POR AFRICANOS Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos e a organização britânica The Wellcome Trust vão

patrocinar o projeto Human Heredity and Health in Africa (H3Africa), que conduzirá estudos genéticos na população africana sobre doenças como diabetes e cardiopatias. "Há o receio de

Hospital na Etiópia: estudo de doenças

24 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

que a África perca o bonde da revolução genômica", disse à agência SciDev.Net Bongani Mayosi, professor da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. "Na pesquisa genética, a África tem importância fundamental, pois é o berço do homem e contém informações de interesse de todas as populações humanas", afirmou. Segundo ele, o estudo de doenças como a anemia falciforme, moléstia hereditária comum na África, pode resultar em novos testes de diagnósticos. "Há um compromisso dos patrocinadores de que a pesquisa será feita na África, por africanos e para africanos", disse Mayosi. Os pesquisadores africanos serão treinados segundo padrões internacionais e haverá um plano para estimulá-los a permanecer em seus países depois que o projeto terminar.

RISCO DA ESTAGNAÇÃO

A produção científica do Japão permaneceu relativamente estável nos últimos 10 anos. Cresceu de 72 mil artigos em 2000 ante 78,5 mil no ano passado, reduzindo a participação do país no total mundial de 9,45% para 6,75% no período, de acordo com a base Thomson Reuters. No mesmo período, a China viu sua produção científica aumentar quatro vezes em termos absolutos. O alerta foi dado por um relatório da empresa Thomson Reuters sobre o desempenho da pesquisa nipônica. Embora o Japão tenha universidades de classe mundial e vários ganhadores do Prêmio Nobel, o relatório apontou pontos vulneráveis da estratégia do país para manter-se competitivo. Um deles é um certo isolamento, que se traduz num número limitado de colaborações internacionais. Os índices de citação dos artigos japoneses nas revistas da base Thomson Reuters estão abaixo dos demais países do grupo dos sete mais ricos - e 2% abaixo da média mundial no período de 2005 a 2009. Segundo Ionathan Adams, diretor de avaliação de pesquisa da Thomson Reuters, a pesquisa no Japão é muito orientada por demandas e atividades domésticas e ainda pouco se vale das oportunidades de inovação em potenciais parcerias com seus vizinhos emergentes da Ásia e do Pacífico.

L)

PF Cels soff da L pres rnan eor

é un esta um' do c nest sido men nom Gold emp paull Técn dade afim Corn livre' de Di

e da Exte do O

Aede arma


ESTRATÉGIAS

BRASIL

:a :u

I nos esceu 12000 a ,no

LAFER É RECONDUZIDO À PRESIDÊNCIA DA FAPESP

5%

Celso Lafer, professor

ido,

sofia

;e

da Universidade

~o :hina entífica zes s.

presidência da FAPESP pelo governador

e o novo

.r um

um fator

i

do conhecimento

ibre esquisa Japão

sido um privilégio",

e Teoria

titular

do Departamento

Geral do Direito

mandato

até 2013. "A FAPESP brasileiras,

estado de São Paulo, cujo apoio decisivo

no avanço

à

criada pelo

pesquisa

tem sido

e no aprofundamento

em nosso

nestes últimos

à FAPESP

país. Servir

três anos, como seu presidente, disse Lafer. "Agradeço

membros do Conselho

Superior

nome na lista tríplice

e a confiança

vários

Goldman.

lia

em prol do contínuo

Jantou :Ia Ira

paulista,

Técnico-Administrativo,

lVO.

afirmou.

l

Cornell, nos Estados

raduz do de acionais. o ~snas unson ) dos upo

livre-docência

Reitero,

o meu empenho

aperfeiçoamento

desta grande instituição

com o Conselho

Superior

e em convergência

Lafer fez mestrado

e doutorado

Unidos,

em direito

de Direito da USP. Membro Brasileira

da Academia de Letras,

Indústria

e o Conselho com a comunide qualidade",

na Universidade

na área de ciência

internacional

em 1992 e novamente

do Desenvolvimento,

o meu

do governador

que dá à FAPESP o seu lastro

dade científica

tem

o apoio dos

que indicaram

com convicção,

em sintonia

Exteriores

à

Gofd-

Alberto

da Fundação desde 2007

se estenderá

das grandes instituições

e da Academia

de Filode Direito

de São Paulo (USP), foi reconduzido

mano Ele ocupa a presidência

é uma

da Faculdade

público

política,

de Ciências das Relações

em 2001 e 2002 e Comércio

e a

na Faculdade

Brasileira

foi ministro

de

e ministro

em 1999.

MOSQUITOS SOB CONTROLE

iédia ) de :\0 retor [UlSa

.s, é muito mdas icas le das iovacão mas : Aedes aeqypti:

armadilha

o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Fundação Oswaldo Cruz lançaram o Sistema de Monitoramento e Controle Populacional do Aedes aegypti (SMCP-Aedes), que busca reduzir a população do mosquito transmissor do vírus da dengue em áreas de risco. O Inpe coordenou o desenvolvimento de um sistema computacional para

mapear os locais onde há mais ovos da fêmea do Aedes, capturados por uma armadilha criada pela Fiocruz que é instalada em domicílios. Os ovos colhidos são levados para o laboratório e contados por meio de um sistema automático. O número de ovos é registrado num banco de dados e somado a informações cartográficas, socioambientais e epidemiológicas. O SMCP-Aedes gera, então, um mapa dos pontos de risco capaz de orientar as ações de controle. O projeto já foi implantado, em experiências piloto, em duas cidades pernambucanas: Ipojuca e Santa Cruz do Capibaribe. O sistema propõe intervenções baseadas na eliminação mecânica dos mosquitos e de seus ovos, reduzindo o uso de pesticidas.

SOLUÇÃO PARA O IUPERJ A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) lançou o Instituto U erj de Pós-graduação e Pesquisa (Iupperj), resultado da incorporação de professores e pesquisadores do Instituto Universitário de Pesquisas da Universidade Cândido Mendes (Iuperj), um tradicional centro de pesquisas e ensino de pós-graduação em ciências sociais fundado em 1969. A incorporação foi a solução encontrada pelo governo fluminense para o agravamento da crise que afetava a instituição nos últimos anos. Com os salários atrasados há vários meses, os 20 professores do Iuperj demitiram-se da Universidade Cândido Mendes e tornaram -se professores visitantes da Uerj.

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 25


r

I

REDUÇÃO DE GASES ESTUFA o governador de São Paulo, Alberto Goldman, assinou decreto que regulamenta a Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMe). A iniciativa é resultado da Lei nO 13.798, sancionada em novembro de 2009, que estabelece como meta a redução, em todos os setores da economia, de 20% da emissão de gases de efeito estufa até 2020, tomando por base o ano de 2005. O decreto cria e especifica as'competências do Conselho Estadual de Mudanças Climáticas, com caráter consultivo e tripartite,

I

INCUBADORA USP LESTE

NA

A Universidade de São Paulo (USP) assinou um acordo com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento para criar uma incubadora de empresas tecnológicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, localizada na Zona Leste da capital. O acordo prevê um investimento de R$ 842 mil para construir um prédio com área de 683 m-' e capacidade inicial de receber oito empresas a partir de 2011. Denominada USP Leste Tec, a incubadora deverá abrigar, no período de cinco anos, pelo menos 20 empresas e estabeleceu como meta obter pelo menos duas patentes por ano a partir do segundo ano de atuação. Empresas interessadas terão que apresentar um plano de negócios, que será analisado por um comitê. A incubadora será um embrião de um projeto maior, que existirá no Parque Tecnológico da Zona Leste, projetado pelo

pação de representantes

governo estadual com a prefeitura de São Paulo e a EACH. Localizado numa área de 203 mil km2 próxima ao campus da USP na Zona Leste, o parque integrará grandes empresas, centro de convenções, pavilhão de exposições, auditório, área de serviços e alimentação, edifício comercial e laboratórios da EACH, da Faculdade de Engenharia Industrial e do Instituto Mauá de Tecnologia.

26 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

dos

municípios e da sociedade civil, totalizando 42 componentes. O conselho terá a atribuição de realizar audiências públicas para discutir questões relacionadas

à mudança do clima,

além de propor medidas de mitigação e adaptação. O decreto cria também um comitê gestor, composto por membros de várias secretarias cumprimento

estaduais, que avaliará e monitorará

o

da meta global e das metas setorlals e inter-

mediárias a serem definidas. Até o fim do ano, o Inventário de Gases de Efeito Estufa do Estado de São Paulo apresentará a base das emissões pau listas, estabelecendo um marco para o cumprimento da meta prevista na lei.

CÂME~A NÔMADE

~ Viaduto Santa Ifigênia: sombras

e a partici-

de órgãos governamentais,

A Pinacoteca Municipal de São Caetano do Sul, no ABC paulista, apresenta até o dia 14 de agosto a exposição fotográfica Câmera nômade, com imagens de autoria do sociólogo e fotógrafo José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho Superior da FAPESP. Ao todo são 100 fotografias em preto e branco e coloridas. "São registros de viagens,

imagens que guardam as memórias de lugares que hoje em dia já não são mais iguais", diz a curadora da mostra, Claudia Monteiro. "E ao lado dessas belezas naturais estão os doloridos registros de solidão e, por que não, de abandono e descaso social. Um olhar de alerta para questões que, infelizmente, não são tão belas assim." A Pinacoteca Municipal fica na Av. Dr. Augusto de Toledo, 255, na região central de São Caetano. O público pode visitar a exposição de segunda a sexta, das 9h às 18h, e aos sábados, das 9h às 13h.

VIL

CO

Oml Estaç Univt abrig aexp Epide

epide longo

pelo 1 Scien Unive Villet já este em oi e mos das pl mune comp popul de cri para ( cultur relacie cientíí

se div O prii histór e das ( segun, éum' gigant difere! epider atenta em Nc


I

VIDEOGAME. COLETIVO

USO ÉTICO DE ANIMAIS

o museu 110, Alber:reto que Estadual

i (PEMC).

da Lei

nO

iovembro comomeIS

setores

! emissão

até 2020, de 2005.

a as com-

rtadual de mcaráter a partici-

itals, dos ponentes. públicas do clima,

5

O decreto mbros de

iitorará o is e lnterentérío de rsentará a arco para

am as es que sãomais ira da onteiro. elezas iloridos , e, mdono n olhar tõesque, ão tão icoteca rv, Df. ,255,

interativo Estação Ciência, da Universidade de São Paulo, abriga até 26 de setembro a exposição francesa Epidemik: o impacto das epidemias na sociedade ao longo dos séculos. Criada pelo Museu La Cité des Sciences et de l'Industrie/ Universcience, dê La Villette, em Paris, a mostra já esteve no Rio de Janeiro em outubro de 2009 e mostra um panorama das principais epidemias mundiais e do comportamento das populações em situações de crise, com destaque para os aspectos sociais e culturais e para as questões relacionadas às descobertas científicas. A exposição se divide em dois blocos. O primeiro aborda a história da humanidade e das epidemias. No segundo bloco o destaque é um videogame coletivo gigante, que simula diferentes cenários de epidemia, desde um atentado bioterrorista em Nova York até a

Entidades científicas

lançaram uma campanha

publicitária para defender a importância do uso de animais de laboratório em experimentos científicos. Uma lei aprovada pelo Congresso em 2008 regulamentou

a utilização

ética de animais em

pesquisas, evitando, desde então, que legislações estaduais e municipais continuassem a limitar o trabalho dos cientistas. Os organizadores da campanha, coordenada pela Federação de Sociedades de Biologia Experimental

(FeSBE), dizem que a

opinião pública ainda não está bem informada sobre os avanços da nova lei e a importância do uso de cobaias no desenvolvimento de medicamentos, vacinas, cirurgias e para a própria medicina veterinária, daí a necessidade de promover a campanha. Inicialmente, serão distribuídos 100 mil folhetos e 30 mil cartazes entre secretarias de Saúde e Educação de sete capitais brasileiras. Anúncios em jornais, revistas, televisão, rádio e cinema serão veiculados. Estão previstas, ainda, estratégias para a difusão da campanha na Internet, por meio de mídias sociais e do site www.eticanapesquisa. orq.br, Numa segunda etapa, será lançado um qibi em escolas para esclarecer os adolescentes.

disseminação da Aids em Paris, Moscou e Rio de Janeiro, além de um jogo sobre a epidemia de dengue no Rio de Janeiro em 2008, com conteúdo preparado pela Fundação Oswaldo Cruz.

I

MORRE HENRIQUE WALTER PINOTTI

Morreu em São Paulo, vítima de câncer, Henrique Walter Pinotti, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade

blico sição:

-

13h.

Animal de laboratório: campanha

Exposição Epidemik: jogo interativo

de São Paulo (FMUSP). Pinotti, que tinha 81 anos, foi professor titular da disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo, de 1984 a 1999. Desde 2000 era membro da Associação dos Professores Eméritos da FMUSP. Publicou 681 trabalhos em revistas brasileiras e 136 em estrangeiras, 36 livros e monografias no Brasil e duas no exterior. Em 1985, Pinotti integrou a junta médica que tentou deter o avanço do quadro infeccioso que acabou levando à morte o presidente eleito Tancredo Neves. Formado em 1955 pela Faculdade de Medicina da USP, Pinotti concluiu doutorado em 1964, em gastroenterologia. Em 1967 conquistou o título de livre-docência em cirurgia e, em 1981, venceu o concurso para professor adjunto da disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo.

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 27


Peter M. Fisher/CORBIS/Corbis (DC)/Latinstock

política

científica e tecnológica


[ recursos humanos ]

Matemática moderna Projeto busca levar à sala de aula os avanços da pesquisa na disciplina no século XX Fabrício Marques

U

m projeto ambicioso, liderado por sociedades científicas ligadas à pesquisa e ao ensino da matemática no país, quer criar um novo paradigma para o ensino da disciplina. O Projeto Klein em Língua Portuguesa vai mobilizar a comunidade brasileira dos matemáticos na elaboração de materiais didáticos que ajudem a incorporar ao ensino os avanços obtidos na disciplina nos últimos 100 anos. Uma série de workshops irá debater temas de fronteira em áreas básicas, como álgebra, geometria e topologia, e em outras que surgiram recentemente, caso, por exemplo, das aplicações no campo da computação. A primeira oficina de trabalho foi programada para o início de julho, em Belo Horizonte. “Essas oficinas farão um esforço concentrado sobre os temas específicos, com muita discussão objetiva que resulte na produção de textos, produtos e ideias inovadoras”, diz Marcelo Viana, pesquisador do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), coordenador do projeto. O material discutido nas oficinas será submetido, posteriormente, a experimentos piloto, com a colaboração de professores do ensino médio e estudantes de licenciatura, para testá-los em condições reais de sala de aula. O projeto tem a participação de matemáticos de Portugal e espera-se que sua contribuição alcance os demais países onde se fala a língua portuguesa. A meta central é tornar familiar para os professores dos ensinos fundamental e médio as conquistas da pesquisa em matemática, ajudando-os a compreen­ dê-las e a estabelecer conexões com os conteúdos


Conjectura de Poincaré - Segundo a

professora, é raro que professores de matemática consigam abordar em sala de aula temas de pesquisa, em geral muito complexos e abstratos, ao contrário do que ocorre com professores de física ou de biologia, em geral mais felizes ao esboçar respostas à curiosidade dos alunos sobre temas de fronteira. Um exemplo, ela afirma, pôde ser visto na recente resolução da Conjectura de Poincaré, proeza alcançada pelo matemático russo Grigory Perelman. Formulada em 1900 pelo francês Jules Henry Poincaré, trata-se de uma questão central da topologia, área da matemática considerada uma extensão da geometria, que estuda as propriedades geométricas que não mudam quando objetos são distorcidos, esticados ou encolhidos. “Muitos professores ficam constrangidos porque não conseguem 30

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Os conteúdos vêm sendo ministrados de uma forma mecânica e fragmentada, sem valorizar a amplitude da matemática explicar para seus alunos. E a topologia é uma das áreas que mais avançaram num passado recente”, afirma. O projeto é o braço brasileiro de uma iniciativa lançada em 2008 pela Comissão Internacional de Instrução Matemática (ICMI, na sigla em inglês) e pela União Matemática Internacional (IMU). Trata-se do Projeto Klein para o Século XXI, que celebra os 100 anos da publicação de textos do matemático alemão Felix Christian Klein (18491925). Nesses textos, Klein desafiava os professores do ensino secundário a transmitir aos alunos a riqueza da matemática contemporânea. “Minha tarefa será sempre mostrar-lhes a mútua conexão entre problemas em variadas áreas. Dessa maneira, espero facilitar-lhes a aquisição da habilidade para obter da grande massa de conhecimento um estímulo vivo para seu ensino”, escreveu Klein. O projeto

recorre à mesma inspiração dos textos originais de Klein, propondo dessa vez a inclusão nos currículos dos avanços da pesquisa ao longo do século XX. A intenção do projeto internacional é produzir um livro em linguagem acessível que transmita a conexão, o crescimento e a relevância da matemática, desde suas grandes ideias a fronteiras da pesquisa e aplicações. O século XX testemunhou avanços em diversos ramos da matemática que contribuíram para o surgimento de especializações, como a ciência da computação e a estatística, e para o desenvolvimento de tecnologias. Segundo Mario Jorge Dias Carneiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos coordenadores do projeto, os campos das probabilidades e da estatística são dois exemplos marcantes dos avanços da pesquisa. “A estatística é usada em quase todas as áreas e teve um avanço significativo no século XX. E o mesmo pode ser dito sobre a probabilidade, que também faz parte da vida cotidiana”, afirma. Segundo ele, no final do século XX e no início do XXI houve um grande sucesso no emprego de métodos probabilísticos para o estudo de problemas determinísticos. “Isso tem tornado a probabilidade um tema muito importante, quase central, na matemática. Para aprender adequadamente probabilidade é importante conhecer os métodos de contagem, tópico que no ensino básico chamamos de análise combinatória, mas isso é visto muito superficialmente na escola, tornando-se muitas vezes um terror tanto para alunos quanto para professores”, explica.

fotos Image Source/Image Source/Latinstock

tradicionais. “Não queremos reinventar o ensino, mas aprimorá-lo, tornando-o mais interessante e efetivo”, afirma Viana. Os organizadores do projeto reúnem representantes das sociedades brasileiras de Matemática (SBM), de Educação Matemática (SBEM), de História da Matemática (SBHMat) e de Matemática Aplicada e Computacional (SBMAC), além da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Para eles, o reforço na formação dos professores é essencial para levar às salas de aula a amplitude da matemática básica, cujos conteúdos, segundo avaliam, vêm sendo ministrados de forma fragmentada e mecânica. “Em geral, o ensino de matemática é realizado de maneira mecânica, baseado na introdução de conceitos abstratos sem clara compreensão e na repetição de métodos sem estimular a criatividade e a descoberta. Isso o torna ineficiente e ao mesmo tempo antipatizado pelos alunos”, diz Yuriko Yamamoto Baldin, professora do Departamento de Matemática da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), uma das coordenadoras do projeto. A ausência das conquistas recentes da matemática nos currículos provoca deficiências na formação dos alunos. “Os estudantes, quando chegam à universidade, deparam com uma forma de trabalhar a matemática que não conheceram nos ensinos fundamental e médio”, afirma.


Computador - Marcelo Viana, do

Impa, cita outro exemplo: os sistemas dinâmicos, disciplina da matemática que estuda os tipos de fenômenos que evoluem no tempo. A área, que é relativamente nova da matemática – despontou há cerca de 100 anos –, tinha a ambição de resolver problemas ligados à astronomia e à mecânica celeste, na tentativa de avaliar o comportamento futuro dos planetas e antever se iriam chocar-se uns com os outros. Acontece que, nas últimas décadas, um número cada vez maior de fenômenos passou a ser visto como sistema dinâmico complexo, como o clima, as reações químicas e os ambientes ecológicos. “Os sistemas dinâmicos podem ajudar os alunos a desenvolver conceitos em campos variados do conhecimento”, diz Viana, especialista no tema. Além dos conteúdos, há outros aspectos da pesquisa que os matemáticos querem abordar, como o uso do computador na sala de aula. “Reconhece-se que o uso de computador na pesquisa em matemática foi um marco da matemática do final do século XX, mas a incorporação do computador ou mesmo da máquina de calcular não foi consensualmente bem estabelecida nos currículos, provavelmente porque é desejável que o aluno conheça bem as quatro operações e suas propriedades”, observa Dias Carneiro. Segundo Marcelo Viana, do Impa, o uso do

computador ainda é muito restrito e poderia ser usado como um laboratório de experimentos matemáticos. A maneira como a pesquisa vem sendo feita também passa ao largo da sala de aula, segundo Dias Carneiro. “A internet permite-nos desenvolver colaborações científicas a distância. Para um matemático é essencial a troca de ideias com outros matemáticos. Se isso era feito no início do século passado por meio de cartas e encontros científicos, hoje vemos o desenvolvimento de projetos científicos conjuntos “abertos” para a colaboração. Isso quer dizer que não apenas os temas avançaram, mas a maneira que a matemática vem sendo produzida mudou significativamente no final do século”, afirma o professor da UFMG. Terezinha Nunes, professora titular do Departamento de Educação da Universidade de Oxford, na Inglaterra, afirma que a atualização da abordagem da matemática em sala de aula prevista no Projeto Klein é uma iniciativa excelente e muito bem-vinda, mas admite que não será suficiente para enfrentar um dos grandes gargalos do ensino da disciplina, que é a dificuldade de compreensão de determinados conteúdos. “Não basta ter um professor de matemática com formação mais sólida na disciplina. É preciso que os professores saibam também ensinar matemática e isso compreende conhecer as dificuldades dos alunos”, afirma Terezinha, que

dedica suas pesquisas ao processo de aprendizagem da escrita, da matemática e da leitura. A pesquisa sobre os processos de ensino e aprendizagem da matemática são o objeto de outro campo de estudo, a educação matemática, que já tem considerável desenvolvimento no Brasil. Ela cita como exemplo o aprendizado das frações. “Muitos professores ensinam as frações seguindo a mesma lógica dos números inteiros e isso causa uma enorme confusão para os alunos. É muito comum que os alunos digam que um quinto é mais do que um terço, porque o número 5 do denominador é maior do que o 3”, explica. “Não basta utilizar alegoria dos pedaços de pizza para ensinar frações, é preciso mostrar que se trata de uma relação entre dois números, um conceito complexo que muitos professores evitam”, afirma. Segundo Terezinha, esse tipo de problema é objeto de estudo não da matemática, mas da educação em matemática, daí não se resolver com o reforço na formação dos professores e a modernização dos currículos. Autora do livro Na vida dez, na escola zero, Terezinha afirma que muitas escolas ainda subaproveitam os conhecimentos práticos em matemática dos alunos, submetendo-os a práticas de ensino tradicionais. “O que observamos é que o desempenho em matemática dos alunos na escola é inferior ao da vida real”, afirma. O Projeto Klein, de fato, não tem amplitude para enfrentar todos os problemas do ensino da matemática, mas outras iniciativas gestadas por sociedades científicas estão tentando atacá-los. Uma delas, capitaneada pela Sociedade Brasileira de Matemática, é a criação de um curso de mestrado profissional a distância, amparado em instituições públicas vinculadas à Universidade Aberta do Brasil, do Ministério da Educação, voltado para reforçar a formação dos professores. A intenção é selecionar mil professores ainda neste ano, para que formem a primeira turma em março de 2011. Eles cumprirão a carga horária com treinamento a distância e também presencial. A SBM também está empenhada em rediscutir as diretrizes curriculares dos cursos de formação de professores de matemática. “Temos a obrigação de fazer essa discussão para melhorar o padrão da licenciatura”, diz Marcelo Viana. n PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

31


fabio colombini

[ Economia ]

Riquezas à mão Estudiosos oferecem caminhos para aproveitar melhor os bens da floresta Carlos Fioravanti, de Manaus fotos Fabio colombini

32

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

O

X-caboquinho, um sanduíche bastante consumido nos cafés e padarias de Manaus nos finais de tarde, dá forma e sabor aos impasses da região amazônica. Feito de pão francês, contém fatias de queijo coalho e lascas de tucumã – uma versão mais refinada traz também fatias de banana frita. O problema é que o fornecimento de tucumã – fruto de uma palmeira de 20 metros de altura do tamanho de um limão e polpa alaranjada – é irregular, como o de cupuaçu, açaí e outras frutas da floresta. Quando falta tucumã na cidade, os comerciantes têm de buscar cada vez mais longe, e nem sempre o que encontram é o ideal para lanches, sucos e sorvetes. José Alberto da Costa Machado, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), conta que uma equipe do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) desenvolveu clones de tucumã que produzem frutos a partir de cinco anos – as variedades atuais só produzem, em geral, depois de 10. Agora o problema é que o CBA, criado em 2002 com a missão de converter conhecimento básico


em aplicado, ainda não tem identidade jurídica. Portanto, não pode passar adiante as mudas que ajudariam a regularizar a produção da matéria-prima dos sanduíches de final de tarde. “A institucionalização é um grande problema na Amazônia”, diz Costa Machado, colaborador temporário do CBA. O CBA ocupa um prédio amplo em uma área de 12 mil metros quadrados na entrada do distrito industrial de Manaus e funciona sob a administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). “As instituições não trabalham harmonicamente; às vezes trabalham em oposição.” A possibilidade de aproveitar os bens da floresta como o tucumã norteou a elaboração do livro Um projeto para a Amazônia no século 21: desafios e contribuições, publicado pelo Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) de Brasília e assinado por Bertha Be-

cker, geógrafa política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco de Assis Costa, economista do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Wanderley Messias da Costa, geógrafo político da Universidade de São Paulo (USP). O livro nasceu de duas incumbências que os três autores receberam em 2007 do então ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger. A primeira era transformar em possibilidades de ação o plano estratégico do governo federal para a Amazônia, considerando duas realidades distintas, a do leste e a do oeste da região – que Bertha Becker chama de Amazônia sem mata e Amazônia com mata – e o fato de ser o espaço de mais de 20 milhões de pessoas, não apenas uma floresta. A segunda tarefa era encontrar formas de aproximar a vertente desenvolvimentista, que promove o uso sem limites da terra e dos recursos naturais, e a ambientalista radical, que considera a região um “santuário inviolável”, na expressão de Messias da Costa. A resposta para os desafios amazônicos, detalhada no livro, pode estar na aplicação do conceito de serviços ambientais, em que a floresta preservada é vista como uma fonte de riquezas a ser explorada com planejamento, sem pressa. “Os serviços ambientais não têm apenas valor econômico, mas também estratégico”, pondera Bertha Becker. O valor estratégico da natureza “qualifica o capital natural da Amazônia como

Cupuaçu, cacau, pupunha, tucumã e biribá: conhecimento sobre frutas ainda pouco aproveitado

um componente de poder” pela “concentração de estoque e de serviços sem equivalente no planeta”, segundo ela. “A defesa do coração florestal decorrerá de sua utilização inovadora, e não de seu isolamento produtivo.” Extrativismo high tech - Os três au-

tores do livro consideram a necessidade de ir além da possibilidade de gerar renda simplesmente com a floresta intacta, gerando créditos de carbono que compensariam a poluição de outros países. Bertha vê o mercado de carbono como commodities, de preço baixo e praticamente fixo, “sem agregação de valor, reproduzindo o padrão primitivo característico da história do país”. Explorar outros serviços ambientais, porém, exige inovações institucionais. “A primeira e mais urgente é estabelecer o quadro regulatório, claro e consistente com os interesses nacionais e regionais”, ela argumenta. Outro desafio é estender os benefícios dos serviços ambientais ao maior número possível de pessoas. Messias da Costa reitera que as possibilidades de atividade econômica na região amazônica vão além da pecuária extensiva e da extração de madeira: “Podemos valorizar a floresta com o extrativismo high tech e os sistemas agroflorestais, que podem ser aplicados tanto nas áreas florestadas como nas devastadas”. Três sistemas produtivos, a seu ver, expressam essa alternativa de exploração sustentável: alimentos, cosméticos e fitoterápicos. Segundo ele, o setor que tem tido o melhor desempenho é o dos cosméticos – perfumes, sabonetes, hidratantes e xampus. Para ele, o sucesso nessa área se deve ao fato de os cosméticos não estarem submetidos às leis que regulam o acesso à biodiversidade e também porque “Amazônia é uma marca de impacto mundial”. Na cadeia de produção de cosméticos na Amazônia, o CBA é a instituição mais bem equipada e preparada a fazer PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

33


estudos completos, desde a pesquisa botânica básica até a elaboração do produto final, de acordo com uma análise de Alberto Cardoso Arruda, professor da UFPA, publicada na revista Parcerias Estratégicas de julho de 2009. A Embrapa Amazônia Oriental destacou-se como uma instituição atuante, que já produz sabonetes e xampus de andiroba. A Agência de Florestas e Negócios Sustentáveis (Afloram), uma autarquia do estado do Amazonas hoje extinta, incentivou a instalação de novas usinas de extração de óleos vegetais – os mais vendidos são os de copaíba, murumuru, buriti e andiroba, usados em hidratantes, protetores solares e repelentes para insetos. No entanto, Arruda observou, os produtores reclamam da irregularidade das compras das empresas, que por sua vez se queixam da baixa qualidade dos óleos e da ausência de parâmetros sanitários regulatórios. “As comunidades locais organizadas em cooperativas se ressentem da ausência de políticas públicas que proporcionem conhecimento, tecnologia e controle de qualidade de seus produtos, além de financiamentos que apoiem o desenvolvimento das cadeias produtivas”, diz Arruda. Segundo ele, empresas e instituições de pesquisa ainda têm muita dificuldade em estabelecer colaborações, que o governo federal tem procurado promover, condicionando a liberação de financiamentos a parcerias com empresas. “As principais comunidades produtoras de óleo de copaíba percebem que o mercado é crescente, mas têm dificuldades para atender a essa demanda”, observa Gonzalo Enriquez, professor da UFPA que fez outra parte do estudo sobre a cadeia de cosméticos. A capacitação tecnológica é um sério gargalo. Há pelo menos sete espécies de copaíba, cada uma podendo produzir óleos distintos, que variam mesmo quando provêm da mesma planta, e nem sempre essas diferenças são valorizadas. No Acre, os produtores já colhem a copaíba diferenciando as espécies, sem misturá-las. “Já é um avanço”, ele concluiu. Por enquanto, os programas de ciên­cia e tecnologia se concentram em produtos de consumo amplo como guaraná e dendê e frutas como açaí, pupunha e cupuaçu, mas a produção de 34

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

sem identidade

conhecimento acumulada há décadas poderia levar a voos mais altos. Messias tira da estante e mostra livros de especialistas da região que descrevem plantas que, a seu ver, poderiam ser mais exploradas – e não são por causa do excesso de restrições legais e a frágil integração entre instituições de pesquisa, órgãos do governo e empresas. “Em vez de tomar energéticos importados, a rapaziada poderia tomar extrato de guaraná”, ele imagina. “A Amazônia necessita de ações pé no chão, de curto prazo, que levem à conquista de novos mercados consumidores e abram espaço para outras empresas interessadas nas oportunidades da região.”

jurídica

Dendê - Messias da Costa acredita que

O tucumã frutifica em 10 anos. Clones que produzem em cinco não podem sair do instituto

essa situação só vai mudar quando três forças – ou grupos – atuarem em conjunto. A primeira são as comunidades locais de produtores ou extrativistas, “organizadas de forma moderna, em cooperativas, e atuando como empresas formais”. A segunda são os empresários pequenos, médios ou grandes instalados nas proximidades de centros consumidores como Manaus ou Belém. O terceiro grupo, que teria o papel de conectar comunidades e empresas, são os pesquisadores de instituições públicas como Embrapa, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Paraense Emilio Goeldi, escolas técnicas federais e universidades – ou mesmo o CBA, que Messias da Costa ajudou a criar e perdeu o passo depois do malogrado acordo com a empresa farmacêutica multinacional Novartis para bioprospecção na região. Mesmo sem todas essas conexões afinadas, os bens da floresta começam a ser mais bem aproveitados. Em um dos capítulos do livro, Messias da Costa conta que em 2007, pela primeira vez, a produção mundial de óleo de dendê, favorecida pela expansão do plantio na Malásia, na Indonésia e agora na Amazônia, superou a de óleo de soja, demonstrando o potencial da aliança entre as instituições de pesquisa, organizações comunitárias e empresas. “Antes as palmeiras demoravam quatro anos para começar a produzir e hoje produzem em dois anos e com volume maior de óleo por planta”, diz ele. Em outro capítulo, Francisco Costa mostra que a economia já existente


Polo industrial de Manaus: incertezas

em torno desses produtos naturais da Amazônia é bem maior e mais dinâmica do que se supõe. Das seis trajetórias tecnológicas de base rural com que ele descreve a evolução rural da região amazônica nos últimos 16 anos, uma delas, a agroextrativista, baseada em pequenas propriedades familiares, representa 21% do valor da produção e 26% do emprego do setor rural da Região Norte. “A trajetória tecnológica de base rural é quase tão importante economicamente quanto aquela baseada em pecuária de corte de fazendeiros e empresas, que representa não mais que 25% do valor e 10,5% do emprego.” Costa verificou que a trajetória agroextrativista responde por 3,5% da área degradada e por 2,6% do balanço líquido de carbono e a pecuária por 70% nos dois casos. Ambas têm um significado estratégico para uma política de desenvolvimento com sustentabilidade. “Toda a análise das seis trajetórias, com seus movimentos distintos e relativamente autônomos, é um apelo enfático à consideração pelas políticas públicas da diversidade de estruturas e situações que conformam hoje a Amazônia”, afirma. “Valorizo a quantificação para reconhecer, com o máximo de precisão possível, a diversidade dos atores resolvendo seus problemas produtivos e configurando instituições em posições mais ou menos fortes. Quem

tem de decidir sobre políticas públicas deverá dar mais atenção a essas diferenças, sem tomar decisões lineares, que nivelam todos os atores.” O livro enfatiza os aspectos institucionais da formulação e implantação de políticas públicas na Amazônia, em especial os ligados às organizações de governo. É que os três autores do livro conhecem o governo federal por dentro. Bertha Becker tem sido chamada há décadas como consultora em projetos de vários ministérios. Os outros dois não foram apenas consultores. Messias da Costa entra e sai do governo federal desde 1991 – seu último cargo foi o de diretor de programas e projetos da Secretaria da Amazônia por cinco anos (1995-2000). “Sei quais são os limites das ações do governo. Tive oportunidade de elaborar e aplicar políticas públicas”, diz ele. Francisco Costa foi coordenador-geral de planejamento da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), que sucedeu a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), de 2003 a 2005. Frutas - Na ADA, Francisco Costa

reuniu produtores, distribuidores, vendedores, pesquisadores e outros participantes do polo – ou APL, arranjo produtivo local – de frutas do Nordeste paraense. Esse APL representa a articulação entre produtores de frutas e in-

dústria de polpa, sucos e óleos que vem ganhando significado, a ponto de ser hoje um dos principais itens do comércio com outros estados e países, depois da mineração, pecuária e madeira. Reunidos todos os meses, os 22 representantes de empresas, ONGs, organizações governamentais que aceitaram o convite da ADA “souberam o que se passava com os outros, expuseram seus problemas, muitos deles comuns, e saí­ ram atrás de soluções que trouxessem benefícios para todos”, relata Costa. A ele coube a tarefa de fazer com que “o planejamento e ações de estado fossem o mais próximo possível do de outros atores. Essa experiência mostrou que é possível fazer diferente, instrumentalizando políticas regionais de desenvolvimento, sem mudar tanto as estruturas de operações já existentes”, observa. No final de março, Costa Machado concluía um plano de negócios e o plano diretor do CBA. Ele achava necessário debater os documentos assim que possível com os funcionários do governo federal que pudessem ajudar a pôr o centro em efetivo funcionamento, mas sabia que não seria simples. “Existe uma espécie de recusa à industrialização da Amazônia, às vezes meio disfarçada, às vezes mais explícita”, diz. “É a ideia de que negócio e Amazônia não combinam, quando é o contrário, sem negócio, sem gerar renda, não tem Amazônia.” Ele vê sinais de esgotamento do polo industrial de Manaus, responsável por 75% dos impostos federais da região e por 100 mil empregos, “e ainda não há nada que o substitua”. “O único recurso de competitividade do polo industrial é o incentivo fiscal, que o governo estadual quer ampliar e o federal sempre tenta restringir.” “A ausência de uma política estratégica para a região me inquieta muito”, comenta Machado. “Nos últimos anos os esforços em ciência e tecnologia não tiveram unidade nem sinergia, não estavam comprometidos com um projeto de desenvolvimento.” Neste momento, porém, ele não sente muito espaço para debater as possibilidades de produzir outros bens em escala industrial na Amazônia. Em Manaus, o trânsito já emperrado tende a piorar com as obras urbanas exigidas para a cidade sediar uma parte dos jogos da n Copa do Mundo de 2014. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

35


um programa

modelo Resumo dos resultados da primeira década do Biota-FAPESP sai na revista Science Marcos Pivet ta

Bromelia balanceae

36

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

O

Biota-FAPESP divulgou um balanço de sua primeira década de existência num dos mais renomados periódicos científicos de circulação internacional. Em artigo publicado na revista norte-americana Science de 11 de junho, sete pesquisadores brasileiros fizeram um resumo dos principais resultados obtidos entre 1999 e 2008 pelo programa paulista e destacaram a importância que a iniciativa teve para a pesquisa, a formação de pessoal e a formulação de políticas públicas na área de biodiversidade no estado de São Paulo. Ocupando uma página e meia na seção Policy Forum, o texto ressaltou também o fato de que o Biota se tornou um modelo para a implantação de projetos semelhantes em

outros estados do país e no exterior. “O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] está planejando um projeto similar e, no início deste ano, a National Science Foundation [dos Estados Unidos] lançou o programa Dimensions of Biodiversity”, diz Carlos Joly, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Biota e primeiro autor do artigo. “Entre 2004 e 2006 alguns coordenadores desse programa tiveram muito contato com os trabalhos do Biota.” Para Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, o Biota é um dos programas mais bem-sucedidos da Fundação. “Ao lado de criar ciência da mais alta qualidade, o Biota tem gerado impactos muito importantes nas políticas públicas para conservação no estado de São Paulo e tem sido considerado um modelo para outros programas do mesmo tipo no Brasil e fora.” Os números alcançados pelo programa paulista em 10 anos são impressionantes. Cerca de 1.200 pesquisadores e estudantes participaram de 94 projetos do Biota, dos quais 20 ainda estão em andamento. A maioria dos cientistas era do estado de São Paulo,

eduardo cesar

[ reconhecimento ]


mas pelo menos 100 colaboradores eram de outros estados do Brasil e 80 do exterior. Foram descritas mais de 1.800 novas espécies da fauna e da flora, e dados sobre outras 12 mil espécies já conhecidas pela ciência foram coletados e arquivados em 35 grandes coleções biológicas que podem ser consultadas on-line. Desde 2001 o programa mantém uma revista científica eletrônica, Biota Neotropica, que é indexada por bases de dados internacionais. Lançada em 2002, a iniciativa BIOprospecTA, de procura de novas moléculas da natureza que tenham interesse econômico, resultou em três patentes. Uma dessas moléculas está na fase de testes pré-clínicos (in vitro e em animais de laboratório) para averiguar seu potencial para o tratamento do mal de Alzheimer. Além de produzir uma enorme quantidade de informação técnica para ser usada por outros cientistas, o Biota teve a rara preocupação de elaborar sínteses de seus dados mais importantes na forma de mapas, fáceis de serem entendidos pelas autoridades responsáveis pela formulação da política ambiental e de conservação da biodiversidade. Dois desses mapas, sobre as regiões prioritárias para a restauração e conservação da biodiversidade, foram adotados pelo estado de São Paulo como parâmetro legal para guiar suas ações e diretrizes nesse campo, inclusive para a escolha de novas áreas destinadas a abrigar parques e unidades de conservação. A redação de quatro decretos governamentais e 11 resoluções na área de meio ambiente contém referências específicas a informações do Biota. No artigo da Science, os pesquisadores ainda citam os pontos em que o desempenho do Biota, programa que a cada dois anos é avaliado por um comitê internacional independente, ficou aquém do esperado em sua primeira década de existência. Segundo Joly, essas áreas – que incluem a produção de material educativo para escolas, o estudo da biologia marinha, a distribuição de espécies invasivas no estado de São Paulo e a dimensão humana das ações de conservação de biodiversidade – receberão maior ênfase na segunda fase do Biota, que pode durar até 10 anos.

O bom momento da ciência brasileira Nature elogia pesquisa nacional e destaca autonomia e força da produção de São Paulo

R

eportagem publicada na edição de 10 de junho da revista científica Nature afirma que “os cientistas brasileiros nunca viram tempos melhores”. A razão são os investimentos feitos no setor pelo governo federal nos últimos anos e o fato de muitos estados brasileiros estarem “tentando emular o rico [estado] São Paulo, que tem a mais forte tradição científica” do país. Assinado pela jornalista Anna Petherick, que cobriu a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada no fim de maio em Brasília, o texto salienta os benefícios alcançados por estados, como é o caso de São Paulo, que assumem o papel de financiar uma parte considerável de sua pesquisa independentemente da quantidade de recursos vindos de Brasília. Segundo o artigo, no ínicio dos anos 1990, quando a hiperinflação brasileira corroía as verbas nacionais para pesquisa, “o financiamento secou em outros lugares do país, mas os pesquisadores de São Paulo experimentaram uma interrupção menor”. Na reportagem, Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, lembra que, desde a Constituição de São Paulo de 1947, o estado tem legislação própria assegurando o investimento de uma porcentagem fixa de sua receita tributária em pesquisa científica. “Possivelmente nenhuma outra agência de fomento à pesquisa no mundo tem esse tipo de segurança e autonomia financeira [do governo federal]”, disse Brito Cruz à Nature.

 O artigo da jornalista faz alusão a alguns números que demonstram a força atual da ciência brasileira, como a elevação progressiva dos investimentos públicos em ciência, um processo que, em nível federal, vem desde a Presidência de Fernando Henrique Cardoso e continua nos dois mandatos de Lula. Outro dado positivo citado é o aumento no número de artigos científicos publicados por cientistas brasileiros em revistas internacionais. Como um dos grandes trabalhos feitos pela ciência brasileira, a reportagem destaca o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, agente causador do amarelinho nos laranjais, iniciativa concluída em n
 2000 e totalmente financiada pela FAPESP.
 PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

37


um programa

modelo Resumo dos resultados da primeira década do Biota-FAPESP sai na revista Science Marcos Pivet ta

Bromelia balanceae

36

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

O

Biota-FAPESP divulgou um balanço de sua primeira década de existência num dos mais renomados periódicos científicos de circulação internacional. Em artigo publicado na revista norte-americana Science de 11 de junho, sete pesquisadores brasileiros fizeram um resumo dos principais resultados obtidos entre 1999 e 2008 pelo programa paulista e destacaram a importância que a iniciativa teve para a pesquisa, a formação de pessoal e a formulação de políticas públicas na área de biodiversidade no estado de São Paulo. Ocupando uma página e meia na seção Policy Forum, o texto ressaltou também o fato de que o Biota se tornou um modelo para a implantação de projetos semelhantes em

outros estados do país e no exterior. “O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] está planejando um projeto similar e, no início deste ano, a National Science Foundation [dos Estados Unidos] lançou o programa Dimensions of Biodiversity”, diz Carlos Joly, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Biota e primeiro autor do artigo. “Entre 2004 e 2006 alguns coordenadores desse programa tiveram muito contato com os trabalhos do Biota.” Para Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, o Biota é um dos programas mais bem-sucedidos da Fundação. “Ao lado de criar ciência da mais alta qualidade, o Biota tem gerado impactos muito importantes nas políticas públicas para conservação no estado de São Paulo e tem sido considerado um modelo para outros programas do mesmo tipo no Brasil e fora.” Os números alcançados pelo programa paulista em 10 anos são impressionantes. Cerca de 1.200 pesquisadores e estudantes participaram de 94 projetos do Biota, dos quais 20 ainda estão em andamento. A maioria dos cientistas era do estado de São Paulo,

eduardo cesar

[ reconhecimento ]


mas pelo menos 100 colaboradores eram de outros estados do Brasil e 80 do exterior. Foram descritas mais de 1.800 novas espécies da fauna e da flora, e dados sobre outras 12 mil espécies já conhecidas pela ciência foram coletados e arquivados em 35 grandes coleções biológicas que podem ser consultadas on-line. Desde 2001 o programa mantém uma revista científica eletrônica, Biota Neotropica, que é indexada por bases de dados internacionais. Lançada em 2002, a iniciativa BIOprospecTA, de procura de novas moléculas da natureza que tenham interesse econômico, resultou em três patentes. Uma dessas moléculas está na fase de testes pré-clínicos (in vitro e em animais de laboratório) para averiguar seu potencial para o tratamento do mal de Alzheimer. Além de produzir uma enorme quantidade de informação técnica para ser usada por outros cientistas, o Biota teve a rara preocupação de elaborar sínteses de seus dados mais importantes na forma de mapas, fáceis de serem entendidos pelas autoridades responsáveis pela formulação da política ambiental e de conservação da biodiversidade. Dois desses mapas, sobre as regiões prioritárias para a restauração e conservação da biodiversidade, foram adotados pelo estado de São Paulo como parâmetro legal para guiar suas ações e diretrizes nesse campo, inclusive para a escolha de novas áreas destinadas a abrigar parques e unidades de conservação. A redação de quatro decretos governamentais e 11 resoluções na área de meio ambiente contém referências específicas a informações do Biota. No artigo da Science, os pesquisadores ainda citam os pontos em que o desempenho do Biota, programa que a cada dois anos é avaliado por um comitê internacional independente, ficou aquém do esperado em sua primeira década de existência. Segundo Joly, essas áreas – que incluem a produção de material educativo para escolas, o estudo da biologia marinha, a distribuição de espécies invasivas no estado de São Paulo e a dimensão humana das ações de conservação de biodiversidade – receberão maior ênfase na segunda fase do Biota, que pode durar até 10 anos.

O bom momento da ciência brasileira Nature elogia pesquisa nacional e destaca autonomia e força da produção de São Paulo

R

eportagem publicada na edição de 10 de junho da revista científica Nature afirma que “os cientistas brasileiros nunca viram tempos melhores”. A razão são os investimentos feitos no setor pelo governo federal nos últimos anos e o fato de muitos estados brasileiros estarem “tentando emular o rico [estado] São Paulo, que tem a mais forte tradição científica” do país. Assinado pela jornalista Anna Petherick, que cobriu a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada no fim de maio em Brasília, o texto salienta os benefícios alcançados por estados, como é o caso de São Paulo, que assumem o papel de financiar uma parte considerável de sua pesquisa independentemente da quantidade de recursos vindos de Brasília. Segundo o artigo, no ínicio dos anos 1990, quando a hiperinflação brasileira corroía as verbas nacionais para pesquisa, “o financiamento secou em outros lugares do país, mas os pesquisadores de São Paulo experimentaram uma interrupção menor”. Na reportagem, Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, lembra que, desde a Constituição de São Paulo de 1947, o estado tem legislação própria assegurando o investimento de uma porcentagem fixa de sua receita tributária em pesquisa científica. “Possivelmente nenhuma outra agência de fomento à pesquisa no mundo tem esse tipo de segurança e autonomia financeira [do governo federal]”, disse Brito Cruz à Nature.

 O artigo da jornalista faz alusão a alguns números que demonstram a força atual da ciência brasileira, como a elevação progressiva dos investimentos públicos em ciência, um processo que, em nível federal, vem desde a Presidência de Fernando Henrique Cardoso e continua nos dois mandatos de Lula. Outro dado positivo citado é o aumento no número de artigos científicos publicados por cientistas brasileiros em revistas internacionais. Como um dos grandes trabalhos feitos pela ciência brasileira, a reportagem destaca o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, agente causador do amarelinho nos laranjais, iniciativa concluída em n
 2000 e totalmente financiada pela FAPESP.
 PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

37


[ Fomento ]

Difusão internacional Auxílio a publicações financia traduções e estimula editoras a manter coleções científicas

A

FAPESP divulgou novas normas para a apresentação de propostas na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações, que financia parcialmente a publicação de periódicos, artigos e livros com resultados de pesquisas realizadas no estado de São Paulo. Uma das principais novidades relaciona-se com a publicação de livros, que passa a ser dividida em Livros no Brasil e Livros no Exterior. No segundo caso, a Fundação se propõe a financiar a tradução e a revisão técnica da obra. “A nova regra busca estimular a internacionalização dos resultados da pesquisa feita no estado de São Paulo e facilitar a divulgação de obras de pesquisadores paulistas em outros países”, diz Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da FAPESP e professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). “Há disciplinas, principalmente no campo das humanidades, em que a produção de obras em outros idiomas é mais complexa e o apoio à tradução busca torná-las mais visíveis e acessíveis”, afirma. Outra mudança tem a ver com o perfil da editora responsável pela publicação. Ela terá que comprovar que mantém uma coleção de obras ligadas à pesquisa. O objetivo é estimular a criação de linhas de títulos vinculados à pesquisa num número maior de editoras. A exigência de planos de distribuição, outro ponto introduzido, busca garantir que as obras sejam divulgadas amplamente. Os pedidos de auxílio podem ser feitos em qualquer época do ano por pesquisadores paulistas com título de doutor ou qualificação equivalente, para a publicação de periódicos, artigos e livros que exponham resultados originais de pesquisa. No caso dos periódicos, os recursos concedidos serão proporcionais à participação dos pesquisadores do estado de São Paulo e as publicações apoiadas terão de veicular trabalhos inéditos e avaliados

38

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

por pares. Terão prioridade os periódicos que preencham os requisitos para veiculação em forma eletrônica dentro do projeto SciELO, biblioteca eletrônica de acesso aberto, que é financiada pela FAPESP. Já os artigos devem ser resultado de pesquisas apoiadas pela FAPESP a serem divulgadas em perió­ dicos internacionais com rigorosa política editorial. Solicitações de publicação de trabalhos não resultantes de pesquisa apoiada pela Fundação serão analisadas em casos excepcionais. Pesquisadores responsáveis e principais apoiados pela FAPESP, assim como beneficiários de bolsas concedidas pela Fundação, vigentes e com Reserva Técnica, não podem solicitar auxílio para publicação de artigos, devendo fazer uso de recursos da Reserva Técnica. Caso o artigo seja escrito em colaboração com pesquisadores de outros estados ou do exterior, o apoio será proporcional à contribuição dos coautores paulistas. No caso dos livros, eles devem trazer resultados originais e inéditos de pesquisa, preferencialmente apoiada pela FAPESP. É obrigatória a apresentação de carta de interesse de ao menos uma editora referente à publicação, declarando sua responsabilidade pelo projeto, caso ele seja aprovado pela Fundação. A carta deve apresentar o orçamento total da publicação e o plano de distribuição da obra. Serão consideradas publicações aceitas por editoras com catálogo significativo de obras de cunho técnico-científico. A qualidade das obras do catálogo da editora terá peso na avaliação da proposta. O financiamento é sempre parcial e só poderá ser concedido quando não se justifique comercialmente o custeio integral da publicação por editora universitária ou comercial. Quanto aos livros no exterior, a FAPESP financia apenas tradução e revisão técnica da obra para outro idioma. Outros gastos referentes à publicação devem ser de responsabilidade da editora. n


miguel boyayan

D

[ AVALIAÇÃO ]

A batalha da qualidade Líderes de ranking ibero-americano, USP e Unicamp discutem como elevar o impacto de sua pesquisa

uas instituições paulistas, as universidades de São Paulo (USP) e a Estadual de Campinas (Unicamp), e uma mexicana, a Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), lideram um ranking de produtividade científica da América Latina, Caribe e Península Ibérica divulgado pelo grupo de pesquisa espanhol SCImago (SIR 2010). O levantamento leva em conta resumos e referências de cerca de 17 mil periódicos da base de dados Scopus, da editora Elsevier. No período de 2003 a 2008, a USP produziu 38 mil artigos científicos, a Unam, 17 mil, e a Unicamp, 15 mil. Na lista das 10 mais produtivas há cinco universidades espanholas, quatro brasileiras (além da USP e da Unicamp, figuram também a Universidade Estadual Paulista, a Unesp, na 6a posição, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, no 7o lugar) e uma mexicana, a Unam. O ranking traz dados qualitativos. Um dos indicadores é o CCP, sigla para Qualidade Científica Média, em espanhol, que mede o impacto científico de uma instituição depois de eliminar a influência de seu tamanho. Outro índice é o Q1, que mostra a porcentagem das publicações da universidade que integram o conjunto composto pelas revistas mais influentes do mundo, as 25% mais bem colocadas num ranking de publicações do SCIMago. De acordo com Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP, estes dados são importantes porque mostram onde a universidade tem espaço para avançar. “A USP vem aumentando sua contribuição em relação ao total do mundo, mas minha preocupação é com a qualidade, que pode melhorar”, afirma. No caso do CCP, a USP obteve índice de 0,81, o que significa que está 19% abaixo da média mundial de qualidade. Já no caso do Q1, a universidade tem 40,35% de suas publicações no conjunto dos periódicos mais influentes. Para efeito de comparação, a Universitat de Barcelona ostenta CCP de 1,41 e Q1 de 62,16. Segundo Zago, há um conjunto

de instrumentos que pode ser usado para melhorar o impacto e a qualidade. “Nós incentivamos nossos pesquisadores, principalmente os novos docentes, a apresentarem projetos à FAPESP. A Fundação tem um processo de análise que é reconhecidamente bom. Isso é educativo e mostra aos pesquisadores que a universidade espera que tenham produção científica”, afirma. As lideranças científicas da USP, diz o pró-reitor, já produzem com alta qualidade. Ele fez uma análise do impacto dos artigos publicados num período recente por 23 coordenadores de projetos temáticos das áreas de medicina e biomedicina, vinculados à USP, e constatou que 437 trabalhos contabilizados tiveram 11.148 citações. “O índice de citação desse grupo foi excepcionalmente bom, com 25,2 citações por trabalho. A média da Universidade Harvard é de 40 citações”, afirmou. A Unicamp enfrenta o mesmo de­ safio, com Qualidade Científica Mé­ dia 19% abaixo da média mundial e 38,18% dos artigos no rol das revistas mais influentes. O pró-reitor de Pesquisa da universidade, Ronaldo Pilli, diz que uma das prioridades é aumentar a visibilidade de sua pesquisa, estimulando seus pesquisadores a publicar em revistas de alto impacto. “Não temos a perspectiva de aumentar muito nosso número de pesquisadores. Nossa ênfase será publicar nas revistas mais influentes”, afirmou. Pilli lembra que, do ponto de vista de produção per capita, a Unicamp se destaca como a universidade pública com melhor desempenho. “Temos valores da ordem de 11 citações por trabalho após 10 anos de publicação, levando-se em conta a produção de todos os nossos pesquisadores.” A Unicamp tem incentivado a submissão de projetos a agências, apoiado a instalação de jovens docentes com valores que atingem até R$ 40 mil para os dois primeiros anos e estimulado a vinda de professores do exterior. “Serão aproximadamente 30 professores visitantes do exterior neste semestre que irão participar de programas de n pós-graduação”, diz Pilli. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

39


[ Fomento ]

Difusão internacional Auxílio a publicações financia traduções e estimula editoras a manter coleções científicas

A

FAPESP divulgou novas normas para a apresentação de propostas na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações, que financia parcialmente a publicação de periódicos, artigos e livros com resultados de pesquisas realizadas no estado de São Paulo. Uma das principais novidades relaciona-se com a publicação de livros, que passa a ser dividida em Livros no Brasil e Livros no Exterior. No segundo caso, a Fundação se propõe a financiar a tradução e a revisão técnica da obra. “A nova regra busca estimular a internacionalização dos resultados da pesquisa feita no estado de São Paulo e facilitar a divulgação de obras de pesquisadores paulistas em outros países”, diz Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da FAPESP e professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). “Há disciplinas, principalmente no campo das humanidades, em que a produção de obras em outros idiomas é mais complexa e o apoio à tradução busca torná-las mais visíveis e acessíveis”, afirma. Outra mudança tem a ver com o perfil da editora responsável pela publicação. Ela terá que comprovar que mantém uma coleção de obras ligadas à pesquisa. O objetivo é estimular a criação de linhas de títulos vinculados à pesquisa num número maior de editoras. A exigência de planos de distribuição, outro ponto introduzido, busca garantir que as obras sejam divulgadas amplamente. Os pedidos de auxílio podem ser feitos em qualquer época do ano por pesquisadores paulistas com título de doutor ou qualificação equivalente, para a publicação de periódicos, artigos e livros que exponham resultados originais de pesquisa. No caso dos periódicos, os recursos concedidos serão proporcionais à participação dos pesquisadores do estado de São Paulo e as publicações apoiadas terão de veicular trabalhos inéditos e avaliados

38

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

por pares. Terão prioridade os periódicos que preencham os requisitos para veiculação em forma eletrônica dentro do projeto SciELO, biblioteca eletrônica de acesso aberto, que é financiada pela FAPESP. Já os artigos devem ser resultado de pesquisas apoiadas pela FAPESP a serem divulgadas em perió­ dicos internacionais com rigorosa política editorial. Solicitações de publicação de trabalhos não resultantes de pesquisa apoiada pela Fundação serão analisadas em casos excepcionais. Pesquisadores responsáveis e principais apoiados pela FAPESP, assim como beneficiários de bolsas concedidas pela Fundação, vigentes e com Reserva Técnica, não podem solicitar auxílio para publicação de artigos, devendo fazer uso de recursos da Reserva Técnica. Caso o artigo seja escrito em colaboração com pesquisadores de outros estados ou do exterior, o apoio será proporcional à contribuição dos coautores paulistas. No caso dos livros, eles devem trazer resultados originais e inéditos de pesquisa, preferencialmente apoiada pela FAPESP. É obrigatória a apresentação de carta de interesse de ao menos uma editora referente à publicação, declarando sua responsabilidade pelo projeto, caso ele seja aprovado pela Fundação. A carta deve apresentar o orçamento total da publicação e o plano de distribuição da obra. Serão consideradas publicações aceitas por editoras com catálogo significativo de obras de cunho técnico-científico. A qualidade das obras do catálogo da editora terá peso na avaliação da proposta. O financiamento é sempre parcial e só poderá ser concedido quando não se justifique comercialmente o custeio integral da publicação por editora universitária ou comercial. Quanto aos livros no exterior, a FAPESP financia apenas tradução e revisão técnica da obra para outro idioma. Outros gastos referentes à publicação devem ser de responsabilidade da editora. n


miguel boyayan

D

[ AVALIAÇÃO ]

A batalha da qualidade Líderes de ranking ibero-americano, USP e Unicamp discutem como elevar o impacto de sua pesquisa

uas instituições paulistas, as universidades de São Paulo (USP) e a Estadual de Campinas (Unicamp), e uma mexicana, a Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), lideram um ranking de produtividade científica da América Latina, Caribe e Península Ibérica divulgado pelo grupo de pesquisa espanhol SCImago (SIR 2010). O levantamento leva em conta resumos e referências de cerca de 17 mil periódicos da base de dados Scopus, da editora Elsevier. No período de 2003 a 2008, a USP produziu 38 mil artigos científicos, a Unam, 17 mil, e a Unicamp, 15 mil. Na lista das 10 mais produtivas há cinco universidades espanholas, quatro brasileiras (além da USP e da Unicamp, figuram também a Universidade Estadual Paulista, a Unesp, na 6a posição, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, no 7o lugar) e uma mexicana, a Unam. O ranking traz dados qualitativos. Um dos indicadores é o CCP, sigla para Qualidade Científica Média, em espanhol, que mede o impacto científico de uma instituição depois de eliminar a influência de seu tamanho. Outro índice é o Q1, que mostra a porcentagem das publicações da universidade que integram o conjunto composto pelas revistas mais influentes do mundo, as 25% mais bem colocadas num ranking de publicações do SCIMago. De acordo com Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP, estes dados são importantes porque mostram onde a universidade tem espaço para avançar. “A USP vem aumentando sua contribuição em relação ao total do mundo, mas minha preocupação é com a qualidade, que pode melhorar”, afirma. No caso do CCP, a USP obteve índice de 0,81, o que significa que está 19% abaixo da média mundial de qualidade. Já no caso do Q1, a universidade tem 40,35% de suas publicações no conjunto dos periódicos mais influentes. Para efeito de comparação, a Universitat de Barcelona ostenta CCP de 1,41 e Q1 de 62,16. Segundo Zago, há um conjunto

de instrumentos que pode ser usado para melhorar o impacto e a qualidade. “Nós incentivamos nossos pesquisadores, principalmente os novos docentes, a apresentarem projetos à FAPESP. A Fundação tem um processo de análise que é reconhecidamente bom. Isso é educativo e mostra aos pesquisadores que a universidade espera que tenham produção científica”, afirma. As lideranças científicas da USP, diz o pró-reitor, já produzem com alta qualidade. Ele fez uma análise do impacto dos artigos publicados num período recente por 23 coordenadores de projetos temáticos das áreas de medicina e biomedicina, vinculados à USP, e constatou que 437 trabalhos contabilizados tiveram 11.148 citações. “O índice de citação desse grupo foi excepcionalmente bom, com 25,2 citações por trabalho. A média da Universidade Harvard é de 40 citações”, afirmou. A Unicamp enfrenta o mesmo de­ safio, com Qualidade Científica Mé­ dia 19% abaixo da média mundial e 38,18% dos artigos no rol das revistas mais influentes. O pró-reitor de Pesquisa da universidade, Ronaldo Pilli, diz que uma das prioridades é aumentar a visibilidade de sua pesquisa, estimulando seus pesquisadores a publicar em revistas de alto impacto. “Não temos a perspectiva de aumentar muito nosso número de pesquisadores. Nossa ênfase será publicar nas revistas mais influentes”, afirmou. Pilli lembra que, do ponto de vista de produção per capita, a Unicamp se destaca como a universidade pública com melhor desempenho. “Temos valores da ordem de 11 citações por trabalho após 10 anos de publicação, levando-se em conta a produção de todos os nossos pesquisadores.” A Unicamp tem incentivado a submissão de projetos a agências, apoiado a instalação de jovens docentes com valores que atingem até R$ 40 mil para os dois primeiros anos e estimulado a vinda de professores do exterior. “Serão aproximadamente 30 professores visitantes do exterior neste semestre que irão participar de programas de n pós-graduação”, diz Pilli. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

39


LABORATÓRIO

MUNDO

ÁGUA CONTAMINADA Muitos estudos já detectaram que a água vendida em garrafas de plástico PET contém a substância bisfenol A, uma molécula que se encaixa nos receptores de horrnônios femininos hormonal

e altera o funcionamento

tanto nas mulheres como nos

homens. Uma equipe japonesa

liderada

pelo químico Yasuyuki Shimohigashi,

da

Universidade Kyushu, agora descobriu um bisfenol A enriquecido em flúor: o bisfenol AF. Em artigo publicado na Environmental Health Perspectives, o grupo demonstra que o bisfenol AF tem uma afinidade por dois tipos de receptores

relacionados

ao

estrogênio - o alta e o beta -, respectivamente 20 vezes e 50 vezes mais fortes do que o primo bisfenol A. A molécula ativa o primeiro receptor como se fosse o próprio

MÃES EM PERIGO

o número

de mulheres que morrem durante a gestação ou nas primeiras semanas após o parto diminuiu bastante de 1980 para cá. Mas essa redução ainda está muito distante da meta que 191 países se propuseram a alcançar até 2015. Pesquisadores dos Estados Unidos e da Austrália analisaram dados sobre mortalidade materna entre 1980 e 2008 fornecidos por 181 países. Eles verificaram uma redução importante no número absoluto de mortes: baixou de 526.300 em 1980 para 342.900 em 2008 sem a epidemia de Aids, seriam 281.500 mortes em 2008. Em 1980 morriam 422 mães para cada 100 mil bebês nascidos vivos; em 1990 esse índice baixou

para 320 por 100 mil; e em 2008, para 251 por 100 mil. É um declínio de 1,5% ao ano desde 1990 e uma redução total de quase 22%, bem distante dos 75% que se espera alcançar até 2015 (Lancet). No Brasil, esse índice passou de 112 por 100 mil em 1990 para 55 por 100 mil em 2008 (redução de 51%). Três fatores contribuem para a queda: aumento da renda, do nível educacional das mulheres e do atendimento especializado.

I

DILEMA DE PREDADOR

o ituí-cavalo

(Apteronotus albifrons), um peixe elétrico típico da bacia amazônica, está ajudando pesquisadores a desvendarem um dilema energético. Quando o objetivo é encontrar

40 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

hormônio feminino e bloqueia o segundo, impedindo a ação hormonal. O resultado é um desequilíbrio que pode contribuir para o surgimento

de cânceres reprodutivos.

Não há

uma estimativa do nível de exposição a que estão sujeitos os usuários de água engarrafada em plástico.

comida, vale mais a pena nadar bem ou aguçar os sentidos? A resposta tende para a segunda opção, pelo menos para esse peixe. O órgão eletrossensorial (que emite um campo elétrico fraco que rodeia o corpo todo do peixe) é mais eficiente em detectar presas quando o peixe nada com o corpo inclinado, a cabeça apontada para o fundo - o que piora muito a hidrodinâmica, de acordo com trabalho de Malcolm MacIver publicado na PLoS Computational Biology. Órgãos sensoriais móveis como olhos ou antenas - evitam esse conflito.

MAIS

I SENSíVEIS Muita gente dirá que não há novidade alguma no fato de as mulheres serem mais sensíveis. De fato: há muito

o ituí-cavalo .•••

usa eletricidade para caçar


OS CALÇADOS DE 5.500 ANOS ATRÁS o sapato

encontrado em 2008 em uma

caverna da Armênia deve ter sido feito

\DA

e usado há 5.500 anos, de acordo com datações de amostras de couro feitas

.re a água

na Inglaterra

e nos Estados Unidos. O

PETcon-

sapato do pé direito - tamanho 35 - era

molécula le horrnô-

feito de uma única peça de couro dobra-

mamento

provavelmente

:omo nos

calçado. Em um artigo na revista PLoS One, especialistas da Irlanda, da Armê-

da sobre o pé e preenchido por grama,

liderada gashi, da

para manter a forma do

nia, dos Estados Unidos e da Inglaterra argumentam que outros sapatos encon-

tobrlu um bisfenol

b

trados na Itália e nos Alpes suíços e san-

onmental

dálias em Israel mostram quão diversos

emonstra

eram os calçados dos seres humanos há

idade por

6 mil anos. Talvez outras variações ainda

nados ao spectiva-

possam ser encontradas, ao menos onde

fortes do Ia ativa o

tido sua preservação.

as condições climáticas tenham perrni-

o próprio o a ação

~e contri~. Não há sujeitos

e não há o fato de mais lá muito

se sabe que a incidência de distúrbios psiquiátricos ligados ao estresse é mais alta nelas. A novidade apresentada no estudo liderado por Debra Bangasser, do Hospital Infantil de Filadélfia, Estados Unidos, é indicar possíveis motivos para essa diferença entre homens e mulheres (Molecular Psychiatry). Os pesquisadores verificaram

que o funcionamento dos receptores para o fator de liberação da corticotropina (CRF), molécula que orquestra a resposta ao estresse, varia conforme o sexo. Mais sensíveis a baixos teores de CRF e menos adaptáveis a grandes quantidades da molécula, as mulheres se tornam mais propensas a distúrbios como depressão e estresse pós- traumático.

Unidos, em colaboração com outros pesquisadores norte-americanos, argumenta que os estudos anteriores enfatizaram as magnitudes da elevação do mar dando pouca atenção às taxas dessa elevação. Segundo eles, prever a variação da linha da costa é bastante difícil, espacial e temporalmente, devido às diferenças entre as taxas

de acúmulo ou perda de sedimentos. No sul do estado da Louisiana, a equipe verificou que a perda de sedimentos foi maior que o ganho, resultando em inundações intensas e mudanças irreversíveis na linha de costa. A taxa de elevação do nível do mar no mundo, avaliada entre dois e quatro milímetros por ano, é seis vezes maior que a média estimada para a costa norte do golfo do México nos últimos 4 mil anos. De acordo com as previsões atuais, a taxa global de elevação deverá pelo menos dobrar até o fim do século, excedendo a taxa mais alta de elevação (cinco milímetros por ano) no golfo nos últimos 7.500 anos. De acordo com esses pesquisadores, nos últimos 9 mil anos, marcados pela elevação global do nível mar, a linha litorânea na costa leste do Texas e no litoral oeste da Louisiana permaneceu estável, depois se expandiu e por fim recuou 20 metros por ano. Mas a tendência não foi geral: enquanto isso, a região central da costa do Texas permanecia relativamente estável. Enfim: previsões não são uniformes. E podem falhar.

PREVISÃO EXAGERADA A elevação do nível do mar, com a possível destruição de cidades litorâneas, pode ter sido superestimada. Em um artigo publicado em junho na revista Eos, da American Geophysical Union, Iohn Anderson, da Rice University, nos Estados •••

Avanço do mar: pode ser menor do que o previsto

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 41


LABORATÓRIO

BRASIL

EP DE A ep

ESCUDO DE FLORESTA

desre bro, t

ta Fel Esta

A Amazônia brasileira inclui 595 áreas

estud

de proteção Que abrigam 54% do Que

causa

resta de mata. Ali estão 56% do carbono armazenado na maior floresta tropical do planeta, elemento Químico cujo destino precisa ser monitorado visando à mitigação das mudanças do clima. As áreas protegidas impedem Que boa parte do carbono amazônico vá parar na atmos-

poca

fera. Um grupo coordenado por Britaldo Soares-Filho, do Centro de Sensoria-

carnp

result

tipos do Ia]

mento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, avaliou o impacto das

Seu a

áreas protegidas e concluiu Que elas são importantes, mas não suficientes (PNAS).

por R 1-bet

O grupo verificou que entre as áreas pro-

traum

tegidas só as zonas militares não limitam o desmatamento - exceto a serra do Cachimbo, uma barreira verde nas fronteiras do Mato Grosso e do Pará. Terras indígenas, áreas de proteção integral e de uso sustentável têm efeito benéfico, sobretudo as indígenas: elas inibem o desmatamento não só na própria área, mas também em seu entorno. Os autores sugerem preservar áreas ricas em diversidade para aumentar as chances de manutenção da floresta no longo prazo. Um modelo econométrico chama a atenção também para os aspectos econômicos. O uso sustentável da terra precisa ser lucrativo para garantir a adesão dos proprtetártos

locais.

A SUBSTÂNCIA DO UNIVERSO

~

Muito se fala do LHC, o . gigantesco acelerador de partículas na Suíça, mas ele não é o único candidato a desbancar o arcabouço da física conhecido como modelo padrão. "Os neutrinos oferecem a maior possibilidade de estudar fenômenos além da teoria estabeleci da'; afirma o físico Carlos Escobar,

42 " JULHO DE 2010 " PESQUISA FAPESP 173

da Universidade Estadual de Campinas. Ele faz parte do projeto Minos do laboratório norte-americano Fermilab, que investiga o comportamento dos neutrinos, uma das partículas mais comuns no Universo. Resultados preliminares indicam que neutrinos e antineutrinos têm comportamentos distintos. "Pode ser a chave para explicar por que o Universo é dominado por matéria, embora se tenha formado com uma quantidade semelhante de antimatéria", explica Escobar. "O Universo seria bem diferente se tivesse muita antimatéria", completa. Também participam do Minos João Coelho, doutorando de Escobar, Philippe Gouffon, da Universidade de São Paulo, e Ricardo Avelino Gomes, da Universidade Federal de Goiás.

I

MEDICINA PERSONALIZADA

Uma proteína fabricada normalmente no organismo, a cofilina, pode aproximar a medicina de algo que ainda parece um sonho: diagnósticos mais precisos e prescrições sob medida para cada paciente, levando em conta o que funcionará melhor para ele. Um estudo coordenado pelo bioquímico Fábio Klamt, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, demonstrou que a quantidade de cofilina detectada no organismo pode ajudar a identificar os pacientes que precisam de tratamento mais agressivo, quais fármacos usar e quais evitar para cada paciente de câncer de pulmão de células não pequenas, um tipo de câncer que mata cerca de 1 milhão de pessoas por

na te

maio, parec mais I -pro acofil mecai


EPILEPSIA DE PERTO A epilepsia, causada por uma ação desregulada dos neurônios no cérebro, tem muitas formas. O neurologista Fernando Cendes, da Universidade

Cérebro, ainda cheio de mistérios

Estadual de Campinas (Unicamp), vem estudando o tipo mesial temporal, que causa perda de memória verbal (quando afeta o hipocampo esquerdo) e visuo espacial quando os danos são do lado direito. Ao comparar pacientes dos dois tipos com ressonância magnética funcional,

I

REJUVç:NESCIMENTO DAS CELULAS

sua equipe mostrou que a epilepsia do lado esquerdo causa uma redução maior na conectividade entre neurônios do hlpocampo, em relação ao lado direito (BMC Neuroscience). O resultado indica um papel diferente para cada lado do hipocampo e a necessidade de se tratar de forma distinta os dois tipos de pacientes. Outro avanço em relação à epilepsia vem do laboratório de Iscia Lopes-Cendes, também da Unicamp. Seu aluno de doutorado Vinícius Pascoal usou interferência por RNA para controlar, em ratos, a produção de interleucina t-beta, substância pró-inflamatória que age no cérebro contra traumas e processos patológicos. Ele mostrou que a interleucina tem um papel protetor contra as crises - o contrário do que se imaginava -, ajudando a elucidar a relação entre inflamação e epilepsia (Journal of Epílepsy and Clínical Neurophysiology). Ambos estudos integram o programa ClnAPCe, da FAPESP.

ano no mundo. Em estudo publicado na revista Cancer, o grupo estudou amostras de tumores e descobriu que pacientes com níveis mais altos de cofilina sobreviveram à doença por menos tempo. Pessoas que produzem uma quantidade maior dessa proteína parecem ser naturalmente mais propensas à metástase - provavelmente porque a cofilina está ligada ao mecanismo responsável pela mobilidade celular. O estudo mostrou uma associação entre altos teores da proteína e uma resistência aos medicamentos cisplatina e carboplatina, normalmente usados para

tratar esse tipo de câncer, o que poderá indicar aos médicos quando é necessário planejar uma terapia alternativa.

Pesquisadores brasileiros deram mais um passo no sentido de transformar pele humana em células que podem dar origem a qualquer tecido. São as células-tronco pluripotentes induzi das (iPS), produzidas no país desde 2009 (ver Pesquisa FAPESP nO 156), mas que agora renderam a primeira publicação científica nacional (Stem Cells and Development). O grupo coordenado pelo médico Dimas Tadeu Covas, coordenador do Centro de Terapia Celular (um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão apoiados pela FAPESP) e diretor-presidente da

Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, foi além de reprogramar as células da pele: fez isso usando uma combinação inédita de genes. O estudo pode ajudar a entender os mecanismos que tornam uma célula pluripotente.

I

DIANTE· DOGOL

Na próxima Copa do Mundo, talvez o torcedor seja mais benevolente com o jogador que chuta a bola para longe do gol numa decisão por pênalti. Nelson Toshiyuki Miyamoto, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, mostrou que o estresse do momento afeta o controle motor. Numa simulação em computador, 21 voluntários cobraram pênaltis virtuais, com um aproveitamento de quase 100%. A não ser que mais de 70 alunos simulassem uma torcida animada: o desempenho caía então para cerca de 80%, semelhante ao que acontece em campeonatos oficiais. A pressão da torcida leva o batedor a pensar antes de agir e pode induzi-lo a fazer uma programação motora incorreta e a tentar mudar o chute na última ••• hora (Agência USP).

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 43


CiĂŞncia


[ Bioquímica ]

Insulina e glicose bem reguladas Atividade física e ácidos graxos insaturados como o ômega-3 revertem inflamação que desencadeia obesidade e diabetes Carlos Fioravanti ilustrações Laura Dav iña

odo mundo já sabia que fazer exercícios físicos com regularidade e evitar o consumo excessivo de carnes vermelhas gordurosas ajuda a prevenir a obesidade e o diabetes, mas as explicações sobre por que essas recomendações funcionam permaneciam superficiais. Agora finalmente começa a se entender por quê: a atividade física protege a região do cérebro que regula o apetite, justamente a que é atacada pelas gorduras saturadas, como as encontradas na picanha. De acordo com estudos recentes, alguns deles feitos no Brasil, o efeito benéfico do exercício é similar ao gerado pelo consumo de outro tipo de gordura, as insaturadas da família ômega-3, encontradas em óleos de peixe de clima frio. Emergem daí novas possibilidades de deter a obesidade e o diabetes, em especial o do tipo 2, quando o organismo produz insulina, mas não a utiliza adequadamente. Uma parte desse novo conhecimento vem de uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) coordenada pelo médico endocrinologista Mário Saad. Há anos ele e sua equipe estudam as causas dos desequilíbrios orgânicos que levam à obesidade e ao diabetes. No ano passado, Lício Velloso identificou uma causa específica dessas doenças: o consumo excessivo de


gorduras saturadas de cadeia longa pode gerar uma inflamação nos neurônios de uma região na base do cérebro, o hipotálamo, que controlam a fome (ver Pesquisa Fapesp nº 156, de fevereiro de 2009). A inflamação impede o correto funcionamento do hormônio insulina, que facilita a captação de glicose nas células. Os neurônios do hipotálamo perdem a capacidade de se ligar à insulina – fenômeno conhecido como resistência à insulina, comum em pessoas obesas ou diabéticas – e a fome predomina sobre a saciedade. Agora Eduardo Ropelle concluiu que praticar exercícios físicos, além de queimar calorias, como já se sabia, ajuda a reduzir a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a restabelecer a saciedade.

R

opelle transformou camundongos normais em obesos, dando-lhes uma dieta rica em gorduras saturadas. Em seguida pôs uma parte dos animais para nadar e correr em esteira, enquanto outros permaneciam em repouso. Os camundongos que se exercitavam produziram intensamente proteínas anti-inflamatórias conhecidas como interleucinas (neste caso, de dois tipos, a IL-6 e a IL-10), como detalhado em um artigo publicado este mês na revista PLos Biology. Essas interleucinas re-

46

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Os Projetos 1. Estudo dos mecanismos de ação dos ácidos graxos em leucócitos – nº 2004/12137-1 2. Mecanismos pró-inflamatórios envolvidos no controle hipotalâmico da fome e termogênese – nº 2004/09789-7 modalidade

1 e 2. Projeto Temático Co­or­de­na­dores

1. Rui Curi – ICB/USP 2. Lício Velloso – Unicamp investimento

1. R$ 996.865,44 (FAPESP) 2. R$ 1.090.428,79 (FAPESP)

duziram a inflamação nos neurônios do hipotálamo e a insulina voltou a funcionar normalmente. Os animais desse grupo começaram a comer menos e perderam peso. “A atividade física restabeleceu o equilíbrio molecular e celular no hipotálamo”, concluiu Ropelle. Para conferir se essas duas proteínas tinham mesmo esse efeito, ele aplicou IL-6 e IL-10 no cérebro dos animais obesos que não fizeram exercícios – e também emagreceram. Camundongos geneticamente modificados, incapazes de produzir esses dois tipos de interleucinas, continuaram engordando, mesmo que nadassem e corressem. Esse trabalho levanta a possibilidade de controlar a obesidade e o diabetes intervindo em processos inflamatórios no sistema nervoso central, não necessariamente por meio das interleucinas, que podem reduzir as defesas do organismo contra microrganismos causadores de doenças. Em busca das origens mais profundas da resistência à insulina, Velloso e Saad concluíram que as gorduras saturadas se ligam a proteínas da membrana celular conhecidas como TLR-4. Os receptores acionam enzimas que bloqueiam a ação da insulina, impedindo o aproveitamento da glicose (ver Pesquisa FAPESP nº140, de outubro de 2007). “Quando ativado”, diz Velloso, “o receptor celular TLR-4 aciona o processo inflamatório e o es-

tresse celular que podem causar a morte de neurônios. A consequência pode ser um desequilíbrio no número de neurônios, se morrerem mais neurônios que acionam a vontade de comer do que neurônios que tiram a fome”. Por sorte, ele acrescenta, os ácidos graxos insaturados ômega-3 podem ter o efeito oposto dos saturados, bloqueando em vez de estimular a inflamação. Essa classificação dos ácidos graxos decorre do número de ligações químicas duplas


entre seus átomos de carbono: os ácidos saturados não têm ligações duplas, enquanto os insaturados têm pelo menos uma. O tipo de ligação química determina as estruturas espaciais (os saturados são alongados e os insaturados curvos) e suas propriedades, como a capacidade de interagir com diferentes moléculas do organismo.

V

elloso acredita que a propriedade anti-inflamatória dos ácidos graxos insaturados ômega-3 poderia ser mais aproveitada, por exemplo, para motivar mudanças na composição dos alimentos, com o reforço de gorduras benéficas, que nos últimos anos já ajudou a reduzir o risco de infarto e outros problemas cardíacos e poderia beneficiar também quem não lida bem com a glicose. No Brasil, 6 milhões de pessoas já sabem que são diabéticas e outras 6 milhões podem ainda não saber, por não terem sido diagnosticadas. Já o sobrepeso e a obesidade, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Saúde, divulgados em junho, atingem quase metade da população, tendo avançado de 43% para 47% de 2006 a 2009. “Um ácido graxo saturado, o palmítico, aciona o receptor celular TLR-4 e os processos inflamatórios que levam à resistência à insulina, enquanto outro, um insaturado, o palmitoleico, tem

efeito inverso e diminui a resistência à insulina”, observa Rui Curi, coordenador de um grupo de pesquisa nessa área no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (SP). Jarlei Fiamoncini, de sua equipe, conduziu um experimento que mostrou esse contraste claramente. Camundongos que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados da família ômega-3, o eicosapentaenoico (EPA) e o docosahexaenoico (DHA), encon-

trados em peixes de clima frio como salmão e bacalhau, apresentaram maior sensibilidade à insulina, normalizando a concentração de glicose no sangue. O excesso de glicose no sangue pode danificar nervos e vasos sanguíneos. Nesse experimento, além de normalizar os níveis de glicose, a dieta à base de óleo de peixe diminuiu a produção de enzimas que formam gordura a partir de carboidratos (açúcares). Em consequência, os animais desse grupo ganharam menos peso que os do outro, alimentados com banha de porco, rica em ácidos graxos saturados. “A gordura saturada como a de banha de porco atrapalha a captação de glicose e pode induzir a resistência à insulina”, diz ele. Os animais do segundo grupo tiveram mais fome, comeram mais e engordaram muito.

G

orduras saturadas ou insaturadas podem ter efeitos opostos também sobre as células musculares. O excesso de dois tipos de ácido graxo saturado, o palmítico e o esteárico, prejudicaram o funcionamento de células musculares cultivadas em laboratório e dificultaram a ação da insulina, enquanto os ácidos oleico, linoleico, EPA e DHA, todos insaturados, não alteraram o funcionamento das células e deixaram a insulina agir normalmente, de acordo com os estudos de Sandro Massao pESQUISA FAPESP 173 julho DE 2010 47 n

n


sobre o organismo. Como o deus romano Jano, os ácidos graxos, mesmo os do mesmo tipo, têm duas faces, de efeitos opostos. “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 reduzem a inflamação que pode levar à resistência à insulina, enquanto os insaturados ômega-6 podem agir no sentido oposto”, diz Curi, recorrendo ao efeito Jano.

O

Hirabara, professor da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). “Os ácidos graxos insaturados ômega-3 previnem a resistência à insulina induzida pelos saturados”, comenta, com base em estudos em andamento. “Não é à toa que os japoneses e os esquimós, que consomem muito peixe rico em ácidos graxos insaturados ômega-3, comparativamente com outras populações, apresentam menos problemas cardíacos, diabetes e obesidade”, diz Curi. Pode ser bom, portanto, substituir alimentos ricos em ácidos graxos saturados (óleo de soja, manteiga, gordura animal) por insaturados (óleo de oliva, de linhaça ou de girassol). Quem já cumpriu esse estágio pode seguir adiante e trocar os alimentos ricos em ácidos graxos insaturados ômega-6 pelos ricos em ômega-3. Óleos como o de milho, girassol, açafrão e soja contêm principalmente ácido linoleico, do qual derivam os outros componentes da família do ômega-6, enquanto os de canola, linhaça, noz e plantas com folhas verde-escuras em geral são ricos em alfa-linolênico, o principal componente da família ômega-3. Nem todos os ômegas, mesmo sendo insaturados, têm o mesmo efeito 48

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

s ácidos graxos podem ajudar a contornar um dos problemas que acompanham o diabetes: a dificuldade de cicatrização, que faz com que mesmo pequenos ferimentos se tornem crônicos, concluiu Elaine Hatanaka, da Unicsul. Sua equipe, com colegas da USP, examinou a ação de três ácidos graxos – ácidos oleico, linoleico e linolênico – sobre ferimentos induzidos em ratos. Os três compostos aceleraram a cicatrização. Como efeito inicial, estimularam a migração de um tipo de células do sangue, os neutrófilos, para o ferimento. Por sua vez, os neutrófilos produziram mais proteínas chamadas citocinas, que, a seu modo, facilitando a comunicação entre as células, contribuíram para o ferimento fechar, como descrito em um artigo publicado na revista Cell Biochemistry and Function. O efeito desses ácidos graxos – outro sinal do efeito Jano? – não é uniforme. “Dependendo do tipo de célula, a ação dos ácidos graxos pode ser diferente”,

diz Elaine. Além disso, em um segundo momento, ao longo do processo de cicatrização, os mesmos ácidos graxos agiram de modo inverso: fizeram com que os níveis de células e proteínas comunicadoras, momentaneamente elevados, voltassem ao normal. “Os ácidos graxos modularam a resposta inflamatória ao longo do processo de cicatrização, inicialmente ampliando a ação e a quantidade de neutrófilos e de citocinas [proteínas que facilitam a interação celular] e depois as reduzindo para os níveis normais”, comenta Elaine. Os estudos nesse campo explicam o efeito cicatrizante de óleo de plantas como a copaíba, com alto teor de ácidos oleico e linoleico, e o antigo hábito da medicina tradicional chinesa de tratar ferimentos com extrato de glândulas de grilos, ricas, agora se sabe, em ácido linoleico. Um estudo feito em camundongos na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Curitiba reforçou a perspectiva de usar ácidos graxos – principalmente os insaturados – como um reforço contra o câncer. Luiz Claudio Fernandes e sua equipe verificaram que um tipo de tumor bastante agressivo, chamado tumor de Walker, cresceu bem menos nos animais que receberam uma dieta rica em ácidos graxos insaturados EPA e DHA do que nos animais que não ganharam nenhuma


sanguínea de pessoas que não podem se alimentar por via oral], podem ser tóxicos para as células do sangue”, diz Maria Fernanda Cury Boaventura, da Unicsul. Em testes com voluntários saudáveis e com pessoas hospitalizadas, Maria Fernanda e outros pesquisadores da USP verificaram que o excesso de ácidos graxos no sangue – como ocorre em pessoas saudáveis nos momentos de jejum e com pessoas diabéticas ou obesas, não só em quem está hospitalizado e acabou de receber dieta parenteral – pode causar uma redução, ainda que modesta, no número de linfócitos, um tipo de célula de defesa.

Ácidos graxos insaturados podem remediar um dos dramas de quem tem diabetes: a dificuldade de cicatrização

dose extra de lipídios. Segundo ele, nos animais do primeiro grupo a produção de um composto derivado dos ácidos graxos, a prostaglandina-3, que freia a multiplicação celular, intensificou-se, e o tumor cresceu menos. No outro grupo, outro composto, a prostaglandina-2, que favorece a multiplicação de células normais e tumorais, é que se intensificou. Fernandes notou também, nos camundongos tratados com lipídios ômega-3, uma menor caquexia, um dos efeitos do avanço do câncer, caracterizado pela perda de apetite e abatimento geral, em razão do consumo intenso de glicose pelos tumores.

E

le acredita que o organismo humano pode apresentar rea­ ções ao menos semelhantes. “Quando colocamos células de tumor humano de cólon, pulmão e próstata em um meio de cultura com ômega-3, a taxa de proliferação do tumor cai”, diz. “Os estudos em seres humanos ainda são poucos, mas, pelo que já vimos, os efeitos colaterais indesejados dos ácidos graxos são mínimos e se limitam a flatulência ou a desarranjos intestinais.” Na UFPR, o grupo de Anete Curte Ferraz verificou que

O o ômega-3 contribuiu para reduzir a depressão em pessoas com Parkinson ou depressão severa, de acordo com um estudo duplo-cego com 31 participantes publicado em 2008 na Journal of Affective Disorders. Em outro estudo, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da USP de Ribeirão Preto e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) concluíram que o ômega-3 pode proteger os neurônios do sistema nervoso central e reduzir a frequência das crises de epilepsia (ver Pesquisa Fapesp nº 169, de março de 2010). Na Finlândia, um teste com 33 mil mulheres indicou outra possível aplicação dos ácidos graxos insaturados ômega-3 e 6, complementados por vitamina D: reduzir os surtos psicóticos em pessoas com esquizofrenia. Esses estudos reforçam a versatilidade dos ácidos graxos. Mas calma lá, nada de correr à farmácia e pedir ácidos graxos achando que esses compostos vão deixar a saúde como em seus tempos de criança. Os benefícios dependem não só do tipo como também da dosagem. “Mesmo ácidos graxos insaturados como o EPA e o DHA em doses altas, como nas dietas parenterais [aplicadas na corrente

que já se fez pode servir de motivação para os profissionais da saúde buscarem tratamentos mais adequados para as pessoas sob seus cuidados. “Alguns hospitais já usam dietas à base de óleo de peixe, mas ainda não é o ideal”, diz Maria Fernanda. “Temos de especificar as dosagens e as composições das dietas de acordo com os pacientes. A dieta parenteral à base de óleo de soja, a mais adotada mundialmente, pode contribuir para abater as defesas do organismo – em uma palavra, pode ser imunossupressora –, o que pode ser ruim para a maioria das pessoas hospitalizadas, mas poderia ser indicada para pacientes transplantados, por exemplo.” Curi acrescenta: “Não sabemos ainda dizer quanto cada dieta deve conter de cada tipo de ácido graxo, mas já sabemos quais tipos não poderiam faltar e os que não poderiam aparecer em excesso. O importante são as combinações”. Outra razão para valorizar as combinações é que os compostos puros ainda são muito caros. n Artigos científicos 1. HIRABARA, S. et al. Saturated fatty acidinduced insulin resistance is associated with mitochondrial dysfunction in skeletal muscle cells. Journal of Cellular Physiology. v. 222, n. 1, p. 187-94. 2009. 2. PEREIRA, L. M. et al. Effect of oleic and linoleic acids on the inflammatory phase of wound healing in rats. Cell Biochemistry and Function. (no prelo)

3. ROPELLE, E. R. et al. IL-6 and IL-10 anti-inflammatory activity links exercise to hypothalamic insulin and leptin sensitivity through IKK and ER stress Inhibition. PLoS Biology. (no prelo) pESQUISA FAPESP 173 julho DE 2010 49 n

n


[ Biologia ]

conexões do Autismo Neurônios apresentam disfunção química ligada ao desenvolvimento cerebral Marcos Pivet ta

U

m dos distúrbios neurológicos mais comuns em recém-nascidos, o autismo é uma doença de origem complexa que, há décadas, desafia a pesquisa médica. É provável que fatores ambientais, como a exposição a metais pesados, pesticidas ou outros agentes tóxicos, desempenhem um papel no aparecimento dessa intrigante condição ou na ampliação de seus sintomas. Mas boa parte dos estudos tenta avançar na compreensão da intrincada base genética do autismo, que pode ser causada por um número ainda desconhecido de mutações e alterações em diferentes genes ou trechos do genoma humano. Uma equipe de pesquisadores brasileiros acredita ter encontrado uma pista sobre um dos mecanismos que pode estar por trás do surgimento da doença, caracterizada por comportamentos repetitivos e uma séria dificuldade de comunicação e de integração social. A partir de dentes de leite de uma criança de 5 anos com autismo atendida no Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, os cientistas obtiveram células-tronco de pluripotência induzida (iPSC, na sigla em inglês) e as transformaram em neurônios no laboratório. Dessa forma, puderam observar uma importante altera-

ção num determinado canal de cálcio cujo bom funcionamento é de extrema importância nos estágios iniciais do processo de desenvolvimento dos neurônios. “Há menos cálcio alterando a ativação de vias celulares que podem estar relacionadas com o aparecimento do autismo nesse caso”, comenta a geneticista Maria Rita Passos Bueno, da USP, uma das autoras do estudo, ainda não publicado, que analisa a genética da doença há uma década. A obtenção da linhagem de iPSC e de neurônios com autismo ocorreu no laboratório do brasileiro Alysson Muotri na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), onde uma aluna de doutorado de Maria Rita, a bióloga Karina Griesi Oliveira, passou um ano aprendendo essa nova técnica de reprogramação celular. Os neurônios de pacientes com autismo apresentam também uma morfologia distinta das células nervosas normais, segundo a literatura científica. Eles têm um núcleo menor e suas ramificações


MeCP2 forem normalizados, os sintomas da síndrome diminuem. No autismo, a situação é mais complicada e nuançada. Não há apenas um gene ou um grupo de genes associado ao surgimento da doença. São conhecidas algumas alterações genéticas ligadas ao autismo, mas não se sabe quantas mais podem existir. A criança brasileira que forneceu os dentes para o trabalho das equipes da USP e da UCSD, por exemplo, desenvolveu o distúrbio neurológico em razão de uma rara alteração envolvendo segmentos de dois de seus cromossomos. Um trecho da sequência genética normalmente encontrada no cromossomo 3 trocou de lugar com um pedaço do cromossomo 11. Esses chamados rearranjos do carió­ tipo, do conjunto de cromossomos de um organismo, podem eventualmente resultar em doenças. “Menos de 5% dos autistas apresentam rearranjos cromossômicos”, diz Karina. No Centro de Estudos do Genoma Humano, os pesquisadores caracterizaram outros dois casos de autismo devido a esse tipo de anormalidade genética, um com um rearranjo nos cromossomos X e 2 e outro com alteração nos cromossomos 2 e 22. Com o

auxílio do pesquisador Matthew State da Universidade de Yale, Karina conseguiu precisar o local exato em que os cromossomos dos três pacientes estudados se romperam. Às vezes, a ruptura se dá no meio da sequência de um gene, que, avariado, perde sua funcionalidade. Se for um gene importante, o problema pode causar distúrbios. “Se encontrarmos mais mutações ou rearranjos genéticos associados ao autismo e a problemas na ativação desse canal de cálcio, a hipótese de que essa via química é realmente importante para o aparecimento da doença ganhará força”, diz Maria Rita. Se a ideia se mostrar correta, os pesquisadores poderão, no futuro, averiguar a ação de fármacos que atuam nessa via química em modelos animais com quadro similar ao autismo ou diretamente em neurônios humanos, derivados de células iPSC. “Podemos tentar desenvolver novos compostos ou mesmo testar moléculas já conhecidas que hoje estão disponíveis nas bibliotecas de drogas das empresas de biotecnologia. O uso de neurônios derivados de iPSC de cada paciente para a triagem de novas drogas é o primeiro passo para uma medicina n personalizada”, afirma Muotri.

fotos karina griesi oliveira

são em número reduzido. “Isso pode significar que há um problema de desenvolvimento ou de maturação dos neurônios”, afirma Muotri. A hipótese parece fazer sentido, visto que a equipe do brasileiro em San Diego encontrou resultados semelhantes ao estudar os neurônios de pacientes com outra desordem do desenvolvimento cerebral, a síndrome de Rett, obtidos igualmente a partir de células iPSC derivadas da pele. Embora apresente alguns sintomas similares ao autismo clássico, esse distúrbio afeta quase exclusivamente as garotas e tem uma causa bastante precisa: mutações no gene MeCP2, localizado no cromossomo X, causam a imensa maioria dos casos da doença. Esse gene contém as instruções para a síntese de uma proteí­ na, também denominada MeCP2, que é importante para o desenvolvimento do cérebro e atua como uma espécie de chave bioquímica para a regulação de outros genes. Anomalias que afetam a produção dessa proteína acabam alterando o padrão de funcionamento de outros genes. Coincidentemente, no caso dos neurônios derivados de iPSC dos pacientes com síndrome de Rett ficaram constatadas alterações em vias químicas que também dependem do cálcio para serem ativadas, uma disfunção similar à encontrada no paciente brasileiro com autismo. “Pode ser que a proteína MeCP2 seja importante para a regulação da via de cálcio”, diz Muotri. Rearranjo de cromossomo - No es-

tágio atual dos estudos, é impossível afirmar se o canal de cálcio está implicado em todos os casos de autismo (e de outras desordens neurológicas similares) ou em apenas um pequeno número de manifestações da doença. Especificamente na síndrome de Rett, o quadro é mais simples. A causa genética da doença é conhecida e modelos animais mostram que, se os níveis da

Neurônios de autista (alto) derivados de células iPSC (ao lado): alterações na morfologia PESQUISA FAPESP 173 julho DE 2010 51 n

n


alessandra marins/ufv

ricardo Solar/ufv


[ Ecologia ]

Os bons companheiros

D

Densidade ideal beneficia sociedade

urante um trabalho de campo nos anos 1990, Og de Souza precisou fazer uma compra um tanto incomum em São Gotardo, interior de Minas Gerais. Ele entrou às pressas num dos poucos armazéns dessa cidade de 30 mil moradores e pediu mil rolos de papel higiênico. Mas não qualquer um. Precisava de papel sem branqueamento nem perfume, “daquele que ainda traz as letrinhas do jornal com que foi feito”, lembra. O atendente estranhou o pedido, mas Souza preferiu deixar a dúvida no ar. “Se eu explicasse”, diz, “ele não acreditaria”. De fato é difícil imaginar que o papel teria uso científico: isca para capturar cupins. À custa de muito papel higiênico e um trabalho meticuloso – muitas vezes é preciso analisar a mandíbula ou a forma do tubo digestivo dos insetos para diferenciar uma espécie de outra –, Souza vem ajudando a esclarecer a função dos cupins na reciclagem do elemento químico carbono e os fatores que levam esses insetos devoradores de madeira a escolherem suas fontes de alimento na natureza. “Os cupins são uma espécie-chave para o funcionamento do ecossistema onde vivem e podem gerar mais benefícios do que danos para a agricultura”, afirma Souza, atualmente pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. O trabalho de Souza também apresenta uma possível resposta para o chamado dilema de Darwin, um paradoxo com o qual o naturalista inglês deparou no século XIX enquanto preparava sua obra A origem das espécies. Naquele momento era difícil explicar como uma situação aparentemente desvantajosa poderia ser favorecida pela seleção natural. Razão de muitos dos estudos com animais que vivem em sociedades grandes e complexas como as das formigas e das abelhas, esse dilema, no caso das quase 2.800 espécies conhecidas de cupins, pode ser assim definido: qual seria o benefício da vida em sociedade se a maior parte dos indivíduos não se reproduz, uma vez que em cada ninho apenas o rei e a rainha procriam e os operários e os soldados são estéreis?

Densidade populacional influencia longevidade de cupins Francisco Bicud o

Em parceria com o físico Octávio Miramontes, da Universidade Nacional Autônoma do México, Souza parece ter encontrado uma resposta: a vida em sociedade, por alguma razão não bem compreendida, aumenta a longevidade dos insetos. Individualmente, os cupins estéreis parecem sair perdendo porque não transmitem diretamente suas características genéticas às gerações futuras. Mas se reproduzem de forma indireta quando ajudam os pais a produzir irmãos férteis, com quem partilham parte do genoma – um ganho que é potencializado quando têm grande longevidade. No Laboratório de Termitologia da UFV, a equipe de Souza conduziu uma série de experimentos com base na premissa de que existe uma densidade de indivíduos que facilita a interação entre eles e favorece a vida em sociedade. Souza usa o exemplo de um passageiro em um ônibus. Se o ônibus está vazio, o passageiro não tem com quem se comunicar. Com o veículo lotado, a pessoa não consegue interagir com todas as outras e surgem grupos menores e fragmentados de relações. Por fim, na chamada situação ideal, existe uma proporção de passageiros que permite a cada um deles trocar informações com todos os outros. “Nossa suspeita era de que a vida em sociedade, em grupos com densidade adequada, de alguma forma permitiria aos cupins viver mais”, explica Souza, que calcula a densidade ideal dividindo a área que um indivíduo ocupa em determinado local pela área total disponível. No caso dos cupins, essa proporção fica entre 0,12 e 0,2: juntos, todos os cupins ocupam no máximo 20% da área. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

53


dade ideal seja duradoura e relevante, uma vez que foi observada em situações de altíssimo estresse, como de fome e envenenamento. Contato natural - Embora não se co-

nheçam técnicas para definir a densidade ótima nos cupinzeiros, Souza argumenta que ela também deve existir na natureza. “Há indícios de que esse padrão de agrupamento ocorre em quase tudo, de robôs a formigas.” O pesquisador da UFV acredita ainda que, nas colônias naturais, a densidade oscile o tempo todo em torno do cenário ótimo. Em um cupinzeiro, uma rainha põe cerca de 80 mil ovos por dia, quase um ovo por segundo. Nesse cenário, operários que vivam oito horas a mais contribuiriam indiretamente para o sucesso reprodutivo da colônia: eles aliviariam o trabalho da rainha, que nesse tempo poderia produzir outros 30 mil ovos. Ao mesmo tempo, a longevidade é também vantajosa para o operário estéril: quanto mais cupins, maior a chance de surgirem irmãos que viram reis e rainhas e passam adiante os genes dos estéreis, resolvendo o dilema de Darwin. Desse trabalho também surgem possíveis aplicações práticas, como a definição do momento mais adequado para combater os cupins que infestam os armários de casas e apartamentos. “Se há maior tolerância aos inseticidas em grupos com proporção ideal de inalessandra marins/ufv

Num primeiro experimento o grupo de Minas pôs os cupins em tubos de ensaio sem acesso a alimento nem água. Quando permaneciam isolados (um inseto em cada tubo), os cupins sobreviviam por no máximo 100 horas. Em grupo, cada indivíduo podia viver até 250 horas. Durante os testes os pesquisadores não observaram canibalismo, o que poderia explicar a vida mais longa. “Nessa época, ainda não sabíamos qual era a densidade ideal”, conta. “Ajustamos essa variável e consideramos os cenários de superpopulação de cupins no estudo seguinte, que confirmou as vantagens da densidade adequada [proporção adequada de indivíduos num grupo].” Em outro teste, os pesquisadores aplicaram uma gota de inseticida em cada cupim e separaram os insetos em três grupos distintos: um com poucos indivíduos; outro com a proporção ideal; e um terceiro superpopuloso. No primeiro e no terceiro grupo, o tempo máximo de vida foi de 38 horas. No cenário de boa sociabilidade, os cupins sobreviveram por 46 horas – oito horas a mais que os outros grupos. A equipe de Souza agora investiga os fatores que influenciam a longevidade. “Há indícios de que o contato social dispare processos enzimáticos que, durante certo tempo, reduzem o potencial tóxico do veneno, neutralizando o efeito do inseticida”, diz. Ele acredita que a influência da sociabili-

Cupinzeiro em tronco de árvore no Cerrado 54

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

“Nossa suspeita era de que a vida em sociedade de alguma forma permitiria aos cupins viver mais” divíduos, o mais eficiente seria aplicar medidas de controle quando a população do ninho está acima ou abaixo dessa densidade”, diz Souza. Mais recentemente o pesquisador de Viçosa conseguiu responder a outra pergunta que o intrigava desde que começou a estudar cupins em 1985: por que no ambiente natural esses insetos infestam alguns troncos mortos e preservam outros? Em busca da explicação Souza iniciou outro experimento em 2004, num terreno vizinho a sua chácara em Coimbra, a sudeste de Belo Horizonte. Ele e a bióloga Ana Paula Albano Araújo, à época sua aluna de doutorado, espalharam rolos de papel higiênico – celulose pura, o principal carboidrato das plantas e fonte de energia para os cupins – sobre o solo. Em alguns desses rolos registraram a presença de formigas, predadoras naturais dos cupins. O objetivo era verificar se a presença desses insetos ameaçadores influenciaria a busca de comida pelos cupins. No outono, início da temporada de temperaturas mais amenas, os cupins levaram em média 107 dias para se espalhar pelos rolos maiores e 68 dias para colonizar os menores, quando o papel continha formigas. De modo geral, os cupins ocuparam mais rapidamente os rolos livres de perigo (sem formigas) e avançaram mais avidamente sobre os maiores, dominados em apenas 42 dias, ante 66 para ocupar os menores. No verão a experiência produziu o mesmo padrão. Os cupins gastaram 352 dias para invadir os rolos menores também povoados por formigas e 224 dias para ocupar os maiores. Sem formigas por perto, os cupins agiram mais


ricardo solar/ufv

rapidamente. Novamente ocuparam os rolos maiores em 140 dias, bem antes de dominar os menores, em 220 dias. Na avaliação de Souza, os cupins parecem avaliar a relação entre o custo e o benefício. “A pouca disponibilidade de alimentos não compensa o esforço de colonizar uma área pequena”, explica. E se mostraram atentos aos predadores, preferindo áreas com menor risco. Prospecção - Os cupins literalmente

usam a cabeça para escolher a madeira que consumirão. Eles batem a cabeça contra o bloco de madeira e avaliam as vibrações produzidas, demonstrou Theodore Evans, da Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Austrália (CSIRO), em estudo de 2005 na PNAS. “A cabeça deles funciona como uma espécie de sonar”, explica Souza. Em outro estudo, conduzido em uma área de Mata Atlântica em Conceição da Barra, no Espírito Santo, Souza e a bióloga Fernanda Sguizzatto de Araújo verificaram que, além de gostar de árvores grandes, os cupins preferem as mortas. De acordo com o trabalho, publicado este ano na Sociobiology, a probabilidade de haver galerias de cupins ultrapassava 50% nas árvores mortas cujo tronco alcançava 40 centímetros de diâmetro ou mais. Esse mesmo percentual de infestação só foi observado em árvores vivas com tronco de diâmetro de pelo menos 80 centímetros. As árvores que já morreram podem ser consumidas por inteiro, enquanto nas vivas os cupins só conseguem atacar a casca. “Mais uma vez a disponibilidade de alimento parece influenciar a escolha”, reforça Souza.

Formigas são os principais predadores dos cupins

Em um desdobramento desse trabalho, Souza conseguiu explicar com mais detalhes o papel que os cupins desempenham no ciclo do carbono, que entra na composição de gases da atmosfera e da matéria orgânica constituinte de plantas e animais. Depois de mortos, os troncos em decomposição se misturam ao solo formando o húmus, que é digerido por bactérias. É um processo lento – calcula-se que um tronco grande leve entre 50 e 100 anos para ser consumido apenas por esses microrganismos –, que os cupins aceleram. Eles consomem a celulose disponível no solo, digerem-na e em seguida liberam carbono para a atmosfera na forma de gás carbônico (CO2), segundo artigo de 2009 no Bulletin of Entomological Research. A atuação dos cupins na degradação da celulose pode ser facilmente observada pela cor do solo. Ele é mais claro quando as colônias são eficientes no processamento do húmus e marrom-escuro nas áreas livres de cupins. Como o húmus contém água e outros nutrientes, além de celulose, é interessante que os cupins não o consumam completamente. Ao mesmo tempo, o processamento pelos cupins permite que o carbono volte às plantas como CO2, conforme explica Souza. Esse equilíbrio é importante para a agricultura. “Os índios Kaiapó sabem muito bem disso e usam pedaços de cupinzeiros para adubar covas de cará e de batata-doce”, conta o pesquisador.

Mais recentemente ele vem se dedicando a analisar outra característica curiosa das colônias de cupins: a convivência harmônica de muitas espécies diferentes desses insetos. Há registros de mais de 1.500 espécies de insetos que vivem em cupinzeiros. Há ainda sete gêneros diferentes de cupins habitando o mesmo ninho, aparentemente sem conflitos. O segredo do contato pacífico parece ser determinado pelo estômago. “As espécies apresentam dietas variadas e não disputam comida”, diz Souza. Ele também suspeita que, não raro, indivíduos de espécies diferentes da que colonizou o cupinzeiro consigam passar despercebidos, graças a uma camuflagem química: um composto exalado pela cutícula (a camada que recobre o esqueleto dos insetos), capaz de enganar os donos do condomínio. Em artigo deste ano na PLoS Biology, pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, demonstraram que a diversidade de espécies não está apenas nos túneis dos cupinzeiros: onde há cupinzeiros existe também maior diversidade de plantas e animais. “Os cupins”, afirma Souza, “são importantíssimos para a manutenção da biodiversidade e o equilíbrio ecológico n de uma determinada região”.

Artigos científicos 1. ARAÚJO, F. S. et al. Bottom-up effects on selection of trees by termites (Insecta: Isoptera). Sociobiology. v. 55, n. 3, p. 725-34. 2010. 2. DE SOUZA, O. et al. Trophic controls delaying foraging by termites: reasons for the ground being brown? Bulletin of Ento­ mological Research. v. 99, p. 603-09. 2009. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

55


[ Ciências da terra ]

A última peça do Gondwana

O fechamento dos blocos da América do Sul

O sumiço do antigo oceano Clymene (em azul-claro) marca o fim da montagem de todas as partes do Gondwana

Amazônia

São Francisco

Rio Apa Paraná

Antigo oceano que isolava a Amazônia dos demais blocos da América do Sul secou há 520 milhões de anos

A

história cronológica de Gondwana, o antigo supercontinente austral que incluía a maior parte das terras hoje situadas no hemisfério Sul, está sendo reescrita por pesquisadores brasileiros e norte-americanos. De acordo com novas datações de rochas e análises do campo magnético presente em trechos de uma cadeia montanhosa do Brasil Central, o evento final que levou à formação do supercontinente ocorreu 100 milhões de anos mais tarde do que se pensava. O desaparecimento de um oceano, Clymene, que separava a Amazônia dos demais blocos da futura América do Sul, se deu 520 milhões de anos atrás.

 “Antes trabalhávamos com a ideia de que o fechamento do Clymene tivesse ocorrido há cerca de 620 milhões de anos”, afirma o geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), um dos autores do trabalho, publicado na edição de março da revista científica Geology. “Agora sabemos 56

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Luís Alves

Rio da Prata

que a Amazônia passou muito tempo separada dos demais fragmentos da América do Sul e do resto de Gondwana por esse oceano.” A existência desse mar interior rasgando o coração do antigo Brasil é uma proposta desse grupo de pesquisadores. Seu nome foi retirado da mitologia grega. Clymene era a mulher do titã Iapetus. O oceano foi assim batizado para enfatizar sua conexão com outro oceano, o grande Iapetus, que banhava na mesma época o hemisfério Sul. 

 A junção dos fragmentos originais da América do Sul deixou marcas no relevo na forma de elevações, visíveis até hoje. O estudo pormenorizado das características de uma dessas cicatrizes geológicas, a Faixa Paraguai, levaram os pesquisadores a fixar uma nova data para o final do processo de montagem do Gondwana. A Faixa Paraguai é um grupo de elevações que marca a zona de colisão, ou sutura no jargão dos geólogos, entre o maior dos antigos blocos sul-americanos, a Amazônia, e as demais partes do continente. A rigor, ela é parte de uma enorme


O Projeto Sedimentação após as glaciações do Neoproterozoico: Um estudo integrado das capas carbonáticas do Brasil e da África - nº 05/53521-1 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Ricardo Trindade - IAG/USP investimento

R$ 127.962,86 e US$ 13.669,00

e à intensidade do campo magnético da Terra armazenado nos minerais presentes nas rochas e sedimentos dessas montanhas. Esses materiais têm algo como uma bússola embutida em seu interior, um sinal que permite deduzir onde ficavam os polos magnéticos num momento da história evolutiva do planeta e fornece pistas sobre a movimentação dos continentes no passado remoto. No caso das amostras da Faixa Paraguai, os estudos indicam que a conformação não retilínea da cadeia de montes é compatível com os registros

Região de Nobres, em Mato Grosso: uma das áreas estudadas ben mcgee

cadeia de montanhas que se estende desde a fronteira do Maranhão com o Pará, passando pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, até o sul da Argentina. “É notável que essas montanhas apresentem uma forma curva”, comenta o geó­ logo norte-americano Eric Tohver, da University of Western Australia, outro responsável pelo trabalho. “Em Mato Grosso, a direção da cadeia é oeste-leste. Do Mato Grosso do Sul até o Paraguai é norte-sul.” Com financiamento da FAPESP e da National Science Foundation dos Estados Unidos, Tohver participou do estudo durante os três anos em que fez pós-doutorado na USP com a equipe de Trindade e Cláudio Riccomini.

 A antiguidade das montanhas da Faixa Paraguai, da qual faz parte a serra das Araras, em Mato Grosso, foi determinada por meio da datação das argilas depositadas no fundo do antigo oceano Clymene. Usando uma variação da técnica normalmente empregada para calcular a idade de certos tipos de falhas geológicas e terremotos, o método mede a quantidade de dois isótopos do elemento argônio (40Ar e 39Ar) nas rochas. Os resultados sugerem que a formação das montanhas – e, portanto, o fechamento do oceano Clymene – ocorreu há cerca de 520 milhões, uma centena de milhões de anos depois do que se pensava. 

 A segunda análise usada para amparar essa conclusão diz respeito à direção

paleomagnéticos arquivados em seus minerais. “Os vetores magnéticos seguem a curva das montanhas”, diz Toh­ ver. As análises atestam também que a cadeia, na verdade, foi um dia reta, mas, em seguida, foi dobrada por um movimento de rotação sobre um eixo vertical. Esse tipo de ajuste é comum de ocorrer em lugares onde houve o choque e a acomodação de antigos blocos de terra, como se deu no Brasil Central quando o Clymene desapareceu. Até os anos 1980 era dominante a ideia de que o Gondwana havia adquirido seus contornos definitivos de uma só vez. Todas as peças constituintes do supercontinente austral, porções antigas e relativamente estáveis da crosta continental denominadas crátons pelos geólogos, teriam se encaixado umas nas outras mais ou menos ao mesmo tempo. Nas últimas décadas, ganhou força a hipótese de que a gênese do supercontinente foi um processo menos pontual e que seu derradeiro ato ocorreu justamente no centro do Brasil, onde nem todas as peças desse quebra-cabeça geológico tinham encontrado um ponto justo de encaixe. Segundo esse novo modelo, ao contrário do resto do Gondwana, cujas partes já estavam unidas e acomodadas, a América do Sul ainda estava fracionada em blocos há pouco mais de meio bilhão de anos. Existiam os crátons Amazônia, São Francisco (ligado à África), Rio Apa, Paraná, Luís Alves e Rio da Prata. Com exceção dos Andes, que ainda não haviam se formado, as partes principais do nosso continente estavam próximas umas das outras, mas ainda apartadas pelo Clymene (ver quadro). O oceano teve de fechar para que os blocos de terra finalmente se encaixassem. Esse foi o derradeiro movimento na montagem do Gondwana, que incluía peças das atuais América do Sul, África, Oceania, Antártida, n Índia e península Arábica.

Marcos Pivet ta Artigo científico TOHVER, E. et al. Closing the Clymene ocean and bending a Brasiliano belt: Evidence for the Cambrian formation of Gondwana, southeast Amazon craton. Geology. v. 38. n. 3, p. 267-70. mar. 2010. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

57


[ Geologia ]

De carona no vapor Interação de água com rochas facilitou o acúmulo de cobre e a formação de ametistas Carlos Fioravanti

N

as profundezas do aquífero Guarani, o reservatório subterrâneo que abastece as cidades do sudeste e sul do Brasil, a temperatura da água não deve passar de 60 graus Celsius (oC). Mas essa água já esteve bem mais quente, a ponto de alterar a composição das rochas que recobrem o aquífero e, à medida que subia para a superfície, formar esferas de cobre e depósitos de ametista. Uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) concluiu que a água do aquífero Guarani deve ter chegado a 130oC há cerca de 135 milhões de anos, quando dinossauros carnívoros corriam atrás de dinossauros herbívoros nas provavelmente descampadas planícies do sul e sudeste do Brasil. As análises de rochas indicaram que a água deve ter fervido e permanecido na forma de vapor ao longo de 1 milhão ou 2 milhões de anos, enquanto uma porção de magma líquido saía da pluma Tristão da Cunha, que esquentou toda a região sul e sudeste da América do Sul, e se acomodava em meio à camada de basaltos já cristalizados. O vapor de água deve ter atravessado os basaltos, liberado átomos de cobre dos minerais e os conduzido até cavidades esféricas e fraturas em que o cobre se acumulou. Do mesmo modo, o vapor de água, ao liberar, transportar e acumular minerais enquanto se afastava do centro da Terra, pode ter favorecido a formação de depósitos de ametista, variedade de quartzo de cor violeta por causa de impurezas como manganês ou ferro, no sul do país. Com essa hipótese, conceitos mais antigos sobre a formação desses minerais vão por água abaixo. “Os depósitos de cobre e de ametista dessa região, a Província Vulcânica Paraná, devem ter-se formado no máximo a 150oC, como resultado

58

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173


fotos eduardo cesar

da interação da água e vapor com os basaltos e não a 1.200oC, em consequência do esfriamento da lava basáltica, como se pensava”, afirma o geólogo Léo Afraneo Hartmann, professor da UFRGS e coordenador da equipe que há cinco anos examina as variações na composição das rochas que recobrem o aquífero. Essa camada conhecida geologicamente como Grupo Serra Geral chega à superfície no sul de Minas Gerais, depois se espalha em profundidades que atingem 1.800 metros nos estados de São Paulo e Paraná e sobe para 800 metros abaixo da superfície, no Rio Grande do Sul. “Todos os testes estão confirmando essa nova hipótese.” Durante dois anos, ao longo do doutorado orientado por Hartmann, Víter Magalhães Pinto coletou amostras de cobre de até três metros de profundidade em 85 locais do distrito de Vista Alegre, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seu propósito era entender por que o cobre, ali, em vez de jazidas como em outras regiões do Brasil, forma esferas de baixo grau de impurezas cujas dimensões variam de meio punho adulto fechado a até 200 quilogramas, pesando de 500 gramas a 200 quilogramas. Os lavradores as encontram ao revolverem a terra e, mesmo que não formem um volume suficiente para serem exploradas comercialmente, podem ser derretidas e moldadas com relativa facilidade na forma de panelas. Os nativos da região sul utilizavam esse cobre para fazer pontas de lanças e flechas. Na UFRGS e na Austrália, onde fez parte do doutorado, Víter analisou a sucessão de minerais acumulados nessas cavidades e frestas. “O cobre foi a última fase de deposição de minerais nas cavidades das rochas”, concluiu Víter, contratado em janeiro como professor da Universidade Federal de Roraima. Portanto, ele pensou, o cobre deveria ser mais recente que os outros minerais e teria sido retirado dos minerais piroxênio e magnetita, que compõem os basaltos, pelo vapor de água. Detalhados em um artigo em fase de publicação na revista International Geology Review, esses achados convergiram com a pesquisa de doutorado de Lauren Duarte, também orientada por Hartmann. Lauren examinou as ametistas do município gaúcho de Ametista

Ametista (à esquerda) e cobre nativo: talvez em jazidas

do Sul e de Artigas, no Uruguai, dentro de geodos alongados com até quatro metros de altura. Ela e Hartmann concluíram que essas pedras preciosas deviam ter se formado como resultado da ação do vapor de água sobre a camada de basalto, como descrito em um artigo publicado em 2009 na revista Journal of Volcanology and Geothermal Research. “Dois físicos teóricos, os professores Marcos Vanconcelos e Joacir Medeiros, aqui da UFRGS, nos ajudaram muito com as modelagens matemáticas da temperatura e da pressão da água que explicavam o que víamos em campo”, relatou Lauren, contratada no ano passado como professora da UFRGS. Desde 2008 ela integra a equipe de um laboratório que desenvolve tecnologias que levem ao melhor aproveitamento econômico de resíduos minerais e de gemas como ágata e ametista. Água de ouro - “Na Serra Geral ain-

da hoje a água quente, embora não tão quente como antes, continua atravessando as rochas que recobrem o aquífero”, diz Hartmann. As águas chegam mornas na estância termal de Iraí, norte do Rio Grande do Sul, e em algumas cidades paulistas traz sílica dissolvida. Durante duas décadas, Hartmann, com sua equipe, examinou como a água, combinada com enxofre e cloro a temperaturas superiores a 150oC, facilitou a formação de depósitos de ouro na Amazônia, no Uruguai e nos Andes. Apoiado por financiamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimen-

to Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), Hartmann continua indo a campo com sua equipe. Ele planeja em agosto ir para Quaraí, oeste do Rio do Grande do Sul, com pesquisadores, estudantes de pós-graduação e membros da Sociedade Brasileira de Geologia e do Serviço Geológico do Brasil. A seu ver, pode haver tanta ametista no pampa quanto na serra gaúcha, em Ametista do Sul. “O distrito gemológico Los Catalanes, no Uruguai, do outro lado da fronteira, tem megajazidas de ametista e do lado de cá ainda não encontraram jazidas, mas deve ter”, diz ele, com base em dois artigos em fase de publicação – um na Geological Magazine e outro no International Geology Review. Hartmann acredita também que o cobre pode ter formado jazidas e não apenas depósitos pequenos e esparsos, ao longo da Serra Geral. “Na China já encontraram e estão explorando jazidas de cobre de origem semelhante”, diz. “Os indícios que vimos até agora no sul do Brasil são sinais de que pode haver jazida, mas só procurando sistematicamente para saber.” n Artigo científico DUARTE, L.C. et al. Epigenetic formation of amethyst-bearing geodes from Los Catalanes gemological district, Artigas, Uruguay, southern Paraná Magmatic Province. Journal of Volcanology and Geothermal Research. v. 184, p. 427-36, 2009. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

59


[ Física ]

Atração enigmática

Nova teoria ajuda a explicar comportamento de íons diluídos em água Salvad or No gueira

Q

uando Isaac Newton se inspirou na queda de uma maçã para elaborar a lei da gravidade, o físico e matemático inglês estava bastante confiante de que esse fenômeno acontecia sempre do mesmo modo: a maçã caía para baixo, em direção ao centro da Terra. Qual não seria a surpresa de Newton se, em uma ocasião ou em outra, a fruta caísse, por exemplo, para cima? O assombro que ele provavelmente demonstraria talvez fosse semelhante ao dos pesquisadores que tentam entender o comportamento no mundo microscópico de partículas eletricamente carregadas (íons) diluídas na água. A teoria quase centenária sobre as interações dessas partículas sugere que elas deveriam sempre se manter afastadas da região em que a água encontra o ar, a chamada interface água-ar. Mas experimentos feitos em laboratório e simulações em computador indicavam que isso não acontecia com determinados íons – em especial os de carga elétrica negativa, que parecem atraídos para essa região. Após um século, o mistério começa finalmente a ser desfeito graças a uma nova teoria desenvolvida sob o comando do físico americano-brasileiro Yan Levin, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em trabalhos publicados no final de 2009 na prestigiosa revista científica Physical Review Letters, Levin e seu grupo demonstram que é possível restabelecer a capacidade de previsão teórica do comportamento dessas partículas se os pesquisadores deixarem de tratá-las da forma simplista e prática, como esferas com carga positiva ou negativa localizada em seu centro. Ao considerá-las pequenas esferas com carga elétrica central, os teóricos conseguiam predizer uma gama variada de comportamentos dessas partículas. Mas restavam enigmas como a atração seletiva para a superfície da água. Na natureza, porém, os íons não são esferas rígidas como bolas de bilhar. O que transforma átomos ou moléculas eletricamente neutros em íons é a perda ou ganho de partículas de carga elétrica negativa (elétrons) – quando, no balanço geral, há mais cargas positivas do que negativas o íon apresenta carga positiva; e no caso de haver mais cargas negativas do que positivas o íon tem carga elétrica negativa. O que complica a história é que os elétrons em geral não se comportam como partículas pontuais. Eles obedecem

60

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

a regras da teoria quântica, a física do mundo submicroscópico, que muitas vezes contrariam a intuição. O que isso quer dizer? É que eles se comportam como se fossem uma nuvem difusa ao redor do átomo ou da molécula. Alguém que tente medir a posição de um elétron terá mais chance de encontrá-lo em determinada região da nuvem. Mas a definição precisa de onde ele está só acontece quando a partícula é de fato observada. Antes da medição, é como se ela estivesse em todos os lugares possíveis ao mesmo tempo – por isso os físicos dizem que o elétron é uma onda de probabilidade. Mas esses detalhes não devem nos incomodar, uma vez que até hoje os pesquisadores que trabalham com a física quântica não sabem interpretar o que a teoria realmente significa no que diz respeito à natureza das partículas e ao mundo em suas menores escalas. Apesar de pouco compreensível, a física quântica representa com bastante precisão o que se passa no mundo das partículas. Com ela é possível calcular as ondas de probabilidade que se ajustam perfeitamente aos resultados obtidos em experimentos.


A interpretação do que acontece com os íons na interface água-ar começou a mudar quando Yan Levin decidiu verificar o que aconteceria caso se considerasse que, em vez de localizada no centro do íon como se imaginava, a carga se distribuísse de forma desigual pela superfície do íon – efeito conhecido como polarizabilidade. Essa distribuição desigual é produzida pelo campo elétrico gerado pelas moléculas de água – cada átomo de hidrogênio de uma molécula tem carga positiva e se conecta ao oxigênio, com carga negativa, de outra, criando ligações químicas (pontes de hidrogênio). Os íons perturbam essas ligações gerando uma competição entre os dois efeitos. Números compatíveis - No caso dos

íons grandes e altamente polarizáveis, as pontes de hidrogênio prevalecem e empurram esses íons para a interface águaar, o oposto do que previam as teorias antigas, explica Levin. Foi exatamente isso que ele observou nos experimentos em laboratório, em particular com íons negativos produzidos pela dissolução de sais contendo elementos químicos halogênios (cloro, bromo, iodo e flúor).

Os cálculos teóricos produzidos por Levin e seus colegas correspondem perfeitamente às observações experimentais. Eles já fizeram as contas para os íons produzidos por esses sais na interface água-ar e agora pretendem trabalhar com ácidos, para ver se o efeito é similar. O grupo também pretende investigar nos próximos meses o efeito de soluções de sais em interação com proteínas. Sabe-se que, no caso de proteínas diluídas em água, o comportamento de moléculas na interface água-proteína pode ser bem parecido com o que ocorre nas interfaces entre água e óleo ou água e ar. Esse conhecimento será importante para compreender por que determinados sais induzem a precipitação (e outros a estabilidade) das proteínas, moléculas responsáveis por praticamente tudo o que ocorre no metabolismo dos seres vivos. Na opinião de Levin, caso se mostrem corretas, suas equações podem ser aplicadas em situações bem diversas. É possível, por exemplo, que elas ajudem a compreender certas nuances da evolução da vida na Terra. “Houve momentos na história do planeta em que aconteceram extinções em massa nos oceanos,

eduardo cesar

Íons: concentração inesperada na interface entre a água e o ar

que podem ter se dado pela diminuição de íons nos mares”, lembra. “Com a nova teoria, também poderemos investigar qual é o limite antes que as proteínas se precipitem por causa do sal.” Outro fenômeno que pode ser explicado por essa nova teoria é a degradação do ozônio na baixa atmosfera. Acredita-se que, próximo à superfície dos oceanos, gotículas (aerossóis) de água atuem na destruição desse gás – e na consequente redução de sua concentração. De acordo com a teoria anterior sobre o comportamento dos íons, a degradação do ozônio nessas regiões ocorreria em taxas muito menores que as observadas na realidade. Levin acredita que, também nesse caso, a teoria proposta por seu grupo apresente resultados mais próximos n dos obtidos experimentalmente. Artigos científicos 1. LEVIN, Y. Polarizable ions at interfaces. Physical Review Letters. v. 102. p. 147803134. 10 abr. 2009. 2. LEVIN, Y. et al. Ions at the air-water interface: an end to a hundred-year-old mystery? Physical Review Letters. v. 103, p. 2578021-24. 18 dez. 2009. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

61


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

I

Notícias

• Música

Blues na bossa nova o artigo "A bossa nova e a influência do blues, 19551964", de Bryan McCann, da Universidade Georgetown (Estados Unidos), considera as conexões entre blues e bossa nova pouco reconhecidas na literatura sobre bossa nova mas muito importantes para o desenvolvimento do estilo. Analisando as gravações do circuito samba-jazz em Copacabana, no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1960, o texto traz à luz uma prática de blues, tanto na estrutura de 12 compassos como na utilização da escala blues como matéria de improviso, bastante comum naquela época. O artigo explica o papel de figuras-chave como Booker Pittman, Moacir Santos (jato) e Paulo Moura na transmissão de uma influência do blues no Rio de Janeiro e seus efeitos na bossa nova. TEMPO-VOL.14-N°28NITERÓI - JUN. 2010

• Pedagogia

Rousseau e a educação O trabalho "A invenção do Emílio como conjectura: opção metodológica da escrita de Rousseau', de Carlota Boto, da Universidade de São Paulo, tem por propósito refletir sobre o pensamento pedagógico de Iean-Iacques Rousseau. Para isso, a análise centra-se na leitura da obra Emílio ou da educação, publicada em 1762. O texto procura cotejar a leitura de Emílio com a análise de comentadores, de modo a proceder à revisão bibliográfica sobre o tema. A hipótese aqui defendida é a de que Emílio não é apenas um livro sobre educação. Rousseau enfatiza, no texto, sua preocupação quanto ao estabelecimento da caracterização do "ser" da criança. Nesse sentido, ele queria procurar, na infância de maneira geral, vestígios do homem em estado de natureza. Ao fazer isso, estabelece uma periodização da vida e do aprendizado segundo o autor. Denunciando o descaso de sua época relativamente à figura da criança, crítico do modelo educacional veiculado pelos colégios religiosos de seu

62 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

tempo, Rousseau descreve a condição da criança, ao mesmo tempo que inventa um menino imaginário, que deveria ser educado de acordo com os critérios da natureza. A educação do menino Emílio pode ser compreendida como um libelo contra o severo tratamento oferecido às crianças de verdade. Segundo o filósofo, não se era capaz de "ver" a criança. Sendo assim, a escrita Emílio não tem a finalidade de estabelecer prescrições pedagógicas, pois Rousseau cria o menino apartado da sociedade. O objetivo ali era outro: o autor pretendia identificar na criança sua essência. A figura do Emílio era, assim, um método para operar o pensamento, escreveu o pesquisador. EDUCAÇÃO

E PESQUISA

- VOL. 36 - N° 1 - SÃO PAULO -

ABR.201O

• Administração

Conflitos em empresa familiar O estudo "Fotografias de família pela ótica das sucessoras: um estudo sobre uma organização familiar", de Fernanda Tarabal Lopes e Alexandre de Pádua Carrieri, da Universidade Federal de Minas Gerais, teve como objetivo analisar os vínculos estabelecidos entre o indivíduo e o trabalho na organização, que caracterizam sua permanência ou não na empresa da família. Para tanto foi realizado um estudo com as indicadas sucessoras de uma organização familiar. Através das histórias de vida dos sujeitos buscou-se compreender os vínculos estabelecidos entre as filhas que permanecem no negócio da família e a que abandona a empresa, por meio do entendimento do não vínculo. A abordagem psicanalítica, aliada às teorias sobre o vínculo social, forneceu importantes contribuições para a análise do fenômeno em questão. Os resultados demonstraram que tanto a permanência como a saída do indivíduo da empresa não se relacionam apenas a questões organizacionais, mas também àquelas oriundas do âmbito familiar, de ordem psicológica. A emergência de tais questões demonstrou que os vínculos subjetivos e as relações psíquicas observadas entre os atores envolvidos estavam imbricados à racional idade empresarial, que se configurou como reflexo de dramas vivenciados no espaço familiar. As análises tecidas no trabalho mostram a ponta de um iceberg, que tende a não ser considerado nas discussões sobre estas organizações. REVISTA - N°

3-

DE ADMINISTRAÇÃO CURITlBA

CONTEMPORÂNEA

- MAIO/JUN. 2010

- VOL. 14


• Psiquiatria

clínica

Perda de neurônios em Alzheimer Com a descoberta de que a neurogênese constitutiva persiste no cérebro adulto, surgiu a hipótese na literatura de que a doença de Alzheimer poderia ser superada, ou pelo menos melhorada, visto que a geração de novos neurônios poderia ajudar a compensar a perda de neurônios na doença. No trabalho "Enriquecimento ambiental como estratégia para promover a neurogênese na doença de Alzheimer: possível participação da fosfolipase Az", de Evelin L. Schaeffer, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, foi revisada a literatura sobre a neurogênese endógena no cérebro de sujeitos e modelos animais com Alzheimer, os efeitos de atividade cognitiva sobre a neurogênese e a relação entre a enzima fosfolipase A2 (PLA2) e a neurogênese. A base de dados MedLine foi pesquisada utilizando as palavras-chave doença de Alzheimer, atividade cognitiva, fosfolipase A2, neurogênese e neuritogênese. A revisão da literatura evidenciou neuroproliferação aumentada no cérebro com Alzheimer, no entanto os novos neurônios falham em se diferenciar em neurônios maduros. Uma estratégia não farmacológica, ambiente enriquecido, aumenta a neurogênese (incluindo amadurecimento neuronal) em animais experimentais. Relação entre PLA2 e neurogênese tem sido demonstrada em modelos experimentais in vitro e in vivo. Os dados indicam que o enriquecimento ambiental (com estimulações cognitiva e física) poderia ser uma estratégia apropriada para promover a neurogênese endógena na doença de Alzheimer e sugerem a participação da PLA2 na neurogênese promovida por estimulação cognitiva. REVISTA

DE PSIQUIATRIA

CLÍNICA

- VOL. 37 - N" 2 -

identificar rapidamente qualquer fonte de contaminação. A adoção de Boas Práticas Agrícolas (BPA) durante a produção de produtos hortícolas é pré-requisito para que o plano de APPCC obtenha sucesso. A Produção Integrada (PI) tem como objetivo principal elevar os padrões de qualidade e competitividade da olericultura e fruticultura brasileiras aos níveis de excelência requeridos pelo mercado internacional. O foco atual é a busca pela manutenção dos valores funcionais das hortaliças após a colheita, por meio da utilização de técnicas de manuseio que assegurem a inocuidade e a rastreabilidade, sem prejuízo de todos os atributos de qualidade anteriormente garantidos. O trabalho "Produção segura e rastreabilidade de hortaliças': de Leonora M. Mattos, Celso Luiz Moretti e Iriani R. Maldonade, da Embrapa Hortaliças, Marcelo A. de Moura, da Universidade Federal de Viçosa, e Ester Yoshie Yosino da Silva, da Universidade de Brasília, aborda um conjunto de tecnologias que disponibiliza ao consumidor produtos seguros e rastreáveis, sem que haja perda de seu valor nutritivo e com qualidade sensorial ótima. HORTICULTURA

BRASILEIRA

- VOL. 27 - NO 4 - BRASÍLIA-

OUT.!DEZ. 2009

• Ciências agrárias

Doenças respiratórias em animais

SÃO PAULO - 2010

• Nutrição

Tecnologia para hortaliças A cada dia que passa o consumidor está mais consciente de que a saúde está diretamente relacionada a uma dieta balanceada e segura. A preocupação com o consumo de alimentos com propriedades funcionais vem crescendo pelo fato de os alimentos apresentarem atividades antioxidantes. Entretanto, o consumo de hortaliças in natura também podem apresentar riscos à saúde. Os principais riscos potenciais de frutas e hortaliças (foto) estão relacionados às contaminações química e microbiológica, que podem ocorrer no vegetal durante a sua produção. Com o aumento da competitividade nas diferentes cadeias agroindustriais, os produtores têm buscado oferecer produtos com maior qualidade e de maior valor agregado, sem perderem de vista a segurança dos alimentos. Uma forma de gerenciar perigos para a segurança dos alimentos é monitorar todo o processo desde a produção até a sua distribuição. Para tanto, é necessário implementar um sistema de rastreamento combinado com procedimentos de garantia de qualidade do tipo APPCC (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle), a fim de minimizar as possibilidades de contaminação alimentar e

1

-

As espécies reativas do oxigênio (ERa) são moléculas instáveis e extremamente reativas capazes de transformar outras moléculas com as quais colidem. As ERa são geradas em grande quantidade durante o estresse oxidativo, condição em que são afetadas moléculas como proteínas, carboidratos, lipídios e ácidos nucleicos. No estudo "Espécies reativas do oxigênio e as doenças respiratórias em grandes animais", de Andreza Amaral da Silva e Roberto Calderon Gonçalves, da Universidade Estadual Paulista, campus de Botucatu, são discutidos os principais conceitos sobre os radicais livres e as ERa: principais tipos, sua formação e a forma como atuam sobre as estruturas celulares, provocando lesão tecidual significativa. Os principais sistemas de defesa antioxidantes e a influência do aumento na produção dessas ERa no trato respiratório de grandes animais também são discutidos, dando ênfase ao envolvimento das ERa em doenças como a pneumonia em ruminantes e na obstrução recorrente das vias aéreas e a hemorragia pulmonar induzida por exercício em equinos. CIÊNCIA

RURAL

-

VOL. 40 -

N°4 -

SANTA MARIA

-

ABRIL 2010

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo' níveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 63


LINHA DE PRODUÇÃO

MUNDO

I

NOVA ARMA PARA COMBATER O AVC o acidente

vascular cerebral (AVC),

conhecido como derrame, é uma das doenças que mais matam no mundo. No Brasil são cerca de 100 mil óbitos por ano e outros milhares de pessoas com sequelas permanentes. Para abrandar esse quadro, pesquisadores da empresa Insera Therapeuthics, dos Estados Unidos, criaram um dispositivo para remover o coágulo que causa o entupimento do vaso no cérebro e provoca o AVC. Batizado de Shelter, o equipamento é constituído por um cateter, um invólucro exterior para conter os coágulos capturados e um filamento metálico interno que

Teste do cateter em simulador de coágulo

captura e filtra a massa coagulada. O conjunto é introduzido numa artéria da perna do paciente e dirigido até o local da lesão para a retirada do coágulo. O tratamento

convencional é feito com

drogas que dissolvem o problema. O Shelter foi modelado em cadáveres e a expectativa da Insera é realizar testes com humanos até 2013 para, em seguida, obter a aprovação das autoridades regulatórias do setor da saúde.

TV A LASER ECONÔMICA

I MAIS

A dúvida entre escolher uma televisão de plasma, LCD ou LED poderá se

tornar mais complicada com uma n'ova tecnologia desenvolvida pela empresa Prysm, da Califórnia, nos Estados Unidos, que promete uma economia

64 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

de até 75% no consumo de energia em comparação com os atuais aparelhos, aliada a uma imagem de altíssima qualidade. Chamada de Laser Phosphor-based Display (LPD.), a tecnologia combina diodos de laser, semelhantes aos usados em DVDs, com um espelho multiface giratório. Na tela de fósforo, minúsculos arranjos são dispostos em camadas sobre a superfície interna do vidro (ou polímero) e estes emitem luz nas cores vermelha, verde ou azul quando excitados por um laser, produzindo imagens brilhantes e de alta qualidade. Inicialmente as novas TV s estarão presentes em outdoors e telões de estádios, mas a expectativa é de que dentro de três a cinco anos estejam competindo com os aparelhos atuais.

NANOESPONJAS CONTRA O CÂNCER

Há algum tempo os pesquisadores tentam desenvolver dispositivos médicos capazes de levar drogas para o local exato de um tumor ou lesão dentro do organismo do paciente, sem atingir tecidos e regiões saudáveis vizinhas. A mais recente novidade nessa área são nanoesponjas, do tamanho aproximado de um vírus, criadas por pesquisadores das universidades de Washington, Emory, e Vanderbilt, todas nos Estados Unidos. Os dispositivos foram preenchidos com drogas anticâncer e por uma substância que só permite sua liberação quando elas encontram as células cancerígenas. Ao se deparar com as células tumorais, ligam-se a sua superfície ou são sugadas para dentro, começando a liberar o conteúdo farmacológico de forma controlada. Em testes iniciais com animais, as nanoesponjas, feitas de poliéster, foram de três a cinco vezes mais eficazes do que medicamentos usados no tratamento tradicional de quimioterapia. Estudos de toxicidade ainda precisam ser realizados antes que se iniciem ensaios com humanos. A pesquisa foi financiada pela Fundação Nacional de Ciência (NSF) e publicada na revista Cancer Research (10 de junho).


LÂMPADA DE PLÁSTICO Um novo tipo de célula solar de plástico, desenvolvida

por pesquisadores

queses, pode levar iluminação

dinamara milhões

de pessoas que vivem em regiões rurais da África sem acesso à energia elétrica. As luminárias misturam uma forma mais estável de polfmero como substância ativa da célula solar, para ser mais durável, com uma fonte de luz LED (diodo emissor de luz) como alternativa para as poluentes e insalubres lamparinas de querosene. A lâmpada de plástico foi concebida como luz de leitura para crianças em idade escolar, sob a coor-

Feitas de polímero e LEDs, elas acendem à noite

denação do pesquisador Frederik Krebs, do Laboratório Nacional de Risoe, da Universidade Técnica da Dinamarca (DTU). Protótipos das luminárias foram testados por estudantes de Zâmbia e mostraram que o conceito é funcional. Durante o dia os painéis solares são deixados ao sol e à noite enrolados em forma de um cone que emite luz. Apesar da ainda baixa taxa de conversão de energia, eles custam muito menos que as tradicionais células de silício.

I

CIRCUITOS DE GRAFENO

Uma nova geração de computadores com capacidade de processamento mais veloz poderá ser criada no futuro usando nanocircuitos de grafeno, material mais promissor para substituir o silício. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia, Laboratório de Pesquisa Naval e Universidade de Illinois, dos Estados Unidos, conseguiram desenvolver um processo simples e eficiente para criar nanofios baseado na técnica de nanolitografia termoquímica (TCNL), ajustando as propriedades eletrônicas do óxido de grafeno e permitindo transformá-Io de um material isolante em um condutor. Outra pesquisa na mesma área, feita no

Instituto Politécnico Rensselaer, também nos Estados Unidos, resultou em um novo método de produção de grafeno. A novidade é que a fabricação é feita em temperatura

ambiente, gastando menos energIa. Os autores da descoberta acreditam que o avanço permitirá uma produção em larga escala do nanomaterial. Desde a descoberta do grafeno em 2004, na forma de folhas com um átomo de espessura, pesquisadores do mundo todo buscam uma forma economicamente viável de produzir o material em grandes quantidades e com c,listo razoável.

I

FUNGO PRODUZ BIODIESEL

Pesquisadores da Universidade Rey Iuan Carlos, de Madri, e da Universidade de Múrcia, ambas da Espanha, conseguiram produzir biodiesel do fungo Mucor circinelloides, sem a necessidade de extrair o óleo de grãos ou outro tipo de biomassa por esmagamento. Nos processos tradicionais de produção de biodiesel a partir de fontes vegetais é necessário o cultivo de plantas oleaginosas, extrair o óleo e fazer a transformação química pela reação de transesterificação para a formação do biodiesel. Pelo novo método, o fungo é submerso em uma cultura que promove a fermentação do microrganismo e o faz secretar o próprio óleo sem precisar utilizar as etapas de esmagamento e transesterificação. A análise do biodiesel mostrou que ele atende aos requisitos estabelecidos pelos padrões norte-americanos e europeus.

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 65


LINHA DE PRODUÇÃO

BRASIL

LODO SUBSTITUI ADUBO MINERAL o lodo

de esgoto doméstico pode substituir

inte-

gralmente o uso do nitrogênio na adubação mineral ~a cana-de-açúcar, como mostra pesquisa coordenada pelo professor Cássio Hamilton Abreu Junior, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP), apoiada pela FAPESP na modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa com o valor de R$ 71.289,34. Os testes feitos em áreas cultivadas do Grupo Cosan Cana-de-açúcar: aumento de 12% na produção

indicam ainda que, quando o resíduo recebeu complementação

de potássio, houve um aumento de

12% na produtividade

da cana. O lodo consegue

substituir em até 30% o fósforo na adubação, como mostraram os experimentos em campo. Apesar de

I

CENTRO DA IBM PROMETE AVANÇOS

A IBM anunciou a abertura de um novo laboratório de pesquisas no Brasil, o IBM Research - Brasil, que tem como foco o desenvolvimento de tecnologias mais inteligentes. O centro de pesquisas vai se dedicar à descoberta, exploração e logística dos recursos naturais nos setores de petróleo e gás, dispositivos inteligentes que podem ser criados utilizando-se avanços na área de semicondutores e "sistemas humanos" inteligentes. O laboratório será o primeiro de pesquisas da IBM na América do Sul e o nono global. Ainda não foi definido o local onde ele será instalado, mas as pesquisas terão início imediato nos prédios da empresa em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os pesquisadores também

irão trabalhar para criar e implementar inovações que serão usadas em grandes eventos esportivos que o Brasil irá sediar, incluindo a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

I

EXAME DE SALIVA DETECTA DENGUE

Pesquisadores da Faculdade de Ciên~ias Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram uma técnica que utiliza saliva e urina, em vez de sangue, para detectar contaminação pelo vírus da dengue.

66 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173

ser um produto abundante por conta do aumento crescente das estações de tratamento

de esgoto, a sua aplicação em

culturas agrícolas deve ser feita segundo os critérios exigidos por norma do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão do Ministério do Meio Ambiente, porque também pode conter patógenos, metais pesados e compostos orgânicos.

A detecção' é feita pela amplificação de uma parte do material genético do vírus no termociclador, um aparelho utilizado principalmente em pesquisas de biologia molecular. "Usamos um corante fluorescente para que ele se ligue no produto amplificado", diz o professor Victor Hugo Quintana,

~

que coordena a pesquisa. O aparelho detecta o aumento da intensidade da fluorescência, informação que é passada para o computador e analisada pelos pesquisadores. Por enquanto, ela só foi testada em dois pacientes, mas em breve será avaliada em uma população mais ampla, em crianças no município de Ribeirão Preto. "O exame de saliva e urina é uma alternativa para ser utilizada em casos especiais, como crianças recém-nascidas e de até 2 anos de idade, em que é mais complicado coletar as amostras de sangue", diz Quintana.


RESíDUOS TRANSFORMADOS

s

e

[o

o.

I

WI-FI MOVIDO A ENERGIA SOLAR

Um sistema de comunicação sem fio alimentado por energia solar foi desenvolvido no Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) pelos professores Marcelo Knorich Zuffo, Roseli de Deus Lopes e pelo engenheiro Hilel Becher. O sistema, chamado de Wi-fi Solar, é indicado para áreas ao ar livre e possui quatro módulos: comunicação por meio de um roteador, painel solar fotovoltaico, baterias recarregáveis que garantem a operação quando há baixa irradiação solar e um módulo de controle de energia. Dois sistemas Wi-Fi Solar estão em funcionamento, instalados em postes de iluminação na Cidade Universitária. Eles operam no mínimo por oito horas diárias e são acessados por mais de 50 usuários, que transferem cerca de 1 gigabyte de informação. Entre as principais vantagens do novo sistema

Dois resíduos nobres descartados em aterros industriais, a raspa de couro e a sobra de um polímero usado como revestimento no para-brisa dos carros para impedir o estilhaçamento do vidro, foram reciclados para dar origem a um novo produto, com características ideais para ser usado no solado de calçados. "Fizemos ensaios de resistência ao desgaste, ao rasgo e de colagem e o produto final mostrou ter todas as qualidades necessárias para concorrer com o solado de borracha natural': diz o pesquisador José Donato Ambrósio, do Centro de Caracterização e Desenvolvimento de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (CCDM-UFSCar), que

sem fio está a eliminação da infraestrutura de cabos elétricos para instalação, além da redução de gastos com manutenção e mão de obra de técnicos. Agora os pesquisadores querem transferir a tecnologia a uma empresa, para que seja transformada em produto.

desenvolveu o compósito à base de resíduos de couro com polivinil em parceria com Lidiane Costa, Alessandra Marinelli e Elias Hale Iunior, A ideia de trabalhar nesse compósito surgiu em 2006, após visitas a fábricas de calçados, na cidade de Iaú, e de luvas e aventais de couro, usados como equipamentos de proteção para trabalhadores, em Bocaina, ambas no interior paulista. "Da raspa do couro usada para fazer luvas e aventais, somente um terço é aproveitado, o restante é descartado em aterros sanitários", diz Ambrósio. O descarte em aterros é necessário porque o material contém, entre outras substâncias, óxido de cromo, utilizado no processo de curtir o couro. "Disperso no ambiente, pode contaminar lençóis freáticos, rios e plantas:'

FIBRA DE COCO RECIELADA Um material compósito

feito com a fibra do coco e plásti-

co,s reciclados foi desenvolvido

pelo Instituto

Nacional de

Tecnologia (lNn, do Ministério da Ciência e Tecnologia, em parceria com o Centro Universitário

Estadual da Zona Oes-

te (Uezo), na cidade de Campo Grande, no Rio de Janeiro. O compósito

é produzido em forma de chapas a partir da

fibra retirada do fruto já seco, que é misturada a plásticos, como polietileno

e polipropileno,

lagens descartadas,

Do fruto seco, a casca é misturada a plásticos

obtidos de emba-

O material resultante

é

utilizado na confecção de caixas e painéis, entre outras aplicações. Além de dar um destino útil para um resíduo que cresceu muito pelo alto consumo da água de coco no Brasil, o projeto, coordenado pelo professor Alex Siqueira, do Uezo, envolve ainda o treinamento

de

pessoas da zona oeste fluminense

na

reciclagem

de plásticos.

será repassada

A tecnologia

para comunidades

de

baixa renda da região.

PESQUISA FAPESP 173 • JULHO DE 2010 • 67



fotos eduardo cesar

[ Energia ]

tecnologia

Eletricidade

armazenada

Empresa desenvolve bateria para veículos elétricos e sistemas solares e eólicos Marcos de Oliveira

C Dentro da bateria: placas de grafite recobertas por chumbo

onhecimento e experiência são dois fatores importantes para o desenvolvimento tecnológico e estiveram muito presentes na idealização e construção de um novo tipo de bateria, fabricado pela primeira vez no Brasil, capaz de armazenar eletricidade em veículos elétricos. A novidade foi desenvolvida na empresa Electrocell, em São Paulo, nascida há 12 anos, com engenheiros vindos de áreas de baterias industriais e tratamento de superfície, e especializada no desenvolvimento e construção de células a combustível, equipamento que produz energia elétrica com hidrogênio, numa reação química entre esse gás e o oxigênio atmosférico. São geradores que não emitem poluentes e trabalham de forma silenciosa e sem vibração e tanto podem ser estacionários numa residência, empresa ou evento como geram eletricidade no interior de um veículo. A empresa já vendeu cerca de 75 dessas células, a maioria para empresas e instituições de pesquisa, com o intuito de demonstração dessa tecnologia ainda experimental que passa por evoluções em todo o mundo. As baterias da Electrocell são formadas por placas bipolares de grafite para uso em veículos e também para armazenar eletricidade em sistemas de energias renováveis, como solar e eólica. “Elas são indicadas para veículos 100% elétricos, principalmente para ônibus e caminhão, em nichos de mercado como no uso pelos correios, companhias de energia, empresas de entrega e carros de golfe, por exemplo”, diz o engenheiro Gerhard Ett, pesquisador e sócio da Electrocell. “A nossa bateria foi concebida para suprir com baixo custo sistemas de energia. Ela armazena eletricidade por meio de recarregamento em uma tomada, no

caso dos veículos, ou a gerada em painéis solares durante o dia, ou ainda de geradores eólicos.” “As nossas baterias bipolares podem custar de 15% a 25% do preço das baterias de íon de lítio, as mais utilizadas em equipamentos de ponta, desde veículos até celulares”, diz o engenheiro Gilberto Janólio, outro sócio-pesquisador da Electrocell. “As baterias de lítio são insuperáveis em termos de densidade de potência que elas podem armazenar, mas o custo e duração da nossa compensam o seu uso”, diz Ett. Elas foram inspiradas nas baterias de chumbo-ácido industriais, que servem, por exemplo, para suprir estações telefônicas por algumas horas quando cai o sistema de abastecimento de energia. Baterias como essas também equipam pequenos veículos elétricos usados nos estádios de futebol para retirar jogadores contundidos do gramado ou em campos de golfe e eventos. “As nossas possuem bem menos chumbo que as tradicionais e duram muito mais tempo”, diz Ett. A pesquisa realizada dentro da empresa resultou na colocação de camadas finas de óxido de chumbo sobre as placas de grafite. “Essa é uma evolução das baterias de chumbo, um material 100% reciclável e reaproveitado, e ela está dentro dos padrões ambientais europeus”, diz Janólio. Para desenvolver a bateria, os pesquisadores da empresa paulistana se utilizaram das placas bipolares de grafite usadas nas células a combustível, que fazem a condução e distribuição do hidrogênio dentro do equipamento. Elas também fazem a ligação entre um conjunto de uma membrana de polímero para troca de prótons e eletrodos, conhecido pela sigla MEA em inglês. Na bateria, as placas de grafite possuem uma fina camada de chumbo e PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

69


eduardo cesar

alguns aditivos e, como nas células, formam um conjunto único. “O uso do conceito da célula na bateria é inédito”, diz Ett. “Hoje cada placa custa € 20, enquanto a que fabricamos sai a R$ 2”, diz o pesquisador. A nova concepção de bateria possui uma durabilidade de 1.000 ciclos de carga. Cada ciclo significa descarregar totalmente e recarregar mil vezes, enquanto as tradicionais de chumbo automotivo chegam a 100 ciclos. “A energia despendida pela nossa bateria é de 60 watts-hora (Wh) por quilo, ante 85 Wh da bateria de lítio”, diz Janólio. O valor da bateria da Electrocell para os futuros clientes é de US$ 200 o quilowatt-hora (kWh), enquanto as de lítio custam entre US$ 600 e US$ 1.200, segundo valores do mercado internacional captados pela empresa.

A

nova bateria já teve patente aceita pelo Tratado de Cooperação em Patentes (PCT, na sigla em inglês), que permite o depósito desse documento em centenas de países. “Nós já tínhamos a patente das placas para células a combustível e agora fizemos uma ampla depositada em todo o mundo”, diz Ett. “Queremos o mercado internacional e estamos negociando o licenciamento da patente com várias empresas no Brasil e no exterior. Esse é um processo demorado e é preciso cuidado”, diz. O financiamento da pesquisa com a nova bateria saiu do próprio caixa da Electrocell, empresa que nasceu incubada no Centro de Inovação, Empreendedo-

70

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Bateria da Electrocell, indicada para ônibus e caminhão

rismo e Tecnologia (Cietec) e hoje está instalada no Pré-Parque Tecnológico, na Cidade Universitária. “Mas tivemos apoio da FAPESP no desenvolvimento das placas de grafite para as células, que contribuiu para a criação da bateria”, conta Ett. Um projeto realizado entre 2004 e 2008 que faz parte do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). O foco principal da empresa continua nas células a combustível. Mas eles vão continuar a desenvolver baterias específicas. Uma que está em projeto é destinada a veículos híbridos a álcool

O Projeto Desenvolvimento de compósitos de grafite injetado aplicados em processos eletroquímicos – nº 04/09113-3 modalidade

Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dor

Volkmar Ett – Electrocell investimento

R$ 408.655,56 e US$ 30.883,15 (FAPESP)

em que conviveriam no mesmo carro o motor com o biocombustível e as baterias elétricas que ainda proveem poucos quilômetros (km) de autonomia. As células a combustível também são uma opção para compor veículos que podem ser plugados numa tomada para reabastecer e ganhar mais autonomia com o hidrogênio. Da mesma forma, um pequeno motor a gasolina ou a álcool pode suprir o veículo com energia suficiente para rodar bem mais de 100 km. “A autonomia proporcionada pelo álcool, pela gasolina e pelo diesel é muito alta em comparação aos veículos puramente elétricos dotados apenas de bateria.” As células a hidrogênio estão numa posição intermediária, porém estão em primeiro lugar no quesito baixa emissão de poluentes. O único resíduo das células é vapor-d’água.

U

m impeditivo para um maior uso de células é o custo alto, embora esses preços tenham caído. Existem previsões para 2013 em que os preços caiam em até 90% em comparação a valores de 2003, segundo a Nucellsys, do grupo alemão Daimler, controladora da Mercedes-Benz, que desenvolve e produz células. Os preços podem declinar com o avanço no estudo de materiais e da economia de escala. “A energia renovável será um pouco mais cara e não terá, pelo menos a curto e médio prazo, o mesmo custo que a energia convencional. Assim o ganho de escala é fundamental e para isso as compras do governo são importantes num período de transição até para mostrar para a iniciativa privada que é possível a economia sustentável”, diz Janólio. A própria Electrocell coloca seu preço em relação à quantidade. “Cinquenta células de 5 quilowatts (kW) custam US$ 6 mil o kW. Células maiores, de 50 kW, e também em 50 unidades, saem por US$ 5 mil o kW”, diz Ett. Células individuais, é claro, custam muito mais. As maiores fabricadas pela empresa até agora foram feitas para órgãos públicos ou que tiveram financiamento igualmente público, como a Eletrobras e, a maior de todas, a do ônibus da Coppe-UFRJ, com 77 kW (ver matéria na página 72). Outra, de 50 kW, para funcionar como um gerador, foi produzida para a AES Eletropaulo, dentro de incentivos governamentais (ver Pesquisa Fapesp nº 93). n


Fábrica multielétrica Itaipu Binacional produz veículos elétricos em parceria com a Fiat e empresas suíças de veículos elétricos, partindo da tecnologia existente na Suíça”, diz Novais. As baterias são da empresa Mes-Dea e o principal elemento desse dispositivo é o cloreto de sódio, além do níquel. “São baterias que proporcionam uma melhor viabilidade operacional para os países tropicais por utilizarem matéria-prima abundante e de fácil reciclagem.” Os automóveis são do modelo Palio Weekend e foram montados no Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Montagem de Veículos Elétricos da Itaipu. Eles não possuem motor a combustão e câmbio e tiveram, como principais componentes adicionados, a bateria de sódio de 160 quilos, módulos de controle e um motor elétrico especial para impulsionar o carro, além de uma tomada para recarga da bateria no lugar do bocal tradicional de combustível e um indicador da carga de eletricidade no painel. Os veículos estão em testes e poderão no futuro fazer parte da linha de produção da Fiat. “O problema do veículo elétrico é o custo, duas vezes e meia o valor do automóvel convencional em que as baterias representam 50% do valor total do carro”, diz Novais. Por isso, a Itaipu já iniciou contatos com a própria KWO e outras empresas para viabilizar o desenvolvimento

de baterias no país, alternativa mais barata e competitiva. Em relação ao custo do quilômetro rodado, ele afirma que é menor, cerca de quatro vezes menos que a gasolina. Para as companhias de energia a diferença é maior porque utilizam a própria matéria-prima. A autonomia dos veículos da Itaipu é de 120 quilômetros. O tempo de recarga quando a bateria está totalmente descarregada é de oito horas com o carro plugado em uma tomada em 220 volts. “Todos os dias no mundo, 90% dos automóveis passam em torno de 12 horas parados em suas garagens”, diz Novais. Ele fez um estudo do impacto do uso de veículos elétricos em relação à produção energética do país. “Supondo que todos os carros produzidos em 2008 no Brasil (3 milhões) fossem elétricos, nós teríamos um aumento de consumo de 3,2% em relação ao total de energia consumido naquele ano.” Em um cenário mais próximo da realidade, ainda assim otimista, segundo Novais, se 10% da produção de carros fosse de veículos elétricos, o aumento no consumo seria de apenas 0,32%. Nesse caso, esse aumento poderia ser compensado, por exemplo, com o uso de LEDs na iluminação pública em vez das lâmpadas convencionais.

itaipu binacional

O primeiro carro elétrico desenvolvido no Brasil por um fabricante de veículos surgiu em 1974. Era o protótipo Itaipu E-150 para dois lugares da Gurgel, empresa com sede em Rio Claro, no interior paulista, comandada pelo engenheiro João Augusto do Amaral Gurgel. Depois, em 1981, a fábrica apresentou o Itaipu E-400 e, em seguida, o E-500, uma plataforma multiúso para caminhonete e furgão que vendeu algumas poucas dezenas de unidades e não fez sucesso devido a problemas com as baterias recarregáveis que tinham muito pouco tempo de vida útil. O nome Itaipu era em homenagem à maior usina hidrelétrica do país, de mesmo nome, instalada no rio Paraná, na divisa com o Paraguai. Agora é lá que estão sendo desenvolvidos carros elétricos numa parceria entre a Itaipu Binacional, a hidrelétrica suíça Kraftwerk Oberhasli (KWO) e a Fiat. “Já montamos 45 veículos, entre automóveis, caminhões de pequeno porte e um miniônibus”, diz Celso Novais, coordenador-geral brasileiro do Projeto Veículo Elétrico da Itaipu. “Começamos com uma parceria em 2005 para cooperação técnica na área de produção de energia hidrelétrica e a KWO nos propôs a realização de um projeto de pesquisa e desenvolvimento para a produção

Carro elétrico, tomada para recarga e indicador da carga da bateria no painel PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

71


[ Transporte ]

Ônibus ambiental

O

Coppe constrói veículo a hidrogênio e bateria

coppe/ufrj

uso de ônibus urbano nas grandes cidades é imprescindível tanto para atender a população quanto para diminuir o número de automóveis nas ruas, se o serviço for de boa qualidade. Mas ao mesmo tempo é um meio de transporte que produz um nível considerável de emissões de gases nocivos ao ambiente com seus potentes motores a diesel. A solução para evitar esse problema é conhecida e consiste na utilização de veículos que produzam menos poluentes, como os movidos a etanol, ou nenhum, com hidrogênio ou eletricidade. Projetos nesse sentido estão em desenvolvimento em várias partes do mundo e o Brasil já possui um protótipo híbrido, movido a hidrogênio e baterias acumuladoras de energia, desenvolvido no país. É um ônibus aparentemente convencional para 29 passageiros sentados e 40 em pé que foi concebido e construído ao longo de cinco anos pelo Laboratório de Hidrogênio (LabH2) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Os ônibus a hidrogênio desenvolvidos até agora, como o projeto europeu Cute, possuíam grandes pilhas a combustível, muito caras e que consumiam muito hidrogênio. A evolução é fazer projetos de hibridização com uma pilha a combustível produzindo energia para baterias de íon de lítio recarregáveis, semelhantes

Alternativa sem emissão de poluentes poderá ser produzida no Brasil 72

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173


às dos celulares mas em tamanho bem maior e próprias para tração de veículos, que fazem funcionar o motor elétrico e tracionam o ônibus”, diz Paulo Emílio Valadão de Miranda, professor da Coppe e coordenador do projeto. O Cute é o Clean Urban Transport for Europe ou Transporte Urbano Limpo para a Europa, financiado pela União Europeia e composto por 28 ônibus que rodam em várias cidades europeias desde 2004. As pilhas a combustível, nome preferido pelo professor Miranda, são conhecidas também como células a combustível, equipamento que gera energia elétrica por meio de uma reação eletroquímica do hidrogênio e do oxigênio do ar. Elas funcionam no ônibus da Coppe como um gerador dentro do veículo suprindo de eletricidade as baterias que garantem uma autonomia de um pouco mais de 100 quilômetros (km) quando recarregadas com carga completa, durante quatro horas, à noite, em uma tomada especial instalada na garagem do coletivo. “A pilha entra em funcionamento quando o estado de carga das baterias atinge um nível predeterminado pelo sistema principal de controle”, diz Miranda. Com a pilha, o ônibus consegue rodar cerca de 300 km no total sem precisar reabastecer. O sistema de pilha a combustível com potência de 77 quilowatts foi produzido pela Electrocell (ver reportagem na página 68) e as baterias foram compradas de uma indústria chinesa por meio de outra empresa brasileira que colaborou no projeto, a WEG, com sede em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, que produziu o motor elétrico do ônibus. Outra forma de obtenção de energia elétrica no interior do veículo é a eletricidade adquirida no momento da frenagem. A energia cinética resultante do movimento do veículo é transformada em eletricidade durante o acio-

namento do freio ou na desaceleração, sendo armazenada nas baterias – ou nos ultracapacitores, equipamentos que também armazenam e liberam rapidamente energia elétrica – para uso em qualquer dos subsistemas do veículo. “É a transformação da energia cinética do freio em elétrica”, diz Miranda. Para controlar todos esses fluxos energéticos e fazê-los funcionar da maneira mais econômica e eficiente, a equipe de Miranda desenvolveu um sistema eletrônico de barramento inteligente que faz o manejo de energia a bordo. “Ele é composto por hardware e software que otimizam as funções energéticas do ônibus.” Esse sistema distribui a energia elétrica do veículo e fica conectado a outro sistema, o de tração, composto principalmente pelo motor elétrico, e ao sistema auxiliar, responsável por fornecer energia para luzes, ar-condicionado e acionamento de portas. Parceiros industriais - Além da Elec-

trocell e da WEG, a Coppe fez uma parceria técnica com outras indústrias como a Busscar, de Joinville, em Santa Catarina, que forneceu o chassi e a carroceria, a Rotarex, de Mogi-Guaçu, no interior paulista, fabricante de válvulas e conexões para gases, e mais quatro empresas cariocas, a EnergiaH, de sistemas de tração elétrica, a Energysat, de equipamentos de controle, a Controllato, de análise e soluções para vibrações a que os equipamentos são submetidos no veículo, e a Guardian, de componentes eletrônicos. O financiamento inicial do projeto foi da Petrobras e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por meio de fundos setoriais, no valor de R$ 2 milhões. “Esse valor representa 30% do investimento total realizado [cerca de R$ 7 milhões], computando­-se os valores agregados das parcerias

que aportaram, além de dinheiro, equipamentos, engenheiros e mão de obra para a construção do ônibus.” Ainda neste segundo semestre o ônibus passará a circular dentro do campus da UFRJ na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. Depois, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Transportes e da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), será integrado a uma linha convencional de trajeto urbano na cidade. A perspectiva é que esse tipo de ônibus possa ser construído comercialmente no Brasil depois dos testes e dos acertos finais. “Existe um acordo entre os parceiros industriais e comerciais para viabilizar a produção do ônibus”, diz Miranda. A ideia inicial é tê-los nas frotas cariocas de ônibus urbano na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016. Outra experiência com ônibus a hidrogênio é realizada em São Paulo pela Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), num projeto financiado pelo Banco Mundial (ver reportagem em Pesquisa FAPESP no 160). Os próximos passos tecnológicos do LABH2 serão na produção de mais dois ônibus. Um será híbrido também, mas no lugar da célula a combustível entra um gerador a etanol para abastecer de energia as baterias de íon de lítio que fornecem a eletricidade para o ônibus se movimentar. O terceiro da série será um ônibus totalmente elétrico para rodar cerca de 200 km sem reabastecer na tomada da garagem. “No Rio, o requesito médio é de 240 km de rodagem diá­ ria”, diz Miranda. Todas essas soluções têm um objetivo único que é conter o despejo pelos canos de escapamento de 100 toneladas de dióxido de carbono (CO2) por um único ônibus na cidade do Rio de Janeiro durante um ano. “Isso, fora poluentes como os óxidos de nitrogênio (NOx) e outros.” Na capital fluminense existem 9 mil coletivos e no estado são17 mil. A mudança da motorização desses veículos ou parte deles traria um grande impacto ambiental. Os ônibus que funcionam a hidrogênio emitem apenas vapor-d’água e os elétricos não emitem nada. Além disso, eles são extremamente silenciosos, contando ponto também contra a poluição sonora das grandes cidades. n

Marcos de Oliveira PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

73


[ Engenharia biomĂŠdica ]

74

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173


Agora feito no Brasil Primeiro stent produzido no país para corrigir estreitamento em artérias ganha mercado Yuri Vasconcelos

fotos eduardo cesar

C Stent moldado por laser na Innovatech

erca de 800 brasileiros já levam no peito o primeiro stent totalmente concebido e fabricado no país. O dispositivo metálico, usado para tratar pacientes cardíacos com estreitamento das artérias do coração, foi desenvolvido pela empresa Innovatech Medical, abrigada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), em São Paulo. Stents são pequenos cilindros de telas metálicas, acompanhados de um balão, colocados em artérias do coração ou em vasos periféricos de outros locais do corpo parcialmente obstruídos por placas de gordura ou cálcio. Ao inflar o balão, o stent se expande, fazendo com que o sangue volte a fluir normalmente, evitando enfartes ou operações cirúrgicas de grande porte, como a colocação de pontes de safena. Para introduzir o produto no mercado, a Innovatech fechou uma parceria com a empresa Scitech Medical, de Goiânia (GO), especializada na fabricação e distribuição de dispositivos médicos invasivos para as áreas de cardiologia, radiologia, neurologia, oncologia e endoscopia. “Nós fabricamos a plataforma metálica do stent e a Scitech faz a montagem final num cateter-balão, dispositivo que vai ser usado na hora da colocação do produto na artéria do paciente”, explica Spero Morato, sócio-diretor da Innovatech, que iniciou as pesquisas com o stent em 2003 (ver Pesquisa Fapesp no 110). O cateter é composto por um tubo transparente (145 centímetros [cm] de comprimento por 6 milímetros [mm] de diâmetro) e um balão em sua extremidade. Sobre esse balão está alojado o stent metálico. O produto final recebeu o nome comercial de Cronus. Por meio de um procedimento chamado de angioplastia, que desobstrui a artéria, o conjunto é geralmente introduzido por meio de uma incisão na virilha do paciente até o local da lesão onde o stent será implantado. Uma corda guia, de 0,35 mm de espessura, é usada


Na ponta do cateter, o balão e o cilindro metálico

para orientar o deslocamento do balão. Quando chega ao local da lesão, o balão é inflado, esmagando as placas que causaram o entupimento e expandindo o stent, que se cola na parede interna da artéria, impedindo que ela se feche. Em seguida, o balão é desinflado e retirado do corpo do paciente junto com o cateter e a corda guia. Esse procedimento é realizado cerca de 100 mil vezes no Brasil por ano para implantação de stents coronários. Até o final de 2009, quando o Cronus entrou no mercado, todos os dispositivos utilizados eram importados, porque não havia tecnologia e fabricante no país. A empresa precisou de seis anos para pesquisar, desenvolver e iniciar a produção em escala industrial. Além de abastecer o mercado interno, há planos de exportar o produto. “Já recebemos pedidos de empresas espanholas e italianas que distribuem insumos médicos para hospitais”, afirma o físico Spero Morato, sócio-diretor da Innovatech. Versão farmacológica - O Cronus

é fabricado a partir de finos tubos de cromo e cobalto. É uma liga metálica considerada ideal para a produção do dispositivo por apresentar maior resistência mecânica, possibilitando a confecção de hastes mais finas do que as dos stents de aço inoxidável. A Innovatech oferece aos médicos uma família de stents com seis comprimentos (9 mm, 13 mm, 16 mm, 19 mm, 23 mm e 26 mm) e três diâmetros distintos (2,5 mm, 3 mm e 3,5 mm). O desenho do 76

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Cronus é de anéis conjugados, com hastes de 75 mícrons de espessura. “Suas características estruturais, com hastes de fina espessura e geometria única, parecem ser bastante adequadas para utilização como plataforma em stents farmacológicos”, destacaram os cardiologistas Daniel Chamié e Alexandre Abizaid, no artigo “Stent Cronus: chegou o momento de adotarmos um stent nacional?”, divulgado na edição de julho de 2009 da Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva, publicação oficial da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista. Stents farmacológicos são recobertos por drogas que previnem a proliferação do tecido da cicatriz da parede da artéria onde foi implantado, o que causaria uma nova obstrução do vaso. “[O Cronus] apresenta potencial de gerar baixo grau de injúria à parede do vaso e permitir distribuição homogênea do fármaco. A comprovação de boa flexibilidade e navegabilidade desse dispositivo pode permitir, ainda, sua utilização em vasos com anatomia mais complexa”, escreveram os especialistas, que clinicam no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. “O stent farmacológico está em fase de testes clínicos no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor) e já foi implantado experimentalmente em 40 pacientes”, afirma Melchiades Cunha Neto, dono da Scitech e sócio de Morato na Innovatech

– cada um tem 50% das cotas da empresa. “Nossa expectativa é de que, até o final deste ano, iremos obter a autorização da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], para iniciar a comercialização.” Além de fazer a montagem final do dispositivo e deixá-lo pronto para uso, a Scitech, vencedora do Prêmio Finep de Inovação Nacional na categoria média empresa, em 2008, também é responsável pelo revestimento polimérico para impregnação de drogas antirreestenose no stent da Innovatech, que impedem novo estreitamento da artéria. A capacidade atual de produção do Cronus é de 600 peças por mês, mas a meta é chegar a 15 mil unidades por ano e, assim, conquistar 15% do mercado nacional. Esse objetivo será atingido com a ampliação da capacidade produtiva da Innovatech, com a aquisição de novos equipamentos. Para montar a estrutura atual, os sócios investiram US$ 200 mil do próprio bolso na compra de equipamentos importados, entre eles a máquina que faz o corte a laser. Também conseguiram recursos por meio de dois projetos de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, no valor total de R$ 610 mil, e de um projeto de Subvenção Econômica da Finep, do Ministério da Ciência e Tecnologia, da ordem de R$ 530 mil. Em função da limitação espacial das instalações da Innovatech no Cietec – ela está acomodada em um conjunto de

Os Projetos 1. Implantes metálicos biocompatíveis – n° 02/02134-0 2. Desenvolvimento de endopróteses vasculares (stents) processadas a laser – n° 07/55757-8 modalidade

1 e 2. Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dor

1 e 2. Spero Penha Morato – LaserTools/Innovatech investimento

1. R$ 150.080,00 e US$ 133.510,00 (FAPESP) 2. R$ 102.947,82 e US$ 74.066,00 (FAPESP)


apenas 50 metros quadrados –, Morato e Cunha planejam transferir a empresa para Goiânia no próximo ano. “Dessa forma ficaremos mais perto da linha de produção da nossa parceira, a Scitech, o que deverá reduzir os custos de produção”, afirma Morato. “Vamos deixar no Cietec apenas uma unidade de pesquisa e desenvolvimento para testar novos desenhos, tamanhos e ligas metálicas.” O preço do Cronus é compatível com o dos stents importados existentes no mercado nacional. A Scitech vende o produto para o Sistema Único de Saúde (SUS) ao preço de R$ 2.034,00 a unidade. Segundo Morato, o valor da peça caiu muito nos últimos cinco anos devido ao aumento da concorrência provocado por stents chineses, indianos e de outros países. Anteriormente, o mercado era dominado por produtos fabricados nos Estados Unidos. Esses stents continuam sendo os mais utilizados, mas perderam a larga liderança que detinham. Produção minuciosa – O processo pro-

dutivo do Cronus é minucioso e dividido em várias etapas. Tudo começa com o corte a laser do tubo metálico feito da liga de cromo e cobalto para formação da malha característica do stent. Esse tubo, de 1,6 mm ou 1,8 mm de diâmetro, é submetido a um feixe de laser controlado por um equipamento dotado da técnica conhecida como Comando Numérico Computadorizado (CNC), que faz a usinagem controlada da peça metálica de acordo com um molde digital. Essa máquina gera um movimento circular e de translação do tubo, conferindo o formato final do stent, similar a uma mola. Ao sair do aparelho, a peça, já com sua aparência definitiva, passa por

Estudos feitos pela equipe do InCor entre os stents Cronus e os modelos importados mostraram que os nossos foram mais eficazes uma decapagem para retirada da oxidação superficial surgida durante o corte a laser. A decapagem é executada por meio de um banho ácido. Em seguida, o stent sofre um tratamento térmico de alto vácuo para alívio das tensões e ajuste do tamanho dos grãos da liga. Com isso, ele adquire características mecânicas apropriadas, como flexibilidade e expansibilidade. A eficácia do tratamento térmico é verificada com auxílio de microscopia eletrônica, que possibilita a análise da morfologia e estrutura do stent. A etapa posterior consiste de um eletropolimento ou polimento eletroquímico com a finalidade de executar um ajuste dimensional das hastes que formam a malha do stent e deixar a superfície polida. Uma rigorosa inspeção é realizada ao final de cada etapa, bem como ao término do processo. Com auxílio de um aparelho que amplia em Stent: geometria única e hastes de fina espessura

dezenas de vezes o tamanho do stent, os técnicos da Innovatech promovem uma avaliação dimensional de cada peça certificando-se que estão no tamanho desejado. Finalmente, o stent é esterilizado e enviado para a Scitech, em Goiânia, para finalização da montagem do cateter-balão. Em seguida, está pronto para ser implantado ou recoberto por uma camada do fármaco antirreestenose. O início do desenvolvimento do Cronus ficou a cargo da LaserTools, empresa criada em 1998, que também pertence a Morato e mais um sócio, especializada no processamento de materiais por meio de lasers. Para levar o projeto do stent à frente, eles criaram a Innovatech em 2004 em parceria com o InCor. Os pesquisadores da instituição ficaram responsáveis pela realização de testes em animais de experimentação (coelhos e porcos) e ensaios clínicos em humanos para comprovar a segurança e eficácia do dispositivo. Primeiro, os stents foram implantados em artérias de coelhos com calibre similar a uma coronária humana e retirados após 30 dias para avaliação. O passo seguinte foi a colocação dos stents em porcos, que ficaram com o dispositivo implantado por seis meses. “Estudos comparativos feitos pela equipe do InCor entre os stents Cronus e os modelos importados mostraram que os nossos foram mais eficazes”, diz Morato. O dispositivo também foi objeto de um estudo clínico internacional que teve a participação do Centro de Investigaciones Médico-Quirúrgicas (Cimeq), de Havana, em Cuba, e o InCor. Entre fevereiro de 2007 e dezembro de 2008, 53 pacientes foram tratados com 69 stents, constatando-se sucesso no uso do dispositivo em 98,5% dos casos. O estudo foi detalhado no artigo “Resultados clínicos iniciais do primeiro stent de cromo-cobalto concebido no Brasil”, divulgado no ano passado na Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva. Nele, seus autores – um grupo de 11 profissionais – afirmam que “o stent Cronus apresentou bom perfil de segurança, demonstrando taxa satisfatória de eventos cardíacos adversos”. E conclui: “A importância desse dispositivo reside no fato de sua engenharia, seu desenvolvimento pré-clínico e sua avaliação clínica terem sido realizados no Brasil, com achados semelhantes aos estudos internacionais, sendo essa uma n análise pioneira nesse sentido”. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

77


[ novos materiais ]

Resistentes e flexíveis Nanotubos de carbono incorporados a cimento e polímeros resultam em produtos mais versáteis Dinorah Ereno

P

esquisadores da Universidade Federal de Minas Ge­ rais (UFMG) desenvolveram um cimento nanoes­ truturado mais durável, que tem em sua composição 0,5% de nanotubo de carbono – uma estrutura ci­ líndrica formada por átomos de carbono cujo diâ­ metro corresponde à bilionésima parte do metro. A pequena quantidade do dispositivo é suficiente para melhorar consideravelmente as propriedades mecânicas do material, como a resistência. O processo de incorporação dos nanotubos ao cimento foi desenvolvido pelo professor Luiz Orlando Ladeira, do Laboratório de Nanomateriais do Departamento de Física da universidade mineira, e resultou em uma patente internacional já concedida. “É um processo totalmente original de incorporação, que melhora as proprie­ dades mecânicas do material e não encarece o produto final”, diz o professor Marcos Pimenta, do mesmo departamento, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Nanomateriais de Carbono e de um grupo de pesquisa dedicado ao desenvolvimento e produção desses materiais (ver mais sobre o assunto na edição 118 de Pesquisa FAPESP). A pesquisa é feita em colaboração com a Cauê Cimentos, empresa do grupo Camargo Corrêa. Outro material inovador obtido por pesquisadores do De­ partamento de Química da universidade mineira, coordenados pela professora Glaura Goulart Silva, é um polímero flexível indicado para fabricação de tubulações usadas no processo de extração do petróleo. No caso foi usado o poliuretano – polí­ mero tradicionalmente utilizado nesse tipo de tubulação – com a adição de 1% de nanotubo de carbono. “A adição torna o

Acima, nanotubos de parede múltipla. À direita, imagem em microscopia eletrônica de nanotubo de carbono e cimento


imagens CENTRO DE MICROSCOPIA UFMG

material mais resistente, o que permite o controle da flexão da tubulação”, relata Pimenta. Ainda nessa linha de materiais inovadores, o grupo incorporou nano­ tubos de carbono a epóxis, compostos usados como adesivos para melhorar a tenacidade e aumentar a temperatura de transição desse material. “A adição dos nanotubos permite trabalhar a tempera­ turas mais altas.” A ideia é usar o material compósito como cola para revestir tubu­ lações que transportam petróleo no caso de desgaste ou rompimento do material original. Os dois projetos têm parceria com a Petrobras. Nos laboratórios da UFMG os pes­ quisadores conseguem produzir alguns gramas de nanotubos por dia. Mas isso está prestes a mudar. “Queremos pro­ duzir alguns quilogramas por dia, o que resultaria em cerca de uma tone­ lada por ano”, diz Pimenta. Para atingir esse novo patamar eles pretendem ins­ talar uma planta piloto de produção de nanotubos em escala pré-industrial no parque tecnológico de Belo Horizonte (BH-Tec), que pertence à prefeitura da capital mineira, ao estado de Minas e à UFMG. “Nós estamos em negociação avançada para construir um Centro de Tecnologia em Nanotubos (CTNano­ tubos)”, diz. “O nosso desejo é come­ çar a construção no início de 2011.” A Secretaria de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais já liberou R$ 500 mil para a etapa inicial do empreendimento, que inclui a elaboração do plano de negó­

cios. Um dos objetivos desse plano, que está sendo feito por uma empresa espe­ cializada, é definir a estrutura jurídica do CTNanotubos, previsto para ser uma organização sem fins lucrativos. No total serão necessários R$ 30 milhões para a construção de um prédio modular de 3 mil metros quadrados, com uma planta para produção de nanotubos e labora­ tórios dedicados ao desenvolvimento de materiais, compra de equipamentos e contratação de cerca de 20 pessoas, entre pesquisadores, diretores e tecnólogos.

Bloco do compósito poliuretano e nanotubo

Parcerias produtivas - Para viabilizar

o CTNanotubos, os pesquisadores pre­ tendem fazer parcerias. A ideia é que o centro produza dispositivos tanto para pesquisadores acadêmicos como para empresas. “Junto com a produção esta­ mos focando também o desenvolvimen­ to de novos materiais, a exemplo do ci­ mento e dos polímeros com nanotubos de carbono”, diz Pimenta. Para essas duas aplicações, o reforço dos materiais é feito com o dispositivo de paredes múltiplas, em que várias folhas de car­ bono são enroladas na forma de tubo. Para outras é necessário o nanotubo de parede única, como em aplicações feitas em parceria com o Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, em que os dispositivos são usados para trans­ fecção gênica, método em que o RNA é inserido diretamente em uma célula, sem microrganismos intermediários. O nanotubo funciona como se fosse

uma agulha muito fina. Um dos traba­ lhos está sendo feito em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope­ cuária (Embrapa) de Juiz de Fora, para seleção de embriões bovinos. Um grupo coordenado pelas pes­ quisadoras Clascídia Furtado e Ade­ lina Santos, pertencente ao INCT Na­ nomateriais de Carbono, também está trabalhando no desenvolvimento de um material composto de epóxi e na­ notubos para uso em diferentes partes de aeronaves, em colaboração com a Agência Aeroespacial Brasileira. Outro projeto, em parceria com a Magnesita, de Minas Gerais, tem como objetivo melhorar o desempenho de materiais refratários usados nos altos-fornos. As pesquisas seguem uma tendência mun­ dial de incorporar esses nanotubos a vários tipos de produtos nas áreas de energia, eletrônica, medicina e indús­ trias química e petroquímica. Todos os estudos que estão sendo feitos atualmente no laboratório da universidade mineira terão continui­ dade no Centro de Nanotubos, assim como outros que envolvem a questão da segurança no processo de produção, durante o uso e após o descarte. “Como os nanotubos de carbono se apresen­ tam de maneiras distintas, parede úni­ ca, paredes múltiplas, curto, comprido, agregados a outros dispositivos ou dis­ persos em água, é preciso saber quais os riscos e cuidados em cada uma dessas formas”, diz Pimenta. Para dar respostas científicas às questões de segurança, o grupo de pesquisa mineiro está desen­ volvendo um protocolo de segurança adequado tanto para as pessoas como n para o ambiente. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

79


[ Antropologia ]

A invenção dos índios no Brasil

U

m debate instigante e certamente oportuno sobre qual é, afinal, o papel do antropólogo – e a natureza de seu trabalho de pesquisa – talvez possa ser um dos resultados do livro Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas monografias salesianas no Brasil (1920-1970), se os estudiosos da área receberem com espírito aberto as provocadoras propostas nele apresentadas por Paula Montero. Fruto mais recente de uma década de pesquisa apoiada institucionalmente pela FAPESP – via o projeto temático Missionários cristãos na Amazônia brasileira: um estudo de mediação cultural e o projeto regular A textualidade missionária: as etnografias salesianas no Brasil –, o novo livro da pesquisadora propõe de forma clara a desmontagem da velha visão do antropólogo como uma espécie de tradutor. Pelo olhar teórico e empiricamente aguçado de Paula, esfuma-se inteiramente a ultrapassada figura do especialista que vai a um mundo do qual nada se sabe – o “outro”, a incompreensível alteridade –, captura ali, na interação com um informante privilegiado que ele jamais apresenta, alguma coisa que até então ninguém sabe o que é, trata de classificá-la, organizá-la e, finalmente, transformando-a em diferença, consegue traduzi-la em termos acessíveis ao universo simbólico de onde partiu para sua jornada. Em lugar dessa tradução um tanto enciclopedista surge então, como objeto e forma do trabalho do antropólogo, a invenção – e numa acepção bem precisa do termo, porque “não há nada previamente ali” pronto para ser capturado. Os agentes de dois universos de conhecimento heterogêneos – neste caso do estudo, padres e índios – movem-se ambos por interesses, um em direção ao outro, e, de fato, “precisam estabelecer um certo acordo para que a invenção exista, invenção que será sempre diferente a depender de quem esteja lá”, segundo a antropóloga, professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Foi exatamente para entender tais acordos, ou seja, o que afinal acontece quando esses agentes entram em interação, que Paula tomou o tema das missões salesianas como campo privilegiado de reflexão e pesquisa. E a essa altura, firmemente ancorada na noção de que as

80

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Análise de etnografias produzidas por missionários salesianos desmonta a noção do antropólogo como tradutor Carlos Haag e Mariluce Moura


humanidades

fotos divulgação

Cerimônia cívico-religiosa na missão de Iauretê

ideias se movem por meio de sujeitos e, portanto, que há que se entender os agentes para compreender a construção de sua interação, ela pode observar que, se o padre tem o projeto de converter, “o índio, que pode ser o xamã ou o chefe nessa situação, quer se apropriar do poder do padre para assim ampliar seu poder dentro do próprio grupo e ainda ganhar poder frente ao padre”. Não se trata, pois, de um simples processo de imposição, de destruição de cultura, ela afirma. Tampouco tudo é resistência cultural. “É um processo político, sim, mas também simbólico, de construção da interação entre dois uni-

versos de conhecimento heterogêneos.” Entra em cena um jogo de linguagens pelo qual os dois lados vão estabelecer uma convenção do que devem fazer para viver juntos naquelas situações em que estão envolvidos. Fica claro, dessa forma, por que o conceito de mediações culturais é chave no trabalho de Paula Montero e o quanto as missões foram se tornando para ela um belo pretexto para explorá-lo a fundo. Fica claro também o porquê de seu empenho em não reduzir sua análise aos discursos, ir às biografias e trazer à cena as fontes de informação na análise das etnografias – inclusive com um uso metodológico das fotografias tiradas pelos salesianos capaz de dar “carne à ambiência” das aldeias missionárias, como ela diz. “As ideias não se impõem por elas mesmas, sem agentes posicionados em lugares

estratégicos e dotados das capacidades que obtiveram em suas trajetórias para operar categorias, construir relações etc.”, diz. E seu olhar crítico voltou-se tanto para as produções de uma geração mais antiga de antropólogos brasileiros – que, na esteira do trabalho de Roger Bastide com a cultura africana, tratou do sincretismo sem colocar o problema dos mediadores – quanto para as análises antropológicas mais recentes, que colocaram o problema das relações entre índios e brancos no Brasil reduzindo a agência à resistência cultural (mas, ressalte-se, Bastide tinha como tema uma cultura transplantada cujos sujeitos se encontravam deslocados de seu lugar de origem, enquanto o problema das culturas indígenas dizia respeito a sujeitos que de maneira geral ainda se encontravam em seu território originário). PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

81


Cotidiano dos índios no colégio em Iauretê

Missionários ideais – A vinda dos pa-

dres salesianos para o Brasil no final do século XIX resultou da conexão de vários e importantes interesses, observa Paula. No âmbito da geopolítica mundial, vale lembrar que a Itália perdera lugar na partilha da África e a Igreja Católica precisava desesperadamente de uma nova área de expansão. Os jesuítas tinham sido expulsos do Brasil desde 1759, a Itália fora unificada em 1870 e, nesse contexto, a congregação fundada em 1859 pelo italiano João Bosco parecia ser um grupo que, aos olhos do Império, não oferecia maiores riscos para a soberania do Estado – obedientes ao papa e perseguidos na Itália da restauração dificilmente cairiam na tentação de criar aqui um Estado paralelo, como outras ordens. Além disso, serviam aos interesses de um papado que precisava garantir seu poder temporal recém-conquistado, permitindo ao Estado do Vaticano estabelecer alianças diplomáticas com os novos Estados nacionais na América. Se na Itália a especialidade salesiana era educar jovens operários de origem rural, eles foram também chamados ao Brasil originalmente para educar os filhos das elites rurais e treinar os migrantes urbanos em novas profissões, uma vez que dominavam modernas tecnologias educacionais. “Havia então uma visão não conformista das relações cria82

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

das pelo industrialismo. Os salesianos se voltaram para cuidar dos jovens mais pobres, percebidos como abandonados e em situação de risco, com o objetivo de integrá-los às novas formas de civilidade urbana”, observa Paula.

P

ois foi com esses mesmos ideais e o beneplácito do imperador Pedro II que, em 1883, eles aportaram no Brasil, num momento em que as ideias progressistas começavam a surgir entre os plantadores de café. E até 1910, ressalte-se, não tiveram nenhuma relação com os índios. Entretanto, na virada do século, o Estado brasileiro tinha dado início a seu “projeto de empurrar as fronteiras, que com Vargas se tornaria muito forte e incorporaria, por exemplo, o Mato Grosso inteiro. Mais adiante o projeto envolveria também a Amazônia, com bastante sucesso e a implantação de cidades até os anos 1960”. Nesse processo de expansão, o índio começou a ser um problema para o Estado em tais regiões, enquanto os salesianos poderiam representar a solução. Em outras palavras, “as condições político-históricas que definiram o projeto expansionista da congregação salesiana para as Américas articularam-se

às estratégias econômico-políticas de ampliação da soberania nacional sobre novos territórios”, como diz Paula. As missões salesianas poderiam assegurar a “pacificação” dos selvagens, o que permitiria a introdução de atividades econômicas produtivas no interior do Brasil. Claro que os positivistas, sempre temendo um avanço clerical no país, não gostaram do projeto salesiano, “mas esse projeto compartilhava a mentalidade então corrente para a qual a universalidade da civilização enquanto condição humana era autoevidente. O que se propunha era associar os princípios do catolicismo aos benefícios do cientificismo”, observa Paula. Assim, estender o mesmo método pedagógico da experiência urbana às populações ainda “selvagens” pareceu não oferecer dificuldades aos salesianos. “Afinal a ‘selva’ era, no imaginário cristão moderno, o contraponto à cidade ou à civilização cristã.” O elemento novo, a introdução do cientificismo no plano das relações entre homens e natureza, trazia um novo dilema. No texto do livro, a pesquisadora assinala que “ao assumir que civilização, progresso e pátria são sinônimos, os salesianos, em oposição ao positivismo, queriam ressacralizar a natureza, recuperando no selvagem a ‘razão natural’ que compreende o mundo natural como obra divina; e em contraposição à ‘religião natural’ dos indígenas, que adoram a natureza, deveriam


civilizá-la, de modo a torná-la parte da ordem social e racional da nação.” Se muitas vezes o problema do “índio brabo” se resolveu pela violência e pela brutalidade, o Brasil na verdade nunca favoreceu, segundo Paula, a implementação de uma política sistemática e declarada de genocídio. “Prevaleceu na República a ‘pacificação’, que, na prática, significava não estimular conflitos com os índios.” E seu modelo secular foi Rondon, o grande representante militar da “pacificação” positivista que daria fundamento ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado precisamente em 1910. Ao criar constrangimentos legais à violência dos colonos, esse programa pacificador produziu um marco legal para os direitos territoriais indígenas, instituiu órgãos tutelares como o SPI e, mais importante, possibilitou a investidura dos salesianos como agentes privilegiados da catequese e da civilização nas fronteiras nacionais em expansão, ao longo da primeira metade do século XX.

N

a década de 1930 os salesianos já recebiam do governo brasileiro metade de todas as subvenções destinadas às instituições missionárias católicas e o formato de sua institucionalização, inspirado no modelo das reduções jesuíticas, não se modificou até o Concílio Vaticano II, quando começou a perder seu vigor”, diz Paula. Só com o impacto da crise ideológica nos anos 1970, que colocou em xeque o modelo de missão formatado no Concílio de Trento, os salesianos viram-se obrigados a repensar suas relações com a política brasileira e os índios. A adesão salesiana ao pedido do Estado brasileiro de participar do front de “pacificação”, contudo, não foi simples, e sim, demorada e problemática. “Dom Bosco defendia a criação de uma colônia italiana na América e só depois de não ter conseguido levar adiante seu projeto de expansão da congregação na Argentina é que o redirecionou para as áreas indígenas brasileiras”, diz Paula. O modelo da missão eram os liceus de artes e ofícios: ela deveria reunir os índios em torno de uma “colônia agrícola” voltada para uma agricultura moderna, apoiada em princípios científicos de produtividade e em tecnologia sofisticada. O trabalho com a terra estava

O Brasil nunca favoreceu a implementação de uma política sistemática de genocídio no centro da autonomia e prosperidade das missões para que se pudesse fazer o adestramento do corpo e do espírito dos nativos. Diferentemente da colônia militar ou das relações esporádicas de Rondon com alguns grupos indígenas, a colônia agrícola missionária, observa Paula, foi um arranjo novo de relações que articulou unidades do sistema indígena a unidades do sistema colonial em uma convivência continuada e produtora de novas relações. “Mas as duas políticas partiam de princípios diversos: enquanto a indigenista, feita pelo Estado até os anos 1950, apoiou-se na ideia da assimilação pela convivência com não índios, as estratégias missionárias se pautaram por uma ideia de civilização que pressupunha um isolamento relativo dos grupos indígenas.” Etnografias comparadas – Tudo isso

se torna mais e mais claro à medida que, valendo-se de uma metodologia comparada de três momentos distintos dos encontros entre missionários e índios, Paula Montero procura mostrar como a interação entre eles muda em

função do contexto político, da cultura dos diferentes grupos e até mesmo das particularidades de cada autor das narrativas desses processos. Essas condições produzem claramente construções diversas do que é ser índio. Nesse sentido, o objeto fundamental de análise da pesquisadora é um conjunto de três etnografias escritas por missionários salesianos sobre os grupos indígenas Bororo e Xavante, do Mato Grosso, e os chamados Tucano, do Amazonas. A primeira delas é Os Bororo orientais, de 1925, de Antonio Colbacchini e César Albisetti, a segunda, A civilização indígena do Uaupés, de 1958, escrita por Alcionílio Bruzzi da Silva, e a terceira é Xavante, Auwe Uptabi, povo autêntico, de 1972, cujos autores são Bartolomeu Giaccaria e Adalberto Heide.

C

olbacchini era formado em filosofia e teologia e transformou-se a partir de 1906 em pioneiro e explorador do estado do Mato Grosso. No ano seguinte assumiu a direção da colônia agrícola de Tachos. Ele se preo­cupava em traduzir os selvagens, homens naturais, em homens sociais, com lei, ordem e religião. “Ao contrário do indigenismo militar republicano, basea­do na ideia da ‘pacificação’, para o qual civilizar era principalmente controlar o território e a população, Colbacchini supõe a existência de uma ‘nação clandestina’ que só pode ser conhecida quando se toma o ponto de vista do sertão. Essa protonação se identifica com os Aldeamento do Sagrado Coração

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

83


valores da liberdade, da fraternidade e da inocência primordial.” Segundo Paula, compreender a obra etnológica de Colbacchini é analisar como a sua descrição mobiliza a imaginação para responder às contradições aparentemente sem solução que a incorporação dos índios, com suas diferenças, impõe à consciência do homem e de seu tempo. Assim, numa linguagem textual ainda muito próxima dos enciclopedistas do século XIX, ele inventa o totemismo bororo ao sair à procura de uma religião natural. Já num contexto intelectual e político distinto, marcado pela ênfase à brasilidade do índio, a monografia do padre Alcionílio Bruzzi sobre os povos Tucano mostra o trabalho evangelizador no rio Negro e Uaupés mais nitidamente pautado pelo esforço de integração do índio ao Estado nacional. Isso implica também a exigência de construção higiê­ nica e salubre de cidades e a edificação de internatos que se apresentassem em sua arquitetura imponente como obra civilizatória definitiva. Para o religioso, a dinâmica desencadeada pelos centros missionários deveria ser compreendida em termos de um processo “civilizador”, e não mais em termos de “catequese”. Vale registrar que a chegada dos salesianos em 1920 ao rio Negro, uma bacia

Missa campal com os Bororo

84

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

habitada predominantemente por populações indígenas, foi uma experiência completamente distinta da que viveram ao chegar ao Mato Grosso, onde tiveram que mediar os permanentes conflitos entre proprietários de terra e indígenas. Por falta de colonos, o modelo de “pacificação” não predominaria no Uaupés. Havia também uma diferença fundamental entre sua monografia e a anterior: “O habitus de um espírito científico filtrado por uma linguagem que se quer rigorosa e contida está muito mais presente na obra de Bruzzi do que na de Colbacchini, intuitivo e passional. A análise de Bruzzi é pautada pela ciência e seu desejo é criar um indivíduo, embora tenha se deparado com o incômodo de não achar sujeitos subjetivados a ponto de viver numa sociedade baseada na ciência”.

B

artolomeu Giaccaria, um dos autores da terceira monografia, chegou ao Brasil em 1954 e foi transferido a Sangradouro no final de 1956 para encarregar-se da escola da missão. Paula observa que já não se trata nesse momento mais do selvagem e o conceito-chave passara a ser a autenticidade. “Tudo que é do índio passa a ser autêntico.” Em lugar do esforço para converter, havia que encontrar o que era original, e a cultura está no lugar em que antes estivera a religião. Pouco depois de se instalar em Sangradouro, Giaccaria entrou em contato

“Mediações materiais e simbólicas se dão sempre na interação e produzem discursos”, diz Paula com grupos Xavante recém-chegados à missão e se deparou com a questão de ter que alfabetizar suas crianças sem conhecer a língua e a cultura. “Para atuar na escola de maneira eficaz não lhe bastou o conhecimento rudimentar da língua e ele sentiu a urgência de um entendimento mais completo dos comportamentos e modos de entendimento indígenas. Começou então seu trabalho de observação etnográfica mais sistemático ao lado de Adalberto Heide na década de 1960.” Podem-se verificar na obra as marcas da mudança no panorama político-ideo­lógico que estava por vir. “Nos anos 1970, o programa catequético missionário de assistência indígena perdia credibilidade, o sistema de internatos começava a ser duramente criticado e a ideia de que os índios deveriam viver isolados em seus próprios territórios, as reservas, produzia um novo consenso”, explica a autora. Por isso, o sentido civilizador tão marcante nas obras anteriores aparece de forma menos acentuada no trabalho de Giaccaria. “A ideia de civilização ganha uma conotação mais secular de ‘patrimônio cultural’ e, como indica o título de sua monografia, sua obra está voltada para a reprodução da ‘autenticidade’ de ser Xavante. O registro de mitos e ritos que fez ao longo de uma década está marcado por um sentido de salvamento da maior quantidade de informações sobre a civilização Xavante.” Em contraposição aos exemplos monográficos anteriores, em que a ideia de uma “civis” cristã e urbana era central ao argumento civilizatório,


Giaccaria afirma que a vitalidade da cultura Xavante dependia da manutenção da aldeia em sua forma circular, símbolo do que é fraterno, igualitário. Mas o que teria motivado os salesianos em suas etnografias? “Para implementar o projeto era preciso fazer com que o índio quisesse morar nas missões, algo que só faziam movidos por cálculos estratégicos. Era necessário então organizar o conhecimento: como se poderia, por exemplo, converter, batizar etc. se não se conhecesse a forma de religião e família indígena?” Cada monografia, ao contrário do que acontecia na prática indigenista oficial (que não se interessava em conhecer o objeto de sua ação), implicou um processo de produção de conhecimento destinado a possibilitar o projeto missionário dos salesianos. Um projeto que, é importante ressaltar, foi fruto de intensa e constante negociação. “Os padres negociaram, por diversos meios, a legitimidade de sua atuação com relação aos índios e à sociedade nacional, dando visibilidade a seus ‘feitos’ e ‘sacrifícios’, protegendo a vida indígena contra os colonos e outros índios, dispensando educação aos filhos dos proprietários rurais ou se recusando a fazê-lo, ensinando crianças indígenas, disputando sua autoridade religiosa e terapêutica com xamãs, distribuindo ou retendo bens, reforçando ou se apropriando

da autoridade de chefes”, explica Paula. Acima de tudo, conviveram sempre com o fantasma da instabilidade dos aldeamentos, ameaçados constantemente pelo repentino esvaziamento populacional. Além disso, lidavam com questões da atração de recursos financeiros, com a produção de meios eficientes de persuadir as elites urbanas da inteireza de suas intenções e da legitimidade de seu trabalho frente a forças competidoras como o indigenismo positivista, da pressão dos colonos por mão de obra e terra, do apoio que a hierarquia da Igreja no Brasil e na Europa oferecia ou não ao projeto de estabelecer colônias agrícolas autossuficientes.

P

roduzir conhecimento e descrever a vida indígena era parte dos instrumentos intelectuais disponíveis para fazer face a essas dificuldades. “Uma das operações simbólicas mais centrais das monografias foi produzir a convergência entre modos distintos de ver e estar no mundo, introduzindo como referente comum a separação das esferas religiosas, sociais e políticas”, diz Paula. “Já as regras gramaticais da indexação foram construídas no plano das práticas como convenções destinadas a enfrentar colisões e conflitos nas interações cotidianas.” Essa tradução, porém, não era destituída de consequências. Conforme o texto de seu livro, “o paradoxo implícito

Aula em missão no Mato Grosso

na produção de etnografia missionária é que, para criar a imagem da cultura nativa, o etnógrafo provoca uma mutação nas formas tradicionais de produção da memória. As etnografias salesianas, como parte integral e fundadora do projeto de conversão, universalizam o conhecimento, por exemplo, do que é ‘ser Bororo’ de uma forma até então desconhecida para os próprios nativos e, nesse movimento, produzem uma espécie de ‘conversão’ do Bororo à cultura Bororo”, explica a autora. “Assim, a desconstrução dos discursos missionários revela como os mediadores, sejam eles quem forem, se constroem como sujeitos de discurso e se jogam na disputa no processo de produção de legitimidade daquilo que têm a dizer.” Dá para dizer que Paula Montero trabalha em seu novo livro por uma antropologia das mediações. “Mediações materiais e simbólicas que se dão sempre na interação e que produzem discursos.” Ou seja, deslocada a ideia de tradução do trabalho do antropólogo para o discurso dos agentes, ela abandona o conceito de alteridade como noção fundadora do conhecimento antropológico buscando superar o paradoxo que consiste em pensar um outro antes da própria razão que o pensa. n PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

85


[ Demografia ]

diversidade brasileira Censo 2010 vai revelar quantos povos e línguas indígenas existem no país Carlos Haag

cíficas para quem se declarar indígena quando perguntado pelo recenseador qual a cor da pele ou raça (as opções são branco, preto, amarelo, pardo e indígena). Ao se autodeclarar indígena, o entrevistado poderá responder a que etnia ou povo pertence e qual é a língua ou idioma indígena que habitualmente fala em casa. Além disso, as perguntas sairão do chamado questionário da amostra (direcionado a um grupo pequeno de pessoas e, por amostragem estatística, estendido a uma população maior) e passarão a integrar o questionário do universo, que é respondido por todos os brasileiros. “Dessa forma todos os índios existentes serão recenseados, o que não aconteceu nos Censos anteriores. Como eles são minorias, tendem a desaparecer nas estatísticas quando suas respostas ficam restritas a uma amostragem”, expli-

CELSO JUNIOR/AGÊNCIA ESTADO

P

or uma ironia estatística temos hoje estimativas mais confiáveis sobre quantos indígenas habitavam o Brasil em 1500 (segundo cálculos da Fundação Nacional do Índio, Funai, eles somavam 5 milhões) do que os que vivem aqui atualmente. Em 2000, um estudo da Funai afirmou que eles não passariam de 450 mil, ou 0,2% da população brasileira. No entanto, dados do Censo Demográfico daquele ano, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), afirmavam que eles seriam 734 mil, ou 0,4% da população nacional. Já a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, chegou a um número diverso: 520 mil pessoas que teriam sido atendidas nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Qual, afinal, desses números é o retrato real da dinâmica demográfica da população indígena brasileira? Não se sabe. “Variam os critérios censitários e datas; há povos sobre os quais simplesmente não há informações; sabe-se pouco sobre os índios que vivem nas cidades. Ainda desconhecemos a imensa sociodiversidade nativa contemporânea dos povos indígenas, não sabendo sequer quantos povos ou línguas nativas existem”, avisa a antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. “É nítida a falta de sistemas de informações populacionais mais detalhadas para orientar e avaliar as políticas públicas para os índios.” Preocupada em resolver essa questão, em 2001, Marta arregimentou associações indígenas e de antropólogos para sensibilizar o IBGE a melhorar a metodologia de captação de informações para o Censo Demográfico de 2010, que vai ser iniciado em agosto e encerrado em dezembro, conseguindo, após muita discussão, a inclusão de duas novas perguntas espe-


ca o antropólogo Artur Nobre Mendes, coordenador-geral de gestão estratégica da Funai. “Esperamos, assim, conseguir agora um retrato mais fiel e detalhado da realidade indígena brasileira nas categorias: etnias, distribuição geográfica, padrões de migração, faixa de renda, escolaridade, questões de saúde etc.”, diz a estatística Nilza de Oliveira Martins, pesquisadora da Diretoria de Pesquisas do IBGE. A maneira como era feita a captação de dados nos Censos passados não identificava cada povo indígena, pois apenas usava como critério o “índio genérico”, deixando de identificar os cerca de 260 povos que habitam o território brasileiro. “O que se obtinha era um ‘tipo indígena’, enquanto, como se sabe, no Brasil temos uma notável sociodiversidade indígena. Isso será corrigido no novo Censo.”

N

o Censo de 1872, o primeiro levantamento censitário do país, a preocupação maior era verificar o tamanho da população escrava brasileira e foram utilizadas, além das classificações “livres” e “escravos”, as de cor/etnia branco, preto, pardo e caboclo, sendo que esta última incluía os indígenas e seus descendentes. Com a criação do IBGE, em 1936, que realizou seu primeiro Censo em 1940, as classificações de cor/etnia se restringiram a branco, preto e amarelo, com a ressalva de que haveria um espaço em branco a ser preenchido pelo recensea­ dor caso não se pudesse determinar a cor do recenseado. Como houve um excesso de variações, o IBGE agrupou as várias respostas na categoria de “pardos”, critério que reunia os indígenas. Em 1991 foi incorporada e investiga-

da nacionalmente, pela primeira vez, a categoria indígena no quesito “raça ou cor” do Censo e, com isso, foi possível se separar essa categoria das pessoas que se classificavam como “pardas” nos Censos até 1980. O Censo de 2000 manteve as mesmas especificações e metodologia baseada na declaração espontânea do indivíduo, ou seja, a formulação do quesito em que a pessoa tem que se autoclassificar segundo a consideração que tem de si mesma. No caso dos indígenas, o conceito foi aplicado tanto àqueles que viviam em terras indígenas como aos que viviam em áreas urbanas. “Apesar da inclusão de um quesito sobre a população indígena no Censo de 1991, a cobertura censitária era insatisfatória no que se referia a essa população e só foram levantados os indígenas PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

87


Fernando Gabeira/Folhapress

residentes nos postos da Funai, nas missões indígenas e em algumas cidades. Além disso, a inclusão de uma única questão (raça/cor) no questionário da amostra, em que o próprio entrevistado indicava sua cor ou etnia, não permitia avançar na confirmação do recenseado como indígena”, explica o demógrafo Pery Teixeira, professor da Universidade Federal do Amazonas.

N

o Censo de 2000 não havia mais as limitações de cobertura, mas o problema da autoidentificação prevaleceu, contribuindo para que se verificasse um aumento da população indígena de cerca de 150% entre os dois Censos (de 294 mil a 734 mil), algo que, afirmam os especialistas, é absolutamente improvável no contexto demográfico brasileiro. “Mas na verdade o que aumentou foi o número de pessoas que, quando perguntadas sobre a sua cor de pele, passaram a se classificar como índios. São pessoas que antes diriam aos recenseadores que eram pardos e passaram a se sentir seguras em dizer que eram índios. Há um exemplo notável. No estado de São Paulo você tem 2 mil indígenas vivendo nas reservas e mais 2 mil Pankararu que moram na capital. Ou seja, 4 mil pessoas. Aí o

88

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

Índios em conferência sobre povos indígenas

IBGE contou, em 2000, 62 mil índios no estado. Quem eram esses outros 58 mil? São pessoas que sabem ou acham que têm um antepassado índio, mas não têm ideia se são descendentes de Xavante ou Guarani. É o que chamamos de ‘índios descendentes’”, conta Marta. Como explicar esse fenômeno? “Havia, e ainda há, no Brasil um ambiente mais favorável para as pessoas se autodeclararem indígenas. A década de 1990 foi muito boa para os índios com a Constituição de 1988, que assegurou os direitos de diversidade dos índios, e com a Conferência Rio-92, em que eles foram ligados à preservação do meio ambiente, o que fez com que os indígenas aparecessem de forma positiva na mídia. Houve também a pesquisa sobre o DNA do brasileiro, feita pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1997, que revelava que 45 milhões de brasileiros tinham ascendência indígena”, diz Marta. “Fatos como esses reforçaram a identidade étnica e fizeram surgir um

orgulho de ser descendente de índio, na contramão do preconceito que antes os obrigava a esconder suas origens. Assim, se no passado eles eram vistos como um povo fadado a desaparecer, o Censo de 2010 deverá mostrar que eles somam 1 milhão de pessoas, sendo que 500 mil serão índios com etnia e língua definidas.” A presença do “índio descendente”, porém, afetou a confiabilidade das informações do Censo 2000. “Ele levantou mais dúvidas do que certezas e o novo Censo vai nos ajudar a explicar essas questões. Apesar disso, é importante entender que todo Censo autodeclarado é um autorretrato da rea­lidade e não pode ser entendido como instrumento de conhecimento étnico preciso”, observa Artur Mendes. “Mas ao discriminar etnia e língua vai nos dar uma pista do indígena real. Se a pessoa não souber falar a que grupo pertence e que língua fala saberemos estar diante de um ‘índio genérico’.”

C

om a nova estrutura, o Censo também vai ajudar a Funai a avaliar sua atuação indigenista. “Se observarmos que determinada etnia está mais em cidades do que em terras demarcadas, teremos que revisar nossos programas. Afinal, se apesar


JOEDSON ALVES/AGÊNCIA ESTADO

das demarcações de terras os índios continuam migrando para as cidades, algo nos escapou.” “Acima de tudo, os dados do Censo vão ajudar o Estado e as organizações indígenas a melhorar o controle social sobre as políticas públicas dos índios. As várias instâncias governamentais terão uma base melhor para pensar e avaliar políticas”, pondera Marta. “Os formuladores de políticas sempre levam em conta os dados oficiais, que no caso dos indígenas são historicamente precários. Agora, enfim, os índios ganharão, com os números mais precisos, visibilidade oficial e, assim, terão mais força para argumentar com os agentes do Estado sobre suas demandas”, fala Gersem Baniwa, coordenador-geral de educação indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação. Para Gersem, no entanto, o dado mais importante será a identificação da presença dos índios em áreas urbanas, onde não têm cobertura especial dos governos federal e estadual e, no geral, vivem em situação de penúria, sem atendimento de saúde. “Creio que os resultados do Censo vão provocar uma reavaliação de nossos pressupostos de atuação e gerar uma nova discussão sobre a ação dos agentes, hoje focados apenas nas terras indígenas, mas que, no futuro, poderão voltar-se para os centros urbanos”, concorda Artur Mendes. Outro aspecto importante dos resultados do Censo 2010 está no campo da linguística, já que, pela primeira vez,

O Censo 2010, por esses vários aspectos, vai trazer uma nova visão do índio. Eles são a cara do país”, diz Marta

se fará um levantamento das línguas indígenas faladas no país, cujo número está estimado entre 150 e 180 línguas diferentes. “O Brasil é um país multilíngue e a sociedade não se dá conta. É preciso resgatar essa diversidade ímpar brasileira”, afirma Nilza. Uma riqueza imensa apesar das perdas sofridas: estima-se que 75% das línguas indígenas desapareceram nos últimos 500 anos. “O fato que determina o futuro de uma língua é a sua transmissão para a geração subsequente. Das 150 línguas indígenas, pelo menos 21% delas estão seriamente ameaçadas de desaparecer em curto prazo em função do baixo número de falantes e da baixa taxa de transmissão para as novas gerações”, avisa o linguista Denny Moore, do

Museu Paraense Emílio Goeldi. “Além de ser um critério de identificação da população indígena no Censo, a pergunta sobre que línguas são faladas em casa vai revelar a grande diversidade cultural do país e identificar se uma determinada língua tende à extinção ou se ela ainda se encontra com vigor: se apenas os velhos estiverem utilizando uma língua, essa tende a desaparecer”, fala Nilza. “O Brasil costuma ser considerado aos olhos estrangeiros e pelos próprios brasileiros como um país dotado de uma invejável homogeneidade linguística, o que contribuiria para consolidar a unidade política da nação. Criou-se no nosso imaginário o ideal formativo das três raças (português, negro e índio) que só se expressam numa língua comum: o português”, afirma o linguista Gilvan Muller de Oliveira, professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Com o novo Censo, porém, as línguas indígenas terão sua chance de resgate.

‘S

erá possível desenvolver projetos específicos para revitalizar línguas em escolas e comunidades indígenas. E, no caso das ameaçadas, será possível registrar sua gramática e gravar falantes, deixando acessível esse conhecimento para estudos ou para que gerações futuras possam, um dia, voltar a falar uma língua desaparecida”, lembra Artur Mendes. “Uma língua carrega todo o universo das pessoas. Toda a cultura brasileira está no vocabulário e é muito doloroso perder, com uma língua desaparecida, a identidade de um grupo, sua religião mitos etc. Esse é o problema da atuação missionária: quando acabam com a religião do índio, tiram sua língua e põem a perder esse patrimônio.” “Enfim, o Censo 2010, por esses vários aspectos, vai trazer uma nova visão do índio. Eles são a cara do país”, avalia Marta. “Conhecer melhor, qualitativamente e quantitativamente, os indígenas vai ajudar a diminuir o preconceito da sociedade contra eles”, observar Gersem. “Os números vão mostrar para a sociedade que há mesmo um grande número de povos e línguas indígenas neste país e que isso não é invenção de antropólogos. Não se trata de discurso ou de diversidade inventada, mas da realidade mais profunda do Brasil.” n PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

89


fotos ARQUIVO/agĂŞncia estado


[ Literatura ]

Um gênio do ensaio Estudo afirma que o cronista Nelson Rodrigues era o “Montaigne do Brasil” Joselia Aguiar

O Nelson: o cronista vira ensaísta

lugar de Nelson Rodrigues (1912-1980) entre os grandes dramaturgos do século XX é já assegurado por algumas gerações de especialistas. O seu talento como ensaísta, embora não tivesse tal pretensão, é o novo ângulo defendido pelo crítico literário gaúcho Luis Augusto Fischer em Inteligência com dor, publicado pela Arquipélago Editorial. A singularidade da argumentação decorre do fato de se basear nas crônicas publicadas em jornal, nas quais Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de livros sobre Machado de Assis e Jorge Luis Borges, vê muito mais que comentários breves e triviais. Diante da excepcionalidade desses textos, explica, podem ser elevados a outra categoria. A denominação de “ensaísta”, e não “cronista”, dá um novo status, portanto, ao que Nelson Rodrigues publica despretensiosamente na imprensa. “O cronista é, em regra, um comentarista lírico da vida, ao passo que o ensaísta escreve com o cérebro ativo, ainda quando comente a vida cotidiana”, afirma o crítico gaúcho. “E o cronista tende a ser um autocomplacente, ao passo que o ensaísta é rigoroso e mesmo cruel consigo mesmo, e faz isso não por masoquismo, mas para conquistar um ponto de vista mais profundo e mais radical, escapando do círculo ameno da crônica, que se contenta com exterioridades”, acrescenta. Nascido em Recife, em 1912, radicado no Rio de Janeiro ainda criança, Nelson Rodrigues pertenceu a uma família de jornalistas – seu pai, Mario Rodrigues,

fundou o jornal carioca A manhã na década de 1920, e o irmão Mario Filho, que dá nome ao estádio do Maracanã, foi um dos mais importantes cronistas esportivos do país. Desde cedo o menino, que, em suas palavras, vê o mundo “pelo buraco da fechadura”, conhece a tragédia: o primeiro golpe é a morte do irmão Roberto, também jornalista, assassinado na redação. Com a Revolução de 1930 o jornal da família é empastelado. Nelson, que escreve para as páginas policiais e de futebol, se torna autor de peças teatrais cada vez mais consagradas. Na década de 1970, seu filho Nelson Rodrigues Filho passa para a clandestinidade, fugindo da ditadura, e nasce a filha Daniela, “a menina sem estrela”, com graves problemas de saúde. Nas crônicas reunidas em livros como O óbvio ululante e A cabra vadia, episódios da cena política e social e política do país são comentados, entre registros de seu cotidiano e o de sua família: da úlcera a dom Hélder Câmara e os novos costumes. Em obras como À sombra das chuteiras imortais, há as crônicas esportivas – tão surpreendentes que podem ser dedicadas, por exemplo, à cusparada de um jogador. O próprio PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

91


Nelson não tinha percepção do valor de suas crônicas. Eram feitas, como dizia, para “pagar o leite das crianças”, como um palpiteiro, um memorialista, que não raramente despertava a fúria de diversos setores da sociedade, que o consideravam ora reacionário, ora pornográfico. “Certamente ele não tinha na cabeça a tradição do ensaio. Acho que se pode dizer mesmo que ele não tinha sequer o conceito de crônica na cabeça. Mas sua intuição é o que importa, ao lado de sua capacidade de formar sua linguagem”, defende Fischer.

O

pai da ideia de um Nelson ensaísta, um “Montaigne do Brasil”, como adverte Fischer, é de Aníbal Damasceno Ferreira, jornalista e historiador a quem se deve também a redescoberta de outro autor, Qorpo Santo, na década de 1960. Foi num almoço em 1988 que Ferreira inspirou Fischer a investigar o tema. Pouco depois, o valor das crônicas do dramaturgo seria ressaltado por Ruy Castro, quando lançou a biografia O anjo pornográfico e coordenou a reedição de sua obra pela Companhia das Letras, na década de1990 – a Agir é hoje a editora que detém os direitos de publicação. Quem conhece as crônicas de Nelson Rodrigues costuma reconhecê-las

imediatamente quando as encontra outra vez. O autor não só escreve muito bem. Possui também, como observa o crítico, “um vasto repertório de manhas narrativas e dramatúrgicas”: retardamento da ação, dramatização da posição do cronista, desenho rápido e eficaz de personagens. É criador de expressões, como “óbvio ululante”, e personagens caricaturais inesquecíveis: o padre de passeata, a estagiária de jornalismo com calcanhares sujos, a grã-fina de narinas de cadáver. Quanto aos temas, como lembra Fischer, o mais original de sua criação está mais relacionado ao ponto de vista do que ao assunto. “Havia cronistas que também falavam da juventude, do futebol, da condição dos brasileiros, mas só ele tinha reflexões e palpites singulares sobre isso tudo.” Como todo bom ensaís­ ta, conseguia sair da estreiteza de seu tempo, libertando-se dessa constrição, para tentar avaliar as coisas do ponto de vista da eternidade. A melhor parte das crônicas de Nelson Rodrigues corresponde ao período de 1967 a 1970, da eclosão da Tropicália

Arcos da Lapa, no Rio: cenários

à Copa. Foi quando “atingiu o auge de sua linguagem, que ainda estava sendo lapidada”, explica o crítico. A esquerda e a juventude eram alvo constante de sua crítica mais mordaz. “Depois disso, em parte ele ficou previsível, porque já tinha encontrado aquelas expressões e confrontado aqueles inimigos. É também um período em que mesmo ele, de temperamento político conservador, precisou fazer radicais autocríticas, em razão da brutalidade da censura, por exemplo.” Para Fischer, o autor de Vestido de noiva pertence à linhagem dos gênios da linguagem, que agrega “poucos mas valorosos membros”. Na imprensa brasileira, diz que viu pelo menos outro caso de grande ensaísta, no mesmo sentido em que Nelson o é: Paulo Francis. “Mesmo com todos os descontos e ajustes necessários, também em sua obra, na imprensa e na ficção, pulsa um coração ensaístico, interessado em analisar mediante autoanálise e crítica profunda”, afirma. Outros autores escreveram e escrevem grandes crônicas, embora nem sempre: Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Millôr Fernandes e Luis Fernando Verissimo. No exterior, entre aqueles que, ligados à imprensa, demonstraram uma “originalidade expressiva”, destaca Karl Kraus e Jorge Luis Borges. “Diretamente, não enxergo discípulos de Nelson Rodrigues, talvez porque cada artista excelente seja mesmo ‘irrepetível’. Em geral, quem procura ser discípulo na base da imitação do estilo cai no ridículo, apenas mimetiza, e para ler cópia é melhor ir ao original direto.”

E

m Inteligência com dor, o crítico literário também defende que Nelson Rodrigues encerra um projeto construtivista moderno na literatura brasileira, que teve início com os parnasianos, alcança os modernistas e prossegue até os tropicalistas. O autor, segundo argumenta, é um desiludido com a fantasia vanguardista em sentido amplo, “aquela que move artistas a conquistarem o futuro aos gritos, confrontando a opinião média com gestos aparentemente transgressivos”. “Tal coisa se viu nesses grupos, com variações conforme a época e o gosto, mas não se vê em Nelson, nem mesmo em seu teatro, creio eu. Ali onde ele era

92

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173


Praia de Copacabana: inspiração para o cronista

transgressor não se tratava de vanguardismo, mas de profundidade trágica, no caso do teatro, e não se tratava de vanguardismo mas de ensaísmo, no caso da crônica”, ressalta. “Nelson se aproxima de um clássico, e portanto oposto ao temperamento vanguardista, que é romântico sempre.” Antes que qualquer outro autor no país, segundo Fischer, Nelson Rodrigues seria o primeiro a registrar o fim de uma era, a da Guerra Fria, a da disputa entre a economia de mercado e a economia centralizada e planificada. Poucos foram aqueles que perceberam contradições e, mais ainda, tiveram coragem de tornar sua crítica visível, o que se tornou mais fácil depois da queda simbólica do Muro de Berlim. Não se trata, como explica o crítico gaúcho, de ignorar o reacionarismo de Nelson nos anos 1960 e 70, nem de sugerir que ele tivesse uma interpretação crítica fundamentada numa leitura profética dos limites econômicos da antiga União

Com suas crônicas, Nelson Rodrigues foi capaz de construir uma teoria sobre o ser brasileiro Soviética. Ele foi um reacionário medonho, obtuso, por vezes risível de tão conservador, pondera Fischer. Porém, diz, estava certo “por pensar autonomamente e por adotar uma visada mais larga do que a triste e medíocre polarização que a ditadura impôs, tudo isso por não admitir que aqueles rumos fossem os únicos possíveis”. Com suas crônicas, Nelson Rodrigues foi capaz de construir uma

teoria sobre o ser brasileiro, algo que, como lembra Fischer, foi tão do gosto de ensaístas que escreveram sobre o tema no decorrer do século XX. São da lavra do autor frases que, em muitos casos, se tornaram bordão. Para lembrar algumas: “O brasileiro tem alma de feriado”, “O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”, “No Brasil, a glória está mais no insulto do que no elogio”, ou ainda “O brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de fé”. Fischer diz que o autor foi “o profeta do óbvio ululante”, com meios específicos de linguagem, que no português estavam “em estado de latência”. Realizou, assim, o sonho antigo de escrever “em brasileiro”, como quem bate papo, algo que Mário de Andrade já intentara e que, com Nelson Rodrigues, se concretizou. Foi com suas crônicas que, segundo o crítico, a linguagem literária se abrasileirou definitivamente. “Nelson é que fez a mágica”, conclui Fischer. n PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

93


resenha

A guerra de imagens A visão do candomblé presente em O Cruzeiro e Paris Match Ana Maria Mauad

P

ublicado em 2009, o livro Imagens do sagrado, do fotógrafo e antropólogo Fernando de Tacca, recebe o subtítulo “entre Paris Match e O Cruzeiro”, entretanto vai muito além do relato sobre as disputas e debates que envolveram a publicação, pelas duas revistas, de imagens reservadas dos rituais de iniciação do candomblé na Bahia, nos anos 1950. Resultado de um primeiro encantamento – a descoberta das fotografias de José Medeiros sobre tais rituais, em 1984, quando entrou em contato com o livro Candomblé, publicado em 1957 –, o livro de Tacca sugere muitos desdobramentos. A força estética das fotos de Medeiros o levou a uma aventura que não se define exclusivamente como antropológica, pois pode muito bem ser identificada com o trabalho de historiadores que se utilizam de fontes orais, na produção da história que as memórias criam e recriam, ou dos próprios jornalistas investigativos que buscam a “verdade por detrás dos fatos e das fotos”. No entanto, Fernando vai além... Arrebatado pelo olhar do fotógrafo, segue em direção à magia dos rituais e suas teias de significados e relacionamentos, num projeto de investigação que o coloca num caminho parecido com aquele trilhado por José Medeiros e o repórter Arlindo Silva em 1951, mas renovado por uma outra forma de operar a mediação fotográfica. Em vários momentos do livro, narrativas visuais compostas por séries de imagem agregam valor e densidade às informações apresentadas. Imagens que ilustram o texto, pois esclarecem e amplificam o significado das suas palavras. As fotografias das pessoas entrevistadas por Fernando ou, ainda, a reprodução das imagens publicadas nas revistas pesquisadas agem como luzes que se acendem iluminando

Imagens do sagrado Fernando de Tacca Editora Unicamp/ Imprensa Oficial 200 páginas R$ 40,00

94

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

o ritmo da leitura com um sorriso, um olhar, um trejeito, ou mesmo com a apresentação de um acontecimento completo. A análise do livro, por sua vez, revela um segundo encantamento – a descoberta do povo de Mãe Riso do Bairro da Plataforma, em Salvador, e de Nilópolis, no Rio de Janeiro, uma rede de memórias formada por pessoas que haviam mantido contato direto e indireto com os protagonistas de uma história vivida há mais de 50 anos. Filhos, sobrinhos, netos, irmãos, vizinhos e amigos tramam a teia das lembranças que serve de tecido ao primeiro capítulo. Nele acompanhamos Fernando nas conversas e nas negociações, nos encontros e desencontros, compartilhamos suas surpresas e decepções. Esse capítulo também dá pistas sobre a história recente do candomblé, principalmente sobre a relação ainda pouco estudada entre o candomblé da Bahia e o do Rio de Janeiro. Assim, só não foi possível, na leitura do capítulo, compartilhar as cervejas e as comidas fartamente servidas nesses encontros e relatadas nas cuidadosas descrições das etapas da pesquisa. O capítulo por si só já valeria um livro. Mas Fernando vai além... Ruma para a análise das disputas entre a imprensa internacional e a nacional, representada no embate Paris Match e O Cruzeiro, e avalia a perspectiva sensacionalista adotada por ambos os veículos de imprensa. Amplia o debate introduzindo as falas dissonantes da época, como fica evidenciado no capítulo 2, ao apresentar o posicionamento contrário de Pierre Verger à publicação de imagens reservadas dos rituais de candomblé. Ao longo da exposição dos seus argumentos, Fernando desenvolve uma espécie de contra-análise de histórias cristalizadas, apoiada em rigorosa pesquisa de arquivo. O resultado desse trabalho foi reconstruir a guerra de imagens que se desenrolava tanto nos terreiros de candomblé quanto nos espaços públicos da mídia que tinha a função de imaginar um Brasil mestiço, mas repleto de preconceitos. Ainda assim, Fernando foi além... Foi além pois criou uma metodologia de trabalho que reuniu sua experiência de fotojornalista à sensibilidade de um antropólogo afeito às imagens, como oportunamente observa na apresentação Milton Guran, ele também um fotógrafo e antropólogo que partilha com Fernando a experiência de criar um pensamento visual. Ana Maria Mauad é professora associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF e pesquisadora do CNPq.


livros

Einstein: muito além da relatividade

Itinerário de uma falsa vanguarda

Marcelo Knobel e Peter Schulz (orgs.) Instituto Sangari 192 páginas, R$ 35,00

Antonio Arnoni Prado Editora 34 296 páginas, R$ 42,00

A coletânea traz textos de sete pesquisadores analisando várias facetas do trabalho de Einstein. O livro é resultado da exposição do mesmo nome, cuja programação cultural, da qual resultam esses textos, esteve a cargo da revista Pesquisa FAPESP, que convidou os pesquisadores aqui reunidos.

Arnoni Prado irá explorar em seu livro uma compreensão mais abrangente do movimento modernista brasileiro voltando-se para o lado “sombrio” da “falsa vanguarda”. O autor acompanha trajetórias como as de João do Rio, Graça Aranha, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado analisando uma importante documentação sobre o pensamento literário, social e político conservador do país.

Instituto Sangari (11) 3474-7500 www.institutosangari.org.br

De sol a sol: a energia no século XXI Cylon Gonçalves da Silva Editora Oficina de Textos 128 páginas, R$ 59,00

O livro aborda um dos principais temas da atualidade: nossa relação com a energia. O autor faz um estudo das diversas fontes de energia que usamos em nosso dia a dia, como a hidrelétrica, o petróleo, os biocombustíveis etc. As alternativas energéticas viáveis para o futuro, o impacto no clima e no meio ambiente e as consequências socioeconômicas dessas escolhas são analisadas. Oficina de Textos (11) 3085-7933 www.ofitexto.com.br

Bioestatística em outras palavras

fotos Eduardo Cesar

Júlio C. R. Pereira Edusp/Fapesp 424 páginas, R$ 60,00

O médico epidemiologista Júlio Pereira apresenta os procedimentos estatísticos divididos em três grandes tópicos – relações de existência, de ordem e de dependência – analisando a princípio o conteúdo e só depois os cálculos. O livro traz dezenas de exercícios resolvidos, permitindo àqueles que utilizam estatística em seu cotidiano aferirem o conhecimento adquirido. Edusp (11) 3091-2911 www.edusp.com.br

Editora 34 (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Gaveta dos guardados e Tríptico para Iberê Iberê Camargo/Daniela Vicentini, Laura Castilhos, Paulo Ribeiro Cosac Naify e Fundação Iberê Camargo 144/446 páginas, R$ 25,00/R$ 49,00

Os dois livros completam a trilogia iniciada com Iberê Camargo: origem e destino lançada sobre o artista. Gaveta dos guardados agrega breves textos de memória da infância e formação do artista, é ilustrado com 37 imagens e tem apresentação de Augusto Massi. Tríptico para Iberê reúne três textos sobre diferentes facetas da produção pictórica e ficcional de Iberê Camargo (1914-94). Cosac & Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

Figurino teatral e as renovações do século XX Fausto Viana Estação das Letras e Cores/Fapesp 296 páginas, R$ 67,00

O autor resgata o trabalho de criação de trajes cênicos de sete encenadores do século XX que de alguma maneira contribuíram para a renovação dos padrões de interpretação teatral: Adolphe Appia, Edward Gordon Craig, Konstantin Stanislavski, Max Reinhardt, Antonin Artaud, Bertolt Brecht e Ariane Mnouchkine. Estação das Letras e Cores Editora (11) 4191-8183 www.estacaoletras.com.br

PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

95


ficção

Córtex

Guilherme Scalzilli

E

sta noite sonhei com o acidente pela primeira vez. Acordei ofegante, abalada pela súbita impotência dos remédios. Mentalizei o alerta para a enfermagem. Sei que tocou, pude ouvi-lo do quarto. Mas ninguém apareceu até agora, depois que as listras do sol já passearam no teto branco. O hospital continua mergulhado nessa quietude estranha. As janelas deixaram de ronronar a habitual agitação das ruas lá embaixo. Forçando o olho à esquerda, percebo que o soro acabou. Devo estar imunda, sinto odores sob o lençol. Entrevejo um canto do vidro que me exibe ao corredor. Não há sinal de movimento. Torço apenas para que a cabeça continue assim, com o queixo inclinado, permitindo-me respirar. Você procurava entre as ferragens, gritando por socorro. Diluindo-se nas luzes enevoadas da ambulância. Então surgiram enfermeiros em debandada. Médicos de máscara. Cientistas falantes montando e regulando equipamentos. Homens elegantes e solenes. Aquele velho de farda que chorou quando me viu. As lembranças ganharam coerência. Estiveram sempre ali, mas não conseguia decifrá-las. Agora percebo como progredimos desde os primeiros experimentos. Não percebi o tempo correr. Pudera. Concordo, é uma espécie de prisão. E alguém seria realmente livre, encapsulada nesta carcaça inútil? Considerando as circunstâncias, tenho sorte de contribuir para algo importante. Aliás, parece muito, muito importante. Mas ignoro as poucas digressões técnicas. Sei que não esclarecem coisa alguma. Quando ouso perguntar-lhes, quase nem se dão ao luxo de mentir. Tento não atrapalhar, já estorvo o suficiente. Você me conhece. Basta continuarmos unidas, nesse vínculo

96

n

julho DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 173

milagroso. A salvo de controles. Vencendo a distância e o isolamento em que me puseram. É o nosso segredo. É tudo que nos resta. Eles não sabem, não quis frustrá-los depois de tantas cirurgias, mas continuo vulnerável a sensações físicas. Em mim e nos outros. Soa desagradável? Pois garanto que tem um gosto emocionante de contravenção. É disso que se trata, afinal. Compartilhar estímulos. Fundir-se em outras mentes ativas. Participar de seus sonos inertes. Sorver tormentos e prazeres nos esconderijos mais íntimos, onde pulsam, à espera. Como tumores de possibilidades. Desbravar a matéria desconhecida, idêntica e previsível. Emancipá-la. Sim, prazeres. Ah, poupe sua mãe de pudores beatos. Faço tudo que me pedem. Ou não? Abro-lhes as imensidões microcósmicas de minhas tempestades nervosas, sem impor obstáculos a essa aventura incerta. Jamais sobreviveria se parecesse inapta ou resistente. Bastar-lhes-ia apertar um botão, ou deixar de acioná-lo. Creia, fizeram isso muitas vezes. Para eles não passo de uma velha fatigada, suspensa na brisa tênue do simulacro vital. Um emaranhado de células. Que eles ainda não conseguiram manter funcionando numa caixa sem desejos ou escrúpulos. Ainda. Ora. Nada mais inofensivo que o intercâmbio honesto entre pessoas adultas. E conscientes, na medida do possível. Míseras descargas elétricas. Comunhão de impulsos desprovidos de barreiras estéticas, etárias ou sociais. Ali, nos abismos das entropias alucinantes, podemos ser muitos, enormes, ágeis, viris. Podemos esquecer esses membros reduzidos a ossos. Os pudores inúteis. As carecas horrendas pontilhadas de sensores. Vocês, limitados à crosta sensível, não imaginam a plenitude da sintonia entre essências


Bel Falleiros

imemoriais. Elaboradas a partir dos mesmos resquícios primitivos, porém minuciosamente variáveis. Assustadoramente complementares. Diverte-me constatar que demorei anos para mover triviais peças de xadrez, teclas aleatórias, um único polegar mecânico. Arcaicos e desengonçados braços de ferro e fios. É fascinante acompanhar a inescapável obsolescência da tecnologia. De artifícios frágeis, que um dia pareceram definitivos. O pueril ilusionismo virtual. A combustão. Telefones. Mas você é jovem demais para saber. Conhece apenas essa completude automática, acessível ao toque, limpa de papéis, tempestades, inimigos reconhecíveis. Tudo fácil e asseado, longevo e seguro. Também usufruo uma ilusão de conforto. Apenas durmo. Distraída e aliviada por evasões clandestinas que meus guardiões provavelmente conhecem e toleram. Sobrevivo. Mas não pense que é fácil. Às vezes participo de certezas dolorosas bastante convincentes. E terríveis. Assustadoramente reais. Antes, quando me recuperava do trauma e as conexões ainda pareciam ingovernáveis, gostava daquilo. E, quer saber? Algumas torturas podiam ser libertadoras. Deliciosas. Ah, a adorável intransigência da carne ferida. A indescritível sensação de vitalidade que o suplício proporcionava. Depois a dor ficou repetitiva. Alienante, como a atrofia. Quase prefiro que me abandonem desperta, angustiada. Cansei da prostração confortável e passiva. Cansei de não sonhar. Precisavam realmente deixar-me tão alheia a tudo? Entendo. São os tais revolucionários. O exército de cérebros interligados ameaçando a civilização que os criou e desenvolveu. Detesto política, estou bem assim. Usem-me como quiserem. Iludam-se. É tarde para retroceder.

Mas... que barulho foi esse? Um tremor surdo. Um baque, um estampido, não sei. Lá fora. Janelas, paredes, teto, vibraram de repente. Veio de baixo. E parou. Silêncio. Espero. Reviro os olhos. Da rua chega um clarão vermelho. Não é crepúsculo, se esvai. De novo. A explosão. O quarto lateja por segundos. E agora. Mais próximo. Os suportes de soro caíram. Copos, bandejas. As máquinas, num estrondo. Metais. Estilhaços. Uma confusão de alarmes sonoros, por toda parte. Algo espatifa no corredor. Percebi um vulto. Uma sombra. Passou rápido, ali. É verdade. Voltou. Parece me observar. Sumiu. Tudo escuro. Apagaram-se as luzes do prédio. Os barulhos cessaram. Treva absoluta. Rumores imprecisos. Arranhões sutis, remexendo ao redor. Minha respiração atrapalha. Prendo o ar. Tento ouvir. Nenhum movimento. Noite opressa. Calor. Pulsações aceleradas. Um estalo. A porta. Abrem a porta. Há alguém no quarto. Posso ouvir seus passos. Senti-los. Vibram. Cadenciados. Rascam devagar sobre os cacos. Aproximam-se. Ao pé da cama. Ao meu lado. Aqui. É um travesseiro. Deita seu perfume gelado em meu rosto. Macio. Delicado. Filha, por favor, continue dormindo. Guilherme Scalzilli é historiador e escritor e colabora regularmente com a revista Caros Amigos, Le Monde Diplomatique, Observatório da Imprensa e outros veículos. PESQUISA FAPESP 173

n

julho DE 2010

n

97


·CLASSIFICADOS

Genômica, câncer e nutrição INSCRiÇÕES ABERTAS

Incon

International Conference on Nutrigenomics Gune-Dlat IntaraCtlon lor personallzed Health and DIsa8sePreuentlon

ICMAA

10tnInlernatlonal Conlerence on MeChanlsms 01 AntlmulageneSIS and Anllcarclnogenesls

September 26 - 29, 2010 - Hotel Sofitel Jequitimar - Guarujá - SP - Brasil

Inscrições antecipadas apenas pela internet www.eventus.com.br/ci/i ncon icmaa20 10

Informações http://www.nutrigenomicabrasil.org/congresso/

98 • JULHO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 173


» Anuncie você também:

• Pesquisa

I www.revistapesquisaJapesp.br

tel. (11) 3087-4212

TRADUÇÃO

ACAD~MICA & JURAMENTADA REVISÃO & INTERPRETAÇÃO

Laerte

J.

Silva

(3 I) 3498-6020 9992-8118 traduzdoc@gmail.com

• documentos • técnicas • acadêmicas

n" 768/09 Afiliado à ATA -

.....:". Equipe de revisores

Ijstrad2@ljstraducoes.com

oficiais

)UCEMG

American

Translators

Associatian

.

nativos

Inglês. espanhol. francês e alemão

ms Magnet Assisted Transfection O

~.BA

O

o complexo

ácido nucléico + nanoparticula é rapidamente entregue às células alvo

(MATra)

~

\

'/

~N"",A,_R=N=A'.-S...-iR_NA----::::=--.lr-_=-> T ransfecção magnética assistida (15 minutos)

BioTA@nology

MATra nanoparticulas (MagTag™)

---:aca

~

magnética Imã

Complexo DNA + nanoparticula

Placa de 6,12, 24 ou 96 poços

AUMENTE suas taxas de transfecção SEM eletroporação, Magnet Assisted Transfection

Monocamada de células

em minutos com MENOS etapas!

direto na placa de cultura

(MATra) é uma tecnologia de fácil manuseio, rápida e eficiente para transfecção de células em

cultura. Esta tecnologia faz uso de nano-particulas magnéticas (MagTag™), que não perturbam a arquitetura da membrana celular. Duas estratégias estão disponíveis: a tecnologia padrão Magnet Assisted Transfection "MATra-A ou MATra-si Reagents "; e a combinação da MATra technology com lipofecção ("MagnetAssisted Lipofection"), ou "MA Lipofection Enhancer" "IBAfect ''. Todas as tecnologias podem ser aplicadas às células aderidas ou em suspensão.

em associação com

Acesse - http://www.uniscience.com.br/lifescienceftransfeccao-magnetica

Vantagens

frente às transfecções

convencionais

• Fácil manuseio • Aumenta em centenas de vezes a expressão do transgene após curto período de incubação • Compatível com culturas enriquecidas com soro • Utilizado com sucesso em muitas linhagens e cultura primária de células • Não requer instrumentos caros como eletroporadores ou pistolas de partículas.

vendas@uniscience.com.br

UNISCIENCE


FOLHA DE S.PAULO Desde 1921

***

UM

JORNAL

A SERVIÇO

DO

BRASIL

folha.rom.br

Mais informação exclusiva, mais colunistas.

VOCÊ NÃO SABE COMO VAI SER O FUTURO. MAS O J0I!N~LQUE VAI LER VOCE JA S


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.