Vida no espaço

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Mais saúde, mais qualidade de vida, mais alegria. É, realmente merece um prêmio.

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, , PRÊMIO PEMBERTON , _ por uma vida mais saudável

A Coca-Cola Brasil lança a 2° edição do Prêmio Pemberton, que busca estimular pesquisas brasileiras na área de saúde. Se você trabalha com Medicina, Ciências Biomédicas, Nutrição ou Educação Física, faça com que a sua pesquisa seja transformada em hábitos saudáveis na vida de milhares de pessoas. Você ainda pode ser premiado por isso. Para informações, regulamento e premiações, acesse:

www.premiopemberton.com.br

VIVA

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POSITIVAMENTE


Beleza (quase)

invisível As imagens acima concorrem em The Nikon lnternational Small World Competition 2010, um concurso de fotomicrografias da Nikon, tradicional empresa de equipamentos ópticos e de precisão. A competição ocorre há 36 anos para mostrar as curiosas formas de seres e materiais microscópicos. Alvaro Migotto e Bruno Vellutini, pesquisadores do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo, estão entre os finalistas, que serão anunciados no dia 13 deste mês. No ano passado, Vellutini foi o quinto colocado. As suas fotos deste ano, no alto, são de um embrião e de um indivíduo jovem de bolacha-do-mar, e a de Migotto é de um embrião de estrela-do-mar. Todas as imagens podem ser vistas em www.nikonsmallworld.com.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 3


l76

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OU TUBRO 20 10

SEÇÕES 3 IMAGEM

DO MÊS

6 CARTAS 9 CARTA DA EDITORA 10 MEMÓRIA 24 ESTRATÉGIAS 40 LABORATÓRIO 64 SCIELO NOTÍCIAS 66 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESOUISA.FAPESP.BR

POLÍTJCA ClENIÍFICA E JLCNOLÓGICA CAPA 18 Bactérias super-resistentes poderiam viver fora da Terra ENTREVISTA 12 Médico, pesquisador e inventor Domingo Braile conta como construiu uma empresa de dispositivos cardíacos no interior de São Paulo

CAPA LAURA DAVINA FOTOS NASA VISTA DO ESPAÇO NA NEBULOSA CARl NA (FUNDO) E DUNA NA CRATERA PROCTER, EM MARTE

30 INTERNACIONALIZAÇÃO Laboratório quer atrair estrangeiros para pesquisa com luz síncrotron 34 Novos cursos de curta duração buscam mostrar a pesquisadores estrangeiros as oportunidades de atuar em São Paulo

36 Simpósio reúne brasileiros, britânicos e chilenos para discutir tópicos emergentes da ciência

44 GEOLOGIA Massas viscosas de rochas se misturam e podem sair como lava em erupções vulcânicas

38 INDICADORES Relatório de atividades 2009 destaca aumento dos recursos para bolsas e auxílios da FAPESP

48 PALEONTOLOGIA Livro conta a história de 21 espécies de dinossauros encontradas no território nacional 50 FÍSICA Equipe da Unicamp usa neutrinos para testar teoria de Galileu


52 AMBIENTE Censo internacional amplia conhecimento sobre a biodiversidade

54 BIOQUÍMICA Molécula direciona proteínas defeituosas para destruição

56 ANATOMIA Macacos das Américas usam vocalização para se comunicar

TECNQLDGilL

tiUMANIDADES

70 NOVOS MATERIAIS

80 HISTÓRIA

Nanotecnologia é utilizada para produzir filmes comestíveis e fertilizantes

Luxo místico e riqueza marcam a estética do cangaço

58 FISIOLOGIA Descobridor da neurogênese em adultos, Fred Gage investiga função dos novos neurônios

74 QUÍMICA Novos produtos podem remover petróleo derramado no mar

78 ENGENHARIA AMBIENTAL Projeto prevê o reaproveitamento de co2para cultivo de microalgas e cianobactérias

86 ECOLOGIA Dilema entre preservação e desenvolvimento é constante na história brasileira

90 LITERATURA Livro reúne 1.178 verbetes que ajudam a percorrer o caminho dos Sermões do padre português


FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

EMPRESA QUE APOIA A CIÊNCIA BRASILEIRA

CELSO LAFER PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PI VA, HERMAN JACOBUS COR NELIS VOORWALD, MARIA JOSÉ SOARES MENDES GIAN NINI, JOS É OE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYA N, YOSHIAKI NAKANO

BiOLAB

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTA NJ DIRETOR PRESIDENTE

FARMACÊUTICA

CARLOS HE NRIQUE OE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTiFICO J OAQUI M J. DE CAMAR GO ENGLE R DIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENT{rtCO), CARLOS HE NRIQUE DE BRITO CRUZ, CYLO N GONÇALVES DA SILVA, FRA NCISCO ANTÓNIO BEZERRA COU TINHO, JOAQUI M J. OE CAMARGO ENGLER, JOÃO FURTADO, JOSÉ ROBERTO PARRA, LUfS AUGUSTO BARBOSA CORTE Z, LUfS FERNA NDES LOPEZ. MARIE·ANN E VA N SLUYS, MÁRIO JOSÉ ABD AL LA SAAD, PAUL A MONTERO, RICARDO RE NZO BRE NTA NI, SÉRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARA L WA LTER COLU DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLI N EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HA AG ( HUMANIDADES), FABRfCIO MARQUES (POLITICA), MARCOS OE OLIVEIRA (TECNOLOGIA ), RICARDO ZORZETTO (CI(NCIA )

CARTAS cartas@fapesp.br

EDITORES ESPECIAIS CARLOS fiORAVANTI, MARCOS PIV ETTA (EDIÇÃO ON·L/N[) EDITORAS ASSISTENTES OI NORAH EREN O. MARI A GUI MARÃ ES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES OE ARAÚJO, MARGO NEGRO EDITORA DE ARTE LAURA DAVINA E MAYUMI OKUYAMA (COORDENAÇÃO) ARTE MARIA CECILIA FELLI E JÚLIA CHE REM RODRIGUES FOTÓGRAFO EDUARDO CESA R WEBMASTER SOLON MACEDONIA SOARES SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CATARINA BESSELL. DANIELLE MACIEL. EVANILDO DA SILVEIRA, FLÁVIO ULHOA COELHO, JOSELIA AGUIAR. LAURABEATRIZ, LEO RAMOS, MARIA CAROLINA SAMPAIO, MARLON FIGUEIREDO, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REF'LETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA FALAR COM A REDAÇÃO (11) 3087·4210

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SECRETAR IA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Fontes Mistas Gru po de produto proveniente defloreuasbemmanejadaJ eoutrasfon tu(ontroladas www.fsc.org Cen no. IMO·COC-42nS2 O 1996 fores! Stewardship Coundl

Este produto é impresso na PLURAL com papel certificado FSC - garantia de manejo florestal responsável, e com tinta ecológica Agriweb - elaborada com matérias-primas bioderivadas e renováveis.

Equador

Pichação

Na página 26 de Pesquisa FAPESP, edição 175, fala-se que o governo do Equador celebrou um acordo com a ONU para não explorar as reservas petrolíferas no país (nota " Petróleo intocado") . Devemos, no entanto, reportar que essa situação não foicelebrada sem antes de muita luta. Há anos os povos indígenas do Equador vêm sofrendo com doenças (além de problemas sociais e culturais) por causa da falta de cuidados ambientais das empresas petrolíferas que se instalaram na região. Como consequência, milhares de povos indígenas entraram com uma ação em Nova York, com vistas à reparação do dano ambiental por eles sofridos. Depois de muitos anos, a corte entendeu não ser competente e hoje o processo corre no Equador. Estudo justiça ambiental, direito ambiental e exploração de petróleo em meu mestrado em direito (sou bolsista da FAPESP). Agora, um pedido: gostaria que a revista abrisse mais espaço aos colegas juristas que fazem pesquisa. Não é tão comum como nas outras áreas, mas vem crescendo e será interessante ver a comunicação do direito com outras áreas.

Entendi a pesquisa de que trata a nota "Pichadores de São Paulo", da seção SciELO Notícias (edição 175), em parte, como justificativa e incentivo à ação contraventora e depredatória da cidade, por elementos delinquentes e semimarginalizados da sociedade. Não vejo absolutamente nada de estético, positivo ou qualquer outra justificativa, mesmo que devidamente explicadas pela antropologia ou sociologia. Vejo em tais ações o triste cenário da completa desintegração familiar e falência de instituições, dentre elas a escola, polícia e jurídicas, que levam esta grande parcela da população à inversão de valores sobre certo e errado no contexto de regras e leis que norteiam a vida em sociedade. É um triste indicador da cultura e educação deploráveis do povo. Acho que esses jovens precisam é de educação, disciplina e sobretudo de leis rigorosas.

CAROL MANZOLI PALMA INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCUlAÇÃO

6 • OUTU BRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Rio Claro, SP

PEDRO VIDAL

São Paulo, SP

Revista Quero agradecer o maravilhoso presente que todos os meses me é enviado. É um privilégio receber a melhor



CARTAS cartas@fapesp.br

revista publicada no Brasil. Leio Pesquisa FAPESP de "cabo a rabo", a começar pela Carta da Editora. É difícil dizer qual o melhor artigo, pois a cada novo número a revista se supera. A minha esposa é professora do ensino médio e por minha indicação ela começou a usar muitos artigos. Segundo ela, os alunos estão gostando muito. Na edição 175, a nota "Transição lusitana" conta que os 45% da eletricidade produzida em Portugal já provêm de fontes renováveis. Estive lá em julho e tive a oportunidade de ver pessoalm ente, nos pontos mais altos das serras lusitanas, o "bailado" dos moinhos de vento produzindo energia eólica. É um exemplo que deve ser seguido. Outra coisa que me encantou foi ver que Portugal, em 50 anos, duplicou as suas florestas. Foi o primeiro país da Europa a conseguir esse feito. ANTONIO AMARO

São Paulo, SP

Com especial satisfação, recebemos as edições 173 e 174 de Pesquisa FAPESP. Ambas abrigam material de grande valia, direcionando atenção excepcional aos livros, ciência, ambiente, tecnologia e oferecendo muito na área de cultura. O atual e abrangente si te conduz à área dedicada aos vídeos de divulgação científica, transformando-se em permanente convite para nossa atualização e aquisição de novos conhecimentos. EDUARDO BITTEN COU RT CARVALHO

Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo São Paulo, SP

Esta é, realmente, uma mensagem de agradecimento. É fantástico poder contar com uma revista dessa qualidade, com acesso irrestrito a todo o conteúdo. Eu, meus alunos e toda a ciência brasileira agradecemos. R EG INALDO D E ABRE U

Professor do ensino médio e pré-vestibular São José do Rio Preto, SP

8 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Mais conhecimento A notícia "À margem das pesquisas" veiculada pela Agência FAPESP sobre a falta de estatísticas acerca da educação informal ou fora das escolas tradicionais, bem como a queda na taxa de aumento das teses de doutorado nos últimos anos, conforme citado nos últimos números da revista Pesquisa FAPESP, mostra-nos claramente a mudança que está ocorrendo na forma de se adquirir conhecimento. Com exceção do meio acadêmico, em que é fundamental o mestrado e doutorado, hoje normalmente adquire-se um conhecimento técnico especializado por meio da internet e de cursos específicos de curta duração, obtendo-se com isso excelentes resultados a custos menores e com grande economia de tempo. Numa época em que se fala muito em incentivar investimentos em tecnologia por parte de nossas empresas, sendo a FAPESP pioneira nisso com o programa Pipe, seria muito importante que ela aprofundasse mais essa questão, que dificulta ainda mais o intercâmbio entre empresa e academia e consequentemente limita a criação de teses de doutorado com reais possibilÍdades de aproveitamento comercial. A própria universidade deveria também levar isso em conta, oferecendo cursos de curta duração nas áreas técnicas e valorizando o trabalho acadêmico realizado para a indústria como consulto ria e projetos, já que hoje nela só são levados em conta os papers publicados em revistas especializadas, muitas vezes realizados sem terem um objetivo prático em termos de aplicação. A médio prazo, essas mudanças afetarão diretamente a própria universidade, já que só serão necessárias aulas presenciais quando houver experimentos de laboratório ou acesso a equipamentos especiais. Júuo AuGUSTO LEITÃO MACHADO São José dos Campos, SP

Carta s para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 · 100 andar- CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As ca rtas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. OPINIÕES OU SUGESTÕES Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP, rua Joaquim Antunes, 727 10° andar, São Paulo, SP 05415-012, pelo fax (11) 3087·4214 ou pelo e·mail: cartas@fapesp.br

SITE DA REVISTA No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

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No espaço sem frontei ras MARILUCE MouRA - DrRETORA DE REDAÇÃO

os meus ouvidos sempre soou espantosa a naturalidade com que um astrofísico consegue se referir a um corpo celeste qualquer a 20 ou 30 anos-luz de distância da Terra. Imagine-se então a sensação de ouvir, no curso de uma palestra sobre a busca de planetas habitáveis, uma astrônoma escocesa dizer tranquilamente que identificou "um alvo promissor" a 59 anos-luz de nosso castigado planeta, embora acredite haver outro nas imediações dos 33 anos-luz. Registre-se que eu ainda não sabia que em 29 de setembro astrônomos norte-americanos anunciariam mais um candidato a 20 anos-luz. Enquanto ela fala, vou lembrando de recente entrevista de Stephen Hawking ao site Big Think em que o cientista dizia que a única chance de sobrevivência a longo prazo da espécie humana seria ela deixar a Terra e habitar novos planetas, tarefa na qual, aliás - argumentava -, deveríamos concentrar esforços nos próximos dois séculos. Achara o comentário um tanto inusitado e tinha duvidado de sua seriedade para não correr o risco de suspeitar da sanidade do genial físico inglês. Mas nem bem saíra dessa digressão e ouço outro palestrante mostrando à plateia inimagináveis condições ambientais extremas- de frio, calor, acidez, radiações, deficiência de oxigênio etc. etc. - em que, contra qualquer senso comum, a vida se manifestara. E a provocadora pergunta "o que é a vida?" lançada pelo jovem palestrante brasileiro pairava no ar com sutis sugestões de que parece no mínimo improvável nossa velha Terra ser o único lugar a propiciar a existência da vida, de qualquer forma de vida, entre os zilhões de astros dos bilhões de galáxias do Universo. Ou, ligando isso a Hawking e à cientista escocesa, ser o único reduto a viabilizar a sobrevivência da espécie humana. Esse debate nos limites mais avançados do conhecimento em astrobiologia- área que investiga as condições essenciais para o surgimento da vida, procura indícios de vida fora da Terra e pesquisa outros mundos habitáveis - ocorria no final de agosto em Itatiba, São Paulo, dentro do excelente simpósio Frontiers of Science, patrocinado pela FAPESP e Royal Society. Embora tentada, não vou me deter em detalhar o evento, nem o enorme poder ali en-

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trevisto da imaginação na criação de conhecimento, apenas remeter o leitor interessado ao texto de nosso editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, que o explica bem na página 36. Fico ainda na astrobiologia porque, ouvindo o jovem Douglas Galante expor as evidências de sobrevivência de microrganismos em ambientes terrivelmente adversos em nosso planeta, explicar a possibilidade de bactérias super-resistentes viajarem vivas pelo espaço agarradas a minúsculos fragmentos de poeira e, por fim, falar do primeiro laboratório nacional dedicado à astrobiologia que a USP está implantando em Valinhos, pensei que ali tínhamos material fascinante para uma reportagem. E, de fato, bem trabalhada por Maria Guimarães, nossa editora assistente de ciência, que tratou de ouvir muita gente que lida com o tema, a reportagem que começa na página 18 foi alçada a objeto da capa da revista. Observo que o simpósio Frontiers of Science, espécie de vertiginosa viagem, constituiu uma ação integrada a um esforço que vem sendo feito em São Paulo, sob a liderança da FAPESP, para dar dimensão internacional à produção científica no estado. Nesse sentido, chamo a atenção para a série de reportagens elaboradas por Fabrício Marques sobre diferentes experiências de internacionalização levadas a cabo por grupos de pesquisadores paulistas que a revista começou a publicar na edição passada. Desta vez o foco está na equipe coordenada pelo físico Yves Petroff, diretor científico do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), a partir da página 30. Em termos breves, pelo imperativo do espaço exíguo e não por merecimento, destaco nesta edição a reportagem da editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, que descortina as largas possibilidades do universo da nanotecnologia aplicada à alimentação e à agricultura, a partir da página 70; a reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag, sobre as cores e a estética estratégica dos cangaceiros, a partir da página 80; e, para fechar, algo mais sobre o que fisicamente nos vincula a mundos e conhecimentos, nosso cérebro, falado dessa vez por Fred Gage, via entrevista realizada por nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto (página 58). PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 9


Respostas ao tempo Há 130 anos era criado o Lazareto dos Variolosos, atuallnstituto de lnfectologia Emílio Ribas NELDSON MARCOLIN

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m lugar ermo, em um dos pontos mais altos da capital paulista, foi escolhido pela Câmara Municipal para isolar os pacientes com varíola na segunda metade do século XIX. O local só tinha vantagens, segundo a visão da época: era próximo do cemitério e distante do centro, havia poucas residências nas imediações e os ventos não sopravam com frequência em direção à cidade, na época com pouco mais de 40 mil habitantes. Em 1880 foi inaugurado o Lazareto dos Variolosos ao lado da estrada dos Pinheiros (atual avenida Rebouças), que se transformou em Hospital de Isolamento oito anos depois, Hospital Emílio Ribas em 1932 e Instituto de Infectologia Emílio Ribas em 1991. "É uma das instituições precursoras de São Paulo como metrópole moderna, um dos pilares de uma cidade em formação", diz a pesquisadora Monica Musatti Crytrynowicz. Ela é coautora com Roney Crytrynowicz e Ananda Stücker do recém-lançado Do Lazareto dos Variolosos

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Ribas, o Hospital de Isolamento, em 1902, e o Pavilhão de Observação (à direita), em 1894, que fazia a triagem dos doentes

ao Instituto de Infectologia Emílio Ribas - 130 anos de história da saúde pública no Brasil (editora Narrativa Um I Governo do Estado de São Paulo, 192 páginas). Embora o terreno fosse da Câmara, a construção acabou bancada pela população paulistana por meio de donativos. O prédio do hospital foi construído em um único pavimento de acordo com as teorias da época sobre transmissão de doenças. Havia uma grande preocupação com a circulação do ar. O piso do lazareto era elevado em relação ao solo, com aberturas para ventilação. O pé-direito era alto e as janelas grandes. No telhado, um ventilador renovava o ar. Esses cuidados derivavam da crença na contaminação por miasmas, emanações que propagariam as doenças. As descobertas que resultaram na microbiologia, de Louis Pasteur, Robert Koch e Joseph Lister, ainda

estavam acontecendo na Europa e pouco se sabia delas por aqui. Com a Constituição republicana de 1891, os estados passaram a administrar a saúde pública. Os novos poderes permitiram ao governo paulista criar já no ano seguinte o Serviço Sanitário e novos órgãos, como os laboratórios de Análises Químicas, o Bacteriológico, o Farmacêutico e o Instituto Vacinogênico. Em 1898, Emílio Ribas foi nomeado diretor do Serviço Sanitário, ao qual cabia a responsabilidade sobre o Hospital de Isolamento, novo nome do lazareto. Médico bem informado, leitor atento das novidades científicas, Ribas fez uma experiência marcante nas dependências do hospital onde confirmou, ao lado de Adolfo Lutz e outros voluntários, a transmissão da febre amarela por mosquitos (ver Pesquisa FAPESP n° 157). No século XX o corpo clínico cresceu para atender à maior demanda. "O hospital sempre esteve na linha de frente do combate às epidemias", diz Arary da Cruz Tiriba, médico e professor de medicina que começou a trabalhar no Emílio Ribas no começo dos anos 1950. Aos 85 anos, ele lembra que a pesquisa realizada ali sempre foi de campo, quando se investigavam surtos de doenças em todo o estado, e de enfermaria.

Poucas instituições do século XIX atravessaram o século XX para se tornar modelo e referência no século XXI

"Alguns de nós, porém, faziam questão de publicar suas descobertas e conclusões, como José Toledo Piza, que fez a primeira descrição da febre maculosa brasileira em 1932." Nos últimos 40 anos o hospital se consolidou como referência na formação de condutas, geração de conhecimento e treinamento de especialistas em infectologia. Entre 1971 e 1975 teve papel central no enfrentamento da meningite meningocócica -em 1974 o hospital chegou a internar 1.200 pacientes. No início dos anos 1980 a chegada da Aids mudou o hospital e a própria especialidade de doenças infecciosas, de acordo com David Uip, atual diretor do instituto. "Saímos de uma especialidade de endemias, de trabalho de campo, para uma especialidade de ponta em atendimento hospitalar", disse ele em depoimento para o livro comemorativo. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 11


DominQo Braile

Inovações cirúrgicas Médico, pesquisador e inventor conta como construiu uma empresa de dispositivos cardíacos no interior de São Paulo NELDSON MARCOLIN

cirurgião Domingo Braile poderia ser conhecido hoje como engenheiro, empresário, piloto de avião ou, ainda, como um bom mecânico. Sua opção pela medicina, porém, não o impediu de exercer todas essas atividades. Se, ao contrário, tivesse escolhido qualquer outra profissão, provavelmente ele não conseguiria ter sido cirurgião. Foi graças à influência do pai e a visitas constantes a oficinas de carros em São José do Rio Preto que o médico conseguiu conciliar suas habilidades. Hoje tem no currículo 25 mil operações cardiovasculares, a criação de uma empresa que faz pesquisa e desenvolvimento de equipamentos cirúrgicos, a implantação de 21 serviços médicos em hospitais de São Paulo e de cidades do interior e uma intensa vida acadêmica, com 260 artigos publicados em periódicos científicos. Domingo Braile foi discípulo de Euryclides Zerbini, o primeiro cirurgião a fazer transplante de coração na América Latina. Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) foi aluno e colega de uma geração que criou e desenvolveu a cardiologia brasileira, cujo centro era São Paulo. Mesmo assim, manteve o plano original de voltar à cidade onde cresceu, São José do Rio Preto, para fazer lá o que só era feito na capital: cirurgias cardíacas a céu aberto, como é chamado o procedimento em que se abre o peito do paciente para reparar o coração por dentro. Para tanto, era preciso o apoio de uma bomba coração-pulmão artificial- ou máquina de circulação extracorpórea- para fazê-lo parar sem matar o paciente. Braile já havia feito junto com Adib Jatene duas dessas bombas na oficina do Hospital das Clínicas da FMUSP. Fez o mesmo em Rio Preto e come12 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

çou a operar. O domínio no campo médico, mecânico e eletrônico o levou a criar a empresa bem-sucedida de hoje, a Braile Biomédica. Na área acadêmica, ele percorreu outras universidades, além da USP, como a Federal de São Paulo (Unifesp) e Estadual de Campinas (Unicamp) e foi cofundador da Faculdade de Medicina de Rio Preto, a Famerp. Como editor da Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular a transformou nó único periódico da especialidade do hemisfério Sul, mais América Latina e Caribe, que está no ISI-Thomson, desde o ano passado, além do PubMed/ Medline e da SciELO. Braile aprendeu a pilotar avião aos 17 anos, o que terminou sendo útil anos depois para se deslocar rapidamente entre cidades distantes- Rio Preto fica a 450 quilômetros (km) da capital e a 300 km de Campinas. Aos 72 anos, autor de dois livros (Millenium, 2000, e Crônicas de um médico do sertão, 2008), é pai de duas filhas . A advogada Patrícia o substituiu na presidência da empresa e a cardiologista Valéria ch efia o Instituto Domingo Braile, a clínica da família. Abaixo, os principais trechos da entrevista realizada em Rio Preto. • Quando o senhor se formou em 1962, tinha na FMUSP professores como Zerbini e fatene e conhecia Hugo Felipozzi, que fez a primeira máquina de circulação extracorpórea no Brasil, em 1955. Foi com eles que o senhor aprendeu a trabalhar tanto na sala de cirurgia quanto na oficina? -A escola era muito boa, considerada de nível A internacionalmente. Podíamos até trabalhar nos Estados Unidos, sem problemas. Os alunos também eram de primeira linha. Ricardo Brentani e Walter Colli, por exemplo, foram meus colegas de classe. Alguns dos médicos que



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estavam desenvolvendo a cirurgia cardíaca nos anos 1950 e 1960 eram nossos professores e eles precisavam construir seus próprios aparelhos se quisessem avançar. Havia certa hegemonia para quem sabia fazer mais coisas.

• Zerbini incentivava essa prática? -Ele foi fundamental, sempre apoiado pelo professor Alípio Correia Neto, uma figura importante para a Faculdade de Medicina. Eles tinham um sentido de brasilidade muito forte. Quando via uma bomba de cirurgia extracorpórea importada, Zerbini ia direto ao ponto, sem muitas divagações: "Desmonta essa máquina e veja o que tem lá dentro. Deve ter meia dúzia de peças simples e vendem para a gente por um preço absurdo". Naquela época, no final dos anos 1950, só tínhamos duas bombas no HC, importadas. Ele dizia que se não aprendêssemos a fazer máquinas como aquela jamais progrediríamos. E olha que ele não sabia nada de eletricidade nem de mecânica. Começamos em uma oficina que funcionava no porão do H C. Era uma salinha que tinha três funcionários e eu.

• De qualquer forma, o senhor foi mexer com isso porque gostava, e não apenas por necessidade.

Em 1973 fiz minha primeira válvula de pericárdio de boi. Em 1977 ela estava no mercado. Agora chegamos a 70 mil fabricadas cânico muito bom e foi lá que aprendi a mexer com motor. Naquela altura já tínhamos mudado para Rio Preto. Durante o período em que fiz o científico [um dos dois cursos do atual ensino médio] também frequentei oficinas mecânicas.

• E por que não se tornou engenheiro em vez de médico?

-Eu gostava, sim. Meu pai era da Calábria, na Itália, formado na Faculdade de Medicina de Nápoles, em 1923. Lutou na Primeira Guerra Mundial e chegou a ser secretário comunal, um cargo importante que tem poder sobre determinada região. Mas percebeu que as coisas não iam bem, se desentendeu com o partido que estava em ascensão na Itália e veio para o Brasil apenas com a mala, em 1929. Ele tinha um tio em São Carlos e ficou trabalhando pelo interior de São Paulo enquanto se preparava para fazer a revalidação do diploma. Era preciso escrever cinco monografias e, claro, saber português. E fez isso na cidade onde nasci, em Nova Aliança, perto de São José do Rio Preto. Meu pai tinha uma noção muito clara do que seria o século XX. Quando eu tinha lO anos, me mandou para uma oficina mecânica de automóveis.

-A influência de meu pai era muito forte. Ele foi o médico que eu nãp fui, um médico de família. Tinha uma memória fantástica e sabia o nome do cliente, do pai, da mãe, dos filhos, tudo. O consultório era na parte da frente da casa onde morávamos. Ele tinha uma visão muito interessante do futuro. Lembro que nos dizia que teríamos uma televisão como se fosse um quadro que penduramos na parede. E mais: não precisaríamos comprar as pinturas que vemos nos museus porque bastaria colocar na TV e ela ficaria trocando os quadros sozinha. Ele já pensava dessa forma nos anos 1940. Também era hábil para consertar tudo o que aparecesse na frente.

Quando o senhor ainda estava no grupo escolar?

- As duas coisas mais o incentivo dado pelo professor Zerbini. Em 1960, estava entrando no elevador da Faculdade de

-

Exato. Nessa oficina tinha um me-

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• Então quando o senhor foi fazer medicina já levou as duas referências decisivas para sua carreira, a influência do pai e a habilidade com máquinas.

Medicina quando apareceu um sujeito grande, que eu não conhecia pessoalmente. Ele me apontou o dedo e perguntou se eu era o Braile. Assenti. Ele disse que era o Adib Jatene- que já tinha nome na faculdade - e me perguntou se era eu que estava fazendo uma bomba extracorpórea. Respondi que sim. Ele pediu, "Podemos trabalhar junto?': Fiquei surpreso e disse que eu é que iria trabalhar com ele, e não o contrário. O Adib é muito bom mecânico e um torneira extraordinário, embora não saiba muito de eletrônica. Certa vez veio a São Paulo um professor muito importante do Canadá, junto com a mulher. O Adib estava almoçando com os dois quando ela começou a falar sobre as mãos dos cirurgiões, de como eram preciosas, delicadas, que curam etc. O Adib olhou para as próprias mãos, que tinham dedo sem metade da unha, parte de outra unha ainda com graxa que ele não havia conseguido tirar e estava toda preta ... Ele foi escorregando as mãos devagar para debaixo da mesa.

• fatene também parece ter sido uma grande influência para o senhor. -Éramos muito ligados. Depois o Adib foi para o Instituto Dante Pazzanese e até hoje tem a Fundação Adib Jatene que fabrica máquinas para hospital. Ele trabalha com coração artificial há muito tempo, com engenheiros excelentes.

Ele colaborava com empresas que fabricam dispositivos médicos? -Colaborou muito com a Macchi, predecessora de uma multinacional que hoje está instalada em Sorocaba, a Nipro. A Macchi foi fundada pelo cirurgião cardíaco Hélio P. Magalhães. O Adib nunca foi dono, mas desenvolvia os produtos no Instituto Dante Pazzanese e repassava para a empresa. Obteve grandes progressos nesse processo. A Macchi fez oxigenadores, bombas extracorpóreas e muitos equipamentos médicos. O Adib sempre foi muito ligado à terra. Continua andando a cavalo ainda hoje, aos 81 anos. É uma pessoa indescritível. Tem uma enorme capacidade inventiva na cirurgia e no desenvolvimento de equipamentos. Mas ele sempre me disse que ao fazer indústria eu só enfrentaria durezas. Aliás, ele fala isso até hoje e tem razão.

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• Quando voltou para Rio Preto? - Quando acabei a faculdade, em 1962, já sabia bastante sobre aparelhos médicos e cirurgia cardíaca. Era engraçado porque ainda na graduação eu era monitor e dava aula de técnicas cirúrgicas para residentes. Eles ficavam muito bravos com isso. • O senhor já operava quando era

estudante? - Só cachorro, a partir do terceiro ano. Depois tive um treinamento muito bom com o Zerbini e o Adib. Naquela época, poucos se atreviam a mexer com cirurgia cardíaca. Quando andávamos pelo corredor da faculdade, sempre vinha algum comentário do tipo, "Lá vão os assassinos. Quantos vocês vão matar hoje?". Isso ocorria porque no início muitos morriam. Entre julho de 1958 e abril de 1963 um grupo de mil pacientes foi submetido à cirurgia com emprego de circulação extracorpórea; 680 no HC da FMUSP e 320 no Instituto de Cardiologia do Estado de São Paulo. Nos primeiros 100 casos, amortalidade foi de 25%; nos últimos 100, caiu para 7%. Esses números iniciais assustavam as pessoas. Sempre digo que, por onde quer que se olhe, a saga da cirurgia cardíaca é muito bonita, não só no exterior, mas aqui também. O HC foi o foco disso quando nem existia o InCor [Instituto do Coração da FMUSP]. Zerbini operava pulmão e coração sem circulação extracorpórea no Hospital Beneficência Portuguesa e no Instituto de Cardiologia, onde trabalhava o Dante Pazzanese [que hoje dá nome ao instituto]. Formou-se um grupo fantástico que tinha Zerbini, Arruda, Bittencourt e Dante. • Por qual razão o senhor deixou um centro tão importante, onde as coisas estavam acontecendo, para voltar a Rio Preto? -Sempre achei que aqui era o meu lugar e que deveria implantar um serviço de cardiologia no interior, incentivado pelo Gilberto Lopes da Silva Júnior, um médico importante para a cidade. Mas mantive bastante tempo uma grande ligação com São Paulo- às vezes, ficava meses lá. Na época, começo dos anos 1960, Rio Preto tinha 80 mil habitantes e 80 médicos. O exame mais importante que se fazia era o hemograma. Não havia nem dosagem de gases. Quando

casei, alguns tios da minha mulher nos deram dinheiro de presente. Usei para ir comprando alguns equipamentos e material já pensando em construir uma bomba. Fui a uma serralheria que fazia ferradura de cavalo e grades para jardins e vitrôs. E lá fiz uma máquina para que eu pudesse operar. Não teria dinheiro para comprar uma importada, que é muito cara. Como já construía as bombas do HC, fiz uma aqui também.

• Foi a partir daí que o senhor começou a montar sua empresa? -Não, demorou. Só em 1968 é que consegui reunir todos os cardiologistas de Rio Preto, trouxe um colega de São Paulo e montamos o Instituto de Moléstias Cardiovasculares (IMC), que existe até hoje. Foi nesse instituto que instalei uma oficina pequena em uma sala. Consegui bons mecânicos para trabalhar e começamos a fazer outros aparelhos. Antes disso, entre 1960 e 1961, começaram a aparecer as primeiras válvulas cardíacas. Quando se operava o doente, ou se conseguia reparar a válvula do coração ou ele morria. Não havia o que fazer. O Adib Jatene conseguiu fazer a primeira válvula mecânica de Starr-Edwards, que é a que usa uma bolinha. Foi muito interessante porque a bolinha original era de silicone e não sabíamos como fazer. Acabamos indo a um borracheira e improvisando. Resultado: todas as válvulas originais dos norte-americanos acabaram se estragando. A do Adib nunca estragou. • Quando surgiram as válvulas biológicas? -Só alguns anos depois, mas ninguém sabia fazer direito. Os professores Ênio Buffolo e Hugo Felipozzi, os dois da Escola Paulista de Medicina [Unifesp), tentaram fazer algumas. O Ênio tem a primeira tese sobre válvula homóloga, que era tirada de cadáver, esterilizada e montada sobre um suporte. Eu já havia trabalhado com isso, com enxerto de aorta conservado em álcool. Também trabalhei com enxerto de traqueia- aliás, foi o primeiro trabalho que publiquei, em 1960, ainda estudante. Pegávamos a traqueia conservada em álcool e colocávamos na traqueia de cachorro. Não deu muito certo, mas foi um dos primeiros trabalhos de enxerto de traqueia feitos

Braile (ao fundo) na oficina no porão do HC em 1960, ainda com roupa do centro cirúrgico

no mundo. Aqui em Rio Preto, depois de fazer a bomba extracorpórea, operávamos os pacientes de graça em um hospital privado, o Santa Helena, do Gilberto Lopes da Silva Júnior. O problema é que não tínhamos válvulas biológicas. No HC de São Paulo começou-se a fazer válvula de dura-máter [a meninge mais superficial]. Tiravase a dura-máter da cabeça do cadáver e fazia-se a válvula. No início, foi um sucesso internacional, mas depois se mostrou inviável. A válvula com pericárdio de boi começou com Marion Ionescu, em Leeds, na Inglaterra. A válvula chamava Ionescu-Shiley. No caso, o primeiro nome é do médico e o segundo do engenheiro. Esses nomes duplos são muito comuns quando se trata de aparelhos, dispositivos e técnicas desenvolvidos conjuntamente por médicos e engenheiros. Fui para Leeds, conversei com o Ionescu, mas ele não me contou nada. Depois fui para a Argentina, onde tinha um grupo que mexia com válvula, e eles sabiam menos do que eu. Por fim falei com o Ênio Buffolo, que sabia um pouco. O fato é que ninguém tinha muito claro como fazer. Então me dediquei a isso e em 1973 fiz a minha válvula de pericárdio de boi com sucesso. Em 1977 ela estava no mercado. Hoje completamos cerca de 70 mil válvulas fabricadas. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 15


• Foi sua criação mais importante?

• Por quê?

- Foi. E feita aqui no Brasil. Ela está muito bem estudada. Temos um banco de análise de pericárdio que ninguém tem no mundo. Foram 200 mil pericárdios testados para tração, encolhimento, elasticidade ... Fazemos com muito rigor e criamos os parâmetros do que é bom e do que não convém. Também meu doutorado foi sobre o pericárdio. Agora existe uma pressão para apresentarmos trabalhos novos sobre a válvula. Digo que agora não dá. Trabalhos originais sobre ela só virão em 15 anos. Temos vários tipos de válvulas novas, mas é preciso muito cuidado antes de afirmar que todas são seguras. Há as descelularizadas, por exemplo, e outras que passam por tratamentos especiais, todas feitas aqui na Braile. Quando fiz a primeira com pericárdio de boi, queria que ela durasse três anos pelo menos. Depois a expectativa aumentou para 5 anos, 10 anos e 15 anos. Agora desejamos que dure 20 anos- ou para sempre. Mas é muito difícil. As que são naturais do organismo não duram, imagine as artificiais. E a válvula mecânica tem problemas, é sujeita a trombose e a anticoagulação é difícil de controlar. A empresa Macchi se interessou em comercializar as válvulas de pericárdio quando eu ainda estava no IMC, em que éramos 13 sócios. Concluímos que essa era uma área interessante e montamos laboratório e oficina em uma casa à parte. Começamos a fazer bombas, oxigenadores e produtos para hospitais. Mas depois de alguns anos fui excluído da sociedade. Achava que deveríamos progredir em várias direções e os outros sócios não concordaram.

- Eu queria fazer um hospital. Tinha tudo pronto, planta, terreno comprado, planos. Os sócios achavam aquilo um absurdo, criou-se um ambiente muito difícil e foi mais fácil me mandar embora, em 1991. Na divisão, fiquei com a parte biomédica, que na época devia uns US$ 3 milhões. Ou seja, ganhei um prédio meio vazio e dívidas. Foi aí que nasceu a Braile Biomédica, que, até a ruptura, era um braço da IMC. Com a exceção de um, todos os outros cirurgiões saíram comigo. Foi uma fase muito difícil. Fui posto para fora de uma instituição que eu havia fundado e onde fiquei 25 anos. E sem dinheiro, sem saber se conseguiria comer o resto do mês. Mas conseguimos ir em frente e firmamos a Braile, hoje com 50% do mercado brasileiro.

• Tudo o que se constrói na Braile é com material brasileiro? - Não. Mas isso não é tão importante. Sempre repito uma frase de Winston Churchill, "O imperador do futuro será um imperador de ideias". O conhecimento está difundido no mundo inteiro. Pode-se ter acesso praticamente a qualquer revista e livros pela internet. Hoje você tem a ideia e vai buscar os insumos onde eles estão para concretizá-la. Apesar de comprarmos muitos insumos no exterior, todo o resto é feito aqui: a concepção dos projetas, design e os moldes para injeção. Um molde para oxigenador custa US$ 100 mil. Se tivermos de comprar um molde estamos mortos, porque fazemos 2 mil ou 3 mil oxigenadores por mês. Por ano chegamos a 30 mil. Um molde para bo-

necas ou canos faz milhões de cópias. Nós fazemos poucos milhares. Temos também uma serralheria para fazer as caixas de aço inox. É tudo caro porque é manual, mas não tem outro jeito porque a produção é pequena. Outro exemplo: o mercado internacional para as bombas de cirurgia extracorpóreas é quase zero. Temos 500 bombas nossas usadas pelo Brasil, a maior parte delas em comodato. Ou seja, cedemos ao hospital para eles usarem o material descartável. E fazer a bomba custa caro.

• Mas tudo isso já era conhecido. Por que, ainda assim, o senhor persistiu com a empresa? -Temos de lidar com os entraves que existem no Brasil, sem desistir facilmente. Por isso é tão necessária a ajuda à indústria nacional, para não ficarmos eternamente dependentes da tecnologia do exterior. E olha que não tenho nenhum problema em copiar. É bobagem ficar querendo inventar sempre a roda. Ao copiar, sempre se modifica alguma coisa e é possível patentear o processo de fabricação. Não dá para patentear a roda, mas dá para fazer isso com um processo de fabricação de roda mais eficiente. Temos alguns marcadores de viabilidade no Brasil- a Embraer, a Embrapa e a Petrobras são bons exemplos. E, claro, não podemos esquecer que a cardiologia brasileira compete em pé de igualdade com qualquer país do mundo e em todos os sentidos. Quando falamos de preço, então, ganhamos fácil. Isso ocorre porque houve uma indústria desse setor que se desenvolveu. A Macchi, a Braile, a DMG, que é uma empresa do Rio, foram fundamentais para isso. Com elas passamos a ter equipamentos para cardiologia feitos aqui, com qualidade. É comum recebermos médicos criativos na empresa, que nos trazem propostas de novas máquinas e dispositivos, mas não temos como atender a todos. Não tenho nem engenheiros suficientes para isso aqui. Agora mesmo estou procurando um engenheiro ou físico médico para ajudar a desenvolver a área de endopróteses e não acho. • Quantas patentes o senhor tem?

Stent fabricado pela Braile

16 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

-Como inventor, entre patentes e modelos de utilidade, tenho 19 [patente é uma ideia totalmente nova e modelo de utilidade é um melhoramento de al-


gum projeto que o transforma em algo novo]. Hoje temos 15 doutores e 500 funcionários na empresa. A média de escolaridade dentro da fábrica é de 14 anos. É maior que a média das empresas nos Estados Unidos, de 12 anos.

• A Braile conseguiu financiamento recente da Finep? -Finalmente conseguimos R$ 5 milhões para quatro projetas, com contrapartida também de R$ 5 milhões. Esse ainda é um problema para as empresas que estão precisando de dinheiro para desenvolver projetas e, geralmente, não têm. Temos de tentar desenvolver a indústria nacional de qualquer jeito ou passaremos a comprar tudo da China. Até junho deste ano o déficit brasileiro de produtos manufaturados era deUS$ 60 bilhões. Nossa situação só não é pior porque exportamos muita soja e minério de ferro. É isso o que faz a balança ficar um pouco positiva, de cerca de US$ 1 bilhão. É muito pouco. • Vamos voltar a falar de medicina. O senhor foi pioneiro da cirurgia cardíaca em vários hospitais de São Paulo e em cidades do interior. Foi por gosto ou necessidade? - Mais por gosto. Apesar do lado empresarial, sempre fui mais ligado à academia. Em 1968 ajudei a fundar a Famerp como uma fundação privada sem fins lucrativos. Estamos estadualizados desde 1994. Na Famerp chefiei o Serviço de Cirurgia Cardíaca até minha aposentadoria, mas desde 1994 lidero, como pró-reitor, a pós-graduação, com nota 5 da Capes, e agora interinamente a pesquisa. São 300 alunos na pós-graduação, que chamamos de guarda-chuva. Admitimos médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, engenheiros, todos relacionados à medicina. Recentemente orientei até um advogado, ex-promotor, que fez uma tese muito bacana sobre ética médica. • O senhor se formou em 1962 e se dou-

torou em 1990, 21 anos depois. Por quê? -Cheguei a me inscrever para doutorado na USP em 1965, mas anularam a inscrição à minha revelia, sem razão aparente. Como já trabalhava muito, operava muitos doentes, desisti. Até que um dia, nos anos 1980, fui convidado para compor uma banca de doutorado da FMUSP. Embora não fosse doutor,

Temos de tentar desenvolver a indústria nacional de qualquer jeito ou passaremos a comprar tudo da China

fui convidado por notório saber. Encontrei lá o Costabile Gallucci - que também foi uma figura importante na história da cirurgia cardíaca brasileira -, professor titular da Unifesp. Ele se virou para mim e perguntou por que eu não tinha feito doutorado. Contei a história e o Gallucci me disse, "Então você vai para a Escola Paulista de Medicina comigo para entrar no doutorado hoje': Me deixei convencer e fiz uma tese, com o Ênio Buffolo como orientador.

• Quais são os principais desafios da medicina hoje? -Apesar de já termos mapeado o DNA humano ainda não sabemos a cura de alguns dos principais grupos de doenças que nos afetam. As doenças mentais como a esquizofrenia- são um exemplo. Outro é a moléstia cardiovascular. Cinquenta por cento das pessoas que têm infarto ou acidente encefálico não têm nenhum fator de risco conhecido. Às vezes, o infarto é o primeiro sintoma e o paciente morre. O inverso não é verdade - ou seja, quem tem algum fator de risco certamente vai ter problema em algum momento da vida. Questões como essas mostram que ainda há muito para ser descoberto, apesar dos enormes avanços. As outras duas são: artrite, uma doença autoimune, e o câncer. • O senhor venceu um câncer. Como foi? -Há seis anos descobri um tumor

grande na garganta, de três por quatro centímetros, embora nunca tenha fumado ou bebido. Fiquei rouco, mas achei que era porque estava dando muita aula. Minha família me pressionou e fui a um otorrino, que fez o diagnóstico. Aí comecei um périplo pela Unicamp e pelo Hospital do Câncer A.C. Camargo para saber se deveria operar ou não. Se operasse, talvez tivesse de tirar toda a laringe. Um amigo, o Antonio Carlos Martins, professor de cabeça e pescoço da Faculdade de Medicina da Unicamp, me aconselhou a ir para os Estados Unidos para ter outra opinião. Fui e fiquei seis meses no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em Nova York.

• Foi operado? -Não. Quando cheguei, o médico concluiu que eu deveria fazer quimioterapia e radioterapia em altíssimas doses e uma gastrostomia [alimentação di reta no estômago, via sonda]. Eu disse que não queria. Ele retrucou no melhor estilo americano, "Então volta para o Brasil': Acabei topando. Para se ter ideia do que foi o tratamento, fiquei um ano sem comer, apenas com uma sonda direto no estômago e me convenci de algo interessante: doente de câncer, às vezes, morre de fome. • Porquê? -Eu usava um nutriente com 5 mil calorias por dia e ainda assim emagrecia três a quatro quilos por mês. Inventei, então, de acrescentar coalhada e foi um sucesso. Os americanos não acreditaram e vieram me perguntar como eu havia descoberto que coalhada era tão bom. Ora, ela é altamente calórica e ajuda o intestino também. Deu certo. • O senhor realmente fez 25 mil cirur-

gias cardiovasculares? -Operei de 1962 a 2005, por 43 anos. Parei quando fiquei doente. Era comum operar pelo menos quatro pacientes por dia. Nessa conta entra tudo porque as cirurgias são feitas em equipe. Às vezes, eu não era o cirurgião principal, mas auxiliava de todas as formas; outras vezes tocava apenas a parte principal. Em algumas situações havia duas cirurgias em salas diferentes e sempre médicos abrindo e fechando pacientes. Então saía de uma e entrava em outra ... No total, • tive participação em 25 mil delas. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 17


Bactテゥrias super-resistentes poderiam viver fora da Terra

MARIA GUIMARテウS


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Solo marciano (esquerda) e vulcões terrestres na Rúss ia

a história de ficção científica Pictures don't lie, de 1951, de Katherine MacLean, uma nave alienígena entra em contato com a Terra e pede permissão para pousar. Mas quando os visitantes aterrissam, ninguém os vê, nem eles avistam o comitê de recepção. Na verdade, tanto terráqueos como extraterrestres estavam buscando na escala errada: os visitantes eram microscópicos. Um grupo de pesquisadores brasileiros está descobrindo que essa ideia está mais próxima da realidade do que parece. Eles mostraram que bactérias super-resistentes sobreviveriam a viagens pelo espaço, agarradas a minúsculos fragmentos de poeira. A conclusão é pioneira na astrobiologia, a área da ciência que nas últimas décadas procura indícios de vida fora da Terra, outros mundos habitáveis e entender as condições essenciais para o surgimento da vida. Um dos projetos mais conhecidos de astrobiologia, o Seti, sigla em inglês para Busca por Inteligência Extraterrestre, comemora este ano o cinquentenário. A diferença é que novas tecnologias agora permitem estender as fronteiras do conhecimento. No Brasil os estudos nessa área devem ganhar fôlego nos próximos meses, com o início da atividade do primeiro laboratório nacional dedicado à astrobiologia. Em fase de instalação em Valinhos, no interior de São Paulo, o novo centro será coordenado por Eduardo JanotPacheco e ligado ao Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG-USP ). O astrônomo Douglas Galante, pesquisador do IAG à frente da instalação do laboratório, vem mostrando como a vida pode resistir até mesmo aos fenômenos cósmicos mais extremos, como explosões de supernovas e de raios gama. Seu trabalho, ao lado dos experimentos do biólogo Ivan Paulino Lima durante o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contribui para a ideia de que seres vivos podem viajar pelo espaço. Ambos estudaram a bactéria Deinococcus radiodurans, que se destaca por resistir a doses altíssimas de radiação. A espécie foi descoberta nos anos 1950, no contexto da indústria norte-americana de carne enlatada.


Os alimentos eram tratados com radiação para eliminar contaminação por bactérias, mas parecia impossível acabar com elas: a Deinococcus radiodurans resistia à esterilização. "Se formos expostos a raios gama com uma intensidade de quatro Grays, estaremos mortos em um mês", avalia a biofísica Claudia Lage, da UFRJ, orientadora de Paulino Lima no doutorado, "mas a Deinococcus radiodurans continua se multiplicando mesmo depois de bombardeada com 15.000 Grays". Na verdade, o material genético da bactéria é pulverizado, mas bastam três horas sem excesso de radiação para que o DNA se recomponha perfeitamente e volte à ativa. Como a fênix da lenda, que renasce das cinzas. resistência a altos níveis de radiação, e também ao vácuo, à dessecação e à temperatura, é o que torna essa bactéria ideal para testar a possibilidade de seres vivos fazerem viagens interplanetárias sem a proteção de uma espaçonave. Até agora, estudos internacionais - feitos inclusive pela agência espacial norte-americana (Nasa) -vêm testando a possibilidade de vida no espaço com bactérias que se protegem formando uma carapaça, como se fossem múmias (cistos). A diferença é que a Deinococcus entra em dormência, mas não forma esses cistos, e nos últimos anos Paulino Lima vem submetendo essa bactéria a feixes de luz que simulam a radiação que existe em raios solares no espaço, sem a proteção de uma atmosfera. Boa parte do trabalho está sendo feita no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) em Campinas, no interior de São Paulo. A pesquisa mostrou, segundo resultados publicados em agosto na Planetary and Space Science, que basta a proteção de um grão de poeira para que a bactéria sobreviva nas condições do espaço. A poeira é mais importante do que parece. Ela passa incólume por barreiras físicas sérias para corpos maiores. Quando um meteorito grande penetra a atmosfera, por exemplo, o atrito é tão intenso que aquece a rocha a temperaturas que muitas vezes a pulverizam e são letais para qualquer bactéria. Esse problema não existe com a poeira, cujo tamanho microscópico lhe permite entrar na atmosfera quase sem atrito. E 20 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

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ela é abundante, em parte devido aos cometas que cruzam o espaço com sua cabeleira luminosa. A cauda de um cometa surge quando ele se aproxima do Sol, na verdade é sua superfície assoprada pelos ventos solares. Quando vai embora para os confins do Universo, o cometa deixa para trás essa poeira e fica ligeiramente menor por perder a camada externa. Uma camada valiosa para a vida: os cometas são repletos de aminoácidos, as moléculas orgânicas que compõem as proteínas. Teoria na prática - "Por volta de 1O mil toneladas de grãos de cometas caem na Terra todos os anos", afirma Claudia. E os grãos que chegam não são, para ela, os únicos indícios de que a Terra está longe de ser um ambiente fechado sobre si mesmo, aonde nada chega e de onde nada sai. Ventos e tufões suspendem partículas do solo até o alto da atmosfera, periodicamente varrida por ventos solares que carregam essa poeira para outras zonas do espaço. "Estamos contaminando o Universo", comenta. Num período de pesquisa no síncrotron Diamond, na Inglaterra, Paulino

Lima mostrou também que suas bactérias favoritas resistem a uma explosão simulada de supernova, um fenômeno estelar que libera altas quantidades de raios X. O estudo ganhou ainda mais força com o encontro pouco comum entre astrobiologia experimental e teórica. Na mesma época, Douglas Galante estava mergulhado em cálculos e simulações teóricas para descobrir como a vida reage às doses extremas de raios cósmicos presentes no espaço e em planetas jovens- para com isso entender a origem da vida e a evolução da biodiversidade. Independente do grupo carioca, ele tinha justamente escolhido usar em suas simulações um organismo difícil de matar: a Deinococcus radiodurans. No Diamond, os dois jovens pesquisadores trabalharam juntos e mostraram que os dados teóricos e experimentais se encaixavam com perfeição. "Descobri que não é possível matar toda a vida de um planeta", conta Galante, que, além das supernovas, fez simulações teóricas de explosões de raios gama, os eventos de mais alta energia desde o Big Bang. "A energia liberada nesses eventos é imensa, como se toda a

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ra. São bactérias que sobrevivem em condições extremas diversas, inclusive em uma salinidade altíssima. Pode ser importante para simular a possibilidade de vida em Marte, um ambiente extremamente salino. Boa parte do trabalho deve ser feita no laboratório de Valinhos, onde já existe um observatório didático do IAG. Em cerca de seis meses, segundo Galante, deverá estar em ação uma câmara de simulação mais sofisticada do que a do LNLS, capaz de submeter as bactérias a um conjunto completo de parâmetros controlados, como temperatura, radiação e pressão, além de simular uma atmosfera protetora.

Deinococcus radiodurans em meio de cultura , no laboratório

massa do Sol fosse convertida em energia no intervalo de 10 segundos." Segundo ele, uma explosão de raios gama é suficiente para esterilizar todo o lado exposto de planetas até uma distância equivalente ao diâmetro da nossa galáxia: 30 mil parsecs o u 99 mil anos-luz. Mas sempre restará vida protegida dentro da água, debaixo do solo ou simplesmente na face dos corpos celestes não atingida pelos raios gama.

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esmo assim, esses eventos espaciais têm efeitos duradouros. Em artigos recentes na Astrophysics and Space Science e no International ]ournal of Astrobiology, Galante mostrou que as explosões de raios gam a alteram a química da atmosfera e destroem a camada de ozônio, tornando o planeta mais exposto a raios ultravioleta por vários anos, o que causa danos aos seres vivos. As simulações mostram o que aconteceria ao se eliminar quase toda a vida na Terra, sobrando só cerca de 1o/o dos organismos, e por isso têm importância para outras áreas da ciência. "Os eventos de extinção são essenciais para o surgimento de novas espécies", lembra o astrônomo, especulando que talvez esses acontecimentos sejam necessários para gerar diversida-

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a BaCT8Ria DOS RaiOS SOlaReS de. "A astrobiologia estuda a origem, a evolução e o destino da vida." Em parceria com a dupla da UFRJ, ele pretende continuar bombardeando com radiação bactérias afeitas a condições extremas, em experimentos que replicam situações espaciais. Uma dessas bactérias foi descoberta este ano pelo grupo da microbióloga argentina Maria Eugenia Farias nu m lago na cratera de um vulcão andino e será testada em colaboração com a equipe brasilei-

Alienígenas bacterianos -Para Claudia e Paulino Lima, os resultados dão apoio à ideia da panspermia, uma hipótese que considera que a vida pode estar disseminada Universo afora. Quando a Terra surgiu, 4,5 bilhões de anos atrás, o Universo já tinha 10 bilhões de anos. Quando este planeta ainda era muito jovem na escala de tempo geológica, há 3,8 bilhões de anos, já havia vida microscópica por aqui, provavelmente capaz de usar a luz solar por meio da clorofila e produzir oxigênio. É o que revela a composição de rochas encontradas na Groenlândia por pesquisadores da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Austrália. Claudia vê esses indícios como sinais de que a vida pode ter vindo de outro lugar. Mas essa visão está longe de consensual. Galante é cauteloso. "Há microrganismos que seriam capazes de suportar as condições de uma viagem espacial, mas não se sabe se isso realmente acontece." Bastante mais consensual é a visão de que, mesmo que a vida em si não tenha vindo do espaço, moléculas pré-bióticas - os tijolinhos mais elementares para a construção de material genético -já estavam por aqui logo depois que a Terra se formou e podem ter vindo do espaço. Muitos especialistas acreditam que as condições terrestres naquela época eram ideais para permitir reações químicas e o surgimento da vida, talvez a partir de moléculas pré-bióticas que vieram de carona numa cauda de cometa. O físico nuclear Enio da Silveira, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), tenta entender a formação dessas substâncias químicas.

PESQU ISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 21


"Estudamos moléculas inorgânicas que estão em cometas, em todo lugar, e já estavam no sistema solar há 4 bilhões de anos", conta. São moléculas como a da água, do metano, do monóxido de carbono, do dióxido de carbono e da amônia, em estado sólido, que seu grupo irradia com íons emitidos por uma fonte radiativa, o califórnio, que simulam um raio cósmico sem a proteção de uma atmosfera. Esse tipo de radiação é suficiente para produzir uma grande variedade de moléculas, que Silveira identifica e quantifica com a ajuda de técnicas especializadas como espectrometria de massa e de infravermelho, capazes de medir a vibração característica das moléculas. Quanto mais tempo ele mantém o bombardeio, mais moléculas vê surgir. Os elementos mais importantes são o carbono, o nitrogênio, o oxigênio e o hidrogênio, que juntos respondem por cerca de 90% da composição das moléculas orgânicas. Ao analisar como esses elementos respondem à radiação, ele vem construindo um banco de dados que deve servir como referência para os astrônomos para avaliar a idade de um sistema, como um planeta ou um asteroide, por exemplo, segundo artigos recentes nas revistas Surface Science e

Astronomy and Astrophysics. 22 • OUTUBRO DE 2010 • PESQU ISA FAPESP 176

OaTRITO DO I

R8C8PTaCUlO 08 COl8Ta 08 uma nave em VOO CaRBOniZaRia as amosTRas

O pesquisador da PUC percebeu que o monóxido de carbono é importante para a formação de moléculas orgânicas. "É uma fonte mais generosa de átomos de carbono, que consegue construir os esqueletos de grandes moléculas orgânicas." Como os cometas têm abundância de monóxido de carbono e de água- da qual dependem todas as reações bioquímicas-, os resultados indicam que é provável o surgimento de vida elementar em condições diferentes das que caracterizam o único planeta onde já se encontrou vida. O que acontece quando essas moléculas pré-bióticas caem ou são produzidas na Terra? Com essa pergunta em mente, o químico Dimas Zaia, da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, mistura moléculas que podem ter existido em seguida à formação deste planeta, como o aminoácido cisteína, com argila. Ele revelou, neste ano na revista Amino Acids, que a argila é um veículo de formação de moléculas biológicas. "A cisteína reage com compostos de ferro e por isso tem uma afinidade muito forte pela argila", conta. Tanto em ambiente ácido, com pH 3, como alcalino, com pH 8, característicos de vulcões submarinos, ele mostrou, com a ajuda de análises como espectrometria de infravermelho, Mõssbauer, EPR e raios X, que as moléculas de cisteína reagem com o substrato e dão origem a cistina, uma molécula mais complexa. Lares extraterrestres - Encontrar organismos vivos no espaço é uma tarefa árdua, e não só por serem microscópicos. Uma nave espacial em pleno voo está em velocidade tão alta que um receptáculo de coleta causaria um atrito forte a ponto de carbonizar a amostra, matando e pulverizando qualquer bactéria interplanetária. A Nasa tem mandado sondas robotizadas para investigar, por exemplo, a superfície de Marte, mas ainda não encontrou vida. Para tornar a busca possível, os estudos terráqueos informam os pesquisadores sobre os indícios de vida esperados fora da Terra, as chamadas bioassinaturas, além de apontar onde procurá-los. O planeta anunciado no final de setembro por astrônomos norte-americanos é um candidato. "É a primeira vez que se encontra um planeta rochoso, como a Terra, no meio da zona habi-

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tável de sua estrela", comenta Galante. Mas ainda não se sabe se tem atmosfera, água e estabilidade para gerar vida. E não tem dia e noite- um lado é sempre escuro e outro sempre claro. Para Galante, pode ser um problema, sobretudo para o surgimento de vida complexa. Um dos exploradores em busca de zonas habitáveis é o astrônomo Gustavo Porto de Mello, da UFRJ. Analisando dados da zona mais conhecida do sistema solar, até lO parsecs do Sol, ou 33 anos-luz, ele encontrou 13 estrelas que podem abrigar planetas habitáveis, a partir de critérios que incluem a composição, a idade e o tamanho e a radiação que recebem, segundo descreveu em 2006 na Astrobiology. Estudos internacionais recentes usaram técnicas menos precisas para procurar zonas habitáveis e indicam uma área mais ampla. Os resultados, porém, coincidem com a proposta do brasileiro com respeito às estrelas mais promissoras. Até agora não se detectaram planetas, mas o pesquisador defende que é preciso usá-las como alvo principal. busca por planetas habitáveis, que tenham sofrido impactos de cometas suficientes para fornecer água, mas já estáveis, também ocupa a astrônoma Jane Greaves, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, que veio ao Brasil para o simpósio Frontiers of Science, realizado no interior de São Paulo com apoio da FAPESP (ver reportagem na página 36). "A dificuldade para encontrar planetas em zonas habitáveis é ter

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aueniGenas certeza do que é um biossinal", explica. "Metano pode sair de vulcões; oxigênio e ozônio podem vir de moléculas de água evaporando de oceanos e quebradas por radiação. É preciso muito trabalho teórico e experimental, mas as perspectivas para as próximas duas décadas são muito empolgantes." Jane identificou um alvo promissor a 59 anos-luz, mas acredita que deve haver outro por volta de 33 anos-luz, conforme artigo deste ano na Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. É um horizonte distante. Paravasculhar essas zonas da galáxia, será preciso usar telescópios de interferometria, ainda em projeto e que devefll estar disponíveis em cerca de lO anos. No espaço, esses instrumentos serão capa-

zes de cancelar a luminosidade emitida pelas estrelas e detectar os planetas. Em seguida, análises com infravermelho permitiriam, a distância, medir os comprimentos de onda emitidos por esses planetas em busca de sinais de água líquida e outros indícios de vida. A presença de água líquida na superfície é o paradigma principal na busca da vida - além de possibilitar a formação de moléculas com carbono, pode ser detectada de longe -, mas há outras possibilidades. Marte, por exemplo, não tem água líquida aparente, mas talvez tenha debaixo da superfície. A Nasa pretende mandar, em 2015, um robô capaz de perfurar alguns metros e chegar ao subsolo marciano. Outra possibilidade é Europa, uma lua de Júpiter. Ela está fora da zona considerada habitável, mas parece ter água debaixo de uma camada de gelo. "É preciso voltar a Marte e ir a Europa", afirma Porto de Mello, lembrando que a Nasa aprovou uma missão robotizada a Europa. O astrônomo da UFRJ está otimista e não ficará surpreso caso se encontre vida em Europa ou Marte. "Será vida microbiana. Muita coisa teria que acontecer para que surgisse vida complexa", relativiza. Quem espera por homenzinhos verdes ou feras gosmentas cheias de dentes e tentáculos, ou ainda por uma inteligência superior como a do ET de Steven Spielberg, talvez se frustre. Alienígenas invisíveis a olho nu, como imaginado por Katherine MacLean há 60 anos, já bastarão para uma grande festa entre especialistas. •

ArtiÇJos científicos 1. MARTIN, O. et ai. Effects of gamma ray bursts in Earth's biosphere. Astrophysics and Space Science. v. 326, p. 61-7. 2010. 2. PAULINO-LIMA, I. G. et ai. Laboratory simulation of interplanetary ultraviolet radiation (broad spectrum) and its effects on Deirwcoccus radiodurans. Planetary and Space Science. v. 58, p. 1.180-87.2010. 3. PILLING, S. et ai. Radiolysis of ammonia-containing ices by energetic, heavy, and highly charged ions inside dense astrophysical environments. Astronomy and Astrophysics. v. 509. 2010. 4. PORTO DE MELLO, G. et ai. Astrobiologically interesting stars within 10 parsecs of the Sun. Astrobiology. v. 6, n. 2, p. 308-31. 2006.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 23


EM

ESTRATÉGIAS MUNDO

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OS MAIS FRACOS PERECEM

PARA REINVENTAR O I HAITI Um workshop realizado em San Juan, Porto Rico, reuniu especialistas haitianos, porto-riquenhos e norte-americanos para discutir como a ciência pode aj udar o Haiti a recuperar sua economia após o terremoto que matou mais de 100 mil pessoas em janeiro. Houve consenso sobre a necessidade de aumentar o número de pesquisadores e de professores treinados em ciências. "O sistema educacional precisa ser reinventado, pois o número de estudantes é baixo e a maioria das escolas é privada, num país em que muitas pessoas não podem pagar por educação", disse Paul Latortue, diretor da Escola de Administração e Negócios da Universidade de Porto Rico, Rio Piedras.

Segundo ele, a formação deficiente dos professores é um obstáculo dramático. "Venho trazendo professores do Haiti para serem treinados em Porto Rico nos últimos 20 anos e muitos deles não entendem conceitos básicos", afirmou à agência SciDev. As áreas de pesquisa mais carentes de investimento, segundo os participantes, são saúde, recursos hídricos, produção e conservação de comida, prevenção de desastres, agricultura e recuperação de terras degradadas. "Este é um momento de urgência, mas também de oportunidade", disse Jorge Colón, presidente da divisão caribenha da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS, em inglês). "A educação científica deve ser reforçada se quisermos atingir as m etas de desenvolvimento de longo prazo no Haiti." ....

24 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

O governo da China anunciou que milhares de revistas científicas de baixa qualidade do país deverão desaparecer. Segundo Li Dongdong, vice-ministra e diretora da agência que controla as publicações do país, um processo de avaliação irá classificar os atuais 5 mil títulos de acordo com a originalidade e o impacto internacional de seus artigos. Os bem avaliados vão receber incentivos fiscais. Já os de baixa reputação serão forçados a fechar as portas, embora, em alguns casos, exista a opção de serem relançados com um novo conselho editorial e com um título diferente. A meta é reduzir o número de revistas e concentrar as remanescentes em poucos grupos editoriais capazes de competir entre si. "A China quer ser uma potência em publicações científicas, não um país com uma quantidade enorme de revistas sem reconhecimento", afirmou Li, segundo a revista Nature. Estima-se que uma em cada três revistas exista apenas para ajudar estudantes e professores a acumular o número de artigos exigido para avançar na carreira. A originalidade é outro problema. Um estudo mostrou que 31% dos artigos submetidos ao Journal of Zhejiang University-Science continham material plagiado. A preocupação com o impacto não é nova. Já há 200 revistas sediadas na China que são publicadas em inglês, numa estratégia para aumentar a repercussão de seus artigos.

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EMPRES;:.s DE BASE TECNOLOGICA I O governo da Argentina anunciou investimentos de US$ 17,5 milhões (o equivalente a 70 milhões de pesos argentinos) na criação de empresas de base tecnológica. A linha de financiamento, denominada Empre-Tecno, concederá dotações de até US$ 640 mil (2,5 milhões de pesos argentinos) para desenvolver projetos de quatro anos de duração. Cada subsídio irá financiar atividades como testes de potencial tecnológico, planos de negócios, participação em feiras, consultaria e despesas para proteger a propriedade intelectual de produtos. ''A condição é que a futura empresa de base tecnológica consiga também investimentos privados que permitam dar conta da produção e comercialização", disse à agência SciDev.Net Isabel Mac Donald, diretora do Fundo Argentino Setorial (Fonarsec), vinculado

PARCERIA ESPACIAL Por meio de uma parceria com a China, a Namíbia, país de 2 milhões de habitantes da África austral, quer ganhar competência em áreas como sensoriamente remoto e comunicações. No mês passado, uma delegação de astronautas chineses inaugurou em Swakopmund, na Namíbia, um centro que vai monitorar as comunicações com missões espaciais da China. A estação é controlada por técnicos chineses, mas a partir de 2015 o encargo será repassado à Na-

à Agência Nacional de

Promoção Científica e Tecnológica. "O objetivo do governo ao incentivar o surgimento dessas empresas é gerar empregos de qualidade, substituir importações e melhorar a competitividade de setores produtivos", afirmou Isabel. As áreas temáticas preferenciais são vacinas, softwares para o agronegócio, tecnologia de alimentos e engenharia de solos.

CREDIBILIDADE

I EM ALTA Uma sondagem feita pela internet com mais de 21 mil leitores de 18 países das revistas Nature e Scientific American indica que a credibilidade da ciência e dos cientistas é elevada. Numa escala de confiança de zero a cinco, os cientistas receberam a nota média de 3,98. Em segundo lugar, empatados com a nota 3,09, vieram os grupos de amigos/ familiares e as entidades

míbia. Para dar conta dessa tarefa, desde 2008, 11 namibianos foram à China para receber formação especializada. É o caso de Ebenhezer Kauhonina, pesquisador de redes de satélite. "Meus estudos começaram na China e agora continuam em Swakopmund", disse à agência SciDev.Net. A Namíbia também abriga o Sistema Estereoscópico de Alta Energia (Hess, na sigla em inglês), do Instituto Max Planck, da Alemanha. Alfred van Kent, diretor de pesquisa, ciência e tecnologia do Ministério da Educação da Namíbia, afirma que os centros devem gerar no país alguma expertise em supercomputadores, desenvolvimento de sensores, sistemas avançados de comunicação e robótica.

não governamentais. A seguir vieram os grupos de defesa dos cidadãos (2,69), os jornalistas (2,57), as empresas (1,78), os políticos eleitos (1,76) e as autoridades religiosas (1,55). Os autores ressaltam que a sondagem não seguiu uma metodologia científica, como acontece com as enquetes da internet. "Muitos dos resultados batem com a opinião de um grupo de pessoas bem informadas sobre ciência", escreveu a Nature. Afinal, 19o/o das pessoas que participaram da enquete disseram ter o título de doutor. As amostras de cada

país tiveram tamanhos bem diferentes. Do Brasil, por exemplo, participaram 422 pessoas, 10o/o do número de norte-americanos. Ainda assim, algumas diferenças regionais apareceram. Os europeus são os que mais temem os riscos associados ao uso da energia nuclear e possíveis problemas causados pelo cultivo de transgênicos. Já os norte-americanos são os que menos se inquietam com essas questões. Os chineses são os que mais defendem a ideia de que os cientistas não devem se meter em política, seguidos pelos brasileiros.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 25


MUITO DINHEIRO, POUCA AMBIÇÃO Embora a Suécia seja o país europeu que mais investiu em ciência e tecno-

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logia em 2009, o equivalente a 3,6% do PIB, sua produção científica teve menos citações em revistas internacionais do que nações como Suíça, Holanda e Dinamarca, mostra um relatório do Conselho de Pesquisa sue-

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co. O documento ressalta que a Suécia tem uma ciência bem-sucedida e que a série histórica dos índices de citação coloca o país em sexto lugar no mundo. Como dinheiro não é problema, o diagnóstico é que falta ambição. Mathias Uhlen, do Instituto Real de Tecnologia em Estocolmo, aposta que é preciso apoiar grandes programas de pesquisa. "Optou-se, no passado, por pulverizar os recursos para a ciência básica. Isto não promove a pesquisa que tem mais impacto", afirmou à revista Nature. Karl Tryggvason, do Instituto Karolinska, diz que as universidades não estão preparadas para enfrentar a competição internacional. "O nepotismo e as disputas políticas são um problema", analisa.

SENSAÇÃO DE IMPOTÊNCIA A comunidade científica espanhola está alarmada com os rumores de que o orçamento para pesquisa do país sofrerá um corte de 10%, além dos 15%

suprimidos no ano passado. A guerra de nervos levou a ministra da Ciência, Cristina Garmendia, a negar que esteja demissionária e a garantir que não haverá novo corte, ao contrário do que ocorrerá com outras pastas. Mas o assunto

vem sendo discutido no governo e há até uma movimentação para incorporar a pasta da Ciência à de Educação, caso Cristina saia. "Uma mudança desse tipo depende da decisão do presidente do governo", disse Felipe Pétriz Calvo, secretário de Estado para pesquisa. "Uma sensação de impotência se espalha entre os cientistas", disse à revista Nature o biólogo molecular Jesús Avila, um dos 51 cientistas que assinaram uma carta aberta ao governo depois do corte do ano passado.

EXPERIMENTOS SOB CONTROLE I O Parlamento Europeu aprovou um conjunto de regras que restringem o uso de animais em experiências de laboratório. Segundo a agência BBC, ficam proibidos os testes com grandes primatas, como chimpanzés, gorilas e orangotangos, embora se possa recorrer a outras espécies dessa ordem de 26 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

mamíferos. Utilizar mais de uma vez um animal só será permitido se o experimento impuser dor moderada. A ideia inicial era permitir a reutilização apenas em testes classificados como de dor leve, mas parlamentares concluíram que a reutilização reduz o total de animais envolvidos em experimentos e se mostraram preocupados com o risco de o continente perder competitividade na pesquisa de doenças crônicas. Estima-se que 12 milhões de animais sejam utilizados anualmente em laboratórios da Europa. O controle também vai aumentar. As novas normas, que substituem uma legislação de 1986, obrigam os laboratórios a obter autorização oficial antes de usar animais em testes e, numa vitória dos grupos de defesa dos animais, determinam o uso de alternativas não animais sempre que isso for possível. Os governos deverão fiscalizar regularmente os laboratórios, incluindo-se visitas sem aviso prévio.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

PRÊMIO EM DOSE DUPLA Pesquisa FAPESP conquistou o primeiro e o segundo

lugares na 10a edição do Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica. Dois trabalhos assinados pela jornalista Maria Guimarães, editora assistente de ciência da revista, venceram na categoria Jornalismo Impresso, que era disputada por 62 reportagens. A matéria "Jardineiras fiéis", publicada em julho de 2009, que obteve a primeira colocação, mostra como as formigas ajudam a semear florestas. O segundo lugar foi para a reportagem "O futuro da natureza e da agricultura", de outubro de 2009, que mostra como os modelos matemáticos estimam o impacto das mudanças climáticas em plantas e animais. "Foi gratificante não só pelo reconhecimento, mas também por aumentar a visibilidade dos assuntos de que tratei nas reportagens", diz Maria, bióloga que abraçou o jornalismo há quatro anos. Di mas Marques, da revista Horizonte Geográfico, foi o terceiro colocado. Na categoria televisão, os vencedores foram Aline Carvalho, da Rede Minas TV, Beatriz Castro, da Rede Globo, e Claudia Tavares, da TV Cultura. Nos 10 anos do concurso, que é promovido pela Aliança para a Conservação da Mata Atlântica, Pesquisa FAPESP ganhou oito prêmios e cinco menções honrosas.

MUSEU CONTRA I A INTOLERÂNCIA A Universidade de São Paulo (USP) apresentou o projeto arquitetônico do Museu da Tolerância, que será construído na Cidade Universitária. Ligado ao Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH ), o museu terá duas bibliotecas, cinemateca, auditório, galerias para exposições, salas de multimídia, salas de aula, laboratórios de restauração e conservação, espaços de convivência, além de uma

área que abrigará o LEI. Como a missão do museu é combater intolerâncias políticas, religiosas, culturais e sociais, haverá seções temáticas sobre índios, africanos e judeus, vítimas

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tradicionais de preconceito. A presidente do museu, Anita Novinsky, diz que ele seguirá um conceito peculiar. "Será uma escola voltada para a educação, com o sentido de transmitir conhecimentos sobre o valor da diversidade humana e das diferentes cúlturas e de demonstrar as consequências do fanatismo e da intolerância", diz ela, que é professora da USP. O projeto é assinado pelo escritório Frentes, de São Paulo.

BRASILEIRO NO

I CORPO EDITORIAL Edgar Dutra Zanotto, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), assume neste m ês o corpo editorial do ]ournal ofNon-Crystalline Solids (JNCS), principal publicação na área de estudos em materiais vítreos e amorfos. Zanotto atuará no comando da revista, ao lado de B. G. Potter, da Universidade do Arizona, e J. W. Zwanziger, da Dalhousie University. É a primeira vez que um brasileiro assume a função. Segundo Zanotto, a indicação reflete a reputação do Laboratório de Materiais Vítreos da UFSCar, que "está em pé de igualdade com os mais conhecidos laboratórios internacionais especializados nesse campo".

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 27


ARTICULAÇÃO NACIONAL Uma rede nacional de pesquisa voltada a ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade brasileira acaba de ser lançada, com investimento inicial de R$ 51,7 milhões para projetas de pesquisa. O Sistema Nacional de Pesquisa

em

Bio-

diversidade (Sisbiota-Brasil)

é uma iniciativa de vários ministérios

e

órgãos federais

com 18 fundações estaduais de amparo à pesquisa, entre as quais a FAPESP. "Ter um sistema nacional era um anseio da comunidade científica que atua nessa grande área", disse

à Agência FAPESP Carlos Joly, coordenador do Programa Biota-FAPESP. A experiência do programa paulista auxiliou na elaboração do Sisbiota-Brasil

e

dois membros da coordenação do Biota-FAPESP participarão da gestão do sistema nacional: Joly

e Roberto

Berlinck, do

Instituto de Química da Universidade de São Paulo,

em São

Carlos. Joly espera que o Sisbiota reproduza nacionalmente o impacto que o Biota-FAPESP teve

em

São Paulo. "Isso só

ocorrerá se houver garantias de que o financiamento será mantido

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em médio e longo prazos", disse.

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Paulo Artaxo, professor titular e chefe do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), e Meinrat Andreae, diretor do Departamento de Biogeoquímica do Instituto Max Planck de Química, na Alemanha, foram contemplados com o Fissan-Pui-TSI Award 2010 pelas pesquisas que desenvolvem em conjunto na área de aerossóis. O prêmio é concedido pela International Aerosol Research Assembly, entidade que reúne

11 instituições internacionais de pesquisa em aerossóis. A cerimônia de premiação foi realizada no início de setembro durante a Conferência Internacional de Aerossóis, em Helsinki, na Finlândia. O Fissan-Pui-TSI Award homenageia, a cada quatro anos, líderes na pesquisa sobre aerossóis atmosféricos. "Esta premiação enfatiza o fato de que em algumas áreas de pesquisa é necessário um trabalho internacional de longo prazo para que bons resultados sejam obtidos", disse Artaxo à Agência FAPESP. O cientista, que integra o Programa FAPESP

28 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, ressalta que a cooperação internacional em estudos climáticos é fundamental, uma vez que problemas similares costumam ocorrer em pontos diferentes do planeta. Artaxo ,e Andreae desenvolvem, desde 1980, trabalhos conjuntos na região amazônica, entre os quais três projetos temáticos apoiados pela FAPESP.

da Escola Normal Superior de Pisa, e o alemão Manfred Bauneck, da Universidad e de Hamburgo. Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), Palis foi escolhido pelos seus estudos no campo dos sistemas dinâmicos, que servem para modelar fenômenos que evoluem no tempo, como o clima e os sistemas planetários (ver Pesquisa FAPESP no 161) . É a primeira vez que um brasileiro recebe o prêmio, cujo valor é de 750 mil francos suíços (cerca de R$ 1,2 milhão) para cada ganhador. "O prêmio tem a ver com a repercussão de minha pesquisa", disse Palis ao Pesquisa Brasil, programa de rádio de Pesquisa FAPESP. "Tem m uita gente trabalhando nela em vários países. Orientei mais de 40 teses e muitos de me us alunos são figuras reconhecidas." A Fundação Balzan, com sede em Milão e Zurique, busca todos os anos destacar áreas emergentes de pesquisa.

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O matemático Jacob Palis, professor titular do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, foi um dos vencedores do Prêmio Balzan 2010. Indicado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), ele dividirá o prêmio com o biólogo japonês Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto, o historiador italiano Carla Ginzburg,

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CENTRO NO BRASIL

A multinacional sueca Saab anunciou que irá instalar um centro de pesquisa e desenvolvimento no Brasil, independentemente do resultado do processo de seleção para fornecer os novos aviões de combate da Força Aérea Brasileira, que disputa com empresas da França e dos Estados Unidos. "Ainda não decidimos onde será montado, mas muito provavelmente será em São Paulo por lá haver outros centros de pesquisa

interessantes", afirmou à

Agência Brasil o diretor da Saab no Brasil, Bengt Janér, que acompanhou no mês passado o presidente da empresa, Hakan Buskhe, numa audiência com o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Segundo Janér, o centro será o primeiro da companhia na América do Sul e deverá desenvolver, entre outros, projetas de radares e sensores, além de produtos para a segurança civil utilizáveis na proteção de usinas hidrelétricas, estádios e grandes eventos, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. "Temos

muitas tecnologias, como fusão de dados e integração de sistemas, que poderão transbordar da área militar para a aviação civil e para a iniciativa privada", disse Janér. "Além da Suécia, também mantemos centros de excelência desse nível na África do Sul, Austrália, países nórdicos e Inglaterra", afirmou o presidente da empresa Hakan Buskhe, ao jornal Valor Econômico. A Saab investe 20% do seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento. De seus 13 mil funcionários no mundo, 7 mil são engenheiros.

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SANEAMENTO NO PARQUE A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) assinou um convênio com a Prefeitura de São José dos Campos para a implantação no parque tecnológico da cidade de um centro de pesquisa e desenvolvimento em recursos hídricos e saneamento ambiental. O centro, criado em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (I PT), vai investir em temas como membranas filtrantes, automação de processos, modelos de gestão, medição pré-paga de consumo, poluição no eixo da via Out ra, aquíferos subterrâneos e balanço ambiental. A FAPES P tem apoiado projetos de pesquisa de interesse da Sabesp. Em 2008, a Fundação

e a companhia celebraram um acordo de cooperação para o investimento de R$ 50 milhões em cinco anos em pesquisas aplicadas. Segundo o presidente da Sabesp, Gesner Oliveira, o centro deverá impulsionar o esforço para universalizar os serviços de saneamento. "Isso exige investimento e inteligência. Com o parque tecnológico e o centro de desenvolvimento reúnem-se as empresas e a academia. A transformação dessa parceria em produtos e serviços é essencial para o avanço do setor'', afirmou.

Pesquisa em recursos hídricos une IPT e Sabesp

MULHERES

I NA CIÊNCIA Sete pesquisadoras com idades entre 30 e 36 anos receberam no dia 23 de setembro, no Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, o prêmio L'Oréal!Unesco para Mulheres na Ciência, concedido em parceria pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), a L'Oréal Brasil e a Comissão Nacional da Unesco. Na área de ciências matemáticas, foi agraciada Audrey Helen Cysneiros, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Na área de química, a vencedora foi Kathia Maria Honorio, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, a USP Leste. Em física, a escolhida foi Lucimara Pires Martins, pesquisadora do Núcleo de Astrofísica Teórica da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Em ciências biomédicas, biológicas e da saúde houve quatro vencedoras: Bruna Romana de Souza, do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Cristiane Matté, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Patrícia Schuck, da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc); e Simone Appenzeller, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cada uma delas recebeu uma bolsa-auxílio no valor deUS$ 20 mil. O programa foi criado em 2006 com o objetivo de estimular a participação das mulheres no cenário científico do Brasil.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 29



[ INTERNACIONALIZAÇÃO ]

A preparação do salto Laboratório quer atrair estrangeiros para pesquisa com luz síncrotron FABRÍCIO MARQUES

israelense Ada Yonath e o francês Albert Fert, vencedores, respectivamente, do Nobel de Química de 2009 e o de Física de 2007, estarão em Campinas no início de 2011 participando com 18 palestrantes de seis países de um curso destinado a difundir novas aplicações da radiação síncrotron e atrair pós-doutores brasileiros e estrangeiros para atuar nessa área em universidades e empresas do Brasil. O evento será uma das escolas São Paulo de Ciência Avançada, modalidade de apoio da FAPESP que busca, por meio de cursos de curta duração, aumentar a exposição internacional de áreas de pesquisa de São Paulo que já são competitivas mundialmente (leia mais na página 34). O curso, intitulado Novos Desenvolvimentos no Campo da Radiação Síncrotron, terá 40 alunos, sendo a metade recrutada em países como Estados Unidos, Japão e Argentina. "O alvo principal são pesquisadores que estejam perto de concluir o doutorado, pois já têm um bom background e estão próximos de procurar um lugar para fazer o pós-doe", diz o organizador da escola, o físico francês Yves Petroff, diretor científico do Laboratório Nacional de Luz

Síncrotron (LNLS), que sediará o evento entre os dias 17 e 25 de janeiro. Petroff, que foi diretor-geral do European Synchrotron Radiation Facility (ESRF), em Grenoble, na França, de 1993 a 2001 , e trabalhou em laboratórios semelhantes nos Estados Unidos, acredita que o Brasil dispõe de boas condições para atrair estudantes de fora. "São Paulo, por exemplo, oferece bolsas de pós-doutorado muito competitivas por meio da FAPESP. Se você comparar com os Estados Unidos e a Europa, aqui a situação é muito favorável, porque o valor da bolsa é substancial e isento de imposto", diz Petroff, referindo-se aos R$ 5.028,90 mensais da bolsa de pós-doutoramento da Fundação. Foi isso, aliás, que o estimulou a fazer a proposta da escola avançada, aprovada no primeiro edital do programa. Na sua avaliação, tais condições ainda são pouco difundidas fora do Brasil. A programação da escola incluirá visitas à USP, à Unicamp e a São Carlos, para que os pesquisadores convidados conheçam melhor o ambiente de pesquisa do Brasil. "Ciência é competição. Todo pesquisador quer trabalhar num bofu laboratório, mas ainda são poucos os estrangeiros que conhecem o Brasil."

Esta é a segunda reportage m de uma sér ie sobre a internacionalização da pesquisa científica em São Paulo


Petroff tem experiência para comparar ambientes de pesquisa de vários países. Ele destaca, no Brasil, a disponibilidade de jovens comprometidos com pesquisa. "Eu havia vindo ao Brasil algumas vezes em seminários e sempre me chamou a atenção a idade média dos pesquisadores, que é baixa. Esse é um ponto muito forte. Nos Estados Unidos e na Europa não acontece assim. Os jovens não vão trabalhar com pesquisa. Vão para bancos ou outras atividades", afirma. Ele também elogia a capacidade dos pesquisadores que construíram a fonte de luz síncrotron nos anos 1990 por um valor muito baixo: US$ 36 milhões. "Isso é algo sem precedentes no mundo. Há gente muito talentosa fazendo pesquisa no Brasil", afirma, ainda que não se conforme com os entraves burocráticos para a importação de equipamentos e insumos para pesquisa. Deflexão - O objetivo central da es-

cola é preparar a ciência brasileira para dar um salto na utilização da luz síncrotron. Essa radiação é gerada por elétrons produzidos num acelerador, que ficam circulando num grande anel quase na velocidade da luz e, quando passam por ímãs, sofrem uma deflexão provocada pelo campo magnético. Fótons são emitidos, resultando na luz síncrotron. As ondas eletromagnéticas são aproveitadas pelos pesquisadores no LNLS em 14 estações de trabalho ou linhas de luz espalhadas em pontos do anel, em estudos sobre a estrutura atômica de materiais como polímeros, rochas, metais, além de proteínas, moléculas para medicamentos e cosméticos, ou mesmo imagens tridimensionais de

Um em cada cinco usuários do laboratório vem do exterior. Depois do Brasil, a Arqentina

é o país que mais usa a fonte de luz

fósseis ou até de células. O LNLS abriga a única fonte de luz síncrotron da América Latina e, em 2015, deverá ganhar uma versão maior e mais potente, de terceira geração -a atual é de segunda geração-, o que permitirá obter imagens da estrutura de alvos cada vez menores e com resolução bem maior (ver Pesquisa FAPESP no 172) . Com a nova fonte, batizada de Sirius, o país vai manter-se competitivo com países como Espanha, Coreia do Sul e Taiwan, que também estão construindo fontes

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de terceira geração. ''As novas fronteiras da ciência exigem equipamentos mais sofisticados", diz o físico Antônio José Roque da Silva, diretor do LNLS e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Pluridisciplinar- De acordo com Yves Petroff, que foi contratado em novembro de 2009 com a incumbência de traçar os objetivos científicos do projeto da fonte Sirius, multiplicar a comunidade de pesquisadores e profissionais aptos a trabalhar com as novas aplicações da radiação síncrotron é essencial para que o país fique competitivo nesse campo do conhecimento. "A ciência é cada vez mais pluridisciplinar. Por isso, os alunos da escola avançada vão assistir a sessões sobre várias possibilidades a fim de conhecerem todas as técnicas existentes", afirma o físico francês. Os temas das sessões incluem as aplicações em biologia estrutural, imagem em três dimensões obtida por raios X, catálise, magnetismo, nanociência e meio ambiente. "O número de usuários de fontes de luz síncrotron nos Estados Unidos cresceu 40%, de 6 mil para 8.400, entre 2000 e 2008, enquanto na França o aumento foi de 36% entre 2003 e 2009", diz. Segundo ele, entre 30% e 40% das fontes de luz disponíveis são utilizadas no campo da biologia estrutural. "A razão é fácil de entender. O uso da radiação é fundamental em estudos de estruturas biológicas ou para desvendar a função de proteínas. Todas as companhias farmacêuticas utilizam as linhas de luz para esse fim . No Brasil, as indústrias de medicamentos ainda fazem pouca pesquisa, mas há espaço para avançar", afirma. Da mesma forma, observa Petroff, montadoras de automóveis usam a luz síncrotron em pesquisas sobre motores e catálise, paleontólogos vêm conseguindo desvendar a estrutura de fósseis por meio da radiação, enquanto a indústria de cosméticos recorre à luz para garantir que a estrutura das nanopartículas usadas em seus produtos não faça mal à saúde. "Trabalha-se

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com estruturas cada vez mais complexas", afirma Petroff. O LNLS é uma instalação de múltiplos usuários. A cada ano, um exército de 2 mil pesquisadores de centenas de instituições utiliza as fontes de luz em cerca de 400 estudos que resultam em aproximadamente 250 artigos publicados em revistas científicas indexadas. Dezenove por cento dos usuários são estrangeiros, oriundos principalmente da América Latina. Depois do Brasil, a Argentina é o país que mais utiliza as linhas de luz. Dos 87 estudos realizados por pesquisadores estrangeiros em 2009, 64 eram argentinos. Em seguida vêm os cubanos (6), os norte-americanos (4), os alemães (3), colombianos, chilenos, mexicanos e noruegueses (2 cada um), portugueses e indianos (1). Desde a sua inauguração o LNLS contratou 11 pesquisadores estrangeiros e dos 19 bolsistas de 2010 três são estrangeiros. Apenas um deles ainda está no laboratório, o pós-doe iraniano Fariman Fathi Hafhejani - o LNLS tem um convênio com países do Oriente Médio, vinculado ao projeto de construção de uma fonte síncrotron na Jordânia. Também há uma colaboração profícua com o Canadá, em que o LNLS participa da construção de uma linha de luz. Entre 1995 e 2009, a FAPESP concedeu auxílios e bolsas no valor deUS$ 60 milhões a pesquisadores do LNLS. "Devido à qualidade dos projetas, a FAPESP tem apoiado fortemente a pesquisa no LNLS e ficamos satisfeitos em ver os bons resultados e o grau de projeção internacional do laboratório': diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Com o advento da nova fonte, a intenção é estimular ainda mais as colaborações internacionais. "Como o LNLS é referência para muitos países, há uma situação propícia à internacionalização", diz José Roque. "A convivência entre usuários de vários lugares cria um ambiente de pesquisa maduro." A contratação de Yves Petroff foi um passo nessa direção. O LNLS sediou em julho a primeira edição fora da Europa

Yves Petroff: obj et ivos científicos da fon t e Sirius

do Hercules (Higher European Research Course for Users of Large Experimental Systems), curso de formação para doutores e pós-doutores na área de radiação síncrotron. Dos 63 participantes, 23 eram latino-americanos. De volta - A repatriação de bons pesquisadores brasileiros também está em curso. O físico Fab iano Yokaichiya, 36 anos, acaba de ser admitido no laboratório, depois de seis anos longe do Brasil, durante os quais fez pós-doutoramentos em três países. Na França, esteve no Laboratório Louis Néel, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês). Nos Estados Unidos, passou pelo Laboratório Nacional Brookhaven. Nos útimos três anos, trabalhou em Berlim, na Alemanha, no Centro Helmholtz de Materiais e Energia. "Quando deixei o Brasil, meu objetivo era fazer carreira fora, mas a pesquisa no país está num

momento favorável e achei a oportunidade boa", afirma. O físico Narcizo Marques de Souza Neto, de 32 anos, é outro exemplo. Ele foi contratado pelo LNLS em julho, depois de passar três anos no Argonne National Laboratory, nos Estados Unidos, fazendo pós-doutorado em magnetismo sob altas pressões. "Haviam me oferecido uma posição permanente lá, mas optei por voltar quando recebi a proposta do LNLS", diz Narcizo. "A infraestrutura nos Estados Unidos era muito boa e daria para prever exatamente como seria minha carreira, mas no LNLS, com a construção da nova fonte, o desafio é mais motivador", diz Narcizo, que agora utiliza sua rede de conta tos nos Estados Unidos para estabelecer colaborações. Com o objetivo de desenvolver pesquisas em materiais sob altas pressões, Narcizo motivou um estudante de doutorado norte-americano a vir fazer o pós-doutorado no LNLS. •

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 33


Excelência na vitrine

inco propostas foram selecionadas na segunda chamada da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA), modalidade de apoio da FAPESP que busca aumentar a exposição internacional de áreas de pesquisa de São Paulo já competitivas mundialmente. O objetivo do programa, lançado em 2009, é criar oportunidades para que pesquisadores de São Paulo organizem cursos de curta duração capazes de trazer ao estado jovens estudantes ou pós-doutores de outros países e regiões, possibilitando a interação com pesquisadores locais e debatendo temas avançados da ciência. Os temas dos cursos selecionados são variados: vão da modelagem das mudanças climáticas à genética, passando pela física quântica, ecologia e supercondutividade. Em abril de 2011, pouco antes da Páscoa, acontece em São Carlos a Escola Avançada Desafios Modernos com Matéria Quântica: Átomos e Moléculas Frias. A agenda ainda não está completa, mas pelo menos dois vencedores do Nobel deverão vir. "Trata-se de um tema da física atômica e molecular que está rendendo artigos nas melhores revistas mundiais, como Physical Review Letters, Science e Nature, e propondo desafios fantásticos dentro da física", explica Vanderlei Salvador Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos (USP) e coordenador da iniciativa. Além de discutir um tema emergente, o que se busca, segundo o professor, é atrair bons alunos do exterior e de outros estados para atuar em São Paulo. Como acontece em todas as propostas aprovadas, a metade dos alunos convidados virá de outros países e a ambição do programa é que parte deles se candidate a bolsas de pós-doutoramento no Brasil. No rol de atividades, os participantes conhecerão laboratórios de universidades paulistas, como a USP e a Unicamp. "Queremos tornar nossos laboratórios mais internacionais, tanto trazendo alunos do exterior como mandando os nossos para fora. Isso nos força a estar na vanguarda e a ter mais inserção", afirma. 34 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Novos estran1

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Modelos cl imáticos - A proposta da Escola

São Paulo em Modelagem das Mudanças Climáticas, programada para acontecer em setembro de 2011, é reunir um conjunto de jovens pesquisadores e estudantes de pós-graduação da América Latina, da Índia e da África do Sul em torno de tópicos de pesquisa inovadores, a serem incluídos no primeiro modelo climático concebido por pesquisadores do hemisfério Sul. "O objetivo é promover uma colaboração Sul-Sul para fomentar o crescimento da comunidade de pesquisadores no campo de modelagem do sistema climático no Brasil, com a participação de países vizinhos, África e Índia", diz Paulo Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e um dos coordenadores da escola. ''A atividade terá duas semanas, tendo como meta que os pesquisadores continuem trabalhando remotamente nos temas de pesquisa elencados durante a escola e apresentando os resultados em futuras edições do evento", afirma. A necessidade de desenvolver uma nova geração de competência nesse campo se explica: hoje, para projetar os efeitos das mudanças climáticas no Brasil, utilizam-se ferramentas inespecíficas que são recortes da previsão para o mundo inteiro. Coordenada pelo climatologista Carlos Nobre, do Inpe, a escola em 2011 terá como foco as interações entre continente e oceano. A cada dia, os 40

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Novos cursos de curta duração buscam mostrar a pesquisadores estrangeiros as oportunidades de atuar em São Paulo

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··----------------~//""""alunos serão apresentados a um novo tema e, em subgrupos, desafiados a apresentar uma proposta de pesquisa para uma questão relacionada a ele. Entre os palestrantes, destacam-se nomes como Carlos Nobre, do Inpe, Jagadish Shukla, da Universidade George Mason, e Guy Brasseur, ex-diretor do National Center for Atmospheric Research. Os avanços no campo da supercondutividade serão o mote da Escola Avançada sobre Materiais Condutores e Supercondutores Anisotrópicos, que vai acontecer em Lorena, interior paulista, em agosto de 2011, ano em que secomemora o centenário da descoberta da supercondutividade. A proposta partiu do grupo liderado por Carlos Alberto Moreira dos Santos, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Escola de Engenharia de Lorena, da USP, que há tempos desejava a realização de um evento com pesquisadores renomados na área de supercondutividade e materiais supercondutores no Brasil. "A comunidade brasileira que trabalha na área de supercondutividade, principalmente experimental, tem diminuído nos últimos tempos, ao contrário do que acontece no exte-

rior", diz Carlos dos Santos. "E a gente se ressente do fato de não conseguir trazer pessoas do exterior para trabalhar aqui. Tenho certeza de que a escola vai, inclusive, ampliar a visibilidade dos grupos de pesquisa na área de supercondutividade do estado de São Paulo no exterior", afirma o professor. Entre os especialistas do exterior que confirmaram presença, figuram, por exemplo, os norte-americanos Zachary Fisk, da Universidade da Califórnia - Irvine, e John J. Neumeier, da Universidade do Estado de Montana. Trabalho de campo - Uma peculia-

ridade da Escola Avançada Redes em Ecologia: Teoria, Métodos e Aplicações, que acontecerá em setembro de 2011, é que ela será ministrada dentro de uma estação ecológica. O local ainda está sendo definido. Durante nove dias, os participantes formularão hipóteses e sairão a campo para testá-las. A iniciativa vai abordar conceitos e aplicações de teoria de redes em ecologia, especialmente sobre interações ecológicas, redes espaciais e conservação. Será ministrada por pesquisadores de vários países, entre eles Jordi Bascompte, da

Estación Biológica de Dofiana, Sevilha, Marie-Josée Fortin, da Universidade de Toronto, e Timothy Keitt, da Universi<.bde do Texas. Segundo o coordenador da esc::>la, Thomas Lewinson, professor do In:;tituto de Biologia da Unicamp, o objetivo é estimular a pesquisa em ecologia baseada na análise e na formulação de dados. "A pesquisa em ecologia cresceu muito nos últimos 20 anos, mas isso se deu principalmente arrebanhando dados. Isso é essencial, mas não suficiente", diz. "Sem formular hipóteses e testá-las, é o equivalente a ser um fornecedor de commodities." A Escola São Paulo de Ciência Avançada- Tópicos Avançados em Genética Molecular Humana será realizada na Unicamp de 28 de fevereiro a 4 de março de 2011. Do exterior virão palestrantes como Charles Lee, da Harvard Medical School, e Christian Kubisch, da Universidade de Ulm, Alemanha. Segundo o reitor da Unicamp, Fernando Ferreira Costa, que coordena a escola, a meta é discutir os dados mais recentes no campo da genética em relação a moléstias como câncer e doenças genéticas das hemoglobinas e neurológicas. "A intenção é discutir os métodos mais modernos e as consequências que terão no diagnóstico e no tratamento de doenças, além de estreitar a relação dos pesquisadores brasileiros dos grandes centros do exterior", diz Costa. Outras duas propostas foram pré-selecionadas, mas dependem de complementação de documentos ou informações para finalização da análise. Uma delas, no campo da genética bovina, é coordenada por Luciana Regitano, da Embrapa Pecuária Sudeste. A outra, apresentada por Ohara Augusto, do Instituto de Química da USP, relaciona-se a processos de oxidação que envolvem a formação de radicais livres. • PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 35


lnteração nas fronteiras Simpósio reúne brasileiros, britânicos e chilenos para discutir tópicos emergentes da ciência

Brasil sediou um dos principais eventos da comemoração dos 350 anos da Royal Society, a consagrada instituição de promoção da ciência do Reino Unido. O simpósio UK-Brazil Frontiers of Science reuniu em Itatiba, no interior paulista, um grupo de 76 pesquisadores do Brasil, do Reino Unido e do Chile para debater grandes questões do conhecimento sob uma ótica multidisciplinar. "O balanço foi bastante positivo", diz o físico Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ), que coordenou a organização do evento ao lado de Richard Kirby, da Escola de Ciência e Engenharia Marinha da Universidade de Plymouth, no Reino Unido. Embora os resultados concretos só devam aparecer em longo prazo, na forma de colaborações internacionais, Knobel ouviu avaliações elogiosas dos participantes. "Um dos pesquisadores me disse que havia lembrado por que resolvera fazer ciência, que é pelo prazer do conhecimento", diz Knobel. Ele se referia ao formato do simpósio, que contemplou temas bastante variados e convidou os especialistas a interagir e debater. "Eles refrescaram a cabeça, pois puderam conhecer assuntos instigantes e distantes de suas especialidades. No caso dos palestrantes, foi a chance de expor suas pesquisas a uma plateia que, embora fosse praticamente leiga no assunto, era composta por jovens pesquisadores de alto nível", afirma. Os participantes foram selecionados entre cientistas com menos de 20 anos de doutoramento, mas considerados líderes no meio acadêmico. O encontro, que ocorreu entre os dias 27 e 30 de agosto, foi organizado pela Royal Society e pela FAPESP, em parceria com o British Council, a Academia Brasi-

leira de Ciências, a Academia Chilena de Ciências e o projeto bilateral UKBrazil Partnership in Science and Innovation. Lorna Casselton, vice-presidente da Royal Society, esteve presente no simpósio. Cada uma das nove sessões iniciou-se com três miniconferências de especialistas. No debate de abertura, Glaucia Mendes de Souza, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), uma das coordenadoras do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), e Joaquim Seabra, do Labotatório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), expuseram a experiência brasileira de produção de etanol de cana-de-açúcar, enquanto Sofia Valenzuela, da Universidade de Concepción, do Chile, mostrou o esforço de seu país para extrair etanol de biomassa de eucalipto. Como seria de esperar, várias perguntas recaíram sobre a sustentabilidade dos biocombustíveis, uma conhecida preocupação dos britânicos, que apostam, por falta de terra disponível, em soluções como a energia solar e a eólica. Os debates seguintes também abordaram tópicos de pesquisa na fronteira do conhecimento, como plasticidade cerebral, emaranhamento quântico, modelagem matemática de populações e doenças, sistema profundo da Terra e mudança climática e desenvolvimento de plantas, entre outros. Numa sessão sobre regulação de metabolismo ener-

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Os resultados

concretos do evento devem aparecer em gético, o brasileiro Lício Velloso, da Unicamp, relatou seus estudos segundo os quais o consumo excessivo de gorduras pode gerar uma inflamação nos neurônios de uma região na base do cérebro, o hipotálamo, que controla a fome (ver Pesquisa FAPESP n° 156). Sua conferência foi precedida por palestras de Nadja Cristina Souza-Pinto, professora do Instituto de Química da USP, sobre a regulação do metabolismo energético, e de Andrew J. Murray, da Universidade de Cambridge, que abordou a busca de novas terapias contra a insuficiência cardíaca. A existência de vida fora da Terra e a busca por planetas habitáveis marcaram a sessão sobre formação e evolução do planeta, que teve conferências dos britânicos Jane Greaves, da Universidade de Saint Andrews, e Ken Rice, da Universidade de Edinburgo, além do brasileiro Douglas Galante, pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP e especialista de uma área ainda pouco conhecida, a astrobiologia (ver

reportagem na página 18). Atitude positiva - O jornalismo voltado para a cobertura de ciência foi outro tema debatido. Com base em seus estudos sobre jornalismo científico e a percepção pública da ciência, o físico e jornalista Yurij Castelfranchi, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse que o Brasil tem um

lonqo prazo,

na forma de colaborações internacionais

ambiente favorável para essa aproximação entre ciência e sociedade. "Cerca de 80% das pessoas têm uma atitude positiva em relação à ciência. Isso não quer dizer que as pessoas compreendam a ciência. A questão que nos interessa é como transformar essa 'confiança ignorante' em conhecimento real", disse. A jornalista Mariluce Moura, diretora da revista Pesquisa FAPESP, apresentou uma análise da evolução do jornalismo científico no Brasil nas últimas décadas. Segundo ela, o foco da mídia brasileira sobre o conhecimento científico tem se acentuado. ''A Pesquisa FAPESP se tornou muito próxima da comunidade científica paulista, estabelecendo uma relação de confiança", disse. O britânico Tim Hirsch destacou as diferenças marcantes das experiên-

cias de divulgação da ciência no Brasil e no Reino Unido. Hirsch foi correspondente da área de meio ambiente da BBC News entre 1997 e 2006 e hoje a tua no Brasil como consultor e jornalista independente. O simpósio de Itatiba fez parte do programa Frontiers ofScience, quedesde 2004 promove grandes encontros internacionais com pesquisadores e é patrocinado por organizações científicas dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, China e Japão. Para Marcelo Knobel, os bons resultados do simpósio mostram que o formato funciona. "Mesmo fora do guarda-chuva da Royal Society, a ideia de reunir jovens cientistas para debater temas de fronteira merece ser repetida", diz. O evento foi útil para mostrar aos britânicos a realidade de pesquisa no Brasil, o que poderá render parcerias futuras. "Muitos ficaram surpresos e entusiasmados com a qualidade da pesquisa brasileira", diz Knobel. Jonathan Dawes, do Departamento de Ciências Matemáticas da Universidade de Bath, disse que a experiência foi proveitosa. "Foi uma oportunidade de ganhar uma visão sobre os desafios atuais de outras disciplinas. E também de ter uma ideia do alcance das pesquisas realizadas no Brasil e de como o Reino Unido pode se envolver com elas", afirmou. Além do simpósio em Itatiba, Dawes deu seminários no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. A estrutura de financiamento da FAPESP foi destacada por alguns participantes, ao responderem, anonimamente, a um questionário de avaliação do evento. "O sistema de financiamento do estado de São Paulo é fantástico. Ah, se tivéssemos algo parecido aqui, particularmente em relação ao teto para gastos administrativos ...", escreveu um deles. Outro destacou a força da pesquisa brasileira em áreas como doenças tropicais, a pesquisa do HIV, a bioquímica de plantas. "Fiquei extremamente impressionado com os pesquisadores brasileiros que conheci, principalmente por aqueles que encontrei em visitas que se seguiram a laboratórios. O investimento em ciência é formidável, especialmente no estado de São Paulo, e o entusiasmo dos estudantes de pós-graduação é contagiante", afirmou. • PESQUISA FA PES P 176 • OUTUBRO DE 2010 • 37


[ INDICADORES ]

Investimento em ascensao FAPESP desembolsou, no ano passado, R$ 679,52 milhões em recursos para pesquisa, 6,5% a mais do que em 2008, mantendo uma curva ascendente de investimentos desde 2003. O crescimento se deu a despeito de a receita total da Fundação ter caído 4,5% em 2009, resultado da redução de recursos federais vinculados a convênios. Esse é um dos dados principais do Relatório de atividades da FAPESP em 2009, lançado neste mês e ilustrado com obras de Candido Portinari ( 1903-1962) que integram uma exposição, cuja abertura, com a presença do filho do pintor, João Candido, está programada para o dia 20, às 16 horas, na sede da Fundação. Outro destaque foi a elevação, respectivamente, em 8,32% e 14,57% dos recursos destinados às bolsas regulares e aos auxílios regulares à pesquisa. No caso das bolsas, foram destinados R$ 98,57 milhões para a modalidade doutorado e R$ 79,65 milhões para a de pós-doutorado, além de R$ 44,79 milhões para a categoria mestrado e R$ 16,79 milhões para as bolsas de iniciação científica. Entre os auxílios regulares, um número eloquente foi o crescimento da quantidade de projetos temáticos contratados. Foram 109, quase 60% mais do que em 2008. O desembolso com os projetos temáticos chegou a R$ 80,32 milhões, 28,32% a mais do que no ano anterior. Do total de novos projetos, 42 foram temáticos vinculados a INCTs (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia), em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) . Os recursos destinados a eles foram de R$ 17,3 7 milhões. "Toda a atividade da FAPESP é fortemente imbuída de sentido finalístico", diz o presidente da Fundação, Celso Lafer. "Tem-se a consciência do papel cada vez mais relevante que a ciência e a tecnologia possuem em relação ao desenvolvimento sustentável e à garantia da qualidade de vida da população. Para cumprir estas finalidades é essencial o apoio intenso da FAPESP à formação de recursos humanos para pesquisa, o apoio à pesquisa acadêmica e o apoio à pesquisa orientada a aplicações", afirma. Lafer lembra que 38 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Relatório de atividades 2009 destaca aumento dos recursos para bolsas e auxílios da FAPESP

o estado de São Paulo investe em pesquisa e desenvolvimento 1,52% do PIB estadual, situando-se à frente de países como Portugal, Espanha, Itália, Chile, Argentina e México. "Da fração pública desses investimentos, o governo do estado de São Paulo foi responsável por 24%, o que significa quase o dobro da participação federal. Disso resulta a participação destacada da comunidade científica paulista em termos de trabalhos indexados de padrão interpacional, que correspondem a pouco mais da metade da produção nacional, bem como a formação, em São Paulo, de 45% dos doutores do país. A FAPESP, ao longo de sua história, e não foi diferente em 2009, contribuiu fortemente para esse fenômeno", disse Celso Lafer. A área da saúde, que concentra um grande número de pesquisadores e grupos de pesquisa no estado de São Paulo, foi contemplada com 28% dos recursos desembolsados pela Fundação. Em seguida aparecem as áreas de biologia (16%), engenharia (14%), ciências humanas e sociais (9%) e agronomia e veterinária (9% ), entre outras. A concentração de grupos de pesquisa também explica o repasse de recursos a pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), que receberam, em 2009, 46% do total de recursos desembolsados pela Fundação. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recebeu 14% e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) ficou com 13%. As instituições federais localizadas em São Paulo obtiveram 12%. Demanda espontânea - Trinta e seis por cento dos recursos, ou R$ 242,6 milhões, destinaram-se à formação de recursos humanos para a pesquisa, na forma de bolsas regulares. Um montante de R$ 284,31 milhões, ou 42% do total, foi desti-

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nado aos auxílios regulares à pesquisa, projetos de demanda espontânea dos pesquisadores, incluindo-se os temáticos. Já os programas especiais, criados para induzir a pesquisa em áreas estratégicas, ficaram com R$ 75,89 milhões, ou 11 o/o do total. Por fim, os programas de pesquisa para a inovação tecnológica, que apoiam pesquisas com potencial de desenvolvimento de novas tecnologias ou que contribuem para a form ulação de políticas públicas, ficaram com 11o/o, ou R$ 76,7 milhões. A preocupação com o apoio à pesquisa acadêmica envolveu um esforço de modernização da infraestrutura de pesquisa das instituições. Para os programas de apoio à infraestrutura de pesquisa foram destinados R$ 38,68 milhões. No ano houve o lançamento do edital para o FAP-Livros, progra-

ma voltado para a compra de livros e e-books para atualização do acervo de bibliotecas de universidades e instituições de pesquisa no estado de São Paulo. A FAPESP avançou em sua política de internacionalização do investimento em pesquisa. Foram estabelecidos novos acordos de cooperação com instituições do exterior, caso dos Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK), King's College London e com o International Science and Technology Partnerships Canada Inc. (ISTP Canada). Também foram lançadas novas chamadas de propostas no âmbito de acordos de cooperação já existentes, como o Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG), da Alemanha, e o Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS), da França, e lançado o Programa de Bolsa Dra. Ruth Cardoso em

Antropologia e Sociologia, apoiado pela FAPESP, Fundação Fulbright, Capes e Universidade Columbia. Em nível nacional, a FAPESP assinou acordo de cooperação com as fundações de Amparo à Pesquisa do Maranhão (Fapema) e de Pernambuco (Facepe) para pesquisas conjuntas sobre mudanças climáticas globais. No caso da Facepe, foi lançada uma chamada de propostas que poderão se articular com as de cientistas da França, submetidas ao edital da Agence Nationale de La Recherche. A Fundação promoveu seminários internacionais no âmbito de grandes programas como o Biota-FAPESP, o de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e o de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. No total, a FAPESP organizou e participou de 46 eventos, que atraíram cerca de 10 mil pessoas. •

Mais recursos para pesquisa Evolução do desembolso da FAPESP por linha de fomento - Em R$ do ano

Bolsas regulares Auxílios regulares Programas especiais Programas de pesquisa para inovação tecnológica Total

2002

2003

2004

2005

2006

2007

153.155.936 197.648.045 45.230.273 59.438.645

135.876.020 146.033.605 29.488.759 43.403.063

136.885.029 167.801.061 35.408.188 53.806.158

128.761 .923 197.966.891 79.509.055 75.480.707

150.007.697 223.817.344 75.676.162 72.338.734

178.049.374 212.012.903 85.686.338 73.822.746

223.966.926 242.609.067 248.169.041 284.315.018 91 .097.830 75.899.265 74.623.001 76.702.464

481.718.578. 521.839.938

549.571 .361

637.856.798

679.525.814

455.472.900 354.801.449 393.900.438

2008

2009

Evolução do número de projetos contratados pela FAPESP por linha de fomento Bolsas regulares Auxílios regulares Programas especiais Programas de pesquisa para inovação tecnológica Total

4.108 3.141 520 243

3.838 2.944 508 177

4.132 3.110 807 236

4.002 2.999 905 256

5.072 3.813 878 294

5.746 3.949 522 370

5.898 4.389 842 207

5.995 3.953 1.299 223

8.012

7.467

8.285

8.162

10.057

10.587

11.336

11.470

Auxílios regulares : Auxílio à Pesquisa Regular, Projetas Temáticos, Pesquisador Visitante, Escola São Paulo de Ciência Avançada, Participação em Reunião Científica ou Tecnológica, Publicações Científicas, Reparo a Equipamentos. Programas Especiais: Apoio a Jovens Pesquisadores, Cooperação lnterinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (CinAPCe), Ensino Público, Capacitação de Recursos Humanos para a Pesquisa, Jornalismo Científico (MidiaCiência), Programa de Apoio à Infraestrutura de Pes· quisa, Convên ios FAPESP-MCT/CNPq. Programas de Pesquisa para Inovação Tecnológ ica: Programa Biota-FAPESP, Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia), Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), Programas de Pesquisa em Políticas Públicas, Pesquisa lnovativa em Micro e Pequenas Empresas, Pesquisa em Pa rceria para Inovação Tecnológica, Apoio à Propriedade Intelectua l.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 39


I l

HISTI ACID

LABORATÓRIO MUNDO

GREGO? NÃO, ÁRABE Se você já tentou alguma vez decifrar textos em árabe e não obteve progresso mesmo após ter estudado a

língua por algum tempo, esta é uma notícia consoladora: aprender a ler nesse idioma é realmente mais difícil e demorado. Uma série de estudos feitos na Universidade de Haifa, Israel, indica que a complexidade visual da ortografia árabe faz com que o hemisfério direito cerebral não esteja envolvido nas primeiras etapas do processo de domínio da língua escrita. Os pesquisadores argumentam que o árabe usa muitos símbolos gráficos similares para representar letras e sons distintos. Às vezes, a diferença entre duas letras se resume a um detalhe quase imperceptível, como o número de pontos ou linhas inseridos em sua representação. Visto que o hemisfério direito usa a informação global, e não as minúcias gráficas, para identificar os símbolos, esse lado do cérebro não é acionado no processo de aprendizagem do árabe. Já em idiomas como o inglês e o hebraico, os dois hemisférios participam da tarefa, segundo os cientistas, que publicaram os trabalhos em várias edições da revista Neuropsychology.

MONTANHAS,

I ALÉM DO TURISMO As montanhas da Europa estão ganhando mais atenção - e não só como tradicional cenário para

Alfabeto arábico: símbolos similares para sons distintos

36% do continente e abrigam 118 milhões de pessoas ( 17% da população da Europa). Coordenado por Martin Price, do Perth College, Reino Unido, o documento apresenta as montanhas co.mo um ecossistema multifuncional férias ou cartões-postais. Em um documento de -capaz de prover água, 252 páginas distribuído bens e serviços de valor econômico- bastante em setembro, a Agência ameaçado. A temperatura Ambiental Europeia sugeriu da água nos lagos e nos rios mais proteção às regiões montanhosas, que cobrem montanhosos aumentou nas últimas décadas, favorecendo inundações e deslizamentos nas cidades próximas. Outra provável consequência é a escassez de água para consumo humano. Segundo os autores do trabalho, as mudanças ambientais em curso nas montanhas exigem intervenção mais efetiva do poder público. As inundações, que em geral começam em regiões altas, tornaram-se o acidente ~ mais comum na Europa.

40 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

1

o Noyo VALOR DO NUMERO PI

Tsz-Wo Sze, um cientista da computação da Yahoo nos Estados Unidos, criou um programa de computador, instalou-o em mil máquinas da empresa e depois de 23 dias obteve o dobro de dígitos que se conhecia até agora para o número pi. Definido como o resultado da divisão do comprimento de uma circunferência por seu diâmetro, pi é um número irracional que começa com 3,14 e segue por infinitos dígitos. O pesquisador chegou a uma notação binária, com dois quatrilhões de dígitos ou bits, o dobro do recorde anterior. Em notação decimal (3,14 ... ), o valor anterior tinha 2,7 trilhões de dígitos. Documentos antigos indicam que a busca por aumentar a precisão do valor do pi começou 1700 anos antes de Cristo.

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HISTÓRIA ACIDENTADA Os limites e as possíveis histórias das crateras lunares estão agora um pouco mais claros. Em três artigos publicados em 17 de setembro na revista Science, pesquisadores dos Estados Unidos apresentam um mapa topográfico da Lua, obtido por meio da sonda LRO (Lunar Reconnaissance Orbiter), e descrevem os processos geológicos que devem ter moldado a superfície lunar, marcada por crateras de diferentes tamanhos e origens. As regiões mais altas possuem mais crateras maiores que as mais baixas, ocupadas por muitas crateras menores, expressando diferenças nas ondas de meteoritos que bombardearam o único satélite natural da Terra. Essa diferença de dimensões entre as crateras sugere que os meteoritos mais antigos, que devem ter caído até 3,8 bilhões de anos atrás, eram maiores que os mais recentes, de acordo com as análises de James Head e

LATINOS ANTIGOS I

A Lua e suas crateras, vistas ., da Apollo 11 ~----------------------------~ ~ ~

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sua equipe da Universidade Brown, Estados Unidos. As equipes de Benjamin Greenhagen, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, e Timothy Glotch, da Universidade Stony Brook, também dos Estados Unidos, identificaram

minerais com silicatos, como quartzo e feldspato, ricos em potássio e em sódio, que resultam do resfriamento do oceano de magma que formou a crosta lunar primitiva. A história da Lua é muito mais rica do que se imaginava.

Os restos de esqueletos humanos encontrados em 2009 em Laguna de las Pampas, na província de Buenos Aires, Argentina, devem ter 10.045 anos. Essa idade, defin ida por uma equipe da Universidade do Arizona, Estados Unidos, põe esses restos mortais entre os mais antigos do continente americano. Em setembro, na American ]ournal of Physical Anthropology, Héctor Pucciarelli, da Universidade Nacional de La Plata, Ivan Perez, do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Tecnológicas, e Gustavo Politis, da Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires, detalham o achado e concluem: os esqueletos (de quatro adultos e duas crianças) têm morfologia semelhante à dos encontrados no Brasil, na Colômbia, no Peru e no México, ajudando a elucidar a expansão da espécie humana no continente.

O IMPACTO DOS ANTIBIÓTICOS

Escherichia coli: comum nos intestinos ---------------------------'

Antibióticos podem causar mudanças duradouras nas populações de bactérias que vivem no intestino humano, aumentando o risco de doenças crônicas. Les Dethlefsen e David Relman, da Universidade Stanford, na Califórnia, coletaram mais de 50 amostras de fezes de três pessoas em um período de 10 meses que incluía dois tratamentos com o antibiótico ciprofloxacina. Eles identi ficaram os microrganismos de cada amostra e concluíram que cada pessoa tinha uma flora intestinal única, cujo equilíbrio era desfeito pelos antibióticos. Na maioria das vezes, a composição da flora microbiana voltou rapidamente ao estado anterior, mas às vezes as espécies de bactérias eram substituídas por outras. Publicado na PNAS, o estudo reforça o alerta: antibióticos deveriam ser usados apenas quando realmente necessários. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 41


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LABORATÓRIO BRASIL

SOBRE FLORES E FRUTOS Cobertas de flores brancas de perfume adocicado, as pitangueiras atraem enxames de abelhas. No caso das mirtáceas, a família que inclui as árvores que dão pitangas, guabirobas e goiabas, a ecologia parece contar mais do que a genealogia para determinar a época de floração e frutificação. A conclusão é do estudo de Vanessa Staggemeier e Patrícia Morellato, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, que examinou 34 espécies ao longo de 30 meses numa floresta de restinga na ilha do Cardoso, sul do estado de São Paulo (Journal of Eco/ogy). As mirtáceas dessa área florescem em conjunto quando os dias são mais longos- entre dezembro e janeiro-, o que incrementa a atração de polinizadores. A produção de frutos, porém, é contínua, representada a cada mês por pelo menos três espécies, uma boa forma

ESCONDERIJO I DE ARANHA Onde é mais provável achar uma aranha-marrom: nas dobras da cortina, atrás da porta ou no fundo do armário? As fêmeas de Loxosceles gaucho, cujas picadas causam lesões graves na pele, preferem cantos com ângulos agudos, que protegem melhor a prole contra predadores

(Medical and Veterinary Entomology). O biólogo

sete de cada 1O fêmeas dessa espécie e metade das fêmeas com prole usavam refúgios de cavidade triangular. A preferência ajuda a explicar por que esse gênero de aranhas se adaptou ao ambiente humano e se tornou um problema de saúde pública em cidades do Brasil, Chile e Estados Unidos. "As cidades podem estar oferecendo muitos refúgios com ângulos agudos", diz ele.

André Augusto Stropa chegou a essa conclusão depois de construir 60 refúgios artificiais com cavidades em forma de triângulo, quadrado, pentágono e cilindro, e espalhá-los pela mata na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Por um ano, ele documentou as cavidades escolhidas. O que mais chamou a atenção foi que 42 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

de manter sempre por perto os animais frugívoros, cruciais para a dispersão das sementes. Os autores destacam a importância, no estudo da ecologia, de se entender a contribuição relativa do ambiente e do parentesco entre as espécies.

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ORIGENS I MISTERIOSAS Continentes são mosaicos de rochas dos mais diversos tipos, idades e origens. Descrevê-los é um eterno enigma para os geólogos,

como os do grupo liderado por Carlos de Araújo, do Serviço Geológico do Brasil em Fortaleza, que investiga como se formou a região da Província Borborema com rochas do grupo Novo Oriente, no oeste do Ceará ( Gondwana Research). Análises geoquímicas e geocronológicas, além de observações de campo, mostraram que o grupo Novo Oriente tem detritos de interior de cráton, nome dado às porções antigas da crosta do planeta. A bacia pode ter surgido há cerca de 1,3 bilhão de anos ou, especula Araújo, da fragmentação do supercontinente Rodínia, há menos de 1 bilhão de anos.

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METAIS ~ESADOS I NO TIETE No início do século XX, nadar nas águas cristalinas do rio Tietê atraía muitos entusiastas. Hoje, quem se dispusesse a encarar tal desafio não correria apenas o risco de trombar com os sofás, garrafas pet e pneus de automóveis. Pesquisa feita pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP) indica que, com graus diferentes de intensidade e toxicidade, uma grande quantidade de metais pesados nocivos à saúde humana- como cobre, cobalto, cromo, zinco, níquel e chumbo -também está presente em diversos pontos da bacia do Tietê. O estudo, que avaliou sedimentos coletados em 12 pontos diferentes, da nascente à foz, mostra que os pontos críticos, onde a concentração dos metais é mais evidente, estão nas proximidades do reservatório de Pirapora, na região de Anhembi e

no reservatório de Nova Avanhandava. "A principal causa da contaminação é o esgoto doméstico; em seguida aparecem resíduos agrícolas e dejetos industriais", avalia Jefferson Mortatti, que coordenou

o levantamento. Segundo ele, toda a cadeia alimentar é afetada. Em seres humanos, esses metais podem provocar dermatites, alterações no sistema nervoso e nos pulmões e redução de fertilidade.

RELAÇÕES PERIGOSAS · Em cupinzeiros, além dos cupins, podem viver outros insetos ou larvas, que se nutrem de fungos e excrementos e às vezes dos próprios cupins ou de outros insetos inquilinos. Na Psyche de julho, Cleide Costa e Sergio Vanin, da Universidade de São Paulo (USP), analisam essas relações de vida e morte, que ganham refinamentos nos cupinzeiros bioluminescentes do Cerrado. As larvas dos besouros Odontocheila auripennis vivem em galerias escavadas na superfície dos ninhos do cupim Cornitermes cumu/ans próximas de outras galerias com larvas do besouro luminescente Pyrearinus termitil/uminans. Segundo Cleide, a associação dessas duas espécies de besouros é vantajosa principalmente para a O. auripennis, que se aproveita das presas atraídas pelas larvas

A bacia amazônica funciona como uma janela para o passado, no que diz respeito a processos atmosféricos. Como quase não sofre influência da ação humana, preserva aspectos pré-industriais da emissão de aerossóis, as partículas suspensas na atmosfera. Um estudo com participação do físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo, encontrou concentrações baixíssimas de partículas acima da floresta virgem (Science). Os resultados mostram que a Amazônia é como um reator biogeoquímico que produz partículas de aerossol a partir de emissões de plantas e de micróbios, junto com vapor de água, luz solar e foto-oxidação. Faz diferença, por exemplo, para a produção de chuvas: em ambientes poluídos, o número de gotículas nas nuvens depende da velocidade da corrente de ar ascendente; já acima da floresta virgem, o número de gotas é diretamente proporcional ao de partículas de aerossol. Entender as nuvens é, sem dúvida, essencial nos estudos do clima.

bioluminescentes da outra espécie. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 43



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Rocha do manto (peridotito) em microscopia óptica e em tamanho natural (abaixo) . Acima , cristais de ortopiroxênio (Opx), clinopiroxênio (Cpx) e olivina (01 ) que a compõem

Câmaras vivas - Vistas como gigantescas panelas de pressão cozinhando magma, as câmaras de vulcões como o Yellowstone, nos Estados Unidos, ganharam mais atenção e se tornaram alvo de vigilância constante: quanto maior a movimentação no interior das câmaras, maior o risco de uma catastrófica erupção de lava. Cercado por um parque nacional, o Yellowstone é o que os geólogos chamam de supervulcão. Sua erupção poderia trazer impactos negativos sobre todo o planeta. No Brasil, não há mais o que Valdecir chama de câmaras vivas, em que magmas quentes e menos quentes se misturam. Temos apenas vulcões extintos que ainda liberam um calor que esquenta a água de termas como as de Poços de Caldas, em Minas Gerais. As câmaras vivas mais próximas estão sob a cordilheira dos Andes, a cerca de 20 quilômetros de profundidade. "Algumas estão em atividade há 10 milhões de anos, indicando que o tempo de vida de uma câmara magmática pode ser muito longo", diz ele. O tempo de fechamento de uma câmara - com a cristalização do magma formando rochas- depende da profundidade: quanto mais rasa, menos quente é o ambiente e, portanto, o magma resfriará em menos tempo que nas mais profundas. Pode não ser assim, porém, quando esses espaços, ainda que mais rasos, recebem magma novo e mais quente, como aconteceu na Islândia em abril deste ano. Um dos cerca de 30 vulcões

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dessa ilha do Atlântico Norte, o Eyjafjallajokull ou E+ 15, como geólogos dos Estados Unidos o apelidaram, ganhou fama mundial repentina ao cobrir o norte da Europa com uma espessa nuvem de cinza vulcânica. Valdecir conta que esse foi o resultado da chegada de magma basáltico com temperatura próxima a 1.200° Celsius, por meio de fraturas entre rochas mais antigas, que encontrou um magma diferente, granítico, resfriando a 700 ou 800° Celsius na câmara. O nov9 magma resfriou e o antigo esquentou. Depois de se misturarem, começou uma erupção explosiva, reforçada pela interação com o gelo que cobria o vulcão. Ganharam os céus densas nuvens de fumaça carregada de partículas de rocha vulcânica que pode prejudicar o funcionamento das turbinas dos aviões.

O PRO-JETO Contribuicões do manto e diferentes reservatórios crustais no magmatismo granítico neoproterozoico no Sudeste brasileiro - n° 2007/00635-5 MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesqu isa COORDENADOR

Valdecir de Assis Janasi - IG/USP INVESTIMENTO

R$ 161.773,20

Enquanto saía mais fumaça preta do vulcão da Islândia, geólogos do mundo inteiro debatiam em blogscomo um vulcão visto como frio e inerte tornou-se tão intempestivo. A hipótese que ganhou força é que pequenos tremores de terra podem ter facilitado a circulação de magma novo e a mistura com o magma residente. Correram debates também sobre onde as câmaras do vulcão deveriam estar e o quanto poderiam abrigar de magma que chegava do interior da Terra. As câmaras, estimaram, deveriam estar entre dois e cinco quilômetros de profundidade e possivelmente conectadas com as de outros vulcões da ilha. No Brasil apenas os resultados da mistura de magmas é que são visíveis, por exemplo, nos pisos de granito cinza das estações de metrô mais antigas de São Paulo. Valdecir e Adriana Alves, pesquisadora de seu grupo recentemente contratada como professora do Instituto de Geociências da USP, estavam intrigados com o que eram- e como teriam se formado- as rochas que apareciam como esferas dentro do granito, extraído de pedreiras em Mauá, na Grande São Paulo. Como as manchas eram mais escuras que o granito, eles pensaram que poderia ser outro tipo de rocha, um basalto. Não era. Era granito mesmo, de composição parecida, porém mais escuro. "O magma novo que invadiu o magma residente estava mais quente e congelou se desfazendo em esferas grandes que se romperam e formaram esferas menores chamadas enclaves': diz Valdecir.

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Raridades do manto - No Brasil há milhares de antigos depósitos de magmas. Só o estado de São Paulo deve abrigar pelo menos 220 de apenas um dos tipos, o magma granítico, que gera as rochas conhecidas como granito, de acordo com levantamentos feitos há mais de 10 anos. Esse número pode crescer à medida que os levantamentos de campo avancem. No município paulista de Itu, a equipe da USP encontrou pelo menos quatro grandes antigas câmaras magmáticas- e não apenas uma, como se imaginava inicialmente. Em 2007, a equipe da USP se pôs a estudar essa massa de antigo magma granítico que se cristalizou a três quilômetros de profundidade e hoje, por causa da erosão, encontra-se parcialmente à flor da terra. As análises preliminares indicaram que há cerca de 600 milhões de anos cada uma dessas câmaras foi palco de vários episódios de mistura de magmas, alguns do mesmo tipo e outros resultantes de injeções de basalto, como na Islândia. A suspeita é de que exista ali uma conexão com o vulcanismo, já que a câmara era bastante rasa. Em termos mais concretos, a atual cidade de Itu pode ter sido uma das saídas de lava das profundezas da Terra para a superfície, há milhões de anos. Houve achados inesperados, como os primeiros fragmentos de manto em São Paulo. Em 2006, Valdecir estava na praia Vermelha, ao lado da cidade de Ubatuba, examinando afloramentos

OGRANITO DE ESTAÇÕES DO METRÔ PAULISTA CONTÉM MANCHAS QUE RESULTAM DA MISTURA DE MAGMAS rochosos com um grupo de 40 estudantes de graduação quando um deles lhe trouxe um bloco de rocha verde-claro. "Não lembro quem foi", conta o professor. "Eu disse que eram olivinas, um tipo de mineral, mas era meio estranho. Os estudantes não se satisfazem com qualquer coisa. Vimos pela lupa e identificamos que eram fragmentos de uma rocha formada pela combinação de dois minerais, olivina e piroxênio. Tivemos acesso pela primeira vez ao manto de São Paulo. O mais curioso é que já tínhamos passado por ali e não tínhamos visto nada antes. Quer ver? Aqui está", diz ele, pegando uma rocha

esverdeada, pouco menor que uma maçã, do canto de uma mesa coberta de papéis, mapas e rochas. Vidyã Vieira de Almeira, atualmente no Serviço Geológico do Brasil, confirmou em seu mestrado que os 10 fragmentos trazidos da praia de Ubatuba eram amostras do manto superior, a camada situada logo abaixo da crosta, a mais externa. Essas rochas devem ter se formado a uma profundidade de 60 quilômetros e só puderam chegar à superfície sem derreter porque vieram de carona em um magma basáltico rico em fluidos que subiu rapidamente. "Esses magmas subiram por fraturas que se abriram há cerca de 80 milhões de anos, depois que o oceano Atlântico começou a se formar. De modo geral, não há como pôr a mão nas rochas do manto se o magma não as trouxer", diz Valdecir. "E ter acesso a esse material é crítico, porque é no manto que ocorre, ou pelo menos que se inicia, a maior parte dos processos de formação de magmas." "Ninguém vê as câmaras magmáticas em atividade, mas apenas o resultado, que são as rochas expostas", diz Valdecir. O Havaí oferece algumas exceções. Em 1959, o magma que saiu do vulcão Kilauea ocupou uma depressão e formou um lago de lava com 640 metros de diâmetro e 135 de profundidade. Os geólogos esperaram a superfície da lava esfriar, andaram sobre o lago e acompanharam o resfriamento do magma durante anos, por meio de sucessivas perfurações, entendendo melhor o que se passava nas câmaras magmáticas. Em 2008, como resultado inesperado de uma perfuração em uma região próxima ao Kilauea, o magma incandescente, que repousava a 2,5 quilômetros da profundidade, subiu à superfície. Um dos pesquisadores disse que encontrar o magma daquela forma era "tão emocionante quanto encontrar um dinossauro vivo brincando em uma ilha distante". •

Artigo científi co ALVES, A. et ai. Microgranitic enclaves as products of self-m ixing events: a study of open-system processes in the Mauá granite, São Paulo, Brazil, based on in situ isotopic and trace elements in plagioclase. Journal of Petrology. v. 50, p. 2.221 -47,2009.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 47


[ PALEONTOLOGIA ]

Os dinos do Brasil Livro conta a história de 21 espécies encontradas no território nacional MARCOS PIVETTA

ecém-lançado, o livro O guia completo dos dinossauros do Brasil (Editora Peirópolis, 222 páginas, R$ 62,00) apresenta ao leitor, de forma didática e por meio de fartas e belas ilustrações, 21 espécies de dinossauros cujos restos foram locali~ados em território nacional. A obra foi escrita pelo paleontólogo Luiz Eduardo Anelli, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). As prováveis formas dos dinossauros brasileiros foram reconstituídas a partir da análise de seus registras fósseis, num trabalho unindo ciência e arte feito por Felipe Alves Elias, também paleontólogo. A ideia de escrever o guia surgiu depois de Anelli ter sido curador da mostra Dinos na Oca, que atraiu um público de 550 mil pessoas ao Parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo, entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006. ''As pessoas me fizeram muitas perguntas sobre os dinossauros do Brasil", diz o paleontólogo. Como cientista, Anelli estuda moluscos e conchas das eras Paleozoica e Cenozoica do Brasil e da Antártica, que já estavam na Terra muito antes de aparecerem os primeiros dinossauros. Como divulgador da ciência, é um especialista nesses míticos répteis que surgiram aproximadamente 230 milhões de anos atrás e desapareceram misteriosamente há 65 milhões de anos. 48 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA F'APESP 176

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Alguns dos mais antigos fósseis de dinossauros foram encontrados no Brasil, como o Staurikosausus pricei, um veloz bípede carnívoro que atingia dois metros de comprimento, ou o Saturnalia tupiniquim, um quadrúpede pescoçudo de tamanho similar que comia plantas e pequenos animais. Ambos viveram há aproximadamente 225 milhões de anos, no período Triássico, e seus vestígios foram resgatados no município gaúcho de Santa Maria. Aqui também havia animais enormes. Esse era o caso do titanossauro Antarctosaurus brasiliensis, um quadrúpede herbívoro que atingia até 40 metros de comprimento e viveu na região paulista de São José do Rio Preto cerca de 80 milhões de anos atrás. Estudiosos de todas as latitudes admiram os resquícios desses bichos do passado descobertos em terras tropicais, mas poucos brasileiros conhecem sua existência. O livro pretende preencher essa lacuna. "Tento dar sempre os contextos temporal, geológico e biológico em que cada espécie foi encontrada no Brasil', afirma Anelli. Na obra, o paleontólogo dá pinceladas sobre a origem da vida na Terra e a gênese, a evolução e o desaparecimento dos dinossauros. O autor ainda ajuda o leitor a compreender por que as aves são os únicos descendentes dos dinossauros. Comparações com a forte paleontologia argentina, que já descobriu mais de 110 espécies de dinossauros, são também uma constante no guia. Segundo Anelli, estes são alguns dos motivos que explicam a menor ocorrência de dinossauros em terras nacionais em relação ao vizinho do sul: o estudo desses bichos começou quase 80 anos antes na Argentina do que no Brasil; durante o período Cretáceo, em que foi encontrada a maior parte das espécies de dinossauros conhecidos dos dois países, o clima na Argentina era mais úmido e propício à diversidade de vegetação e de animais e, por fim, as condições climáticas e geólogicas atuais na nação platina são melhores para a preservação de fósseis nas rochas. "A grande diferença se deveu mesmo às condições naturais do nosso Cretáceo, que tinha um clima semiárido com

Espécie sem nome • de maniraptor (acima) e Antarctosaurus brasi/iensis: dois dinossauros do período Cretáceo

pouca diversidade de animais terrestres se comparada à existente na Argentina no mesmo período", diz Anelli. O livro terá de ser atualizado periodicamente, pois a paleontologia nacional não para de produzir novos achados. No mês passado, uma equipe do Museu de Zoologia da USP apresentou uma nova espécie de titanossauro, um herbívoro de 13 metros de comprimento que viveu há cerca de 120 milhões de anos em Minas Gerais. Por ora, seu apelido é Tapuiassauro, um nome brasileiríssimo. • PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 49


[ FÍSICA ]

Ao sabor dos neutrinos m dos experimentos mais famosos atribuídos a Galileu Galilei - mas possivelmente apócrifo- foi realizado no alto da torre de Pisa. Duas balas de canhão de pesos diferentes foram soltas ao mesmo tempo, para que se pudesse verificar se havia diferença entre a aceleração de uma e de outra conforme avançavam na direção do chão. A história em si pode não passar de lenda, mas é fato que o cientista italiano foi o primeiro a definir que todos os objetos, não importando sua massa, eram afetados da mesma maneira pela gravidade. Fim da história? De jeito nenhum. Quatro séculos depois, pesquisadores brasileiros decidiram usar o que há de mais moderno na física quântica- o estudo de fugidias partículas chamadas neutrinos- para testar esse mesmo fenômeno. E ainda não chegaram a um veredicto. Antes de mais nada, o que significa, em termos da física de hoje, essa antiga constatação galileana? Resumida no que se convencionou chamar de princípio da equivalência, ela implica que a massa inerciai (a resistência de um objeto a mudar seu estado de movimento, repouso ou velocidade constante) e a massa gravitacional (índice usado para medir a intensidade da força da gravidade sobre um corpo) são exatamente iguais. Parece óbvio. Mas não para os cientistas que se debruçam sobre a questão. "Na verdade isso não precisava ser assim", diz Marcelo Guzzo, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ). "É uma surpresa que seja desse jeito." Para explicar o quanto isso parece mera coincidência, o cientista apresenta o funcionamento da força eletromagnética. Sob um campo magnético, 50 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Equipe da Unicamp usa partícula fugidia para testar ideia de Galileu SALVADOR NoGUEIRA


uma partícula com carga elétrica pode ser induzida a se mover. Se ela é trocada por outra com a mesma carga, mas massa inerciai maior, a aceleração imposta pelo campo magnético diminui. Com quase todas as forças da natureza é assim: a massa inerciai não faz variar a intensidade da força. A única exceção é a gravidade. O experimento de Galileu demonstra isso de maneira rústica. Mas um teste mais rigoroso e preciso preservaria essa conclusão? Guzzo e seus colaboradores decidiram usar os resultados de experimentos com neutrinos- uma das partículas mais difíceis de detectar, produzidas no interior do Sol, de astros mais distantes e de reatares nucleares- para testar o princípio da equivalência. Com uma massa diminuta, os neutrinos não possuem carga elétrica e só interagem com o resto do Universo por meio da força nuclear fraca e da gravidade, as mais fracas das quatro forças da natureza. Dada a pequena energia que possuem, é uma interação muito sutil. Para observá-los, os cientistas constroem imensos detectores em minas profundas e os preenchem com água puríssima e outros materiais, na esperança de que algum neutrino trombe com alguma partícula dentro deles e produza uma reação que possa ser detectada. Em 2009 o experimento japonês Kamland fez uma constatação importante: confirmou de modo incontestável a transformação de um tipo de neutrino em outro, fenômenó que os físicos chamam de oscilação de sabor. Essa oscilação está ligada a uma propriedade maluca da mecânica quântica, segundo a qual uma partícula não define um estado específico até que seja medida por algum processo de interação. Na prática, o neutrino pode ter três sabores (eletrônico, muônico e tauônico) e ele oscila o tempo todo entre eles até que seja detectado. Os resultados do Kamland demonstraram que, dependendo da distância entre o detector e a fonte emissora de neutrinos, a proporção dos três sabores pode variar. Guzzo e seus colegas confrontaram as medições do experimento japonêse outros ao redor do mundo- com as previsões teóricas, para analisar o efeito da gravidade sobre a oscilação dos neutrinos. Eles descobriram que pode haver de fato violação do princípio de

equivalência. Mas a probabilidade é ridiculamente pequena. ''Algo inferior a 1 a cada 10 15 partes, um número que aparece depois da décima quinta casa decimal", afirma Guzzo. Os resultados, submetidos à Physical Review D, sugerem que até o limite de precisão observado a equivalência entre massa inerciai e massa gravitacional se sustenta. E que Galileu continua tão certo quanto estava no século XVII. Mas não dá para dizer que essa correspondência se manterá até o limite teórico do que pode ser medido. Miniburacos negros - O grupo da Unicamp também usou a oscilação dos neutrinos para testar outros elementos que estão nos alicerces da física. Um dos trabalhos envolve a chamada decoerência quântica, mecanismo que faz uma partícula perder a característica de ter todos os estados possíveis ao mesmo tempo e acabar se definindo por um deles. Analisando esse processo à luz da oscilação de neutrinos, é possível identificar se algo novo ou diferente influencia o comportamento dessas partículas. A hipótese mais interessante é que a interação com miniburacos negros no espaço provocasse essa decoerência. Um miniburaco negro é uma versão em escala quântica dos objetos grandes. Enquanto os últimos são criados pelo colapso de estrelas, os primeiros seriam gerados numa região do tamanho de uma partícula e durariam frações de segundo antes de desaparecer. A ideia de que essas estranhas criaturas cósmicas possam existir é levada a sério pelos cientistas, embora ainda não haja evidência concreta de que eles estejam mesmo por lá. Ao analisar a decoerência, Guzzo e seus colegas chegaram à conclusão de que, sim, esses miniburacos negros podem existir e influenciar o comportamento dos neutrinos. Mas, caso isso esteja de fato acontecendo, "eles não podem ser muito abundantes", diz o físico da Unicamp. Além disso, a probabilidade de que existam não elimina a de que a causa da decoerência dos neutrinos possa ser outra, segundo o trabalho, publicado online em setembro no European Physical ]ournal C. "Pode ser um miniburaco negro", diz, "mas também outro fenômeno desconhecido". • PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 51




BIOQUÍMICA ]

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MensaÇJeira da morte

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Molécula direciona proteínas defeituosas para destruição

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Representação da ubiquitina: etiqueta química da destruição

ma dupla de jovens pesquisadores brasileiros radicados nos Estados Unidos descobriu que, sem uma determinada proteína, os seres eucariotas, como os fungos, as plantas e os animais (homem inclusive), não conseguem desempenhar uma função vital para sua sobrevivência: destruir proteínas que foram erroneamente produzidas por suas próprias células. Organismos desprovidos da proteína listerina perdem a capacidade de identificar alguns tipos de proteínas aberrantes recém-fabricadas e de eliminá-las por meio do sistema de controle de qualidade das células. A conclusão faz parte de um estudo publicado no dia 23 de setembro na revista científica Nature por Claudio Joazeiro, bioquímico de 42 anos que chefia um laboratório no Scripps Research Institute, de La Jolla (Califórnia), e Mario Bengtson, de 35 anos, que ali faz pós-doutorado. A ausência da listerina leva ao acúmulo de proteínas tóxicas nas células, cujo excesso pode estar implicado no aparecimento de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer e o Parkinson. "Descobrimos quase por acaso o papel da listerina nesse processo", diz Joazeiro, estudioso dos mecanismos envolvidos na regulação celular. Há alguns anos o brasileiro e o biólogo molecular Steve Kay, hoje na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), haviam mostrado que camundongos com uma mytação no gene LISTER, responsável pela produção da proteína listerina, desenvolviam problemas nos neurónios motores da medula espinhal. Como esse tipo de desordem neurodegenerativa parece ser desencadeado pela ocorrência exagerada de proteínas defeituosas, Joazeiro e Bengtson resolveram averiguar se o gene, que é preservado em praticamente todos os organismos eucariotas, da levedura ao homem, não poderia ser importante para o bom funcionamento do processo de faxina celular. A hipótese estava correta. Conforme relatam no artigo da Nature, eles desligaram na levedura Saccharomyces cerevisiae um gene chamado LTNl (equivalente ao LISTER) e viram que suas células eram incapazes de reconhecer e destruir algumas formas de proteínas aberrantes e acabavam morrendo. Sem a listerina, o controle de qualidade celular falhava. "Trabalhar com leveduras é barato e tem a vantagem de fornecer resultados com rapidez", comenta Bengtson. Os brasileiros descobriram não só o que faz a listerina, mas também como a proteína exerce seu papel de sentinela das células, de delatora da presença de proteínas defeituosas. Ela se liga aos ribossomos- a estrutura das células responsável pela síntese das proteínas a partir da informação genética fornecida pelo RNA mensageiro- e marca as proteínas defeituosas

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recém-fabricadas com uma espécie de etiqueta química da morte: moléculas de ubiquitina, uma família de proteínas fundamentais para o processo de regulação celular. As ubiquitinas receberam esse nome por serem ubíquas, por estarem presentes em praticamente todas as células de organismos eucariotas. Proteínas aberrantes (ou desnecessárias) que carregam esse selo químico da destruição são encaminhadas para o proteassoma, estruturas encarregadas de degradá-las e reduzi-las a cadeias químicas de uns poucos aminoácidos. A listerina presente nos ribossomos cola as moléculas de ubiquitina numa forma específica de proteínas aberrantes: aquelas codificadas por RNA mensageiros que não apresentam o chamado códon de terminação. Um pouco de conhecimento de bioquímica ajuda a entender como ocorre esse tipo de defeito. As proteínas são formadas por uma cadeia de aminoácidos. A receita para a adição de cada aminoácido à cadeia é fornecida pelo códon, uma sequência de três bases nitrogenadas contida no RNA mensageiro. O último códon, necessário para completar a síntese de uma proteína, é chamado códon de terminação. "Ele diz ao ribossomo que a proteína sintetizada chegou ao fim", explica Joazeiro. Na ausência desse códon, portanto, o ribossomo continua adicionando aminoácidos indevidamente até alcançar o final da fita do RNA mensageiro e se gera uma proteína aberrante que não pode ser corrigida pelos sistemas de controle de qualidade. Outra função exercida pelo códon de terminação é sinalizar ao ribossomo que está na hora de liberar a proteína e se separar do RNA mensageiro. "Quando não há esse códon, o RNA e a proteína ficam presos no ribossomo." Para que não haja acúmulo de material tóxico nas células e para liberar ribossomos "empacados", o sistema listerina-ubiquitina entra em ação e cola a etiqueta da morte na proteína defeituosa. Há pelo menos 15 anos cientistas de vários laboratórios tentavam encontrar em seres eucariotas, aqueles dotados de células com um núcleo ro-

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Listerina em células de levedura: papel na detecção de proteínas aberrantes

deado por uma membrana e com várias organelas, o mecanismo envolvido na identificação e eliminação de proteínas aberrantes desprovidas do códon de terminação. As buscas não davam em nada porque os pesquisadores estavam seguindo uma pista que parecia lógica e correta, mas era enganosa. Nas bactérias, organismos mais simples, procariotas (sem núcleo celular), já se sabia que uma molécula denominada tmRNA se ligava a ribossomos "entalados" com proteínas aberrantes e atuava como marcador da destruição dessas proteínas defeituosas. Durante um bom tempo, os bioquímicos procuraram nos seres eucariotas uma molécula equivalente ao tmRNA, que, imaginavam, também poderia ser a responsável por desempenhar essa mesma função:Mas a estratégia não deu certo. O sucesso só foi alcançado quando Joazeiro e Bengtson raciocinaram de outra forma e resolveram estudar a proteína listerina. ELA ou Alzheimer - Além de ser um avanço no conhecimento básico sobre um importante mecanismo envolvido no controle de qualidade das proteínas, a descoberta dos brasileiros pode ter implicações na área da pesquisa translacional, aquela que faz a ponte entre os achados da academia e o desenvolvimento de novos tratamentos e remédios. Em camundongos, a desativação do gene LISTER leva a distúrbio que causa sabidamente problemas neurodegenerativos. "Nossa ideia agora é tentar estabelecer a relação entre o problema verificado no camundongo e alguma doença neurodegenerativa do homem",

diz Bengtson. Ainda é cedo para tirar alguma conclusão, mas é possível especular. "Os sintomas motores e a perda de neurônios na coluna espinhal dos camundongos remeteriam à esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou a doencas similares, enquanto o acúmulo da proteína Tau no cérebro dos animais poderia indicar Alzheimer", opina Joazeiro. A pesquisa translacional é um terreno conhecido dos brasileiros, especialmente de Joazeiro. Depois de ter se formado na graduação e ter feito mestrado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), esse baiano de nascimento fez doutorado na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) no início dos anos 1990. Desde então estabeleceu-se na cidade californiana, um polo de biotecnologia. Trabalhou primeiro no Instituto Salk, depois na Novartis Research Foundation (GNF) e agora está no Scripps, três centros que aliam pesquisa básica e aplicada. Bengtson faz parte de sua equipe há quatro anos. "Os dois são excelentes pesquisadores", diz Mari Sogayar, professora titular do IQ-USP que orientou o mestrado de Joazeiro e o doutorado de Bengtson. "O Claudio sempre me deixou estupefata. Fez o mestrado em apenas um ano." • MARCOS PIVETTA

Artigo científi co BENGTSON, M.H. et al. Role of a ribosome-associated E3 ubiquitin ligase in protein quality contrai. Nature. v. 467, p. 470-73. 23 set. 2010.

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[ ANATOMIA ]

Pequenos notáveis Macacos das Américas usam vocalização para se comunicar

Saguis: gritos e sibilos ativam áreas do cérebro ligadas à linguagem

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s macacos nativos das Américas costumam ser menores e mais frágeis do que as espécies aparentadas que vivem do outro lado do oceano. Com cérebros anatomicamente mais simples, são muitas vezes considerados menos inteligentes e menos capazes de realizar tarefas cognitivas complexas, como se comunicar voluntariamente com outros membros do bando. Surgem agora, porém, novos argumentos em favor de uma revisão desse raciocínio. Pesquisadores brasileiros conseguiram as primeiras evidências empíricas consistentes de que os macacos do chamado Novo Mundo apresentam comportamentos tão ou mais complexos que os dos primos do Velho Mundo, ditos mais evoluídos. Experimentos que envolveram a participação de grupos do Rio Grande do Norte, de São Paulo e de Brasília mostraram que uma espécie de sagui originária da Mata Atlântica e da Caatinga emite silvos e gritos com o objetivo de comunicar informações elaboradas, e não apenas emoções primordiais mais rudimentares como dor, medo ou excitação. Nos laboratórios do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra(IINN-ELS) saguis da espécie Callithrix jacchus passaram por uma bateria de testes relativamente simples. Cristiano Simões e seus colaboradores colocaram seis saguis para ouvir por 45 minutos vocalizações gravadas de outros animais da mesma espécie. Eles separaram os macacos

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A partir da esquerda: Callithrix jacchus, C. argentata e C. penicillata

em dois grupos - um que respondeu aos chamados emitindo gritos e silvos espontaneamente e outro que se silenciou- e depois analisaram o que havia se passado com seus cérebros. Usando uma proteína que se acumula nas células cerebrais ativadas, os pesquisadores constataram que o ato de vocalizar aciona três regiões importantes do córtex cerebral, a camada de células mais superficial do cérebro -nos primatas associada à realização de tarefas complexas como atenção, linguagem e consciência. "Essas áreas passam por transformação contínua quando os animais ouvem ou emitem vocalizações", explica Koichi Sameshima, neurocientista da Universidade de São Paulo e um dos autores do estudo. "Muitos pesquisadores acreditavam que os macacos do Novo Mundo só emitissem sons quando tinham emoções como medo ou dor, que envolvem a atividade de áreas subcorticais, regiões mais primitivas do cérebro", diz Sidarta Ribeiro, coordenador da pesquisa, publicada na Frontiers in Integra tive Neuroscience. Área de Broca - O que mais chamou a atenção foi o acionamento do córtex pré-frontal ventrolateral. Situada próximo à têmpora, essa região descrita em 1861 pelo anatomista francês Pierre Broca está associada nos seres humanos à compreensão da linguagem e ao controle da fala. "Pessoas com lesão nessa área emitem sons, mas não conseguem falar de modo articulado", explica Luiz Eugenio Mello, da Universidade Federal de São Paulo, coautor do trabalho. "Mesmo tendo uma área cortical muito menor que a dos seres huma-

nos e dos macacos do Velho Mundo, com quem partilharam um ancestral há cerca de 40 milhões de anos, os saguis já apresentam um circuito cortical relacionado às vocalizações", afirma Ribeiro, pesquisador do IINN-ELS e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A suspeita de que o córtex cereb'ral estivesse envolvido na vocalização de macacos do Novo Mundo não é nova. Em 1967, o pesquisador Uwe Jürgens, do Centro Alemão de Primatologia, observou que havia atividade no córtex de micos-de-cheiro ( Saimiri sciureus). Mas restavam dúvidas. Nos testes que fez, Jürgens aplicava estímulos elétricos próximo às áreas do córtex ligadas à vocalização e não se sabia se os animais emitiam os sons por causa do estímulo elétrico ou espontaneamente. Ao colocar os saguis para ouvir a voz dos companheiros, o grupo brasileiro eliminou essa dúvida. "Nosso trabalho deixa claro que o sistema de controle vocal voluntário já existe nos macacos do Novo Mundo", diz Ribeiro. Ainda é cedo para saber se os saguis e micos têm a intenção de se expressar - e, por exemplo, avisar que estão per-

didos, em perigo ou que encontraram alimento- quando emitem seus sons característicos. "Ainda precisamos verificar, mas talvez a vocalização desses macacos tenha natureza intencional", comenta Mello. Se for comprovada, essa intencionalidade não surpreenderá muitos pesquisadores. "A comunicação vocal permite superar barreiras visuais e é uma necessidade fundamental do ser humano", explica Mello. "Ela provavelmente não surgiu de uma hora para outra em nossa espécie, mas deve ter se desenvolvido em outros macacos e evoluído ao longo de milhões de anos." Atualmente o grupo de Ribeiro investiga se os saguis são capazes de aprender e usar símbolos. "Se demonstrarmos isso", diz Ribeiro, "em seguida tentaremos ver qual o processo neurofisiológico por trás desse fenômeno". • RICARDO ZORZETTO

Artigo cie ntífico SIMOES, C. S. et ai. Activation of frontal neocortical areas by vocal production in marmosets. Frontiers in Integrative Neuroscience. v. 4, p. 1-12. set. 2010.

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[ FISIOLOGIA ]

A reinterpretação do cérebro Descobridor da neurogênese em adultos, Fred Gage investiga função dos novos neurônios RICARDO ZoRZETTO

mundo parou para repensar o que se sabia sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro quando o neurocientista norte-americano Fred Gage publicou em 1998 na Nature Medicine as primeiras evidências sólidas de que o sistema nervoso central humano continua a gerar novas células depois de adulto. Resultado de anos de trabalho das equipes de Gage e de outros pesquisadores, a constatação marcou uma fase de descobertas que abalaria o conceito de estrutura e evolução do cérebro proposto quase um século antes por Santiago de Ramón y Cajal. Médico e histologista espanhol, Ramón y Cajal identificou a arquitetura microscópica do sistema nervoso central e afirmou que, uma vez encerrada a fase de desenvolvimento, o cérebro se tornaria fixo e imutável, já que a "fonte de crescimento e regeneração" das células cerebrais secaria definitivamente. Doze anos atrás Gage conquistou seu lugar na história da ciência ocidental ao mostrar que essa ideia não era mais válida - ao menos não para todo o cérebro. Desde que confirmou a proliferação de células no cérebro adulto, fenômeno conhecido como neurogênese e descrito em cooperação com o sueco Peter Eriksson, Gage não parou de criar novos experimentos para identificar a função desses neurônios jovens. Considerado um dos mais influentes neurocientistas da atualidade, Gage coordena um laboratório com cerca de 40 pessoas no Instituto Salk, na Califórnia, de onde já saíram pouco mais de 600 artigos científicos, citados por 57 mil outros trabalhos. 58 • OUTUBRO DE 2010 • PE SQU ISA FAPESP 176


Antes de eu me envolver nesse assunto, já havia evidências de que deveriam existir células se dividindo no cérebro depois da fase de desenvolvimento, mas muita Qente não acreditava

Em visita à cidade mineira de Caxambu, onde participou em setembro do XXXIV Congresso da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, Gage contou como confirmou a neurogênese em adultos e falou dos projetos em andamento.

• Seu interesse pela capacidade do cérebro adulto de gerar novas células surgiu ainda durante a graduação? - Foi um pouco mais tarde. Quando eu era estudante de graduação, estava interessado em descobrir como o cérebro adulto reage a lesões. É a chamada neuroplasticidade em adulto, que comecei a investigar nos anos 1970, quando ainda se acreditava que o cérebro fosse praticamente imutável após o desenvolvimento. Nessa época experimentos começaram a mostrar que o cérebro talvez tivesse alguma capacidade de recuperação após sofrer danos. • fá naquele tempo? -Sim, já naquela época. Não era ainda a capacidade de produzir novos neurônios. Mas, se um neurônio fosse cortado, parecia ser capaz de crescer novamente, de brotar. Como era um crescimento muito limitado, pensa-

mos: "Se eles podem crescer um pouco, talvez seja possível fazê-los crescer mais". Assim que se passou a estudar isso melhor, percebemos que a plasticidade era maior ainda. Eu tinha 18 ou 19 anos quando fui trabalhar em um laboratório e começou a ficar claro que o cérebro tinha muito mais capacidade de se recuperar do que imaginávamos. A descoberta de que novos neurônios poderiam surgir ocorreu bem depois. • O senhor chegou lá a partir desses

trabalhos dos anos 1970? - Não foi tão linear assim. Eu estava ocupado tentando compreender qual a capacidade de regeneração de diferentes áreas cerebrais. Antes de eu me envolver nesse assunto, já existiam evidências ou, ao menos, artigos publicados dizendo que deveria haver células se dividindo no cérebro adulto. Mas muita gente não acreditava. O pesquisador que descobriu esse fenômeno, Joe Altman, ainda está vivo, mas abandonou a área cedo porque ninguém acreditava nele. • Ele também tinha a ideia de que a proliferação de células ocorria no hipocampo, região cerebral associada à formação de memórias de longa duração e à capacidade de localização espacial? - De certo modo, sim. E também no cerebelo. Mas ele usava uma técnica diferente, que não permitia quantificar e não era suficientemente consistente. Agora, quando analisamos o que ele havia feito, vemos de outra forma. Era realmente notável. Depois, no início dos anos 1980, um pesquisador [Fernando Nottebohm] demonstrou que havia divisão celular no cérebro de pássaros adultos. • No aprendizado de novos cantos? -Foi o que ele disse. Os neurônios morriam em uma temporada e novos neurônios surgiam quando os pássaros aprendiam um novo canto. Mas foi muito controverso. Esse pesquisador usou os mesmos métodos que o outro havia utilizado e isso gerou uma batalha porque o método não era convincente. Outros grupos, usando as mesmas técnicas, não conseguiam reproduzir os resultados. Mas lembro de prestar atenção ao que ele havia dito e era mesmo impressionante. Ainda havia pessoas tentando repetir os experimentos e eu PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 59


entrei nessa história de modo diferente. Eu trabalhava com uma proteína, o fator de crescimento de fibroblastos [FGF] . Eu havia estado na Suécia e fui para a Califórnia em meados dos anos 1980, levando o que havia aprendido de biologia molecular e de virologia.

• Foi o começo de tudo. -Eu sabia que esse era o caminho que a neurociência deveria seguir. Então pegamos o gene que codifica esse fator de crescimento e o inserimos em células. A ideia era implantar essas células no cérebro e ver o que o fato r de crescimento faria . A clonagem de genes e a terapia gênica estavam no início. O gene havia sido recém-descoberto no Salk por Roger Guillemin [que recebeu o Nobel de Medicina em 1977 por seus estudos com neuropeptídeos ]. Conseguimos o clone do gene, o inserimos em fibroblastos e deixamos células cerebrais em cultura com os fibroblastos para ver se havia crescimento. De um momento para outro, os neurônios jovens começaram a proliferar loucamente. A placa ficou tomada por células. Aí pensei: "Meu deus, devemos ter descoberto algo novo!" No início pensamos que algo nos fibroblastos poderia ter causado alguma reação e passado a secretar um fator de crescimento desconhecido. Fomos fazer química de proteínas para descobrir o que tinha ocorrido. O veto r que usamos produziu muita proteína e jamais se havia observado o efeito de altas concentrações de FGF em neurônios jovens. Baixas concentrações fazem os neurônios crescerem e concentrações elevadas fazem eles se dividirem. Gerd Kempermann e Malcolm Schinstine estavam em meu laboratório, e dissemos: "Olha, tem essa história maluca de neurônios se dividindo no cérebro. Se for verdade, talvez possamos inserir fibroblastos no cérebro e produzir novos neuromos . "

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• E o que aconteceu? - Bem, então lemos o que havia sido publicado sobre o assunto e tentamos repetir o experimento, mas não conseguimos replicar os dados. Percebi que o problema era a marcação das células. A forma como se identificava se uma célula estava se dividindo era marcar essa célula com um elemento radioativo e contar os pontos que ficavam regis60 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

em desenvolvimento e começamos a usá-las o mais rápido que pudemos.

ConseQuimos o clone do fator de crescimento de fibroblastos, . . o msenmos nessas células e as deixamos em cultura com células cerebrais. Os neurônios proliferavam loucamente

trados em uma emulsão fotográfica. Era completamente manual. Mais tarde foi desenvolvido um análogo químico com alta afinidade por anticorpos. Quando se administra esse análogo às células, ele se integra ao DNA. Anticorpos ~ão então capazes de aderir àquelas células e localizar o núcleo com precisão. Usamos esse composto, chamado BrdU [bromo-deoxiuridina], para identificar neurogênese em adultos. Na época começamos a usar a microscopia confocal. A Olympus nos deu uma máquina e conseguimos ver o BrdU marcando os anticorpos. Também descobrimos que alguém havia usado um anticorpo para marcar núcleos de neurônios maduros. Então fui a Michigan, consegui o anticorpo contra o marcador neuronal conhecido como NeuN e marcamos duplamente as células, com BrdU e NeuN. Com o microscópio confocal pudemos dissecar cada neurônio, reconstruí-lo de forma tridimensional e comprovar que aquelas células estavam se dividindo.

• Como vocês conseguiram ver se isso estava acontecendo in vivo? -Tivemos de injetar BrdU em animais. Quatro ou cinco técnicas estavam

• O senhor já estava procurando neurogênese no hipocampo naquela época?

- Não. Fui treinado para trabalhar com o hipocampo. Mas não estava procurando neurogênese. Ninguém dava atenção a isso. Eu pesquisava as conexões entre o septo e o hipocampo, tentando reconstruir essa via. Fizemos os experimentos, nos convencemos daquilo e publicamos vários artigos científicos. O mais importante que fizemos foi mostrar que a neurogênese ocorre e que a experiência em certos ambientes pode alterar o número de células. Em geral, camundongos de laboratório dividem uma pequena gaiola com outros animais. Esse ambiente é restrito no sentido de não permitir que os camundongos explorem algo além daquilo. Um dos experimentos que fizemos foi o de mover os animais que viviam em pequenas gaiolas para ambientes maiores, ricos em brinquedos e outros objetos que estimulassem a curiosidade e a capacidade exploratória. Nesses animais observamos um aumento no número de células no hipocampo. Mas ainda havia dúvidas em relação à quantificação do fenômeno. Então foi desenvolvida uma nova técnica, a estereologia, que permite contar o número exato de células. Essa técnica, aliada à microscopia confocal e à marcação dupla, permitiu mostrar não apenas que há mais células se dividindo no hipocampo de um animal adulto, mas também que o número de células aumenta até 15% apenas com alterações no ambiente. Em geral o giro dentado do hipocampo de um camundongo tem 300 mil células. Depois de um mês os animais do grupo de controle continuam a apresentar 300 mil células nessa região, enquanto os animais que passaram esse período em um ambiente com mais objetos têm 350 mil células. Assim conseguimos convencer todos de que não era a marcação das células com BrdU que gerava esse resultado, mas que realmente havia mais neurônios. A questão seguinte foi ver se isso também ocorria nos seres humanos. Na época percebemos que algumas pessoas tinham sido tratadas com BrdU, que marca as células que estão se dividindo, para avaliar a progressão do câncer. Quando essas pessoas morriam, o cérebro delas ia para a patolo-

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gia. Telefonei para colegas patologistas em laboratórios de câncer e perguntei se eles tinham pacientes tratados com BrdU e o cérebro deles. Conseguimos algumas amostras, mas estavam fixadas em parafina. Ainda assim vimos BrdU no hipocampo deles, três anos antes de publicar o artigo de 1998. Mas isso não era suficiente porque não podíamos fazer a dupla marcação das células e pensamos: "Ninguém acreditará em nosso trabalho". Dois dos meus pós-does que haviam retornado para seus países, um para a Finlândia e outro para a Suécia, tentaram entrar para equipes que realizavam testes clínicos com pessoas que tinham câncer em um órgão periférico e estavam sendo tratadas com BrdU. Esperávamos até que morressem e enfermeiras, acompanhadas desses pós-does, extraíssem o cérebro fresco e o enviassem para o Salk. Olhávamos ao microscópio e víamos as células se dividindo. Então comecei a chamar pessoas do meu laboratório e de outros que não estavam envolvidas nessa pesquisa para olharem aquilo. Theo Palmer, que não é autor do artigo, era um colega na época realmente crítico. Ele apontava: "Acredito nesta, não acredito naquela". Trabalhamos até ter um número suficiente de amostras em que confiávamos.

• A maior parte do trabalho foi desenvolver ferramentas que permitissem ver a reprodução de células no cérebro.

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-Sabíamos que tínhamos de convencer pessoas extremamente céticas. No artigo apresentamos três ou quatro técnicas distintas de marcação de células que usamos no trabalho. Nature e Science não aceitariam revisar o artigo, mas o editor da Nature Medicine na época arriscou e disse: "Isso é realmente espantoso!" E enviou o artigo para um monte de gente avaliar, inclusive nosso maior rival. Ainda hoje a possibilidade de alguém dizer que foi um artefato da técnica usada nos preocupa. Mas ninguém fez isso até o momento.

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• A neurogênese ocorre em apenas duas regiões do cérebro?

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vê-se que há células-tronco em todos os lugares, mas elas não produzem novos neurônios. Elas estão em um estado de dormência. Minha impressão é de que essas células se encontram nesse estado porque o ambiente não é adequado para que se transformem em neurônios. Parte do desafio é descobrir o que fazer para as células-tronco neurais gerarem novos neurônios.

• A neurogênese ocorre com regularidade no hipocampo e no bulbo olfatório? - Sim. Há ainda outra região no interior do cérebro chamada zona subventricular. É aí que as células estão se dividindo. Depois elas migram por uma grande distância até o bulbo olfatório. É uma trajetória interessante, o caminho percorrido é longo. Já o hipocampo está duas ou três camadas de células abaixo e a migração ocorre muito rapidamente. E é mais fácil estudar. • O que dispara a migração? - Levou muito tempo para convencer as pessoas de que ocorria. O passo se-

guinte foi assegurar que esses neurônios amadureciam, faziam conexões, tornavam-se ativos. Agora estamos tentando descobrir por que isso acontece.

• fá se sabe qual a função desses neurônios novos? -Uma ideia que reemergiu é que essa região do hipocampo está envolvida na discriminação de objetos distintos, em determinar o que os diferencia. Um dos testes para identificar isso é feito mostrando-se dois objetos semelhantes em sequência. Primeiro mostra-se um isoladamente e, em seguida, os dois ao mesmo tempo. Essas situações ativam uma região do hipocampo chamada giro dentado. Busca-se a imagem do objeto apresentado anteriormente, que é comparada com a imagem atual de ambos. É preciso ter alguma memória do primeiro objeto para se avaliar a similaridade deles. São as células jovens que são ativadas novamente quando se observa o padrão novo [dois objetos mostrados juntos]. As células antigas estão ocupadas procurando diferenças entre o padrão anterior e o novo, porque havia só um objeto no início e agora há dois. Essa é uma diferença, mas o que se está tentando é identificar o que há de distinto entre os dois objetos. Estamos trabalhando em parceria com neuropsicólogos para criar testes que tentem demonstrar isso empiricamente. Primeiro mostramos para voluntários uma imagem com desenhos complexos, depois duas imagens semelhantes e em seguida perguntamos qual delas é igual à primeira. No primeiro nível é fácil porque a diferença é grande. Mas mostramos cerca de 50 pares de imagens com padrões que vão se tornando cada vez mais parecidos entre si. Estamos tentando ver até que ponto as pessoas conseguem distingui-las.

• Como esse conhecimento poderia ser usado para compreender doenças que afetam a memória, como o Alzheimer? -Precisamos criar testes para seres humanos porque em todas essas doenças há um decréscimo na taxa de neurogênese. E há apenas testes clínicos muito genéricos. A verdade é que não é preciso ter hipocampo para discriminar duas coisas bastante distintas entre si. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 61


Pode-se usar só o córtex visual para isso. Quando conversamos, analisamos um monte de informações. Tentamos entender o que é dito, traduzir de volta para a língua materna e analisar os gestos para, com base nas referências pessoais, tentar dar sentido ao que está sendo dito. As células que surgem na neurogênese parecem particularmente importantes para fazer essas associações. Há três partes nessa questão. A primeira é essa separação de padrões. A segunda é que, quando são jovens, essas células ajudam a formar memórias. Por último, depois que amadurecem, contribuem para fazer a distinção entre imagens com padrões semelhantes. É o que o nosso modelo matemático nos indica e os nossos experimentos estão mostrando. A outra parte é que testamos se o que as células aprendem quando jovens fica armazenado nelas. Mais tarde, quando o mesmo evento é apresentado àquela célula, ela se lembra disso. Isso é muito empolgante e nos levou a fazer experimentos com animais geneticamente alterados para que os neurônios que se recordam das experiências iniciais fiquem marcados com uma cor diferente daqueles que se lembram das experiências tardias, que acontecem depois de certo tempo. Pretendemos mapear o padrão de expressão gênica das células que se lembram do evento e das que não se lembram. • Há evidências para diferença de expressão genética nessas células? - Estamos tentando ver isso. Há diferenças entre neurônios vizinhos. O material genético é diferente e também a expressão gênica. Além disso, alterações ambientais inserem informações no DNA. Talvez seja um fenômeno epigenético, que altera o funcionamento dos genes. Esse efeito vem sendo estudado por um ex-pós-doe meu [o brasileiro Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego]. Essa é a fronteira do conhecimento. • Seria possível usar o conhecimento sobre neurogênese para ajudar na diferenciação de células-tronco, corrigir lesões ou tratar doenças? -Na depressão o hipocampo encolhe. A conexão com esses dados é sutil. Não são dados meus, estão aí. Por alguma razão, o cérebro de quem é tratado 62 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

Aparentemente os neurônios que nascem no cérebro adulto ajudam a formar novas memórias e a distinQuir 1maQens com padrões muito semelhantes

com antidepressivos da classe do Prozac [inibidor seletivo de recaptação de serotonina] encolhe menos. • Mas é questionável? -Não. Dados são dados. Mas não dizem muito. Experimentos que fizemos mostraram que o Prozac induz a divisão celular. Mas dividir não é suficiente. As novas células têm de se tornar neurôni'o. Isso leva de quatro a seis semanas. Os psiquiatras viram isso e enlouqueceram. Disseram: "É por isso que leva tanto tempo para os medicamentos funcionarem". Esses medicamentos aumentam a disponibilidade de serotonina e células-tronco colocadas em uma placa de vidro com serotonina se dividem alucinadamente. É assim que funciona, por meio dos receptores SHTlA, que induzem a proliferação. Há agora ensaios clínicos com drogas que atuam sobre a neurogênese e não interagem com o SHTlA. Mas é tudo incipiente. Em quase todas as doenças neurodegenerativas, Alzheimer, Parkinson, há redução na neurogênese. • Além da morte celular, há redução na neurogênese. -A dúvida é se é a doença que está causando diretamente a redução da neurogênese ou, como acreditamos, a

doença deixa o animal letárgico e isso leva à redução na neurogênese. Quando se restringem os movimentos do animal, ele fica estressado e a neurogênese diminui. É possível que a queda no ritmo de neurogênese seja consequência da mudança comportamental causada pela doença. Mas isso está sendo testado. Sabemos que um dos problemas que os pacientes têm no Parkinson e no Alzheimer é a dificuldade de saber onde estão. Eles se perdem o tempo todo. Talvez não se consiga frear a doença, mas tratar alguns componentes e permitir que as pessoas lidem melhor com ela. Essa é minha meta otimista. • Qual a taxa de neurogênese? - Depende da espécie e da idade. É muito mais alta quando se é jovem. E depois cai. Nos idosos é muito baixa. • Ela nunca cessa completamente? - A neurogênese é afetada pelo grau de atividade. Um camundongo idoso, de 18 meses, praticamente não apresenta neurogênese. Se ele tiver acesso por um mês a uma gaiola com uma roda [em que possa se exercitar voluntariamente], ou a um ambiente mais rico, apresentará o mesmo número de neurônios se dividindo que um animal jovem que não faz exercício. Poucos dos animais idosos desenvolvem novos neurônios funcionais, mas vários conseguem. E as células que se transformam em neurônios passam a apresentar todas as ramificações. • Então quem quer manter boa memória deve correr ou, ao menos, caminhar. -Não, mas acho que tem de se manter ativo física ou intelectualmente. Não está claro ainda qual a relação entre a corrida e a neurogênese. Em parte esse efeito é causado pela serotonina. Quando a gente se move, o núcleo da rafe ativa-se e secreta serotonina no hipocampo. Mas a atividade cardiovascular também aumenta quando se está em movimento e uma proteína chamada IGF1 [fator de crescimento da insulina 1] é liberada no sangue. No lugar onde ocorre neuro gênese há vasos sanguíneos que podem estar liberando IGFl. Outras pessoas mostraram que, quando se impede a atividade da IGFl, bloqueia-se a proliferação de neurônios. É um fenômeno multifatorial. Ainda não conhecemos bem. •



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• Odontologia

Cuidados com a quimioterapia Em decorrência da quimioterapia, alterações na cavidade oral podem ser observadas e levar a complicações sistémicas importantes, podendo aumentar o tempo de internação hospitalar, os custos do tratamento e afetar diretamente a qualidade de vida dos pacientes. O trabalho "Manifestações bucais em pacientes submetidos à quimioterapia" teve como objetivo realizar uma pesquisa em um hospital de oncologia na cidade de Juiz de Fora (MG), sendo realizado através de coleta de dados nos prontuários de pacientes que estiveram em tratamento oncológico, em que foram avaliadas as prevalências das manifestações orais em relação ao sexo, idade e tipo de tumor. Verificou-se que a mucosite foi a manifestação mais incidente em ambos os sexos em todas as faixas etárias ( 15,5%). A xerostomia e as demais lesões, como candidíase e lesões aftosas, também estiveram presentes. O estudo foi realizado por Fernando Luiz Hespanhol, da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, Eduardo Muniz Barretto Tinoco, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Henrique Guilherme de Castro Teixeira e Neuza Maria de Souza Picorelli Assis, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Márcio Eduardo Vieira Falabella, da Universidade do Grande Rio. Segundo eles, é possível melhorar a qualidade de vida antes, durante e após as terapias antineoplásicas através de um protocolo de atendimento odontológico que inclua medidas de condicionamento do meio bucal prévias à quimioterapia, como profilaxia, remoção de cáries, tratamento periodontal e de focos periapicais, orientação para higiene oral e dieta e ainda laserterapia. É importante a inserção do dentista na equipe oncológica para o diagnóstico precoce das manifestações bucais e acompanhamento no período de tratamento, afirmam os autores do estudo.

Josué de Castro (1908-1973), entre os anos 1930 e 1950. E tem por objetivo problematizar, na construção de sua ideia de "fome", categorias cognitivo-sociais presentes, bem como convergências com outros ideários. Foram analisadas fontes primárias- quatro escritos de Castro- e fontes publicadas por autores contemporâneos, complementadas com levantamento historiográfico e exame de aspectos-chave de sua atuação como deputado e fundador de entidades contra a fome. A trajetória científico-político-intelectual de Castro centrou-se na concepção de "fome" como fenômeno biológico-social identitário do brasileiro, origem dos males do país e entrave à nacionalidade, demandante de reformas económico-sociais modernizantes. Na sua obra há categorias também presentes no conjunto do pensamento social brasileiro, como as de monocultura latifundiária colonialista sem ifeudal, de Estado irracional e de defesa do público sobre o privado. Entre ideias convergentes com as da nutrição internacional está a preocupação com a alimentação coletiva sob o aspecto biológico-social. A produção científico-intelectual de Castro tornou-se possível especialmente em razão do cenário de construção do Estado e é marcada por relações do cientista com instituições, poder público e organismos internacionais. Para a autora, seu engajamento político e social manifestou-se por meio de suas convicções científicas, dando visibilidade à fome como objeto científico-político. BoLETIM DO MusEu PARA NAENSE EMíLio GoELDJ. CiÊNC IAS HUMANAS- VOL.

4- N° 3- BELÉM- SET./DEZ.

2009

• Oncologia CIÊNCIA & SAÚDE COLETIVA- VOL. 15- SUPL. 1- RIO DE JANEIRO- )UN. 2010

• Sociologia

O pensamento de Josué de Castro O estudo "Ação política e pensamento social em Josué de Castro': de Maria Letícia Galluzzi Bizzo, analisa elementos centrais do pensamento social e da ação política do médico

64 • OUTUBRO DE 2010 • PE SQU ISA FAPESP 176

Queda nas taxas de câncer A mortalidade por câncer iniciou declínio nos países desenvolvidos nos anos 1990, mas seu comportamento nos países em desenvolvimento é menos conhecido. Estudo anterior abordando a mortalidade por câncer no Brasil mostrou queda na mortalidade pelo conjunto dos cânceres, mas a qualidade dos dados suscitou críticas quanto à validade dos resultados. As informações de mortalidade das capitais dos estados do Brasil são

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de melhor qualidade que aquelas para o país como um todo, possibilitando análise mais acurada das tendências. No artigo "Tendências da mortalidade por câncer nas capitais dos estados do Brasil, 1980-2004" os dados de mortalidade e população foram obtidos das bases de dados do Ministério da Saúde e do IBGE. Calcularam-se taxas ajustadas por idade e taxas específicas por idade, para ambos os sexos, e empregou-se regressão li near para avaliar a significância das mudanças de tendência. Os resultados indicaram que as taxas de mortalidade pelo conjunto dos cânceres declinaram ( -4,6% para os homens e -10,5% para as mulheres). As taxas de câncer de estômago diminuíram para os dois sexos, assim como o câncer de pulmão entre os homens, enquanto as taxas do câncer de próstata aumentaram. No sexo feminino, o câncer de mama mostrou-se estável e o do colo do útero aumentou suas taxas ao final do período. Conforme já registrado em países dese nvolvidos, a mortalidade pelo conjunto dos cânceres nas capitais de estados brasileiros mostrou tendência de queda entre 1980 e 2004, o que se deveu fundamentalmente ao declínio da mortalidade por câncer de estômago. O estudo foi fe ito por LuizAugusto Marcondes Fonseca e José Eluf-Neto, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e Victor Wunsch Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP. REviSTA DA AssociAÇÃO MÉDICA BRASILEIRAN°

3- SÃo

Geophagus brasiliensis. A área de estudo é considerada bem preservada e, por causa de sua localização crítica, necessita de políticas conservacionistas para proteger sua diversidade de peixes. BIOTA NEOTROPICA - VOL. 10 -

N° 1 -

CAMPINAS -

ABR. 2010

• História

Mulheres na ABL A Academia Brasileira de Letras, entidade fundada em 1897, manteve-se incólume à presença feminina até 1976, ano em que o art. 17 do Regimento Interno, que até então restringia a eleição aos "brasileiros do sexo masculino", foi alterado, assegurando às mulheres a possibilidade de candidatura. Tendo isso em vista, o artigo "As mulheres e a Academia Brasileira de Letras", de Michele Asma r Fanini, da Universidade de São Paulo, pretende analisar os bastidores do ingresso de Rachel de Queiroz, primeira mulher a sagrar-se imortal, em 1977. HISTÓRIA (SÃO PAULO ) - VOL. 29- N° 1- FRANCA- 2010

voL. 56-

PAULO 2010

• Artes cênicas

Dança e educação somática • Biologia

Peixes de Santos e Cubatão Levantamentos ictiofaunísticos na Mata Atlântica têm sido publicados em relativamente poucos trabalhos, apesar da grande importância biológica deste bioma que, mais vasto no passado, vem rapidamente desaparecendo por causa do crescimento desordenado das populações humanas e superexploração dos recursos naturais. O estudo "lctiofauna do rio Jurubatuba, Santos, São Paulo: um refúgio de diversidade em terras impactadas", de George Mendes Taliaferro Mattox e José Manoel Pires Iglesias, da Universidade de São Paulo, objetivou acessar a fauna de peixes de uma bacia relativamente bem conservada entre as cidades de Santos e Cubatão, no litoral paulista, uma área muito alterada pela atividade humana e carente de levantamentos ictiofaunísticos recentes. Coletas foram realizadas durante três campanhas no rio Jurubatuba, um rio costeiro de médio porte, e no riacho Sabão, um de seus afluentes. Houve amostras de 2.773 indivíduos pertencentes a 25 espécies de 14 famílias. Seis espécies são primariamente marinhas e utilizam a porção mais alta do rio Jurubatuba. Doze das 19 espécies de água doce são endêmicas da Mata Atlântica e quatro estão relacionadas em listas regionais de espécies ameaçadas. Apenas cinco espécies ocorreram no rio Jurubatuba e no riacho Sabão concomitantemente. A família mais diversa foi Characidae, seguida de Poeciliidae, Rivulidae e Heptapteridae. Phalloceros caudimaculatus foi a espécie mais abundante, seguida de Poecilia vivípara e

No artigo "O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo': a pesquisadora Eloisa Domenici, da Universidade Federal da Bahia, destaca a sinergia entre a educação somática (corporal) e a dança, como um subespaço de produção de conhecimento qualificado sobre o corpo. A autora considera que as práticas de educação somática possibilitaram novos caminhos de investigação e criação, alterando profundamente os modos de fazer dança, para além da clássica epistemologia mecanicista em que se pauta o treinamento corporal tradicional. A hipótese da autora é de que essa zona híbrida entre arte e ciência vem desestabilizando concepções importantes, tais como memória, cognição, movimento, hábito, natureza, cultura, entre outros, produzindo importantes subsídios na direção de novas epistemologias sobre o corpo. PRO-PROSIÇÕES- VOL. 21- N° 2 - CAMPINAS- MAIO/ AGO. 2010

> o link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo· níveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 65


LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

TOQI

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ANTENAS SOLARES Grandes expoentes da nanotecnologia, os nanotubos de carbono mostraram-se capazes de concentrar 100 vezes mais energia captada dos raios do Sol em relação aos tradicionais painéis solares. Ao juntar 30 milhões desses tubos compostos por folhas de átomos de carbono, pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, formaram antenas que concentram a energia solar em pequenos espaços. A equipe, liderada pelo professor Michael Strano, decreveu a novidade na revista Nature Materiais (12 de setembro). Entre os pesquisadores que assinam o texto está o brasileiro Cristiano Leite Fantini, professor do Instituto de Física da Universidade Federal de Mins Gerais (UFMG). "Fiz meu pós-doutorado com o professor Strano entre 2006 e 2007. Eu e o coreano Jae-Hee, que também fazia pós-doe e assina o texto, começamos a trabalhar com a ideia de feixe de nanotubos. Depois escolhemos um tipo de nanotubo semicondutor com a mesma simetria. Eles são capazes de absorver luz e fazer a transição eletrônica para a geração de eletricidade", diz Fantini. Ele explica que, ao juntar os vários nanotubos formando uma antena de 10 micrômetros, é possível ver o dispositivo num microscópio óptico, sistema impensável para nanotubos isolados. Fantini diz que ainda está longe a implementação comercial das antenas. Se tudo der certo, os grande painéis solares instalados no telhado de casas que possuem esse tipo de energia poderão ser trocados por pequenos artefatos semelhantes a luminárias de jardim.

MICROAGULHAS CONTRA INFECÇÃO I Um adesivo com centenas de microagulhas com propriedades antimicrobianas é a nova esperança para eliminar os casos de contaminação em campanhas de vacinação em massa destinadas a países subdesenvolvidos, quando pessoal sem a devida qualificação costuma ser chamado para trabalhar. As microagulhas, desenvolvidas 66 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

por pesquisadores da Universidade do Estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, liberam na pele agentes antimicrobianos juntamente com a vacina em si. O adesivo. é feito de polímeros biodegradáveis aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) -órgão norte-americano responsável pela fiscalização de medicamentossimilares aos usados em suturas que se dissolvem na pele. Os pesquisadores afirmam que a aplicação das microagulhas antimicrobianas tornará dispensável o uso de antissépticos na pele antes da vacinação, procedimento que às vezes não é seguido em muitos países. Um porta-voz da ONG Médicos sem Fronteiras disse que a entidade aprovou a novidade, mas ressaltou que o sucesso dependerá do custo final e de uma grande capacidade de produção.

MOSQUITEIRO NANOIMPREGNADO I Os mosquiteiros impregnados com o inseticida piretroide e drogas antimaláricas apresentaram bons resultados na Tailândia, país que sofre com surtos de malária. As drogas matam os mosquitos quando eles pousam sobre a rede, colocada em volta das camas. O problema é que, com as lavagens do mosquiteiro, o tempo de ação das drogas se limita a cerca de 12 meses. Para contornar essa barreira, pesquisadores do Centro Nacional de Nanotecnologia da Tailândia desenvolveram um processo nanotecnológico capaz de manter os inseticidas ativos por até cinco anos. Os mosquiteiros recebem os piretroides com partículas em escala nanométrica que são mais facilmente incorporadas e presas às fibras da rede (SciDev).

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TOQUE SENS ÍVEL PARA ROBÔS Pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, anunciaram ter conseguido criar uma pele artificial que poderá equipar robôs conferindo a eles um toque sensível o suficiente para segurar um ovo ou uma taça de cristal. A pele é feita de materiais semicondutores flexíveis e poderá também, a depender de novos estudos, restabelecer a sensibilidade do toque em pacientes dotados de próteses. Para isso será preciso desenvolver mais pesquisas visando à integração de sensores eletrônicos com o sistema nervoso humano. Para desenvolver o material, os pesquisadores fabricaram nanocabos ultrafinos com uma liga de silício e germânio e depois os revestiram com uma camada de borracha, formada por pequenos sensores, sensível ao toque.

Universidade de Tsukuba e da empresa ln planta

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Materiais inorgânicos como o silício têm excelentes propriedades elétricas e são quimicamente estáveis. Testes revelaram que a pele artificial distingue várias escalas de força, desde a usada para digitar em um teclado de computador até a empregada para segurar um objeto. A tecnologia foi divulgada em artigo na revista Nature Materiais (12 de setembro).

TOMATE~ BATATA

I TRANSGENICOS Um tom ate com altas concentrações de miraculina, uma substância que transform a alimentos am argos em doces, e uma batata com 60o/o a mais de proteínas são dois recentes alimentos transgênicos elaborados na Ásia. O primeiro, desenvolvido por pesquisadores japoneses, da

setembro), produziu tom ates com grandes quantidades de miraculina, uma proteína da fruta milagrosa, uma baga vermelha d e um arbusto da África, difícil de se adaptar em outros climas. O gene que codifica essa proteína foi inserido inicialmente na bactéria Escherichia coli e depois em tomates anões. Com maiores quantidades de miraculina será possível um amplo uso em alimentos e bebidas para amenizar o gosto amargo e com baixíssima caloria. A batata, desenvolvida na Índia pelo Instituto de Pesquisa da Batata, ganhou um gene do grão do amaranto, que estimula a produção de proteínas. Assim, a batata tran sgênica contém 60o/o a m ais de proteínas. As plantas já passaram por testes de biossegurança na Índia (New Scientist, 23 de setembro).

NA LINHA DO AUTOTRAM Mais silenciosos, econômicos e bonitos, assim deverão ser os AutoTram, veículos de transporte de massa projetados para rodar no futuro na Alemanha. Eles são uma mistura dos ônibus atuais com os chamados veículos leves sobre os trilhos (VLT), existentes em várias cidades do mundo. A diferença é que os novos veículos, longos como os VLT e ágeis como os ônibus, não soltarão fumaça nem precisarão de trilhos ou cabos aéreos para circular. Movidos à eletricidade, eles serão dotados de pneus de borracha e se deslocarão sobre uma linha branca, dotada de sensores de direção, pintada nas ruas. Uma novidade do AutoTram, desenvolvido pelo Instituto Fraunhofer, é que ele contará com estações de recarga de baterias nos pontos de parada de passageiros -o reabastecimento deverá ser feito de 30 a 60 segundos. O veículo terá capacidade para 102 passageiros. PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 67


CANA-DE SOB CON

I

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

Imagens da câmera da Optovac

RADIAÇÃO PESSOA L Durante a recente epidemia de gripe H1N1 era comum ver, pela televisão ou internet, imagens, principalmente em aeroportos no exterior, com o espectro de radiação eletromagnética, ou o nível do calor emitido pelos passageiros, o que poderia indicar a presença da doença. As imagens são geradas por câmeras térmicas produzidas por cerca de 25 empresas no mundo. Agora esse tipo de equipamento passará a ser produzido também no Brasil pela empresa Optovac, que desenvolveu e acaba de lançar sua primeira unidade comercial. "A nossa câmera capta nuances de temperatura em um amplo número de aplicações, como no monitoramento de grandes áreas, porque pode ver mesmo na ausência de luz e a grandes distâncias, na medicina, para detecção de gripes, e para uso militar", diz o físico Henrique Nobre, sócio da Optovac, empresa sediada em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo. Ele explica que a empresa constrói toda a câmera, inclusive as lentes, e importa o sensor de captação de imagem (ver Pesquisa FAPESP n° 157). O preço médio da câmera é de R$15 mil, valor que varia segundo as configurações da máquina. O Exército brasileiro foi o primeiro comprador.

RESIDÊNCIA SUSTENTÁVEL Uma casa de 65 metros quadrados que funciona com energia solar e reaproveita a água da chuva está instalada em Taguatinga, no Distrito Federal. Chamada Centro de Demonstração de Energias Renováveis, a edificação foi planejada e construída pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e pelo Centro de Pesquisa de Energia Elétrica (Cepel), órgão do Ministério de Minas e Energia.

Revestida por 12 placas de células fotovoltaicas para captação dos raios solares, ela é capaz tanto de suprir o aquecimento de água como de vários aparelhos eletrônicos. No porão estão instaladas 16 baterias que acumulam a eletricidade da energia solar, no total de 3 mil volts, para uso em dias nublados, chuvosos e durante a noite. A casa de alvenaria possui um sistema de calhas para captação de água para o banheiro e o telhado tem um isolante térmico que evita o aquecimento interno.

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COLETÂNEA SOBRE ETANOL Uma coletânea de textos escritos a partir de workshops do projeto Diretrizes de Políticas Públicas para a Pesquisa Científica e Tecnológica em Bioenergia no Estado de São Paulo, apoiado pela FAPESP, serviu para compor o livro Bioetanol da cana-de-açúcar: P&D para produtividade e sustentabilidade. Organizado pelo professor Luís Augusto Barbosa Cortez, da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp ), contou com 139 especialistas de várias instituições de pesquisa do estado de São Paulo. Com 992 páginas, a obra é dividida em cinco partes. Na primeira, "Estratégias para políticas públicas em etanol", são tratados temas relacionados aos desafios para a produção do etanol. Na parte 2, sob o título "Sustentabilidade da produção e do consumo", estão o impacto do uso do etanol, a influência do clima e da agricultura. A terceira, "Novo modelo agrícola para cana-de-açúcar", trata da genômica, etanol celulósico e cultivo. Na quarta parte, "Novo modelo industrial e usos finais do etanol", aborda vários temas da cadeia industrial da cana. Na última parte, "Roadmapping tecnológico para o etanol", indica o roteiro tecnológico e diretrizes para o futuro do etanol.

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Um equipamento instalado no Centro de Cana do Instituto Agronômico (IAC) em Ribeirão Preto (SP) permitirá reproduzir em terras paulistas o clima baiano, com ganhos na produção canavieira. A câmara de fotoperíodo automatizada, desenvolvida como parte do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), permite manter as plantas em temperaturas que não ultrapassam a faixa de 21 a 32 graus Celsius, condição ideal para a indução de floração da cana-de-açúcar. A partir das flores, extrai-se o pólen utilizado no cruzamento

de materiais destinados à obtenção de novas variedades mais produtivas. "Já existem equipamentos semelhantes na Austrália e na África do Sul", diz o pesquisador Maximiliano

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A QUÍMICA GRADUADA A Quimlab, de Jacareí, no interior paulista, foi a vencedora na categoria Melhor Empresa Graduada do Prêmio Nacional de Empreendedorismo Inovador. A empresa havia ganho na categoria Incubada em 2003, quando estava instalada na Incubadora Tecnológica da Universidade Vale do Paraíba, em São José dos Campos. Ela é produtora de padrões químicos para controle de qualidade em processos industriais, além de desenvolver novos polímeros (ver Pesquisa FAPESP n°s 156 e 95). A empresa foi criada em 1997 com um projeto de pesquisa financ iado pelo Programa Pesquisa lnovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. O prêmio é organizado pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec), com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), ministérios da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Financiadora de Estudos e Projetes e Confederação Nacional da Indústria. A empresa incubada deste ano é a AHi da Incubadora Tecnológica de Curitiba (lntec), desenvolvedora de sistemas para monitoramento de pacientes em UTI. A lntec também ganhou o prêmio de Melhor Incubadora Tecnológica.

Salles Scarpari, do Centro de Cana, que participou do desenvolvimento da câmara brasileira. "Aproveitamos a tecnologia brasileira em automação de usinas e adaptamos para a câmara de fotoperíodo, que poderá fazer cruzamentos de variedades que florescem em diferentes épocas do ano." Em setembro, o IAC lançou três novas variedades de cana mais produtivas e com maior teor de sacarose, após avaliação nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Mato Grosso, Bahia, Maranhão e Tocantins.

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RESINA VERDE NO MERCADO

A Braskem inaugurou em 24 de setembro em Triunfo, no Rio Grande do Sul, a maior unidade de eteno derivado de etanol do mundo, que possibilitará a produção de 200 mil toneladas de polietileno verde por ano, dos quais dois terços serão destinados à exportação. Produtos de higiene pessoal, limpeza doméstica, embalagens de alimentos, brinquedos e utilidades domésticas estão entre as primeiras aplicações do plástico de origem renovável, que já tem encomendas de empresas brasileiras e multinacionais. A Braskem também está investindo em pesquisas para produzir o polipropileno verde, resina para revestimento de peças de veículos e eletrodomésticos, projeto de R$ 9 milhões que tem como parceiros a FAPESP e a Universidade Estadual de Campinas. A expectativa é que em cinco anos o processo, que conta com o auxílio da biotecnologia, esteja pronto para entrar em escala industrial.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 69


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TECNOLOGIA

Embalagem comestível de goiaba e quitosana

rutas, plantas e resíduos da agricultura, quando trabalhados em escala nanométrica, têm mostrado grande potencial para serem usados em filmes comestíveis para proteção de vegetais, plásticos reforçados e biodegradáveis, fertilizantes e até mesmo na degradação de pesticidas. O universo que sedescortina para a nanotecnologia aplicada à alimentação e à agricultura é muito vasto. No Brasil, grupos de pesquisa têm conseguido resultados bastante promissores, alguns com aplicação imediata, como um biofilme com nano partículas de prata- estruturas com diâmetro na faixa de 10 a 40 nanômetros- sintetizadas a partir do extra to de uma planta regional indiana ( Ocimum sanctum) e nitrato de prata, desenvolvido no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em parceria com pesquisadores da Universidade Amravati, na Índia. A mistura do polímero obtido a partir de um vegetal e das nanopartículas de prata resulta em uma solução na qual são imersas as frutas que precisam ser protegidas para prolongar o tempo de prateleira. Após a imersão no líquido, elas ficam recobertas por um filme fino, que funciona como uma barreira de proteção ao reduzir a quantidade de oxigênio que entra e a de gás carbônico que sai, o que evita a perda de água. Quando a fruta é lavada em água corrente, o biofilme é totalmente eliminado. "É uma plataforma excelente para proteção de frutas e vegetais transportados por longos períodos em climas tropicais como a Índia e o·Brasil", diz o professor Nelson Durán, da Unicamp, coordenador da pesquisa, que no Brasil teve a colaboração do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC, em Santo André. O biofilme foi testado em algumas frutas, entre elas a goiaba. Entre os itens avaliados estavam perda de peso, de proteínas e infecção bacteriana. "A fruta protegida não perdeu quase nada de peso e de proteínas e não teve infecção durante os 15 dias de estudo", diz Durán. Ela amadureceu, mas não apodreceu. Conhecidas por suas propriedades bactericidas, as nanopartículas de prata utilizadas na composição do biofilme foram obtidas por síntese biológica, enquanto as comerciais são químicas ou obtidas por processos físicos. "O biopolímero usado é comestível e não tóxico e foi aprovado pela Food and Drug Administration, órgão governamental norte-americano de regulação de alimentos e medicamentos, e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)", diz Durán. As nanopartículas de prata biogênicas foram testadas pelos pesquisadores tanto em relação à citotoxicidade in vitro e à toxicidade in vivo, em ensaios com animais, como em relação à penetrabilidade em tecidos humanos. "Nas con-


centrações usadas elas não penetram na pele e não são tóxicas." A pesquisa em parceria com os pesquisadores indianos faz parte de uma colaboração binacional aprovada em 2008 e iniciada em 2009, como parte de um projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ( CNPq) envolvendo pesquisas com nanopartículas de prata geradas por fungos, bactérias e plantas.

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esquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) também trabalham no desenvolvimento de filmes para revestimento baseados em frutas tropicais, resíduos do processamento do algodão e do coco, quitosana e outras matérias-primas. Um dos filmes desenvolvidos pela pesquisadora Henriette Azeredo, da Embrapa Agroindústria Tropical, de Fortaleza, no Ceará, tem como base a polpa de manga com a adição de nanofibras de celulose obtidas da fibra do algodão. "O componente mais resistente da fibra vegetal e da própria madeira é a celulose", diz o pesquisador Luiz Henrique Mattoso, chefe-geral da Embrapa Instrumentação Agro pecuária, de São Carlos, no interior paulista. No estudo Henriette testou a adição de nanofibras de celulose em várias concentrações, com o máximo de 36%, para avaliar o comportamento dos filmes. "Com cerca de 10%, os resultados já foram mui-

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Filmes de polpa de manga com nanofibras de celulose são mais resistentes e estáveis

to bons", diz a pesquisadora, que fez a pesquisa durante seu pós-doutorado no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, encerrado em 2008, como parte de um convênio com a Embrapa. Os filmes de polpa de manga que receberam a adição de nanofibras apresentaram melhor resistência mecânica, melhor barreira à umidade e melhor estabilidade térmica. "A tecnologia ainda não pode ser aplicada porque não se conhecem os possíveis efeitos adversos que as nano fibras, ainda que de celulose, possam ter sobre o organismo humano", diz. Por isso, um outro projeto, conduzido pela pesquisadora Morsyleide Rosa, também da Embrapa Agro indústria Tropical, tem

como objetivo fazer a análise toxicológica do novo material. A regulamentação do uso da agronanotecnologia é uma discussão que vem sendo feita há alguns anos em vários países do mundo. Na Europa, por exemplo, já foram realizadas cinco conferências para tratar do assunto, a última delas em novembro de 2009. Durante a Conferência Internacional para Aplicação das Nanotecnologias na Alimentação e Agricultura, realizada em junho em São Pedro, no interior paulista, o pesquisador Steven Robert, do Instituto para a Política Agrícola e Comercial dos Estados Unidos, destacou três abordagens que devem ser consideradas na questão da regulação do uso da agronanotecnologia. A primeira depende da orientação voluntária do governo e da apresentação voluntária de dados de produtos da nanotecnologia para regulamentação das agências, a segunda refere-se à submissão obrigatória dos produtos desenvolvidos pela indústria aos órgãos reguladores e a terceira, mais radical, propõe a suspensão e aprovação de comercialização dos produtos até haver dados suficientemente revisados para realizar as avaliações de riscos necessárias a um marco regulatório apropriado.

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orsyleide trabalha ainda com resíduos de indústrias regionais -como do coco-verde e algodão -para obtenção de nanofibras de celulose de várias fontes. "Outra matéria-prima interessante para obtenção de nanocelulose é a torta que sobra da prensagem da palma para obtenção do biocombustível de dendê", diz. O pseudocaule da bananeira, com alto teor de celulose, também apresentou resultados bastante promissores para a produção de filmes nanocompósitos que podem ser usados em embalagens e em outras aplicações. Uma das linhas de pesquisa é coordenada pelo pesquisador José Manoel Marconcini, da Embrapa Instrumentação Agropecuária, que mistura plásticos com fibras vegetais ou com nanossílicas extraídas da casca do arroz, para aumentar a resistência mecânica dos plásticos tanto convencionais como reciclados. Resultados preliminares apontam que esses materiais nanoestruturados mudam as propriedades ópticas e melhoram as

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propriedades mecânicas dos materiais. "No caso da celulose, a região cristalina apresenta resistência mecânica e elasticidade semelhantes às fibras de Kevlar, material mais forte que o aço", diz Marconcini. "É uma tecnologia que o mundo inteiro está tentando dominar." O Canadá saiu na frente. Em julho, a empresa canadense Domtar e o instituto de pesquisas FPinnovations lançaram um projeto para construir uma fábrica só para produção de celulose nanocristalina, com previsão de produção de uma tonelada por dia.

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arconcini também trabalha com plásticos biodegradáveis reforçados com fibras de nanocelulose que podem ser empregados em tubetes usados na produção de mudas, em filmes para proteção de plantações ou mesmo para repelir insetos da lavoura com o uso de feromônios. Para essa aplicação, basta amarrar uma fita de um plástico biodegradável na plantação para que ela libere as substâncias desejadas no ambiente. Na Universidade de Marburg, na Alemanha, por exemplo, os pesquisadores estão testando no campo um protótipo feito com fios nanométricos a partir de plásticos biodegradáveis. Esses fios foram fabricados por um processo conhecido como eletrofiação, baseado na aplicação de corrente elétrica. O protótipo, que é parecido com uma teia de aranha em miniatura, ao ser colocado no solo vai liberando os princípios ativos selecionados e com o tempo se desmancha. Desde 2006, a Embrapa coordena a Rede de Nano tecnologia Aplicada ao Agronegócio, que tem sede na unidade de São Carlos e conta com a participação de 150 pesquisadores de 53 instituições, sendo 14 vinculados a centros de pesquisa e 39 a universidades. No ano passado, foi lançado o Laboratório Nacional de Nanotecnologia para o Agronegócio, um investimento de mais de R$ 10 milhões, mantido com recursos da Financiadora de Estudos e Projetas (Finep ), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e FAPESP.As linhas de pesquisa englobam desde nanobiossensores e sensores eletroquímicos para monitorar processos e produtos agropecuários, nanofilmes comestíveis, produção de fertilizantes, pesticidas e fármacos para

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Formulação com suco de goiaba e nanopartículas

animais. Pesquisadores da Embrapa Gado de Corte, de Campo Grande (MS), e da Instrumentação Agropecuária em colaboração com a Universidade de São Paulo em São Carlos estão trabalhando em nanobiossensores para detecção de patógenos em animais, como febre aftosa e outros vírus, que causam grandes prejuízos aos produtores.

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utra nanotecnologia para apficação direta no campo é a de fertilizantes encapsulados em zeólitas, um grupo de minerais que possui cavidades nanométricas em sua estrutura porosa. "Quando o fertilizante é colocado no solo, a liberação é feita gradualmente", diz Marconcini. O objetivo do projeto, coordenado pelo pesquisador Alberto Bernardi, da Embrapa Pecuária Sudeste, de São Carlos, é melhorar a dispersão e a absorção de n utrientes pelas plantas. Uma nova fronteira de pesquisa é o uso de nanocompósitos baseados nesses materiais para liberação controlada de fertilizantes, projeto coordenado pelo pesquisador Cauê Ribeiro, da Embrapa Instrumentação Agropecuária, em colaboração com a Pecuária Sudeste. "Ainda não existe um produto no mercado para fertilização tanto do solo como das folhas", diz Marconcini. Na área de adubos

foliares, a tendência aponta para as nanoemulsões. "Como o tamanho da gota é menor, utiliza-se menos quantidade de princípio ativo", relata Mattoso. As mesmas nanoestruturas são utilizadas em pesticidas que já se encontram no mercado. "Uma garrafinha de um litro substitui um tambor de 20 litros de veneno", compara Marconcini. A nano tecnologia também tem sido utilizada para degradação de pesticidas convencionais. Uma das tecnologias em estudo na Embrapa é o uso de catalisadores feitos à base de óxidos de titânio e estanho em tamanho nanométrico, em conjunto com a luz ultravioleta, para quebrar mais rapidamente as moléculas dos pesticidas presentes na água. •

Artigos científicos 1. DURÁN, N.; MARCATO, P.D. et ai. Potential use of silver nanoparticles on pathogenic bacteria, their toxicity and possible mechanisms of action. Journal of the Brazilian Chemical Society. V. 21, p. 949-59. 2010. 2. AZEREDO, H.M.C; MATTOSO, L.H.C. et ai. Nanocomposite edible films from mango puree reinforced with cellulose nanofibers. Journal of Food Science. v. 74, n.S, p. 31-35. 2009.

PESQUISA F'APESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 73



vazamento de petróleo no mar é um problema de países como o Brasil, que concentra grande parte da exploração de óleo em ambiente marinho e com tráfego de navios petroleiros entre os locais de exploração e os terminais marítimos. Por isso, não foi preciso nem a eclosão do maior acidente do gênero no golfo do México, iniciado em abril deste ano com a explosão e o afundamento de uma plataforma da British Petroleum (BP), que resultou no derramamento de mais de 4 milhões de barris de petróleo, contido completamente apenas em setembro, para que pesquisadores brasileiros aprofundassem os estudos sobre soluções para esse tipo de desastre ambiental. Pelo menos três grupos apresentaram recentemente resultados de pesquisas que poderão se transformar em breve em produtos para descontaminar o oceano. Eles trazem duas vantagens, a de serem biorremediadores- porque são menos tóxicos ao ambiente- e mais baratos que os produtos químicos utilizados atualmente. A primeira tecnologia é de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) composto pelos professores Rochel Lago, Flávia Mourá e Maria Helena Araújo. Eles desenvolveram um material capaz de absorver petróleo em acidentes na água ou em terra, denominado nanoesponja hidrofóbica, que repele a água e tem grande afinidade por compostos orgânicos, especialmente óleos. O grupo foi sondado recentemente por uma empresa norte-americana interessada em utilizar o material no golfo do México. Mas ainda serão necessários alguns testes laboratoriais para que o produto possa ser testado no mar. A pesquisa iniciada em 2005 por Flávia e Lago levou ao desenvolvimento de um material macroscópico granular feito do mineral vermiculita com grânulos medindo entre três e cinco milímetros de diâmetro recobertos com uma camada nanoestruturada que confere ao material uma cor preta. Esse mineral já é utilizado há muitos anos, oferecido por várias empresas no mundo, inclusive no Brasil, para absorver óleo. O experimento do grupo da UFMG adiciona carbono e transforma esse mineral num material com melhor capacidade de absorção. "O carbono faz a vermiculita ter mais afinidade pelo óleo que pela água", diz Maria Helena. O mineral isoladamente, de cor clara, quando aquecido adquire o aspecto de uma estrutura sanfo-


Costa da cidade de Dalian, na China , em j ulho deste ano: bo ias e barcos para conter o óleo

nada e leve, parecida com uma esponja que flutua na água. O problema é que sem as nanoestruturas de carbono ele absorve mais água do que óleo. O que pesquisadores fizeram foi inverter essa característica com nanotecnologia. Flávia explica que para produzir as nanoesponjas hidrofóbicas, a vermiculita, após ser esfoliada, é submetida a um processo de aquecimento controlado em um forno, com a introdução de uma fonte de carbono como etanol, gás natural ou mesmo glicerina, hoje um subproduto da fabricação do biodiesel. "Essas fontes decompõem-se na superfície da vermiculita, formando carbono de diferentes formas, como nanotubos, filamentos, grafite ou carbono amorfo", explica. O processo altera as características da vermiculita. "Após a deposição do carbono, o mineral passa a absorver preferencialmente o óleo", explica o doutorando Aluir Purceno, integrante do grupo. "A sua capacidade de absorção de até seis gramas de óleo por grama de material é superior à de outros produtos disponíveis no mercado." O produto tem mais vantagens. "O Brasil é um dos maiores produtores de vermiculita do mundo e, quando comparado a outros materiais, ela tem um custo muito baixo", diz Purceno. O carbono usado para compor as na76 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

noesponjas hidrofóbicas pode ser extraído de fontes abundantes e baratas como a glicerina. "Além de ser usado para remediar os derramamentos de óleo, consome parte da produção de glicerina, que poderá se tornar um problema ambiental n os próximos anos", diz Miguel de Araújo Medeiros, professor da Universidad e Federal do Tocantins (UFT) qu e fez seu doutoramento no grupo. As nanoesponjas de vermiculita fazem parte de uma p lataforma tecn ológica do grupo da UFMG que gan h ou em setembro deste ano o primeiro lugar na etapa da América Latina da competição internaciona) Idea to Product ("da ideia ao produto"), promovida pela Universidade do Texas, em Austin, nos Estad os Unidos, e no Brasil organizada pelo Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. Os ganhad ores vão participar da etapa mun dial em novembro nos Estados Unidos. Eles tiveram como parceira a empresa mineira Verti Ecotecnologias, que tem como sócio o professor Lago e fez o estudo da viabilidade técnica e econômica do projeto. "Apresentamos u ma p lataforma tecnológica que, além da nanoesponja, é composta por um produ to chamado nanoamphil contendo nanopartículas de vermiculita, núcleos de ferro e nanoestruturas de carbono. Ele atua como um desemulsificante, substância que separa o petróleo da água do mar nas plataformas de exploração. As

nano partículas misturadas no petróleo aderem às gotas de água. Quando aproximamos um ímã as nanopartículas magnéticas do nanoamphil são atraídas pelo campo do ímã provocando a união das gotas. Após poucos minutos ocorre a completa separação da água do petróleo", diz Purceno. A terceira tecnologia que compõe a plataforma é um produto que retira o enxofre do petróleo nas refinarias. O trabalho rendeu quatro artigos científicos e duas patentes. Os pesquisadores foram financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe) do Ministério da Ciência e Tecnologia, a empresa Vermiculita Isolantes Termoacústicos participou da elaboração das nanoesponjas de vermiculita. A empresa é uma produtora dessa argila e se interessou na parceria fornecendo o mineral e participando do processo de escalonamento da tecnologia, da passagem da produção em laboratório para a de maior escala. Detergente de bactéria - No segundo grupo, em vez de esponjas, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras, desenvolveram um detergente biodegradável produzido por uma bactéria para uso em derramamento de petróleo. Chamada de biossurfactante, essa substância reduz a tensão superficial da área fronteiriça entre água e óleo, facilitando a mistura desses líquidos e a posterior degradação do petróleo. O estudo começou em 1999, quando pesquisadores da empresa e da universidade isolaram uma cepa, a PAl, da bactéria Pseudomonas aeruginosa em águas residuárias da exploração petrolífera na Região Nordeste do país. Esse microrganismo já era conhecido por produzir biossurfactante do tipo ramnolipídeo, um detergente natural existente nos poços petrolíferos, e até testado em acidentes ambientais nos Estados Unidos. Em 1989, no derramamento de óleo do navio petroleiro Exxon Valdez, no mar do Alasca, foi usado um biossurfactante de P. aeruginosa com bons resultados, produto desenvolvido

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pelo Centro de Engenharia e Desenvolvimento do Campo de Provas de Aberdeen do Exército norte-americano em parceria com a Universidade de Illinois. Mas o produto desenvolvido com outra cepa não se tornou comercial porque ninguém conseguiu produzir em escala, em biorreatores de grande porte. Essa espécie de pseudomonas transforma naturalmente fontes de carbono, como o petróleo, do qual se alimentam, num detergente biodegradável. O desafio dos pesquisadores era fazer esses microrganismos produzirem o biossurfactante em escala industrial. Os estudos começaram por iniciativa das pesquisadoras Denise Freire, do Instituto de Química da UFRJ, e Lídia Santa Anna, da Petrobras. Denise e o professor Cristiano Borges, do Programa de Engenharia Química, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, orientaram a tese de doutorado de Frederico Kronemberger, desenvolvida entre 2002 e 2007, que teve como tema a viabilização da produção desses biossurfactantes em biorreatores. "Desenvolvemos um inovador sistema de oxigenação com o uso de membranas poliméricas", conta Kronemberger. Até então o fornecimento de oxigênio nesses biorreatores- essencial para o crescimento das bactérias e para a produção dos biossurfactantes - era

À esquerda, vermiculita natural. Ao lado, com carbono

A inovação foi juntar a quitosana e a bactéria Bacillus

subtilis já utilizada para a produção de biossurfactantes

realizado por injeção de ar, o que inviabilizava a produção. Apesar do avanço, a produção em biorreatores em escala de laboratório ainda não viabilizava a realização de testes de aplicação de biossurfactantes em campo. "Com a parceria e o financiamento da Petrobras, iniciamos o projeto para o desenvolvimento de uma unidade em escala piloto para a produção de biossurfactantes, com um biorreator de 200 litros", diz Kronemberger. "Em julho de 2009, essa unidade foi inaugurada. Desde então são realizados testes de produção." Os pesquisadores estão acumulando o material para repassar ao Cenpes, que se encarregará de fazer os testes no mar. O trabalho resultou em três artigos científicos e uma patente. ~

Microesferas de quitosana - As bactérias também são as principais fornecedoras de biossurfactantes em um projeto do Parque de Desenvolvimento Tecnológico (Padetec) da Universidade Federal do Ceará (UFC) . A pesquisa, que contou também com pesquisadores das universidades federais de Pernambuco e da Bahia, desenvolveu, sob a coordenação da professora Vânia Melo, da UFC, microesferas de quitosana com células da bactéria Bacillus subtilis capazes também de absorver e se alimentar de petróleo. A quitosana, um polímero natural, é extraída principalmente do exoesqueleto (casca) e da cabeça do camarão rejeitados pela indústria de criação desses crustáceos. É um material já utilizado para absorver óleo, inclusive nos Estados Unidos. A inovação do grupo foi juntar a quitosana e a bactéria também usada para produzir biossurfactantes. A novidade fez o grupo ser um dos ganhadores do Prêmio Inventor 2009 da Petrobras. "Agora estamos desenvolvendo um equipamento para produzir essas microesferas de três milímetros de diâmetro': diz o professor Afrânio Craveiro, diretor presidente do Padetec e um dos inventores das microesferas. O grupo quer agora gerar cerca de 300 quilos e, na forma de spray, realizar testes no mar e em lagoas. "Esse não é um produto para grandes áreas como o golfo do México, e sim para contaminações bem menores." A empresa candidata para fazer esse produto é a Polymar, que foi incubada no Padetec e hoje fabrica quitosana para uso como suplemento alimentar. ''A Polymar tem prioridade, mas já existem outras empresas interessadas", diz Craveiro. •

Art igos científicos 1. MEDEIROS, M.A.; SANSIVIERO, M.T.C.; ARAÚJO, M.H.; LAGO, R.M. Modification of vermiculite by polymerization and carbonization of glycerol to produce highly efficient materiais for oil remova!. Applied Clay Science. v. 45, n. 4, p. 213-19. ago. 2009. 2. KRONEMBERGER, F.A; SANTA ANNA, L.M. et ai. Oxygen-controlled biosurfactant production in a bench scale bioreactor. Applied Biochemistry and Biotechnology. v. 147, p. 33-45. mar. 2008. 3. BARRETO, R.V.G.; HISSA, D.C.; PAES, F.A.; GRANGEIRO, T.B.; NASCIMENTO, R.F. ; REBELO, L.M.; CRAVEIRO, A.A.; MELO, V.M.M. New approach for petroleum hydrocarbon degradation using bacterial spores entrapped in chitosan beads. Bioresource Technology. v. 101, n. 7, p. 2.121-25. abr. 2009.

PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 77


[ OLJIMICA ]

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epois do aproveitamento da palha e dobagaço da cana-de-açúcar - queimados em caldeiras para geração de energia elétricachegou a vez de o dióxido de carbono (C0 2 ) resultante do processo de fermentação alcoólica nas usinas sucroalcooleiras ser utilizado como um subproduto de alto valor agregado. Pesquisa conduzida na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que esse gás pode ser reaproveitado para o cultivo de microrganismos fotossintetizantes, como microalgas e cianobactérias, com a possibilidade de serem empregados como matéria-prima em vários processos produtivos nas indústrias de alimentos, energia, medicamentos e cosméticos. Um exemplo é a Spirulina platensis, uma cianobactéria que pode ser utilizada como complemento alimentar porque é fonte de proteínas e vitaminas ou incorporada em alimentos e rações. Esses microrganismos também podem ser utilizados como pigmento, gerando corantes naturais, como clorofila e ficocianina. Os microrganismos fotossintetizantes possuem ainda altos teores de ácidos graxos e poderiam colaborar com a matriz energética nacional na produção de biodiesel- já existem pesquisas em vários países sobre a obtenção de biodiesel a partir de microalgas. Outras aplicações estão relacionadas à obtenção de moléculas para utilização nas indústrias farmacêutica, cosmética e química. O trabalho, coordenado pelo farmacêutico João Carlos Monteiro de Carvalho, do Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica, gerou um pedido de patente e foi realizado com a colaboração do professor Sunao Sato e de vários alunos, além do pesquisador Attilio Converti, da Universidade de Gênova, na Itália. "Nosso trabalho aborda o uso imediato do C0 2 no cultivo desses microrganismos, que utilizam a luz como fonte de energia, ou seu armazenamento para utilização futura", explica Carvalho. Em âmbito mundial, as empresas que atualmente produzem esses microrganismos utilizam co2comprimido purificado em cilindros para viabilizar a produção. O estudo da USP mostrou que o gás produzido no reator de fermentação alcoólica das usinas pode ser injetado por meio de borbulhamento diretamente em outros reatares onde as microalgas e cianobactérias crescem. 78 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

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Reatores na USP produzem Spir ulina com gás carbônico de usinas de açúcar e etanol

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Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

João Car los Monteiro de Carvalho - USP INVESTIMENTO

R$ 70.656,98 e US$ 37.145,92 (FAPESP)

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O C0 2 tem dupla função. "Ele repõe o carbono consumido por esses microrganismos no processo de fotossíntese e, ao mesmo tempo, mantém o pH ao crescimento deles", explica. Esse seria o emprego direto do co2, que também poderia ser purificado e retido para uso em outro momento. O armazenamento se faria da seguinte forma: o gás carbônico capturado dos equipamentos de fermentação alcoólica passaria por um meio alcalino- como hidróxido de sódio (soda cáustica), por exemplo- e ao reagir com ele formaria bicarbonato ou carbonato de sódio, substâncias usadas no cultivo das microalgas. "Dessa forma, o gás carbônico poderia ser retido como uma solução alcalina líquida para ser utilizado posteriormente, como na entressafra da cana-de-açúcar, por exemplo, quando não há cana para ser processada e não existe produção de açúcar e álcool, além de co2, nas usinas", explica Carvalho.

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Etanol em gramas - O crescimento dos microrganismos fotossintetizantes se faz dentro de reatares, que podem ser do tipo fechado ou aberto. No laboratório da USP foram realizados testes com reatares fechados de 3,5 litros, mas há registras na literatura científica de reatares abertos de 5.000 metros quadrados. "O tipo de reato r em que a cianobactéria ou microalga cresce não afeta o processo, uma vez que, essencialmente, o princípio

de atuação do dióxido de carbono é o mesmo." O potencial de uso desse gás como matéria-prima para o cultivo desses microrganismos é imenso. Segundo o pesquisador, para cada molécula consumida de glicose na fermentação alcoólica do caldo da cana há a formação de duas moléculas de etanol e duas de C0 2 • Isso significa que para cada quilograma de etanol produzido h á a formação de aproximadamente 0,96 quilograma de gás carbônico. Considerando que a produção anual nacional de etanol na safra 2008/2009 foi de 27,5 bilhões de litros- o equivalente a 21,7 bilhões de quilos-, 20,8 milhões de toneladas (t) de dióxido de carbono foram lançados na atmosfera (um litro de etanol equivale a 0,789 quilograma). Mesmo com quase a totalidade desse gás sendo consumida pela plantação de cana, inclusive aquele produzido pelos automóveis, no processo de fotossíntese é possível comparar esses números com a emissão de um ônibus a diesel circulando em uma grande cidade, que é de 100 t de co2 por ano. Na cidade de São Paulo, por exemplo, é gerado cerca de 1 milhão de t anuais de dióxido de carbono com os 10 mil ônibus urbanos. Além do co2gerado no processo de fermentação alcoólica, o projeto, que foi financiado pela FAPESP, também previu a reutilização do gás proveniente da queima de bagaço nas usinas. Nesse processo, a geração de dióxido de

carbono é ainda maior, da ordem de 83 bilhões de quilos - isso se todo o bagaço fosse queimado para a produção de energia. Mas o C0 2 nesse caso não é tão puro e teria que passar por um processo de limpeza e purificação para ser injetado nos reatores contendo microalgas e cianobactérias. O projeto, segundo Carvalho, levaria a uma redução de emissão de co2pelo país. A ideia de aproveitar gases que contêm dióxido de carbono para o cultivo de microrganismos já foi objeto de estudo, na década de 1980, pelo professor Eugênio Aquarone, da mesma FCFUSP, cujo grupo, em trabalho com a Universidade de Firenze, na Itália, avaliou o efeito do co2 da fermentação alcoólica na produção da Spirulina maxima. "Na nossa solicitação de patente, entretanto, apresentamos métodos que contribuem para a viabilização do uso do gás carbônico da fermentação do caldo de cana ou da queima do bagaço no cultivo de microrganismos fotossintetizantes", diz Carvalho. •

Artigo científico

RODRIGUES, M.S.; FERREIRA, L.S.; CONVERTI, A.; SATO, S.; CARVALHO, ).C.M. Fed-batch cultivation of Arthrospira (Spirulina) platensis: Potassium nitrate and ammonium chloride as simultaneous nitrogen sources. Bioresource Technology. v. 101, p. 4.491-98. 2010.

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[ HISTÓRIA ]

Luxo místico e nqueza marcam a estética do cangaço

' Corisco, um dos cangaceiros mais vaidosos

lê, mulher rendeira/ olê, mulher rendá/ tu me ensina a fazer renda/ que ell te ensino a namorar", diz a canção-símbolo do cangaço. Sobre moda, Lampião e seus homens tinham pouco a aprender e muito a ensinar. Vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos de ouro e, como bons sertanejos, sabiam confeccionar toda a sorte de objetos e vestimentas sem que por isso se questionasse sua virilidade: o "rei do cangaço" costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à máquina com perfeição, orgulhando-se da sua habilidade. "O bando de Lampião, sobretudo nos anos 1930, possuía preocupações estéticas mais frequentes e profundas que as do homem urbano moderno", afirma o historiador Frederico Pernambucano de Mello, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor do livro Estrela de couro: a estética do cangaço (Escrituras, 258 páginas, R$ 150), com 300 fotos históricas e 160 reproduções de objetos de uso pessoal dos cangaceiros, muitos pertencentes ao próprio autor. Tamanho apuro visual, pleno de detalhes nas coisas mais cotidianas (cães com coleiras trabalhadas em prata!), servia como proteção ao mau-olhado, instrumento de hierarquia interna, tinha funcionalidade militar e era um poderoso instrumento de


Jabiracas de tecido inglês, de Lampião

propaganda junto às populações pobres, que se admiravam diante de todo aquele luxo, cor e brilho. Era também uma forma de arte que o cangaceiro carregava no seu corpo. "Havia orgulho em tudo aquilo, um esforço para que se pudesse chegar ao anseio de beleza de cada um dos cabras. Era notável ainda um desprezo sistemático pela ocultação da figura, atitude oposta à de quem se considera criminoso", explica. "Morando num meio cinzento e pobre, o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza, satisfazendo seu anseio de arte e conforto místico. Era como se os mais esquivos habitantes do cinzento se levantassem contra o despotismo da ausência de cor na caatinga e proclamassem a folia de tons e de contrastes." Em vez de procurar camuflagem, os cangaceiros desenvolveram uma estética brilhante e ostensiva com roupas adornadas de espelhos, moedas, metais, botões e recortes multicores que, paradoxalmente, os tornavam alvo fácil até no escuro. "Todos armados de mosquetões, usando trajes bizarramente adornados, entram cantando suas canções de guerra, como se estivessem em plena e diabólica folia carnavalesca", escreveu o Diário de Notícias, de Salvador, em 1929. "Ainda que o fascínio pelo cangaço tenha existido sempre, fomentado pela literatura dé cordel, Lampião soube jogar com todos os registras do visual para 'magnificar' a sua vida e transmitir a imagem de um bandido rico e poderoso. Foi o primeiro cangaceiro a cuidar de sua estética, usando modos de comunicação modernos que não faziam parte da sua cultura

Facão curto com cabo de gavião, de Lampião

82 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

original, como a imprensa e a fotografia", explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião: senhor do sertão (Edusp ). Após terem seu visual cantado pelo cordel, a fotografia, ao chegar ao sertão na primeira década do século passado, fez a delícia do cangaço. "Essa existência criminal parece ter sido criada para caber numa fotografia, tamanho o cuidado do cangaceiro com o visual, com a imponência e a riqueza do traje guerreiro", avalia Pernambucano. "As vestimentas dos bandidos foram sendo incrementadas até se tornarem quase fantasias. Esse era um dos aspectos da extrema vaidade daqueles bandoleiros", observa o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor de Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica (Boitempo, 320 páginas, R$ 54). O homem do cangaço era um orgulhoso que se esmerava no traje, até o final, como se pode ver na célebre foto das cabeças de Lampião e seus homens ao lado de seus chapéus: "Dentre os treze, não há dois iguais, tão ricos em tema e valor material quanto o do chefe, prova da imponência da estética, cuja afetação exagerada adjetivou o cangaço em sua etapa final, quando se chegou a incrustar alianças de ouro na boca das armas", nota Pernambucano. "Havia uma estética rica que conferia uma 'blindagem mística' ao cangaceiro, satisfeito com a sua beleza e ainda seguro em meio a uma suposta inviolabilidade." A ponto de contaminar as roupas dos policiais, que copiaram suas vestimentas, e mudar o foco da guerra. "O contágio inelutável dá a força dessa estética e evidencia a existência de ou-

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inteligentíssimo, Lampião fez da costura e do bordado um critério a mais de promoção e status no seio do bando e ele mesmo costurava as vestimentas de seu bando. Saber prepará-los e conferilos a seus homens era uma grande vantagem", salienta Pernambucano. "Não se chama o boi batendo na perneira", dizia o "rei", consciente da necessidade de uma política de afagos interna para amenizar a disciplina de que não abria mão. "A estética era uma ferramenta para infundir o orgulho do irredentismo cangaceiro nos recrutas de modo quase instantâneo. Antes desse recurso estético, imagino que essa inoculação devesse ser lenta."

Cantil decorado e, ao lado, bornal florido

tra luta, travada em paralelo, no plano da representação simbólica. A vingança estética do cangaço contra a eliminação militar se dá quando o ícone principal de sua simbologia se transforma na marca do Nordeste: a meia-lua com estrela do chapéu de Lampião." Bandidos -Estimulando essa "gana de ostentação" estava a própria essência política do cangaço. "Os cangaceiros não admitiam ser comparados ou confundidos com bandidos comuns, uma ofensa imperdoável. Viam-se como atores sociais distintos, na mesma estatura dos 'coronéis"', explica Pericás. O que lhes permitia usar e abusar dos figurinos: orgulhosos de si mesmos, tinham ainda um gosto pelas patentes militares, promovendo "cabras" a postos de hierarquia militar e considerando membros de seus efetivos como "soldados". "Observe que todo grupo militar preza os símbolos, as insígnias, as representações de poder. Lembra-se do Brejnev com medalhas que não cabiam no peito no tempo da Rússia soviética? Sujeito

Patrões - "Os bandos de cangaceiros eram estruturas hierarquizadas com claras distinções entre as lideranças e a 'arraia-miúda', sem voz de comando em posição claramente subordinada aos chefes. Muitos consideravam os líderes do cangaço como 'patrões'. E esses comandantes se viam assim, quase como os coronéis, com os quais mantinham boas relações, colocando-se em posição igualitária aos potentados rurais", afirma Pericás. Na contramão do senso comum, os comandantes cangaceiros eram de famílias tradicionais e relativas posses. Lampião, por exemplo, pertencia à classe dos proprietários de terra e ele próprio foi um criador de gado. Por isso o cangaço não foi, diz o pesquisador, uma luta para reconstruir ou modificar a ordem social sertaneja tradicional, como preconizado por boa parte da literatura sobre o fenômeno. "Eles não lutavam para manter ou mudar nenhuma ordem política, mas para defender seus próprios interesses mediante o uso da violência, indistinta e indiscriminada. Os bandidos procuravam, sim, manter vínculos com os protetores poderosos, o que podia resultar, inclusive, em agressões contra o seu próprio povo", diz Pericás. Nesse sentido, a famosa justificativa da adesão ao cangaço por motivos de disputas sociais ou vinganças familiares deve ser vista com desconfiança. "Os cangaceiros diziam-se vítimas, obrigados a entrar na luta por honra, mas isso era, na maior parte dos casos, um 'escudo ético', um argumento para convencer as populações pobres de que eram movidos por questões elevadas, se diferenciando

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Chapéu de couro do rei do cangaço

dos bandidos comuns, o que não era real." Lampião nunca viu como prioridade ajudar os necessitados. "Em geral, guardavam o dinheiro grande e davam alguns tostões aos pobres e às igrejas. E sempre faziam questão de que isso fosse divulgado para criar uma imagem positiva junto ao povo." Na prática, o comportamento dos cangaceiros era parecido com o dos coronéis, que agiam de forma paternalista com aqueles que eram considerados "seus" pobres. "Eles não eram bandidos sociais e se pode mesmo dizer que sua presença foi um obstáculo a um protesto social mais significativo. Apesar disso, como um executor independente da raiva silenciosa da pobreza rural, o cangaceiro tinha o apelo popular de um agente superior. A sua violência era um gesto admirado de afirmação psíquica na ausência de justiça e mudança positiva", acredita a historiadora Linda Lewin, da Universidade da Califórnia, autora de

The oligarchicallimitations of social banditry in Brazil. Câmara Cascudo já notara que "o sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente". "O cangaço pode ser visto como uma continuidade do ambiente violento do sertão, onde era comum que paisanos carregassem e usassem armas no cotidiano, pautando sua vida em questões morais, de honra e prestígio", diz Pericás. Os cangaceiros construíram a imagem de indivíduos injustiçados que haviam ingressado na 84 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

criminalidade por bons motivos. Mas, se eram violentos, o mesmo pode ser dito dos soldados que os perseguiam. "A população que sofria violências das volantes se voltava para os bandoleiros como uma resposta ou por vê-los em contraposição aos 'agentes da lei"', analisa Pericás. "Com seus trajes inconfundíveis e nada tendentes à ocultação, se sentiam investidos de um mandato mais antigo, havido por mais legítimo que a própria lei, esta, a se us olhos, uma intrusão litorânea sobre os domínios rurais", completa Pernambucano. Os cangaceiros supriram a falta de poder institucionalizado no sertão. "Eles seriam os fiéis da balança em muitos casos, sendo um poder paralelo, mais fluido e inconsistente, mas que tinha apelo para as massas rurais", diz Pericás. Com o tempo, porém, o cangaço se revelou um negócio, o "Cangaço S/1\', como o descreve Pernambucano. "Era uma 'profissão', um 'meio de vida'. Os bandidos estavam equidistantes do 'povo' e dos mandões, ainda que com maior proximidade das elites rurais", concorda Pericás. Como eram "independentes", tinham sua imagem dissociada diretamente dos coronéis. "Não sendo empregados de ninguém, eram de certo modo autônomos, tirando das camadas mais ricas e dos governos o monopólio da violência. Mas é sempre bom lembrar que a maioria da população sertaneja, apesar da miséria, da exploração, da falta de emprego e das secas, não ingressou no cangaço." Segundo o pesquisador, um dos motivos para a longevidade da "boa" recordação dos cangaceiros seria sua contraposição à ordem instituída.

"Os policiais representavam o governo, mas usavam a farda para transgredir. Assim, parte dessa sociedade se voltou para os cangaceiros e viu neles o oposto, ou seja, aqueles que lutavam contra a ordem." Suas atividades criminosas, então, eram justificadas no quadro maior da luta entre os dois "partidos": cangaço e polícia. Politicamente "reabilitados" e bem vistos, permitiam-se o luxo da ostentação, que se iniciava pelos chapéus, cujas abas levantadas podiam chegar aos 20 cm de raio anular, uma hipérbole em relação ao modelo original dos vaqueiros, de abas viradas, mas curtas. "Experimentei o chapéu de Lampião no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas: o pescoço bambeou. Tanto peso ornamental não teria nada a ver com funcionalidade militar, mas com valores bem mais sutis", conta Pernambucano. O objeto tem cerca de 70 peças de ouro, entre moedas, medalhas e outros adereços, o que levou um repórter da época a defini-lo como "verdadeira exposição numismática". O chapéu era o ponto de concentração dos adendos simbólicos que caracterizam o traje do cangaceiro. Amuletos- Coisas comuns eram transformadas em amuletos que, além de reforçar a hierarquia, viravam símbolos de uma crença mística. "A blindagem mística se traduziu nos muitos signos (estrela de da vi, flor de !is, signo de salomão e outros) e na profusão do seu uso em todos os ângulos das vestimentas, o que dividia a atenção com o puro anseio estético, a se mesclar a este, conferindo utilitarismo à fusão, pela força de dar vida à crença tradicional numa suposta inviolabilidade em meio a riscos extremos." Mas não se iluda o espectador ao pensar que os bandos eram "escolas móveis de superstição': "O grosso da cabroeira, muito jovem, entre os 16 e os 23 anos, pautava-se pela lei da imitação, sem consciência daquilo de que se servia. O chefe usava? Basta." As mulheres seguiam as modas de perto, mas de forma distinta. "Com alguns traços de valquíria e quase nenhum da amazona, a matuta que se engajou no cangaço jamais adotou o chapéu de couro, coisa de homem. A elas ficou reservado uma cobertura de feltro, de aba média, e a colocação, sobre a cabeça, de toalha ou lenço", conta

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Pernambucano. O mesmo se dava com os punhais que podiam chegar a 80 cm para os homens (o tamanho limite era o do punhal de Lampião, que n ão poderia ser superado), mas não passavam dos 37 cm no caso das mulheres. As armas brancas, aliás, são paradigmas na vestimenta do cangaceiro. Com função militar quase morta após o advento da espingarda de repetição, os punhais serviam no ritual letal do sangramento nordestino ou como símbolo de status. "Era usado orgulhosamente sobre o abdome, à vista de todos, aço da melhor qualidade europeia com cabo decorado de prata. Desfrutável ao primeiro olhar. Ou à primeira fotografia." O punhal de Zé Baiano, presente de Lampião, foi avaliado em mais de 1 conto de réis, preço de uma casa. Outros símbolos de prestígio eram a bandoleira, correia para segurar a espingarda no ombro, e a cartucheira trespassada, essa uma necessidade nascida de se prover um adicional de munição: 150 cartuchos de fuzil Mauser presos com enfeites de ouro. Era comum, porém, que as volantes, cientes do prestígio de seu uso, mirassem em quem portasse uma des-

sas. A seu lado, iam os cantis, decorados com esmero, um espaço surpreendente de arte de projeção. Como as luvas a que, nota Pernambucano, o cangaceiro, no fausto dos anos 1930, juntou um bordado colorido. O lugar privilegiado das cores, porém, eram os bornais, cuja policromia levou um jornalista a descrever os cangaceiros como "ornamentados e ataviados de cores berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval". Visíveis por todos os ângulos, os bornais eram responsáveis por mais de dois terços desse "porre de cores", o resto ficando por conta do lenço de pescoço, a jabiraca, com que também se coava o líquido extraído de plantas da caatinga. "Nela, nada de nós, mas puxadas as duas pontas para a frente, em paralelo, o cangaceiro ia colecionando alianças de ouro, tomando-se como rico quando formava o cartucho. Houve quem tivesse mais de 30 alianças no pescoço", conta. Viajando por Sergipe, em 1929, Lampião teve os "apetrechos" pesados numa balança de armazém: 29 quilos sem as armas. No total, o peso carregado no calor tórrido da caatinga podia chegar a quase 40 quilos.

rude e, à primeira oportunidade, o chapéu de couro cobre a testa e o rifle pende a tiracolo", alertava um relatório oficial. Curiosamente, nota o pesquisador, pintores como Portinari ou Vicente do Rego Monteiro não souberam captar o luxo e o colorido dessa estética em suas reproduções do cangaço, optando, ideologicamente, por uma visão monocromática opaca, para ressaltar o aspecto social do fenômeno, à custa da fidelidade ao real. "Não é exagero dizer que ainda está por surgir, na pintura ou no cinema, quem consiga combinar o ethos e o ethnos dessas comunidades para retratá-las", avalia Pernambucano. "O cangaço foi o último movimento a viver 'sem lei nem rei' em nossos dias, após varar cinco séculos de história. E o último a fazê-lo com tanto orgulho, com tanta cor, com tanta festa e com uma herança visual tão significativa." Como, aliás, já diziam os versos de Mulher rendeira: "O fuzil de Lampião/ tem cinco laços de fita/ No lugar em que ele habita/ não falta moça bonita". •

Místico- Com menos aprumo, a vestimenta contagiou os policiais. "A sedução da indumentária dos cangaceiros arrebatava pelo funcional, pelo estético e pelo místico. A volante se mimetizou a tal ponto que dela não restou imagem própria", diz Pernambucano. Para desespero das autoridades, qu~ se sentiam derrotadas também no simbólico. "Cumpre que se adote a proibição de fardamentos exóticos, de berloques, estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos, porque a impressão se faz no cérebro

"Porre de cores": conjunto de bornais

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Dilema entre preservação e desenvolvimento é constante na história brasileira

Queimada: problemas desde a colôn ia

projeto do novo Código Florestal, aprovado em agosto pela comissão especial da Câmara dos Deputados, deverá ser votado no Congresso após as eleições, sob críticas de cientistas e ambientalistas, para os quais a sua homologação causará impactos graves na biodiversidade e nos serviços ecossistêmicos em razão das reduções significativas nas áreas de preservação permanentes (APP) e da anistia a desmatamentos feitos até 2008. A polêmica ambiental mais recente tem raízes antigas: o dilema entre preservação da natureza e desenvolvimento econômico é tema de discussões no país desde os tempos da colônia. Um pouco posterior é a dificuldade de se fazer uma parceria entre Estado e sociedade para uma solução equilibrada. "No Brasil há um padrão histórico: as preocupações com o meio ambiente, em geral, resultaram da atuação de grupos de cientistas, intelectuais e funcionários públicos que, por meio de suas inserções no Executivo, procuraram influenciar as decisões dos governantes em favor da valorização da natureza", explica o historiador José Luiz de Andrade Franco, da Universidade de Brasília, autor de Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil (Fiocruz). "Por isso, o andamento das políticas de proteção à natureza sempre dependeu mais de ligações com

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esquecidos na corrente forte do desenvolvimentismo que prevaleceu no país da década de 1940 em diante. "Surpreende, sim, que eles tenham sido esquecidos pelos ambientalistas brasileiros, 'científicos' e 'sociais', que, a partir dos anos 1980, emergiram como atares relevantes na ciência, no ativismo, na mídia e nos movimentos sociais."

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AMBIENTALISTAS DE HOJE EM DIA

TÊM UMA POSTURA BASTANTE ANTROPOCÊNTRICA", AFIRMA LUIZ AUGUSTO FRANCO

governos e apenas secundariamente do eco que as pessoas preocupadas com as questões ambientais alcançam na sociedade", avalia. Foi assim com o Código Florestal original, criado em 1934 por Getúlio Vargas, fruto de articulações de um grupo de pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ), que, usando a sua influência junto a círculos do poder, defendeu a intervenção de um Estado forte para garantir, por meio de leis, o equilíbrio entre progresso e patrimônio natural. A legislação, que colocava limites ao direito de propriedade em nome da conservação, protegendo áreas florestais, foi revista em 1965 durante a ditadura militar. Pela primeira vez o código será revisto em uma sociedade democrática e aberta ao debate com a opinião pública. Colheremos melhores frutos do que no passado? "Os protetores da natureza dos anos 1920-1940, que geraram a legisla-

ção, eram a favor de um Estado forte, mas tinham propostas de transformação social e ambiental bastante renovadoras. Os conservacionistas dos anos 1960-1980 não estavam na vanguarda do questionamento político do regime militar, mas tinham preocupações com a natureza ainda muito distantes do itinerário político das esquerdas", lembra Franco. "Hoje os ambientalistas mais preocupados com as questões sociais têm uma postura bastante antropocêntrica, deixando, muitas vezes, as questões urgentíssimas da biodiversidade na sombra." Segundo o pesquisador, sociedade e Estado, no Brasil, ainda são hegemonicamente desenvolvimentistas. "O sucesso a médio e longo prazo do ambientalismo está na sua capacidade de reverter essa disposição de promover o crescimento econômico a qualquer custo." Para o pesquisador, não é de estranhar que esses protetores da natureza do passado tenham sido quase

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ranco chama esses protetores de "a segunda geração de conservacionistas" brasileiros, intelectuais que, entre os anos 1920 e 1940, cobraram do Executivo a manutenção de um vínculo orgânico entre natureza e sociedade, porque, afirmavam, defender a natureza era uma forma de construir a nossa nacionalidade. Eram, na sua maioria, cientistas do MNRJ: Alberto José Sampaio (1881-1946),Armando Magalhães Correa (1889-1944), Cândido de Mello Leitão (1886-1948) e Carlos Frederico Hoehne (1882-1959). A tendência desses círculos intelectuais, como característico na história ambiental nacional, foi integrar-se ao Estado para reclamar das autoridades um comportamento mais racional dos agentes econômicos privados. "Havia entre eles a convicção de sua responsabilidade na construção da identidade nacional e na organização das instituições do Estado", observa Franco. A série de códigos ambientais decretados pelo governo Vargas, somada à criação dos primeiros parques nacionais, indica o relativo sucesso alcançado por eles. "Eles acreditavam que a intervenção autoritária de Vargas iria resolver os conflitos e a competição injusta. A partir disso, pensavam, um novo homem se ligaria à natureza e aos outros homens", analisa a historiadora Regina Horta Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, autora do artigo "Pássaros e cientistas no Brasil". Para colocar em prática suas teorias eles criaram sociedades públicas para proteção da natureza: Sociedade dos Amigos das Árvores, Sociedade dos Amigos do Museu Nacional, Sociedade dos Amigos da Flora Brasílica, entre outras. A iniciativa mais ambiciosa dessas organizações foi a Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, realizada em 1934, com o apoio do regime varguista, que acabara de criar o Código Florestal, o Código de Caça e Pesca e a Lei sobre Expedições Cientí-

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Devastação: preço do atraso, e não do progresso

ficas. A Constituição de 1934 também incluía um artigo sobre o papel dos governos federal e estaduais na proteção das "belezas naturais". O ciclo de palestras foi aberto com a leitura de "Natureza", do poeta alemão Goethe. "Uma evidência da importância dada pelos participantes à percepção estética do mundo natural. Por essa visão, a natureza deveria ser admirada, cuidada e transformada num jardim", conta Franco. "Essa influência romântica, porém, nunca descartou a possibilidade do uso econômico da natureza e a necessidade de renovar fontes esgotadas sempre era lembrada. Além de ser um 'jardim', o mundo natural era percebido como indústria. Daí as várias propostas da criação de 'berçários de árvores', que eram, ao mesmo tempo, jardins e áreas de produção de madeira em larga escala." Os organizadores da conferência estavam atualizados sobre a ação dos protetores da natureza de outros países. Conheciam a fundo a experiência americana e o debate entre os preservacio88 • OUTUBRO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 176

nistas de John Muir, que defendiam a contemplação estética da natureza, e os conservacionistas liderados por Guifford Pinchot, que acreditavam na e~­ ploração racional de recursos naturais. As duas correntes ganharam seu espaço na Presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909), o que resultou no crescimento do Parque Yosemite e na criação de várias reservas e mais cinco novos parques nacwna1s. as o que dividia os americanos era consenso no Brasil e não havia ingenuidade no grupo, apesar da combinação que faziam de romantismo, ciência e nacionalismo. "Naquele momento, os conceitos de proteção, conservação e preservação eram intercambiáveis. Para os cientistas, a natureza deveria ser protegida, tanto como conjunto de recursos produtivos a ser explorado racionalmente pelas gerações futuras, quanto como diversidade biológica, objeto de ciência e contemplação estética." Argumentos

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utilitários coexistiam em harmonia com estéticos, e tudo era parte de um projeto maior da união entre natureza e nacionalidade. "As metáforas que eles usaram para representar asociedade brasileira convergiam com as imagens do ideário político varguista", nota Franco. "Essa forma de proteger a natureza estava em sintonia com o projeto de Estado corporativista de Vargas e essa convergência ajudou a elevar o status institucional adquirido por um número de propostas relacionadas à proteção ambiental e ao controle público e privado dos recursos naturais", analisa o pesquisador. "Antes da revolução de 1930, a descentralização política fortaleceu o controle das elites regionais, incentivando a exploração extrema de recursos naturais. A destruição das florestas era agravada pelas ferrovias que, na definição de Euclides da Cunha, eram 'fazedoras de desertos"', observa o historiador José Augusto Pádua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista ( Zahar). Em 1915, o jurista e filósofo Alberto Torres ( 1865-1917) alertou para a situação: "Os brasileiros são, todos, estrangeiros em sua terra, a qual não aprendem a explorar sem destruir". "Ele foi o primeiro brasileiro a usar o termo conservação como se empregava nos EUA, incluindo-o na sua proposta de uma nova Constituição. Suas ideias iram influenciar os cientistas do MNRJ", observa Franco. Apesar do prestígio de intelectuais como Torres, as ações políticas concretas foram nulas. "Mesmo com o apoio do presidente Epitácio Pessoa, que confessava o seu incômodo pelo fato de o Brasil ser o único país de grandes florestas sem um Código Florestal, a legislação continuou omissa", lembra Pádua. É possível, então, imaginar o impacto da ação dos protetores da natureza quando, poucos anos depois do código e poucos meses antes da nova Constituição de 1937, que elevou os bens naturais à categoria de patrimônio público, foi decretada a criação do Parque Nacional de ltatiaia. A ditadura estado-novista iria criar, até 1939, mais outros dois parques: o da Serra dos Órgãos, no Rio, e o do Iguaçu, no Paraná.

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"Mas nos anos seguintes a ação governamental para a preservação mostraria seus limites claros, com orçamentos ínfimos para órgãos florestais, precariedade da fiscalização e ausência de uma participação efetiva da sociedade civil. A fundação de parques nacionais não privilegiou ecossistemas de grande biodiversidade, mas áreas próximas a centros urbanos, como Itatiaia ou serra dos Órgãos, ou estratégicas, como Iguaçu", nota Regina Horta. "A preservação patrimonial era realmente importante nos projetos do governo Vargas. Mas, além de seu simbolismo cultural e político, a natureza, para além dos parques, era principalmente vista como fonte de riquezas exploráveis para o desenvolvimento econômico, e os projetos industrializantes ganharam o comprometimento do Estado Novo."

Natureza em perigo: práticas rud imentares

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ideologia do crescin:ento ~qual­ quer custo sempre retirou a importância dos temas ambientais. Só hoje temos uma situação potencialmente nova, em que a união entre um Estado poderoso e uma esfera pública mais dinâmica pode criar uma verdadeira política de gestão sustentável da natureza", nota Pádua. Segundo o pesquisador, há uma continuidade dos problemas ambientais desde a colônia, como queimadas, desflorestamento e degradação dos solos e das águas, mas, ao mesmo tempo, houve muita reflexão sobre essas questões, desde o século XVIII. Basta lembrar que em 1876 o engenheiro e líder abolicionista André Rebouças já pedia a criação de parques nacionais, pois "a geração atual não pode fazer melhor doação às gerações vindouras do que reservar intactas, livres do ferro e do fogo, as belas ilhas do Araguaia e do Paraná". Para Rebouças, a razão do descaso com a natureza era a escravidão, hipótese também defendida pelo abolicionista Joaquim Nabuco, para quem era preciso o uso econômico racional da natureza brasileira. "Eles procuraram estabelecer uma relação causal entre escravismo e práticas predatórias. A combinação entre a abundância de trabalho cativo, barato, e uma fronteira aberta para a ocupação de novas terras teria estimulado uma ação extensiva e descuidada na produção rural, baseada no avanço das queimadas, deixando terras degradadas e abandonadas", ex-

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DEBATE SOBRE

TEMAS ECOLÓGICOS FOI INTENSO NO BRASIL DO SÉCULO XIX", DIZ PÁDUA plica Pádua. Para esses intelectuais, a devastação ambiental não era o "preço do progresso", mas o "preço do atraso", resultado da permanência de práticas rudimentares de exploração da terra. Nisso ambos eram herdeiros da preocupação ambiental iluminista de José Bonifácio, um fisiocrata egresso da Universidade de Coimbra, a primeira instituição, já no século XVIII, a formar intelectuais que refutavam a exploração descuidada dos recursos naturais da colônia. "Destruir matos virgens, nos quais a natureza ofertou com mão pródiga as mais preciosas madeiras do mundo, e sem causa, como se tem pra-

ticado no Brasil, é extravagância insofrível, crime horrendo e grande insulto. Que defesa produziremos no tribunal da Razão quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?", escreveu o futuro Patriarca da Independência em 1819. "É preciso lembrar a riqueza do debate intelectual sobre temas ecológicos no país; e em alguns momentos, como no século XIX, ele foi um dos mais intensos do mundo, apesar da pobreza dos resultados. O que 'relativiza' o papel dos EUA e da Europa na gênese da preocupação ambiental moderna", explica Pádua. A análise da história ambiental transforma a contribuição dos intelectuais dos séculos XIX e meados do XX em algo surpreendentemente atual. "Eles não eram ambientalistas no sentido moderno, mas incluíam os temas da destruição do mundo natural no debate sobre o futuro do país como um todo, relacionando-os com traços estruturais da sociedade, como, por exemplo, o escravismo. Guardadas as diferenças de contexto, é disso que precisamos hoje: incluir a dimensão ambiental no centro do debate sobre o futuro do Brasil e da humanidade." O Código Florestal do século XXI agradece as lições do passado. • CARLOS HAAG

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[ LITERATURA ]


UM GUIA PARA LER ANTONIO VIEIRA Livro reúne 1.178 verbetes que ajudam a percorrer o cam in ho dos Sermões do padre português

os leitores de hoje, um Índice das coisas mais notáveis parecerá inusitado, mas era comum em edições de luxo na época em que Antonio Vieira (1608-1697) viveu e publicou os Sermões, obra-prima da língua portuguesa. Em cada um dos seus 15 volumes havia um glossário como esse, incluído como apêndice, que listava as frases mais relevantes, segundo a escolha do próprio pregador. Esquecidos havia tempo, os índices saem agora pela editora paulista Hedra em nova edição que os reúne num só volume. A tarefa de descobrir seus nexos e organizá-los em verbetes coube a Alcir Pécora, um dos maiores especialistas no padre português. As 1.178 entradas levam a 8.364 abonações, ou seja, às frases que servem de exemplo, seguidas da indicação dos sermões onde são encontradas e dos outros termos a que estão associadas. Crítico literário, professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1977, Pécora organizou diversas obras de Vieira, como os próprios Sermões, em dois volumes, que reúnem uma seleção de 50, lançados pela Hedra na última década. É autor também de estudos sobre o pregador, como Teatro do

sacramento: a unidade teológico-retórico-política nos "Sermões" de Vieira (Edusp/Editora da Unicamp). O livro serve, portanto, como grande mapa dos Sermões e também se sustenta como obra independente, pois grande parte das frases do Índice das coisas mais notáveis vale como aforismos. Ou seja, podem ser lidas sozinhas, "como formas breves, lapidares e fulminantes, que contêm em si um dito engenhoso, de alcance filosófico, prático e moral", como as descreve Pécora. Os termos contêm, em geral, diversas ocorrências -"Deus", "Cristo" e "Maria", como se pode esperar, são os que possuem mais abonações. A beleza das frases logo se revela: "Deus deu vida a Adão com um sopro, porque a vida do homem é vento" (verbete "Adão"); "Para as perdas que têm remédio, se fez a diligência: para as que não têm remédio, se fez a dor" (verbete "Diligência"); "Ninguém é nem pode ser feliz com a alma noutra parte (verbete "Felicidade"). Sua beleza, porém, não compete com a de um sermão quando se lê inteiro, ressalta o especialista. Se, por um lado, como diz Pécora, os Índices são o livro de máximas que o padre não se deu ao trabalho de escrever, "os verbetes são como andaimes, sistema de sinalizações, advertências PESQU ISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 91


..@ _ e avisos de trânsito. Os sermões são o conjunto dos edifícios". E o objetivo de Vieira "não é apenas produzir maravilha, mas fazer a maravilha trabalhar em favor de seu propósito, que era sempre edificante, em seu projeto de conversão universal", diz. Não é muito fácil começar a usar o Índice, mas depois que se começa a ter familiaridade é "uma porta estupenda para a compreensão dos sermões", acrescenta. No tempo de Antonio Vieira, seu uso era frequente, explica Pécora. Para os seus colegas de ofício, aquelas páginas serviam como escola de pregar. Encontravam os principais temas e argumentos, as referências bíblicas e frases de impacto para ilustrá-los. Para os fiéis, a obra era importante por apresentar os temas fundamentais do aprendizado e da prática religiosa. Para o letrado, há o prazer imenso de ler frases definitivas sobre os grandes temas do período. Roubo - A organização da obra consumiu 13 anos, e não é sem alívio que Alcir Pécora a conclui. Conta que, além de contingências como o roubo de dois notebooks, onde fizera a descrição de vários índices europeus, especialmente italianos do mesmo período, a maior dificuldade era lidar com a quantidade de dados envolvidos. O sistema de referências desses índices, com três editores diferentes dos Sermões, era diverso a cada volume. "Normalizar tudo isso, de maneira inteligível, foi uma saga, e eu jamais a cumpriria sozinho", explica.

' Índice dos Sermões , e uma porta

fantástica para entender obra máxima do Padre Vieira'~

diz Pécora

O desfecho da empreitada dependeu das ideias que teve Jorge Sallum, editor da Hedra, para resolver os problemas de remissão de maneira econômica e compreensível. Sallum diz que a solução foi organizar os índices como um banco de dados. "É algo que parece muito distante dos Sermões, mas que guarda semelhanças com a estrutura do texto, uma vez que o computador apenas organiza uma massa de informações, cuja ordem já está totalmente prevista pelo jesuíta", afirma. Quando começou a operaçfio, descobriu que várias das frases eram praticamente idênticas e que muitas se repetiam. Notou, assim, que havia uma ligação natural entre os verbetes, mais relacionada a sua redação do que ao emprego que os primeiros editores queriam que o texto tivesse. "Isso, mais a totalização de verbetes, foi uma descoberta paraAlcir Pécora, que começou a trabalhar imediatamente nas suas hipóteses de leitura", relembra Sallum.

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O esquecimento dos índices por gerações de editores e de especialistas, que não se preocuparam em estudá-los, não deixa de ser surpreendente. Da parte de editores e leitores, Pécora especula que os índices deixam de interessar quando esse tipo de procedimento retórico, que tem por base a imitação, a emulação e particularmente o ensino regrado da pregação, entra em decadência ante a nova perspectiva romântico-burguesa, no século XVIII, que valoriza a expressão pessoal di reta. Da parte dos pesquisadores, Pécora crê que o desinteresse se dá porque, de início, não está muito claro o sistema predominante de abonação utilizado. "São abonações de ordem diferente, algumas chatas de olhar, já que são apenas remissões de trechos a outros trechos, como num sistema de cotejos. Além disso, diante da exuberância do raciocínio dos Sermões, as abonações parecem apenas recortes nem sempre especialmente ilustrativos", explica. À primeira, parece existir lacunas entre os verbetes. Como exemplo, Pécora diz que não há uma entrada como "índio': Após várias leituras e análises, o especialista conta que percebeu que as lacunas eram tão significativas quanto as presenças, pois revelavam o sistema complexo de composição de conceitos que não corresponde ao que temos hoje. De volta ao exemplo da palavra "índio": é preciso passar por "gentio': "Sto. Agostinho", "remédios" etc. "Mas a vibração do Índice começa a bater mesmo quando se percebe que ele permite conhecer as relações


necessárias, surpreendentes para o leitor contemporâneo, entre os conceitos que Vieira emprega:' A obra permite, assim, uma visão sintética, articulada e complexa não só do léxico de Vieira, como do léxico intelectual do século XVII português. Antonio Vieira nasceu em Lisboa, mas sua família se mudou para a Bahia quando ainda era criança. Estudou no Colégio dos Jesuítas e, antes de retornar a Portugal, já havia tomado ordens. Quando, mais tarde, volta ao Brasil, é como superior das missões jesuíticas do Maranhão e Grã-Pará. Foi apóstolo dos índios, pregador de fama, embaixador e político ardiloso, simpático aos cristãos-novos, como o descreve João Lucio de Azevedo (18551933), um dos seus principais biógrafos, em História de Antonio Vieira, publicado em dois volumes pela editora Alameda em 2008. Por suas posições polêmicas, é investigado pela Inquisição e condenado após um processo que dura anos. Entre outras penas, é preso e proibido de pregar. Perdoado e liberto mais tarde, se torna um dos pregadores mais influentes em outras partes da Europa, além de Portugal. É nos seus últimos anos de vida, na Bahia, que passa a limpo seus sermões. Oratória - No século XVII, o gênero mais importante letrado, como explica Pécora, é possivelmente a oratória sacra, no qual deixaram obra significativa alguns dos maiores intelectuais do tempo. Apenas o inglês John Donne (15721631) estava à altura de Vieira, afirmava o crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978). Em termos de oratória sacra, Pécora acredita que o português é ainda maior. Existem, porém, outros grandes sermonistas na época, além de Donne e Vieira, segundo ele: na Espanha, Frei Hortêncio Paravicino; em Portugal, Frei Antônio das Chagas ou Manuel Ber-

nardes; na Itália, Roberto Bellarmino, Paolo Segneri ou Alberto Panigarola; na França, Bossuet ou Bourdaloue. "Se acho que Vieira lhes é superior? Sim:' Quanto ao estilo, o orador português compartilha os mesmos pressupostos da oratória sacra de todos os seus companheiros de religião. Nos seus sermões, explica Pécora, observa-se que tem o domínio dos procedimentos tradicionais estudados pela retórica greco-latina, em particular, aristotélico-ciceroniana, e dos processos de moralização e alegorização católica dos lugares argumentativos antigos, segundo os comentários dos padres da Igreja, da Escolástica tomista e dos modelos então recentes da discretio humanista, revistos pela neoescolástica dos séculos XVI e XVII. "Desse ponto de vista, o pregador português não se distingue dos principais oradores do seu tempo e, ao contrário do que tanto se diz, não antecipa nenhuma razão ilustrada ou democrática. O que ele tem diferente dos demais é o talento para submeter à língua portuguesa seus mais diversos argumentos, projetas, afetos e caprichos; a aptidão bem treinada de inventá-la em dobras que não pareceria, antes dele, ser capaz de sustentar, e que, depois dele, parece ser a sua posição mais própria e mais acomodada", afirma o professor da Unicamp. Ao concluir a organização do Índice das coisas mais notáveis, Alcir Pécora conta que, longe de esgotar o assunto, a sensação é a de frescor. "É como se Vieira se desdobrasse em outros. Foi um verdadeiro presente após todos esses anos: a percepção de que ele ainda poderia ser relido em direções renovadas e surpreendentes. Cada entrada me levava a abonações insuspeitas, bem como a um conjunto de associações que não pode-

riam ser imaginadas antes, de maneira global, como é possível fazer agora." Concluída a montagem dos índices, diz que pretende ler algumas entradas particulares, escolher alguns conceitos fundamentais para descrever os seus sistemas de bases. Aos jovens pesquisadores, sugere que se ocupem disso: reconstruir os sistemas de significação implicados nas entradas e abonações dos índices. "Cada entrada permite ponderações. Algumas delas são mais misteriosas que outras, é verdade, mas são sempre ponderações interessantes. Cada uma das 1.178 entradas não repetidas dos índices traz combinatórias, cujo exame pode levar a hipóteses não óbvias sobre os sermões. É só abrir o livro ao léu, apontar o dedo e ver o verbete assinalado para se seguirem correspondências complexas entre termos dos sermões." Pécora descobriu Antonio Vieira no final dos anos 1970, quando estudava retórica com Haquira Osakabe, seu orientador de mestrado, um dos fundadores do IEL- Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. A certa altura, eles consideraram que valia a pena sedimentar os estudos teóricos de retórica em análises de autores particulares. "Como queríamos alguém em literatura de língua portuguesa, para que a nossa análise, como falantes de língua portuguesa, pudesse ser capaz de distinguir os aspectos mais sutis das provas, então Vieira simplesmente estava lá", conta. "Diria que fomos obrigados a encará-lo, mais do que o escolhemos, pois em matéria de oratória de língua portuguesa não há, nem houve, talvez não haverá jamais, autor como Vieira." Pécora diz que está sempre rondando a obra do padre português. "Se fico algum tempo sem lê-lo, me sinto afastado de mim, com algum déficit operacional generalizado de inteligência." • PESQUI SA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 93


RESENHA

Império tropical na visão de um méd ico Editado pela primeira vez clássico de natura lista francês ANA MARIA GALDTNT RAIMUNDO ÜDA

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ada latitude tem sua marca, cada clima tem sua cor": a epígrafe, tomada de Cabanis, indica o princípio orientador do tratado editado em Paris, em 1844. Du climat et des ma/adies du Brésil ou statistique médicale de cet empire teve uma única edição fran-

Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste império Joseph François Xavier Sigaud [1a edição francesa. 1844] Tradução de Renato Aguiar Editora Fiocruz 424 páginas, R$ 70,00

cesa e jamais se editara em português, até 2009, quando surgiu na coleção História e Saúde, da Editora Fiocruz. Este alentado tratado é de autoria de Joseph François Xavier Sigaud (Marselha, 1796- Rio de Janeiro, 1856), médico instalado no Brasil em 1825 e aqui ligado a variadas atividades científicas e culturais. A obra resultou da compilação de documentos históricos, geográficos e médicos; suas fontes foram obtidas no Brasil e na França e entre os que lhe forneceram bibliografia sobre o país estavam José Bonifácio de Andrada, o cônego Januário da Cunha Barbosa e Ferdinand Denis. Quanto aos textos de medicina, foram usados trabalhos europeus e americanos, além de contribuições vindas da experiência clínica do próprio autor. A partir da perspectiva do chamado neo-hipocratismo, Sigaud discute com detalhes a relação entre climas, ambientes (ares, águas e lugares) e patologias, trata de peculiaridades da terra, das características e dos hábitos da população do Brasil, de forma comparativa à Europa, à África, às Antilhas e às Américas. De maneira geral, para ele, as manifestações das doenças não diferem substancialmente entre indivíduos das raças branca, negra ou indígena, ou entre africanos e europeus, importando mais fatores climáticos, ambientais e condições de vida de cada grupo, tais como: qualidade da alimentação, exposição ao frio, à umidade e ao calor, excesso de trabalho, abuso de álcool, doenças debilitantes etc.

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Sempre relacionando patologia, ambiente natural e modus vivendi, o tratado está dividido em quatro grandes

seções: Climatologia (variações térmicas e barométricas, umidade e chuvas, ventos etc.); Geografia Médica (alimentação e aclimatação, doenças dos índios, dos negros e dos trabalhadores das minas, curandeiros, doenças endêmicas e epidêmicas); Patologia Intertropical (febres intermitentes, tísica pulmonar, doenças nervosas, doenças de pele, mordidas de cobras etc.); Estatística Médica (composição racial da população, mortalidade, legislação sanitária, estabelecimentos científicos, hospitais, cemitérios etc.). A seção final conta ainda com biografias de médicos e naturalistas do país e com uma lista de obras de medicina e de história natural publicadas no Brasil de 1810 a 1843. A edição atua! é enriquecida pelo prefácio de Annick Opine!, do Centro de Pesquisas Históricas do Instituto Pasteur francês, e pela introdução de Luiz Otávio Ferreira, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz, Rio de Janeiro). O primeiro destaca as contribuições do trabalho de Sigaud à história da medicina e a segunda enfatiza sua participaçãq na institucionalização da medicina brasileira e na criação da imprensa nacional. Sergio Goes de Paula (Fiocruz) assina a orelha do livro, onde aponta a "curiosidade humboldtiana" do médico francês. A edição conta com notas de revisão e reconstituição da bibliografia citada, além de lista das publicações de Sigaud. As tarefas de organização do volume e a revisão técnica da tradução ficaram a meu cargo e de Ângela Pôrto (COC/ Fiocruz). Sigaud pretendia reeditar o livro, mas faleceu antes de terminar a revisão para a segunda edição; entretanto deixou notas manuscritas, em exemplar que se encontra na Academia Nacional de Medicina - estas foram recuperadas e traduzidas por Ângela Pôrto e integram a presente edição brasileira. Assinalando desejar que seu trabalho fosse apenas um marco inicial para futuros estudiosos do Brasil, Sigaud diz em carta a Pedro II, a quem dedica sua obra: "Aquele que começou um livro (... ) é somente aluno daquele que o conclui". Excesso de modéstia de um grande mestre, que o leitor poderá constatar tendo em mãos o precioso Do clima e das doenças do Brasil.

é pesquisadora do Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

ANA MARIA GALDINI RAIMUNDO 0DA

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LIVROS

A cinemateca brasileira - Das luzes aos anos de chumbo

Machado e Rosa - Leituras críticas

Fausto Douglas Correa Jr. Editora Unesp 294 páginas, R$ 46,00

Marli Fantini (org.) Ateliê Editorial 510 páginas, R$ 64,00

O livro aborda o conceito de cinemateca desde o surgimento das primeiras coleções de filmes até os dias atuais. O autor procura compreender as especificidades da experiência brasileira no panorama político e cultural do país, analisando o projeto político-pedagógico da instituição para o campo da educação e de políticas culturais entre 1952 e 1973.

A coletânea reúne estudos críticos produzidos por diversos autores especialistas na literatura de Machado de Assis e Guimarães Rosa. O livro alia o contexto de produção com a recepção das obras desses dois clássicos brasileiros trazendo artigos que acenam para novos enquadramentos e perspectivas de leitura.

Editora Unesp (11) 3107-2623 www.editoraunesp.com.br

Em torno de Joaquim Nabuco Gilberto Freyre A Girafa 336 páginas, R$ 21,00

Em torno de Joaquim Nabuco é uma coletânea de diversos artigos escritos por Gilberto Freyre (1900-1987), um dos autores que mais escreveram sobre o abolicionista Joaquim Nabuco. Estudioso da sociedade patriarcal, Freyre se dispõe a entender o drama pessoal de Nabuco, figura de transição entre a Monarquia e a República. A Girafa (11) 5085-8080 www.artepaubrasil.com.br

Vacina antivariólica -Ciência. técnica e o poder dos homens. 1808-1920 Tania Maria Fernandes Editora Fiocruz 144 páginas, R$ 20,00

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

A ÇJeografia do voto nas eleições presidenciais do Brasil: 1989-2006 Cesar Jacob, Dora Hees, Philippe Waniez e Violette Brustlein Editora Vozes I Editora PUC-RJ 168 páginas, R$ 45,00

Este livro é resultado do trabalho dos mais de 10 anos do grupo de pesquisadores franco-brasileiros que se dedicou a recolher, investigar e analisar os padrões de comportamento eleitoral, através do mapeamento dos resultados das cinco últimas eleições presidenciais, levando-se em consideração o país em seu conjunto. Editora Vozes (24) 2233-9000 www.vozes.com.br

Dicionário brasileiro de epônimos em medicina Osiris Costeira Editora Unifesp 560 páginas, R$ 100,00

O livro trata das ações de combate à varíola durante o século XIX e início do XX, com ênfase no processo de criação e atuação do Instituto Vacínico Municipal (IVM) do Rio de Janeiro, responsável por implantar no país a vacina antivariólica animal. A autora mostra os conflitos com a geração de higienistas liderados por Oswaldo Cruz.

Este dicionário oferece ao leitor quase 6 mil verbetes, trazendo, de cada médico ou cientista que emprestou seu nome a uma descoberta, os dados biográficos, a região de origem e o ano de nascimento e de morte. Além disso, traz ainda referências bibliográficas a cada verbete. Um livro de referência obrigatória.

Editora Fiocruz (21) 3882-9007 www.fiocruz.br/editora

Editora Unifesp (11) 2368-4022 www.fapunifesp.edu.br/editora

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FICÇÃO

O entusiasta do sistema decimal

FLÁVIO ULHOA CoELHo

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primeira vez que alguém se lembra de tê-lo ouvido contar essa história em público foi no dia de sua aposentadoria e ele tinha então os seus 67 anos de idade. Depois da merecida festa que os seus colegas fizeram, ele chamou a atenção de todos e, emocionado que estava, agradeceu a homenagem e ao final contou a história que iria determinar o seu cotidiano a partir de então. "Bom, vocês sabem que a mãe do Jorge Luis Borges morreu bem velhinha ..." "A mãe do Borges? Morreu? O Borges da ... da ... contabilidade? E ninguém me diz nada?", o Ernesto o interrompeu inconsolável, além de totalmente bêbado, e pôs-se a chorar convulsivamente. Diante do silêncio estupefato de todos os presentes, alguém cochichou algo no ouvido do Ernesto, que só então sossegou. Restabelecida a ordem, e quebrando o constrangimento criado, o homenageado continuou. "... pois bem, ela tinha 99 anos quando morreu. Em seu enterro, uma velha amiga do Borges chega-se a ele e diz que era uma pena que ela tivesse morrido com aquela idade, mais um ano e teria 100! Sabe o que o Borges respondeu?" Não, ninguém sabia. O silêncio imperava. "Vejo que a senhora é uma entusiasta do sistema decimal... foi a resposta do Borges" e, sem esperar reação alguma da audiência que ainda tentava assimilar a história, ele completou: "Eu também sou um entusiasta do sistema decimal. Nada me entusiasma mais hoje do que o sistema decimal! Vou homenageá-lo da forma que a mãe do Borges não conseguiu. Vou chegar aos 100 anos!" Um aplauso unânime se juntou aos gritos de hurra! Mas a verdade é que, pelo estado em que ele chegou ao

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final da festa, vomitando e cambaleante, não havia quem apostasse um níquel sequer que ele conseguiria cumprir a sua promessa. Mas o tempo passou e ele parecia cada vez mais jovem, cada vez com Ínais vitalidade. Fosse porque deixou de ir trabalhar naquele escritório insalubre por mais de dez horas diárias, todo o santo dia, fosse porque só então ele pôde se dedicar mais assiduamente às coisas que tanto gostava de fazer, o ponto é que ele foi ficando cada vez mais jovem. Muitos de seus amigos ficaram pelo caminho, um a um deixando de ouvir novamente esta história, a história que ele tanto gostava de repetir a cada aniversário seu. A mesma história, o mesmo entusiasmo. Com o passar do tempo, os amigos foram se acostumando com ela, já fazia parte da festa de seu aniversário, assim como o Parabéns a você ou o bolo de chocolate com cereja. Na festa de aniversário de seus 78 ou 79 anos, um de seus netos resolveu puxar um pique-pique: "E para o sistema decimal, nada?" "Tudo!!!" "E como é que é?" E o pique, a partir de então, foi também incorporado às celebrações de seus aniversários. Aos noventa, ele estava de namorada nova, já tinha enterrado suas duas ex-esposas, "as primeiras duas ...", ele dizia maliciosamente nas noites de pôquer, para deleite de seus amigos, sempre renovados na roda e cada vez mais jovens em comparação a ele. E saiu para viajar com ela por longos dois meses. Foi por esta época que todos os que o conheciam sabiam que ele iria sim conseguir cumprir o prometido em sua homenagem.


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E, de fato, cumpriu. No dia em que completou 100 anos de idade, ele reuniu todos os seus amigos, os parentes, e até os só conhecidos. Como sua história já era parte do folclore da pequena cidade em que morava, apareceram muitas pessoas que ele sequer conhecia, foram só para poder cumprimentá-lo, participar daquela homenagem histórica ao sistema decimal. O jornal da cidade publicou uma matéria toda especial, fazendo um paralelo entre a vida dele e o desenvolvimento do sistema decimal, entrevistaram até um matemático famoso da USP. E, em um canto, um grupo de conhecidos acertava as contas de uma antiga aposta que fizeram sobre se ele chegaria ou não àquela data. Quando o bolo especialmente confeccionado para a ocasião entrou na sala, um coral de crianças cantou, de surpresa e em primeira mão, o Hino do sistema decimal composto especialmente para a festa. O prefeito, que não pôde comparecer pessoalmente, mandou o seu melhor representante e a festa só ficou completa quando ele contou, mais uma vez, a história da mãe do Borges. Contou, desta vez, de forma tão emocionada que o próprio Borges, o da contabilidade, chorou de saudades de sua progenitora. Mas só ele sabia do esforço que foi chegar a esse dia. Se ele parecia cada vez mais jovem e entusiasta com o passar do tempo, a verdade é que, nos últimos dois ou três anos, uma dúvida o atormentava diariamente. Toda manhã, ele se olhava no espelho e se perguntava por que é que se impunha esta meta, afinal, e se seria capaz de cumpri-la. Só ele sabia que o ânimo que demonstrava ao conversar sobre isso com as pessoas era apenas de fachada, cada vez mais falso, inseguro que estava. Só o espelho sabia o peso que o sistema decimal passara a ser para ele. Já estava cansado, sentia-se cansado

e velho e ainda faltavam esses três, esses dois ou esse um ano, esses tantos meses, essas tantas semanas. Um dia, ele desabafou com uma amiga que, vez ou outra, trazia o seu almoço de domingo, mas ela não entendia o que o exasperava então. E o que o exasperava era a obrigação que ele se impôs tanto tempo atrás. Nestas horas, sentia medo de não poder cumpri-la, de morrer como um derrotado no final das contas, virar a eterna chacota dos sobreviventes, piada familiar nos almQços dominicais. Pequenas gripes, ele que nunca tivera nenhuma doença mais grave, traziam consigo sempre grandes preocupações, e a cada espirro, um sinal vermelho se acendia em sua mente. Sentia que não podia mais andar sozinho pelas ruas sem ser observado, percebia as pessoas falando dele a distância, se parasse de andar, por tolo motivo que fosse, parecia que todo o mundo também parava e segurava a respiração até ele se mover de novo. Aquilo estava pesando e pesando cada vez mais. Depois que o bolo foi cortado e ele recebeu os cumprimentos protocolares de todos, e depois de uns tantos discursos que teve que ouvir, ele olhou ao redor e, repentinamente, se sentiu aliviado. Com o peso de seus três dígitos nas costas, caminhou até o quarto que ele usava como escritório, sentou-se em sua poltrona de leitura e, na penumbra, sorriu o sorriso dos aliviados. E dormiu, e como dormiu, o sono dos justos, o sono dos centenários ...

FLÁ vro ULHOA CoELHO é diretor do IME- USP e escritor. Publicou os livros de contos: Contos que conto (1991), Ledos enganos, meras referências (1996) e Gambiarra e outros paliativos emocionais (2007). PESQUISA FAPESP 176 • OUTUBRO DE 2010 • 97


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