Educação, ciência e sociedade

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PeiqeT~nüisa FAPESP

ESPECIAL Educação, . . ciencia e sociedade /\

recentes mudanças nas administrações públicas federal e estaduais, garantidas pelas eleições de outubro, criaram um clima altamente propício para o debate aprofundado de temas cruciais para o desenvolvimento do país. Crescimento econômico, modelos de inserção na economia mundial, distribuição de renda, combate à fome e à exclusão social, difusão da justiça, combate à violência e à corrupção tornaram-se expressões assíduas nas discussões de brasileiros, de todos os níveis e formações, que mantêm viva a esperança de que é possível fazer deste país um lugar melhor para a vida de todos os seus milhões de habitantes. E a mantêm a despeito de todos os constrangimentos, dos formidáveis obstáculos nacionais e internacionais que a isso interpõe "um mundo globalizado, cuja essência filosófica é a do pragmatismo", como bem lembra o presidente da FAPESP, Carlos Vogt. Pesquisa FAPESP pretende contribuir para esse debate em curso no país e o faz, nesta edição, por meio de reflexões em torno de um tema - a relação entre educação, ciência e desenvolvimento - que de certa forma está no cerne das discussões políticas, econômicas, sociais e culturais que se difundem hoje pelo país. Os autores dos seis artigos que compõem esse encarte são especialistas com total autoridade para tratar do tema, até em razão das funções públicas que exercem e que os comprometem, exatamente, com políticas e ações de educação, ciência e desenvolvimento.

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ESPECIAL:

EDUCAÇÃO,

CIÊNCIA

E SOCIEDADE

CARLOS VOGT

Indagações por um novo humanismo o imperativo

da ética num mundo pragmático

década a de 1930 abre-se, na história do Brasil, um ciclo de estudos voltado para a nossa formação, incluindo aí aqueles traços próprios da formação cultural portuguesa e que permanecem essenciais para a interpretação da formação da cultura brasileira. São inúmeras as obras que incluem em seu próprio título o termo formação e todas elas, até hoje, de leitura indispensável para o estudo e o entendimento da história e da sociedade brasileiras. Em ordem cronológica: Casa Grande & Senzala: Formação da Família Patriarcal Brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado [r.; Formação Histórica de São Paulo (De Comunidade a Metrópole) (1954), de Richard Morse; Formação da Literatura Brasileira (1957), de Antonio Cândido; Formação Econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado; Os Donos do Poder: Formação do Patriarcado Nacional (1959), de Raimundo Faoro; Formação Histórica do Brasil (1962), de Nelson Wernek Sodré; Formação Política do Brasil (1967), de Paula Beiguelman; A Formação do Federalismo no Brasil (1961), de Oliveira Torres. Sob diferentes pontos de vista, este esforço intelectual de "ajuste de contas" com o passado, resultou positivo em alguns casos e, em outros, foi atropelado pelas transformações mundiais que, gestadas na e pela Segunda Grande Guerra, floreceram no longo período da Guerra Fria e acabaram irrompendo com a queda do muro de Berlim, no final dos anos 80.

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A nova ordem da economia mundial, sob a égide neoliberal da globalização, impõe aos países a abertura total de fronteiras para o livre trânsito das unidades de capital. No Brasil, a partir dos anos 90, os ventos das mudanças escancaram de fora as portas e janelas que se queriam trancadas para dentro: a abertura da economia às importações, a estabilização da moeda com a criação do Real e o estímulo à entra-

da de investimentos abrem definitivamente o país para as condições de plataforma de produção dentro do cenário globalizado das relações do capital. O esforço passa a ser, então, superar todo o legado de problemas sociais que se acumularam ao longo de nossa história. Duros desafios. Não só pela urgência e dificuldades em mudar as estruturas institucionais como pelas enormes diferenças que caracterizam a sociedade brasileira e pelo alto custo social que a adequação do país a essa nova ordem requer. Na base de toda essa construção está a tecnologia, em particular, as tecnologias da informação, o que reverte até mesmo o papel do conhecimento no processo de produção. Ao binômio capital/trabalho substitui-se a tríade capital/trabalho/conhecimento, que enfatiza um novo conceito: o do conhecimento útil. Converge-se, desse modo, para um mundo globalizado, cuja essência filosófica é a do pragmatismo e o desafio dessa pragmática mundializada é que a tornemos ética e social sobretudo aqueles que, humanistas, acreditamos na universalidade do homem e que temos de conviver com a globalidade da máquina e de seu protagonista mais espetacular, o computador pessoal e suas ações de informatização no quadro geral das tecnologias da informação. O computador é a máquina universal que emula o homem. A universalidade do homem impõe a oposição com o local, o regional e funda o próprio conceito de nacionalidade e de diferenças culturais entre nações. A universalidade da máquina funda a globalidade dos padrões culturais e anula as diferenças nacionais, criando a utopia asséptica da igualdade de oportunidades pela democratização do acesso à informação. O Brasil, desde a Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, aspirou integrar o conceito das nações, foi país de Terceiro Mundo, subdesenvolvido, país em desenvolvimento e, hoje, perfila-se entre os chamados de economia emergente. Para emergir efetivamente, precisa resolver problemas sociais que permanecem e jogar à altu-

CARLOSVOGT,poeta e lingüista, vice-presidente da SCPC, é presidente da FAPESP. Foi reitor da Unicamp de 1990 a 1994. 58 • MARÇO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 85


É possível continuar a conceber este equilíbrio harmonioso, caro aos humanistas, entre os elementos da tradição nacional e os da tradição humana, isto é, entre as culturas nacionais e a universalidade da cultura? É possível, efetivamente, evitar um antagonismo de valores tal que sobre os valores humanos e universais não se sobreponham valores particulares e nacionais? E os nacionalismos, de esquerda e de direita? E as guerras étnicas e religiosas que persistem em meio à mais fantástica transnacionalização da economia e dos padrões de comportamento social? E a violência gratuita e descontrolada das cidades, da ficção e da reali" Cumpre-nos trabalhar dade, das ruas, do cinema pela universalização e da televisão?

ra da competitividade que o xadrez das relações globalizadas impõe. Do país informado pelas novas tecnologias espera-se a formação de um Brasil quite com seu passado monárquico e colonial, pronto para os ajustes finos de suas estruturas institucionais e culturais, sintonizadas de vez com o conhecimento, a educação, as artes, a ciência, a tecnologia, a ética e a justiça social. É para esse amplo fenômeno de mudanças que devemos atentar.

III Num mundo de economia globalizada, de um pragmatismo financeiro a toda prova, de um finalismo utilitarista sem do acesso ao precedentes, de uma vioIV lência urbana e de uma conhecimento Alison Wolf, professor urbanização da violência para solucionar de educação na Universiincomuns, cabe ainda a dade de Londres, no livro oposição, presente em váa exclusão social" Does Education Matter? rias línguas e que remonMyths about Education and ta à antiguidade clássica, Economic Growth ("A Eduentre cidade (civitas, pólis) cação Importa? Mitos soe campo (rus, silva) como bre a Educação e o Crescimento Econômico"), a topônimos analógicos de civilizado, polido em propósito do sistema educacional britânico, chama oposição a rústico e inculto? a atenção para o risco de se tratar a questão apenas Podemos ainda acreditar, com Fernando de do ponto de vista quantitativo e dentro de uma lóAzevedo (A Cultura Brasileira, 6a edição, 1996), gica de causalidade simplista entre educação e que, seguindo a distinção de Hunboldt entre culcrescimento econômico. tura e civilização, vê na primeira uma espécie de Sem propósitos culturais, morais e intelectuais, vontade schopenhaueriana da sociedade em prea educação perde seu caráter civilizatório e reduzservar a sua existência e assegurar o seu progresso se a mero expediente de oportunidade, e mesmo atendendo não apenas à satisfação das exigências de oportunismo social na competição desenfreada de sua vida material, mas sobretudo e principalpelas vagas do mercado. mente as suas necessidades espirituais. Como esPara diminuir esse aspecto utilitarista da cultura creve o autor, "a cultura, [...], nesse sentido restrie da educação é preciso aumentar a oferta de trato, e em todas as suas manifestações, filosóficas e balho, reduzindo as conseqüências perversamente científicas, artísticas e literárias, sendo um esforço sistemáticas das economias globalizadas no que diz de criação, de crítica e de aperfeiçoamento, como respeito à distribuição de renda e à justiça social. de difusão e de realização de ideais e de valores esPara países como o Brasil, ainda em passo de pirituais, constitui a função mais nobre e mais feemergência, o problema se agrava, entre outras cunda da sociedade, como a expressão mais alta e coisas, pelo baixo índice de produção tecnológica e mais pura da civilização". (p. 34) de inovação competitiva nos mercados internacioEm outras palavras, é possível pensarmos, de nais, por falta de agregação de conhecimento, de fato, em um novo humanismo, já que tantos falam valor à maioria de nossos produtos de exportação. de um novo renas cimento ligado às descobertas Desse modo, cumpre-nos, mais do que nunca, da tecnologia e à economia globalizada, como o a todos os atores sociais ligados à educação e à proprimeiro esteve ligado aos descobrimentos geodução científica e tecnológica, governos, instituições gráficos, à internacionalização do comércio e aos de ensino e de pesquisa, agências de fomento, a soprogressos orgânicos das ciências, das artes e das ciedade civil, como um todo, trabalharmos pela unihumanidades? versalização do acesso ao conhecimento, com proÉpossível, apesar dos estudos de Walter Benjamin, postas eficazes para solucionar, em número e em continuar a crer que a aliança da cultura e da civiliqualidade, esta que é a expressão mais grave da alta zação, que os povos latinos batizaram de humanisconcentração da riqueza, de um lado, e da dissemimo, retomará o seu vigor explicativo e a força eficaz nação globalizada da pobreza material e do desesde seu poder positivo de transformação, de desenpero espiritual, de outro: a exclusão social. • volvimento e de aperfeiçoamento da sociedade? PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 59


ESPECIAL:

EDUCAÇÃO,

CIÊNCIA

E SOCIEDADE

ROBERTO AMARAL

A revolução possível Construir o conhecimento é prioridade

s Relatórios do Desenvolvimento Humano (1998 e 1999) divulgados pela Organização das Nações Unidas apontam um viés do desenvolvimento internacional que, há mais de 50 anos, desperta graves preocupações: os países industrializados, que concentram apenas 19% da população do planeta, detêm 86% do produto e do consumo mundiais; 82% da exportação de bens e serviços; 71% do comércio; 68% dos investimentos estrangeiros diretos; 74% das linhas telefônicas; 58% da produção de energia; 93% dos usuários da Internet. Enquanto isso, a outra banda, a dos 20% das populações mais pobres, onde nos encontramos, tem apenas 1% do produto mundial; 1% das exportações; 1% dos investimentos diretos e 1,5% das linhas telefônicas. Essa concentração cruel se repete no plano nacional. No Brasil, os 50% mais pobres, que detinham 18% da renda nacional em 1960, ficaram em 1995 com apenas 11,6%, enquanto os 10% mais ricos passaram, nesse mesmo período, de 54% para 63% na apropriação dessa renda. Nos últimos 30 anos, a concentração de renda só faz crescer. O fenômeno se repete nos desequilíbrios inter-regionais, igualmente dramáticos. Essas disparidades se manifestam, no lado real da vida dos grupos sociais, como desigualdades na esperança de vida ao nascer, no acesso precário à educação, à saúde, à habitação, ao saneamento, à limpeza urbana. E, nos últimos tempos, na precariedade radical do acesso à segurança pública e ao emprego. A distribuição da riqueza entre nações está fortemente correlacionada com o domínio da tecnologia. Em 1993, dez países já respondiam por 84% dos gastos em pesquisa e desenvolvimento, controlando 95% das patentes registradas nos Estados Unidos nas últimas duas décadas, assim como 80% das patentes concedidas nos países em desenvolvimento. Essa realidade - a exclusão tecnológica - preocupa muito a ONU. O Relatório para o Desenvolvimento Humano afirma que "a privatização e a concentração de tecnologias estão indo

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ROBERTOAMARAL,professor da PUC-Rio, é ministro da Ciência e Tecnologia.

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longe demais. As corpo rações é que definem a agenda de pesquisa e controlam seus resultados. Os países pobres correm o risco de ficar à margem desse regime que controla o conhecimento no mundo. Direitos de propriedade mais restritos impedem o acesso dos países mais pobres aos setores dinâmicos do conhecimento': Tudo isso em uma época proclamada como sociedade do conhecimento. A governabilidade das nações - ou seja, o quadro de regras, instituições e práticas estabeleci das para o comportamento dos indivíduos, das organizações e das empresas - está em risco, junto, obviamente, com a segurança dos países e das sociedades nacionais. Sem esse quadro jurídico-institucional fortalecido, alerta o mesmo Relatório, "os conflitos globais serão uma realidade no século 21 - guerras comerciais para promover interesses nacionais e corporativos, volatibilidade financeira detonando conflitos, o crime global inviabilizando a política, os negócios e a segurança". Nesse contexto, o Estado não pode se resignar à condição de instância reguladora das relações sociais, tampouco a de mitigado r das desigualdades sociais e protetor dos segmentos sociais mais desfavorecidos nesse esquema de repartição selvagem. A economia é cada vez mais economia da informação - já que a informação estruturada, a "indústria de convergência", é o elo condutor de todo o sistema produtivo. A construção do conhecimento, ao longo de toda a "cadeia produtiva" específica, há que ser, portanto, uma prioridade nacional permanente. É fundamental dotar o sistema educacional de capacidade efetiva para a qualificação da força de trabalho do país. Ainda mais sem a implantação de um sistema de C&T efetivamente inovador - e não apenas adaptador de novidades -, o Brasil não conquistará posição efetiva no mercado globalizado, podendo perder o controle do próprio mercado nacional, deixando ainda escapar no horizonte visível a perspectiva de superação da dependência do capital, do qual a tecnologia é a expressão mais refinada. O domínio da tecnologia só pode se dar com a existência, no país, de um corpo de técnicos e cientis-


C&T de 1% para 2% do PIE. O número de bolsas tas capacitados para a criação ou a assimilação dos seus princípios. A formação de recursos humanos e está sendo elevado substancialmente. São mais 4.328 bolsas de estudos para os programas atuais (de inia capacidade para identificar oportunidades estratégicas é condição sine qua non para esse domínio. ciação científica após-doutorado) e outras 10.250 para novas modalidades, como iniciação científica A preparação em C&T começa com a busca, ainda na escola fundamental, de jovens com talento para júnior para estudantes de ensino médio e bolsa a carreira e prolonga-se com a iniciação científica prêmio. Além disso, seus valores serão atualiza dos, se possível ainda este ano. nos cursos de graduação e de pós-graduação O nível de um país, nesse campo, é em geral meO reforço do sistema de C&T terá, ainda, um dido com base em indicadores que incluem o núprograma de implantação de laboratórios de ciênmero de doutores formados anualmente e a precia em todas as escolas públicas de ensino médio, sença da ciência nacional na visando a elevar a quabibliografia internacional. lidade da educação e Nossa presença nessa bibliomotivar talentos para a carreira científica. Esse grafia tornou-se significativa incentivo continuará nos a partir de 1970, com a cria" A determinação do níveis de graduação e de ção de cursos de pós-graduagoverno Lula é fazer ção: dos 377.381 trabalhos pós-graduação. dobrar, em quatro anos, publicados naquele ano em O desenvolvimento científico e tecnológico todo o mundo, 64 eram de o investimento brasileiros (0,017% do total é fundamental para o em C&T de indexado pelo Institute for 5cidesenvolvimento de entific 1nformation - 151). qualquer nação moder1% para 2% do PIB" Em 2000, dos 839.281 trabana. Por isso, tem um palhos indexados pelo 1SI,9.511 pel estratégico para o 0,13%) já eram de pesquigoverno do presidente sadores nacionais. EntretanLula. Assim, mesmo asto, a produção científica brasileira é ainda baixa: 53,3 segurando a mais ampla liberdade de investigação, artigos por milhão de habitantes em 1999, apenas seria temerário para uma política de Estado, que tem 44% da média mundial ou 6% da média americana. responsabilidades sociais, deixar-se conduzir erraDe todo modo, o crescimento da produtividaticamente por algum tipo de mercado. de científica brasileira deve-se ao número de proNeste governo, a política de C&T terá prioridades bem definidas, seguindo dois eixos: o estratégifissionais formados nos cursos de pós-graduação e ingressados no sistema de C&T: em 1991, formaco, que visa a garantir a soberania política do país, ram-se 1.750 doutores; em 2000, esse número salreduzir a dependência tecnológica e assegurar sustou para 5.344, com incremento de 305%. É poutentabilidade técnica ao desenvolvimento a médio co, todavia. Em 1992, quando o país formou em e longo prazos; e o de alcance imediato, que apoiatorno de 2.000 doutores, os Estados Unidos formará os programas de governos no atendimento às vam 39.754; a Alemanha, 21.438; e o Japão, 11.576. carências mais agudas da sociedade brasileira. No A meta projetada pelo governo do presidente Luís eixo estratégico, estão contemplados os ramos de P&D relacionados com energia, tecnologia da inInácio Lula da Silva para 2006 é a de que o país esteja formando pelo menos 10 mil doutores anualformação e aeroespacial, biotecnologia, nanotecnomente, número considerado aceitável pela comulogia. As ações de alcance imediato apoiarão prioridades como segurança alimentar e combate à fome, nidade científica. Mas é preciso ir além. O esforço para consolidar uma comunidade ampliação das exportações, fortalecimento - via científica brasileira realizou-se nos últimos tempos difusão tecnológica - das micro, pequenas e médias na contra-corrente dos gastos da União com C&T. empresas, geração de empregos, distribuição de O total de recursos aplicados pelo governo federal renda, aproveitamento sustentável dos recursos nanessa área, entre 1991 e 2001, variou entre US$ turais, substituição seletiva de importações de bens 1,40 bilhão e US$ 1,68 bilhão ao ano, diminuindoestratégicos para o desenvolvimento nacional, mese a relação recursos/pesquisador e instalando-se lho ria da infra-estrutura social básica e de serviços um tipo de concorrência em que coube aos jovens públicos, conservação do meio ambiente e do equilíbrio ecológico global e eliminação das desigualpesquisadores a pior parte do resultado, quanto a ingresso e permanência no sistema de C&T. O núdades sociais e inter-regionais. Será por esse caminho que o governo em geral mero de bolsas do CNPq teve uma redução da ordem de 9% entre 1996 e 1999, passando de 8.616 e a área liderada pelo MCT, em particular, tentarão para 7.836. Isso sem contar que os valores nomiconsolidar, sem pontos de estrangulamento, o cinais dessas bolsas estão congelados desde 1995. clo educação-tecnologia-desenvolvimento, garanA determinação do governo do presidente Lula tindo a soberania do país, a democracia e a elevaé fazer dobrar, em quatro anos, o investimento em ção dos níveis de bem-estar dos brasileiros. • PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 61


ESPECIAL:

EDUCAÇÃO,

CI~NCIA

E SOCIEDADE

JOÃO CARLOS DE SOUZA MEIRELLES

A mais urgente tarefa Os que não tiveram formação precisam de trabalho

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O que FAZER para o Brasil CRESCER?

Focar na produção rural com valor agregado; centrar esforços nas exportações; desenvolver tecnologia acessível e certificar a qualidade dos produtos; investir em infra-estrutura; tudo para cumprir a mais urgente tarefa hoje: oferecer trabalho.

tema é absolutamente instigante e nos leva a olhar para o futuro. Mas o primeiro passo para se pensar o Brasil de hoje é mergulhar numa análise crítica do processo histórico do nosso desenvolvimento, sobretudo nos últimos 50 anos. Na década de 50, o Brasil iniciava sua consolidação como nação industrial, a partir do que já havia sido feito pela iniciativa privada ao longo da nossa história econômica - já a partir da segunda metade do século 19 as atividades industriais se desenvolvem, ganhando força no início do século 20. Nos anos 20, quando a indústria de alimentação se impôs, e nos anos 30, quando houve um surto industrial com crescimento médio de mais de 100% ao ano, preparamos o terreno para importantes realizações na década de 40 - como o aparecimento de companhias como a Siderúrgica Nacional e a Vale do Rio Doce e, principalmente, da usina de Volta Redonda. A criação do BNDE, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, já anunciava, em 1952, o espetacular salto que o país daria com o governo Juscelino Kubitschek, que implantou todo um programa de organização do processo industrial brasileiro. Embora criticado pela ausência de uma verdadeira política industrial e pela forte presença do capital estrangeiro em sua gestão, Juscelino realmente promoveu o processo de industrialização

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do país - com tal impacto a ponto de disparar, simultaneamente, como decorrência natural, o setor comercial e o de serviços. Toda política de desenvolvimento do país nos últimos 50 anos esteve focada no urbano, essa é a questão. Fundamentalmente, privilegiou-se o industrial, o comercial, os serviços, as atividades desenvolvidas longe do campo. Isso produziu dois efeitos perversos. Primeiro, um lamentável fator cultural: tudo o que é rural é atrasado; esse conceito se tornou uma crença difícil de combater. Segundo, uma fortíssima migração não só do campo para as pequenas e médias cidades, mas também dessas para as regiões metropolitanas do Brasil inteiro. No entanto, enquanto isso, sem que houvesse qualquer esforço nesse sentido, a agricultura e a pecuária se desenvolviam de forma extraordinária. Tanto que em 2002 nada menos de 43% da balança de exportações do país se refere ao produto do agronegócio (agropecuária + agregações de valor) - sem dúvida, o negócio do Brasil. A partir de meados da década de 80, com a globalização, a empresa brasileira, voltada tanto para o mercado interno quanto para o externo, foi submetida a uma inédita exposição à competitividade internacional. Apoiada na formidável expansão dos meios de comunicação e de transporte, a globalização se deu num cenário de automação, Todo o processo de auto mação na indústria e no comércio ocorreu paralelamente à exigência de alto grau de capacitação para os agentes do setor de serviços, invadido por autoserviços resultantes da informatização. A incorporação de tantas novidades ao processo produtivo levou à drástica redução do emprego "urbano", criando o desemprego estrutural nos países de economia desenvolvida e gerando conseqüências ainda mais nefastas nos países economicamente menos saudáveis. Se a indústria brasileira não é mais a mesma, o operário brasileiro também não: ele hoje precisa de uma série de capacitações insuspeitas em

JOÃOCARLOSDESOUZAMEIRELLESé secretário de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo e está empenhado em implementar um novo modelo de desenvolvimento para o Estado. 62 • MARÇO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 85


física, mas como um complexo que inclui a mãomeados do século 20, nosso ponto de partida de-obra qualificada para o exercício das diversas nesta avaliação. A robótica substituiu o homem, etapas produtivas, das mais simples às mais sofisa alta tecnologia comprometeu a necessidade de ticadas. Em várias regiões brasileiras, como em mão-de-obra. E não apenas na indústria, é claro. São Paulo, a potencialidade da produção rural Estamos falando de alterações fundamentais em está limitada ao atoleiro na estrada: produz-se todos os setores da economia: muito menos traapenas o que pode ser transportado na seca. balhadores produzindo muito mais, com graus Investir em infra-estrutura (a estrada rural, a de eficiência cada vez maiores. O grau de dificulponte rural) é requisito básico para a viabilidade dade para a inclusão de novos trabalhadores no econômica de produtos alternativos, para a amprocesso produtivo moderno se espelha no grau pliação do leque atual. Ainda assim, não basde desemprego atual do país. E vice-versa. ta. É preciso ir além, A resposta para esse no âmbito da infra-esquadro é contundente: ter trutura, e criar condia humildade de entender a ções para operações de urgência de oferecer trabaagregação de valor, de lho para aqueles que não " Queremos um modo que se possa, tiveram preparação profisdesenvolvimento nos municípios ou nas sional adequada. Isso imsustentável regiões, fazer seleção, plica análise da estrutura classificação e embalada produção rural brasileisob todos os pontos gem de produtos in ra - hoje extremamente de vista, natura; transformar os competitiva, mas exportaprodutos destinados dora de matéria-prima. inclusive o social" à agroindústria com Aí está o primeiro pontoda a tecnologia que to. Sobre a extraordinária permita a certificação competência do setor rural da sua qualidade está brasileiro é possível estabelecer porteiras virtuais nos municípios e nas renessa chave. A mencionada qualificação do trabalhador giões do interior do país para proceder à máxima implica um fator extremamente importante. Esagregação de valor, por meio da transformação tamos falando de educação - no mais amplo sende produtos - quer para consumo in natura, quer tido, envolvendo ensino convencional, escolas para a industrialização. Os produtos devem sair técnicas, universidades públicas, faculdades de prontos e acabados das áreas de produção. Esse tecnologia. Temos urgência de uma arrancada no conceito embute um gigantesco potencial de insistema educacional como um todo, com um corporação da mão-de-obra que hoje está vivenexemplar aumento de vagas e que contemple a do na periferia das pequenas e microcidades do educação para o trabalho, a fim de garantir mãointerior do Brasil. de-obra capacitada para o sistema produtivo nos O segundo ponto: é imprescindível uma obmoldes propostos. jetiva e obstinada concentração no comércio exPara concluir, uma abordagem final. A susterior. A crise por que passa o mundo e o Brasil tentabilidade do desenvolvimento econômico não está permitindo o aumento do consumo indeve se dar não apenas em relação ao meio amterno a fim de gerar novos postos de trabalho. Só a exportação pode criar um círculo virtuoso, biente; queremos um desenvolvimento sustentável comprometido com as gerações futuras e sob porque amplia de imediato o mercado de trabatodos os pontos de vista, inclusive o social. Oblho e, ao mesmo tempo, ao incorporar os trabaviamente, o sistema de geração de inovação inslhadores alijados, gera novos consumidores no mercado interno. Portanto, há um duplo efeito talado no país deve disponibilizar ao mercado as tecnologias necessárias à produção harmoniosa benéfico do esforço exportador. com o sistema ambienta!. Mas o centro das nosPara que isso aconteça, entretanto, há um tersas atenções está no homem: o poder público ceiro ponto, do qual dependem os dois anteriores. É essencial um empenho profundo no desendeve trabalhar para melhorar a qualidade de vida da população - é uma questão de foco. Desenvolvolvimento tecnológico acessível e incorporável ao esforço exportador. Assim, pode-se garantir e vimento econômico implica desenvolvimento social, com a incorporação contínua e progressimelhorar a competitividade. Mais: pode-se ofeva de novos agentes ao processo, com redistribuirecer a indispensável certificação de qualidade ção de renda, com acesso ao mercado de bens e dos produtos - sejam de eletrônica de ponta, sejam de origem rural. serviços de maior parcela da população, antes excluída. Em outras palavras, o Brasil só pode cresO quarto e último ponto, a vertente que fecha cer com a melhoria da qualidade de vida de cono círculo virtuoso pretendido, é a infra-estrututingentes cada vez maiores da população. • ra. Ela deve ser entendida não só como uma rede PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 63


ESPECIAL:

GABRIEL

EDUCAÇÃO,

CIÊNCIA

E SOCIEDADE

CHALITA

o poder de fogo da educação A chance de formar atores sociais talentosos

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gun:~spalavra~ têm o poder de traz~r COnSigO uma imensa carga de sentimentos, emoções, expectativas, sonhos, desejos e quereres. São, a um só tempo, misto de poesia, de filosofia, de arte ... Expressá-Ias e professá-Ias pode significar a mudança, a transformação, a transcendênda. A junção de suas sílabas tem uma força capaz de mudar o mundo e, em casos extremos, funciona como um artifício bélico do bem, utilizado pelos desbravadores de novos tempos e pelos descobridores de novos caminhos. São armas que injetam ânimo, coragem, sensibilidade, talento. Dessa forma, podemos definir o amplo leque .de sentidos e potencial idades da palavra educação, cuja beleza está em desvendar novos amanhãs e promissores horizontes. A todos nós, educadores, foi concedida a oportunidade de contribuir para promovê-Ia, transmitindo e propagando o desejo pelo conhecimento. Colaboramos para a criação de realidades mais belas e mais condizentes com os nossos sonhos. Faz parte da natureza humana querer sempre o melhor. Buscar a evolução, o desafio, a superação de limites. Façanhas impossíveis sem a educação como fundamento e passaporte. Ciente da grandiosidade dessa missão e de tudo o que ela pode proporcionar, o governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado da Educação, tem trabalhado para fazer da rede estadual de ensino uma ponte capaz de levar nossos 6 milhões de alunos à aquisição de saberes, de competências e de habilidades capazes de torná-Ios cidadãos críticos e conscientes, aptos- à construção de um futuro erguido sobre os pilares da infinita capacidade humana (que deve ser desenvolvida, incentivada e constantemente aguçada). Nossos programas, projetos e ações têm o objetivo primeiro de despertar mentes e corações para o prazer do aprendizado, da revelação, da epifania que caracterizam o fascinante processo da descoberta. Está sob nossa responsabilidade , . .

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formar atores sociais talentosos, com maturidade intelectual e emocional suficiente para alcançar não apenas o sucesso profissional, mas a felicidade plena, em todos os aspectos de suas vidas. Todos os nossos alunos compõem um complexo contingente educacional, mas, ao mesmo tempo em que formam um grupo, uma coletividade, são também seres únicos, dotados de histórias de vida singulares, ricas e de natureza incomparável. São meninos e meninas, crianças e jovens provenientes das mais diversas realidades e origens. Muitos vivenciam uma infância e uma adolescência repleta de amor, de cuidado, de atenção e de incentivo de suas famílias. Outros, no entanto, sobrevivem a duras penas numa atmosfera densa, pesada, em nada parecida com o que deveria ser o aconchego e a proteção de um lar estruturado. São desprovidos dos referenciais mais básicos.e têm por alimento da alma apenas a esperança depositada em dias melhores. Felizes ou apenas esperançosos têm, como todos nós, carências, problemas, alegrias, vontades, medos, posturas e os mais heterogêneos sonhos. Some-se a isso o fato de estarem atravessando uma fase de formação, de intenso aprendizado, de dúvidas, de questionamentos, de buscas incansáveis ... Têm o privilégio, e também a grande responsabilidade, de ter todo um futuro pela frente. Nesse sentido, nossas políticas públicas educacionais levam em consideração, em primeiro lugar, as necessidades mais básicas desses cidadãos do futuro: a compreensão, o respeito por suas diferenças, por seus valores e pela história pessoal de cada um. O desempenho, o sucesso e a ampliação do potencial dos aprendizes dependem de nossa sensibilidade para vê-los como seres humanos e não apenas como números registrados nas listas de chamada. Por meio dessa prática, nós, educadores, poderemos ter a chance de ir além e de também aprender com nossos educandos. Sem essa troca essencial, estamos condenados a perder o

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GABRIELCHALITA, professor, é secretário de Estado da Educação de São Paulo. Doutor em Direito, Comunicação e Semiótica, e autor de 34 livros. 64 • MARÇO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 85


brilho, a seiva, o norte ... Educar é, sobretudo, nunEm todas as capacitações, encontros, visitas às ca deixar de aprender e de acreditar. escolas e conversas com os representantes da categoria, sempre ressaltamos a importância da aliO primeiro passo para fazer da educação uma possibilidade real para todos já foi dado na medida ança entre o aperfeiçoamento técnico do professor e a solidificação de uma postura afetiva em em que promovemos a universalização do ensino. sala de aula. Queremos que nossos aprendizes enOs números mais recentes apontam um total de 99% de crianças freqüentando a escola no Estado xerguem no mestre um exemplo a ser seguido, um amigo com quem possam contar e não uma de São Paulo. Uma vez garantido o acesso aos banautoridade acima do bem e do mal. cos escolares, nossos esforços convergem diretamente para as melhorias nas condições de aprendiNas escolas, muitos programas e projetos têm favorecido essa prática mais afetiva e integrada. zagem - decorrentes do reflexo direto da mudança de filosofia da cultura esOs alunos sentem-se incolar. Agora, singramos centivados a participar, a os mares de forma mais descobrir e a mostrar seus talentos. Por isso, é funhabilidosa porque navegamos com um lema codamental que a comuni" A evolução, mum a todas as nossas dade do entorno escolar a superação de limites rotas: "todo professor é e da sociedade como um são façanhas impossíveis capaz de ensinar, todo todo prestigie os eventos aluno é capaz de aprenconstantemente promosem a educação vidos pelos estabelecimender". E o inverso é absocomo fundamento lutamente verdadeiro. tos de ensino. Foi o que a Um lema que nos faz secretaria - juntamente e suporte " respeitar, por exemplo, o com a população que ritmo próprio de aprentransitava pelo Centro de São Paulo - fez durante o dizado e de assimilação de conteúdos de cada esmês de dezembro de tudante. Um direito do indivíduo que vinha sen2002. Nossos funcionários uniam-se aos populares, sempre ao meio-dia, na Praça da Repúblido relegado, mas que ganhou força com a implantação, em janeiro de 98, do regime de progressão ca, para prestigiar os corais natalinos de dezenas continuada da aprendizagem, que possibilita o de escolas estaduais provenientes das mais diversas regiões do Estado. avanço contínuo dos alunos ao longo do percurso escolar, organizando o Ensino Fundamental em O programa dos corais nas escolas, bem como dois ciclos de quatro anos cada. Para ampliar os aqueles ligados à música clássica, ao teatro, ao cibenefícios dessa prática aos estudantes de níveis nema, à criação de bandas e fanfarras, à preservamais avançados, adotamos a flexibilização do curção do meio ambiente, ao exercício dos direitos e rículo no ensino médio, permitindo a matrícula deveres do cidadão - fortalecimento e reativação dos grêmios, campanhas comunitárias, combate por disciplina e evitando que o aluno refaça comàs drogas e à violência, etc. - têm propiciado uma ponentes nos quais foi bem-sucedido. Nessa viagem de importância histórica, a socierevolução verdadeiramente positiva na vida dos dade civil organizada tem sido nossa grande comestudantes. panheira. Empresas, igrejas, ONGs, universidades, Programas como Parceiros do Futuro, Comuentidades e associações variadas têm contribuído nidade Presente, Prevenção Também se Ensina, para que nossos alunos e professores desfrutem Escola em Parceria, Mutirão da Cidadania e Prouma formação intelectual, física e emocional sóligrama Profissão estão, na verdade, plantando seda, com direito ao esporte, à cultura, ao lazer, à mentes e oferecendo não só para São Paulo, mas arte, à profissionalização, à saúde e, enfim, à conpara todo o Brasil, a chance de ter, num futuro quista de uma vida melhor. breve, uma colheita digna dos anseios e do trabaJuntos, temos viabilizado a capacitação conslho de todo o seu povo. tante dos educadores por meio de cursos, palesQue as nossas palavras, corroboradas - e impregnadas - pela verdade impressa em nossas tras, teleconferências e congressos. Em dezembro, por exemplo, presenciamos a formatura de ações, possam colaborar para a discussão, para o 7 mil professores pelo programa PEC - Formadebate e para a reflexão em torno dessa educação afetiva e eficaz. Uma educação que privilegia a ção Universitária, programa de educação continuada, cujo objetivo é fornecer aos professores criação de gerações mais capacitadas, tanto para contribuir para o desenvolvimento e o progresso efetivos no ensino da 1" à 4" série, com formação de nível médio, de mais de 2 mil escolas de enda ciência quanto para desfrutar todos os seus benefícios. Uma educação que oriente e funcione sino fundamental do Estado, a oportunidade de como a bússola que desvenda as infinitas maneiras formação em nível superior fornecida pela USP, Unesp e PUC-SP. de navegar, com sucesso, pelos mares da vida. • PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 65


ESPECIAL: EDUCAÇÃO,

CIÊNCIA

CARLOS HENRIQUE

E SOCIEDADE

DE BRITO CRUZ

Uma nova mentalidade em formação Sistema tripartite

azões históricas talvez não sejam suficientes para explicar por que algumas sociedades conseguiram, em poucas décadas, sair da pobreza e mover-se em direção a uma relativa riqueza, enquanto outras seguem patinando no charco de economias pouco eficientes ou até mesmo conhecem a experiência do empobrecimento depois de um período de prosperidade. Charles I. Iones (Teoria do Crescimento Econômico), economista da Universidade de Stanford, prefere colocar a questão em outros termos: "Por que algumas economias desenvolvem infra-estruturas que são extremamente propícias à produção e outras não?': A resposta de Ienes, quase uma tautologia, dificilmente deixará de fazer sentido: as sociedades desenvolvidas investem mais no conhecimento, e as pessoas que integram seu setor produtivo destinam muito mais tempo ao aprendizado de novas técnicas e tecnologias. Por isso, para além de "razões históricas", não há nenhum determinismo na maneira pela qual as nações mais avançadas chegaram a seu alto grau de desenvolvimento, abundância e bem-estar. Para [ones, uma vez que entre em jogo o fator conhecimento, há sempre "a promessa implícita de que a vitalidade [do crescimento econômico 1 esteja apenas adormecida nas regiões mais pobres do mundo': O advento da Internet e da Teia Mundial (a World Wide Web) escancarou as portas da informação e tornou óbvio o primado da ciência, da tecnologia e da cultura como elementos fundamentais para o desenvolvimento econômico e social. Já sabiam disso os chineses do século 14, quando a China chegou a ser a sociedade tecnologicamente mais avançada do mundo graças a um incomparável domínio das técnicas de manufatura no campo da náutica, da tecelagem, da impressão, da fundição e outros. Foi também graças à pesquisa sistemática e ao conhecimento acumulado em navegação oceânica que Portugal, uma comunidade de 2 milhões de habitantes cujo governo tinha a pretensão de dominar o comércio de

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para C& T avança no país

especiarias, tornou-se uma das nações mais poderosas dos séculos 15 e 16. Que essas nações tenham perdido sua hegemonia tecnológica ao longo dos séculos, é outra história. David Landes, historiador do desenvolvimento econômico, destaca em seu A Riqueza e a Pobreza das Nações que a invenção da invenção, isto é, a sistematização do método científico e da atividade de pesquisa a partir do século 18, foi um dos grandes ingredientes para uma revolução industrial na Europa e para o desenvolvimento que se seguiu. Tornaram-se mais ricos os países que souberam criar um ambiente propício à criação e disseminação do conhecimento e a sua aplicação na produção. A "invenção da invenção" no século 18 foi seguida pela "descoberta da invenção" na segunda metade do século 19. A nascente indústria química alemã percebeu, por volta de 1870, que para o desenvolvimento de seus negócios e a manutenção de sua competitividade era necessário que a empresa tivesse uma capacidade de invenção própria. O Estado alemão percebeu também que precisava garantir o direito de propriedade intelectual àqueles capazes de terem idéias, e unificou e vitaminou sua lei de patentes em 1877. O respeito à propriedade intelectual e a percepção da importância do conhecimento levou ao nascimento dos primeiros grandes laboratórios industriais: Basf, Hõechst e Bayer foram as empresas que primeiro descobriram o poder das idéias e da invenção, transformando essa atividade a de desenvolver conhecimento - num fator essencial, permanente e profissional dentro da empresa. Do outro lado do Oceano Atlântico, e na mesma época, Thomas Edison e Alexander Graham Bell começavam a criar, com suas invenções, o que viria a ser a moderna indústria eletrônica. Pelo final do século 19, com muitas das importantes patentes de Edison expirando, a General Electric, que ele criara, percebeu que precisava profissionalizar e intensificar seu esforço de criação de idéias e conhecimento: em 1900, inaugurou o General Electric Research Laboratory em Schenectady, NY. Hoje a equipe de cientistas e engenheiros do Cen-

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ é reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) 66 • MARÇO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 85


a indústria não absorve mais que 10% dessa qualitro de Pesquisas e Desenvolvimento da GE tem 1.130 pessoas. O "filhote" de Bell demorou mais a ficada força de trabalho. Essa disparidade explica o florescer - no dia de Ano Novo de 1925 foram alto volume de patentes coreanas depositadas em inaugurados em Manhattan os Laboratórios Bell, escritórios americanos no ano passado - mais de 3.400, contra apenas 113 patentes brasileiras. outra usina de idéias e invenções que mudou nosAqui vale a pena mencionar novamente Ienes so mundo: ali foi inventado o transistor em 1948. quando diz que "o estoque de qualificação nos paíÉ notável que na teoria econômica sobre o deses em desenvolvimento é tão baixo porque as pessenvolvimento o conhecimento só passe a figurar como elemento explícito a partir da Nova Teoria soas qualificadas não conseguem auferir o retorno 'de Crescimento estabeleci da por Paul Romer, de pleno de suas qualificações': Essa realidade é ainda Stanford, e seus colaboradores, a partir de 1987. Até mais impressionante quando se considera a massa então o conhecimento era industrial brasileira considerado uma variável mais significativa que a externa à teoria econômica, coreana - e, não por acaso, a relativamente embora vários autores subaixa competitividade pusessem seu efeito sobre a " Para que se consolide, dos produtos brasileiprodutividade do trabalho. o arranjo sistêmico entre ros. Não só a capacidaUm destes foi Robert empresa, universidade de empreendedora, mas Solow, professor do MIT, também a política nacipremiado com o Nobel de e governo precisa Economia em 1987. Solow, onal para a ciência e ser tomadocomo no final dos anos 50, obsertecnologia estavam, até há pouco - digamos, vou que o crescimento da política de Estado " economia norte-americana até 1998 -, baseadas no fundamento equivocaao longo do século 20 não podia ser explicado apenas do de que o lugar da recorrendo ao crescimento inovação era a universido capital e da mão-de-obra disponíveis. Foi estadade, não a indústria. A partir dos últimos anos vem se impondo enbelecido assim que havia outras fontes de crescitre nós a idéia de que a inovação é um elemento mento econômico, denominadas em conjunto "refundamental do desenvolvimento econômico, e de síduo de Solow". No caso dos EUA, um terço do crescimento anual da renda per capita deriva, que a indústria é o lugar privilegiado de sua materialização, À universidade cabe desenvolver C&T, Solow mostrou, dessas outras fontes. Aqui entra mas seu papel principal é o de formar pessoas quao conhecimento no jogo do desenvolvimento. Romer desenvolveu o modelo básico da Nova lificadas que vão gerar o conhecimento necessário para a inovação. Finalmente, o fato relevante dessa Teoria do Crescimento considerando que o conhecimento afeta a produtividade do trabalho. Por mudança foi a entrada em cena de um terceiro ator isso, 1 milhão de trabalhadores-com acesso ao co- o governo - com uma política facilitadora que vá nhecimento mais moderno produzem mais do dos incentivos fiscais ao uso do poder de compra que 1 milhão de trabalhadores sem esse acesso. do Estado para viabilizar projetos de P&D no interior das empresas. Tem sido assim até mesmo (e Conhecimento só pode ser gerado e ser acessível quando há pessoas educadas para isso. Sua insobretudo) nos Estados Unidos, onde se calculam clusão como variável de destaque para o desenvolgastos anuais de US$ 20 bilhões em compras tecnológicas pelas agências governamentais. O apoio vimento econômico traz para a teoria econômica a estatal tem-se revelado um círculo virtuoso em educação e a cultura como parâmetros deterrnique cada dólar investido pelo Estado corresponde, nantes do desenvolvimento de uma nação. em geral, a outros US$ 9 aplicados pela empresa. A escolaridade média do brasileiro, de apenas cinco anos, não nos ajuda a ter mais competitividaPode-se concluir, com algum otimismo, que está se formando no país uma mentalidade capaz de lede. Formar 6 mil doutores por ano poderia ajudar mais, se empresas usassem uma fração apreciável var a empresa a investir no conhecimento para audesses doutores para criar idéias e gerar inovação mentar sua competitividade, dando maior sentido ao papel formador da universidade e compelindo na empresa e competitividade. Enquanto os doutores brasileiros têm tido seu mercado restrito ao o Estado a cumprir sua função de todos os tempos, meio acadêmico e ao setor público, os doutores coque é a de criar um ambiente propício à geração e reanos vão engrossar as fileiras de cientistas na inà disseminação do conhecimento e à sua aplicação dústria. Com efeito, dos 90 mil cientistas de que a na produção. Para que isso se consolide é preciso que esse arranjo sistêmico tripartite se torne efetiCoréia dispõe - praticamente o mesmo número de cientistas disponíveis no Brasil-, cerca de 80% devamente uma política de Estado, e não de governos dicam-se a fazer pesquisa e desenvolvimento (inoque se sucedem; e que não haja interrupções que vação, portanto) na indústria, enquanto, entre nós, ponham a perder o que já foi feito. • PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 67


ESPECIAL:

SERGIO

EDUCAÇÃO,

CI~NCIA

E SOCIEDADE

M. REZENDE

o desafio da inserção na sociedade C& T precisa entranhar-se na cultura nacional

momento o em que os Estados Unidos da América, respaldados pelo poderio militar e riqueza econômica, impõem ao mundo seus caprichos belicosos, o Brasil praticamente não tem voz no cenário internacional. É clara a diferença entre as duas nações. Portanto, cabe indagar: por que dois países, com áreas e recursos naturais comparáveis, descobertos e colonizados na mesma época pelos europeus, chegam ao terceiro milênio com tamanha discrepância, sobretudo quanto às condições de vida de suas populações? Sem dúvida, um fator determinante dessa diferença é o domínio da tecnologia, que os americanos têm e nós não. Essa situação já é conhecida por parcela considerável de nossa sociedade, mas o que isso representa não é bem compreendido. Políticos, empresários e economistas em geral entendem como tecnologia apenas algo que pode ser comprado, e consideram nosso problema fundamentalmente econômico. Assim, a percepção geral é que a pesquisa e a inovação não estão ao nosso alcance, e que com políticas públicas adequadas o país poderia se desenvolver economicamente e, então, comprar a tecnologia que desejar. Ledo engano, tecnologia é conhecimento e, portanto, está intimamente ligada à ciência. Os americanos têm um formidável domínio tecnológico porque começaram a fazer ciência há muito tempo. Em torno de 1750, quando a ciência parecia restrita à Europa, Benjamin Franklin já realizava experiências de eletricidade e contribuía para a descoberta das leis de conservação de cargas elétricas. Franklin foi o primeiro físico americano e, além de pesquisador, foi militante político. Fundou um jornal que pregava idéias libertárias, foi deputado pela Filadélfia, e teve uma importante participação na redação da declaração da independência americana em 1776. Cem anos depois, os EUA já eram uma República Federativa independente, soberana e em rápido processo de industrialização. Os cientistas ame-

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ricanos realizavam experiências pioneiras e disputavam com os europeus grandes descobertas. Contribuíram muito para o desenvolvimento do eletromagnetismo na segunda metade do século 19, que resultou na invenção do gerador e do motor elétrico, responsáveis pelo uso da energia elétrica na iluminação e em inúmeras aplicações domésticas e industriais. Também inventaram o telégrafo, o telefone e o rádio, que revolucionaram as comunicações. Surgiram então os primeiros grandes empreendedores em tecnologia. Alexander Bell, inventor do telefone, criou uma empresa para explorá-lo comercialmente que, posteriormente, tornou-se a AT&T. Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica e o microfone de carvão para telefones, e criou a RCA. Bel e Edison não eram cientistas, mas sabiam que sem ciência suas empresas não poderiam competir e ganhar mercados. A AT&T e a RCA criaram centros de pesquisa e contrataram os primeiros Ph.Ds. formados em Harvard, MIT, Yale, etc. Mas, para consolidar seu domínio tecnológico, faltava mais ciência. Então a América abriu suas portas para os cientistas que fugiam dos perigos das guerras na Europa. O trabalho desses cientistas nos EUA foi essencial para dar um grande impulso ao sistema de C&T e à criação de um programa de formação em massa de pesquisadores por meio dos cursos de mestrado e de doutorado. A história da formação dos políticos e empresários de nosso país é muito diferente. Na época de Franklin o Brasil era dirigido por governadores gerais, ou vice-reis, que se revezavam no poder protegendo seus interesses pessoais e mantendo a colônia submissa. Nossos colonizadores portugueses não permitiam que aqui houvesse tipografias para imprimir panfletos, jornais ou livros, veículos essenciais para a educação e a difusão de idéias. Cem anos depois ainda vivíamos uma monarquia escravocrata. Nossos empresários eram os usineiros de cana-de-açúcar, os barões do café e os fazendeiros de cacau, que dominavam a política, protegendo os interesses da elite e atuando em sintonia com os

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M. REZENDE, físico, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, é presidente da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep

SERGIO

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detentores do capital internacional. Nossa indetria, possibilitando redefinir a inserção de nossa economia no sistema internacional. pendência não foi conquistada, mas consentida por razões que eram convenientes aos nossos doO Ministério da Ciência e Tecnologia terá paminadores. E foi assim que o Brasil se desenvolveu, pel importante no novo projeto nacional de desempre tolhido pelos interesses externos, com insenvolvimento e, com ele, a Financiadora de Esjustiça social e sem empresas que tivessem suas tudos e Projetos - Finep. Os planos para a Finep riquezas promovidas com base na educação, na na nova gestão ainda estão em fase de elaboração. ciência e tecnologia, mas sim na produção de proA Finep é parte integrante do MCT e vai trabadutos simples e na exportação de matéria-prima. lhar em estreita articulação com todas as unidaAté o século 20 aqui não havia universidades, nem des do ministério, em particular o CNPq. O MCT um sistema amplo de ensino básico, nem indústrias vai elaborar seu programa em articulação com nacionais. Nossa primeira outros ministérios e ouuniversidade, a USP, só viria tras agências e discutir a ser fundada em 1934. as propostas com a soO país só despertou ciedade. para o papel da ciência após Nos últimos anos a " Pesquisa e a Segunda Grande Guerra. Finep firmou-se como inovação devem O ensino de pós-graduação a Agência Nacional de ser massificadas foi institucionalizado na Inovação, aproximandécada de 1960 e o sistema do-se muito das emno sistema produtivo de financiamento da pespresas e criando diversos e o trabalho de P&D quisa e formação de pesprogramas para estisoal ganhou dimensão na mular o setor empresase tornar rotina " década de 1970. Assim, rial a aumentar suas atiapesar do atraso, o Brasil vidades de pesquisa e conta hoje com um coninovação. Esses progratingente de mais de 50 mil mas serão aperfeiçoados cientistas e engenheiros de alto nível, formando e ampliados, adequando-se à política industrial um complexo sistema de C&T, que é de longe o que será elaborada como parte do programa para maior e mais qualificado da América Latina. Pomudar o país. Essa política será capitaneada pelo rém, chegamos ao final do século 20 sem consoMDIC e pelo BNDES, e terá grande participação lidar o sistema de C&T, com fraca articulação do MCT. A Finep tem um papel importante a entre universidades, centros de pesquisa e emcumprir nesta nova política industrial, desde viapresas, e com poucas atividades de pesquisa e de bilizar financiamentos a empresas, combinando inovação tecnológica nas empresas. recursos reembolsáveis com recursos a fundo perEnfrentamos hoje, portanto, uma questão crudido, assim como incentivos fiscais e outros instrucial: os países sem tradição científico-tecnológica mentos. O firme exercício dessas atividades dará à estão condenados ao eterno subdesenvolvimento! Finep um forte poder de indução de atividades Alguns países asiáticos mostraram que não. Coréia voltadas para a pesquisa e inovação, essenciais para e Taiwan, por exemplo, acordaram para a educao aumento da competitividade. O que resultará ção, ciência e tecnologia apenas na década de 70, em uma participação ativa das empresas: absorver mas souberam fazer delas a base para o seu desenmais mestres e doutores e interagir mais com as volvimento e para multiplicar seus PIEs. Evidenteuniversidades. mente, o problema do Brasil é bem mais compleCabe à Finep ampliar suas ações junto às emxo. Nossa área geográfica e nossa população são presas ao mesmo tempo em que se reaproxima das muito maiores do que as da Coréia e Taiwan. Temos universidades e da comunidade científica, pois aí hoje, felizmente, um regime democrático, mas que reside o grande trunfo que o Brasil dispõe para que exige muita articulação e muito trabalho para conso conhecimento contribua decisivamente para o truir soluções coletivas. E a eleição do presidente Lula desenvolvimento do país. Em articulação com o representa o sinal para a mudança. CNPq, ela financiará programas de apoio às ativiÉ chegada a hora de tornar educação e C&T pidades da comunidade, desde a pesquisa básica à lares da agenda nacional e de um projeto de nação, popularização da ciência. Na execução desses procom soberania e com grande parte da população gramas, a Finep se tornará uma agência mais eficiinserida no sistema produtivo. Para isso, é necessáente em todos os sentidos, inspirando-se no exemrio que a pesquisa e a inovação sejam massificadas plo bem-sucedido da FAPESP. Contribuirá com no sistema produtivo e que a realização de trabatodo seu potencial para que o Brasil desenhe e colho de pesquisa e desenvolvimento se torne rotina loque em execução um projeto de nação, soberana em nossa sociedade. É preciso colocar como prioe com melhor distribuição da riqueza. É o que esridades a substituição de importações e o aumenperam milhões de pessoas que elegeram Lula preto do valor agregado dos produtos de nossa indússidente do Brasil. • PESQUISA FAPESP 85 • MARÇO DE 2003 • 69


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