E S P E C I A L prêmio
FCW
F u n d a ç ã o C o n r a d o We s s e l
CONSELHO CURADOR E DIRETORIA DA FCW Conselho Curador Presidente Dr. Antonio Bias Bueno Guillon Membros Dr. José Hermílio Curado Dr. Reinaldo Antonio Nahas Dr. José Antonio de Seixas Pereira Neto Stefan Graf Von Galen Dr. Homero Villela de Andrade Filho Dr. Lélio Ravagnani Filho Dr. José Álvaro Fioravanti Capitão PM Kleber Danúbio Alencar Júnior
Diretoria Executiva Diretor Presidente Dr. Américo Fialdini Júnior Diretor Vice-Presidente Dr. Sérgio Roberto de Figueiredo Santos e Marchese Diretor Financeiro Dr. José Moscogliatto Caricatti Diretor Administrativo Dr. Adilson Costa Macedo
Fundação Conrado Wessel Rua Pará, 50 - 15º andar Higienópolis - 01243-020 São Paulo, SP - Brasil Tel./fax: 11 3237-2590 www.fcw.org.br diretoria@fcw.org.br
índice
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FCW apóia instituições e premia arte, ciência e cultura
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Premiação é a maior já conferida por uma instituição no Brasil
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Confira todas as datas do Prêmio FCW de 2004
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Carlos Henrique de Brito Cruz se destaca na física e como articulador
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Ficção sofisticada de Lya Luft é sucesso de crítica e, cada vez mais, de público
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Inventor e empreendedor, Conrado Wessel criou a primeira fábrica brasileira de papel fotográfico
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Maria Inês Schmidt desvendou a origem inflamatória do diabetes
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Estudos de Dieter Muehe são essenciais para o litoral brasileiro
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Jairo Vieira criou variedades de cenoura que expandiram a cultura
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Philip Fearnside defende o desenvolvimento sustentado
Capa Hélio de Almeida - Fotos da capa: Maurício Torres (Meio Ambiente); Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem (Mar); Miguel Boyayan (Ciência Geral); Hélio de Almeida (Literatura); Sérgio Lima/Folha Imagem (Campo); Mari Cleide Sogayar/USP (Medicina)
Desejo
realizado Fundação Conrado Wessel apóia instituições filantrópicas e premia arte, ciência e cultura
A
Fundação Conrado Wessel (FCW) ainda é uma organização jovem, criada em 1994. Mas esses poucos anos de vida foram suficientes para cumprir fiel mente o desejo de seu idealizador, Ubaldo Conrado Augusto Wessel, de torná-la uma instituição que carreie recur sos com “objetivos filantrópicos, beneficentes, educativos, culturais e científicos”. Hoje seis entidades recebem uma doação anual relevan te que beneficia diretamente 1.600 jovens e crianças carentes e 320 adultos. A fundação oferece também, desde 2002, o maior prêmio destinado à arte, à ciência e à cultura no Brasil. Tudo isso sem ter uma empresa que vise ven der produtos com sua marca. A FCW existe para fazer filantropia e premiar artistas e pes quisadores ou institutos de pesquisa com traba lhos relevantes no país. As entidades que recebem doação são as Aldeias Infantis SOS do Brasil, o Colégio Benja min Constant, o Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Fundação Antônio Prudente, a Promoção Social do Exér cito da Salvação e uma instituição de ajuda a crianças carentes escolhida anualmente pelos dirigentes da FCW. Este ano, a unidade que cui da de crianças carentes do Instituto do Coração (Incor) foi a escolhida para receber o apoio da
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fundação. Em 2003 foram doados R$ 480 mil: em 2004, a doação é de R$ 640 mil. Os Prêmios FCW de Arte, Ciência e Cultura tiveram a primeira edição em 2002. A segunda edição, em 2003, destinou prêmio à Fotografia Publicitária, na categoria Arte. Em Ciência e Cul tura, os premiados foram pesquisadores em ciência e tecnologia e uma escritora. Nesses dois últimos quesitos, cada um ganhou um tro féu e R$ 100 mil – o maior valor para escolhas do gênero do país. No caso da Ciência, o siste ma de seleção dos ganhadores contribui signi ficativamente para sua credibilidade entre a comunidade científica. Os nomes foram esco lhidos a partir de indicações feitas por 24 uni versidades federais, cinco ministérios, três uni versidades estaduais paulistas, além do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e do Hospital do Câncer. Por todas essas características, a FCW acredi ta estar contribuindo para o incentivo de ativi dades que farão o Brasil maior e mais valorizado do que é hoje. A presente edição destina-se a divulgar as ações da fundação para o público interessado – no caso, prováveis candidatos aos prêmios no futuro –, contar a história de Conra do Wessel (na página 6) e apresentar os ganha dores do Prêmio FCW de 2003 (a partir da página 12), conhecidos este ano. • PESQUISA FAPESP
EDUARDO CESAR ARQUIVO CORPO DE BOMBEIROS DO ESTADO E SÃO PAULO
Jovem trabalhando com madeira na Assistência e Promoção Social do Exército da Salvação, apoiada pela FCW
Bombeiros brasileiros, apoiados pela FCW, em Sheffield, na Inglaterra: prêmio aos melhores profissionais
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ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 5
Retrato de um inv entor Conrado Wessel criou a primeira fábrica brasileira de papel fotográfico
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onrado Wessel era apaixonado pela ciência e pela arte. Inventor inato e empreendedor obstinado, criou a primeira fábrica brasileira de papel fotográfico, no início dos anos 1920, utilizando tecnologia desenvolvida e patenteada por ele. Conquistou um mercado até então dominado por fornecedores estrangeiros e formou um patrimônio imobiliário que, obede cendo ao desejo expresso em seu testamento, foi utilizado como lastro para criar uma funda ção que apoiasse atividades educativas, culturais e científicas de seis entidades e incentivasse a arte, a ciência e a cultura por meio de prêmios. A fun da ção foi ins ti tu í da em 1994, um ano depois da sua morte, aos 102 anos. Conrado Wessel nasceu em Buenos Aires, em 1891, filho de família tradicional de fabricantes de chapéus, em Hamburgo, na Alemanha, que imigrara para a Argentina, em meados do século 19, para se estabelecer como estancieira. No ano seguinte ao seu nascimento o pai, Guilher me Wessel, formado em física, migrou para Sorocaba e, posteriormente, para São Paulo, convidado a lecionar na recém-fundada Esco la Politécnica, no bairro da Luz. A paixão pela fotografia Conrado Wessel herdou do pai, que, paralelamente às aulas na Politécnica, adquiriu uma loja de material foto gráfico onde instalou um ateliê de fotografia, na rua São Bento. Ainda jovem, Conrado Wessel
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ganhou dois prêmios em concursos promovi dos pela Secretaria da Agricultura. O interesse pela fotografia levou-o ao estudo da química e, em 1911, Conrado Wessel foi para Viena, na Áustria. Lá aprendeu fotoquímica na K.K. Lehr und Versuchs Antstalt, renomada esco la de fotografia, especializando-se em clichês para jornais e revistas.Voltou ao Brasil, dois anos depois, certo de que o conhecimento adquirido na Europa não era suficiente para o seu “desen volvimento técnico e comercial”, como ele mes mo observou em uma breve autobiografia. Seu projeto era ambicioso: sonhava com a criação de uma fábrica de papel fotográfico nacional. Na época, os fotógrafos do Jardim da Luz, um dos principais locais de lazer da cidade, trabalha vam com uma câmera-laboratório: uma caixa de madeira com uma objetiva sobre um tripé. A câmera era dividida em duas partes. A inferior continha os banhos de revelador e fixador utili zados para o processamento químico de filmes e papéis. O papel utilizado era importado de fabricantes como a Kodak, Agfa e Gevaert. Para realizar seu projeto de produzir papel com qualidade equivalente ao do importado, e a preços mais baixos, Conrado Wessel matriculouse como ouvinte na Escola Politécnica.“Durante quatro anos fiz de tudo ali”, contou. “Desde a preparação do nitrato de prata até os estudos das diferentes qualidades de gelatinas. Da ação dos halogênios como o bromo, o cloro e o iodo
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FUNDAÇÃO CONRADO WESSEL
Conrado Wessel com aparelho fotográfico: paixão herdada do pai, professor da Politécnica
sobre o nitrato de prata. Fiz inúmeras experiên cias misturando o nitrato de prata ao brometo de potássio, ao cloreto de sódio e ao iodeto de potássio. Cheguei à conclusão de que a mistura de uma pequena dose de iodo ao bromo dava muito melhor resultado, assim como a adição do bromo ao cloro.” Depois de centenas de experi ências, Conrado Wessel chegou a uma fórmula satisfatória para o papel, cujas provas, como ele sublinhou, agradaram muito ao seu pai.
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próximo desafio era iniciar a pro dução. Faltavam-lhe no entanto dinheiro, máquinas e papel. As máquinas, ele adquiriu “por 8 con tos e 500” de um estudante de fotoquímica que, tal como ele, tentara fundar uma fábrica de papel fotográfi co. O negócio não tinha dado certo e o equi pamento estava disponível. As máquinas foram instaladas num pequeno prédio de proprieda de do pai, na Barra Funda, em 1921. “As fórmu las que eu havia elaborado pareciam boas, mas não poderia assegurar que seriam boas também na fabricação”, ele registrou, preocupado.
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Faltava-lhe, ainda, o papel necessário para os testes, já que no Brasil não havia nenhuma fábrica que pudesse fornecer o papel baritado. O materi al tinha que ser comprado na França, fabricado pela Rivers, ou na Alemanha, pela Scholler. Conra do Wessel saiu à cata de um importador.“Enquan to a encomenda não chegava, estudei como pen durar o papel emulsionado para secar no pequeno espaço de que dispunha”, disse. O acaso, ele reconheceu, ajudou-o a encon trar a solução. Conrado Wessel estava na Tape çaria Schultz, para a qual realizava um serviço de propaganda, quando lhe chamou a atenção o sistema de cortinas que se moviam por cordi nhas usadas pelos tapeceiros. Fez um croqui do sistema utilizado na Schultz e imaginou que, empregando método semelhante, poder ia secar mais de 100 metros de papel. O papel chegou e a pequena fábrica iniciou sua produção.“Foi um desastre”, resumiu Conra do Wessel. Não se aproveitou mais do que 10 centímetros dos 10 metros de papel emulsiona dos. Nova tentativa, nova frustração. O papel, ele descreveu, estava quase todo “eivado de peque nas bolhas e outras partículas indesejáveis”.
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Conrado Wessel foi premiado em concursos de fotografias no início do século 20
Parceria com a Kodak permitiu a construção de nova fábrica de papel fotográfico
Enquanto “matutava” sobre o problema, mais uma vez o acaso – e o olhar arguto – trou xe a solução. Conrado Wessel foi chamado à fábrica das Linhas Correntes, no Ipiranga, para exe cu tar um ser vi ço de cli chês. Sozinho no salão de espera, reparou numa pequena máqui na utilizada para passar goma no verso das eti quetas. Ele descreveu esse equipamento: “Ha via uma cuba e um rolo imerso dentro dela. Com a máquina em movimento, o rolo passava uma certa quantidade da solução, deixando estrias sobre o papel, que também seguia seu curso. Eureca, pensei, meu problema está resol vido”. Mais uma vez, fez um croqui e adaptou a máquina de emulsionagem ao modelo daquela utilizada para gomar etiquetas. E detalhou os resultados: “A máquina se resumia no seguinte: uma cuba de barro vidrado (naquela época não existia o aço inoxidável) cheia de emulsão e um rolo de ebonite que mergulhava nela. O
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papel passava entre um outro eixo fixo, regu lado como o rolo. Dessa maneira, as bolhas fica vam todas na cuba. Mais tarde esse sistema foi melhorado, com mais de um rolo de ebonite, tornando impossível o surgimento de bolhas sobre o papel. Fizemos novas experiências com pleno êxito. Vamos fabricar e vender”, come morou. Nasceu assim a Fábrica Privilegiada de Papéis Photograficos Wessel.
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onrado Wessel não imaginava, no entanto, que teria que enfrentar ain da a resistência dos fotógrafos, seus potenciais clientes. “Eles exper i mentaram o material, acharam bons os resultados, mas julgaram melhor continuar com o postal da Ridax, da Gevaert, apesar do preço do meu ser bem menor.” Foi nessa época que ele forjou o lema que o acom panharia por toda a vida: “Insista, não desista”.
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IMAGENS FUNDAÇÃO CONRADO WESSEL
Documento atesta “uso effectivo” do novo processo de produção de papel fotográfico patenteado por Conrado Wessel em 1921
Os negócios iam mal até que a sorte – ou talvez a história – reverteu o risco do fracasso. No dia 5 de julho de 1924, Isidoro Dias Lopes def lagrou o movimento conhecido como a Revolução dos Tenentes. São Paulo ficou sitia da, isolada do resto do país. Aos fotógrafos da Luz faltou papel importado. “Numa manhã de um dos primeiros dias de revolução, apareceu um deles em minha casa e perguntou se eu tinha postais para vender”, contou Conrado Wessel.A revolução abriu-lhe o mercado.Ao fim de 29 dias de cerco, os rebeldes se renderam. O fluxo de papel importado foi restabelecido, mas a fábrica de papéis criada por Conrado Wessel já tinha, definitivamente, conquistado a clientela que lhe permaneceu fiel. Os grandes fabricantes estrangeiros, como a Gevaert, tentaram ainda recuperar o mercado ofe recendo produtos mais baratos. Conrado Wes sel também baixou os preços.“Por incrível que
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pareça, estes postais mais baratos não foram aceitos pelos ambulantes. Nem os meus, nem os da Gevaert.”A produção brasileira cresceu, Con rado Wessel comprou um prédio maior, na mes ma rua, e consolidou sua posição no mercado. Não faltaram propostas de empresas estrangei ras interessadas em parceria com a agora prós pera fábrica brasileira de papéis, até que Conrado Wessel firmasse um contrato com a Kodak. Ficou acertado que a empresa norte-americana cons truiria uma fábrica nova em Santo Amaro, com maquinário moderno, que seria administrada por Conrado Wessel por um período de 25 anos ao fim do qual a fábrica e a patente passa riam à Kodak. Ao lon go des se pe rí o do, com o lu cro dos negócios bem administrados, Conrado Wessel comprou imóveis nos bairros de Campos Elíseos, Barra Funda, Santa Cecília e Higienópolis, que, no futuro, se tornariam o patrimônio da fundação. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 9
Prêmio para
ciência e cultura FCW distribui o maior valor em dinheiro já conferido por uma instituição brasileira
O
Prêmio FCW, lançado oficialmen te em 2002, tem como objetivo incentivar a arte, a ciência e a cultura. Na sua primeira edição, os prêmios na área de Ciências foram distribuídos por meio de concurso nas escolas da rede pública, no âmbito de uma parceria firmada com a Secre taria Estadual da Educação. A FCW distribuiu 18 computadores e R$ 150 mil entre as esco las, professores e alunos premiados. Na área de Literatura, a FCW premiou três autores inéditos, selecionados por críticos lite rários entre 94 concorrentes: Noêmia Sartori Ponzeto, com o romance Sonhos de galinhei ro; Maria Filomena Bouissou Lepecki, com Cunhataí – Um romance da guerra do Para guai; e Santiago Nazarian, com Olívio. O prê mio foi a edição da obra, com tiragem de 2 mil exemplares, com direito a noite de autógrafo no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Na segunda edição, em 2003, a premiação adquiriu novo formato para destacar o traba lho de pesquisadores e profissionais vincula dos a universidades e institutos de pesquisa. O prêmio foi dividido em seis categorias: Ciência Geral, Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, ao Campo, ao Mar, Medicina e Literatura. Para ampliar a participação dos cientistas, a FCW firmou acordo com entidades de fomento à ciência e tecnologia, entre elas a FAPESP, que
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passou a integrar a comissão de organização e avaliação das candidaturas. Os 118 candidatos que disputaram o Prê mio FCW em 2003 foram indicados por 32 universidades e centros de pesquisa brasilei ros. A lista com o nome dos indicados foi sub metida à avaliação de um júri formado por representantes da FAPESP, da Sociedade Brasi leira para o Progresso da Ciência (SBPC), da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Aca demia Brasileira de Letras (ABL), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aper feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Ca pes), do mi nis té rio de cada uma das áre as envolvidas – Cultura, Saúde, Agricultura, Meio Ambiente, Marinha e Pesca – e um represen tante da FCW. Os vencedores de cada categoria recebe ram um prêmio no valor de R$ 100 mil – o maior já conferido por uma instituição brasi leira – e uma escultura assinada por Vlavianos. O Prêmio FCW na categoria Ciência Geral foi conferido ao reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos Henrique de Brito Cruz. Engenheiro eletrônico e físico, Bri to foi premiado por sua pesquisa na área de física experimental, sobre fenômenos ultra-rá pidos, que ocorrem em menos de 1 picosse gundo (intervalo de tempo de 1 trilionésimo de segundo), além de lasers e semicondutores.
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Escultura do artista Vlavianos entregue aos seis ganhadores da edição 2003 dos Prêmios FCW, além dos R$ 100 mil
(Veja rep ort agens com os seis vencedo res a partir da pági na 12). Dieter Carl Ernst Heino Muehe, profes sor do Departamento de Geografia do Insti tuto de Geociências da Universidade Fede ral do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos pio neiros na pesquisa sobre a costa brasilei ra, ganhou o prêmio Ciência Aplicada ao Mar. O agrônomo Jairo Vidal Vieira, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), recebeu o prêmio Ciência Aplicada ao Campo por seu trabalho no melhoramento genético de hortaliças. O prêmio Ciência Aplicada ao Meio Ambi ente foi conferido ao biólogo Philip Martin Fearnside, professor norte-americano do Insti tuto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) e especialista na análise de impactos da agri cultura, pecuária, silvicultura e manejo flores tal na região. A descoberta de que a inflama ção crônica tem papel relevante no aparecimento do diabetes tipo 2 rendeu à endocrinologista Maria Inês Schmidt, da Uni versidade Federal do Rio Grande do Sul
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(UFRGS), o prêmio na área de Medicina. A escritora Lya Luft, autora de Perdas e ganhos e Pensar é transg red ir, ent re outros títulos, ganhou o prêmio de Literatura. Formada em pedagogia e letras anglo-germâni cas pela Pontifícia Uni versidade Católica do Rio Grande do Sul, Lya é mestra em literatura brasileira e portuguesa pela UFRGS. A cerimônia de entrega do Prêmio FCW 2003 foi realizada no dia 7 de junho de 2004 na Sala São Paulo, na capital paulista. Participa ram do evento o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e a secretária estadual da Cultura, Cláudia Costin, e o vice-almirante Marcelio Carmo de Castro Pereira, representando a Marinha, entre outras personalidades. Na edição 2004, a pre miação vai manter o mesmo formato da ante rior, identificando os pesquisadores que mais se destacarem nas seis categorias avaliadas. O nome do Prêmio Ciência Aplicada ao Mar será substituído por Ciência Aplicada à Água para ampliar a escopo do prêmio e permitir a can didatura de especialistas em estudos sobre recursos hídricos. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 11
CIÊNCIA GERAL
Carreira dupla
Além de física de laser, Carlos Henrique de Brito Cruz se destaca também como articulador de C&T
O
físico norte-americano Charles Townes, um dos criadores do laser, costumava ouvir dos colegas que sua descoberta era uma solu ção à procura de um problema. Isso ocorreu no começo dos anos 1960, quando não havia nem idéia das aplicaçõ es que essa luz possibilitaria. Naquele momento, o objetivo dos cientistas era apenas “entender, explorar e criar”, nas palavras do próprio Tow nes. Alguns anos depois, em 1976, três alunos de graduação do curso de engenharia eletrônica do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) leva ram ao pé da letra essa lição. Sem orientador, decidiram tentar desenvolver seu próprio laser, um objeto de estudo ainda relativamente novo. Como havia pou cos pro fes so res no país que conhecessem o assunto, recorreram à biblioteca e descobriram um texto na Scientific American que os ajudou no projeto.“Era uma seção chama da Amateur Scientist, que ensinava a fazer algu mas experiências científicas”, conta o engenhei ro e físico Carlos Henrique de Brito Cruz, atual reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os três jovens estudaram o assunto e conseguiram algo nada usual: sozinhos, desen volveram um laser de gás carbônico. Em seguida, publicaram um artigo e até criaram uma empre sa. O laser de gás carbônico servia para proces sar alguns tipos de material úteis para empresas. Um industrial que estava quase comprando uma
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máquina importada para queimar tubos de plás tico ficou sabendo da experiência no ITA e suge riu aos estudantes fazer o equipamento para ele. No Brasil, a solução tinha achado seu problema. “Como o instituto achou muito complicado fazer um convênio com ele, nós criam os uma empresa e construímos a máquina com o laser necessário para a fábrica.” O industrial pagou um terço adiantado, um terço quando eles termina ram de construir e o resto na instalação. Para Bri to, esse sucesso inicial foi um dos fatores determi nantes que orientou sua principal linha de pesquisa nos anos seguintes. Não pela aplicação imediata que a experiência teve, mas pelo apren dizado e fascínio que ela proporcionou. Este ano, Brito, nascido no Rio de Janeiro e criado em São Paulo, foi um dos ganhadores do Prêmio FCW na categoria Ciência Geral por sua contribuição ao estudo dos fenômenos ultra-rápidos, que aconte cem em um tempo menor que 1 picossegundo, ou seja, 1 milionésimo de milionésimo de segun do. “Cheguei aos fenômenos ultra-rápidos por causa do laser, só com ele é possível fazer experi mentações em períodos tão curtos”, diz. Laser é um acrônimo de Amplificação da Luz pela Emissão Estimulada da Radiação (Light Amplification by Stimulated Emission of Radia tion, em inglês). Significa que é uma fonte que utiliza a luz emitida por um átomo ou molécula para estimular a emissão de mais luz por outros átomos ou moléculas e, nesse processo, ampli
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Brito em seu laboratório: só com o laser é possível fazer experimentos em tempo muito curto
ficar a luz original. Isso faz do laser uma luz pura, sem mistura, diferentemente da luz comum, formada de vários comprimentos de onda – ela não se dispersa, ou seja, o único des vio que sofre é quando sai pela fenda de seu emissor. Por isso pode ser direcionada para grandes distâncias e concentrada apenas num ponto. Suas aplicações são múltiplas e contem plam muitas áreas. As mais conhecidas hoje estão na medicina. Médicos já utilizam essa tec nologia em cirurgias e diagnósticos há alguns anos. A indústria foi quem primeiro descobriu
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sua utilidade para fazer pequenos orifícios em materiais muito duros ou de elevado ponto de fusão, como o aço e o diamante. O processo é rápido e não altera a área em torno do orifí cio. As artes gráficas e cênicas usam o laser em holografias, shows e efeitos especiais. Brito continuou a tra balhar com laser quando foi fazer seu mestrado na Unicamp, em 1979, orientado por Sérgio Porto, que morreu seis meses depois e foi subs tituído por Artemio Sca labrin. A dissertação versou sobre laser de gás carbônico pulsado, então um problema téc nico sofisticado. “O tema era bom por que requeria muita ciência e alg um as art im an has para ser resolvido”, lem bra ele. Foi nes se período que o pesqui sador deparou com os fenômenos ultra-rápi dos, que continuaram a ser estudados no seu doutorado, pós-doutora do e, atualmente, no Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica, financiado pela FAPESP. Ele começou, então, a faz er exp er im ent os com la ser com pul sos de microssegundos (milionésima parte do segundo), de picossegundos (mil vezes mais rápido que o microssegundo) e de femtosse gundos (1 quatrilhonésimo de segundo). Quando iniciou sua carreira, Brito era um dos poucos no Brasil a fazer lasers com pulsos mu i to cur tos, no co me ço dos anos 1980. “Naquela época, fazíamos trabalhos na Uni camp em que fomos pioneiros em todo o mun do”, diz.“Depois, já no meio da década de 1980, havia quatro grupos no mundo capazes de fazer laser com pulsos de femtossegundos.” A
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principal contribuição para o estudo dos fenômenos ultra-rápidos ocorreu quando Brito passou uma temporada no Bell Labs, nos Es ta dos Uni dos, em 1986 e 1987, depois do doutoramento. Lá trabalhou nas aplicações em como usar laser com pulsos ultra-rápidos para estudar alguns fenômenos que ocorrem com materiais diversos. Ele participou de forma determi nante em um experimento para fazer o laser com o pulso mais curto que jamais ha via sido fei to. O re cor de, até en tão, eram 8 femtossegundos. “Demonstrei que era possível fazer pulsos de 6 femtosse gundos.” A experiência teve grande visibi lidade e se tornou modelo para fazer pul sos curtos. Por mais de dez anos ninguém conseguiu fazer pulsos com menos de 6 femtossegundos.
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“
ma das boas coisas da ciên cia de pon ta é con se guir estudar e aprender coisas que ninguém consegue vis lumbrar”, diz Brito.“O duro é que essa exclusividade dura pouco porque tem sempre alguém nos seus calcanhares.” Na volta ao Brasil, pas sou a ver seu objeto de estudo de forma diferente. Até aquela época, ele vinha fazendo ciência. Decidiu, então, abrir o leque e constituiu um grupo que fazia pes quisa de olho nas comunicações ópticas. Na segunda metade dos anos 1990 houve um fato que deu maior importância a essa linha de pesquisa. Antes da Internet, as empresas de comunicação achavam que a largura da banda utilizada era suficiente para tudo. Quando o uso das imagens começou a se tornar corri queiro na rede, viu-se que era preciso uma lar gura muito maior. O foco do trabalho feito na Unicamp pelo grupo de Brito terminou por aliar a boa ciência que já fazia com as possíveis aplicações nas telecomunicações. Hoje Brito continua um pesquisador ativo ori entando alunos, mas freqüenta menos seu labora tório em razão do cargo de reitor da Unicamp. Em 1991 tornou-se pela primeira vez diretor do Insti tuto de Física da Unicamp.A partir desse ano, não ficaria mais sem ocupar um lugar dentro da hie rarquia da universidade e em instituições como a FAPESP. Em 1994 foi nomeado pró-reitor de Pes quisa da Unicamp; em 1995, membro do Conse lho Superior da FAPESP; em 1996, presidente do Conselho Superior da mesma instituição, e em
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Experiência com laser: uso contempla da medicina às artes gráficas e cênicas
2002, reitor da Unicamp. As novas exigências o levaram a se aprofundar nos temas da política científica e tecnológica e da educação. “No período em que fui pró-reitor passei a viver uma esquizofrenia”, relata. “Na discussão de políticas para pesquisa via as idéias serem mais ou menos ‘chutadas’, sem muita base, que era o contrário do que eu realizava no laborató rio: estudar e medir antes de fazer.” A falta de parâmetros o levou a pesquisar e comparar os casos de política científica no Brasil e no exteri or, atividade que o ajudou quando se tornou presidente da FAPESP e na reitoria da Uni camp. Nessa fase, Brito também percebeu al guns equívocos históricos. Em 1994 dizia-se que a universidade era onde se devia fazer tecnologia para, depois, transferir para a empre sa. Ele corrigiu o foco da discussão: na verdade, a pesquisa feita na empresa é tão importante quanto na universidade. Elas ocorrem nos dois lugares por razões diferentes. Na indústria, tem a ver com competitividade e, na universidade,
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com aprendizado e conhecimento.“Esse debate estava encalacrado naquela época. Eu insistia, por exemplo, que as patentes devem nascer de preferência na empresa. E que a universidade é o lugar de se trabalhar com todo o conhecimen to, independentemente de considerações utili tárias que têm sido tão recorrentes no Brasil.”
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s posições do pesquisador, expressas em freqüentes reuniões com os ges tores de ciência e tecnologia da épo ca e por meio de assíduos artigos em jornais e revistas, ajudaram a mudar as perspectivas futuras para o setor. O marco foi a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia de 2001, que, entre outras coisas, estabeleceu a importância da atividade de pesquisa e desenvolvimento realizada no ambiente empresarial. A criação dos programas Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), em 1994, e Inovação Tecnológica em Pequenas Em presas (PIPE), em 1998, ambos da FAPESP, tam
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bém auxiliou na mudança de rumo neste campo, sem nunca deixar de lado a impor tância central da pesquisa fundamental motivada pela curiosidade do cientista. Nos úl ti mos dois anos, Bri to tem-se dedicado especialmente à educação. O tema não é estranho para ele, coordenador de um dos projetos de Política Pública da FAPESP, numa parceria entre a Unicamp e a prefeitura de Campinas em que foram sele cionadas dez escolas municipais com o objetivo de despertar vocações para as ciências entre os alunos. Agora ele procura debater a necessidade do investimento nas universidades públicas, a questão da inclu são nessas instituições e propor alternati vas à política de cotas, que chama de “solu ção preguiçosa”. A disposição para encarar essas batalhas vem, de acordo com ele, do método científico usado desde a gradua ção. “Esses assuntos devem ser tratados do mesmo modo que o cientista trata sua pes quisa: primeiro tem de estudar detidamen te a questão para só depois propor uma saída”, afirma.“Mas não é desse jeito que se costuma fazer política no Brasil.” Um velho amigo, colega dos tempos do ITA, resume a trajetória profissional de Bri to: “Ele transita com naturalidade entre os mais diversos tipos de inteligência, ou seja, faz física de laser com a mesma competên cia com que analisa e propõe políticas mais eficientes para ciência e tecnologia”, diz Gilberto Câmara, coordenador-geral de Observa ção da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), especialista em informática do setor espacial. “Essa capacidade é difícil de ser encontrada em qualquer país do mundo, não só no Brasil.” Câmara explica que os pesquisadores são naturalmente introspectivos, excessivamen te concentrados no próprio trabalho em razão do alto nível de exigência, comum na pesquisa de ponta.“Eles se esquecem de olhar a sua volta e ver o que está acontecendo, ou, então, fazem apenas política e colocam a ciência de lado.” Segundo Câmara, o atual reitor da Unicamp sem pre fugiu desse padrão e conseguiu fazer uma carreira dupla. “Ele sempre argumenta baseado em dados, de modo claro, o que torna difícil re ba ter suas idéi as”, afir ma. Qua se 30 anos depois da primeira experiência com laser, Brito, 48 anos, casado, com um filho, agora virou um especialista em arrumar soluções para os proble mas da física, da política científica e da universi dade pública. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 15
LITERATURA
A cientista dos sent im entos Não deve causar estranheza a presença de Lya Luft entre os pesquisadores premiados
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e início até causa uma certa estra nheza quando se lê, na lista dos premiados da Fundação Conrado Wessel, a categoria Literatura e o nome da vencedora, a escritora Lya Luft. Afinal, a seu lado estão nomes renomados da ciência aplicada ao mar, ao cam po, ao meio ambiente e à medicina.A estranheza logo desaparece ao se ler um pouco de sua pro sa ou ao se conhecer melhor o perfil dessa gaú cha de Santa Cruz do Sul, nascida em 15 de setembro de 1938 e autora de 16 livros. “Tento entender a vida, o mundo e o mistério e para isso escrevo. Não conseguirei jamais entender, mas isso me dá enorme alegria”, costuma dizer Lya. Tudo, então, fica claro: essa profissão de fé deve, com certeza, ser a mesma dos outros cien tistas que compartilham com ela a honraria. Lya Luft, a seu modo, é também uma pesquisadora. Mas dos sentimentos, da vida e da morte. E nisso ela, em todos os seus livros, está mui to próxima de todos nós. Não sem razão, num país em que o metiê de escritor é para poucos e com poucos, ela, com sua ficção sofisticada, é um sucesso de crítica e de vendas. Nisso há um curioso paradoxo. Quem a lê logo quer achar, nas suas palavras, escorregadelas autobiográfi cas, confissões feitas sob a máscara do romance, da crônica, da poesia. No mesmo movimento, esse leitor sente que está diante de alguém que sabe expressar medos, dúvidas e alegrias que
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são também as suas.“Cada livro meu é uma dan ça de sedução entre mim e meus personagens; entre mim e meus leitores. Meu leitor tem de ser meu cúmplice. O que posso dizer é que ten to mergulhar na chamada alma humana: seres perseguidos e perseguidores, os sugados e seus vampiros, os desejosos e os desejados, os mortos e os vivos, os amantes e os desamados”, explica. Seus temas são, efetivamente, universais e em suas obras podemos ver (e nos ver) a luta entre homens e mulheres, entre familiares e de que forma o tempo nos ajuda e desgraça. Para isso, Lya usa uma linguagem que mistura poesia e prosa, num bate-papo que soa ao leitor como uma conversa ao pé do ouvido com alguém que parece nos conhecer a fundo. “Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo. Esse aprendizado maravilhoso. Desde criança tenho o desejo de entender um pouco esse mistério das relações humanas, da nature za, do destino do homem. Sou muito tocada pela sensação do mistério, da transcendência da vida. Acho que a vida é mistério, transcen dência e processo.” Essa criança que queria entender a mágica do viver cresceu numa cidadezinha de coloni zação alemã forte e, na escola, lia, em alemão, poemas de Goethe e Schiller. Filha de um advo gado, cresceu cercada de livros.“Meu quarto de dormir era decorado por estantes cheias e bastava estender a mão, na cama, para pegar
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Lya: “Tento entender a vida, o mundo e o mistério. Por isso escrevo”
algo para ler.” O amor pela lín gua e pe los pequenos a levou a Porto Alegre, onde se for mou em pedagogia e letras anglo-germânicas.
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té hoje Lya he si ta em se in ti tu lar “escritora”, preferindo afirmar que sua profissão é tradutora, que vê como espécie de missão ao apre sentar para os brasileiros a gran de literatura estrangeira. Tem em seu currículo mais de cem versões, entre as quais obras de Ro bert Mu sil, Tho mas Mann, Gunther Grass, Botho Strauss, Virginia Wolf, Hermann Hesse, Doris Lessing e, com destaque, do poeta alemão Rainer Maria Rilke, a quem deu o honroso lugar de único autor a freqüen tar a sua exigente cabeceira. Ao se esforçar para recriar cada um desses autores, Lya foi aprendendo a entender o mecanismo da escri ta. A timidez diante dos mestres, no entanto, a afastou da expressão pessoal. O amor deu a ela o empurrão que faltava. Aos 24 anos, numa prova de vestibular, apaixo nou-se pelo professor, o irmão marista e filólogo Celso Luft, então com 42 anos. O lingüista dei xou a Igreja para se casar com a moça e foi pai
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de seus três filhos. E também de seus “filhos” autorais. “Celso tinha uma biblioteca grande. Sempre quis escrever romances, mas tinha uma timidez intelectual. Achava que iria mexer em assuntos intensos, como morte, loucura, doen ças da família, coisas que nunca tiveram a ver comigo, mas que faziam parte das minhas fanta sias desde a infância.” Em 1964 escreveu seu primeiro livro de poemas, Canções do limiar, e, em 1972, lançou Flauta doce. Aos poucos, ganhava confiança e enviou a um editor paulis ta alguns contos, recebendo uma resposta posi tiva. Em 1978 surgiu seu primeiro livro de con tos, Matéria do cotidiano. No ano seguinte, um acidente de carro a fez ver o mundo e a morte com outros olhos. Imobilizada em casa por qua se um ano, reviu o desejo de ser professora universitária e venceu a insegurança para cri ar o seu primeiro romance, As parceiras, de 1980. Gostou dele e os críticos também: em 1981 escreveu A asa esquerda do anjo e não largou mais da ficção.“Nunca parei para pensar se escrevia mais sobre homens ou mulheres. Contava a história para mim mesma, antes de tudo: para mim mesma preparava armadilhas, levantava dúvidas, montava quebra-cabeças
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que tentava resolver mais adian te”. cada nova obra, Lya reafirma va sua temática que misturava memórias, a família como um duplo das relações humanas, a solidão, a linha quase invisível entre fan tasia e realidade, a luta eterna contra a hipocrisia e a opressão, a análise suave da experiência feminina. Isso, sem nunca aceitar rótulos de gêneros. “Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem.” Daí seus livros que tocam os dois sexos, embora especiais na discussão da condição feminina.“Os homens me comovem, pois nem sempre percebemos o tamanho da solidão deles. Não se abrem com os amigos, nem mesmo com a mulher. Eles também têm medo de envelhecer e de perder a potência, não só a sexual, mas a econômica, a capacidade de se sustentar e manter o seu papel na família.” Lya, ao contrário, não teme o tempo. “A maturidade traz ganhos. Ao invés de se afligir com o ninho vazio e com a aposentadoria, as pessoas deveriam se orientar para curtir essa etapa como um privilégio. Se pode ler, passear, fazer novas amizades e reatar as velhas. Acho que a vida é um processo. É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão
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“Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo, esse aprendizado maravilhoso”, diz a escritora
forte fisicamente, a paisagem visualizada é mel hor.” A defesa apaixonada pela idade e o prazer de conversar a levaram a criar, com a terapeuta Martha Herzberg, em Porto Alegre, grupos de discussão sobre a maturidade, que ela orienta, reunindo homens e mulheres. “Uma pessoa madura pode ser tão bonita quanto um jovem. É mais tranqüila, mais harmoniosa, mais natural. A vida é feita de perdas e ganhos e depende muito da gente sair da postura de vítima. Defrontar-se com a gente mesma, na maturidade, é um susto. Mas pode ser um momento de redescoberta.” Dessa forma, Lya aprendeu a encarar perdas e separações com calma. Em apenas oito anos, a escritora sofreu duas grandes perdas. Em 1985 separou-se de Celso Luft, após ter vivido com ele dos 25 aos 47 anos, deixou o Rio Grande do Sul e partiu para o Rio para viver com o psicanalista
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e escritor Hélio Pellegrino. Mas o novo amor durou apenas três anos, encerrado com a morte de Pellegrino. Em 1992, Lya voltou a se casar com Luft e, três anos depois, ficou viúva nova mente.“Acho que a morte é algo natural como a vida. Mas nunca estamos preparados. Essa é a grande fragilidade humana. Estamos pouco pre parados para as coisas naturais. A civilização nos tornou seres pouco naturais. Esse afastamento da natureza traz aquilo que Freud chamou de mal-estar da civilização. Daí a morte ser tão estra nha para nós, que não somos mais naturais.” Guardou lembranças preciosas dos dois companheiros.“Há muito deles na minha perso nalidade e na minha literatura. O Celso foi meu professor e foi ele que me ensinou a ler com discernimento e me ajudou na busca de um tex to transparente. Foi um homem sábio que me
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empurrou a escrever”, conta. “O Hélio que tinha uma personalidade barroca, um verdadeiro furacão, me abriu para a tole rância e para a ousadia. Comentava alguns casos comigo e me perguntava:‘O que diz disso o seu espírito de romancista?’ E tudo era um prato cheio para mim.” Isso se percebe na publicação contínua de novos títulos: Reunião de família, em 1982; Quarto fechado (que foi editado nos Estados Unidos como The island of the dead) e Mulher no palco, ambos em 1984; Exí lio, em 1987; O lado fatal, em 1989; O rio do meio, em 1996; Secreta mirada, em 1987; O ponto cego, em 1999; Histórias do tempo e Mar de dentro, ambos em 2000; Perdas e ganhos, em 2003; Pensar é transgredir, agora em 2004; e já tem pronto para edição um livro de poem as, um retorno curioso na maturidade, com Para não dizer adeus. “Todos os meus romances abordam a famí lia, o afeto, o valor da vida e a morte. A vida é muito preciosa. Sou otimista. O humor faz com que a gente se divirta um pouco consigo mes mo, pois perdemos muito tempo e não curtimos os momentos diversos, presentes, que podem ocorrer aos 20, aos 40, aos 80 anos, porque se fica em busca de imagens impossíveis”, avisa. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 19
MEDICINA
Caprichos de nç a uma doe Como a curiosidade de Maria Inês Schmidt desvendou a origem inflamatória do diabetes
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epidemiologista Maria Inês Schmidt, ven cedora na categoria Medicina do Prê mio FCW, costuma trabalhar defron te de um computador e coordena equipes de auxiliares, estudantes e colaboradores que quase sempre se contam às centenas. Mesmo distante da roti na de laboratórios e das mazelas dos pacientes, a professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é responsável por uma das mais destaca das contribuições na compreensão do diabe tes que a ciência brasileira já produziu. Seu estudo Markers of inflammation and predic tion of diabetes mellitus in adults: a cohort study, parceria com outros cinco pesquisado res publicado na revista The Lancet em 1999, estabeleceu um vínculo entre processos inf la matórios e a eclosão do diabetes tipo 2. Mos trou que a moléstia endocrinológica que atinge milhões de brasileiros tem origens metabólicas comuns à doença aterosclerótica, aquela que forma placas nas paredes das artérias. Curiosamente, o grupo liderado por Maria Inês chegou a tal conclusão valendo-se de uma base de dados de pacientes de outro hemisfério: o Aric Study (Atherosclerosis Risk in Communi ties), que acompanhou 15 mil norte-americanos ao longo de nove anos em busca das causas da aterosclerose, suas seqüelas e fatores de risco. A descoberta veio à tona quando Maria Inês usou
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a base para relacionar marcadores de inf lamação genéricos, como o número de leucócitos, ao dia betes. A pesquisa, ao longo dos últimos cinco anos, foi citada em outros 130 artigos científicos, o que mostra sua repercussão acadêmica. Como o Aric Study congelou plasma sangüíneo dos pacientes acompanhados, o grupo poderá usar essas amostras para medir marcadores inf lama tórios mais sofisticados, como a adiponectina e a interleucina-6, e confirmar a relação. A pesqui sa é importante por mostrar que há uma intrica da rede de mecanismos metabólicos e inf lama tórios na origem do diabetes, a qual tem pontos em comum com a obesidade e o surgimento da doença aterosclerótica. A melhor notícia nesse campo, na verdade uma notícia antiga, diz res peito à forma de prevenção do diabetes.“O per fil inf lamatório melhora com a perda de peso e o exercício físico”, diz Maria Inês. “Mesmo a redução de apenas 5% da gordura corporal já tem um grande impacto na prevenção do diabe tes”, afirma. Em outra grande contribuição na compreen são do diabetes, a epidemiologista coordenou, no início dos anos 1990, uma pesquisa em seis capitais brasileiras sobre as causas e conseqüên cias do diabetes gestacional, doença que surge na gravidez e, na maioria dos casos, vai embora depois do parto, mas revela uma predisposição para o aparecimento da moléstia em forma crô nica numa idade mais tardia. O estudo multicên
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Maria Inês Schmidt: liderança para enfrentar desafios científicos
trico, encomendado pelo Ministério da Saúde, acompanhou 5 mil mulheres, do início do prénatal até sete dias depois do parto. Em duas cida des, Porto Alegre e Fortaleza, o monitoramento das mães teve seqüência por até sete anos. Por isso, algumas das duas dezenas de teses acadêmi cas produzidas com base no estudo só tenham sido concluídas recentemente.
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onstatou-se, na pesquisa, que 8% das grávidas com mais de 20 anos sofrem da doença. O estudo tornou-se refe rência internacional ao vincular a hi perglicemia com complicações na gravidez (há mais riscos na gestação e a mortalidade dos bebês é maior) e também por desvendar o papel da gordura concentrada na parte central do corpo como indicador do risco de diabetes. Ao contrário do que se vê em países mais desenvolvidos, há um tipo de mul her no Brasil, com estatura baixa e gordura acu mulada no tronco – as “redondas e baixinhas’ –, cujo perfil se revelou particularmente propenso a desenvolver o diabetes. O fenômeno, diz Maria Inês, não tem origem genética, mas social. Como tais mulheres, segundo a pesquisa, têm nível de
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escolaridade baixo, o mais provável é que ten ham baixa estatura por deficiências nutricionais intra-uterinas ou na infância, fator que predispõe ao diabetes e à obesidade.A pesquisa serviu para mudar crenças sobre o diabetes gestacional. Antes, os médicos tendiam a valorizar muito indicadores como níveis de glicemia discreta mente elevados nas pacientes e subvalorizar o ganho de peso. O estudo mostrou que a obesida de e o aumento excessivo de peso são fatores de risco mais perigosos. Maria Inês não sabe dizer com certeza por que decidiu ser médica. Acredita que a morte do pai, aos 34 anos, de um câncer no esôfago de rápida evolução, pode ter inf luído.“Eu via os médicos tentando atenuar a dor de meu pai, dar conforto à família e ao mesmo tempo informar, e acho que aquilo me marcou”, diz ela, que ficou órfã de pai aos 10 anos. No final dos anos 1960, deixou a cidade de Novo Hamburgo para cur sar medicina na Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre, vinculada à Santa Casa de Mise ricórdia. Lá, fez residência em medicina interna e endocrinológica. A carreira deu um salto em 1976, quando se mudou para os Estados Unidos e iniciou suas pesquisas na Universidade Johns
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Hopkins, especiali amb ul at or ia l: zando-se em pedia condutas de tria endocrinológi atenção primá A pesquisadora e seu compêndio de práticas ca. “Acho que meu ria baseadas médicas, recém-atualizado interesse pelo dia em evidências, betes foi despertado de 1.600 pági pelo fato de que, nas, reúne um naquela época, era uma doença difícil de con conjunto de situações que o médico de ambu trolar e exigia uma avaliação complexa e uma latór io pode encontrar, no tratamento de sintonia fina com o paciente”, diz ela. pacientes e doenças de todo tipo, e as decisões que deve tomar – com a descrição da evidência científica que ampara cada conduta. Maria Inês oi na Johns Hopkins University que coordena equipes de médicos especialistas, res Maria Inês conheceu o marido, Bruce ponsáveis pelos textos básicos dos 31 capítu Duncan, seu parceiro nas pesquisas e los, depois os submete a médicos generalistas, hoje professor da Faculdade de Medi que avaliam a praticidade dos conselhos. Estu cina da UFRGS. Casaram-se em 1979, dantes de pós-graduação são responsáveis mudaram-se para Chapel Hill e combi pelo embasamento teórico das condutas. Cada naram que, encerrado o doutorado na Universi texto chega a passar por 12 revisões, até alcan dade da Carolina do Norte, passariam juntos çar a versão final. Como a expansão dos conhe uma temporada no Brasil para depois definir o cimentos no campo da medicina, o livro se rumo que dariam às respectivas carreiras. Os desatualiza rapidamente. A idéia é fazer edições dois acabaram se fixando em Porto Alegre. Têm novas a cada dois anos.A primeira versão do livro dois filhos, Michael, de 23 anos, estudante de foi publicada no início dos anos 1980. A segun medicina, e Laura, de 17, estudante do ensino da, em 1996. E a terceira, em 2004. O trabalho médio. Na volta ao Brasil, a pesquisadora passou exige da pesquisadora Maria Inês um talento a se distanciar do tratamento clínico do diabetes que ela tem de sobra: a capacidade de coorde para se dedicar à epidemiologia da doença. nar grandes equipes.“Tenho enorme prazer em A parceria de Maria Inês e Duncan se esten coordenar grupos com espírito de luta, curiosi de a outro projeto acadêmico que dura mais de dade em buscar informações novas e alegria duas décadas e resultou num respeitado com em vencer desafios”, ela afirma. pêndio de práticas médicas. O livro Medicina •
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CIÊNCIA APLICADA AO CAMPO
Semeador tropical
SÉRGIO LIMA/FOLHA IMAGEM
Jairo Vidal Vieira, da Embrapa, desenvolveu variedades de cenoura para todo o país
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e o Brasil, e quem sabe o mundo, fos sem dominados pelos coelhos, certa mente o engenheiro agrônomo Jairo Vidal Vieira seria aclamado rei ou no mínimo o principal mentor de ciência e tecnologia entre a população desse pequeno mamífero que tem na cenoura seu pra to predileto. É que esse pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveu, ao longo dos últimos 18 anos, vari edades de cenouras que propiciaram a expansão e a adaptação dessa hortaliça para o clima tropi cal brasileiro com mais oferta do produto e pre ços mais baixos. Um trabalho que foi reconheci do com o Prêmio FCW na categoria Ciência Aplicada ao Campo de 2004. Aos 52 anos, esse mineiro da pequena cidade de Rio Pomba, perto de Juiz de Fora, ganhou notoried ade em uma área que tem garantido a expansão da agricultu ra no país nos últimos anos, a de melhoramento genético convencional por meio de seleção de variedades e de espécimes. A fase de maior presença de cenouras nos pratos brasileiros foi iniciada em 1975, quando Jairo, recém-formado em engenharia agronômi ca na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, foi contratado pela Embrapa como pesquisador. “A empresa me deu uma bolsa de mestrado”, lembra Jairo. Nesse curso, também feito na UFV, ele desenvolveu uma dissertação na área de fitotecnia, com a cultura de repolho.
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Jairo em uma plantação de cenoura: 18 anos aclimatando a hortaliça ao clima tropical
Antes de entrar na Embrapa, ele havia rece bido vários convites para trabalhar. “Naquele tempo tinha muito emprego, recebi oito propos tas, entre universidades, unidades da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ema ter) em Minas Gerais, Bahia e Goiás, e até de um banco.” Na Embrapa, logo após o término do mestrado, foi indicado para trabalhar no Centro Nacional de Pesquisa com Algodão, em Campi na Grande, na Paraíba. “Foi o chefe da área do Centro de Hortaliças da Embrapa em Brasília, Flávio Augusto de Araújo Couto, que me segu
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rou em Brasília e me direcionou para o trabalho com cenouras porque eu tinha feito mestrado na área de hortaliças.”Até então o conhecimento de Jairo sobre a Daucus carota, nome científico da planta, era quase zero. “Eu só tinha visto pé de cenoura na universidade”, conta Jairo, filho de produtor rural. “Meu pai tinha um sítio com cerca de 30 alqueires, uma propriedade peque na em que o principal produto era o leite.”
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oi no doutorado, quando voltou novamente a Viçosa no final de 1981, que ele se especializou na área de melhoramento genético, defen dendo a tese intitulada “Herdabilida des, correlações e índice de seleção em cenoura”.“Na verdade, antes eu havia estu dado sozinho e, quando cheguei em Viçosa para fazer o doutorado, já possuía uma boa base porque já trabalhava com melhoramento.” Esse estudo e a experiência que adquiriu na Embra pa se somaram para que Jairo, em plena efer vescência tecnológica do final de século 20, levasse o cultivo da cenoura mais adiante e para outras paragens seguindo uma linha de continu ação do melhoramento dessa planta que, de for ma empírica, começou há milhares de anos na região onde hoje é o Afeganistão, na Ásia, berço originário da D. carota.“A cenoura espalhou-se para a China, Índia e Europa, havendo registros de cultivo europeu no século 11. No Brasil, ela chegou com imigrantes portugueses que trou xeram sementes européias para a Região Sul. Essas sementes, em decorrência das condições de clima de Rio Grande do Sul, foram multipli cadas por várias gerações, apenas no âmbito dessas famílias, propiciando uma melhor adap tação às condições brasileiras. No início da década de 1970, quase toda a semente de cenoura utilizada no Brasil era importada. “Em 1978 recebi a incumbência de desenvolver variedades para todo o país”, lem bra Jairo. Naquela época, os problemas a serem resolvidos eram o desenvolvimento de cultiva res com adaptação às condições de cultivo do verão brasileiro, resistentes ao calor, a doenças e com boa produtividade. O objetivo era ter cenoura o ano todo, porque a safra era restrita: de maio a julho ou, no máximo, até outubro. O trabalho de melhoramento começou com a coleta de sementes no Rio Grande do Sul, por pesquisadores da Embrapa, de mais de 60 populações de cenoura. Mas, como em muitos outros experimentos científicos, a sorte tam bém estava presente nas atividades de Jairo na
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Embrapa. Dentre as sementes coletadas em solo gaúcho, ele identificou três populações com as características de interesse que servi ram para a formação, após um trabalho de sele ção, de um novo cultivar. “Foi um achado.” A nova variedade foi liberada para cultivo em 1981 e recebeu o nome de Brasília. Ela fez subir em 50% a produtividade de cenoura no país no período do ano em que foi lançada até 1984. Daí para a frente, a produção dessa hortaliça rica em vitamina A cresce a uma taxa de 4 a 5% ao ano no Brasil.“A produtividade aumentou de 1984 até hoje, de 12 toneladas por hectare (t/ ha) para 28 a 30 t/ha. É a mesma da Austrália, da Europa e dos Estados Unidos.” Atualmente, a Brasília é plantada em Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco, na Bahia e no Ceará, além dos três estados da Região Sul e de todo o Cerrado. “Hoje pode-se plantar e colher cenoura em qualquer época do ano e local deste país. Isso é um orgulho para qualquer brasileiro.” Em 1999, uma nova variedade foi lançada pela Embrapa chamada de Alvorada. O objetivo era for necer ao mercado uma cenoura com raiz de exce lente qualidade e com maior porcentagem de caroteno, substância que se transforma em vitami na A.“Mas os agricultores continuam plantando a Brasília, que responde por quase 80% da cenoura brasileira. Acredito que eles não querem deixar essa variedade usada há 15 anos.” Na Brasília o miolo é mais claro, quase branco, enquanto na Alvorada o miolo é quase da mesma cor da parte externa, rica em caroteno. O próximo produto de cenoura da Embrapa Hortaliças que está sendo desenvolvido sob a coordenação de Jairo é uma nova variedade, que provavelmente seguirá o nome ligado ao Distrito Federal e deverá se cha mar Esplanada.As primeiras sementes comerciais estarão disponíveis em março de 2005. “É uma variedade mais atrativa para as necessidades da indústria de processamento, que produz cenou ras pequenas (as minicenouras) de forma arre dondada, para saladas e petisco.” Outro orgulho de Jairo é a capacidade de as variedades Brasília e Alvorada necessitarem de pouca pulverização contra doenças ou, como ele próprio diz, de veneno. “Antes da Brasília faziam-se duas pulverizações por semana, hoje são feitas duas por ciclo de três meses, mais como um preventivo.” Com isso, o país econo miza 280 toneladas por ano (t/ano) de veneno para as doenças de folhas e mais 550 t/ano para as doenças do solo. “Acredito que estamos comendo cenoura com o menor teor de agro tóxico do mundo”, diz.
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Jairo na estufa da Embrapa em Brasília, onde nasceu a variedade presente em 80% das plantações
Para desenvolver as novas sementes, Jairo percorre várias regiões do país, visitando prin cipalmente produtores conhecidos dele e da Embrapa. Leva consigo sementes experimen tais e pede para os agricultores plantarem num canteiro ao lado do local onde já produzem cenoura. “Plantamos as sementes em sete ou oito lugares. Depois fazemos a colheita de raí zes e analisamos os resultados.” Jairo não dei xa de elogiar os agricultores que colaboram com esse tra ba lho. “Tem pro du tor que nos recebe há 14 anos e trabalha de forma anônima para o melhoramento da agricultura.”
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s contribuições de Jairo para a produ ção agrícola brasileira vão além da cenoura. A mais recente está no cul tivo da melancia. “A Embrapa me solicitou há quatro anos que eu desenvolvesse uma melancia resistente a uma virose chamada de vírus-domosaico-da-melancia. Essa doença ataca tanto essa fruta como o mamão e o maracujá.” Para chegar a uma melancia resistente, Jairo está cru zando espécimes com polpa vermelha e com polpa branca (espécie silvestre resistente ao vírus). “É um trabalho de paciência.” O trabalho de um melhorista, segundo Jairo, está sempre vinculado ao apelo de mercado.“Hoje valorizamos os chamados alimentos funcionais possuidores de substâncias que exercem um papel favorável em algum ponto do organismo.” Exem plos são a vitamina A, essencial para o bom funcio
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na men to da vi são, e o licopeno, uma substância abundante no tomate que pode prevenir o cân cer de próstata. “Teve uma época, que já passou, em que a ênfase eram os produtos para congela mento como as ervilhas. Existem também produ tos cuja época ainda não chegou ao Brasil, como os transgênicos, possuidores de barreiras para a aceita ção no mercado.“Eu acre dito que daqui a 20, 30 anos os alimentos serão indicados até por médi cos, para determinados tipos de problema ou para revigorar certas fun ções orgânicas.” O futuro do pesquisador ainda tem muito chão.“Em cinco ou seis anos poderei me aposen tar, mas não sei se agüento ficar longe do traba lho.”A única vez em que ele parou na Embrapa foi durante o pós-doutorado na Universidade Texas A&M, nos Estados Unidos, que durou dois anos, entre 1995 e 1996. “Fui a convite do professor Leonard Pike, que esteve no Brasil em 1987 e conheceu a variedade Brasília. Ele levou algumas amostras e o cruzamento com outras variedades resultou em uma cenoura roxa por fora e verme lha por dentro, que só tem mercado como enfeite ou em culinária sofisticada.” Para o Texas, Jairo foi com a mulher, Rita de Cássia, e os três filhos, dois rapazes e uma meni na. Rita, economista que trabalha na sede da Embrapa em Brasília, também fez pós-doutora do na mesma universidade e os três filhos se aprimoraram no inglês. Marido e esposa conti nuaram, no Texas, uma seqüência em comum desde a época que se conheceram, ainda estu dantes de graduação na UFV. Jairo, que possui mais de 30 trabalhos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, pensa ain da em trabalhar como professor quando se desli gar da Embrapa. Hoje atua como co-orientador de alunos da Universidade de Brasília e participa de bancas de tese em outras universidades. Ele acredita que ainda tem muit o a ensinar e a apren der. E cita o ensinamento do professor Vicente Wagner Dias Casali, orientador de seu doutora do:“Se a pessoa precisa de ajuda, eu ajudo. E eu me sinto bem em ajudar os outros”. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 25
CIÊNCIA APLICADA AO MAR
O cientista que ador a a praia Estudos de Diet er Mueh e são essenciais para conciliar o uso com a preservação do litoral
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om a habitual discrição, o geógrafo Dieter Muehe acompanhou duran te 15 anos, como representante da comunidade científica, os estudos para definição dos limites da plata forma continental brasileira, apre sentados a uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) reunida em Nova York durante duas semanas, de 30 de agosto a 17 de setembro. Liderado pelo almirante Lúcio Franco de Sá Fernandes, o grupo brasileiro – o segundo do mundo, depois dos russos, a apre sentar o levantamento hidrográfico e geológi co conforme as regras estipuladas pela ONU – está reivindicando uma plataforma continental a uma distância de até 350 milhas (650 quilô metros) da linha da costa. É uma superfície equivalente à dos três estados do Sul do Brasil somada à do Estado de São Paulo, com áreas novas para exploração de petróleo, gás e miné rios que o Brasil poderá explorar com exclusi vidade – e na qual qualquer atividade de explo ração mineral por outro país só poderá ser feita com autorização do governo brasileiro. “Se há algo realmente admirável em Dieter é sua plena consciência do papel que ele repre senta para a sociedade”, comenta o geólogo marinho Moysés Tessler, do Instituto de Ocea nografia da Universidade de São Paulo (USP), que viajou com Muehe em expedições pelo litoral brasileiro.“E ele não se gaba desse senso
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de cidadania.” Mas esse geógrafo baiano – de Maragogipe, cidade do Recôncavo Baiano em frente a Salvador – não olha só para o mar. Pro fessor do Departamento de Geografia do Insti tuto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1968, Muehe iniciou há 40 anos suas pesquisas sobre as transformações do litoral brasileiro, hoje funda mentais quando se pensa em conciliar o uso e a preservação das praias – como ele demons trou, a linha de costa oscila feito uma sanfona, à medida que os bancos de areia se deslocam. Para que esse ciclo natural seja respeitado e os desabamentos de casas e mutilações das pai sagens se tornem menos freqüentes, Muehe propôs uma faixa de proteção de 50 metros a partir da linha do mar nas áreas urbanas e de 200 metros nos trechos não urbanizados do litoral, em um trabalho feito a pedido do Minis tério do Meio Ambiente e publicado em 2001 na Revista Brasileira de Geomorfologia. Seria uma forma de evitar o cenário desolador que tomou conta de uma praia em Barra de Maricá, no litoral do Rio, há três anos, depois de uma forte tempestade ter derrubado um conjunto de casas erguidas à beira-mar. Seus proprietári os refizeram as construções e ergueram muros de defesa numa tentativa provavelmente vã de lutar contra o mar. “A largura exata da faixa de proteção preci saria ser sintonizada com as tendências locais
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O geógrafo do mar: atlas de erosão indica os pontos mais frágeis do litoral brasileiro
de modificação da linha de costa”, diz Muehe, que fez o trabalho completo: um levantamento nacional que ele coordenou indica justamente os trechos mais vulneráveis à erosão ou à pro gradação – como é chamado o processo inver so, de deposição de areia – ao longo dos 8 mil quilômetros de costa brasileira. O Diagnóstico de erosão e progradação costeira, que contou com quase R$ 50 mil da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm) e deve ser publicado nos próximos meses, revela que 40% das praias brasileiras estão encolhendo, enquanto outros 10% gan ham areia e se alargam.
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roposto pelo Programa de Geologia e Geofísica Marinha (PGGM), uma asso ciação de grupos de pesquisa das uni versidades costeiras do país, esse levantamento das áreas de risco do litoral resulta do trabalho de 16 gru pos de pesquisa, do Amapá ao Rio Grande do Sul, que Mu e he con se guiu reu nir com um raro poder de mobilização e um respeito ao trabalho alheio que lhe rendeu a aparentemente unânime admiração dos colegas e dos alunos. “Esse atlas
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será a base para o monitoramento contínuo de praias, para sabermos se a erosão ou a prograda ção ref letem um desequilíbrio momentâneo ou uma tendência de longo prazo”, comenta Mue he, que tem 67 anos, mas ninguém de boa-fé lhe daria mais de 50. Gentil e atencioso, adora pôr a velha sandália de couro e boné, acomodar-se a bordo de barcos infláveis ou de pesca e obser var as sutis variações da linha da costa. É um trabalho que exige paciência, mas que pode ser extremamente proveitoso. Com sua equipe da UFRJ, Muehe examinou por três anos as mudanças em uma das praias de Macaé, no litoral fluminense, até chegar à conclusão de que a erosão que preocupava tanto era apenas a face mais visível de um processo de reequilí brio espontâneo – a areia que sumia voltava depois. Como resultado, a prefeitura economi zou cerca de US$ 1,5 milhão que pretendia gastar em obras para conter um fenômeno que por si só se resolveria. Durante mais tempo ain da – oito anos,“sem falhar um mês”, orgulha-se –, ele tem acompanhado os corpos de areia crescendo ou encolhendo em um campo de dunas próximo a Cabo Frio, também no litoral fluminense, a duas horas de viagem da cidade
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do Rio. Já fez o levantamento número 102, que representa até agora cerca de 31 mil quilômetros rodados entre o Rio e a área de estudo. Os dados apurados indi cam prováveis efeitos do aquecimento ou esfriamento das águas do Pacífico – o El Niño e a La Niña – e que o litoral por lá está recuando. “Nada grave”, diz, “se o nível do mar não subir.” O problema é que muitos estudos no mundo inteiro alertam para a elevação do nível do mar.
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maioria das pessoas atribui pou ca importância às diferenças de cor, textura ou tamanho dos grãos de areia das praias – o que importa mesmo é o sol, certo? Ele, não. Com um punhado de areia nas mãos, esse geó grafo do mar imagina o passado e o futuro de uma praia, do mesmo modo que um paleontólogo reconstitui um ani mal extinto a partir de um osso fossiliza do. Há cerca de 20 anos, Dieter Muehe propôs uma metodologia de estudos costeiros, mostrando onde e como col her amostras e que tipo de informação tirar de um punhado de areia amarelada ou aver me lha da, fina ou gros sa. Com mente aberta, mostrou também que às vezes é melhor esquecer a areia, como aconteceu ao aplicar uma fórmula cria da por oceanógrafos australianos para determinar como uma praia ficará em alguns anos. A receita original se apoiava em três variáveis: a altura e o período da onda e a granulometria da areia. “Muitas vezes”, ele conta,“essa fórmula não correspon dia ao que era observado”. Muehe desenvolveu então outra fórmula, trocando a granulometria da areia pela declividade da praia, para definir o es ta do da praia no pró prio mo men to da observação. Publicada há cinco anos na Revis ta Brasileira de Oceanografia, essa fórmula tem ajudado a identificar o perfil de uma praia e avaliar sua sensibilidade a vazamentos de óleo e risco potencial para os banhistas. “Dieter é um grande profissional, extrema mente sério e disciplinado, com quem é muito tranqüilo trabalhar”, comenta o geógrafo da USP Jurandyr Ross, que fez com seu colega do Rio outro estudo importante sobre o litoral – o atlas do macrodiagnóstico costeiro do Brasil. Editado há cerca de seis anos pelo Ministério do Meio Ambiente, esse levantamento é consi
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Baiano, filho de alemães, apaixonado pelo mar desde a adolescência: olhar apurado para as mudanças da costa
derado uma obra fundamental para usar em conjunto com o atlas de erosão quando na hora de planejar a ocupação do litoral sem sentir mais tarde a revanche da natureza. “Depois de todos esses estudos”, afirma Ross, “se as casas ainda desabam no litoral não é por falta de informação, mas por falta de uso da informação”. Não é exagero dizer que ele trabalhou nes ses projetos com dedicação germânica. Dieter Carl Ernst Heino Muehe – eis seu nome com pleto – é o filho único de um casal de alemães, Victor Carl Muehe e Gerda Minna Emma Mue he. Os dois chegaram ao Brasil em 1936 fugin do da recessão econômica que tomou conta da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Vic tor, que havia servido como oficial no Exército durante a guerra, seguiu o mesmo destino de
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LÉO RAMOS
outros alemães que imigravam para o Brasil: foi trabalhar como contador em uma fábrica de charutos, a Suerdick, em Maragogipe, no Recôn cavo Baiano. Foi ali que Dieter Muehe nasceu, em abril de 1937.
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eu pai morreu em 1939, provavelmen te de infecção hospitalar. Sua mãe decidiu voltar para a Alemanha, imagi nando que lá conseguir ia dar uma educação melhor ao filho então com 1 ano e meio. Mas logo veio outra guer ra, deixaram Berlim, onde pretendiam viver, e tiveram de se mudar às pressas muitas vezes, fugindo das bombas que destruíam as cidades e os planos. Voltaram ao Brasil em 1947, dois anos depois de terminada a guerra, e se instala ram em Nova Friburgo, na região serrana do
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Rio. Para o garoto de 10 anos, que mal falava português, foram tempos difíceis. Mas foi quando aflorou a curiosidade científica e ele começou a colecionar borboletas, besouros e rochas recolhidas nas longas caminhadas pelas montanhas. Só em Vila Velha, no Espírito Santo, para on de se fo ram qua se dois anos depois, o então adolescente construiu um forte círculo de amigos, serviu no Exérci to durante um ano e começou a mergu lhar, com máscaras que machucavam o nariz e faziam os ouvidos doerem com freqüência. Apaixonou-se pelo mar. “Enquanto mergulhava e pescava lagos ta”, recorda ele,“eu tinha vontade de fazer ciência e estudar melhor tudo aquilo.” Em 1960, na hora do vestibular, optou por geografia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) como forma de conciliar seu interesse por oceanografia e geologia. Nessa época, já estava traba lhando na Companhia Vale do Rio Doce – primeiramente na equipe de topografia na estrada de ferro, depois como técnico em mecânica dos solos. Dieter Muehe mudou-se para o Rio de Janeiro em 1964 para trabalhar na Docenave, a recém-criada empresa de navegação da Vale do Rio Doce, mas aca bou ficando mesmo na empresa matriz. Foi também quando se transferiu para o departamento de geografia da então Universidade do Brasil, rebatizada de Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seu mes tra do, que du rou quatro anos, propôs uma classificação das praias entre o Rio de Janeiro e Cabo Frio de acordo com seu perfil topográfico e da zona submarina adjacente, o tipo de sedimento e a energia das ondas do mar que chegam à praia. Era o início da pós-graduação no depar tamento de geografia. “Foi uma época difícil”, conta ele. “Tinha dois ou três trabalhos para apresentar por semana e ficava muitas noites sem dormir.” O doutorado ele fez na Alemanha, já se aprofundando em oceanografia e geolo gia marinha. Nessa época já havia deixado a Vale do Rio Doce para trabalhar apenas na uni versidade, procurando equilibrar a dedicação à ciência e à família. Parece ter conseguido. É sua única filha, a médica radiologista Ingrid Engel ke Muehe De Simone Alonso, mãe de Mateus, de 8 anos, e de Nicole, de 2, quem diz: “Ele é admirável”. • ESPECIAL PRÊMIO CONRADO WESSEL 29
CIÊNCIA APLICADA AO MEIO AMBIENTE
O amigo da est a flor O biólogo Philip Fearnside defende o desenvolvimento sustentável da Amazônia
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ssim que concluiu a graduação em bio logia no Colorado College, uma uni versidade privada do Estado do Colo rado, o californiano Philip Martin Fearnside partiu para a Índia. Entre 1969 e 1971 foi voluntário da Peac e Corps, uma agência federal dos Esta dos Unidos que promove ajuda humanitária e tecnológica para países pobres. No Estado do Rajastão, noroeste da Índia, não muito longe da fronteira com o Paquistão, aconselhou o gover no local no manejo de peixes em reservatórios. Terminada a temporada asiática, retornou a seu país para começar o doutorado na Universida de de Michigan. Não que pretendesse ficar mui to tempo por ali. Sua idéia era voltar em 1973 para a nação de Gandhi e adquirir o título aca dêmico por meio de um trabalho sobre o número de pessoas que podem ser sustentadas indefinidamente em uma área com o emprego da tecnologia agrícola existente. Foi quando os ref lexos de uma guerra mudaram o destino do ex-voluntário da paz. Em 1971, os Estados Uni dos haviam apoiado o Paquistão no conf lito que levou à criação do Estado de Bangladesh e os indianos, inimigos dos paquistaneses, num ato de retaliação, fecharam as fronteiras para os pesquisadores norte-americanos. Então Fearnsi de recorreu ao plano B: Amazônia. Não há como saber se o biólogo, vencedor do Prêmio FCW na categoria Ciência Aplicada
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ao Meio Ambiente, teria sido tão bem-sucedido na Índia como acabou sendo no Norte do Bra sil. Hoje, três dé ca das após de sem bar car na região, Fearnside acumula experiência de cam po – morou até em agrovilas à beira da Transa mazônica para fazer seu doutorado – e saber científico sobre a Amazônia raramente encon trados em brasileiros. Seu nome é referência internacional em mui tos dos temas que tornam a grande mata tropi cal um assunto importante e polêmico, como a possível relação do desmatamento da floresta com as mudanças climáticas no planeta e o impacto da implantação de estradas, barragens e projetos agropecuários na região. Por seus trabalhos em prol do desenvolvimento sustentá vel, contra projetos ofensivos ao meio ambien te, como a construção da usina hidrelétrica de Balbina nos anos 1980, costuma ser atacado pelos defensores do progresso a todo custo, às vezes com tintas xenófobas. Desde 1978 cien tista do Instituto Nacional de Pesquisas da Ama zônia (Inpa), de Manaus, Fearnside, aos 57 anos, já se acostumou com as críticas e refuta a ima gem simplista de defensor da tese de que a Amazônia deve ser tratada como santuário. “Ao contrário do que afirmam alguns políticos, não existe mais gente dizendo que a Amazônia é intocável, que deveria ser um museu”, afirma. Há quase duas décadas, o pesquisador defende a idéia de que a região deve se tor
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MAURÍCIO TORRES
O pesquisador norte-americano, do Inpa: a favor de que a região se especialize em vender serviços ambientais
nar uma vendedora de serviços para o planeta. De serviços ambientais, bem entendido. Um tipo de visão em que a floresta é mais valiosa para os habitantes da Região Norte em pé do que queimada ou desmatada, tanto do ponto de vista da ecologia como da economia. Não se trata apenas de preservar a mata por que esse complexo ecossistema é morada de uma rica biodiversidade de espécies vegetais, que, em tese, poderia ser explorada sem grande agres são ao meio ambiente por (agro)indústrias lim pas ou laboratórios farmacêuticos. Para Fearnsi de, a floresta preservada, além de deixar de emitir poluentes decorrentes da queimada de suas árvores, retira da atmosfera grandes quan tidades de carbono. O gás dióxido de carbono (CO2) é o principal poluente acusado de aumentar o efeito estufa, anomalia que já está alterando o clima em várias partes do globo. Mais dia, menos dia, prevê o biólogo, os países ricos, que despejam o grosso dos poluentes atmosféricos, terão de pagar para os brasileiros manterem a mata preservada. Essa ser ia uma das formas de as nações desenvolvidas evita rem mais agressões ao clima da Terra. “Vender serviços ambientais é como vender soja”, com
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para.“É um comércio.” No jargão do meio ambi ental, essas hipotéticas transações costumam ser chamadas como o mercado internacional de carbono. Como quase toda idéia referente à Amazô nia, vender serviços ambientais é uma proposta controversa. Algumas questões precisam ser debatidas e equacionadas antes de a Amazônia se tornar uma vendedora de serviços ambien tais. Quanto custarão esses serviços? Qual será o mecanismo comercial que vai regular esse comércio? Receber dinheiro do exterior para não queimar e cortar a Amazônia não fere a soberania nacional? Os países ricos concorda rão em pagar um imposto ambiental em prol da Amazônia e outras áreas verdes do planeta? As perguntas não intimidam o biólogo do Inpa. “Ninguém sabe quanto poderia ser cobrado de um hipotético imposto ambiental, mas é verda de também que ninguém diz que a taxa deve ria ser de 0%”, pondera. Para Fearnside, o mer cado internacional de carbono só tende a se va lo ri zar com o tem po. Por quê? Por que as outras formas de retirar CO2 da atmosfera seri am ainda mais caras, e porque o efeito estufa tende cada vez mais a se agravar. E o Brasil, se
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MAURÍCIO TORRES
Fearnside numa madeireira do Pará: a floresta é mais valiosa em pé do que queimada ou desmatada
viesse a aderir a esse mecanismo, não estaria abrindo mão do controle sobre um pedaço de seu território. “Os contratos seriam por tempo determinado e o país poderia não renová-los depois de 10 ou 20 anos”, diz. Talvez não seja prudente adiar por mais tem po esse debate na sociedade brasileira, o que não quer dizer, necessariamente, tomar partido a favor da venda de serviços ambientais.“Fearn side é um dos pesquisadores líderes na ques tão estratégica dos fluxos de carbono na Ama zônia, com grande contribuição científica na quantificação de gases de efeito estufa prove nientes de queimadas”, afirma Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). “Mas ainda é um pouco cedo para uma avaliação econômica e política sobre a ade quação para o Brasil desse polêmico mercado internacional de carbono. Os vários agentes nacionais ainda têm que discutir melhor essa importante e delicada questão.” Como Fearnsi de,Artaxo participa do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), megaprojeto internacional de US$ 80 milhões que, desde 1999, reúne mais de 300 pesquisadores da América Latina, Estados Uni dos e Europa, sob a liderança do Brasil.
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erca de 16% da cobertura vegetal original da Amazônia já foi cortada. Segundo o biólogo do Inpa, as áre as desmatadas são mais do que sufi cientes para se manter uma agro pecuária voltada à produção de alimentos para os 20 milhões de habitantes do Norte do país – e não para o mercado externo. “Não podemos estimular a produção de soja e gado para exportação. Isso leva à construção de obras de in fra-es tru tu ra que agri dem o meio ambiente”, opina Fearnside. Apesar das resistências às suas idéias e das dificuldades de ser cientista no Brasil, ainda mais na Amazô nia, fora do rico eixo Sul-Sudeste, o pesquisa dor norte-americano nem pensa em voltar em definitivo para sua terra natal. “Quando vou aos Estados Unidos, me sinto por fora das coi sas”, diz.“Na questão das mudanças climáticas, eles são muito atrasados. Uma importante par te da população não acredita no efeito estufa.” Laços familiares também o prendem à terra que o acolheu há 30 anos. Sua mulher, a ento mologista Neusa Hamada, também pesquisa dora do Inpa, é brasileira, a exemplo das duas filhas. “Não é um sacrifício morar no Brasil”, avalia. • PESQUISA FAPESP
Cronograma da Premiação 2004 Na edição 2004 os Prêmios FCW de Arte, Ciência e Cultura serão concedidos a perso nalidades residentes ou a entidades sediadas no Brasil que se tenham destacado nas seguintes áreas: Fotografia Publicitária*, Literatura, Medicina, Ciência Geral, Ciência Aplicada ao Campo, Ciência Aplicada à Água e Ciência Aplicada ao Meio Ambiente. As indicações deverão ser feitas conforme orientação contida no site da fundação: www.fcw.org.br.
Abaixo, as datas da premiação Divulgação para a imprensa e convite oficial para que as instituições e entidades encaminhem à FCW suas indicações
Segunda semana de outubro de 2004 durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia
Prazo para recebimento das indicações pela FCW e convite aos jurados
Final da primeira quinzena de março de 2005
Preparação dos dossiês dos indicados
Segunda quinzena de março de 2005
Julgamento e escolha dos premiados
Primeira semana de abril de 2005
Divulgação dos trabalhos
Segunda semana de abril de 2005
Premiação
Dia 20 de maio de 2005
* Para o Prêmio FCW de Fotografia Publicitária o cronograma e o regulamento constam no site.
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Instituições Parceiras
da
FCW
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP Ligada à Secretaria de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo, é uma das principais agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica do país. Desde 1962 a FAPESP concede auxílio à pesquisa e bolsas em todas as áreas do conhe cimento, financiando outras atividades de apoio à investigação, ao intercâmbio e à divulgação da ciência e tecnologia em São Paulo.
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES Fundação vinculada ao Ministério da Educação, tem como missão promover o desen volvimento da pós-graduação nacional e a formação de pessoal de alto nível, no Brasil e no exterior. Subsidia a formação de recursos humanos altamente qualificados para a docência de grau superior, a pesquisa e o atendimento da demanda dos setores público e privado.
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq Fundação vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para apoio à pesquisa brasileira, que contribui diretamente para a formação de pesquisadores (mestres, dou tores e especialistas em várias áreas do conhecimento). Desde sua criação, é uma das mais sólidas estruturas públicas de apoio à ciência, tecnologia e inovação dos países em desenvolvimento.
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC Fundada há mais de 50 anos, é uma entidade civil, sem fins lucrativos, voltada principal mente para a defesa do avanço científico e tecnológico e do desenvolvimento educa cional e cultural do Brasil.
Academia Brasileira de Ciências – ABC Socied ade civil sem fins lucrativos, fundada em 3 de maio de 1916, tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da ciência e tecnologia, da educação e do bem-estar social do país.Atualmente reúne seus membros em dez áreas: Ciências Matemáticas, Ciên cias Físicas, Ciências Químicas, Ciências da Terra, Ciências Biológicas, Ciências Biomé dicas, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências da Engenharia e Ciências Humanas.
Academia Brasileira de Letras – ABL Fundada em 20 de julho de 1897 por Machado de Assis, com sede no Rio de Janeiro, tem por fim a cultura da língua nacional. É composta por 40 membros efetivos e per pétuos e 20 membros correspondentes estrangeiros.