Pele artificial

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julho de 2016  www.revistapesquisa.fapesp.br

Anibal Faúndes, especialista em saúde da mulher, defende aborto legal, seguro e raro Formulações candidatas a vacina contra zika protegem roedores em laboratório Avanço do acesso aberto a artigos científicos modifica modelo de negócio das editoras IBGE modernizou as estatísticas socioeconômicas no país e hoje, aos 80 anos, sofre com falta de recursos

n.245

“Salto” de Júpiter teria alterado órbita de Mercúrio Salas de cinema se integraram à cadeia de consumo em shoppings

Pele artificial Cientistas brasileiros desenvolvem tecidos similares ao humano para estudos de doenças e testes de cosméticos

Fragmento de epiderme pronto para uso em laboratório

venda proibida

exemplar de assinante

Pesquisa FAPESP julho de 2016

n.245


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W W W. R E V I S TA C U LT. C O M . B R 11 3 3 8 5 3 3 8 5 • 11 9 5 3 9 4 5 0 4 9

W H AT S A P P

A S S I N E C U LT @ E D I T O R A B R E G A N T I N I . C O M . B R

PERIDIOCIDADE MENSAL

A MAIS LONGEVA REVISTA DE CULTURA DO BRASIL SÓ TOMA UM PARTIDO: O DA INTELIGÊNCIA


fotolab

Uma flor nasceu na pedra Na aridez pedregosa da serra do Espinhaço, em Minas Gerais, a vida brota até na rocha. Minasia alpestris só é conhecida numa pequena área por ali, onde o ecólogo Thomas Lewinsohn há mais de 20 anos investiga as interações entre insetos e plantas dessa família, as asteráceas. Não por acaso, outra espécie do gênero mineiro foi batizada em sua homenagem. Esta foi fotografada no final de maio, durante trabalho de campo na região de Diamantina. De volta ao laboratório, a doutoranda Camila Leal espera emergirem moscas de asas rajadas das inflorescências acondicionadas em frascos vedados, para desvendar a base genética das ligações entre esses insetos e suas plantas hospedeiras.

Foto enviada por Thomas Lewinsohn, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp)

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 245 | 3


julho  245

14 CAPA 14 Pesquisadores brasileiros criam modelos de pele artificial para estudar doenças e usar em testes de cosméticos e medicamentos ENTREVISTA 22 Anibal Faúndes Médico chileno que ajudou a transformar os cuidados com a saúde feminina fala sobre sexualidade, estupro e interrupção da gravidez

82 50 Espectrógrafo fabricado

no Brasil será usado para observação de elementos típicos das primeiras estrelas

52 Geologia Simulações matemáticas ajudam a entender como fluíam os rios antes de surgir a vegetação terrestre

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

56 Saúde Possível vacina e medicamentos contra outras enfermidades protegeram células e camundongos do vírus zika

30 Difusão Publicações científicas procuram novos modelos de negócio

60 Críticos veem irresponsabilidade na realização dos Jogos Olímpicos no Rio

34 Unesp 40 anos Grupos de pesquisa em geografia são destaque no campus de Presidente Prudente

62 Bioquímica Parasita causador da malária se livra de lixo tóxico por duas vias no interior das hemácias

38 Educação científica Como a Feira Brasileira de Ciências e Engenharia estimulou estudantes a seguir carreira em pesquisa

64 Medicina Ressonância magnética pode detectar alterações cardíacas sutis não captadas por outros exames

42 Ecologia Interação entre pesquisadores acadêmicos e observadores de aves fortalece a produção científica

TECNOLOGIA

CIÊNCIA 46 Astronomia “Salto” brusco de Júpiter há mais de 4 bilhões de anos teria empurrado Mercúrio para sua órbita atual foto da capa  léo ramos

68 Energia Com o futuro aumento da produção de biodiesel, várias alternativas de matérias-primas deverão ser utilizadas 72 Pesquisa empresarial Cristália abre caminho para desenvolvimento de novos fármacos e processos de produção

46 HUMANIDADES 76 Ciência política Dicionário abarca universo das políticas públicas em 197 verbetes 80 Migração internacional Brasileiros nos Estados Unidos evitam ser vistos como hispânicos, exceto quando conveniente 82 Economia Companhia Paulista de Estradas de Ferro foi uma exceção no setor ferroviário brasileiro 85 Obituário Norte-americano Thomas Skidmore foi autor de estudo considerado clássico sobre o Brasil republicano seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 86 Memória 90 Arte 93 Resenhas 95 Carreiras 99 Classificados

56


cartas

contatos Internet revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp

Pesquisa Fapesp

Pesquisa Fapesp Opiniões ou sugestões Por e-mail: cartas@fapesp.br

Pelo correio: Rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012, São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para

cartas@fapesp.br

Divulgação científica

Iniciativas como o FameLab (“Talento de comunicador”, edição 244) são importantes, mas ainda poucas. Boa parte das razões para a divulgação científica no Brasil estar tão defasada está na formação dos nossos cientistas. Durante a graduação, praticamente não se fala em divulgação científica. As disciplinas de graduação pedem somente trabalhos que focam em iniciar os alunos no mundo da pesquisa. Os professores poderiam aproveitar a rica oportunidade para, vez ou outra, produzir material de divulgação científica para o público de fora da universidade, ensinando os alunos como fazê-lo e promovendo uma importante articulação com a extensão universitária. Na era digital em que vivemos, não faltam ferramentas para fazer isso de maneira efetiva, como bem exemplificou a reportagem “YouTubers na ciência” (edição 243).

assinaturaspesquisa@fapesp.br

João Pedro Mesquita

ou ligue para (11) 3087-4237,

São Paulo, SP

punidas da forma mais adequada possível (nota “Cardápio variado de fraudes”, em Boas práticas).   Bruna Brandão Velasques

Revista

Trabalhei durante 27 anos na Universidade de São Paulo no setor administrativo e financeiro, dos quais 16 deles na Faculdade de Saúde Pública, inclusive no setor de convênios, no qual conheci esta revista. Os professores a recebiam e eu me interessava em consultá-la sempre que possível. Agora que estou aposentado, vou frequentemente à faculdade e procuro a revista para me inteirar dos fatos. Edmilson Cavallini São Paulo, SP

de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar  Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office Por e-mail: julinho@midiaoffice.com.br Por telefone: (11) 99222-4497 Classificados  Por e-mail: publicidade@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212 Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de

Acesso aberto

Sobre a nota “Acesso aberto para estimular inovação” (Estratégias, edição 244), creio que a iniciativa da União Europeia vai criar pressão para que as editoras norte-americanas façam o mesmo. Só espero que o preço cobrado pelas revistas, para publicação, não seja impeditivo.   Daniel Pessoa

Deixar circular livremente o conhecimento científico de ponta abre certamente muitas possibilidades de mais pesquisas e também propicia avanços para a economia de cada nação.   Sergio Correa

Excelente iniciativa! Torço para que a conta não vá para os autores.

Vídeo Geogenômica

Incrível o vídeo “Geogenômica”. É uma gigantesca e eficiente forma de divulgação científica para o público geral.   Guellity Marcel

Muito legal esse vídeo! Ainda mais usando espécies brasileiras para sustentar a hipótese apresentada pelos pesquisadores.   Rick Seven

Parabenizo Pesquisa FAPESP pelo excelente vídeo produzido. Uma contribuição valiosa para as pessoas entenderem o valor da ciência para a sociedade. Desejo que a equipe da revista produza outros como este.   Tiago Eugênio

Jacinto Costa

reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212

Boas práticas

Falsificação de dados, plágio, fraude no nome dos colaboradores e coautores... Todas essas ações são crimes e devem ser

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. Via facebook.com/PesquisaFapesp

PESQUISA FAPESP 245 | 5


on-line

No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

Rádio

A mais vista do mês no Facebook química

Escolhidos os nomes dos novos elementos da tabela periódica

3.858 curtidas 1.264 comentários 1.319 compartilhamentos

113

114

Nh

Fl

Nihônio

115

116

Mc

Lv

Moscóvio

117

118

Ts

Og

Tennessino Oganessono

O biólogo João Bosco Pesquero fala sobre o projeto que investiga mutações genéticas capazes de favorecer o desempenho de esportistas bit.ly/292Dp2a

Exclusivo no site

Vídeos do mês

MARK A. GARLICKGARLICK / MARKGARLICK.COM

x Após um mês e meio de observações, uma equipe internacional de nove astrônomos liderada por Jean-François Donati, do Observatório do Sul-Pireneus, na França, incluindo a brasileira Silvia Alencar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), descobriu um planeta gigante gasoso girando em torno de uma estrela muito jovem, a V830 Tau, situada a 430 anos-luz de distância da Terra. Como não pode ser mais velho do que a estrela que orbita, o planeta V380b não deve ter mais que 2 milhões de anos de idade. É o planeta mais jovem já observado, conforme descrito em um artigo publicado em junho na revista Nature  bit.ly/28Wif1S

Ilustração do planeta gigante na órbita da estrela V830 Tau

x O fármaco imunomodulador P-Mapa mostrou-se capaz de ativar o sistema imune de várias formas, estimulando a produção de proteínas, de células de defesa e de moléculas de comunicação chamadas citocinas, favorecendo, desse modo, a destruição de tumores e de microrganismos causadores de doenças infecciosas. Isso foi observado em experimentos realizados nos últimos anos com modelos animais em universidades do Brasil e dos Estados Unidos e apresentados no dia 8 de junho, em um seminário internacional sobre câncer, inflamação e imunidade realizado na FAPESP  bit.ly/28YGBIw 6 | julho DE 2016

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

Assista ao vídeo:

Biólogos e geólogos falam sobre uma nova área, a geogenômica bit.ly/28Wi2vq Assista ao vídeo:

Sensores permitem captar a paisagem sonora do fundo do mar bit.ly/291nWQG


carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio

A pele que habitamos Alexandra Ozorio de Almeida |

diretora de redação

Conselho Técnico-Administrativo Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Daniel Bueno, Daniel Kondo, Diego Viana, Fabio Otubo, Guilherme Pupo, Igor Zolnerkevic, Jefferson Coppola, Marie-Anne Van Sluys, Maurício da Silva Baptista, Maurício Pierro, Ricardo Calil, Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 30.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

O

corpo humano é destaque desta edição, em abordagens muito distintas: no desenvolvimento de substitutos para o seu maior órgão, a pele, e na percepção das especificidades do corpo feminino para além de suas características reprodutivas. A reconstituição de pele humana é objeto de pesquisa desde os anos 1970, com vistas a aplicações médicas importantes como o tratamento de queimaduras e úlceras dermatológicas. Essa área de pesquisa ganhou novo vigor com a demanda por modelos mais eficientes e eticamente aceitáveis de testes de fármacos e cosméticos. As inovações nesse campo permitiram o desenvolvimento em larga escala de pele artificial, hoje já comercializada por empresas do ramo de biotecnologia e de cosméticos. A pele artificial, geralmente criada a partir de células humanas de origens distintas, tem diversas vantagens além das éticas, como maior assertividade quando empregada na avaliação de parâmetros toxicológicos e de eficácia dos produtos testados. A reportagem de capa (página 14) mostra o processo de produção do tecido e os esforços de diversas equipes de laboratórios públicos e privados para o desenvolvimento no país desse material. A demanda se tornou mais premente no Brasil com a iminente entrada em vigor de resolução do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal (Concea), que determina a obrigatoriedade da substituição do uso de animais em atividades de pesquisa por métodos alternativos, seguindo protocolos validados, a partir de 2019. Uma empresa nacional de cosméticos anunciou em 2015 a criação de um modelo próprio, a ser usado em testes de matérias-primas e de seus produtos acabados. Pesquisas realizadas em instituições brasileiras procuram desenvolver mo-

delos de pele semelhantes aos comerciais, além de epidermes para estudos de doenças como melanoma e câncer de colo uterino. O Laboratório de Biologia da Pele da Universidade de São Paulo apresentou seu primeiro modelo de pele artificial há 10 anos e hoje pesquisa uma epiderme envelhecida para o uso em testes de cosméticos e outra para estudos sobre câncer de pele. O Instituto D’Or de Pesquisa e Educação, no Rio de Janeiro, trabalha com uma multinacional para refinar o modelo de pele que ela comercializa, inserindo neurônios sensoriais para aproximá-lo mais do tecido original. Um dos desafios tecnológicos é encurtar o tempo de produção desses tecidos e, assim, facilitar o seu uso no tratamento de queimaduras. *** Foi durante a preparação de um suplemento especial que circulará com a edição de agosto que surgiu a entrevista desta edição. O médico chileno Anibal Faúndes, 85 anos, concedeu ao nosso editor de Ciência, Ricardo Zorzetto, uma entrevista rica e instigante sobre temas controversos como machismo, estupro e aborto – objeto de debates e políticas que frequentemente carecem de embasamento científico. Radicado no Brasil há exatos 40 anos, Faúndes desenvolve pesquisas sobre sexualidade feminina, contracepção e violência contra a mulher e propõe políticas públicas pioneiras que não restringem a saúde da mulher ao seu papel reprodutivo. Excepcionalmente, dedicamos oito páginas à conversa com Faúndes, que conta sua trajetória desde a fuga do Chile pinochetista e reconhece com franqueza ímpar o papel de sua primeira mulher, a socióloga argentina Ellen Hardy, na moldagem de sua percepção sobre a condição feminina. Entrevista oportuna e imperdível. PESQUISA FAPESP 245 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores recentes Projetos contratados em maio e junho de 2016 temáticos  Estabelecimento de um centro de pesquisa genética e molecular para desafios clínicos Pesquisador responsável: João Bosco Pesquero Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2014/27198-8 Vigência: 01/06/2016 a 31/05/2020

Vigência: 01/06/2016 a 31/05/2020

Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021

 Cadeias quânticas de spins

 A virtual joint centre to deliver enhanced nitrogen use efficiency via an integrated soil-plant systems approach for the UK & Brasil (FAPESP-BBSRC) Pesquisador responsável: Ciro Antonio Rosolem Instituição: Faculdade de Ciências Agronômicas – Botucatu/Unesp Processo: 2015/50305-8 Vigência: 01/05/2016 a 30/04/2019

Pesquisador responsável: Francisco Castilho Alcaraz Instituição: Instituto de Física de São Carlos/USP Processo: 2015/23849-7 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021

 Identificação e controle tolerantes a falhas em sistemas rotativos Pesquisadora responsável: Katia Lucchesi Cavalca Dedini Instituição: Faculdade de Engenharia Mecânica/Unicamp Processo: 2015/20363-6

 Fenômenos dinâmicos em redes complexas: fundamentos e aplicações (FAPESP-DFG) Pesquisador responsável: Elbert Einstein Nehrer Macau Instituição: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/MCTI Processo: 2015/50122-0

 Investimentos pró-climáticos inteligentes em bacias de montanhas tropicais da América do Sul (Climatewise)

(FAPESP/Belmont-Mountains) Pesquisador responsável: Humberto Ribeiro da Rocha Instituição: Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas/USP Processo: 2015/50682-6 Vigência: 01/07/2016 a 30/06/2019 JOVEM PESQUISADOR  Diversificação molecular de

malária aviária na Mata Atlântica Pesquisadora responsável: Linda Maria Elenor Svensson Coelho Instituição: Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas/Unifesp Processo: 2015/17523-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019

Efetividade do esforço de P&D em empresas para criação de ideias patenteáveis nos EUA (Brasil e países escolhidos) Patentes por ano, de 2011 a 2015

Patentes de empresas

Patentes de empresas – em %

Pesquisadores de empresas *

Patentes/10.000 pesquisadores (empresas)

50.998

49.958

98

534.908

934

Alemanha

14.870

13.973

94

216.320

646

Coreia do Sul

14.887

13.315

89

250.626

531

País Japão

Itália

2.355

2.299

98

47.816

481

Reino Unido

5.643

5.178

92

108.614

477

França

5.851

4.704

80

197.056

239

149

78

52

6.192

126

África do Sul Espanha

686

524

76

59.391

88

República Checa

152

134

88

16.698

80

Polônia

118

72

61

14.299

50

China

5.818

5.317

91

1.072.087

50

Brasil

264

197

74

67.427

29

Federação Russa

386

280

72

202.185

14

*Pesquisadores atuando em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em empresas em 2011 Observação: não há dados sobre pesquisadores para os Estados Unidos, líder em patentes, na base da OCDE Fontes:   Patentes: United States Patent and Trademark Office; Pesquisadores nas empresas: Main S&T Indicators/OCDE e Pintec/IBGE (Brasil)

8 | julho DE 2016


Boas práticas

ilustração  daniel bueno

O espectro das imagens duplicadas A microbiologista Elisabeth Bik, pesquisadora da Escola de Medicina da Universidade Stanford, Estados Unidos, passou dois anos analisando imagens de testes western blot, método usado na biologia molecular para identificar proteínas, divulgadas em 20.621 artigos da área biomédica publicados em 40 revistas científicas entre 1995 e 2014. Ela encontrou uma taxa elevada de problemas: havia imagens duplicadas em 782 papers, 3,8% do total. Em 230 artigos, as imagens simplesmente apareciam duas vezes no mesmo manuscrito para ilustrar experimentos diferentes, um sinal, segundo Elisabeth, de que podem ter sido duplicadas por erro, sem má-fé. Nos demais casos, há indícios de manipulação deliberada. Em 356 artigos, algumas imagens duplicadas estavam reposicionadas ou então invertidas. E em 196 papers havia evidências claras de fraude, como a colagem de uma mesma “banda” de um teste de western blot em várias imagens, como se fosse um carimbo cuja estampa se repete. Os resultados da análise foram divulgados num texto no bioRxiv, repositório com manuscritos do campo das ciências da vida ainda não publicados em revistas. O trabalho de Elisabeth Bik foi artesanal. Primeiro, ela olhava cada artigo em busca de sinais de duplicações. Quando encontrava uma situação suspeita, submetia as imagens a um software em que podia ajustar o contraste em busca de evidências de manipulação. Sempre que aparecia alguma imagem problemática, dois pesquisadores que trabalharam com Elisabeth, Arturo Casadevall e Ferric Fang, verificavam a suspeita. Na época em que a análise foi feita, nenhum dos artigos com problema

havia sido retratado. Elisabeth Bik tomou a decisão de avisar os editores das publicações sobre o que encontrou – foram mais de 700 relatórios enviados a revistas. Também escreveu para 10 instituições em que houve problemas recorrentes, com o registro de ao menos três papers de um mesmo grupo de pesquisa com imagens duplicadas. O saldo dessa iniciativa, segundo ela, foram seis artigos retratados e outros 60 corrigidos. O estudo mostra que publicações mais cuidadosas conseguem prevenir a publicação de papers com adulterações. O Journal of Cell Biology, que desde 2002 escaneia as imagens de papers submetidos em busca de duplicações, só teve 0,3% dos artigos questionados. Já no International Journal of Oncology, havia problemas em 12% dos papers. Três países se destacaram entre os artigos

suspeitos. Papers de pesquisadores da Índia exibiram probabilidade 1,93 vez maior de conter imagens duplicadas do que seria esperado pela frequência de publicação. Em seguida, aparecem a China, com uma probabilidade 1,89 vez maior, e Taiwan, com 1,20.

Goiânia sediará encontro sobre integridade A quarta edição do Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publications (Brispe) será realizada nos dias 17 e 18 de novembro em Goiânia, no campus da Universidade Federal de Goiás (UFG). O encontro tratará do papel de professores, editoras científicas e agências de fomento na promoção de uma cultura de integridade em universidades e instituições de pesquisa. Pela primeira vez o evento abrirá espaço para a apresentação de trabalhos orais e em pôsteres, em sessões temáticas sobre políticas de integridade e educação. É possível inscrever trabalhos até 2 de agosto no site brispe2016.org. “A produção científica sobre integridade cresceu nos últimos anos. Um dos objetivos

do Brispe é difundir esses trabalhos para impulsionar o campo de pesquisa”, diz Sonia Vasconcelos, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e organizadora do evento. Outra novidade será um curso sobre os mecanismos de correção da literatura científica. “Muitas vezes os deslizes identificados em artigos são fruto de erros honestos, e não produto de má-fé. As editoras estão atentas a isso e querem tornar o processo de correção mais transparente”, explica Sonia, para quem a realização do Brispe em Goiás representa uma maneira de disseminar essas discussões no âmbito nacional. As primeiras edições do encontro se concentraram no eixo Sul-Sudeste. PESQUISA FAPESP 245 | 9


Estratégias Reflexos da ruptura na ciência O resultado favorável à

menos até a data oficial

saída do Reino Unido da

de saída do bloco”,

União Europeia (UE) no

afirmou. Segundo ela,

plebiscito de 24 de junho

o saldo da participação

causou consternação

do Reino Unido no bloco

na comunidade científica

foi favorável à ciência.

britânica. Ainda não se

Glover menciona os

sabe precisamente

recursos investidos e

como a decisão irá afetar

recebidos no Programa-

a pesquisa no país, mas

Quadro 7, que antecedeu

especialistas alertam

o Horizonte 2020.

que a participação do

“Contribuímos com € 5,4

Reino Unido (Inglaterra,

bilhões [R$ 20 bilhões]

País de Gales, Escócia

em sete anos, mas

e Irlanda do Norte) em

recebemos em torno de

colaborações científicas

€ 8,8 bilhões [R$ 32,7

com países do bloco

bilhões].” Cerca de 16%

será prejudicada. Há

dos recursos das

incerteza em relação ao

universidades do Reino

Horizonte 2020, o maior

Unido provêm de órgãos

programa de apoio à

da União Europeia.

pesquisa e à inovação

Há ainda preocupação

da Europa, que entrou

em relação à mobilidade

em vigor em 2007 com

de pesquisadores.

um orçamento de

1

O premiê britânico David Cameron anunciou sua renúncia após o resultado do plebiscito

A busca de estrelas cadentes Astrônomos da França

outro objeto que

lançaram uma iniciativa

possa atingir a Terra.

para monitorar os

Até o final do ano, serão

Venki Ramakrishnan,

meteoros que se

instaladas mais câmeras

€ 80 bilhões, ou cerca

presidente da Royal

desintegram ao entrar

pelo país, chegando a

de R$ 300 bilhões.

Society, manifestou-se

na atmosfera terrestre,

cerca de uma centena.

Os recursos podem ser

em um comunicado:

provocando o fenômeno

“Se amanhã um

disputados por consórcios

“Um dos pontos fortes da

popularmente chamado

meteorito cair na França,

de países-membros da

pesquisa britânica é sua

de “estrela cadente”.

seremos capazes de

UE. John Womersley,

natureza internacional.

Os pesquisadores

saber de onde veio”,

diretor do UK Science

Qualquer falha em

instalaram 68 câmeras

disse à revista Nature

and Technology Facilities

manter a livre circulação

capazes de fazer uma

Jérémie Vaubaillon,

Council, disse à revista

de pessoas e ideias

varredura do céu em

astrônomo do

Nature que os cientistas

poderia prejudicar a

busca de asteroides,

Observatório de Paris

do Reino Unido buscam

ciência do Reino Unido”.

meteoros ou qualquer

e um dos organizadores

Câmeras foram espalhadas pela França para monitorar meteoros

garantias de que não

do projeto, batizado

serão excluídos do

de Fireball Recovery

Horizonte 2020.

and InterPlanetary

“Conheço pesquisadores

Observation Network

que acabaram de enviar

(Fripon). Os

propostas para o

pesquisadores esperam

Horizonte 2020”, disse

ampliar o rastreamento

à revista Science a

das rochas espaciais e,

bióloga escocesa Anne

assim, obter novas pistas

Glover, conselheira

para estudar o Sistema

científica-chefe da

Solar. Também

Comissão Europeia entre

pretendem recrutar

2012 e 2014. “Suponho

voluntários para ajudar nas buscas por pedaços

que podemos continuar esse processo, pelo 10 | julho DE 2016

2

de meteoritos.


fotos 1 Tom Evans / Crown Copyright / flickr  2 Fripon 3 Morehouse School of Medicine  4 léo ramos

Sinais de discriminação contra negros Os Institutos Nacionais

A hipótese já havia

das propostas R01

de Saúde (NIH), principal

sido levantada em um

vem de cientistas

organização de fomento

estudo publicado pela

afro-americanos.

à pesquisa médica

economista Donna

“Precisamos reduzir esse

dos Estados Unidos, vão

Ginther, da Universidade

fosso”, disse à revista

avaliar se pesquisadores

do Kansas, em 2011.

Science Hannah

afro-americanos são

Nesse trabalho,

Valentine, chefe do

alvo de discriminação

observa-se que

escritório de diversidade

no processo de avaliação

pesquisadores negros

na ciência dos NIH.

de projetos. Dados

são mais propensos a ter

Em 2014, a instituição

preliminares indicam

seus pedidos negados

lançou iniciativas

que candidatos negros

para propostas do tipo

para ampliar a

têm 35% menos

R01, a linha de

diversidade entre seus

chance de ter uma

financiamento mais

candidatos. Na ocasião,

solicitação de recursos

antiga dos NIH. Isso,

o órgão liberou

aprovada do que

segundo o estudo,

US$ 25 milhões,

candidatos brancos.

desestimularia os

para os cinco anos

Dirigentes do NIH

cientistas negros a

seguintes, a instituições

suspeitam que

enviar uma segunda

de pesquisa que se

revisores tendem a

proposta. Além desse

comprometessem

dar pontuações mais

problema, a participação

a receber um número

baixas do que deveriam

de negros no processo

expressivo de

do Mar (IEAMar),

a projetos encaminhados

seletivo já é muito

pesquisadores que

uma nova unidade

por afro-americanos.

baixa: apenas 1,5%

pertencem a minorias.

de pesquisa da

3

Laboratório na Morehouse School of Medicine, em Atlanta, onde trabalha um número expressivo de pesquisadores afro-americanos

Para estudar o mar Foi inaugurado no dia 11 de julho o Instituto de Estudos Avançados

Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Vicente, no litoral

Animais impedidos de voar

de São Paulo. Uma das missões do instituto é realizar estudos voltados à exploração sustentável

A Sociedade Brasileira para o Progresso

dos recursos marinhos

da Ciência (SBPC) e a Academia Brasi-

e à preservação

leira de Ciências (ABC) divulgaram uma

ambiental, mobilizando

carta na qual pedem que a empresa aé-

cerca de uma centena

rea de logística Latam-Cargo reconside-

de pesquisadores de

re a decisão de parar de transportar

vários campi da Unesp

animais utilizados em pesquisas. No

de áreas como geologia,

documento, a bioquímica Helena Nader

oceanografia e gestão

e o físico Luiz Davidovich, que presidem a SBPC e a ABC, respectivamente, reafirmam que “o uso de animais de expe-

4

Animal para fins de pesquisa: Latam proíbe transporte em seus aviões

rimentação é de vital importância nas

dos recursos naturais, além de empresas públicas e privadas. O IEAMar também

pesquisas das áreas biológicas e da saú-

cies que fazem parte dele”. Situações

oferecerá um curso

de”. A carta ainda lembra que, sem a

semelhantes foram registradas em vários

de especialização lato

experimentação animal, não seria pos-

países, nos quais companhias aéreas

sensu em recursos

sível levar adiante as pesquisas em an-

cederam a pressões de entidades de

marinhos e um mestrado

damento com os vírus da chikungunya,

defesa dos animais e deixaram de trans-

profissional em gestão

zika e dengue, por exemplo. Em nota

portar macacos e camundongos que

marítima, fluvial

divulgada pelo jornal O Estado de S. Pau-

abastecem laboratórios dos Estados

e portuária. O

lo no dia 23 de junho, a Latam (origina-

Unidos e da Europa. Grandes empresas

Ministério da Ciência,

da pela fusão entre a brasileira TAM e a

como a Lufthansa, a British Airways e a

Tecnologia, Inovações

chilena LAN) comunicou que a medida

Virgin Atlantic há tempos se recusam a

e Comunicações

busca reforçar o compromisso da em-

transportar animais a serem utilizados

disponibilizou R$ 25

presa “com o meio ambiente e as espé-

em experimentos científicos.

milhões ao novo instituto, e a Unesp, R$ 10 milhões. PESQUISA FAPESP 245 | 11


Tecnociência Gengivas danificadas

1

Em busca de mais látex

Plantação de seringueira no Sri Lanka: da Amazônia brasileira para a Ásia

Quanto mais avançada

os indivíduos

a idade, maior é o

autoclassificados como

risco de complicações

não brancos e com

periodontais (aquelas

rendimento mais baixo.

que afetam a gengiva)

O reconhecimento da

que podem levar à

boca como um espaço

perda de dentes se não

rico em bactérias pode

tratadas. Em uma amostra

ajudar a combater esse

de 3.926 pessoas

problema. Em um

com idade entre 65 e

seminário internacional

74 anos, 21,7% relataram

realizado em São Paulo,

sangramentos nas

Julia Panomarenko,

gengivas e 34% tinham

bióloga do Centro de

tártaro (placa bacteriana

Regulação Genômica,

endurecida), de acordo

de Barcelona, divulgou

com uma análise

os primeiros resultados

coordenada pela dentista

da análise de bactérias

Chaiane Emilia Dalazen,

encontradas em

da Universidade Federal

amostras de saliva de

de Mato Grosso do Sul

1.502 adolescentes

Cientistas asiáticos

a doenças. Em outro

estão trabalhando no

estudo recente, Zhi Zou,

(PLoS One, junho 2016).

de 15 a 16 anos, de

genoma da seringueira

do Instituto de Pesquisa

Os dados são

25 cidades da Espanha.

(Hevea brasiliensis),

da Borracha, ligado

do estudo Saúde Bucal

Os pesquisadores

árvore com cerca de 30

ao Ministério da

Brasil 2010 (SB Brasil),

verificaram que os tipos

metros de altura,

Agricultura da China,

do Ministério da Saúde,

de bactérias variavam de

cujo látex é usado como

relatou os mecanismos

que colheu informações

acordo com a localização

matéria-prima para

genéticos que regulam

em todos os estados

geográfica, alimentação,

produção de borracha

a permeabilidade

brasileiros. Pessoas

hábitos e estilo de vida –

natural. Uma equipe do

da célula à água,

que se declararam

a boca de quem tinha

Centro Riken de Pesquisa

essencial para o látex

brancas e com nível

cachorros em casa, por

Científica Sustentável, no

(Gene and Translational

econômico mais alto

exemplo, quase sempre

Japão, e da Universidade

Bioinformatics, fevereiro).

foram menos afetadas

abrigava bactérias do

da Ciência, na Malásia,

Nativa da Amazônia

por problemas

gênero Granulicatella,

sequenciou 93% dos

brasileira, a seringueira

periodontais que

frequente na saliva

genes expressos do

é hoje largamente

genoma da seringueira,

plantada no sudeste

com 2,15 bilhões de

da Ásia, principalmente

foram identificadas na

pares de bases, e

na Malásia, Indonésia

boca das crianças

identificou regiões do

e Tailândia, como

saudáveis. “Bactérias

DNA relacionadas à

resultado de um dos

do gênero Streptococcus

síntese de látex

primeiros casos de

foram encontradas em

(Scientific Reports, 24 de

biopirataria da história.

100% das amostras e,

junho). De acordo com

Em 1876, o botânico

em 68% dos casos, foi

esse trabalho, a

inglês Henry Wickhan

o grupo de bactérias mais

produção de látex

contrabandeou mais

abundante”, disse Julia.

parece decorrer da

de 70 mil sementes da

Os pesquisadores

expressão coordenada

região de Santarém,

incentivam a participação

de genes duplicados,

no Pará, e as plantou na

dos estudantes na

que ocupam 72% do

Ásia, que superou a

análise dos resultados,

genoma, e de outros,

produção brasileira em

associados à resistência

poucos anos.

12 | julho DE 2016

Colônias de Streptococcus pyogenes ampliadas 900 vezes: representante de um dos gêneros comum na boca de crianças

dos cães. Mais de 700 diferentes bactérias

que estão no site 2

www.sacalalengua.org.


Titanossauro mineiro

Com um espelho do

eixo tridimensional,

Descoberto em 2005

diâmetro de uma moeda

perpendicular aos dois

no município de Coração

acoplado às lentes

primeiros (profundidade),

de Jesus, norte de Minas

de um microscópio,

diferenciando estruturas

pesquisadores de centros

muito próximas,

em 2011, o Tapuiasaurus

de pesquisa dos Estados

antes indistinguíveis.

macedoi ganhou o

Unidos, da China e da

Com as técnicas

Gerais, e apresentado

fotos 1 andreas krappweis / wikimedia commons 2 PHIL / CDC  3 MZUSP   4 léo ramos

Imagens mais nítidas

3

título de primeiro e

crânio do T. macedoi,

Austrália conseguiram

usadas atualmente, os

mais antigo titanossauro

como o formato de

registrar imagens

pesquisadores cultivam

da América do Sul,

dentes, e concluiu que o

tridimensionais e em alta

as células em lâminas

após a redescrição de

animal – assim chamado

resolução de estruturas

de vidro transparente

seu crânio, bastante

em homenagem a

celulares extremamente

e depois as analisam

preservado, e análises

Ubirajara Alves Macedo,

pequenas, como os poros

com o auxílio de um

comparativas realizadas

pesquisador não

das membranas e o

microscópio. Mesmo

por pesquisadores do

acadêmico da região –

vírus sincicial respiratório

com os microscópios

Brasil, dos Estados

foi um dos mais primitivos

humano. A técnica foi

mais avançados, porém,

Unidos e da Argentina

do grupo. O T. macedoi

descrita em uma revista

é muito difícil obter

(Zoological Journal of the

deve ter vivido há

do Grupo (Light: Science

imagens em boa

Linnean Society, março).

125 milhões de anos,

and applications, 17 de

resolução dos três eixos

Entre os dinossauros, o

no Cretáceo Inferior,

junho): uma luz atravessa

espaciais; normalmente

grupo dos titanossauros

em paralelo a outros

a célula em direção a um

a definição da

é um dos mais diversos,

titanossauros primitivos

espelho, no qual reflete,

profundidade é menor

mas apenas 3 dos 70

(ou basais), cujos fósseis

voltando em seguida à

que as outras duas

gêneros possuem

foram encontrados nos

célula. Desse modo se

dimensões. Agora

crânios completos como

atuais Tailândia e Laos,

pôde fazer imagens em

as células podem

o de T. macedoi. Além

na Ásia, e Malauí, na

boa resolução dos eixos

crescer diretamente

disso, a maioria dos

África. Seu crânio é

bidimensionais (altura

nos espelhos do

fragmentos cranianos

alongado como o de um

e largura) e também do

microscópio.

é de titanossauros mais

cavalo, com as narinas no

recentes, do fim do

alto. O formato dos

período Cretáceo. Uma

dentes indica que o

equipe coordenada pelos

animal – um herbívoro

biólogos Hussam Zaher,

com estimados 13 metros

da Universidade de

de comprimento,

São Paulo, e Jeffrey

4 metros de altura e 10

Wilson, da Universidade

toneladas de peso –

de Michigan, Estados

devia alimentar-se de

Unidos, encontrou

folhas que puxava dos

características únicas no

galhos das árvores.

Crânio do T. macedoi: raridade do norte de Minas Gerais

4

Nanossatélite do Inpe: mais do que o esperado no espaço

Dois anos em funcionamento O primeiro nanossatélite nacional, o

do campo magnético da Terra, coleta-

mínimo de três meses e no máximo um

NanosatC-Br1, completou dois anos de

das por um dos equipamentos a bordo,

ano”. A sobrevida é incerta. “Depende

funcionamento no espaço no dia 19 de ju-

um magnetômetro, para as estações de

da capacidade de os componentes re-

nho. Com menos de 1 quilograma de peso,

recepção do Inpe e para radioamadores

sistirem às partículas de alta energia do

o nanossatélite foi projetado e construído

do Brasil e de outros países (ver Pesquisa

espaço.” A equipe do Inpe, coordenada

por pesquisadores do Instituto Nacional

FAPESP nº 219). Segundo o engenheiro

pelo físico Nelson Jorge Schuch, traba-

de Pesquisas Espaciais (Inpe) em cola-

Otávio Durão, pesquisador da equipe

lha agora no NanosatC-Br2, com mais

boração com a Universidade Federal de

de nanossatélites do Inpe, dois anos de

equipamentos, alguns deles construídos

Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do

funcionamento contínuo é mais do que

no Inpe em parceria com empresas de

Sul. O BR1, como é chamado, continua

o esperado: “Nossa previsão era de que

ex-alunos, e lançamento previsto para o

transmitindo informações sobre a variação

o nanossatélite poderia funcionar por um

primeiro semestre de 2017.

PESQUISA FAPESP 245 | 13


Pele artificial no Laboratório de Biologia da Pele da USP: reconstruída a partir de células humanas

14 | julho DE 2016


capa

Pele de laboratório Pesquisadores brasileiros criam modelos de tecido humano para estudar doenças e substituir testes de cosméticos e medicamentos em animais Yuri Vasconcelos

léo ramos

A

três anos de entrar em vigor uma resolução do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) que obriga fabricantes de cosméticos e laboratórios farmacêuticos a adotarem métodos alternativos ao uso de animais em pesquisa, o Brasil fez avanços significativos no desenvolvimento de pele reconstruída em laboratório. Esse material biológico é chamado também de pele artificial, 3D ou equivalente, e tem morfologia e fisiologia similares ao tecido humano. Poderá ser usado em testes de avaliação de novos cosméticos e produtos de higiene pessoal em substituição a animais, no estudo de doenças, como melanoma e câncer de colo uterino, e no tratamento de úlceras dermatológicas crônicas e queimaduras. Empresas, institutos de pesquisa e universidades do país correm contra o tempo para desenvolver modelos nacionais de pele humana in vitro. A pele artificial é reconstruída a partir de células humanas e demora de 10 a 30 dias para ser desenvolvida (ver infográfico na página 17). O tecido dura por volta de sete a 10 dias, período

em que está pronto para ser usado. No caso dos testes de cosméticos, a nova substância deve ser aplicada sobre a pele. Em creme ou pó, o material é espalhado com auxílio de uma espátula ou uma haste flexível; se for um líquido, é pingado sobre o tecido. Depois de algumas horas, a pele in vitro é lavada para remoção da substância. No dia seguinte, os pesquisadores fazem em laboratório a contagem da quantidade de células vivas e mortas a fim de verificar o potencial corrosivo irritante do novo produto. Cada fragmento de pele reconstruída, com 1,5 centímetro (cm) a 3 cm de diâmetro, só pode ser usado uma vez. Atualmente, o mercado de pele artificial é liderado pela multinacional francesa L’Oréal, uma das gigantes do setor de cosméticos. A empresa é proprietária dos modelos Episkin e Skinethic, distribuídos em países da Europa em kits formados por 24 unidades de tecidos de pele artificial humana reconstruídos em laboratório. Além da pele completa, formada pela epiderme (camada externa) e a derme (camada logo abaixo da epiderme), a L’Oréal comercializa no exterior outros seis modelos de tecidos, entre eles uma PESQUISA FAPESP 245 | 15


Preparação de amostra de pele desenvolvida pela professora Silvya Maria-Engler, da USP

16 | julho DE 2016

As estruturas celulares produzidas em laboratório têm características muito similares à pele humana São José dos Pinhais, no Paraná. O tecido é empregado em testes de matérias-primas e produtos acabados, como maquiagens, loções e cremes, e em ensaios de segurança e toxicidade, no lugar de animais. “Para fazer nossa pele 3D, usamos células isoladas de tecidos cutâneos descartados de cirurgias plásticas, com o consentimento dos doadores e a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa de nosso Centro de P&D”, informa Márcio Lorencini, gerente de Pesquisa Biomolecular da companhia. Em laboratório, o novo tecido é formado célula a célula, camada por camada, tal como a pele humana. O resultado é um fragmento de até 3 centímetros de diâmetro pronto para realização de testes. Na recriação in vitro, a epiderme, a camada mais externa da pele, é obtida por meio da cultura de queratinócitos, células que realizam a síntese da queratina e respondem pelos fatores de barreira e proteção, e dos melanócitos, responsáveis pela produção de melanina, que confere pigmentação à pele. A derme é reconstituída a partir da cultura de fibroblastos humanos cultivados em gel de colágeno. Os fibroblastos são responsáveis pela produção de proteínas capazes de sintetizar fibras de colágeno e elastina. Todas essas estruturas celulares produzidas em laboratório têm características de cresci-

foto  léo ramos infográfico  ana paula campos ilustração  fabio otubo

epiderme humana reconstruída, uma epiderme pigmentada, mimetizando diferentes cores de pele, e vários tipos de epitélio, como os que compõem as mucosas da boca, gengiva, vagina e córnea. Outra grande participante desse mercado é a norte-americana MatTek, que vende vários modelos de pele equivalente, não muito distintos dos feitos pela L’Oréal. Os preços nas empresas, de amostras individuais, variam de US$ 50 a US$ 80. Na Alemanha, o Instituto Fraunhofer IGB criou um sistema automatizado capaz de produzir 12 mil fragmentos de pele a partir de uma única amostra de tecido humano. Desde 2014, o instituto alemão vende o sistema às empresas que querem certificar-se de que seus produtos de beleza não causam alergia ou irritação. Embora a legislação brasileira permita a importação de pele artificial fabricada no exterior, isso nem sempre é viável – daí a importância do desenvolvimento do tecido no país. “Por ser material vivo e, portanto, perecível, os fragmentos de pele contidos nos kits têm validade de poucos dias. É muito comum enfrentarmos problemas na alfândega, o que na prática inviabiliza a importação”, diz a bióloga Silvya Stuchi Maria-Engler, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), referência nas pesquisas envolvendo pele equivalente. “Com a proibição do uso de animais em testes de cosméticos e insumos a partir de 2019, é muito importante que os kits passem a ser produzidos no país.” (ver boxe na página 20) No fim de 2015, o Grupo Boticário, controlador das unidades de negócio O Boticário, Eudora e Quem disse, Berenice?, anunciou ter conseguido criar um material equivalente à pele humana no seu Centro de Pesquisa e Desenvolvimento, em


Tecido reconstruído Método permite testes de novos cosméticos e fármacos e reduz o número de ensaios em seres humanos

Fonte  Grupo Boticário e Silvya Stuchi MariaEngler, professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP

queratinócitos fibroblastos melanócitos

2 1

6

TECIDO DE ORIGEM A pele artificial é reconstituída a partir de células humanas descartadas de cirurgias plásticas ou de amostras do prepúcio (camada de pele que cobre a glande do pênis) de recém-nascidos

TEMPO DE CRESCIMENTO São necessários 10 dias para desenvolver peles em tamanhos menores (1,5 cm de diâmetro). Para fragmentos maiores (3 cm), 30 dias. A pele reconstituída dura até sete dias

ESTERILIZAÇÃO E LIMPEZA Os fragmentos de pele (5 a 8 cm2) passam por um processo de esterilização e por testes de controle microbiológico para garantia de que estão puros e sem infecções virais ou bacterianas

epiderme

derme

3

A pele artificial permite maior assertividade nos testes ao ser elaborada por um pool de células de vários indivíduos

5

Vantagens

RECONSTITUIÇÃO DA EPIDERME Sobre a derme reconstruída é feita a cultura de queratinócitos e melanócitos. O cultivo pode ser desenvolvido também em uma membrana de policarbonato

Eleva a confiabilidade dos testes, já que a Reduz ou evita testes com animais na indústria cosmética e de medicamentos

pele reconstruída é mais parecida com o tecido humano do que a pele de animais de laboratório

ISOLAMENTO CELULAR Em seguida, isolam-se as principais células cutâneas: fibroblastos, responsáveis pela produção de proteínas que dão firmeza à pele; queratinócitos, que respondem pela proteção; e melanócitos, que dão pigmentação

4

CONSTRUÇÃO DA DERME O primeiro passo para a reconstituição total da pele (derme + epiderme) é a síntese da derme. Em uma matriz de colágeno, os cientistas induzem o crescimento dos fibroblastos humanos

Possibilita a Permite testar

redução de

várias formulações

testes clínicos

identificando

em humanos

aquelas mais seguras e eficazes


mento muito similares à pele humana, o que aumenta a uniformidade e a reprodutibilidade dos testes. E guardam muito mais semelhança com a pele humana do que a dos camundongos normalmente usados na avaliação de novos produtos. A pele completa formada por derme e epiderme é ideal para o estudo de doenças e a avaliação de novos medicamentos, enquanto a estrutura formada apenas pela epiderme é suficiente para ensaios de corrosão e irritação feitos pela indústria de cosméticos.

1

Pele 3D

A tecnologia do Grupo Boticário, segundo Márcio Lorencini, começou a ser desenvolvida em 2009. Com ela é possível realizar vários testes em uma mesma unidade de pele reconstituída. “A pele 3D permite maior amplitude e assertividade nos testes, por ser elaborada a partir de um conjunto de células de vários indivíduos [prática comum nas técnicas atuais de todos os grupos que pesquisam e produzem peles artificiais]. Utilizando um pool de células diminuímos a variabilidade individual. Caso empregássemos células derivadas de uma única pessoa poderíamos ter respostas variáveis de um indivíduo para outro, o que não é ideal para avaliação de parâmetros toxicológicos e de eficácia de produtos e matérias-primas cosméticas”, afirma Lorencini. Além dos ensaios de toxicidade, corrosão e irritação cutânea, a empresa usa a pele artificial para avaliação de eficácia da produção de melanina, análise de expressão gênica e proteica de diversos marcadores teciduais, como colágenos, elastinas e queratinas, e estudo de citocinas, que são biomarcadores de inflamação. O Grupo Boticário desenvolveu o modelo com recursos próprios, sem o auxílio de parceiros na academia, mas contou em sua equipe com a participação da bióloga Carla Abdo Brohem, que fez sua formação no Laboratório de Biologia da Pele da USP, com bolsa de doutorado da FAPESP. Também com auxílio da Fundação, Carla realizou um pós-doutorado entre 2010 e 2011, ocasião em que estagiou no laboratório da pesquisadora australiana Pritinder Kaur, do Peter MacCallum Cancer Centre, instituição médica de Melbourne especializada na pesquisa e no tratamento de câncer. Pritinder é considerada uma grande especialista no estudo de células-tronco epiteliais e colabora com o grupo da professora Silvya Maria-Engler. Atualmente, Carla coordena o Núcleo de Avaliação de Segurança e Eficácia do Centro de P&D da companhia. Em São Paulo, Silvya, coordenadora do Laboratório de Biologia da Pele da USP, finalizou seu primeiro modelo de pele humana reconstruída in vitro em 2006. Entre os trabalhos mais recentes, destacam-se o desenvolvimento de uma pele 18 | julho DE 2016

envelhecida para uso em testes de cosméticos antienvelhecimento, a criação de uma epiderme semelhante aos modelos comerciais e a produção de uma pele 3D voltada a estudos sobre câncer de pele. Essa linha de pesquisa já rendeu 45 artigos científicos publicados pelo grupo de Silvya. “É fundamental que o Brasil domine a tecnologia de produção de pele humana reconstruída, ganhando autonomia nesse campo de pesquisa”, afirma a cientista. “Os modelos de pele completa e epiderme que criamos são idênticos aos produzidos no exterior. Estamos transferindo esse conhecimento para a sociedade por meio da Fundação Instituto de Pesquisas Farmacêuticas da USP, a FipFarma. Já fomos procurados por vários fabricantes de cosméticos interessados em receber treinamento para aprender a construir esses tecidos em laboratório”, diz ela. A primeira empresa a fazer o curso de capacitação da USP foi a OneSkin Technologies, startup de biotecnologia especializada em engenharia de tecidos criada por três pesquisadoras brasileiras e sediada em São Francisco, na Califórnia. “Com o treinamento recebido na USP, conseguimos construir nosso modelo de epiderme humana in vitro. Agora, estamos trabalhando no desenvolvimento da pele completa”, conta a bioquímica Carolina

Teste de cosmético líquido sobre pele artificial na USP. Cada fragmento só pode ser usado uma vez


ra o entendimento de fenômenos relacionados à deficiência de cicatrização e maior intensidade inflamatória em pele de pacientes diabéticos”, explica a pesquisadora.

fotos  1 e 2 léo ramos 3 e 4 enrique bocccardo / usp

2

aguarda regulamentação

O Grupo Boticário não vai compartilhar a pele 3D construída em seus laboratórios enquanto não existir no Brasil a validação para esse tipo de produto. A francesa L’Oréal tomou a decisão de investir no Brasil nessa área e também aguarda a regulamentação para poder disponibilizar no país tecidos da linha Episkin, como já ocorre na Europa e na Ásia. “Enquanto não houver regulamentação clara para a distribuição dos tecidos, estamos no Brasil somente para fins de pesquisa. Por ano, produzimos na França aproximadamente 150 mil unidades de pele reconstruída, enquanto na China fabricamos outros 30 mil tecidos de pele pigmentada”, conta Rodrigo De Vecchi, gerente de Pesquisa Avançada da L’Oréal no Brasil. A princípio, a empresa implementa aqui apenas o modelo de epiderme humana reconstruída, conhecido pela sigla RHE, que usa em sua constituição queratinócitos humanos, o principal tipo celular epitelial. O RHE é um tecido aprovado pelo Comitê Europeu para Validação de Métodos Alternativos (Ecvam), para aplicação em testes de segurança em produtos cosméticos em substituição aos testes em animais. “Quando o modelo RHE estiver disponível no Brasil, contaremos com uma ferramenta para uso em cosméticos e também em áreas de pesquisa, como biomedicina, medicina regenerativa e avaliação toxicológica”, afirma De Vecchi. Com a finalidade de refinar seu modelo de epiderme reconstruída, a L’Oréal fechou recentemente uma parceria com o Instituto D’Or de Pesquisa e Educação (IDor), do Rio de Janeiro. “Nossa proposta é reinervar o modelo de epiderme humana reconstruída com neurônios criados por nós, aproximando-a ainda mais da pele humana original”, conta o neurocientista Stevens Rehen, coordenador de pesquisas do IDor. Trata-se de uma pesquisa com enorme potencial biotecnológico, segundo o pesquisador, que também é professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB-

Reis de Oliveira, sócia-fundadora da OneSkin. Incubada desde março deste ano na IndieBio, uma das maiores aceleradoras de biotecnologia dos Estados Unidos, a OneSkin quer dominar a tecnologia de construção de pele 3D para atuar no mercado de cosméticos antienvelhecimento. “Nosso próximo desafio é desenvolver um tipo de pele envelhecida que nos permita estudar mecanismos para prevenir o envelhecimento”, diz Carolina. Quando este objetivo for atingido, a OneSkin vai se dedicar à busca de moléculas com potencial antienvelhecimento. “Nossa ideia é licenciar moléculas relevantes ou produzir novos cosméticos com elas.” A OneSkin foi convidada a instalar-se na IndieBio após participar de um evento para startups no Brasil e chamar a atenção de investidores estrangeiros. No Laboratório de Biologia da Pele da USP, a bióloga Paula Comune Pennacchi trabalha em uma linha de pesquisa similar à da OneSkin. Ela criou um modelo de pele humana que simula o envelhecimento cutâneo fisiológico e as alterações de pele observadas em pacientes diabéticos. O trabalho foi sua tese de doutorado, defendida em fevereiro deste ano. “Recriamos um modelo capaz de responder à ação de cosméticos e fármacos com ação sobre o envelhecimento cutâneo. Nossa pele reconstruída também contribuiu pa-

A primeira amostra de pele humana reconstruída na USP foi finalizada em 2006

3

4

Microscopia de infecção por papiloma vírus (HPV), à esquerda, e a pele artificial normal, em experimentos no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB)

PESQUISA FAPESP 245 | 19


Pele reconstruída da L’Oréal: pesquisas avançam para inserir neurônios no produto

1

-UFRJ). A área de interesse de Rehen é o estudo da biologia de células-tronco reprogramadas. “Desde 2014 firmamos a parceria com a L’Oréal voltada ao uso de células-tronco para a criação de modelos celulares humanos em laboratório”, diz. “Acreditamos que ao inervar a epiderme humana reconstruída com neurônios iremos aumentar a capacidade preditiva do modelo.” Além de poder ser usada como plataforma para testes de cosméticos e produtos de higiene pessoal, a pele cultivada também é uma ferramenta para validação de novos medicamentos e estudo de doenças, entre elas papilomavírus humano (HPV) e melanoma. Na USP, estudos nessa linha são desenvolvidos no laboratório da professora

Silvya e no Instituto de Ciências Biomédicas. Lá, o professor Enrique Boccardo desenvolveu um modelo de pele humana in vitro para investigar os mecanismos de transformação celular associados ao HPV e aprofundar pesquisas sobre o câncer de colo uterino causado pelo microrganismo. “Com apoio da FAPESP, eu trouxe essa tecnologia dos Estados Unidos em 2001, quando trabalhava no Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, em São Paulo”, conta Boccardo. “Para estudar a fundo a biologia do vírus, introduzimos no Brasil um sistema de cultura de células in vitro que permite reproduzir o ambiente no qual o microrganismo cumpre seu ciclo. Esse tecido, semelhante à pele, é composto por que-

Métodos alternativos à experimentação animal Uso de tecidos reconstruídos no Brasil depende de um custoso processo de validação O Brasil é o quarto maior mercado

apontem o tamanho do mercado de pele

Tecnologia, Inovações e Comunicações

global de produtos de beleza, superado

equivalente no Brasil, mas teoricamente

(MCTIC), responsável por estabelecer

por Estados Unidos, China e Japão. As

ele deve ser expressivo, já que muitos

normas para experimentação animal no

cerca de 2,5 mil empresas do segmento

lançamentos de cosméticos ocorrem

Brasil. A entidade reconheceu 17 métodos

faturaram R$ 42,6 bilhões em 2015, de

todos os anos”, afirma a professora

alternativos ao uso de animais em

acordo com a Associação Brasileira

Silvya Maria-Engler, da USP, que integra

atividades de pesquisa, dos quais

da Indústria de Higiene Pessoal,

o Conselho Científico da Abihpec.

dois preveem o uso de epiderme

Perfumaria e Cosméticos (Abihpec).

A obrigatoriedade de substituição

humana equivalente para validação

A partir de 2019, qualquer novo produto

de testes em animais por modelos de pele

de cosméticos. “Um destina-se

de beleza deverá obrigatoriamente

equivalente foi determinada há dois anos

à verificação do potencial de

passar por testes dermatológicos em

pelo Conselho Nacional de Controle de

irritação dos novos produtos e o outro

peles humanas reconstruídas, no Brasil

Experimentação Animal (Concea), órgão

serve para avaliação da corrosão

ou no exterior. “Não existem estudos que

integrante do Ministério da Ciência,

das substâncias testadas”, destaca

20 | julho DE 2016


fotos 1 L’Oréal  2 Guilherme Pupo

dicamento, chamado vemurafenibe, que inibe a atividade proliferativa do tumor.” A pele reconstruída com melanoma serviu para avaliar o composto como possível agente quimioterápico. TRATAMENTO DE QUEIMADOS

2

Produção de pele no Boticário: testes para toxicidade, corrosão e irritação cutânea

ratinócitos humanos, colágeno e fibroblastos”, explica Boccardo. “Temos utilizado o modelo para analisar os mecanismos moleculares empregados pelo vírus para escapar da resposta imune do organismo e entender como o HPV manipula a célula a fim de sintetizar seu material genético e reproduzir novas partículas virais.” Na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, a pesquisadora pós-doutoranda Fernanda Faião Flores recorre ao tecido artificial desenvolvido pelo grupo da professora Silvya Maria-Engler para estudar os mecanismos de resistência ao melanoma, a forma mais letal de câncer de pele. “Utilizamos linhagens celulares, amostras de pacientes e um modelo de pele humana reconstituída in vitro que mimetize a invasão e a disseminação das células de melanoma”, conta. “Com isso, testamos compostos e conseguimos caracterizar o fenômeno de resistência a um me-

Na área médica, outra opção é o emprego de pele humana reconstituída e terapia celular com transplante de células cutâneas para o tratamento de úlceras de pele e queimaduras em pacientes. Em Campinas, a dermatologista Maria Beatriz Puzzi, coordenadora do Laboratório de Cultura de Células de Pele da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), estuda a recriação do tecido celular em laboratório para enxerto feito a partir de células isoladas do próprio paciente, o que faz com que ambos os tecidos – a pele natural e a reconstituída – tenham estrutura muito semelhante, possibilitando a realização de transplantes autólogos (em que se utiliza tecido de um mesmo indivíduo) com menor risco de rejeição. “O problema dessa metodologia é que a recriação de pele em laboratório leva em torno de 45 a 60 dias – e os pacientes queimados precisam do tratamento imediatamente”, explica Maria Beatriz. Para contornar esse problema, no lugar do implante da pele reconstruída, o grupo decidiu empregar a terapia celular com células da pele. “Tiramos um pedacinho da pele do paciente, isolamos os queratinócitos e os fibroblastos e fazemos o cultivo dessas células em laboratório. Em 15 dias, elas são misturadas a um gel e aplicadas no paciente. Em pouco tempo, espalham-se nas lesões reconstruindo a pele”, conta. “Temos resultados muito positivos com essa rota, que acelera a cicatrização, encurta o tempo de hospitalização e reduz a morbidade dos pacientes.” n Projetos

o ex-coordenador do Concea, José

testes, a um custo aproximado de

Mauro Granjeiro. Esses dois métodos

R$ 1 milhão. Em geral, de um a

alternativos foram referendados pela

três laboratórios independentes

Organização para a Cooperação e

participam da validação, que é

Desenvolvimento Econômico (OECD),

coordenada pelo Centro Brasileiro

entidade que aprovou os métodos

para Validação de Métodos

empregados na Europa e que

Alternativos (Bracvam) com apoio

serviram de base para elaboração

da Rede Nacional de Métodos

da norma brasileira.

Alternativos (Renama), criada em

“A pele 3D que desenvolvemos

2012 pelo governo federal. “Por

na USP foi criada para estudos

causa do alto custo, ele só é viável

científicos, mas pode ser usada

com apoio de empresas e laboratórios

comercialmente, desde que passe

privados”, ressalta a farmacêutica-

por um processo de validação”, conta

bioquímica Silvia Berlanga Barros,

Silvya. Nesse processo, amostras

professora da FCF-USP. Ela

da pele cultivada in vitro devem ser

participou da criação da pele

submetidas a uma extensa bateria de

artificial no grupo de Silvya Engler.

1. Desenvolvimento de pele artificial contendo equivalente dérmico glicado na avaliação da eficácia e toxicidade de compostos antiglicação (nº 2011/14327-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Silvya Stuchi Maria-Engler (USP); Investimento R$ 85.925,35. 2. Geração de peles artificiais humanas e melanomas invasivos como plataforma para testes farmacológicos (2008/58817-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Silvya Stuchi Maria-Engler (USP); Investimento R$ 165.075,55. 3. Impacto da expressão de reck no controle da invasão de melanoma: Estudo em monocamadas e pele artificial (nº 2010/50157-5); Modalidade Bolsa no País – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Silvya Stuchi Maria-Engler (USP); Bolsista Carla Abdo Brohem (USP); Investimento R$ 32.690,51. 4. Estudo da possível implicação de p53 nos efeitos do fator de necrose tumoral-alfa (TNF-alfa) sobre células imortalizadas por papilomavírus humano (HPV) (nº 1998/07087-2); Modalidade Bolsa no País – Regular; Pesquisadora responsável Luisa Lina Villa/USP; Bolsista Enrique Mario Boccardo Pierulivo (USP); Investimento R$ 104.861,71. 5. Análise da expressão de proteínas de polaridade em processos neoplásicos associados ao papilomavírus humano utilizando culturas organotípicas. (FAPESP-Conicet) (nº 2012/51017-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Enrique Mario Boccardo Pierulivo (USP); Investimento R$ 22.988,33.

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entrevista Anibal Faúndes

O homem que aprendeu a enxergar as mulheres Médico chileno que ajudou a transformar os cuidados com a saúde feminina fala sobre sexualidade, estupro e interrupção da gravidez Ricardo Zorzetto  |

A

retrato

Léo Ramos

os 85 anos, o médico chileno Anibal Faúndes parece incansável. Especialista em reprodução humana e sexualidade feminina, Faúndes ajudou a transformar a maneira de cuidar da saúde das mulheres no final dos anos 1980, ao mostrar que os programas voltados para elas não as beneficiavam, e ainda hoje mantém uma agenda repleta de compromissos que o fazem viajar para o exterior algumas vezes por mês. Entre abril e maio deste ano, ele emendou uma sequência de atividades que o levaram a sete países em três continentes. Esteve na Índia, na Zâmbia, na Suíça, em Camarões, na Dinamarca, no Quirguistão e na Turquia. Sempre a trabalho. Faúndes se formou em medicina em 1955 na Universidade do Chile. Ainda no internato, o período da graduação em que os alunos trabalham e moram no hospital, ele se sensibilizou com os maus-tratos e o estigma enfrentados pelas mulheres que faziam aborto – tema do livro O drama do aborto, que publicou em 2007 com o colega José Barzelatto – e passou a trabalhar para reduzir os abortos inseguros, uma das principais causas de morte materna. “São dois os mecanismos para reduzir os abortos, educação sobre sexualidade e informação sobre métodos contraceptivos eficazes, além de acesso a eles”, conta Faúndes, que preside o grupo de trabalho sobre prevenção do aborto inseguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). “A mulher que faz aborto não é favorável a ele, mas o vê como solução”, afirma. Em 1973, quando o general Augusto Pinochet tomou o poder no Chile, o médico teve de deixar o país. À época diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, José Aristodemo Pinotti, ex-aluno de Faúndes, o convidou para ir a Campinas. No Brasil, Faúndes trabalhou em programas pioneiros de assistência à saúde feminina e ajudou a criar o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism). 22 | julho DE 2016

idade 85 anos especialidade Ginecologia e obstetrícia formação Graduação em medicina na Universidade do Chile (1955) instituição Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp) produção científica Escreveu cerca de 460 artigos científicos, dois livros e 83 capítulos de livros. Orientou 26 dissertações de mestrado e 26 teses de doutorado


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Na manhã de 30 de maio, dois dias após chegar de Istambul, o pesquisador recebeu a reportagem de Pesquisa FAPESP no Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), organização não governamental que realiza estudos sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos em parceria com a Unicamp. Alto, magro, voz baixa e ideias ágeis, Faúndes encerrou a entrevista depois de duas horas e meia de conversa e desceu quatro lances de escada a passos rápidos. À pergunta “O senhor não se cansa?”, respondeu: “Quando eu tinha a sua idade me cansava”. Como a sociedade, no Brasil e no resto do mundo, percebe a mulher? Infelizmente, ainda se vê a mulher como alguém muito dependente do homem, que deve servi-lo para que esteja tranquilo. Acho que a própria mulher se sente um pouco assim. Por que isso acontece ainda hoje? É a famosa história de que atrás de cada homem há uma mulher, que é importante porque ajudou o homem e não por si própria. É o sentimento geral. A mulher é vista como alguém para tornar a vida do homem melhor, para que ele se alimente e se vista bem. Fui ensinado a entender a posição da mulher no meu primeiro casamento [com a socióloga argentina Ellen Hardy, morta em 2010]. Tive uma educação intensiva.

Onde vocês moravam nos Estados Unidos e o que o senhor estudava lá? Perto de Boston. Fui para a Fundação Worcester para Biologia Experimental, onde se criou a pílula anticoncepcional. Ali estava Gregory Pincus, um dos pesquisadores que idealizou a pílula. Ao

como você? Tenho capacidade de produzir e estou apenas limpando a casa e cuidando das crianças. Por que minha mente deve ficar restrita a isso?”. Progressivamente ela me mostrou que havia a diferença de funções pelo fato de um ser mulher e o outro ser homem. Ao vir para a Unicamp, onde minha vida foi mais tranquila, passei a compartilhar com ela e nossos três filhos as funções da casa. Ela criou uma lista de afazeres, um lavava a louça, outro limpava a casa. Comecei a entender o sentido do feminismo e a necessidade de termos direitos iguais. Ela me mostrava como era aceito que a mulher tivesse menos direitos que o homem e me corrigia sempre que eu me comportava segundo a mentalidade em que havíamos sido formados. Depois ela aprendeu a pensar diferente e eu, a reconhecer que homens e mulheres têm direitos iguais. Foi ela quem me ensinou. E o senhor levou esse conhecimento para o seu trabalho. Claro. Quando nos convencemos de algo, passamos a agir de modo diferente. No Cemicamp ela fez um estudo sobre violência sexual em que uma das perguntas era se alguma vez a mulher já havia feito sexo contra a vontade. Ao ver o resultado, não acreditei que 63% das mulheres já haviam feito sexo contra a vontade ao menos uma vez na vida. A proporção de estupros era 7%; e 20 e tantos por cento eram de sexo sob ameaça, quando o homem impõe uma condição do tipo “se você não fizer sexo comigo, haverá esta consequência”. Outra proporção semelhante era de mulheres que se sentiam obrigadas a fazer sexo por serem mulheres. Ellen disse: “Você nunca me obrigou a ter relação sexual?”. Respondi que não e ela falou: “Ah, não? E aquela vez...” Assim, ela me mostrava como perdemos a noção de que existe desigualdade de direitos, produto de uma cultura que nos ensinou que a mulher tem obrigações que o homem não tem. E que o homem teria poder sobre a mulher. O homem passa a ser mais feliz quando aceita a mulher com igualdade de direitos, porque a parceira também se torna feliz.

A mulher morre na gestação, no parto e no pós-parto e não aparece nas estatísticas

Como foi essa educação? Conheci Ellen quando já era médico e ela era estudante do secundário, nove anos mais nova que eu. Quando a conheci, ela tinha 17 anos e nos casamos dois anos depois, no Chile. Eu já tinha certo nome e pensava: “Vou formá-la do meu jeito”. Foi o contrário. No início, ela fez o papel da dona de casa, que cuida do marido e dos filhos, até irmos para os Estados Unidos, onde ficamos entre 1963 e 1964, com uma bolsa de estudos. Ela era uma leitora extraordinária, devorava livros. Toda semana passava em frente de casa uma biblioteca ambulante e ela retirava livros. Aí leu The feminism 24 | julho DE 2016

mystique, da primeira feminista famosa, Betty Friedan, e descobriu por que não era feliz, embora desempenhasse o papel que, socialmente, havia sido desenhado para ela. Ellen não estava feliz porque não estava desenvolvendo seu intelecto, sua capacidade de produzir. Ela me colocou o problema e eu disse: “Eu a apoio e você cursará o que quiser; quando retornarmos ao Chile, procuraremos alguém para cuidar das crianças”.

voltarmos para o Chile ela decidiu estudar sociologia. Tínhamos dois filhos e fazia uns oito anos que ela havia saído da escola secundária. Ela se formou pela Universidade Católica do Chile, mais difícil de entrar, e anos mais tarde, já no Brasil, foi contratada como docente pela Unicamp, onde desempenhou um papel importante para o desenvolvimento da pós-graduação. Ela introduziu na Faculdade de Ciências Médicas o conceito de ética na pesquisa e criou o primeiro comitê, antes de existir a Conep, a comissão nacional de ética em pesquisa. Como ela o influenciou? Ao contar por que não era feliz, ela disse: “Por que, por ser mulher, não posso ser


arquivo pessoal

números injustificáveis. Aqui, a taxa de mortalidade deve ser em torno de 50 mortes para cada grupo de 100 mil nascidos vivos. Digo em torno de porque não existe nada mais subnotificado. A mulher morre na gestação, no parto e no pós-parto e não aparece nas estatísticas. Quando se pergunta por que morreu, a conclusão é hemorragia, insuficiência renal aguda, anemia.

Essa visão sobre a mulher ocorre no mundo todo? É raro o país que conseguiu mudá-la. Os Estados Unidos são machistas. A Europa está muito atrás. Os países da Escandinávia e a Suíça talvez sejam um pouco menos machistas. Os piores são os países árabes. Vê-se em toda parte: em países socialistas, capitalistas e em ditaduras. Como essa cultura da superioridade masculina afeta a saúde da mulher? Há tempos escrevi um paper chamado Gênero, poder e direitos sexuais e reprodutivos. Nele, analisei os três tipos de demora que duas pesquisadoras norte-americanas, Sereen Thaddeus e Deborah Maine, associaram à mortalidade materna. A primeira demora está em aceitar que existe um problema e é preciso buscar ajuda. A segunda demora é, tomada a decisão, chegar ao local de atendimento. E a terceira é, dentro do serviço de saúde, o tempo que leva para tratar o problema. A primeira ocorre porque, em muitos países, a mulher não pode decidir ir ao hospital se o marido não autoriza ou não está junto. É comum na África. Mas, se pensarmos no Brasil atual, quanta independência tem uma mulher para consultar um médico sem que o marido saiba? Ainda ocorre? Sim, ainda hoje. Em maio, estava na Turquia, falando com grupos dos países árabes sobre as mulheres que deixam de usar anticoncepcional porque os maridos não autorizam, mesmo quando elas necessitariam usá-lo. Em boa parte do Brasil é assim, no Chile também. A mulher não pode usar um método contraceptivo se o homem não estiver de acordo. Há 15 ou 20 anos, fizemos um estudo, dirigido por Ellen, sobre reversão de ligadura tubária, um dos métodos de esterilização feminina. Entrevistamos mulheres que vieram solicitar a reversão da ligadura porque queriam ter filhos e descobrimos que, em muitos casos, a ligadura havia sido feita porque o marido solicitou diretamente ao médico, sem a mulher saber. Era comum? Não sei, mas o problema existia em uma época em que no Brasil se aproveitava a cesárea para fazer a ligadura. O médico combinava com a mulher o parto cirúrgico e aproveitava para fazer a ligadura,

Faúndes e sua primeira mulher, Ellen Hardy, no dia em que se casaram, em janeiro de 1959

cobrando por fora, embora ele fizesse os procedimentos usando a estrutura do serviço público. Entre os casos que estudamos, havia aqueles em que a mulher tinha feito laqueadura muito cedo e outros em que nem sabiam que tinham sido laqueadas. Existem ainda outras formas de o homem interferir na saúde da mulher. Há casos em que a mulher não pode ir ao pré-natal porque o marido não está disposto a pedir folga para ficar com a criança que eles já têm. A diferença de poder entre os gêneros contribui para que a mulher se descuide de sua saúde. O homem paquera a mulher e diz que vai usar preservativo. Na hora H, não usa e a mulher que se cuide. Em todos os levantamentos feitos, quando se avalia de quem é a responsabilidade de prevenir a gravidez, vê-se que é da mulher. Os homens não assumem responsabilidade sobre a própria sexualidade. Os médicos que cuidam de mulheres têm de atendê-las com muita atenção porque há um abismo de poder entre quem presta assistência à saúde e quem recebe. Essa diferença de poder se torna ainda maior se o médico que atende a mulher é um homem. Quais os principais problemas de saúde reprodutiva da mulher? Com relação à saúde sexual, é a mortalidade materna, que no Brasil e nos outros países da América Latina alcança

Registra-se a causa específica. Sim. Mas a hemorragia ocorre no parto, no aborto. Nos lugares em que é crime, oculta-se a morte por aborto. Em um estudo feito pela médica Mary Angela Parpinelli, que analisou cerca de mil mortes de mulheres de 10 a 49 anos em Campinas no início dos anos 1990, a causa de morte materna mais subnotificada era o aborto. Há um número de mortes que aparece nas estatísticas oficiais, que são as que estão registradas nos atestados de óbito. Mas, ao estudar uma por uma as mortes de mulheres com idade entre 10 e 49 anos, descobre-se um número importante de mortes maternas que não estava nas estatísticas. Se não me engano, só 35% das mortes por aborto estavam registradas. Não deveria ocorrer nenhuma morte por aborto, porque hoje é um procedimento tão simples que não deveria causar mais risco do que uma injeção de penicilina. Não estou exagerando: parto é muito mais arriscado do que um aborto. O senhor é favorável ao aborto? Não sou e não conheço quem seja. Mas sou absolutamente contra que uma mulher que faz um aborto seja condenada. São coisas totalmente diferentes. Tanto que os países com menores índices de aborto muitas vezes são aqueles com leis menos restritivas e com mais acesso à assistência. Publicamos no ano passado um artigo mostrando que, quando se legaliza o aborto, inicialmente há aumento da taxa. Não sabemos se é porque se registra mais ou porque aumentou de fato. Logo depois, a taxa começa a cair. O efeito da legalização do aborto é diminuir o número de abortos. O que explica esses dados? Com o aborto sendo considerado crime, se uma pessoa de classe média precisa fazer o procedimento, ela procura um profissional bom e paga por isso. A pessoa que realiza o aborto está ganhando PESQUISA FAPESP 245 | 25


dinheiro. Quando se permite que os serviços de saúde realizem o aborto, essas instituições não querem que a mulher retorne para fazer outro. A instituição dá informação sobre como prevenir a gravidez, explica os riscos e sugere ou administra um método anticoncepcional. Desse modo, consegue-se reduzir o aborto repetido, que é metade ou mais de todos os casos de aborto. Manter a prática clandestina é uma maneira de manter a taxa elevada. É absolutamente estúpido quando os legisladores fazem projetos de leis contra esse procedimento e incluem o aumento da pena para quem fizer. Está demonstrado que proibir o aborto não reduz os seus números. Aumenta a morte de mulheres e eleva os custos para o sistema de saúde inteiro. Acaba sendo mais barato ensinar a evitar a gravidez. É preciso identificar por que se faz aborto. Os mecanismos para reduzi-los são dois: primeiro é a informação sobre sexualidade; segundo, informação sobre métodos contraceptivos. Educação sexual significa tornar disponível para as escolas pessoas preparadas para responder perguntas sobre sexualidade. Os adolescentes estão cheios de perguntas sobre sexualidade. E onde encontram respostas? Na internet e nas revistas, que muitas vezes fornecem informação deturpada. Estudos feitos no Brasil mostram que, quando se ensinam meninos e meninas a atuar com responsabilidade, em vez de aumentar a frequência de relações sexuais e o número de parceiros, diminui a frequên­cia dessas relações. É preciso ensinar que, se vai ter relação, use preservativo para não ter transmissão de doenças e se proteger de uma gravidez para a qual não está preparado. Também é preciso dar informação sobre métodos anticonceptivos e acesso a eles. Infelizmente, o profissional de saúde segue a lei do menor esforço. É muito mais fácil e rápido ficar sentado no consultório prescrevendo pílula anticoncepcional ou injeção mensal ou trimestral do que ter de se levantar, examinar a paciente e colocar um dispositivo intrauterino, o DIU.

Qual a eficácia do DIU? É muito maior. Essa é outra questão. Quando se fala em eficácia dos métodos anticoncepcionais, em geral se refere à eficácia com uso perfeito, descrita nas bulas. Essa é a eficácia dos ensaios clínicos, que são bem controlados. James Trussel, que é economista e professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, comparou a eficácia observada em estudos populacionais medindo quantas mulheres ficavam grávidas um ano depois de começarem a usar regularmente pílula, anel vaginal ou injeção, e chamou isso de eficácia no uso habitual. Quais os resultados? Com uso perfeito, três mulheres em cada

nem o conhecimento adequado, pode não ter acesso ao método contraceptivo. Essa é a realidade da maior parte da população brasileira. Exato. Além disso, as pessoas não têm conhecimento de que o melhor método anticoncepcional, disponível gratuitamente no Brasil, é o DIU de cobre, cuja eficácia no uso perfeito é igual à eficácia no uso habitual e é a mesma da ligadura tubária. No ambulatório do Cemicamp, quem coloca o DIU é a enfermeira. Campinas é o único lugar do Brasil em que uma enfermeira faz isso porque muitos anos atrás eu trouxe uma matrona [obstetriz] chilena que sabia colocar o dispositivo muito bem. No Chile, na Inglaterra, na Escandinávia, as enfermeiras colocam o DIU. Aqui ainda é considerado um ato médico. O Ministério da Saúde tem interesse em implementar o uso do DIU porque esses dispositivos já estão comprados e distribuídos. Mas os médicos não colocam. Estou trabalhando em Recife em um projeto para dar acesso a métodos contraceptivos de alta eficácia no uso habitual, especificamente DIU e implante hormonal, para mulheres em região com zika que não querem engravidar. O projeto consiste em suprimir as barreiras que impedem o acesso a esses métodos. Isso significa ter o método disponível e médicos treinados e motivados a proteger essa mulher.

Proibir o aborto não reduz os números. Aumenta a morte de mulheres e eleva os custos de saúde

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mil estão grávidas no final do primeiro ano usando pílula. No uso habitual, esse número sobe para nove. Veja como são ruins as informações dadas sobre a eficácia dos métodos contraceptivos. Na vida real, é diferente. Há o caso de mulheres que, quando ficam sem dinheiro, atrasam a compra de uma nova cartela e só voltam a tomar a pílula um pouco depois do prazo ideal. Se a mulher atrasa dois ou três dias, pode engravidar. Fizemos um estudo tempos atrás sobre a distribuição de anticoncepcionais pelo Ministério da Saúde. Vimos que os métodos chegavam aos municípios, mas nem 30% dos ambulatórios tinham contraceptivo o tempo todo. Muitas vezes, a mulher engravida porque, se não tem dinheiro

Esse trabalho será só em Pernambuco? Faremos também na Paraíba. Pretendemos demonstrar que é possível fazer isso, para que o ministério e as secretarias estaduais de saúde se interessem em reaplicar o modelo. O objetivo é descobrir como fazer para que a mulher na favela realmente tenha acesso a esses métodos. Vamos medir a proporção de gestações não planejadas. No mundo todo, mais da metade das gravidezes não é desejada. Há pouco, o senhor comentou que não conhecia ninguém favorável ao aborto. Mesmo mulheres em situação precária? A mulher que faz um aborto preferiria não ter engravidado. Ela não é favorável;


apenas vê o aborto como a única solução. Não é correto dizer que a mulher terá problemas emocionais se fizer o procedimento. Haverá problemas emocionais por ela ter engravidado quando não queria ter um filho. O que o aborto causa na mulher é alívio. Ser a favor ou contra é um falso dilema. Condenar a mulher só dificulta a resolução do problema. A saída é dar acesso universal à educação sexual desde criança, à informação correta e aos métodos contraceptivos de alta eficácia, seguindo a escolha da mulher. Porque, se a mulher quer usar pílula e não DIU, ela tem direito. Se ela não se cuidar, a probabilidade de engravidar sempre será maior. É o direito que a mulher tem sobre seu próprio corpo, não? Certamente. Uma vez o ex-presidente Bill Clinton disse que o aborto deveria ser legal, seguro e raro. Estou absolutamente de acordo. Uma amiga feminista disse que toda mulher tem direito sobre seu corpo, inclusive de não querer usar contraceptivo e querer abortar. Não estou de acordo porque acho que a maior parte das mulheres não concorda com isso. Não aceito a ideia de que a mulher tenha direito a não usar contraceptivo porque pode abortar. Isso é coisa de pessoas que falam por outras.

à disposição de todas as mulheres. Em 2015, o índice de abortos lá era de 12 por mil mulheres, um dos mais baixos do mundo. No Brasil é 30 ou 40 por mil. Vamos mudar de tema. Quando o senhor chegou ao Brasil? Em 4 de julho de 1976. Houve alguma dificuldade para me contratar na Unicamp porque o governo brasileiro, que nessa época era militar, consultou o governo chileno, também militar, e disseram que eu saí de lá porque era um médico perigoso. Eu fui diretor do programa de saúde da mulher do governo de Salvador Allende, derrubado pelos militares. Separei o materno e infantil com o argumento de que a mulher existia não só quando era mãe. Ela existia também antes e de-

HIV positivo era para não transmitir o vírus ao feto. Os programas de saúde da mulher tinham outros objetivos e a mulher era usada como meio para atingir esses objetivos, todos muito positivos. Faltava um programa de saúde da mulher para a mulher. O senhor foi pioneiro em propor isso? No Chile e aqui, sim. Lá, fui assessor de saúde materno-infantil no governo de Jorge Alessandri, que era de direita, no governo de Eduardo Frei Montalva, que era cristão, e quando surgiu Allende, de esquerda, me convidaram a passar de assessor a diretor do programa. Fiquei um pouco mais de um ano no cargo porque começaram a exigir que eu entrasse em partido político. Sou demasiado independente para aceitar as nuan­ ces de um partido político. Voltei ao trabalho normal no serviço nacional de saúde. Felizmente, porque, se eu estivesse no cargo, teria sido preso logo depois do golpe. Uma semana depois eu havia ido para uma reunião de pesquisa em Miami e, no dia seguinte, meu nome apareceu em uma lista de médicos exonerados do hospital. Minha mulher averiguou e eu estava na lista de médicos perigosos feita pelo Colégio Médico do Chile. Fui colocado na lista de médicos perigosos porque eu era chefe dos plantonistas do único hospital de Santiago que não entrou em uma greve nacional. Trabalhávamos em uma área muito pobre. Se a gente entrasse em greve, quem iria atender aquelas mulheres? Todos os que foram presos foram mandados para uma ilha ao sul do estreito de Magalhães. Menos eu, que estava fora do Chile e não voltei.

Percebi que os programas de saúde da mulher usavam as mulheres, mas não eram para elas

O senhor deve pagar um preço alto por essas opiniões. Um sacerdote de Goiás colocou na internet meu retrato coberto de sangue dizendo que era dos fetos pelos quais eu era culpado por terem morrido. É um conceito ridículo. Recentemente, quando a Câmara dos Deputados no Chile discutia o projeto de despenalização do aborto, ainda não aprovado, alguns deputados que votaram contra e perderam disseram que quem votou a favor seria culpado pelo grande número de abortos que haverá no Chile. Falam isso como se lá não houvesse entre 80 mil e 150 mil abortos por ano. Como é clandestino e ilegal, para eles não existe. Se é legal e seguro eles não querem. O Uruguai legalizou o aborto em dezembro de 2012 e, em dois meses, colocou esse serviço

pois e tinha necessidades de saúde que não dependiam do fato de ela ser mãe. O programa de saúde da mulher do Brasil é uma cópia fiel daquele que iniciamos no Chile nos anos 1970. De onde veio essa ideia? Em algum momento percebi que os programas de saúde da mulher que existiam eram programas que usavam a mulher, mas não eram para a mulher. O programa de atendimento pré-natal é para que o recém-nascido seja sadio. O de aleitamento materno é para que a criança seja alimentada e cresça bem. O de planejamento familiar era para reduzir o crescimento da população. O tratamento antirretroviral oferecido para mulheres

E fez o quê? Antes nós já havíamos mandado nossos três filhos para Buenos Aires, onde morava minha sogra. Isso foi em junho e o golpe foi em setembro. De Miami fui a Buenos Aires e minha mulher me encontrou lá. Largamos tudo no Chile. Minha mulher era muito bonita, loira, de olhos verdes, falava inglês. Pela lógica dos golpistas não podia ser revolucionária, de esquerda, então saiu sem problema. Junto com PESQUISA FAPESP 245 | 27


Estágio no Uruguai, 1961: em destaque, Faúndes em pé e Caldeyro, sentado

um amigo, eu já fazia parte de um programa de treinamento em saúde sexual e reprodutiva da Organização Mundial da Saúde, a OMS. Houve uma reunião em Buenos Aires na semana seguinte à minha chegada e propuseram que eu fosse para Genebra, na sede da OMS. Na época existia a discussão sobre fuga dos cérebros dos países latino-americanos para trabalhar nos países desenvolvidos. Minha mulher e eu éramos contra e decidimos não sair da América Latina. Eu já era conhecido e me ofereceram um cargo na República Dominicana, onde morei dois anos e meio antes de vir para o Brasil. O que o senhor fazia lá? Era assessor de um programa de planejamento familiar. Eu trabalhava no Ministério da Saúde e iniciei também um programa de prevenção de câncer de colo de útero, além de organizar um programa de amamentação infantil, o programa da mulher. Poderia contar como foi o convite para vir ao Brasil? José Aristodemo Pinotti, que havia sido meu aluno no Chile e era diretor do Departamento de Tocoginecologia da Unicamp, foi a primeira pessoa a nos ligar depois do golpe e me convidar a vir para cá. Bussâmara Neme, que havia criado o departamento na Unicamp, mandou o Pinotti estudar comigo e ficamos muito amigos. No telefonema, Pinotti disse que, quando eu resolvesse sair da República Dominicana, que o avisasse. Na época, começaram a me oferecer postos em diferentes lugares. Não aceitamos ir para o mundo desenvolvido e decidi vir para cá. 28 | julho DE 2016

O que encontrou ao chegar, uma vez que o curso de medicina na Unicamp ainda estava no começo? Ficávamos na Santa Casa de Misericórdia, no centro de Campinas. Quando cheguei, descobri que era comum pessoas entrarem na sala de parto vestidas com a roupa que usavam na rua, enquanto todos lá já estavam paramentados. Uma vez chegou um parto pélvico e chamamos o residente. Ele entrou vestido de rua e colocou um avental. Eu disse: “Não se entra para atender um parto vestido assim. Atendo eu”. Decidi que ninguém mais entraria ali sem as roupas adequadas. Impus disciplina. Era professor na sala de parto, na enfermaria. Cada aluno tinha duas pacientes e eu os desafiava a conhecer melhor cada uma delas, porque eu conhecia todas. Nunca aceitei que não conhecessem a paciente pelo nome, nem que chegassem para examinar sem dizer ao menos bom-dia e pedir autorização para examinar. Acho que é por causa desse respeito que essa maternidade tem sido bem qualificada pelas pacientes. Houve alguma resistência a sua contratação na Unicamp? Zeferino Vaz era o reitor e muito amigo de Roberto Caldeyro e Barcia, meu preceptor no Uruguai. Depois de Caldeyro dizer-lhe que aquela era uma contratação muito boa, Zeferino disse ao governo brasileiro que se responsabilizava por mim. Cheguei em 4 de julho e 10 dias depois fui convidado pelo Ministério da Saúde para discutir problemas de saúde materno-infantil. No encontro, eu disse que era necessário criar comitês de mortalidade materna, que funcionaram bem por um tempo. Ainda acredito que um

Não é punitivo? Punir não funciona. Em Campinas funcionou um comitê municipal até pouco tempo atrás. Sempre disse que esses comitês tinham de ser profissionalizados e não podiam funcionar com trabalho voluntário. É difícil investigar esse tipo de morte se não há um sistema que recolha informações e as faça chegar à direção do comitê. Isso tem um custo e exige gente especializada. Organizamos em Campinas o primeiro seminário sobre mortalidade materna. Discutimos o assunto e produzimos o livro Morte materna, uma tragédia evitável. É evitável, mas não se evita. Desde que chegou ao Brasil, melhorou o atendimento à saúde da mulher? Em alguns lugares sim e em outros, piorou. O problema no Brasil é a cesárea, que envolve um risco grande. Ela deixa uma cicatriz no útero e, quando a mulher quer ter outro filho, é maior o risco de ocorrer placenta prévia, placenta acreta ou ruptura prematura de membranas. Estamos criando gerações de mulheres com alto risco de ter complicações. Muitos médicos ainda acreditam que a cesárea é mais segura para o recém-nascido e que não causa risco para a mulher. Evidências coletadas no mundo todo mostram que não é assim. É maior o risco para o bebê e para a mulher. E mostram ainda que o porvir obstétrico dessa mulher fica comprometido por toda a vida. Temos hoje muito mais placenta prévia do que havia antes, porque, numa nova gestação, a placenta se assenta sobre a cicatriz. Temos mais placenta acreta, que penetra no miométrio e não pode ser retirada, exigindo a extração do útero, o que causa hemorragia e mortalidade materna alta. Quanto mais cesáreas a mulher fez, maior o risco. O senhor diz que a mortalidade materna, no mundo todo, é evitável. Onde se é mais eficiente para evitar essas mortes na nossa região? O Uruguai tem hoje uma mortalidade

arquivo pessoal

dos problemas do Brasil é a falta desses comitês, formados por pessoas qualificadas que avaliam cada morte materna de determinada região. O objetivo é verificar por que não se evitou a morte, já que a maior parte delas é evitável, e tomar medidas para corrigir o problema.


materna mais baixa do que os Estados Unidos. Nas Américas, a taxa de mortalidade materna do Uruguai só é maior que a do Canadá. Os países de menor mortalidade materna na América Latina são Uruguai, Chile, Cuba e Costa Rica. Nos anos 1980 vocês propuseram ao governo federal a criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), visto com alguma reserva por propor formas de controlar a fertilidade. Como ele deveria funcionar? Imagine que uma mulher vá a uma unidade de saúde porque tem diabetes. Ninguém pensa que ela pode engravidar. Nem que, se ela engravida, seu diabetes vai piorar e sua gestação será de risco. Se pensa no diabetes, não na mulher. É preciso pensar na mulher, que é necessário oferecer a ela um método contraceptivo apropriado e acompanhá-la. O conceito é simples. Sempre disse aos meus alunos: “Vocês não estão atendendo um útero. Estão atendendo uma mulher, que segue vivendo depois de sair da maternidade. Vocês precisam se preocupar com as outras necessidades dela e não só com o parto”. Nós, médicos, pensávamos apenas na parte da saúde, e um grupo de feministas que havia no ministério passou a pensar também nas necessidades psicológicas e sociais. É preciso olhar a mulher integralmente e não apenas no motivo que a levou à consulta. Esse programa não foi colocado totalmente em prática, mas o atendimento melhorou muito.

ONG, a SOS Mulher. Quando ocorria uma gravidez decorrente de estupro, eles encaminhavam para a nossa maternidade e o chefe da ginecologia, que era evangélico batista, mas muito humano, fazia a interrupção. Depois que cheguei, éramos ele e eu. Ninguém mais queria fazer. Tempos depois a Maternidade Fernando Magalhães começou a fazer no Rio de Janeiro e também o Hospital Municipal do Jabaquara em São Paulo. Só três maternidades no Brasil cumpriam a lei. Então, decidimos investigar como a mulher tinha conseguido saber desses serviços e fazer a interrupção da gravidez. Também pesquisamos quais eram os procedimentos seguidos nessas maternidades. Depois fizemos um estudo de base populacional, inspirado em um

As mulheres que sofrem estupro apresentam mais problemas sexuais e ginecológicos

O senhor tem um estudo sobre violência contra a mulher. O que encontrou? Ellen, minha primeira mulher, havia feito a pesquisa sobre sexo contra a vontade, que eu já contei. E de novo remetia à questão do aborto, que é permitido no Brasil em caso de estupro e violência sexual. Uni as duas coisas. De um lado, há o estupro e, de outro, comecei a averiguar que nenhuma mulher consegue fazer a interrupção da gravidez decorrente de um estupro. Na Unicamp, atendíamos de um a dois casos por ano porque havia um convênio com uma

artigo do American Journal of Obstetrics and Gynecology, que correlacionava a história de violência sexual a alterações menstruais. Avaliamos mulheres que haviam sido estupradas, mulheres que haviam sofrido coerção para fazer sexo e mulheres que declaravam não haver sofrido nada e correlacionamos com patologias ginecológicas e obstétricas, fundamentalmente alterações mens­ truais e problemas sexuais, como falta de orgasmo e de libido. Quais os resultados? Encontramos o mesmo que havia sido descrito nos Estados Unidos. Há maior frequência de transtornos menstruais em vítimas de estupro. Quanto maior a gra-

vidade do estupro, maior a frequência. As mulheres estupradas apresentavam mais desses problemas do que aquelas que haviam feito sexo sob coerção. E, entre estas, era maior do que aquelas que faziam sexo por obrigação. Havia uma sequência. E a mesma coisa foi vista na esfera sexual. Falta de libido, falta de orgasmo, tudo isso está relacionado com a história de estupro. Existe na sociedade o que alguns chamam de cultura do estupro? A cultura é de que a mulher tem de aceitar o que o homem decide. E tem aquele mito de que a mulher diz que não, mas quer, e depois gosta. Quem sofre abuso não gosta da situação. O estupro é a pior forma de violência. No caso da garota de 16 anos que sofreu um estupro coletivo em maio no Rio, li na internet que ela disse que o que doía não era o útero, mas a alma. Em 1976 fizemos o primeiro seminário sobre violência sexual e se criou o conceito de atendimento de emergência para as mulheres que sofrem violência sexual. Nesse atendimento, a primeira coisa a ser feita é o apoio psicológico, porque o que mais dói é a alma. Depois, proteção contra doenças sexualmente transmissíveis e contra a gravidez. E, claro, o seguimento no longo prazo. Esse serviço é oferecido efetivamente? É um dos sucessos que partiu de nossa iniciativa. Temos um programa que se chama Superando Barreiras. Há ainda resistência à interrupção da gravidez. Mas hoje há mais de mil hospitais no Brasil que oferecem atendimento de emergência para mulheres que sofrem violência sexual. O que ela deve fazer primeiro, ir para a delegacia ou para o hospital? Para o hospital do serviço público. Aqui em Campinas, onde o serviço está mais bem organizado e há apoio do município, no início havia mais denúncias na polícia do que atendimento no hospital. Agora há muito mais atendimento no sistema de saúde do que denúncias na polícia. n PESQUISA FAPESP 245 | 29


política c&T  Difusão y

O futuro do acesso aberto Com oferta gratuita dos papers da União Europeia a partir de 2020, publicações científicas procuram novos modelos Fabrício Marques

A

decisão da União Europeia de disponibilizar de forma livre e gratuita a partir de 2020 todos os papers produzidos em seus estados-membros promete dar novo fôlego ao Acesso Aberto, movimento lançado no início dos anos 2000 com o objetivo de franquear o acesso à produção científica, que avança lentamente. Estima-se que apenas um em cada quatro novos artigos seja publicado atualmente nesse regime – os demais, no momento em que são divulgados, só podem ser vistos por assinantes ou por usuários que aceitem pagar pelo download. As apostas em torno do modelo de acesso aberto que irá ganhar mais impulso estão divididas. A experiência do Reino Unido, que começou a adotar em 2014 uma estratégia desse tipo envolvendo a pesquisa produzida em 107 instituições ligadas aos seus Conselhos de Pesquisa (RCUK, em inglês), deu força à chamada via dourada (golden road), na qual as próprias revistas científicas garantem o acesso livre ao conteúdo que publicam – cobrando mais caro do autor e isentando o usuário 30  z  julho DE 2016

de pagar pelo download. É certo que os custos de publicação aumentaram. Segundo estudo divulgado em fevereiro por Adam Tickell, vice-reitor da Universidade de Birmingham, as universidades do Reino Unido gastaram £ 33 milhões, o equivalente a R$ 150 milhões, em custos associados apenas à publicação em acesso aberto em 2015 – quase 20% do gasto geral com publicações. “Embora haja consenso sobre os benefícios do acesso aberto no Reino Unido, os desafios financeiros persistem”, escreve Tickell. “As universidades estão preocupadas com a preferência pela via dourada pela pressão que isso está provocando em seus orçamentos de pesquisa.” Em países como a Espanha, que começou a criar repositórios no início dos anos 2000 e onde 11 das principais universidades exigem desde 2009 que a produção científica de seus pesquisadores seja divulgada em acesso aberto, a chamada via verde (green road) tem mais tradição. Trata-se de um modelo no qual cada pesquisador arquiva no banco de dados de sua instituição uma cópia de seus trabalhos científicos publicados em periódicos,


ilustraçãO daniel kondo

que ficam disponíveis ao público. Quem quiser ler o artigo sem pagar pode recorrer a esses repositórios. Muitas editoras permitem que os autores depositem seus artigos em repositórios apenas depois de um período de embargo, em geral de seis meses pelo menos. Outras cobram um valor extra para liberar o embargo. “O crescimento dos repositórios institucionais é um mecanismo relativamente barato para ampliar o acesso à pesquisa financiada com recursos públicos”, pondera Tickell. Já o Brasil tem um modelo bastante peculiar, com a oferta da biblioteca eletrônica SciELO, que reuniu uma coleção de mais de 200 publicações brasileiras de acesso aberto de todos os campos do conhecimento, cujos artigos podem ser baixados da internet de forma livre e gratuita. Criada em 1997, seis anos antes de o movimento do Acesso Aberto ser de-

flagrado, a SciELO é um programa especial da FAPESP lançado para aumentar a visibilidade de publicações científicas brasileiras que, até o século passado, estavam escassamente indexadas em bases de dados internacionais. Outra iniciativa brasileira foi a criação, em 2013, do Repositório da Produção Científica do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas, o Cruesp (cruesp. sibi.usp.br), que contava, no início de julho, com mais de 400 mil registros de artigos, teses e dissertações e outros trabalhos científicos, sendo 195.242 da Universidade de São Paulo (USP), 116.162 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e 89.664 da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “O repositório é a soma dos acervos depositados nas três universidades e pode ser acessado por meio de uma ferramenta de busca comum”, diz Ma-

ria Crestana, coordenadora do Sistema Integrado de Bibliotecas (Sibi) da USP. O repositório foi criado por iniciativa e com apoio da FAPESP, que instituiu uma política de publicação de resultados de pesquisas científicas financiadas com recursos públicos em acesso aberto. Os registros disponíveis atualmente compreendem, principalmente, as teses, dissertações e artigos científicos publicados nos últimos 10 anos, quando as universidades começaram a oferecer esse tipo de produção em formato digital. “No caso da USP, a produção científica coletada desde meados dos anos 1980 supera os 700 mil registros, muito mais do que está disponível no repositório. Mas essa produção pode ser acessada em nossas 48 bibliotecas”, afirma a coordenadora do Sibi. O debate sobre as tendências está em aberto. “Tanto a via dourada quanto a pESQUISA FAPESP 245  z  31


embates

Na avaliação de Sely Maria de Souza Costa, professora da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB), a via dourada possivelmente avançará mais na União Europeia. “É um caminho mais seguro porque não provoca embate entre editores e autores. E a intenção é implementar o acesso aberto em apenas quatro anos, um prazo que é muito curto”, afirma Sely, que participou no início de junho de um debate sobre o futuro do acesso aberto numa conferência internacional sobre publicações acadêmicas em Göttingen, na Alemanha. “Ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. A publicação científica continuará por muito tempo nas mãos de grandes editoras, mas elas vão gradativamente procurar uma fórmula híbrida de publicação, pois perceberam que a questão do acesso aberto é irreversível.” Segundo Sely, o movimento do Acesso Aberto tem tido dificuldade de avançar 32  z  julho DE 2016

“A publicação científica continuará por muito tempo nas mãos das grandes editoras”, diz Sely Costa, da UnB

com mais velocidade porque duas forças atuam como um contrapeso. “Uma delas são as editoras, que cobram caro para publicar bons artigos científicos. Elas têm se curvado a pressões, mas vêm conseguindo preservar seus negócios”, diz. “E a outra é uma ampla parcela dos autores, que ainda prefere publicar nas revistas de maior impacto e não se importa se o artigo terá acesso restrito. Eles buscam o prestígio das revistas, embo-

ra o prestígio pertença a eles próprios. Revistas não produzem conhecimento, apenas o comercializam.” Outra dificuldade em criar um modelo prevalente é que cada campo disciplinar tem uma demanda peculiar envolvendo a publicação do conhecimento. “O modelo da física provavelmente não é aplicável à filosofia. Há questões culturais relacionadas ao ethos de cada disciplina que deveriam ser levadas em conta”, afirma Sely. O conhecimento em física, ela observa, é compartilhado em repositórios de acesso aberto como o ArXiv desde os anos 1990 e rapidamente discutido por pesquisadores de vários países. “A geração do conhecimento em física é de interesse universal e precisa circular rapidamente.” Já em filosofia e em outras áreas das ciências humanas e sociais a construção do conhecimento é mais lenta e com frequência gera interesse mais regional do que universal. “A demanda, nesse caso, é disponibilizar o conhecimento no repositório de uma instituição”, informa. As editoras científicas, enquanto tentam preservar suas margens de lucro, têm feito concessões. Numa recente negociação com grandes editoras envolvendo o preço de assinaturas, a Associação das Universidades da Holanda exigiu que os artigos de seus pesquisadores fossem disponibilizados em acesso aberto.

ilustraçãO daniel kondo

verde são aceitáveis”, avalia Robert-Jan Smits, diretor-geral de pesquisa e inovação da Comissão Europeia. A via dourada parece levar alguma vantagem, a julgar pela estratégia da Holanda, país que, ao assumir a presidência rotativa da União Europeia em janeiro, colocou em pauta a ambição de instituir o acesso aberto para pesquisas realizadas dentro do bloco e patrocinadas com recursos públicos. Desde 1º de janeiro, a Organização para Pesquisa Científica da Holanda (NWO), principal agência de fomento do país, exige que papers resultantes de projetos de pesquisa apoiados por ela sejam publicados em acesso aberto – e deixou claro que tem preferência pela via dourada, com efeitos mais rápidos e mais fácil de controlar. Ao mesmo tempo, propôs que versões de artigos anteriores ao processo de revisão, os chamados preprints, sejam depositadas em repositórios de acesso aberto. Para Sander Dekker, secretário de educação, ciência e cultura da Holanda, a via dourada é a solução mais justa pois reconhece que as editoras científicas fornecem um serviço valioso que precisa ser remunerado. Segundo ele, um dos problemas da via verde é que muitas revistas permitem que um artigo seja disponibilizado em um repositório de acesso aberto apenas depois de cumprir um embargo de vários meses. “Acesso adiado é acesso negado”, disse à revista Science.


“O digital merece ganhar importância no portfólio de editoras universitárias”, afirma Jézio Gutierre, da Editora Unesp As editoras Springer, Wiley e Sage aceitaram. Já a Elsevier, que é a maior editora de literatura médica e científica do mundo, com mais de 2 mil revistas, concordou em disponibilizar em acesso aberto 30% dos artigos de autores holandeses publicados em suas revistas de acesso fechado, a partir de 2018. Em 2012, a Elsevier foi alvo de uma campanha por apoiar um projeto no Senado norte-americano que buscava reverter a política criada pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), segundo a qual toda pesquisa apoiada pela instituição passou a ser oferecida em acesso aberto. Cientistas de prestígio, entre eles três matemáticos ganhadores da Medalha Fields, convocaram um boicote à editora, que acabou recuando do apoio ao projeto. fontes de receita

Agora, a editora resolveu tirar algum benefício do avanço do acesso aberto. Em maio, anunciou a compra da Social Science Research Network (SSRN), repositório de acesso aberto no qual mais de 300 mil pesquisadores de ciências sociais e humanidades já divulgaram artigos e trabalhos ainda não publicados em revistas ou livros, os preprints. Criado em 1994, o SSRN não cobra nada dos autores que depositam seus trabalhos nem dos leitores que fazem download.

As receitas vêm de universidades que utilizam a rede para divulgar sua produção científica, assim como um serviço de assinatura que alerta usuários sobre a chegada de artigos relevantes. A aquisição faz parte de uma estratégia da Elsevier de diversificar suas fontes de receita. Em 2013, a empresa comprou o Mendeley, rede social popular nos meios acadêmicos por meio da qual é possível saber que artigos estão sendo mais acessados por pesquisadores de uma determinada área – ou também o que certo pesquisador está lendo e recomendando aos colegas. Na época, discutiu-se se os usuários perderiam a confiança no serviço, sob o comando de uma editora. Não foi o que aconteceu. A base de usuários do Mendeley saltou de 2,5 milhões para 5 milhões em três anos e o número de funcionários aumentou de 50 para 200, na maioria dedicados ao desenvolvimento de novos produtos digitais. Esse grupo deverá trabalhar em conjunto com a SSRN após a aquisição. Uma das ideias é criar elos entre as duas redes. Outro plano é ligar os preprints da SSRN à base de dados de revistas científicas Scopus, que pertence à Elsevier, a fim de produzir indicadores de desempenho de autores da rede. “A Elsevier vinha trabalhando num modelo editorial tradicional que pouco

se alterou até a década de 1990. Com a migração das revistas para o digital, nos anos 2000, passamos a servir a uma outra camada de usuários, que são os gestores, oferecendo análises e indicadores disponíveis com a produção científica digitalizada. Agora, com a aquisição da SSRN, queremos conhecer melhor a interação de pesquisadores com sua comunidade e sua produção científica. Dessa forma, poderemos oferecer serviços melhores para eles”, diz Dante Cid, vice-presidente para relações acadêmicas na América Latina da Elsevier. “Há uma riqueza de informações nos registros do SSRN que poderiam ajudar a orientar os editores que tentam adquirir bons manuscritos para publicação ou ajudar no desenvolvimento de negócios”, escreveu Roger Schonfeld, especialista em comunicação científica nos Estados Unidos, em seu blog no site The Scholarly Kitchen. A dificuldade de prever o futuro no mercado das editoras científicas deriva de um impasse bastante conhecido em outros segmentos do mercado da comunicação: não se encontrou uma forma alternativa de financiamento capaz de compensar a perda de receita com a oferta de informação gratuita na internet. No caso das editoras universitárias, que dependem de recursos orçamentários das instituições a que estão vinculadas, o futuro é ainda mais confuso. “Não se pode conceber que o conhecimento gerado numa universidade pública fique fora do alcance da sociedade, mas é preciso encontrar uma forma de financiamento que permita a sobrevivência financeira das editoras universitárias e isso passa por uma discussão de política institucional”, diz Jézio Hernani Bonfim Gutierre, diretor-presidente da Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências, campus de Marília. Um caminho, afirma Gutierre, é investir na mudança representada pela chegada avassaladora dos meios eletrônicos à comunicação científica. A Editora Unesp lançou, no últimos anos, mais de 300 livros de pesquisadores da universidade exclusivamente em formato de e-book, que renderam mais de 12 milhões de downloads. “O digital merece ganhar importância no portfólio de editoras universitárias, mas resta o desafio de ampliar as fontes de recursos.” n pESQUISA FAPESP 245  z  33


Instituição y

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Conquista do Oeste Grupos de pesquisa em geografia são destaque no campus da Unesp em Presidente Prudente Esta é a quinta e última reportagem de uma série sobre os 40 anos da Universidade Estadual Paulista, a Unesp

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Fotos 1 Zekialves / wikicommons  2 Paulo Giandalia / Folhapress  3 margarete amorim 4 José Carlos Garcia / wikicommons  5 divulgação unesp

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ituada no extremo oeste de São Paulo, distante 558 quilômetros da capital, a cidade de Presidente Prudente sedia um dos mais destacados programas de pós-graduação em geografia do país. Os cursos de mestrado e doutorado em geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) receberam a nota máxima nas duas últimas avaliações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), patamar alcançado por apenas dois outros programas da disciplina no país, os das universidades de São Paulo (USP) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ancorado em seis linhas de pesquisa, o programa que produziu no ano passado 30 teses de doutorado e 28 dissertações de mestrado dedica-se a temas de investigação que vão da expansão das cidades médias à questão agrária, da formação de ilhas de calor urbanas ao gerenciamento de bacias hidrográficas. “Claro que os professores têm divergências teóricas e políticas, mas o sucesso do programa se deve a uma decisão coletiva de respeitar as diferenças e de trabalhar em conjunto”, define Rosângela Hespanhol, professora da FCT e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Geografia. “Essa talvez tenha sido a forma que encontramos de superar as dificuldades impostas por não estarmos localizados próximos a um grande centro urbano, problema que outros grupos atuantes no estado de São Paulo não enfrentam.” A FCT começou a funcionar como uma instituição isolada de ensino superior em 1959, a princípio apenas com graduação em geografia e em pedagogia. Incorporada à Unesp em 1976, hoje oferece 12 cursos. O Programa de Pós-graduação em Geografia surgiu em 1988 com o curso de mestrado e apenas uma década mais tarde criou os alicerces para atingir o nível de excelência de hoje. “Foi no final dos anos 1990 que a ênfase do Departamento de Geografia deixou de ser exclusivamente o ensino para investir na pesquisa”, conta Eliseu Savério Sposito, um dos 25 professores do curso. “Com a aposentadoria de vários docentes e o incentivo da reitoria da Unesp para melhorar os cursos de pós-graduação e o impacto da pesquisa, houve uma espécie de acordo tácito entre os professores remanescentes, mais jovens,

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que decidiram se aglutinar em torno dos grupos de pesquisa”, afirma Sposito, líder do Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (Gasperr), criado em 1993. Uma amostra da contribuição do Gasperr são os dois projetos temáticos financiados pela FAPESP conduzidos nos últimos tempos por seus pesquisadores. Um deles, liderado por Sposito entre 2006 e 2011, abordou o papel de cidades médias na industrialização do interior paulista. Constatou-se que a desconcentração da atividade industrial criou eixos de desenvolvimento no interior paulista, balizados pelo trajeto de grandes rodovias, em torno de cidades como Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Bauru, Marília, Araçatuba e Presidente Prudente. “A importância econômica que o interior conquistou não foi uma concessão da Região Metropolitana de São Paulo. Muitas cidades médias se tornaram grandes centros de consumo e tiveram um papel pró-ativo na atração de indústrias e negócios.” O projeto rendeu um livro com o mesmo título do projeto, O novo mapa da indústria no início do século XXI, organizado por Sposito e lançado em 2015. Outro temático, ainda em andamento e sob responsabilidade da professora Maria Encarnação Beltrão Sposito, debruça-se sobre as lógicas econômicas de empresas que, desde a década de 1990, viram nas cidades médias do interior de São Paulo um mercado consumidor a ser explorado, passando a competir por ele. “Tais empresas, ao se instalarem nas cidades do interior, tanto redefinem a posição delas na rede urbana quanto reestruturam seu espaço urbano, com desdobramentos evidentes nas práticas espaciais e hábitos de consumo dos indivíduos”, diz Nécio Turra, atual coordenador do Gasperr e um dos pesquisadores associados do temático. Um dos tópicos estudados é a distribuição de filiais de empresas e de shopping centers nesses municípios e em como isso cria novas áreas de consumo disputadas por públicos diferentes. As empresas não escolhem os lugares para se instalar ao acaso. “Elas ocupam áreas com acesso facilitado, capazes de atrair um público de renda mais alta, o que acaba valorizando os terrenos no entorno e atraindo moradores com esse perfil. Isso modifica os deslocamentos das pessoas pela cidade”, diz. pESQUISA FAPESP 245  z  35


1 “Saímos de um modelo de cidade que tinha um único centro para uma estrutura urbana mais complexa, levando as pessoas para espaços mais privados, nos quais as interações sociais são mediadas pelo consumo”, afirma Turra. “Uma das ideias que temos estudado é que as distâncias sociais marcam de forma mais visível o espaço das cidades, apartando grupos que antes se encontravam nos centros tradicionais.” A pesquisa utiliza dados oficiais já disponíveis sobre as cidades, mas sai também a campo para observar a vida real. “Recentemente, fomos em 18 pesquisadores passar alguns dias em Ribeirão Preto, entrevistar pessoas, visitar escolas e shopping centers.” Além dos seis pesquisadores do grupo, há outros 70, entre estudantes de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e estagiários de pós-doutorado, trabalhando em tópicos relacionados ao temático. Os problemas e desafios da região do Pontal do Paranapanema mobilizam A questão da reforma agrária os grupos de pesquisa. “Manna região do Pontal do Paranatemos uma forte atuação de panema, cuja principal cidade extensão e um olhar para as é Presidente Prudente, tamdemandas da sociedade”, diz Empresas que bém inspira os pesquisadores Antonio Cezar Leal, coordenase instalaram da Unesp. A região é conhecida dor do grupo Gestão Ambienpelos conflitos agrários em tertal e Dinâmica Socioespacial em cidades ras pertencentes ao Estado que (Gadis), dedicado a pesquisas e foram ocupadas por fazendas ações de extensão sobre a gesmédias nos de algodão na década de 1940 tão das águas, planejamento – mais tarde, o algodão cedeu ambiental de bacias hidrográanos 1990 espaço para a pecuária extenficas, educação ambiental e gereestruturaram siva. O Núcleo de Estudos, Pesrenciamento de resíduos sólie Projetos de Reforma dos urbanos. Em 2007, a FCT o espaço urbano quisas Agrária (Nera), além de se defirmou uma parceria com os dicar a estudos sobre a luta peComitês das Bacias Hidrográla terra, mantém um banco de ficas dos Rios Aguapeí-Peixe e dados sobre ocupações de terra do Pontal do Paranapanema, expandida posteriormente para outros rios da e assentamentos no Brasil e presta assessoria a região, para capacitar profissionais por meio de organizações como o Movimento dos Trabalhacursos de pós-graduação e de extensão, organi- dores Rurais Sem Terra (MST). zação de eventos, produção de material didático e desenvolvimento de pesquisas sobre temas cana-de-açÚcar aplicados ao planejamento e gerenciamento de Outro grupo de pesquisa, o Centro de Estudos recursos hídricos, entre outros. “Todos os gru- de Geografia do Trabalho (Ceget), coordena um pos ligados ao Programa de Pós-graduação em projeto temático no âmbito do Programa FAPESP Geografia se envolveram nessa iniciativa, dando de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), que produz aulas ou fazendo pesquisa. E o trabalho conjunto mapas sobre os impactos do avanço da cana-derendeu frutos: os Comitês de Bacias e o Fundo -açúcar na região do Pontal do Paranapanema. Estadual de Recursos Hídricos patrocinaram a O trabalho é liderado pelo professor Antonio construção de um prédio na FCT que hoje abri- Thomaz Júnior, especialista em geografia do traga a Central dos Grupos de Pesquisa”, diz Anto- balho. “A mesma lógica que atraiu o algodão e a nio Nivaldo Hespanhol, coordenador do Grupo pecuária para o Pontal, que é a disponibilidade de de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária terra e água muito baratas, atraiu a agroindústria (Gedra), formado por seis professores que se canavieira a partir dos anos 2000”, diz o pesquidedicam a mais de 20 projetos em temas como sador. “Empresas como o braço agroindustrial do agricultura familiar, organização de pequenos grupo Odebrecht foram atraídas para a região e produtores rurais, atuação do poder público na nem sequer precisam se envolver nos conflitos agropecuária e agricultura urbana. sobre terras devolutas, pois apenas as arrendam.”

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Fotos  divulgação unesp

Alunos do curso de geografia (esq.) e prédio da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente: articulação de grupos de pesquisa deu origem a programa de pós-graduação bem avaliado

Os estudos que Thomaz Júnior está liderando, em parceria com o grupo de pesquisa Gadis, busca estimar o prejuízo do uso de agroquímicos da cultura da cana-de-açúcar em assentamentos de trabalhadores rurais instalados nos arredores. “Há indícios de contaminação de rios e pessoas. Avaliar esse impacto é um dos objetivos do projeto”, diz Thomaz Júnior, que dedicou toda a sua trajetória acadêmica à questão agrária no Pontal. A conexão dos geógrafos de Presidente Prudente com colegas do exterior ajuda a explicar a boa avaliação de seu programa de pós-graduação. “É comum enviarmos, com apoio da Capes e da FAPESP, alunos para fazer estágios em outros países. Nossos pesquisadores têm boa interlocução com grupos dos Estados Unidos, de Portugal, da França, da Inglaterra e da Espanha”, diz Rosângela Hespanhol, coordenadora do programa. “Com frequência, recebemos pesquisadores estrangeiros visitantes para ministrarem palestras ou cursos de curta duração. Recentemente, estiveram na FCT-Unesp dois professores portugueses e um norte-americano. Um bom exemplo de internacionalização vem do trabalho do Grupo de Pesquisa Interações na Superfície, Água e Atmosfera (Gaia). Coordenado pela professora Margarete Amorim, o Gaia estuda em conjunto com pesquisadores franceses o fenômeno da formação de ilhas de calor em cidades médias e pequenas. Enquanto os brasileiros pesquisam as ilhas de calor em Presidente Prudente, o geógrafo francês Vincent Dubreuil, da Université Rennes 2, faz o mesmo em um município médio de clima temperado, Rennes. “Até recentemente, só se falava na formação de ilhas de calor em grandes metrópoles, mas em uma cidade média como Presidente Prudente foi possível

mensurar uma diferença de temperatura de até 9 graus Celsius mais quente na área urbana em relação à rural”, diz Margarete. “Já em Rennes a formação de ilhas de calor chega a ser positiva, principalmente no inverno, e só se torna complicada quando está associada à dificuldade de dispersão de poluentes na atmosfera.” O projeto também envolve colaborações com pesquisadores da Espanha e Portugal. “A parceria vem discutindo procedimentos para coleta de dados e formas de representação espacial desses dados, a fim de disponibilizá-los para o poder público”, conta Margarete. O estudo procura identificar materiais de construção mais apropriados, além de definir tamanhos de lotes residenciais e padrões de arborização capazes de amenizar o desconforto térmico e outros efeitos negativos relacionados às ilhas de calor. n Fabrício Marques

Projetos 1. Diagnóstico e análise da evolução diária das ilhas de calor urbanas em cidades de porte médio nos climas tropical e temperado (nº 2014/16350-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Margarete Cristiane de Costa Trindade Amorim (FCT-Unesp); Investimento R$ 61.674,55. 2. Mapeamento e análise do território do agrohidronegócio canavieiro no Pontal do Paranapanema: Relações de trabalho, conflitos e formas de uso da terra e da água, e a saúde ambiental (nº 2012/23959-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Bioen – Projeto Temático; Pesquisador responsável Antonio Thomaz Júnior (FCT-Unesp); Investimento R$ 1.007.620,30 (para todo o projeto). 3. Lógicas econômicas e práticas espaciais contemporâneas: cidades médias e consumo (nº 2011/20155-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisadora responsável Maria Encarnação Beltrão Sposito (FCT-Unesp); Investimento R$ 377.748,65 (para todo o projeto). 4. O mapa da indústria no início do século XXI: Diferentes paradigmas para a leitura territorial da dinâmica econômica no estado de São Paulo (nº 2004/16069-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisador responsável Eliseu Savério Sposito (FCT-Unesp); Investimento R$ 188.217,15.

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Educação científica y

Celeiro de

Como a Feira Brasileira de Ciências e Engenharia estimulou estudantes a seguir carreira em pesquisa

Bruno de Pierro

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A

um ano de completar a graduação em Ciência Política no Swarthmore College, na Pensilvânia, Estados Unidos, Heitor Geraldo da Cruz Santos, de 21 anos, não tem dúvidas de que irá trilhar carreira acadêmica. “Tenho paixão pela pesquisa. Pretendo fazer doutorado e, paralelamente, trabalhar com políticas educacionais em uma organização internacional, como o Banco Mundial”, planeja o estudante, natural de Recife (PE). Essa convicção ganhou força no ensino médio, período em que participou de duas edições da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace). Criado em 2003, o evento reúne, todos os anos na Universidade de São Paulo (USP), centenas de estudantes do ensino fundamental, médio e técnico de escolas públicas e privadas do país que

apresentam projetos nas diferentes áreas das ciências e engenharia. “Provavelmente, eu teria tomado outro rumo se não tivesse passado pela Febrace”, afirma Heitor. “A feira ajuda a desenvolver o pensamento crítico e coloca o jovem como protagonista do processo de aprendizagem.” Em sua primeira participação na Febrace, em 2010, Heitor, então aluno de um colégio particular, apresentou uma nova metodologia para a educação nutricional. “Criei um método para que os professores possam interferir na alimentação dos alunos de maneira integrada à grade curricular.” O projeto foi premiado e rendeu ao estudante uma vaga na Feira Internacional de Ciências e Engenharia (a Intel Isef, em inglês), um dos principais eventos desse tipo do mundo, que reúne mais de 1.700 alunos de 77 países desde 1950 nos Estados Unidos.


fotos  léo ramos e divulgação febrace

Nos últimos 14 anos, a Febrace colecionou casos como o de Heitor. Algumas dessas histórias foram reunidas no documento Febrace – Inspirando e despertando futuros líderes, disponível no site do evento (febrace.org.br/inspiradores). Além de relatos de estudantes e de professores que participaram da feira como orientadores, o relatório traz dados que ajudam a avaliar a abrangência e o impacto da Febrace no país. “Identificamos, por exemplo, um crescimento expressivo na participação de escolas públicas nos últimos anos”, diz Roseli de Deus Lopes, professora do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica (Poli) da USP e coordenadora do evento desde sua criação. Em 2006, das 171 escolas que submeteram projetos de alunos para a Febrace, 41% eram públicas. Já em 2016, o índice

subiu para 73%, de um total de 532 escolas – resultado de ações de incentivo à realização de feiras de ciência nas escolas promovidas pela Febrace ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, observa-se uma evolução na quantidade de trabalhos inscritos: em 2003, foram submetidos 300 projetos; em 2016, foram mais de 2.200. O relatório ainda revela um aumento da presença feminina. Em 2003, as meninas representavam 28% dos estudantes finalistas. Em 2016, eram 49%. Alguns participantes das primeiras edições da feira já exercem a carreira de pesquisador e reconhecem a importância da exposição científica em suas trajetórias. “Antes da Febrace, eu não tinha certeza do que faria na graduação”, recorda Ana Débora Nunes Pinheiro, que em 2005 participou da Febrace quando ainda cursava o terceiro ano do ensino

médio em Fortaleza (CE). O trabalho apresentado, sobre o uso do melão-de-são-caetano (Momordica charantia) no tratamento de úlceras gástricas, contribuiu para que optasse pela graduação em Farmácia. “Durante o projeto, executado em parceria com a Universidade Estadual do Ceará, tive contato com o método científico. Com 16 anos, percebi que gostaria de trabalhar com aquilo.” O projeto de Ana Débora foi premiado e selecionado para participar da Intel Isef. Em 2015, com apoio da FAPESP, Ana concluiu o mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP e, no mesmo ano, ingressou no doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Na minha pesquisa atual procuro desenvolver métodos de caracterização de moléculas de macroalgas marinhas”, explica Ana. A nutricionista Claudia Titze Hessel, de São Leopoldo (RS), diz que a Febrace também influenciou sua decisão de virar pesquisadora. Em 2005, ela realizou um projeto de iniciação científica sobre o efeito de chás contra o colesterol alto. pESQUISA FAPESP 245  z  39


projetos foram submetidos em 2016 por escolas de todo o país

Graças à Febrace, Pedro Ismael começou a receber estudantes do ensino médio no Instituto Butantan

Claudia fez testes em camundongos no Laboratório de Fisiologia Celular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que mantinha parceria com o Colégio Sinodal, onde estudou. “Observei que o chá verde era melhor para o controle do colesterol.” Os resultados desse trabalho foram apresentados na Febrace e na Intel Isef. “A iniciação científica me colocou em contato com o vocabulário de pesquisa, mas foi na feira que desenvolvi habilidades de comunicação”, conta Claudia, que hoje faz doutorado em microbiologia de alimentos na UFRGS.

Uma das singularidades do modelo das feiras de ciências é conseguir estimular competências científicas e empreendedoras logo no ensino fundamental e médio, diz Adriana Anunciatto Depieri, analista do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). “Antes de se apresentar, o aluno realiza uma pesquisa, que geralmente dura um ano. Nesse período, é possível aprender como coletar e interpretar dados, testar hipóteses e divulgar os resultados. Trata-se de um envolvimento com todas as etapas da pesquisa”, afirma Adriana, que em 2014 defendeu tese de doutorado na USP sobre a participação de pré-universitários em feiras de ciências no Brasil. Adriana aplicou um questionário a 1.053 estudantes de escolas públicas e particula-

Participação em alta na Febrace Tipos de escola que submeteram projetos à feira em 2006 e em 2016

38

17 70

104

171 escolas 84

532 escolas 390

2006 2016 n  Escolas públicas   n  Escolas particulares  n  Fundações 40  z  julho DE 2016

res que participaram da Febrace, da Feira das Profissões da USP e da Mostra Paulista de Ciências e Engenharia (MOP). Um dos objetivos era saber o impacto da participação nesses eventos e se isso influenciou na escolha das carreiras. “As respostas indicam que o processo de desenvolvimento de projetos reforça a autoestima e a autoconfiança dos alunos, além de contribuir para o aperfeiçoamento de habilidades necessárias para o sucesso profissional”, conta a analista do MCTIC. A pesquisa mostra que 87% dos estudantes consultados reconheceram que a participação em feiras de ciência coloca-os em contato com novos conhecimentos, que provavelmente não seriam adquiridos no cotidiano escolar. Outros 58% disseram que ter apresentado trabalhos nas exposições influenciou a decisão pelo curso de nível superior. “Evidentemente, nem todos os alunos que passam pela Febrace se tornam pesquisadores, nem é esse o objetivo”, ressalva Roseli, coordenadora da feira. “O propósito é despertar e desenvolver a criatividade e o pensamento crítico e instrumentalizar os estudantes com métodos de pesquisa científica e tecnológica, competências úteis para qualquer área.” Outro resultado apresentado por Adriana em sua pesquisa de doutorado é que a intenção de cursar engenharia se mostrou alta entre os estudantes que passaram pelas feiras com projetos nessa área. Quase 90% deles concordaram que a participação nos eventos despertou atenção para a área. “A Febrace ajudou a confirmar minha opção pela engenharia”, diz Conrado Leite de Vi-


Conrado Leite de Vitor decidiu pela engenharia após participar da feira

tor, que participou das edições de 2004, 2005 e 2006, quando era aluno do ensino médio na Escola Técnica de Eletrônica Francisco Moreira da Costa, em Santa Rita do Sapucaí (MG). Um dos projetos foi o protótipo de uma cadeira de rodas controlada por comando de voz. Em 2008, Conrado ingressou no curso de Engenharia Elétrica na Poli-USP. Durante a graduação, criou uma startup, a Pullup, que atua na área de eletrônica. A empresa foi incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), no campus da USP. “Um de nossos projetos é um aparelho de eletroencefalograma com um dispositivo capaz de detectar, em 30 minutos, se o paciente terá um ataque epiléptico”, explica Conrado. O projeto, feito em parceria com a empresa Epistemic, recebeu um prêmio do Hospital Sírio-Libanês.

fotos  léo ramos

efeito local

O relatório produzido pela organização da Febrace também apresenta dados regionais. Em 14 anos, participaram da feira estudantes e professores de mais de 900 municípios de todos os estados do país. Só este ano foram cerca de 62 mil estudantes nas 125 exposições de ciência, entre eventos estaduais, municipais e locais filiados à Febrace. “Fora São Paulo e Rio Grande do Sul, vimos crescer mais recentemente a participação de estados como Ceará e Bahia, nos quais se observa a influência de ações estaduais de estímulo à iniciação à pesquisa no ensino médio e realização de feiras”, diz Roseli. Os projetos submetidos diretamente ou pelas feiras afiliadas passam por professores e pesquisadores que compõem as comissões de pré-seleção, seleção e avaliação, que apontam os finalistas de cada estado para a exibição na USP. Durante a mostra, os avaliadores identificam os destaques de cada categoria, além daqueles que participarão da Intel Isef. A Feira de Ciências da Bahia (Feciba), idealizada em 2010 pelo Instituto Anísio Teixeira, ajuda a explicar a adesão de estudantes e professores do estado. Lá, a Febrace realizou um projeto de formação de professores, em parceria com a feira estadual. A partir da avalia-

dos finalistas da feira em 2016 eram meninas

ção desse projeto foi desenvolvido um programa de formação e, em setembro de 2013, a Febrace e a Intel lançaram a plataforma de Aprendizagem Interativa em Ciências e Engenharia (Apice), para apoiar o aprendizado em ciências, por meio do desenvolvimento de projetos de pesquisa e apresentação em feiras e mostras científicas. “São cursos que se destinam a gestores, professores e estudantes. Os materiais didáticos são gratuitos e disponíveis on-line”, diz Roseli. A plataforma já registrou mais de 30 mil usuários (apice.febrace.org.br/). A atenção com os professores não é acidental. Entre 2003 e 2016, mais de

2.900 docentes de escolas públicas e privadas participaram da Febrace, como orientadores ou coorientadores dos estudantes. “Também aprendemos muito com a feira. É uma oportunidade de experimentar novas formas de ensinar”, afirma Pedro Ismael da Silva Junior, pesquisador do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan. Em 2008, ele foi procurado por Ivan Lavander Cândido Ferreira, que hoje está concluindo sua graduação em Biologia na USP e já foi aceito para doutorado direto na Universidade de Oxford, na Inglaterra. O estudante tinha interesse em estudar aranhas e pedia ajuda. “Depois de muita insistência, aceitei Ivan em meu laboratório”, conta. Foi a primeira vez que o Butantan recebeu um estudante do ensino médio para estagiar em seus laboratórios. Ivan descobriu a presença de substância com potencial para antibióticos em ovos de aranha e o resultado foi apresentado na Febrace de 2009 (ver Pesquisa FAPESP nº 221). A partir daí, Pedro Ismael começou a ser requisitado por estudantes do ensino médio de várias partes do país. “Nos últimos sete anos, orientei 10 alunos de ensino médio de escolas públicas e particulares, que participaram da Febrace”, diz Pedro, que no momento orienta duas estudantes do Rio Grande do Sul. “É uma maneira de incentivar a formação de novos pesquisadores.” n pESQUISA FAPESP 245  z  41


ECOLOGIA y

2

Voos coletivos Tiê-preto

1

Interação entre pesquisadores acadêmicos e observadores de aves fortalece a produção científica Carlos Fioravanti Saí-azul

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colaboração entre pesquisadores acadêmicos e não acadêmicos no estudo da distribuição geográfica de aves no Brasil tem sido profícua. A partir do WikiAves, uma base com registros de quase todas as espécies brasileiras conhecidas e 1,6 milhão de fotos, tiradas por 24 mil usuários, biólogos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) verificaram que cinco espécies de pássaros do gênero Drymophila, conhecidas como choquinhas, ganharam espaço na Mata Atlântica litorânea. De acordo com os registros de observadores de aves, uma das espécies, D. squamata, vive hoje em uma área de 283 mil quilômetros quadrados maior à que havia sido registrada 42  z  julho DE 2016

antes pela equipe da PUC em consultas a museus e artigos científicos publicados nos últimos 100 anos. “Os observadores de aves podem ajudar muito a pesquisa científica, porque fazem registros de espécies ou de comportamentos em lugares onde os pesquisadores ligados à universidade nunca estiveram ou dificilmente estarão”, diz o biólogo Henrique Rajão, responsável pelos levantamentos sobre a Drymophila. Ele e a bióloga Érica Santos estão agora escrevendo um artigo científico contando sobre a ampliação do espaço ocupado pelas aves desse gênero, que não passam de 14 centímetros de comprimento e podem ter penas ruivas ou vermelhas, de acordo com a espécie.

Rajão interage com observadores de aves desvinculados de instituições acadêmicas desde fevereiro de 2002. Foi quando o presidente da Associação de Amigos do Jardim Botânico do Rio do Janeiro perguntou se ele poderia guiar um grupo de visitantes em um passeio de observação, porque um dos sócios havia doado 12 binóculos e ninguém sabia usá-los corretamente. Sentindo-se aviltado, Rajão alegou que não era guia, mas cientista, nessa época fazendo o doutorado em genética de aves. Mas, mesmo a contragosto, aceitou o convite e observou o encantamento do grupo de cerca de 20 moradores do Rio que pela primeira vez viam um tucano, um beija-flor-de-fronte-violeta ou um pica-pau enquanto


fotos 1 e 2 Luciano Lima / acervo Butantan  3 eduardo cesar

3

caminhavam pela mata de 137 hectares do Jardim Botânico, anexa à Floresta da Tijuca. Rajão gostou da experiência a ponto de conduzir os passeios seguintes, realizados no último sábado de cada mês, de modo contínuo, há 14 anos. Inspirados nessa experiência, biólogos do Instituto Butantan criaram o Observatório de Aves e desde 2014 organizam passeios mensais com dezenas de pessoas que igualmente se deslumbram com pica-paus, carcarás, sabiás-brancos, pula-pulas e outras aves da mata de 60 hectares do instituto paulista. Atualmente, além das atividades de educação e divulgação científica, o Observatório faz um monitoramento de longo prazo de populações de espécies silvestres e pesquisas sobre ecologia,

história natural e vigilância epidemiológica, por meio da coleta e análise de microrganismos encontrados em aves. Reconhecimento

Na manhã de 22 de maio, último dia do Avistar, um congresso de observadores de aves realizado no Butantan, Rajão expôs sua admiração pelo trabalho de especialistas não acadêmicos ao apresentar os artigos científicos escritos pelo médico Roberto Stenzel e pelo dentista Pythagoras Souza sobre, por exemplo, os hábitos reprodutivos do cuspidor-de-máscara-preta (Conopophaga melonops), que os ornitólogos ainda não haviam descrito. Embora não seja a regra, pesquisadores não acadêmicos conquistam respeito dos

Aves urbanas: caminhada na mata do Instituto Butantan

acadêmicos também em outras áreas, como o desembargador Elton Leme, que se tornou um especialista em bromélias e assina artigos científicos ao lado de botânicos profissionais (ver reportagem na página 95). “Precisamos de mais colaboradores”, disse várias vezes o biólogo Pedro Develey, diretor-executivo da organização não governamental Save/BirdLife, durante o Avistar. “Somente os ornitólogos não vão dar conta de mapear a biodiversidade do Brasil.” Dez dias antes, no computador de seu escritório, Develey havia observado mais uma vez com inquietação um mapa animado mostrando o deslocamento de 118 espécies de aves migratórias pESQUISA FAPESP 245  z  43


1 do norte ao sul das Américas. O mapa foi produzido na Universidade Cornell, Estados Unidos, a partir de milhões de registros obtidos de 2002 a 2011 e publicado em janeiro de 2016 no site do laboratório de ornitologia da instituição. Nesse mapa, o território brasileiro aparece praticamente vazio, sem registro de batuíras, piru-pirus, maçaricos, pernilongos, maçaricos-de-bico-torto, narcejas, pisa-n’água e outras espécies de aves migratórias que passam pelo Brasil. A prioridade agora são os maçaricos, grupo de aves com 15 centímetros de comprimento e peso de 100 a 200 gramas, com cinco espécies ameaçadas de extinção. Todos os anos, milhares de representantes desse grupo se reproduzem no Ártico ou no Canadá. Quando chega o inverno, partem para uma viagem de 6 mil quilômetros rumo ao Sul. Param, descansam e se alimentam, A mamangavaconjunto de orientações para principalmente no -de-cauda-branca: provável os órgãos públicos aproveitalitoral do Maranhão, entrada pelo sul rem mais a participação dos Rio Grande do Norte, do país cidadãos como parte de suas Paraíba, Bahia, Sergiestratégias de inovação. Um cope e Rio Grande do Sul. municado de abril da União GeofíDepois seguem até a Arsica Americana incentiva a participagentina, de onde partem no início do inverno rumo ao Norte. Se- ção da população: “Viu um deslizamento, gundo Juliana de Almeida, gerente de sentiu um tremor de terra ou observou projetos da Save/BirdLife, por causa da os primeiros brotos da primavera? Pegue perda de lugares de descanso e alimen- seu celular e envie um registro”. Em uma experiência similar, em 2015, tação, no Brasil e em outros países, uma das espécies desse grupo, o maçarico- por meio de cartazes de “procura-se” -de-papo-vermelho (Calidris canutus), (www.abelhaprocurada.com.br), pesquisadores de São Paulo e do Rio Grande está ameaçada de extinção. “Todos podem participar do proces- do Sul lançaram uma campanha para enso de entender o que está acontecendo contrar uma espécie invasora de abelha, com as aves no mundo”, reforçou John a mamangava-de-cauda-branca (Bombus Fitzpatrick, diretor do laboratório de terrestris), que já se espalhara pela Arornitologia de Cornell. Nos Estados Uni- gentina e avançava rumo ao Uruguai. Sua dos, cerca de 50 milhões de pessoas se chegada, provavelmente pelo sul do Bradedicam à observação de aves. “Somos sil, poderia prejudicar a agricultura e as um exército”, disse Fitzpatrick. Desde espécies nativas de abelhas. Em um ano 1997, o grupo de Cornell publicou mais e meio, desde que lançou a campanha, de 60 artigos científicos fundamentados o biólogo André Luis Acosta, pesquisaem registros feitos por observadores de dor do Núcleo de Apoio à Pesquisa em aves não acadêmicos, uma forma de co- Biodiversidade e Computação da Unilaboração que ganha força nos Estados versidade de São Paulo (USP), recebeu Unidos. Em janeiro de 2016, o governo cerca de 100 fotos sobre potenciais avisfederal reconheceu o valor dos colabo- tamentos da abelha procurada, mas neradores não acadêmicos e distribuiu um nhuma era a espécie procurada. “Como a

44  z  julho DE 2016

campanha continua”, diz ele, “a qualquer momento poderemos identificar o momento de sua chegada ao país e tomar as medidas necessárias para reduzir seu impacto na agricultura”. Esse recurso já foi utilizado outras vezes. No início do século XX, o médico Vital Brazil, primeiro diretor do Butantan, incentivava os moradores das fazendas do interior paulista a enviar para o instituto serpentes que encontravam, devidamente acondicionadas em caixas que ele enviava por meio dos trens da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, e em troca remetia soros antiofídicos, também pela ferrovia e sem custos. WikiAves e eBird

Os 40 mil observadores de aves não acadêmicos e cerca de 500 ornitólogos ligados a instituições formais de pesquisa acadêmica podem registrar em duas bases de dados as informações sobre as espécies que veem pelo Brasil. A primeira é a WikiAves, criada em 2008 e mantida pelo analista de sistemas e observador de aves Reinaldo Guedes. De alcance nacional, a WikiAves contém registros de 1.860 das 1.916 espécies brasileiras conhecidas. A segunda base é o eBird, criado na Universidade Cornell e de abrangência mundial. A versão em português, criada e mantida em parceria com o Observatório de Aves do Instituto Butantan, a PUC-Rio e Save Brasil, está em funcionamento desde o ano passado e reúne cerca de 1.200 usuários no Brasil, bem menos que os 24 mil da outra base. As duas bases são abertas a qualquer interessado, geram informações que dimensionam a riqueza biológica de cada lugar, são acompanhadas por monitores voluntários e podem ser acessadas e manipuladas por meio do celular. Enquanto a WikiAves valoriza as fotos e seus autores, o eBird enfatiza o número de exemplares de cada espécie observada, o que permite calcular a variação do tamanho das populações e fazer estudos de migrações pelas Américas. Os ornitólogos reconhecem a qualidade da informação e a importância


ilustraçãO André Luis Acosta / USP  foto  Wagner Nogueira

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Rolinha-do-planalto: reencontrada após 75 anos

das bases de dados construídas por não acadêmicos, mas se inquietam diante de uma característica da WikiAves que limita os estudos acadêmicos: essa base indica apenas os municípios, que são imensos na região Norte, e não o lugar exato de cada registro. Além disso, os observadores de aves nem sempre registram informações com o rigor e a precisão desejados pelos ornitólogos de instituições formais de pesquisa. Para assegurar a qualidade das informações, biólogos dos Estados Unidos e do Canadá, no editorial da edição de junho da Conservation Biology, propõem que a interação e o treinamento dos colaboradores não acadêmicos na coleta de informações sejam intensificados. “Os eventuais erros tendem a desaparecer diante do volume de informações”, ressalvou Mario Cohn-Haft, ornitólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus. “Há também erros coletivos, como os de identificação de espécies, que se propagam, mas podem ser rastreados e corrigidos.” Em consideração aos observadores de

Maior interação de biólogos com observadores de aves poderia melhorar a qualidade das informações

aves, Cohn-Haft apresentou no Avistar, na forma de filmes curtos e gravações de sons de aves, os primeiros resultados de uma expedição científica coordenada por ele à serra da Mocidade, em Roraima. Realizada em janeiro e fevereiro de 2016, com quase 70 participantes, a

viagem resultou na identificação de 40 possíveis novas espécies de animais e plantas e deve ser apresentada em um documentário a ser lançado no segundo semestre deste ano. Foi também no Avistar que o biólogo Rafael Bessa anunciou a redescoberta da rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis). Descoberta em 1823, essa espécie, com olhos azuis e cabeça com penugem marrom, peito acobreado e asas marrom e esverdeadas com manchas azuis, foi vista pela última vez em 1941 no Cerrado do sul de Goiás, e ele a reencontrou em julho de 2015 no interior de Minas Gerais. Bessa postou uma foto da rolinha-do-planalto na WikiAves, mas sem revelar o lugar exato para impedir uma corrida de observadores ou caçadores de aves, até que seja implantado o plano de preservação de uma área particular de Cerrado com 400 hectares em que 12 exemplares dessa espécie já foram vistos desde 2015. n Artigo científico LUKYANENKO, R. et al. Emerging problems of data quality in citizen science. Conservation Biology, v. 30, n. 3, p. 447–9, 2016.

pESQUISA FAPESP 245  z  45


ciência  ASTRONOMIA y

Júpiter pôs Mercúrio na linha “Salto” brusco do gigante gasoso há mais de 4 bilhões de anos teria empurrado o menor planeta do Sistema Solar para sua órbita atual

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ntender as origens de Mercúrio, o menor planeta do Sistema Solar, é um dos problemas em aberto da dinâmica planetária que mais perturbam os especialistas. Sua minúscula massa, quase 20 vezes menor que a da Terra, e singular órbita em torno do Sol, a mais alongada e inclinada de todos os planetas do sistema, não conseguem ser explicadas pela maioria dos modelos de formação planetária. Até meados dos anos 1990, a explicação mais aceita era a de que todos os planetas do sistema solar teriam se formado mais ou menos na mesma posição em que hoje se encontram. Com a descoberta confirmada, nos últimos 20 anos, de quase 3 mil planetas em órbita de outras estrelas que não o Sol, os chamados exoplanetas, compondo sistemas diferentes do solar, a condição peculiar de Mercúrio se configura cada vez mais como uma exceção na galáxia – e novas explicações sobre sua condição ganharam espaço. Um trabalho recente dos cientistas planetários Fernando Roig e Sandro Ricardo de Souza, do Observatório Nacional (ON),

46  z  julho DE 2016

no Rio de Janeiro, e do checo David Nesvorný, do Instituto de Pesquisa do Sudoeste, no Colorado, Estados Unidos, defende uma nova hipótese para justificar a estranha localização de Mercúrio, cuja órbita se encontra 7 graus inclinada em relação ao plano orbital médio dos outros planetas. Baseados em simulações em computador de como teria sido a dinâmica do Sistema Solar há mais de 4 bilhões de anos, os pesquisadores sugerem que a órbita do planeta se alongou e inclinou demais em razão de um grande evento. Em algum momento durante os primeiros 500 milhões de anos do Sistema Solar, a interação gravitacional entre um hipotético planeta gasoso e gigante, do tamanho de Urano, e Júpiter, também gasoso e gigante, teria alterado as condições locais. O planeta desconhecido teria sido ejetado do sistema e feito Júpiter se deslocar bruscamente em direção ao Sol. O “pulo” de Júpiter teria empurrado Mercúrio para sua posição atual (ver infográfico na página 48). Esse suposto evento é conhecido como Júpiter Saltitante. Segundo essa teoria, o pulo de Júpiter teria sido capaz de dar

NASA / JPL / USGS

Igor Zolnerkevic


Mercúrio: órbita alongada e inclinada teria sido causada por interação gravitacional com Júpiter há 4 bilhões de anos

origem à atual órbita de Mercúrio e também garantir a estabilidade da trajetória de todos os planetas rochosos, incluindo a Terra, em torno da estrela. “Parece um contrassenso”, reconhece Roig, “mas tudo indica que os planetas gigantes gasosos precisaram passar por uma fase de instabilidade para que os rochosos permanecessem estáveis”. Nas simulações, o salto na órbita de Júpiter provocado pela expulsão do planeta hipotético quase não altera as órbitas dos planetas rochosos, com exceção de Mercúrio. Roig explica que, caso Júpiter tivesse percorrido seu caminho mais lentamente em vez de ter dado um pulo na direção do Sol, a órbita de Mercúrio poderia ter se tornado ainda mais alongada e inclinada do que é hoje. Se isso tivesse ocorrido, Mercúrio poderia ter sido ejetado do Sistema Solar ou colidido com seu vizinho, Vênus. Segundo o astrofísico, tal choque provocaria um efeito em cascata que destruiria todos os planetas rochosos. Júpiter precisou dar um pulo para que os planetas rochosos sobrevivessem”, sugere Roig.

Há pouco mais de 20 anos, a maioria dos pesquisadores acreditava que os planetas do Sistema Solar teriam se formado, grosso modo, na mesma posição ocupada atualmente, por meio de um processo lento e suave de acréscimo de gás e poeira. Esses modelos previam que outras estrelas deveriam dar origem a sistemas planetários parecidos com o solar, com duas populações distintas de planetas: os rochosos, de tamanho parecido com o da Terra, próximos da estrela; e os gigantes gasosos, como Júpiter ou Saturno, mais afastados. “A descoberta de exoplanetas mudou radicalmente essa ideia”, explica Roig. “Vimos que há uma variedade de configurações planetárias muito diferentes do nosso Sistema Solar.” Análises estatísticas das características de todos os sistemas de exoplanetas descobertos até hoje sugerem que estrelas parecidas com o Sol tendem a ter sistemas planetários bem diferentes, muitos deles compostos de planetas rochosos duas a três vezes maiores que a Terra, com órbitas mais próximas de suas estrelas do que a de Mercúrio está do Sol. A órbita pESQUISA FAPESP 245  z  47


Pulo do gigante gasoso causado pela expulsão de um planeta hipotético pode ter alterado a órbita de Mercúrio 4 bilhões de anos atrás Inicialmente próximos, os

planetas gasosos

planetas gigantes gasosos,

planetas rochosos

que contariam com um quinto membro desconhecido, teriam se afastado lentamente uns

SOL Mercúrio

Vênus

Terra

Marte Saturno

Júpiter

Urano

Planeta hipotético

dos outros. Quatro planetas Netuno

externa do sistema e Júpiter

A maioria se afasta do Sol enquanto Júpiter se aproxima da estrela

Cinturão de asteroides

foram para a parte mais se deslocou para dentro

Devido à interação gravitacional com o quinto gigante gasoso, Júpiter teria dado um salto em direção ao Sol e o planeta Júpiter dá um salto rápido em direção ao Sol

Órbita de Mercúrio é abalada

O planeta hipotético fica “pulando” entre as órbitas dos demais planetas, chega muito perto de Júpiter e é ejetado

hipotético teria sido ejetado do sistema. O pulo de Júpiter teria alterado a posição de Mercúrio, mas não a dos outros planetas rochosos

Sistema solar atual O salto de Júpiter seria o responsável por Mercúrio apresentar uma órbita muito alongada e com 7 graus de inclinação em relação ao plano orbital médio dos demais planetas

Mercúrio

Vênus

Terra

Marte

Cinturão de asteroides

Júpiter

Saturno

Urano

Netuno

Fonte  fernando roig

de Júpiter, quase circular e bem afastada do Sol, também destoa do que é observado em muitos sistemas exoplanetários. Nuvem primordial de gás e poeira

É consenso entre os astrônomos que o Sol e seus planetas começaram a se formar há 4,6 bilhões de anos, quando uma nuvem gigantesca de gás e poeira no espaço interestelar colapsou pela ação da força gravitacional de sua própria massa. Havia então um núcleo esférico de gás, que deu origem ao Sol, cercado por um disco de matéria a partir do qual tomaram corpo os planetas. Os primeiros mundos a se formar teriam sido os gigantes gasosos, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, e algumas dezenas de milhões de anos mais tarde os pla-

netas rochosos, Mercúrio, Venus, Terra e Marte. Alguns pesquisadores especulam que Mercúrio teria se originado a partir dos fragmentos de uma primeira geração de planetas rochosos maiores, com massas semelhantes à da Terra, e mais próximos do Sol do que Mercúrio está atualmente. O processo de formação dos gigantes gasosos teria durado menos de 10 milhões de anos. Nessa época ainda havia no espaço entre os planetas uma quantidade razoável de gás remanescente da matéria do disco a partir do qual eles se originaram. O arrasto do gás fez com que os planetas tendessem a migrar para perto do Sol. Em algum momento, porém, a atração gravitacional mútua entre Júpiter e Saturno teria invertido o sentido de migração dos dois gigantes gasosos, afastan-

infográfico ana paula campos  ilustraçãO freepik

Júpiter saltitante


do-os do Sol. Esse movimento de ida e volta dos gigantes gasosos é chamado pelos pesquisadores de grand tack, uma alusão a uma manobra dos barcos a vela, o tacking, quando seu curso é revertido em relação à direção do vento. Logo após o grand tack, os planetas rochosos atuais já teriam se formado ou estariam perto de se formar mais ou menos em suas posições atuais. As órbitas dos gigantes gasosos deviam ser bem diferentes. Júpiter estaria um pouco mais afastado do Sol do que está atualmente, enquanto os demais gigantes gasosos estariam muito mais próximos de Júpiter e uns dos outros. É possível que os gigantes gasosos tenham permanecido nessa configuração mais compacta que a atual por até 500 milhões de anos. Muito próximos, porém, eles deveriam ser constantemente perturbados pela força gravitacional uns dos outros. Além disso, esses planetas poderiam sofrer, ainda, com a presença de muitos corpos menos massivos – planetesimais – no meio de suas órbitas. Os gigantes foram se livrando desses planetesimais aos poucos, empurrando-os em direção aos confins do Sistema Solar, onde hoje se encontram o chamado cinturão de Kuiper, cujo corpo mais famoso é Plutão, e a nuvem de Oort. Em 2005, os astrônomos Hal Levison, Alessandro Morbidelli, Kleomentis Tsiganis e Rodney Gomes, este último também pesquisador do ON, apresentaram simulações em computador mostrando como, a partir dessa situação inicial instável, os gigantes gasosos teriam lentamente se afastado uns dos outros, migrando durante alguns milhões de anos até suas posições atuais. Conhecida como modelo de Nice, por ter sido criada quando seus autores trabalhavam juntos no Observatório da Costa Azul, na cidade francesa, a teoria ganhou destaque por explicar a arquitetura atual dos planetas gigantes. Em 2009, porém, o astrônomo holandês Ramon Brasser notou que a lenta migração dos gigantes gasosos prevista pelo modelo de Nice teria uma grande chance de ter provocado uma série de colisões planetárias. A movimentação dos gigantes gasosos poderia ter resultado na expulsão de um deles – normalmente Urano – do Sistema Solar. Para resolver essa inconsistência, o astrônomo David Nesvorný, do Instituto de Pesquisa do Sudoeste, que atualmente colabora com Roig como pesquisador visitante no ON, propôs, em 2011, que o Sistema Solar teria tido um quinto planeta gigante gasoso, de tamanho semelhante ao de Urano ou Netuno. Nesvorný calculou que a ejeção desse planeta hipotético teria feito com que a distância da órbita de Júpiter ao Sol passasse de 5,5 vezes a distância da Terra ao Sol para 5,2 vezes em menos de 100 mil anos. “Na escala de tempo de formação do Sistema Solar, essa mudança de órbita teria ocorrido em um tempo muito curto.

Além de ter alterado a órbita de Mercúrio, Júpiter teria expulsado um hipotético quinto planeta gasoso do Sistema Solar

Por isso a descrevemos como um salto de Júpiter”, explica Roig. “O modelo de Nice funciona bem para explicar os gigantes gasosos, mas logo se percebeu que a migração suave dos gigantes prevista por essa teoria dificultaria a formação dos planetas rochosos”, justifica o astrônomo Othon Winter, especialista em dinâmica planetária da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá. “Até agora, o Júpiter Saltitante é a única solução que se conhece para esse problema.” Mundos errantes

Em colaboração com outros pesquisadores, incluindo o astrônomo Valerio Carruba, da Unesp, Roig e Nesvorný indicaram recentemente que o cenário do Júpiter Saltitante também poderia explicar algumas características do cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. O resultado das simulações publicadas em março na revista Icarus oferece uma explicação de por que os astrônomos não conseguem observar no cinturão as evidências de grandes colisões anteriores a 4 bilhões de anos entre asteroides. No artigo, os autores afirmam que a presença do hipotético quinto gigante, e sua posterior expulsão do sistema, teria embaralhado as órbitas dos asteroides a ponto de apagar qualquer evidência desses choques. A ideia de que um planeta gigante gasoso escapou do Sistema Solar e se desgarrou de sua estrela não é tão maluca quanto parece. Roig lembra que astrônomos já observaram efeitos de lente gravitacional na luz de estrelas que podem ser atribuídos à passagem de planetas gigantes vagando pelo espaço interestelar. Alguns pesquisadores estimam que haja milhares de mundos errantes na Via Láctea. “Não existe maneira de esses corpos se formarem longe de estrelas”, explica Roig. “Eles devem ter surgido em um sistema planetário e depois foram ejetados.” n

Projeto Famílias de asteroides em ressonâncias seculares (nº 2014/06762-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Valerio Carruba (Unesp); Investimento R$ 31.200,00.

Artigos científicos ROIG, F.et al. Jumping Jupiter can explain Mercury’s orbit. Astrophysical Journal Letters. v. 820, n. 2. 24 mar. 2016. BRASIL, P. I. O. et al. Dynamical dispersal of primordial asteroid families. Icarus. v. 266, p. 142-151, 1º mar. 2016. ROIG, F. & NESVORNÝ, D. The evolution of asteroids in the jumpingJupiter migration model. The Astrophysical Journal. v. 150, n. 6. 1º dez. 2015.

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Foco nos astros primordiais Espectrógrafo fabricado no Brasil poderá observar elementos típicos das primeiras estrelas do Universo

ricardo zorzetto

Marcos Pivetta

O

s astrônomos brasileiros deverão contar em breve com um novo instrumento para observação da radiação emitida por corpos celestes nos comprimentos de onda da luz visível, desde o ultravioleta até o início do infravermelho próximo: o espectrógrafo de alta resolução Steles, projetado e fabricado no Brasil. O equipamento é capaz de obter dados detalhados sobre a composição química, a temperatura, a velocidade de rotação e a força gravitacional de estrelas, inclusive daquelas formadas nos primórdios do Universo, logo após o Big Bang. O projeto chegou a bom termo, mas a conclusão ocorreu cinco anos após o previsto. Problemas burocráticos, de importação de componentes, atrasos e erros de fornecedores de peças e pouca experiência na gestão de uma empreitada desse tipo contribuíram para o atraso. “Tivemos de aprender com os erros como é gerir a construção de um instrumento tão complexo”, reconhece o astrofísico Bruno Vaz Castilho, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA) e coordenador dos trabalhos de construção do espectrógrafo. Nos próximos dias, o Steles deverá deixar a sede do LNA, em Itajubá (MG), rumo ao município andino de Vicuña, no norte do Chile. O destino final do instrumento, que custou R$ 2,5 milhões, é o topo de uma montanha situada a 2.700 metros acima do nível do mar, o Cerro Pachón. Nesse ponto privilegiado de observação do céu, o Steles será instalado dentro da cúpula do Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), um telescópio com espelho de 4,1 metros (m), construído e mantido por investimentos do Brasil, dos Estados Unidos e do Chile. “Em setembro, o Steles deverá receber sua primeira luz”, prevê Castilho. Se tudo correr como previsto, o acesso ao instrumento deverá ser aberto a projetos de pesquisadores dos países associados ao telescópio até o fim deste ano. Por ser sócio do Soar, o Brasil dispõe de 30% do tempo de uso do telescópio. O Steles é o terceiro instrumento produzido no Brasil para o observatório internacional. Os dois primeiros foram o espectrógrafo Sifs, de menor resolução que o Steles, e o filtro imageador sintonizável brasileiro (BTFI, em inglês), ambos instalados em 2010 no telescópio andino. Inspirado no Feros e no Uves, dois dos mais potentes espectrográfos mantidos em sítios chilenos pelo Observatório Europeu do Sul (Eso), o Steles é uma versão mais moderna de seus congêneres. Pesa 830 quilos, nove vezes menos do que o Uves. Seu tamanho é metade de seus similares. É quase um quadrado, com

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1

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imagens  1 a 3 lna

O Soar (outra página) vai receber o espectrógrafo Steles (acima) que será acoplado ao telescópio. À direita, linhas de absorção registradas no canal vermelho do instrumento

1,80 m de altura, 1,9 m de largura e profundidade de 60 centímetros. Mais de 5 mil peças fazem parte do espectrógrafo. A maioria foi projetada no LNA. Do exterior, vieram toda a parte óptica e uma boa porcentagem da eletrônica. As estruturas mecânicas, de usinagem e uma parcela da eletrônica foram fabricadas no Brasil, onde o projeto foi concebido, montado e testado antes de estar pronto para ser despachado para o Chile. Dez empresas nacionais participaram da construção do espectrógrafo. A Equitecs, de São Carlos, por exemplo, fez a estrutura da bancada e suportes para pendurar no telescópio. A Erominas, de Piranguçu (MG), confeccionou peças mecânicas e a MedTron, de Santa Rita do Sapucaí (MG), fabricou placas eletrônicas para o Steles. “Além de capacitar empresas nacionais a se tornar fornecedoras de peças e serviços para outros projetos de tecnologia sofisticada, a fabricação do Steles permitiu que vários estudantes aprendessem técnicas optomecânicas e alguns até fizeram mestrado sobre temas correlatos à questão da instrumentação”, comenta Castilho. Construir um espectrógrafo como o Steles no Brasil custou significativamente menos do que se ele tivesse sido fabricado fora do país, segundo pesquisadores envolvidos no projeto. “O objetivo era fazer um instrumento de

ponta a um custo mais baixo do que se ele fosse construído no exterior”, diz o astrofísico Augusto Damineli, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). A FAPESP financiou cerca de metade do custo de construção do Steles. O restante veio do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, (MCTIC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Para Castilho, o preço competitivo do Steles se deve a alguns fatores: o custo administrativo e o salário, em dólar, dos pesquisadores e engenheiros envolvidos no projeto são mais baixos aqui do que no exterior; fabricar as partes mecânicas no país também é mais barato; e o tamanho reduzido do instrumento permitiu o uso de componentes ópticos menores e de preço mais em conta. “O Steles vai ter

grande impacto na astrofísica brasileira. Poucos espectrógrafos observam linhas de absorção na região do ultravioleta”, opina Beatriz Barbuy, professora do IAG-USP. “Com ele, a produção científica do Soar deve dobrar.” O otimismo se deve às características do instrumento. Como todo espectrógrafo, o Steles capta a luz de uma estrela e a separa, inicialmente, em dois grandes canais (azul e vermelho) e, em seguida, em diferentes cores (comprimentos de ondas). Certos elementos químicos emitem radiação em comprimentos de onda muito específicos, de difícil detecção. Esse é o caso do berílio, que se formou nas primeiras estrelas surgidas após o Big Bang, há 13,7 bilhões de anos. Sua radiação está numa faixa estreita do ultravioleta, que, no entanto, deverá ser “vista” com nitidez pelo Steles. A resolução do novo espectrógrafo do Soar é maior que a de seus concorrentes. Ele “enxerga” um sinal até 50 mil vezes menor do que o comprimento de onda observado. O Feros, por exemplo, registra uma linha de absorção no máximo 48 mil vezes menor do que o comprimento de onda. n Projeto Steles: Espectrógrafo de alta resolução para o Soar (nº 2007/02933-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Augusto Damineli (IAG/USP); Investimento R$ 1.104.780,00.

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GEOLOGIA y

Rios de um planeta deserto Simulações matemáticas ajudam a entender como fluíam os grandes cursos d’água em planícies antes

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ma enorme parede de rocha nua se destaca na serra dos Brejões, uma das mais belas paisagens no Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Em uma faixa horizontal desse paredão, que pode ser visto na foto ao lado, uma equipe liderada pelo geólogo Renato Paes de Almeida, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), identificou vestígios de um rio caudaloso que havia na região há cerca de 1,5 bilhão de anos. Esse rio possivelmente cruzou um vasto terreno plano que haveria por ali e seria muito diferente dos grandes rios de planície atuais, que têm canais profundos, são sinuosos e cercados por vegetação. Em vez dessas características, o antigo rio atravessaria terras nuas e seria formado por múltiplos canais rasos, que se entrelaçariam continuamente, sendo interrompidos por largos bancos de areia (ver infográfico na página 55). Almeida e seus colaboradores usaram um novo modelo matemático para reconhecer as marcas que o rio primitivo deixou nas rochas. Proposto pelo grupo da USP e publicado este ano na revista Geology, o modelo permite reconstituir a forma e o comportamento de rios que existiram antes de as plantas crescerem sobre os continentes. “O modelo ajudou a prever as características que esses rios teriam”, conta o pesquisador. “Depois do

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trabalho teórico, fomos a campo procurar em afloramentos rochosos estruturas sugeridas pelo modelo.” Um dos locais visitados foi a serra dos Brejões, um afloramento bem conhecido pelos geólogos. Tendo em mente as novas características sugeridas pelo modelo, os pesquisadores passaram a observar detalhes não notados antes. Registros da atividade de rios de planície primitivos, como os encontrados agora na Bahia, são raros. Na maioria das vezes, as marcas dos grandes cursos d’água que existiram há mais de 440 milhões de anos estão impressas em rochas que formaram os trechos mais íngremes de seus leitos, em regiões montanhosas e próximas à nascente. Segmentos do curso intermediário ou próximos à foz só passaram a deixar registros mais abundantes após o surgimento de ambientes dominados por uma vegetação capaz de crescer em terra firme, composta por plantas vasculares. Essa transformação ocorreu por volta de 434 milhões de anos atrás, no período geológico Siluriano. Antes disso, os continentes eram praticamente desertos e as formas de vida macroscópicas estavam restritas aos oceanos. O avanço inicial de tapetes de uma vegetação semelhante a musgos para o interior dos continentes passou a moldar o contorno dos rios. Mais tarde, com o solo estabilizado pelas raízes das

Renato Paes de Almeida

de surgir a vegetação terrestre


Paredão rochoso na serra dos Brejões, observado a partir do morro do Pai Inácio, na chapada Diamantina: rios primitivos preservados na rocha

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plantas, os rios ganharam margens mais firmes e definidas. Os canais se tornaram mais profundos e aumentou o transporte de areia e cascalho para as regiões costeiras. Nas grandes planícies das regiões de clima úmido, os rios adquiriram contornos sinuosos (meandrantes), como o do atual rio Mississipi, nos Estados Unidos. O conhecimento sobre as transformações por que passaram os rios, do surgimento dos musgos, cerca de 460 milhões de anos atrás, ao aparecimento das primeiras árvores, há 390 milhões de anos, avançou muito nas últimas décadas. Uma das motivações foi econômica, pois se sabe que rios antigos cercados de vegetação originaram reservatórios de petróleo. Mas dos anos 1970 para cá quase nada mudou do que se conhecia sobre o curso dos rios da fase pré-vegetação. Ainda hoje os livros de geologia ensinam que, antes de a vegetação existir, os rios deveriam ser do tipo entrelaçado em lençol, comum em áreas montanhosas ou em regiões glaciais de terreno íngreme. Esses cursos d’água deveriam lembrar os atuais rios da Islândia, onde quase não crescem plantas e há muita erosão. A água escorre esparramada por vários canais, em geral rasos, que se bifurcam à medida que surgem bancos de areia. “Os rios de pé de montanha quase não mudaram de aparência desde antes do 54  z  julho DE 2016

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O sinuoso Mississipi, nos Estados Unidos (acima); e um rio entrelaçado na geleira Vatnajökull, na Islândia

Siluriano”, explica Almeida. “Os modelos antigos pré-vegetação eram baseados em rios pequenos, íngremes e de clima árido. Os pesquisadores nunca se perguntaram como eram esses rios nos trechos distantes das montanhas e os de planícies nas quais chovia tanto quanto na Amazônia de hoje.”

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lmeida e seus colaboradores desenvolveram seu modelo matemático modificando outro, proposto nos anos 1990 pelo físico e geólogo Chris Paola, da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. No modelo de Almeida, a equação indica a quantidade de areia e lama que um rio sem vegetação depositaria em um dado trecho de seu curso, desde as áreas próximas à nascente, no sopé de uma montanha, até as mais distantes, no interior de uma planície. A partir das soluções dessa equação, Almeida concluiu que os rios sem vegetação seriam como os entrelaçados apenas nos trechos mais íngremes. Esses rios começariam no pé das montanhas com uma ampla rede de canais rasos e

cruzados, onde a correnteza ainda teria força suficiente para transportar areia grossa e cascalhenta. Mas perderiam rapidamente a capacidade de transportar sedimentos pesados à medida que adentrassem em regiões de menor declividade. “Nesses trechos, os rios deixariam de ser entrelaçados típicos”, diz Almeida. “Teriam menos canais, relativamente mais largos, fundos e sinuosos, porque transportariam e depositariam apenas areia fina e lama.” O modelo também explica por que são raros os registros do curso intermediário dos rios de planície anteriores ao Siluriano. Como esses rios depositavam pouco sedimento nas áreas planas mais distantes, quase só se encontram as marcas deixadas pelos trechos iniciais de seu percurso, onde o acúmulo de areia e outros sedimentos era maior. Essa hipótese lança ideias importantes que podem ajudar a entender melhor a evolução dos ecossistemas na Terra. Se o modelo estiver correto, o fluxo de sedimento das montanhas para o mar deve ter sido muito menor antes do Siluriano


O passado de um rio Provável forma de curso d'água que teria existido entre 1,6 bilhão e 1 bilhão de anos atrás onde hoje é o interior da Bahia n Canais fluviais n Cinturão de canais, com barras fluviais n Área transicional, com lençóis de areia n Planícies de inundação arenosa

Marcas em parede rochosa na serra dos Brejões guardam registros do comportamento de rio de planície primitivo

fotos 1 e 2 google earth 3 Bernardo Tavares Freitas infográfico ana paula campos  ilustraçãO  Andre Marconato

Fonte almeida, r. p. et al. 2016

do que é hoje. Uma das consequências é que as praias do planeta deveriam ser de uma areia mais fina, o que poderia afetar a vida de animais e plantas na zona de arrebentação. Outra é que a água do mar perto do litoral seria menos turva e permitiria à luz do Sol, essencial à maior parte da vida marinha, chegar a profundidades maiores do que as atuais. Almeida e os geólogos André Marconato, da USP, Bernardo Tavares Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Bruno Boito Turra, do Serviço Geológico do Brasil, visitaram os afloramentos da formação Tombador, na chapada Diamantina, em busca de vestígios do leito médio de um rio de planície de antes do Siluriano. A região é cheia de cânions escarpados, nos quais se podem ver depósitos de diferentes trechos de rios que existiram entre 1,6 bilhão e 1 bilhão de anos atrás e pertenceram a uma mesma bacia sedimentar. Os geólogos mediram as estruturas impressas nas rochas, tiraram fotos em alta resolução e fizeram desenhos minuciosos dos afloramentos. Examinando as texturas e as formas dessas estruturas, eles deduziram como eram os canais e os bancos de areia. Também inferiram para onde a água fluía e a quantidade de sedimentos transportados. “Não é intuitivo”, diz Almeida. “A partir dos cortes verticais, tivemos de interpretar uma estrutura em três dimensões.” Preso a cordas de rapel, Bernardo Frei­tas desceu escarpas na região da serra dos Brejões e identificou ali o leito de

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Modelo sugere que, antes do Siluriano, os rios de planície também nasciam entrelaçados e se tornavam sinuosos um rio que se assemelha muito ao previsto pelo modelo de Almeida para os rios de planície de antes do Siluriano. Uma faixa horizontal de quase 100 metros de largura por 15 metros de altura preservou a forma dos canais entrelaçados entre bancos de areia e das camadas de lama depositadas nas margens durante as inundações da planície.

O

modelo de Almeida sugere que os rios de planície que existiam antes de surgir a vegetação terrestre seriam mais parecidos com trechos do Irauádi, que atravessa as planícies de Mianmar, no Sudeste Asiático. “A verdade é que não há um análogo atual aos rios anteriores à vegetação”, afirma. O modelo de Almeida e seus colaboradores prevê ainda que esses rios, depois de atravessarem um bom trecho de planície, já próximo ao mar, transportariam apenas partículas suspensas muito finas, de lama. Nessas regiões, esses rios poderiam ganhar um aspecto mais meandrante. Recentemente o geólogo Maurício Martinho dos Santos, ex-aluno de doutorado de Almeida e hoje em estágio de pós-doutoramento no Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, identificou uma rara ocorrência de sedimentos finos depositados por um rio meandrante de antes do Cambriano, há mais de 540 milhões de anos, em um afloramento na Escócia. A descoberta, feita em parceria com Geraint Owen, da Universidade de Swansea, no Reino Unido, foi publicada em janeiro na revista Precambrian Research. “Os rios meandrantes hoje são a regra, mas eram exceção”, diz Almeida. “Essa é uma hipótese interessante, que precisa ser testada em outras bacias sedimentares”, diz o geólogo Mario Luis Assine, professor da Unesp em Rio Claro e especialista em sistemas fluviais antigos e atuais. “O modelo de Almeida e seus colaboradores se propõe a explicar por que os rios meandrantes eram raros antes do Siluriano. Existe a possibilidade de que eles tenham existido em maior quantidade e de que apenas não os tenhamos identificado corretamente ainda”, conta Assine. E completa: “Não vemos os rios. Vemos apenas seus depósitos sedimentares e fazemos interpretações a partir deles”. n Igor Zolnerkevic

Projeto Arquitetura deposicional de sistemas aluviais pré-vegetação da formação Tombador (Mesoproterozoico), chapada Diamantina, BA (nº 2011/50280-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Renato Paes de Almeida (IGc-USP); Investimento R$ 166.964,99.

Artigo científico ALMEIDA, R. P. et al. The ancestors of meandering rivers. Geology. v. 44 (3), p 203-6. mar. 2016.

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saúde y

Em testes iniciais, formulações imunizantes e medicamentos contra outras enfermidades protegeram células e camundongos do vírus

Ricardo Zorzetto

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epois que pesquisadores da Bahia confirmaram a presença do zika no Nordeste há um ano, o vírus avançou para quase todo o país. Pegos de surpresa, os pesquisadores e autoridades de saúde tiveram de se mobilizar e direcionar esforços para conhecer o vírus e buscar formas de detê-lo. Os primeiros resultados começam a aparecer e são promissores. Ao longo de junho, vieram a público resultados de estudos importantes que ajudam a compreender as reações que o vírus desperta no sistema de defesa em uma situação de especial interesse para a população brasileira: os casos em que o zika infecta pessoas que já entraram em contato com alguma das quatro variedades do vírus da dengue (90% das pessoas já tiveram dengue em certas áreas do Nordeste). Publicado na revista Nature Immunology por pesquisadores da Inglaterra, da França, da Polinésia e da Tailândia, esse trabalho confirma que os anticorpos que protegem da dengue também atuam contra o vírus zika – é o que os imunologistas chamam de reação cruzada –, mas não são capazes de neutralizá-lo completamente. O que se

verificou para o zika em relação aos anticorpos contra a dengue também pode ocorrer com a dengue em relação aos anticorpos antizika. Essa imunização parcial, sugerem os pesquisadores, poderia ocorrer porque os anticorpos produzidos contra um vírus não existiriam em número suficiente ou não seriam eficientes o bastante contra o outro vírus. O mais complicado é que, segundo uma hipótese chamada incremento dependente de anticorpos (ADE, em inglês), a imunização incompleta parece facilitar a entrada do vírus nas células em que ele se reproduz, aumentando, assim, o número de cópias no organismo e a gravidade da infecção. Esses dados, corroborados dias mais tarde por outro trabalho apresentado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), podem ajudar a explicar a gravidade dos casos de zika no Brasil e influenciar o desenvolvimento de vacinas, já que vacinar uma população contra apenas uma das enfermidades poderia levar a casos mais graves da outra. Também há notícias animadoras. No final do mês surgiram indícios de que é possível conter o vírus por meio de me-

ilustraçãO David Goodwill / wikipedia

Esperança contra o zika


Invasão em curso: exemplares do vírus zika (rosa) interagem com receptores (verde) de uma célula

dicamentos em uso há bastante tempo ou até mesmo por meio de uma vacina, o que seria mais desejável do ponto de vista da saúde pública, por seu caráter preventivo. O neurologista Arnold Kriegstein e sua equipe na Universidade da Califórnia em São Francisco investigaram como o zika penetra em células da placenta e do tecido cerebral e observaram que a azitromicina, um antibiótico produzido no início dos anos 1980 e amplamente usado contra uma série de infecções, inclusive por gestantes, impediu a proliferação do vírus e evitou danos celulares nos testes em laboratório. Esses dados se somam ao do trabalho coordenado pelo virologista Amílcar Tanuri na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tanuri e sua equipe já haviam observado que um dos compostos mais usados para combater a malária, a cloroquina, descoberta em 1934, também era capaz de conter o zika em experimentos feitos com células. Na última semana de junho pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos deram o primeiro passo efetivo para demonstrar que é possível produzir uma vacina contra o zika, ainda que seu desenvolvimento demore algum tempo. No Centro de Virologia e Pesquisa em Vacina (CVVR) da Escola Médica Harvard, nos Estados Unidos, duas formulações candidatas a vacina passaram com sucesso pelos primeiros testes com animais de laboratório. Cada uma delas, aplicada em dose única, protegeu os camundongos da infecção por zika, relataram os pesquisadores em artigo publicado em 28 de junho na revista Nature. Nos experimentos com roedores, os dois candidatos a vacina se mostram efetivos tanto contra a variedade do vírus em circulação no Brasil como contra a linhagem encontrada em Porto Rico, no Caribe. “Mostramos que é possível produzir uma vacina antizika”, conta o imunologista brasileiro Rafael Larocca, primeiro autor, ao lado do colega Peter Abbink, do estudo desenvolvido no CVVR. “Os repESQUISA FAPESP 245  z  57


completo, funcionou”, conta Larocca, que fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com apoio da FAPESP. Ele foi orientado, respectivamente, pelos imunologistas Luis Vicente Rizzo e Niels Olsen Saraiva Câmara e desde 2012 trabalha no CVVR. Larocca e seus colaboradores usaram separadamente as duas formulações para imunizar os camundongos e, dias depois, injetaram nos animais o zika brasileiro ou o zika porto-riquenho para verificar se as vacinas ofereciam proteção. Nenhum roedor imunizado desenvolveu sinais de infecção nem apresentou quantidades detectáveis de vírus no sangue, enquanto o zika se proliferou em abundância nos camundongos não vacinados. MECANISMO DE AÇÃO

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sultados são fortes e convincentes, mas temos de ser cautelosos e aguardar a realização de mais testes com animais e dos ensaios com seres humanos”, pondera. “Até onde se sabe, essa é a primeira demonstração em modelo animal de proteção contra o zika por meio de vacina”, afirma o médico norte-americano Dan Barouch, coordenador do laboratório em que Larocca trabalha e diretor do CVVR. Nos experimentos, os pesquisadores trabalharam com duas classes de vacina. Uma delas é uma formulação contendo cópias do vírus quimicamente inativadas. Ela foi desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Walter Reed, do Exército norte-americano, que usou o zika circulante em Porto Rico. No CVVR, Larocca e Abbink adotaram outra estratégia. Eles analisaram o genoma do vírus e produziram uma cópia sintética do trecho contendo a sequência do complexo proteico que recobre externamente o zika: a proteína pré-membrana (prM) e a proteína do envelope (E), a partir das quais as células de defesa identificam o vírus. No primeiro contato do vírus com o organismo, um tipo especial de célula de defesa – as células apresentadoras de antígenos – detecta essas proteínas, as processa e exibe partes delas para os linfócitos B, produtores dos anticorpos 58  z  julho DE 2016

Em testes com camundongos, a vacina de DNA e a feita com vírus inativo detiveram o zika do Brasil e de Porto Rico

que neutralizam o vírus quando o organismo volta a ser exposto a ele. Os pesquisadores transferiram esse gene sintético para bactérias e deixaram que elas atuassem como máquinas copiadoras, produzindo um número elevado de réplicas usadas depois para imunizar os camundongos – essas cópias são o que os pesquisadores chamam de vacina de DNA. “Criamos seis formulações da vacina de DNA, mas apenas uma, aquela em que expressou o complexo proteico

Uma bateria de testes posterior ajudou a identificar o que parece ser a principal forma de proteção contra o zika. Larocca e Abbink coletaram amostras de sangue dos animais vacinados, extraíram os anticorpos específicos contra o vírus e transferiram apenas esses anticorpos para camundongos que não haviam sido imunizados. Ao injetar o zika do Brasil ou o de Porto Rico nesses animais, os pesquisadores verificaram que os roedores não foram infectados. “Esse experimento mostra que os anticorpos produzidos contra o vírus são suficientes para proteger da infecção”, explica o neuroimunologista Jean Pierre Peron, da USP, que, ao lado do virologista Paolo Zanotto, é coautor do estudo da Nature e integrante da Rede Zika, o consórcio de pesquisadores de São Paulo que investigam o vírus com apoio da FAPESP. “Isso não elimina a possibilidade de que uma formulação capaz de produzir imunidade funcione também por outra via, estimulando células de defesa, chamadas linfócitos T, a produzirem compostos que dificultem a replicação do vírus.” Experimentos feitos por outras equipes já sugeriram que a produção de uma molécula sinalizadora chamada interferon dificulta a multiplicação do zika. “Tínhamos alguma indicação de que uma vacina poderia produzir imunidade contra o zika”, diz o biólogo Paulo Lee Ho, diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção do Instituto Butantan, que trabalha, com financiamento do governo norte-ame-


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fotos 1 National Institute of Allergy and Infectious Diseases, National Institutes of Health 2 léo ramos

Ao lado, cópias do zika (vermelho) isoladas de criança do Ceará; acima, meio de cultura em que exemplares do vírus se multiplicam em células de macaco

ricano, no desenvolvimento de um candidato a imunizante contra zika usando o vírus inativado. Na USP de Ribeirão Preto, o imunologista Benedito Fonseca e sua equipe já haviam realizado uma versão mais simples do experimento. Eles extraíram o soro de roedores imunizados com vírus inativado e adicionaram a células cultivadas em laboratório. Os resultados dos testes ainda não foram publicados, mas indicam que o zika não conseguiu infectar as células tratadas com soro. “O estudo da Nature é importante porque mostra que não é necessária uma resposta imunológica tão complexa para proteger contra o vírus e nos dá dicas de como superar algumas barreiras que estávamos encontrando para inativá-lo”, diz Ho. “Esse trabalho é relevante e mostra que o desenvolvimento de uma vacina contra zika é tecnicamente viável”, afirma o veterinário Marcos da Silva Freire, vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “Mas, como os próprios autores mencionam, é difícil extrapolar os resultados dos testes com camundongos para uma potencial eficácia clínica em humanos.” Freire também trabalha no desenvolvimento de uma vacina e aposta em duas abordagens: uma com vírus inativado e outra com vírus vivo recombinante que usa o vírus da febre amarela para expressar as proteínas do zika. Ambos devem começar a ser testados em animais em setembro. Ele lembra que ainda há muitas dúvidas a serem respondidas antes que se consiga chegar a uma vacina segura e eficaz e que não é desejável criar uma falsa percepção de proteção, principalmente entre as mulheres em idade reprodutiva. “Ainda não sabemos se as formulações testadas no estudo da Nature seriam seguras para serem aplicadas em adultos e crianças, principalmente em mulheres em idade fértil e grávidas, nem qual o tempo de proteção que oferecem ou se há necessidade de doses de reforço”, diz Freire. “Essas questões só serão verificadas nos estudos clínicos.” Outra questão em aberto, reforçada por causa da reação cruzada entre anticorpos contra dengue e anticorpos contra zika, é se o desenvolvimento de uma vacina contra apenas uma das enfermi-

dades não agravaria a outra. “Será que uma vacina contra zika não aumentaria o número de casos de dengue e a gravidade deles e vice-versa?”, pergunta Ho, do Butantan. Talvez, completa o pesquisador, a saída seja uma vacina pentavalente, que proteja contra os quatro sorotipos do vírus da dengue e contra o zika, como a que o Butantan tenta desenvolver em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. A busca por uma vacina contra o zika tornou-se prioridade mundial de saúde após surgirem evidências de que o vírus infecta o feto de gestantes e causa microcefalia. De outubro de 2015 a 18 de junho, o Ministério da Saúde registrou no Brasil 8.039 casos suspeitos de microcefalia, dos quais 1.616 foram confirmados (233 com resultado positivo para infecção por zika). Enquanto os grupos brasileiros trabalham para obter formulações diferentes e desenvolver, em escala industrial, estratégias de produção de vacina seguras para o uso em humanos, os experimentos seguem em Harvard. Larocca e seus colegas já usaram as duas formulações para imunizar macacos e aguardam os resultados para os próximos meses. Em parceria com o grupo de Jean Pierre Peron, da USP, eles devem começar em breve os testes de imunização de fêmeas de camundongo prenhes, a fim de verificar se as formulações realmente protegem contra a microcefalia. “Nossos resultados nos deixam otimistas de que o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz para seres humanos contra o vírus zika provavelmente será bem-sucedida”, conta Dan Barouch, da CVVR. “Os ensaios clínicos devem começar o mais rápido possível.” n

Projetos 1. O papel do eixo triptofano-kinureninas na regulação da resposta imune através de receptores de glutamato tipo NMDA na encefalomielite experimental autoimune e na lesão por isquemia e reperfusão cerebral (nº 2011/187032); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Jean Pierre Schatzmann Peron (ICB-USP); Investimento R$ 1.077.384,82. 2. Abordagem sistêmica no estudo da permissividade do Anticarsia gemmatalis múltiplo nucleopoliedrovírus (AgMNPV) (nº 2014/17766-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paolo Marinho Zanotto (ICB-USP); Investimento R$ 500.009,45.

Artigos científicos LAROCCA, R. A. et al. Vaccine protection against Zika virus from Brazil. Nature. 28 jun. 2016. DEJNIRATTISAI, W. et al. Dengue virus sero-cross-reactivity drives antibody-dependent enhancement of infection with zika virus. Nature Immunology. 23 jun. 2016.

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As Olimpíadas e o risco de exportar doenças Probabilidade de turista se infectar com dengue ou zika é baixa, mas críticos veem irresponsabilidade na realização do evento

J

á era de esperar que o assunto seria lembrado. Com a aproximação dos Jogos Olímpicos e o auge da epidemia de zika no país – de janeiro ao início de maio houve 138 mil casos, 27,5% no estado do Rio de Janeiro –, seria natural que surgissem questionamentos sobre os riscos para a saúde dos 10 mil atletas e 500 mil turistas aguardados para o evento. E surgiram. Em fevereiro, dois professores da Universidade de Nova York (NYU), Lee Igel, especialista em fisiologia do esporte, e Arthur Caplan, chefe da divisão de bioética da escola médica da universidade, escreveram um artigo de opinião para a revista Forbes sugerindo que os jogos deveriam ser cancelados, adiados ou transferidos de local. Eles apontavam mazelas sociais e econômicas do Rio e do país e afirmavam que não seria seguro ir à Olimpíada em meio à epidemia de zika. Na época, a epidemia atingia o ápice. Segundo dados do Ministério da Saúde, em fevereiro houve 53 mil casos de zika e o estado do Rio apresentava um dos índices mais altos de incidência da infecção. Em seguida, a epidemia arrefeceu. Em maio, Igel e Caplan se uniram ao biólogo e advogado Amir Attaran, da Universidade de Ottawa, no Canadá, e ao historiador e geógrafo Christopher 60  z  julho DE 2016

Gaffney, da Universidade de Zurique, na Suíça, e encaminharam uma carta aberta à diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan. Quase 230 pesquisadores de vários países subscreveram o documento, que recomendava o adiamento ou a mudança de local dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Além da preocupação com a saúde dos atletas, os autores manifestavam receio com a disseminação do vírus brasileiro, mais agressivo, para outros países. Mesmo sabendo que os jogos ocorrerão no inverno, o período de mais baixa atividade do mosquito transmissor do zika, Attaran e seus colegas argumentavam que existia o risco de visitantes serem infectados e retornarem a seus países com o zika brasileiro, o que seria um problema em países do hemisfério Norte, onde será verão. Eles concluem a carta dizendo que não revisar a posição sobre os jogos era uma “atitude irresponsável”. O documento provocou a reação de autoridades da saúde nacionais e internacionais. Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, a equipe da epidemiologista Claudia Codeço preparou um artigo em resposta a Attaran e seu grupo. No trabalho, publicado na edição de junho da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, os pesquisadores

reavaliaram estudos sobre a dinâmica de doenças transmitidas por mosquitos, em especial a dengue, e ratificaram a posição da OMS de que o risco de disseminação da zika seria baixo e não justificaria alterar a data ou lugar do evento. Em agosto o tempo no Rio é seco e a temperatura fica entre 19 e 26 graus Celsius – com a mínima inferior a 22 graus, cai muito a capacidade do mosquito Aedes aegypti de transmitir dengue. Além disso, lembram os pesquisadores, testes em laboratório mostraram que o Aedes transmite o vírus da febre zika com menos eficiência que o da dengue. “O mosquito continua existindo, mas a quantidade diminui porque muda a dinâmica natural e a taxa de reprodução”, explica o físico Marcelo Gomes, da Fiocruz, coautor do artigo e especialista em modelos computacionais de propagação de mosquitos. Os dados disponíveis sobre zika, conta Gomes, indicam que o número de casos está em queda na capital fluminense. “Baixaram de 2.100 na terceira semana de fevereiro para 208 na primeira semana de maio”, afirma. “Essa redução sustentada é condizente com a dinâmica observada para a dengue.” Tão logo souberam da carta de Attaran, o médico e epidemiologista Eduardo Massad e o físico Francisco Bezerra Cou-


Rio 2016: inverno seco e temperaturas baixas devem reduzir a transmissão de dengue e zika

tinho, ambos professores da Universidade de São Paulo (USP) e especialistas em modelos matemáticos que simulam a disseminação de doenças, prepararam uma resposta. Com Annelies Wilder-Smith, professora de infectologia na Universidade Tecnológica Nanyang, em Cingapura, eles escreveram uma carta, publicada em junho na revista Lancet, na qual argumentam que o risco individual de um visitante ser infectado com o vírus zika nas três semanas das Olimpíadas é muito baixo.

foto léo ramos  ilustração freepik

apenas 15 casos

Se os 500 mil turistas esperados realmente forem ao Rio, é provável que apenas 15 peguem zika e só três manifestem seus sintomas, segundo as projeções feitas por Massad, Coutinho e outros dois colaboradores, o médico Marcelo Burattini e o físico Raphael Ximenes, e apresentadas na carta da Lancet. Já o risco de ter dengue é 17 vezes maior. Se os cálculos se confirmarem, cerca de 250 visitantes devem ser infectados pelo vírus e 50 devem apresentar sinais de dengue. Massad é um dos pesquisadores principais da Zika Plan, rede europeia de investigação do vírus zika, e já havia

calculado o risco de os turistas pegarem dengue durante a Copa de 2014. Ele e seu grupo chegaram aos números sobre zika levando em consideração a estimativa de casos que já houve no país (cerca de 1,5 milhão), a dinâmica da dengue no Rio nos anos de epidemia mais grave e o que já se conhece sobre o comportamento do Aedes aegypti, transmissor dos vírus das duas enfermidades. “O risco individual de pegar zika é muito baixo, mas cada pessoa deve decidir por si mesma se vai aos jogos”, afirma Coutinho. “Os atletas devem se proteger e usar repelente, porque o preço de adoecer seria muito alto.” “Não há razão de saúde pública para cancelar ou adiar as Olimpíadas”, disse Tom Frieden, diretor do Centro e Controle de Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, à imprensa. A visita de 500 mil turistas ao Rio representaria apenas 0,25% dos 200 milhões de viagens internacionais que rotineiramente acontecem para regiões com zika e contribuiria pouco para disseminar o vírus brasileiro para outros países, concluíram epidemiologistas norte-americanos. Esses argumentos não mudaram a opinião de Attaran e seus colegas. Em um memorando enviado por e-mail à Pesquisa FAPESP, e, segundo Attaran, também à OMS, o grupo rebate todos os

argumentos de que os riscos são baixos, diz que os resultados dos modelos não são confiáveis porque há poucos dados precisos sobre zika e estimam que a participação no evento contribua para o surgimento de até 10 novos focos de transmissão em outros países. “Os jogos não serão adiados ou cancelados, mas isso é um infortúnio, uma vez que poderiam ser realizados em outro momento, com menos perigo, medo e desorganização”, disse Caplan. Em um ponto, todas as vertentes do debate concordam: mulheres grávidas ou que querem engravidar não devem ir ao Rio. Se os seus companheiros forem, durante seis meses elas devem fazer sexo usando proteção. n

Projeto Risco de dengue para turistas no Brasil na Copa do Mundo FIFA 2014 e nos Jogos Olímpicos Rio 2016, utilizando modelagem matemática (nº 2012/184634); Modalidade Doutorado direto; Beneficiário Raphael Ximenes; Pesquisador responsável Eduardo Massad (FM-USP); Investimento R$ 116.689,66.

Artigos científicos MASSAD, E.; COUTINHO, F. A.; WILDER-SMITH, A. Is Zika a substantial risk for visitors to the Rio de Janeiro Olympic Games? Lancet. 17 jun. 2016. CODEÇO, C. et al. Zika is not a reason for missing the Olympic Games in Rio de Janeiro: Response to the open letter of Dr Attaran and colleagues to Dr Margaret Chan, Director-general, WHO, on the Zika threat to the Olympic and Paralympic Games. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. jun. 2016.

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Bioquímica y

A faxina do Plasmodium Parasita causador da malária se livra de compostos tóxicos de duas maneiras no interior dos glóbulos vermelhos Rodrigo de Oliveira Andrade

O

Plasmodium falciparum, causador da forma mais agressiva de malária, é um parasita versátil. No organismo hospedeiro, o protozoário se instala inicialmente nas células da pele e do fígado, onde amadurece e se multiplica, antes de ganhar a corrente sanguínea e invadir os glóbulos vermelhos do sangue (hemácias). É dentro das hemácias, no entanto, que o parasita executa proezas que lhe permitem se manter vivo e se livrar do lixo tóxico que ele próprio produz ao se nutrir. Em um artigo publicado no final de fevereiro na revista Scientific Reports, pesquisadores ingleses e brasileiros coordenados pela bioquímica Célia Garcia, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), descreveram uma nova estratégia bioquímica usada pelo parasita para eliminar esses resíduos e, assim, sobreviver e amadurecer no interior das hemácias. Segundo eles, o mecanismo identificado agora, além de outro já conhecido há algum tempo, pode ampliar as perspectivas de se desenvolverem novas estratégias de combate à malária. A equipe de Célia investiga, há pelo menos duas décadas, o que aconte-

62  z  julho DE 2016

ce com o plasmódio depois que ele se instala nos glóbulos vermelhos. Nesse período, ela e sua equipe verificaram que um dos segredos que possibilitam ao parasita sobreviver dentro das hemácias está relacionado ao modo como ele as invade. Em vez de perfurar a membrana, o plasmódio apenas a empurra. Como é elástica, a membrana se deforma e o envolve, criando ao seu redor uma bolsa em que a concentração de cálcio é mais elevada do que no interior da célula e mimetiza a do plasma sanguíneo — o cálcio é um elemento importante para a sobrevivência do parasita. O Plasmodium então se multiplica e passa por três fases de desenvolvimento. Após 48 horas, milhares de cópias do protozoário atingem o mesmo grau de maturidade entre si e rompem os glóbulos vermelhos, partindo para a invasão das hemácias sadias. Em estudos anteriores, o grupo da bioquímica também havia constatado que o ritmo de amadurecimento do parasita era regulado por um hormônio produzido pelo organismo do hospedeiro, a melatonina, que nos mamíferos controla os ciclos de sono e vigília (ver Pesquisa FAPESP nº 153).

O protozoário sobrevive no interior das hemácias se alimentando da hemoglobina, a proteína responsável pelo transporte de oxigênio e que dá a cor vermelha ao sangue. Há algum tempo se sabe que para isso o parasita produz uma enzima que quebra essa molécula em partes menores, os aminoácidos. Desse processo, explica Célia, resulta uma molécula chamada heme, que, se não for eliminada, pode atingir concentrações tóxicas e lesar as células e o próprio parasita que a produziu. Na década de 1980, pesquisadores constataram que ao longo de sua evolução o P. falciparum desenvolveu ao menos uma forma de se proteger dessa substância tóxica, transformando-a em um polímero inofensivo, a hemozoína. Esse mecanismo é hoje o principal alvo da cloroquina, o antimalárico mais usado no mundo. Ao impedir a formação desse polímero, a cloroquina inibe o crescimento e a reprodução do parasita no interior das hemácias. O problema é que nas últimas décadas o medicamento vem perdendo eficácia contra o plasmódio, sobretudo na América do Sul e no Sudeste Asiático. Em 2010, o grupo de Célia observou que outro mecanismo – comum no or-


polímero inerte Após a invasão, o parasita converte resíduos tóxicos em um polímero inerte

fotos 1 CNRI / SCIENCE PHOTO LIBRARY 2 sartorello, r. et al / Cell Biology international

Dois exemplares de plasmódio no interior da hemácia

ganismo de mamíferos, mas até então desconhecido em Plasmodium – também permite ao protozoário neutralizar o grupo heme. Em um estudo publicado na revista Cell Biology International, os pesquisadores da USP verificaram que o parasita produz uma enzima chamada heme-oxigenase, que converte o heme em biliverdina, molécula que não é tóxica em baixas concentrações. A partir de certos níveis, porém, a biliverdina pode se tornar nociva para o protozoário. “Converter o heme em biliverdina, em vez de transformá-lo em um polímero, pode representar um risco à sobrevivência do parasita dentro dos glóbulos vermelhos”, diz Célia. Os pesquisadores não sabem em que circunstâncias o plasmódio age por uma ou outra via para neutralizar os compostos tóxicos. Uma hipótese, segundo Célia, é que a segunda estratégia desaceleraria o ciclo de vida do parasita, reduzindo seu metabolismo e a produção dessas substâncias nocivas. No estudo publicado agora na Scientific Reports, os pesquisadores investigaram o papel da biliverdina no ciclo de vida do parasita, que infecta por ano 250 milhões de pessoas no mundo (e mata

quase 1 milhão, a maioria crianças), sobretudo na África, na Ásia e na América Latina. Em colaboração com Rita Tewari, da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, o grupo de Célia interrompeu em parasitas da espécie P. berghei a expressão do gene envolvido na produção da heme-oxigenase, impedindo que eles produzissem biliverdina. Apesar de não ser a principal via usada para neutralizar substâncias tóxicas, sua produção parece ser importante para a vida do parasita. “Ao anularmos a expressão do gene que produz a heme-oxigenase, o parasita morreu”, conta Célia, que se surpreendeu com o resultado. “Mostramos que o P. berghei, que infecta roedores, é incapaz de se desenvolver dentro das hemácias se não consegue produzir a heme-oxigenase”, ela afirma. Ainda é preciso verificar se o mesmo acontece no caso do P. falciparum. Segundo ela, esse pode ser um caminho para se criar novas estratégias de combate ao parasita. Ao que tudo indica, a biliverdina impede o amadurecimento do protozoário nas hemácias. No estudo, os pesquisadores fizeram uma série de ensaios em laboratório nos quais observaram que a

biliverdina se liga à enolase, enzima usada pelo parasita para produzir energia. A descoberta os surpreendeu porque a enolase participa de outra via bioquímica do plasmódio e porque, em princípio, não deveria se unir à biliverdina. Célia e seus colaboradores, entre eles Glaucius Oliva e Rafael Guido, ambos da USP de São Carlos, concluíram que, ao se ligar à enolase, a biliverdina reduz a taxa de multiplicação do plasmódio. “A biliverdina funcionaria como uma molécula de comunicação, e a enolase, como um sensor que detecta a biliverdina”, sugere Célia. n

Projeto Genômica funcional em Plasmodium (nº 2011/51295-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa — Temático; Pesquisadora responsável Célia Regina da Silva Garcia (IB-USP); Investimento R$ 2.068.020.

Artigos científicos ALVES, E. et al. Biliverdin targets enolase and eukaryotic initiation factor 2 (eIF2α) to reduce the growth of intraerythrocytic development of the malaria parasite Plasmodium falciparum. Scientific Reports. v. 6, n. 22093, p. 1-12. fev. 2016. SARTORELLO, R. et al. In vivo uptake of a haem analogue Zn protoporphyrin IX by the human malaria parasite P. falciparum-infected red blood cells. Cell Biology International. v. 34, n. 8. p. 859-65. ago. 2010.

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Medicina y

Ressonância magnética pode detectar alterações cardíacas sutis não captadas por outros exames

Uma nova visão do

coraçao

1

Imagem de microscopia de infarto do miocárdio: fibrose (áreas mais claras) prejudica funcionamento do coração

A

s imagens de ressonância magnética podem ser uma ferramenta útil para o diagnóstico precoce de mínimas alterações cardíacas causadas pela obesidade crônica e por outros problemas de saúde. Por estarem em um estágio ainda muito inicial, essas transformações não são detectadas pelos exames empregados usualmente para avaliar o estado do coração, como o eletrocardiograma e a ecografia. Ao lado de colegas da Universidade Harvard, Estados Unidos, onde concluiu o mestrado há cinco anos, o cardiologista Otávio Rizzi Coelho-Filho, hoje professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), desenvolveu um novo protocolo de uso dessa técnica 64  z  julho DE 2016

que identifica dois tipos de modificações sutis no músculo cardíaco: o aumento do tamanho de suas células e a quantidade de fibrose intersticial, tecido rico em colágeno que se forma nos espaços existentes entre as células e dificulta o funcionamento do coração. Essas alterações ocorrem no âmbito subcelular, antes que o formato do coração apresente variações visíveis. Nesse estágio, em linhas gerais, o músculo cardíaco ainda está funcional e parece completamente são, mas, em seu interior, abriga sinais de uma nascente degeneração. “Apenas com a ressonância conseguimos ver que o coração não está totalmente saudável enquanto os demais métodos de diagnóstico mostram que o órgão está normal”, explica Coelho-Fi-

lho, que faz parte da equipe do Centro de Pesquisas em Obesidade e Comorbidades (OCRC, em inglês), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. A hipertrofia celular e a difusão da fibrose são fatores que aumentam o risco da ocorrência de arritmias cardíacas, de infarto e até de morte súbita. As imagens de ressonância são o único método não invasivo capaz de detectar simultaneamente as duas modificações, segundo o pesquisador da FCM. Atualmente, a fibrose intersticial só é constatada por meio da biópsia do tecido cardíaco, uma técnica invasiva e difícil de ser empregada. Por meio da obtenção de múltiplas imagens das fibras do miocárdio que formam uma espécie de filme do fun-


cionamento do coração, o exame de ressonância magnética permite calcular o tamanho das células do músculo cardíaco e a quantidade de fibrose. Quanto maior a dimensão das células e mais disseminada a ocorrência de colágeno, maior o dano. Nos testes, os pesquisadores realizam medições antes e depois da administração de gadolínio, elemento químico usado como contraste na ressonância magnética. O gadolínio não penetra nas células cardíacas e se espalha pelo espaço extracelular, onde se forma a fibrose intersticial. Pelo espalhamento do contraste, é possível ter uma ideia da extensão da área com colágeno. Outro parâmetro analisado é o tempo gasto pelas moléculas de água para atravessar as células do miocárdio. Tempos maiores indicam células mais avantajadas, sinal de alguma alteração em curso. Ataxia e Chagas

fotos 1 Dr. Gladden Willis / Visuals Unlimited, Inc. / SPL / Latinstock  2 eduardo cesar

Para o médico Wilson Nadruz, professor da Unicamp que participa dos estudos com ressonância magnética cardíaca, o novo protocolo de uso dessa técnica permite a identificação precoce do remodelamento cardíaco antes do desenvolvimento de alterações mais expressivas na forma e no funcionamento do coração. “Poderíamos identificar alterações cardíacas que potencialmente seriam total ou, ao menos, parcialmente reversíveis se tratássemos as doenças de base, como obesidade e diabetes”, diz Nadruz, que orientou a tese de doutorado sobre o tema defendida em 2013 por Coelho-Filho. “Com base nos dados obtidos até

o momento com essa metodologia, a hipertrofia celular parece ser um evento ainda mais precoce que a fibrose intersticial.” Geralmente existe uma correlação entre fibrose e hipertrofia, mas os dois processos não estão necessariamente relacionados. Nos últimos anos, Coelho-Filho tem testado a metodologia em camundongos e em seres humanos obesos ou com outras doenças que provocam danos ao coração. Um de seus trabalhos mais recentes foi com indivíduos que sofrem de ataxia de Friedreich, doença neurodegenerativa de origem genética que dificulta a coordenação dos movimentos e provoca problemas no coração e, às vezes, diabetes. Insuficiência cardíaca é a causa mais comum de morte entre esses pacientes. Os pesquisadores do Cepid empregaram o novo protocolo para verificar a presença de fibrose e o tamanho das células cardíacas em 27 pacientes com a doença e 30 indivíduos sadios, que funcionaram como grupo-controle. Nos exames de ressonância, os índices referentes à ocorrência de fibrose e à expansão do volume e da área das células cardíacas nas pessoas afetadas com a ataxia foram maiores do que nos indi-

Exame de ressonância magnética do coração: mede aumento do tamanho das células do miocárdio e da fibrose intersticial

víduos normais. O estudo foi publicado em janeiro no Journal of Cardiovascular Magnetic Ressonance. Os exames de ressonância magnética do coração não são empregados rotineiramente, mas podem ser úteis para acompanhar as primeiras alterações nas células do miocárdio de pacientes com doenças que, cedo ou tarde, como a ataxia de Friedreich, provocam danos no músculo cardíaco. Professor do setor de ressonância magnética e tomografia computadorizada cardiovascular do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), o médico Carlos Eduardo Rochitte pesquisa o uso dessas técnicas em pacientes com a doença de Chagas, que sofrem de uma inflamação no coração causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. Em um grupo de 20 indivíduos com a chamada forma indeterminada da doença – portadores do patógeno que estão clinicamente sadios e sem sintomas ou alterações ocasionados pelo Chagas –, Rochitte verificou, com a ressonância magnética, que 30% deles já apresentavam fibrose intersticial. “A técnica é boa para quantificarmos essas alterações em um estágio precoce”, opina Rochitte, cujos estudos são financiados em parte pela FAPESP. “Contudo, ainda não sabemos qual a relevância clínica desses dados para os pacientes de Chagas. Será que a presença de fibrose nesses portadores do protozoário quer dizer que eles devem começar a manifestar os sintomas da doença em breve?”, pergunta. Essa é uma das questões, ainda sem resposta, que estão sendo estudadas pelo pesquisador do InCor. n Marcos Pivetta

Projetos 1. Centro Multidisciplinar de Pesquisa em Obesidade e Doenças Associadas (nº 2013/07607-8); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Lício Velloso (FCM-Unicamp); Investimento R$ 14.579.597,41 (para todo o Cepid). 2. Avaliação da fibrose miocárdica pela ressonância magnética cardíaca na estratificação prognóstica em doença de Chagas (nº 2014/17643-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Carlos Eduardo Rochitte (InCor/FM-USP); Investimento R$ 175.938,00.

Artigo científico

2

COELHO-FILHO, O. R. et al. Characterization of both myocardial extracellular volume expansion and myocyte mypertrophy by CMR detect early signs of myocardial tissue remodeling in Friedreich's ataxia patients without heart failure. Journal of Cardiovascular Magnetic Ressonance. v. 18 (sup. 1). 27 jan. 2016.

pESQUISA FAPESP 245  z  65


Com sustentabilidade,

TECNOLOGIA E

integração social podemos transformar o amanhã.

Mais informações: www.mcti.gov.br facebook.com/MCTIC twitter.com/mctic


Venha conhecer o espaço do MCTIC

68ª Reunião Anual da SBPC De 3 a 9 de julho,

na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Porto Seguro (BA).


tecnologia  Energia y

Óleo para o biodiesel Com o futuro aumento da produção do biocombustível, várias alternativas de matérias-primas deverão ser utilizadas

Marcos de Oliveira

68  z  julho DE 2016


léo ramos

U

m decreto presidencial de abril deste ano elevou a porcentaMacaúba, dendê e óleo de fritura gem da adição de biodiesel no são opções para a produção do diesel, que passará de 7% para 8% até 2017 e chegará a 10% em 2019. No biocombustível nos próximos anos ano passado, o país produziu 3,9 bilhões de litros de biodiesel – um crescimento de 15% em relação a 2014 –, ficando em segundo lugar no mundo, atrás dos Estados Unidos e na frente da Alemanha e que reúne os produtores. Ele garante que, de editais a pesquisa com oleaginosas da Argentina. A demanda esperada para com a capacidade industrial atual, é pos- para a produção de biodiesel. Colombo 2020 é de 7 bilhões de litros. Em 2015, sível aumentar a oferta de biodiesel aos teve um projeto financiado pela FAPESP, 76,5% do biodiesel no Brasil foi feito com poucos, até atingir os 15% na composi- em que levantou e identificou plantas de soja, 19,4% com gordura animal, 2% com ção com o diesel. Isso é possível porque macaúba em vários locais do estado de algodão e mais 2,4% com outros tipos de quase toda a matéria-prima para o bio- São Paulo. “Foi uma coleta de sementes matérias-primas, como óleo de cozinha diesel é de subprodutos, como óleo de dos frutos para que pudéssemos estuusado, dendê, entre outros. A produção soja, gordura animal e óleo do caroço do dar a variabilidade genética na populadesse biocombustível se dá por meio algodão. Existe ainda o óleo de fritura, ção e fazer cruzamentos entre elas para de um processo químico chamado de por exemplo, segundo Tokarski, uma uma futura formação de cultivares para transesterificação, em que é misturado fonte quase inexplorada. Dependendo plantio.” Depois de 10 anos, Colombo um óleo vegetal ou gordura de origem da região, compra-se o litro por valores anuncia que em mais quatro anos o IAC poderá lançar no mercado agrícola uma animal ao metanol, um álcool extraído que vão de R$ 0,40/l a R$ 1,80/l. do gás natural, e mais um catalisador, Para o futuro, ainda existe a cultura variedade para plantio voltada à produuma substância química. Para cada mil do dendê, que pode render 4 mil l/ha. ção de óleo. litros de óleo são necessários 300 litros Também chamada de palma, essa culde metanol. tura ainda não atingiu um volume de lembrança do pinhão O aumento da participação do bio- produção para o biocombustível e cer- “O óleo de macaúba é muito estável e tem diesel no diesel vai estimular a deman- tamente terá um custo mais favorável na ácido láurico, um importante ingrediente da por matérias-primas para o fabrico região Norte do país, onde é plantada e para a indústria de cosméticos. Na nado óleo vegetal. As opções são muitas. se adapta melhor. A previsão em rela- tureza, a planta gera de 3 a 4 mil litros A mais recente, que é objeto de estudo ção à macaúba é que em quatro anos os de óleo/ha/ano. Com o nosso melhorade várias instituições de pesquisa bra- produtores terão mudas para plantio e mento, atingiremos de 8 a 9 mil l/ha”, sileiras, é o óleo do fruto da macaúba, em mais seis anos, o óleo para a venda. afirma Colombo. Entre os projetos em uma palmeira encontrada em quase toA planta (Acrocomia aculeata) é uma que participa está um do Banco Mundial, do Brasil, do norte de Minas Gerais até palmácea nativa presente no Cerrado, junto com a Universidade Leuphana, da o norte da Argentina. Ela é a mais nova na região Centro-Oeste, Pantanal e até Alemanha, que financia a plantação de promessa para a produção de biodiesel. na parte oeste e sul da região amazônica. macaúba em 2.000 ha em Patos de Minas O que atrai na planta é a quantidade de “Não existe na história brasileira uma (MG) com apoio do IAC e que funcioóleo que essa cultura sem nenhum me- planta nativa que tenha atraído tantos na em consórcio com a criação de gado. lhoramento agronômico produz num pesquisadores em tão pouco tempo”, Esse tipo de associação contribui para espaço de 10 mil metros quadrados ou 1 avalia o engenheiro agrônomo Carlos recuperar pastagens. hectare (ha): até 4 mil litros (l). A título Augusto Colombo, pesquisador do InsColombo diz que toma todos os cuidade comparação, a soja rende 500 l/ha. tituto Agronômico de Campinas (IAC). dos para que não ocorra com a macaú“A macaúba será extremamente im- “São mais de 100 pesquisadores no Brasil ba o que aconteceu há alguns anos com portante para o futuro do biodiesel em estudando o melhoramento genético da o pinhão-manso (Jathopha curcas): um alguns anos. É a cara do Brasil porque é macaúba e as características químicas excesso de otimismo entre produtores uma planta nativa que está sendo muito do óleo.” O trabalho no IAC começou de biodiesel antes mesmo de existirem pesquisada e em pouco tempo em 2006, quando o Conselho pesquisas e o estabelecimento de dados Fruto da vai ganhar mercado”, comenta Nacional de Desenvolvimen- agronômicos sobre a cultura. “O pinhãomacaúba e o óleo Donizete Tokarski, diretor suto Científico e Tecnológico -manso não apresentava plantas de porte do fruto em perintendente da União Bra(CNPq) e outros órgãos de fo- baixo, o que dificulta a colheita. Tem frulaboratório do IAC, em Campinas sileira do Biodiesel (Ubrabio), mento incentivaram por meio tos grandes, pequenos e amadurecimento pESQUISA FAPESP 245  z  69


em épocas distintas em pés diferentes na mesma plantação”, lembra. Para evitar essa situação, os pesquisadores estão identificando as melhores plantas de macaúba, com porte baixo, mais produtivas e com maiores teores de óleo. A macaúba pode produzir por mais de 20 anos. Outra frente de estudo e produção de variedades para plantio de macaúba está na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, onde o agrônomo Sergio Motoike coordena um projeto desde 2005, que teve financiamento da Petrobras e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Inicialmente o grupo estudou o dendê (Elaeis guineenses) e chegou a um sistema de micropropagação (multiplicação), que recebeu financiamento do CNPq e da empresa Agropalma. “Conseguimos fazer 20 clones da melhor planta, que agora estão em testes.” O dendê ainda é pouco utilizado na produção do biodiesel. O óleo produzido no país vai para a indústria alimentícia e de cosmé-

Palmeira macaúba e mudas para a formacão de uma variedade para plantio

ticos. O mesmo acontece com a mamona, embora pese contra o óleo dessa planta um alto teor de viscosidade que dificulta o processo de obtenção de biodiesel. “Com relação ao dendê, a área plantada está sendo expandida no Pará para que, quando houver excedente de óleo, em alguns anos, ele possa ser destinado ao biodiesel”, conta Motoike. “A produção de biodiesel a partir da macaúba tem boas perspectivas, não só devido à alta produção de óleo por hectare, mas também pelas propriedades físico-químicas que resultam em um biodiesel de alta qualidade”, explica a engenheira de alimentos Aldara da Silva César, professora e coordenadora do Grupo de Análise de Sistemas Agroindustriais da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Volta Redonda (RJ). Apesar disso, para ela, o óleo produzido poderia ser direcionado, principalmente para as indústrias farmacêutica e de cosméticos. “Atualmente, os retornos financeiros nesses setores são maiores do que se fossem usados para fazer biodiesel. Entretanto, desenvolver a coleta extrativista nas regiões onde a macaúba é nativa poderia No IAC, análise do óleo é importante para a escolha dos melhores frutos

70  z  julho DE 2016

incentivar a inclusão social que também é foco do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel”, sugere Aldara. “Agora estamos selecionando os melhores exemplares de macaúba até chegar a uma variedade definitiva e produtiva”, explica Motoike. Isso é feito por cruzamento tradicional entre as melhores e mais produtivas plantas. Um dos estudos realizados em Viçosa é sobre a quebra da dormência das sementes de macaúba, um passo importante para o estabelecimento de uma cultura dessa palmácea. “Isso foi em 2007. A germinação das sementes chegava a 3% do total e, com o nosso método, que resultou em uma patente, atingimos 80%”, conta. A técnica usa um hormônio na semente que leva à pré-germinação. Preservação do fruto

Um fator que pode prejudicar o óleo de macaúba é a rápida acidificação do fruto. “O tempo para processar é de dois dias, depois eles começam a acidificar”, explica a microbiologista Elisa Costa Cavalcanti, pós-graduanda do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em um grupo coordenado pela professora Denise Freire, Elisa conta que foram realizados vários experimentos para que o fruto da macaúba pudesse ser preservado por


Fonte em uso Fonte promissora Fonte aprovada, mas não utilizada

VANTAGENS

VANTAGENS DESVANTAGENS

RENDIMENTO

Grande produção no país e indústria instalada

RENDIMENTO

DESVANTAGENS

2.000

Boa produção de óleo

500 l/ha

l/ha

Viscosidade do óleo dificulta a produção e o preço para outros usos é maior

Baixo rendimento de óleo. Sujeita a variações de preço do mercado externo Subproduto da indústria de carnes. Preço baixo

4.000

1,05 kg

l/ha

produz 1l de biodiesel

Baixo rendimento

Utiliza o caroço descartado. Preço baixo

400

3.000

l/ha

l/ha

Só é viável se o óleo for produzido perto das regiões produtoras

O beneficiamento é apenas a filtragem, baixo custo

1l produz 800 ml de biodiesel

Poucos postos de recolhimento no país

50.000 l/ha

Grande produção de óleo por hectare Não há plantio estabelecido para biodiesel. Produção é destinada à indústria de alimentação e cosméticos Boa produção de óleo Ainda não existe plantio comercial porque a planta tem características que dificultam a formação de uma variedade agrícola A maior produção dentre todas as opções Os processos de produção ainda não são economicamente viáveis

4.000 l/ha Grande produção de óleo por hectare

fotos léo ramos  ilustraçãO mauricio pierro

Ainda em fase de domesticação agrícola, sem variedades para plantio

mais dias. “O método mais adequado é o autoclave, em que o fruto é aquecido e passa por secagem em uma estufa. Assim é possível estocar por 180 dias”, afirma. Aprender a preservar o fruto é importante também para competir com a soja, grão que pode ser estocado sem cuidados especiais por até seis meses e que tem um amplo mercado externo e interno. “Seu principal produto é o farelo, uma proteína, tanto para a indústria alimentícia como para a alimentação animal. Para obter o farelo é preciso espremer os grãos; o óleo é um subproduto desse processo, que é usado cada vez menos na cozinha”, explica o engenheiro agrônomo Décio Gazzoni, pesquisador da Embrapa Soja, em Londrina. Há 10 anos, a esperança da produção do biodiesel eram as algas. Já existiam experimentos demonstrando que a massa de gordura extraída do cultivo de algas pode chegar a 50 mil l/ha. Mas o freio veio na área econômica. Em 2007 e 2008, várias

empresas foram criadas, principalmente nos Estados Unidos, e a expectativa era de que o custo do processo de produção de biodiesel com algas iria cair. Houve redução de custos, mas não o suficiente para tornar o processo competitivo. “O biocombustível de algas ficou inviável”, diz Sergio Goldemberg, sócio da Algae, empresa paulistana que desenvolveu tecnologia para a produção de gordura com microalgas cultivadas na vinhaça, um resíduo da produção de etanol de cana-de-açúcar (leia em Pesquisa FAPESP nº 186). Goldemberg agora procura outras aplicações para a produção das microalgas que se alimentam de vinhaça, como ração para animais e aditivos para cosméticos. Enquanto a macaúba e o dendê não se tornarem alternativas viáveis, o biodiesel provavelmente continuará sendo produzido com subprodutos da agricultura e da indústria. Falta, segundo os especialistas, aproveitar o potencial do

óleo de fritura utilizado em residências, restaurantes e indústrias do país. O que não é usado é jogado nos ralos e esgotos ou mesmo em cursos d´água. “A coleta de óleo é um desafio porque ainda é muito pulverizada em pequenas unidades ao longo de uma cidade”, analisa Aldara. n

Projetos 1. Desenvolvimento de bibliotecas enriquecidas com locos ssr e caracterização da estrutura genética populacional de macaúba (Acrocomia aculeata) (nº2005/56931-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Carlos Augusto Colombo (IAC); Investimento R$ 77.126,93. 2. Diversidade genética e seleção de matrizes com testes de progênies da palmeira macaúba para produção de biodiesel (nº 2011/13182-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular – Programa Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Pesquisador responsável Carlos Augusto Colombo (IAC); Investimento R$ R$ 236.494,57. 3. Seleção de matrizes de macaúba para a formação de jardim de sementes e produção de mudas comerciais visando ao biodiesel com preservação de variabilidade genética (nº 2014/23591-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Carlos Augusto Colombo (IAC); Investimento R$ 555.424,25 e US$ 40.078,03.

pESQUISA FAPESP 245  z  71


pesquisa empresarial y

O remédio é inovar Cristália abre caminho para desenvolvimento de novos fármacos e processos de produção

U

ma pomada que contém a enzima colagenase usada no tratamento de feridas e queimaduras foi apresentada em junho na BIO International Convention 2016, importante feira e conferência mundial na área de biotecnologia, realizada em São Francisco, Estados Unidos. Formulado pela empresa farmacêutica Cristália, com sede em Itapira (SP), o fármaco não traz exatamente uma novidade em relação à molécula ou ao tratamento, mas sim na forma de produzi-lo. O princípio ativo do medicamento, uma enzima, era produzido apenas em meio de cultura contendo proteínas animais pela bactéria Clostridium histolyticum. 72  z  julho DE 2016

Agora as proteínas passam a ser produzidas na Cristália em meio vegetal. “Isso garante que não existam possíveis contaminações com proteínas animais”, explica o médico Ogari Pacheco, presidente do conselho de administração e sócio-fundador da empresa. Outra vantagem é que o princípio ativo era importado e agora passa a ser produzido no país. “A colagenase proporciona um tratamento indolor e o nosso centro de biotecnologia conseguiu desenvolver o princípio ativo com alta pureza, de forma mais segura para o paciente, que nos abre a porta do mercado internacional.” “Esse foi o primeiro produto biotecnológico a partir de microrganismos apro-

Diretores e pesquisadores da empresa em Itapira, a partir da esquerda: Edson Lima, Eduardo Gottardo, Danielle Cavalcante, Kesley de Oliveira, Marcos Alegria, Ney Leite e German Wassermann


empresa cristália

Centro de P&D Itapira, SP

Nº de funcionários 3.186 em toda a empresa

Principais produtos Medicamentos anestésicos, antipsicóticos, contra disfunção erétil, para cicatrização e

léo ramos

queimaduras

vado pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], em abril deste ano, proveniente da biodiversidade brasileira. Tivemos boa acolhida na Bio Convention e agora pretendemos colocar a colagenase no mercado interno e externo”, anuncia o químico Marcos Alegria, diretor de Biotecnologia da empresa e ex-pesquisador da Alellyx, empresa de biotecnologia da área de cana e laranja, uma spin-off do Projeto Genoma da bactéria Xyllela fastidiosa, finalizado em 2000. “Também participei do sequenciamento do genoma da bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, quando fazia doutorado na USP, entre 1999 e 2004.”

A colagenase é uma investida da Cristália para se tornar um representante da indústria farmacêutica brasileira que não apenas faz medicamentos genéricos ou trabalha com fitoterápicos, mas inova ao colocar no mercado tecnologias de processos e princípios ativos inéditos. O caminho inovador começou em 2007, quando a empresa, depois de sete anos de estudos, concebeu o primeiro fármaco brasileiro formulado a partir de um princípio ativo inédito, passando por todos os níveis de estudos clínicos e de produção até chegar ao medicamento Helleva, então um dos quatro medicamentos do mundo para tratamento de disfunção erétil.

Pacheco, que é médico-cirurgião, diz que a empresa sempre esteve voltada para a inovação. A Cristália foi fundada em 1972 para produzir medicamentos para as clínicas psiquiátricas de Itapira, cidade que reúne vários estabelecimentos desse tipo. Ele era sócio de uma dessas clínicas, chamada Cristália, e passou a produzir também produtos essencialmente de uso hospitalar, como anestésicos. Segundo dados da empresa, a Cristália está presente em 95% dos hospitais brasileiros, além de exportar para 30 países da América Latina, África e Oriente Médio. O faturamento foi de R$ 1,7 bilhão em 2015, com investimento de 7% em pesquisa, desenvolvimento e inovação. “Desse faturamento, 18% são oriundos de medicamentos que desenvolvemos aqui”, informa Pacheco. A empresa tem 3.186 funcionários, sendo 31 doutores e 18 mestres na área de pesquisa. “Buscamos produtos mais difíceis de ser produzidos. Não é só fazer uma cópia”, revela o sócio da empresa. Para seguir esse caminho, a Cristália começou a se abrir e a buscar nas universidades e institutos de pesquisa ideias que pudessem ser concretizadas. Em 2004, foi criado o conselho científico da empresa, com a colaboração de uma ex-colega de Pacheco na faculdade de medicina, pESQUISA FAPESP 245  z  73


1 Síntese química para produção de insumo farmacêutico no laboratório de pesquisa e desenvolvimento 2 Análise de culturas de bactérias em estudo para novos fármacos 3 Reator calométrico no laboratório de ampliação de escala 4 Pesquisadora analisa culturas puras de microrganismos para identificar novos princípios ativos 1

a médica Regina Scivoletto, presidente do conselho e professora aposentada do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. “Hoje, são dezenas de universidades e institutos que apresentam ao conselho resultados de pesquisas ou são parceiros em desenvolvimento”, conta Regina. A orientação é buscar na academia ideias para produzir medicamentos. No conselho, pesquisadores internos e externos apresentam o projeto, que é analisado em todos os aspectos como o de patentes, exigências regulatórias

e de síntese de moléculas. O conselho é multidisciplinar e reúne pesquisadores da USP e das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Amazonas (Ufam) e de São Paulo (Unifesp). Às vezes, na universidade o efeito da molécula é muito bom nos requisitos terapêuticos, passa no conselho, mas ao ser testado nos nossos laboratórios apresenta toxicidade. Desde 2004, foram elaboradas 89 patentes de moléculas, de novos usos de fármacos e de processos, muitas de

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Edson Lima, farmacêutico, diretor da Divisão de Farmoquímica

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): graduação e doutorado Universidade Harvard (Estados Unidos): pós-doutorado

Marcos Alegria, químico, diretor da Divisão de Biotecnologia

Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação Universidade de São Paulo (USP): mestrado e doutorado

Danielle Cavalcante, biomédica, coordenadora de P&I

Unesp: graduação. USP: doutorado. Imperial College (Reino Unido): pós-doutorado. Universidade de Cardiff (Reino Unido): pós-doutorado. Instituto Butantan: pós-doutorado

Kesley de Oliveira, física, gerente de P&D

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação, mestrado (com Laboratório Nacional de Luz Síncrotron-LNLS) e doutorado

Ney Leite, farmacêutico, coordenador industrial de biotecnologia

Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG): graduação USP: doutorado

German Wassermann, farmacêutico, pesquisador

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): graduação e doutorado

Eduardo Gottardo, biólogo, pesquisador

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas): graduação USP: mestrado

74  z  julho DE 2016

2

abrangência internacional. O Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Cristália, inaugurado em 2009, é composto pelos departamentos de Desenvolvimento de Novos Produtos (DNP) e Pesquisa e Inovação (P&I), que utilizam a mesma estrutura física de laboratórios. Um dos produtos que está em desenvolvimento no P&I é a sílica mesoporosa nanoestruturada, uma substância adjuvante que pode ser usada como meio de transporte de vacinas orais. Vacinas como a de hepatite, hoje injetáveis, poderão ter em alguns anos versões em gotas, o que baratearia a aplicação. Esse tipo de sílica começou a ganhar forma com os estudos da física Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cristalografia do Instituto de Física da USP, e de Osvaldo Augusto Sant’Anna, pesquisador do Laboratório de Imunoquímica do Instituto Butantan, que idealizou a substância para a vacina contra a hepatite B. Em 2005, a empresa e o Butantan firmaram parceria para desenvolver o adjuvante para vacinas. A sílica mesoporosa também se mostrou capaz de ampliar a população protegida com vacinas. Grande parte delas


4

3

3

não imuniza 100% das pessoas, pode ser 90%, por exemplo. “Isso já foi mostrado em animais”, explica a biomédica Danielle Cavalcante, coordenadora do departamento de P&I. “Nossos estudos mostram que essa sílica é uma plataforma que pode ser usada em outros produtos. As partículas se aderem à superfície não só do antígeno das vacinas, mas também nas moléculas de outras drogas”, diz Danielle. O produto está em testes clínicos. Ela avalia que em dois anos a sílica mesoporosa poderá entrar no mercado.

fotos  léo ramos

Sem efeito tóxico

Outro medicamento desenvolvido na Cristália, este disponível no mercado, é o Novabupi (cloridrato de bupivacaína), um anestésico local. “Modificamos a estrutura química dessa substância, eliminando a parte que tem efeito tóxico, o que tornou o medicamento injetável mais aceitável e com menos efeitos colaterais”, explica o farmacologista Edson Lima, diretor da Divisão de Farmoquímica da Cristália, área que produz 53% dos princípios ativos utilizados pela empresa. Lima é ex-professor do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IQ-UFRJ) e ex-pesquisador do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), também no Rio de Janeiro. As modificações e rearranjos de moléculas são uma linha em que a Cristália investe cada vez mais, junto com a formulação de novos princípios

Centro de biotecnologia tem três medicamentos em teste: para câncer de mama e artrite e um hormônio de crescimento

ativos. Um dos profissionais que trabalham nessa área é a física Kesley Moraes de Oliveira, responsável pela triagem e simulação computacional de novas moléculas. Ela trabalhou no projeto do Helleva e diz que a equipe já estudou mais de 180 moléculas, muitas ainda em análise. Para se posicionar melhor no mercado nacional, a empresa também se concentrou na infraestrutura de fabricação de insumos. Em 2013, inaugurou um centro

de biotecnologia no mesmo complexo industrial instalado ao lado da estrada que liga Itapira a Lindóia. Lá estão sendo produzidos três medicamentos que estão em fase de testes clínicos: o anticorpo monoclonal genérico trastuzumabe para tratamento de câncer de mama; a proteína etanercept, também genérico, para tratamento de artrite e psoríase; e somatropina, hormônio de crescimento humano produzido com tecnologia de DNA recombinante, baseada na clonagem do gene codificador do hormônio. Em outra fábrica, a de biotecnologia anaeróbica, é produzida a colagenase. Todos esses empreendimentos tiveram a consultoria de Spartaco Astolfi Filho, hoje professor da Ufam, e Josef Ernst Thiemann, dois ex-pesquisadores da Biobras, empresa mineira que desenvolveu tecnologia para produção de insulina humana no final dos anos 1970. A empresa foi comprada pela dinamarquesa Novo Nordisk em 2001. Os dois também têm incentivado os pesquisadores da Cristália a buscar novas moléculas na biodiversidade brasileira, inclusive para a produção de novos antibióticos. n Marcos de Oliveira pESQUISA FAPESP 245  z  75


humanidades   CIÊNCIA POLÍTICA y

76  z  julho DE 2016


Passeata convocada por centrais sindicais como Dia Nacional de Lutas em junho de 2013 reuniu 7 mil pessoas em São Paulo

Os poderes da sociedade Dicionário abarca universo das políticas públicas em 197 verbetes Márcio Ferrari

Jefferson Coppola

E

mbora não seja possível datar precisamente sua origem nas discussões teóricas, o conceito de políticas públicas entrou para o vocabulário corrente há cerca de 30 anos no Brasil, de acordo com o cientista político Marco Aurélio Nogueira, coordenador científico do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Paulo. A presença da expressão “na corrente sanguínea da sociedade” – incluindo governos, partidos e organizações sociais – é, para Nogueira, um indicador das transformações ocorridas no relacionamento entre Estado e sociedade nas últimas três décadas. “O conceito de políticas públicas é típico do século XX e, em sua definição mínima, articula poder público, intervenções planejadas e situações sociais problemáticas”, afirma o pesquisador. O ciclo de elaboração e implementação de políticas públicas em contextos complexos como os das democracias atuais, contudo, ultrapassa as definições mínimas. Envolve interesses de diversos setores da sociedade, às vezes conflitivos, que implicam escolhas, gastos, conhecimento especializado, e tudo isso pede discussão ampla e formulação de estratégias. A ausência de conceituação teórica adequada para orientar estudos e ações nesse campo foi o que motivou a criação do Dicionário de políticas públicas, organizado por Nogueira e pelo sociólogo Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto pESQUISA FAPESP 245  z  77


78  z  julho DE 2016

de Economia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O volume saiu recentemente, em segunda edição revista e ampliada, pela Editora Unesp, com apoio da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), órgão do governo de São Paulo que se destinava a formar quadros para a administração pública. Foi um curso de gestão pública na Fundap, valendo pontos na seleção de funcionários para o governo paulista, que levou os dois pesquisadores a pensar no dicionário. “Percebemos que faltava um universo compartilhado de comunicação, acessível para qualquer pessoa, sobre um assunto que exige formação muito especializada”, conta Di Giovanni. “Nossa primeira ideia foi um glossário, mas concluímos que um dicionário poderia ser um instrumento mais duradouro como obra de referência.” Em parte sob inspiração do trabalho do filósofo político italiano Norberto Bobbio em seu Dicionário de política (Editora UnB, 2010), foram chamados especialistas de todo o Brasil, chegando a 197 verbetes escritos por 181 autores, entre eles os dois organizadores. A seleção dos verbetes de início se orientou para temas diretamente ligados a políticas públicas e depois se ampliou para áreas e conceitos correlatos. Entre estes últimos, foram incluídos democracia – verbete a cargo de José Álvaro Moi-

sés, diretor do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (Nupps-USP) – e burocracia – do próprio Marco Aurélio Nogueira. “Tivemos a preocupação de garantir uma grande cobertura geográfica nas regiões de atuação dos colaboradores, do Rio Grande do Sul até o Maranhão, e de abrir a seleção para especialistas jovens”, conta Di Giovanni. Uma orientação na escolha dos colaboradores foi a inclusão de analistas de grupos paralelos ao mundo acadêmico, como o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques, da revista eletrônica Gramsci e o Brasil. Procurou-se uma perspectiva de interesse para o país, com verbetes como clientelismo, fidelidade partidária e transferência de renda condicionada. Constituição

Nogueira define o conceito de políticas públicas como “filho teórico” do Estado de bem-estar social, sistema que, no período do pós-guerra, prevaleceu, com feições diversas, nas democracias europeias como modelo de atendimento amplo às demandas da sociedade por boas condições de vida. Não haveria o conceito de política pública sem que, previamente, tivesse sido construído um consenso mínimo quanto aos direitos individuais e sociais que os cidadãos podem reivindicar. São esses direitos estabelecidos que fazem com que as políticas públicas se diferenciem do assistencialismo, segundo Aldaíza Sposati, pro-

fotos  Jefferson Coppola

A maior manifestação em São Paulo, em junho de 2013, ao chegar à ponte Estaiada: protestos começaram contra o aumento da tarifa do transporte coletivo


Manifestantes nas ruas: maioria das bandeiras de 2013 era relacionada a políticas públicas consideradas mal atendidas

fessora do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora do verbete assistencialismo. As ações desse tipo, de acordo com a pesquisadora, são aquelas praticadas com a expectativa de serem vistas como gestos de bondade a serem “retribuídos” pelos beneficiados na forma de voto. Para Di Giovanni, o período de intensas reivindicações de direitos sociais ocorrido na Europa no pós-guerra teve seu correspondente no Brasil durante os anos de redemocratização, e sua manifestação mais clara seria a Constituição de 1988. Exemplo disso seria a figura dos conselhos participativos municipais, praticamente inexistentes na época da criação da Carta, mas que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), chegavam, em 2010, a 38.875 no Brasil todo. “As políticas públicas ficaram em evidência na redemocratização porque tínhamos que reconstruir um país, e o assunto entrou na agenda dos meios de comunicação”, explica Di Giovanni. “Era necessária uma intervenção planejada, como havia acontecido no mundo.” No Brasil, ganhou força no período da redemocratização o conceito de cidadania, um desenvolvimento, segundo o cientista político José Álvaro Moisés, das declarações de direitos do homem elaboradas pelas revoluções americana e francesa, no século XVIII. “A cidadania pressupõe direitos civis, políticos e sociais e depende de liberdade e igualdade política para se efetivar”, diz Moisés. “Mas eleições e direito a voto não são suficientes para garantir a ligação entre interesses dos cidadãos e as políticas públicas adotadas pelo2 Estado.” O pesquisador propõe o conceito

de qualidade da democracia, pelo qual a conexão entre direitos e políticas públicas se sustenta na efetiva representatividade do Parlamento, na independência e acessibilidade da Justiça e pela necessidade de que os partidos políticos, “além de disputar o poder, criem oportunidades reais para que militantes, simpatizantes ou simples votantes influenciem seus rumos”. Para Moisés, foi a falta de qualidade da democracia que levou os manifestantes às ruas das cidades brasileiras em junho de 2013. De um lado, a presença maciça de bandeiras como educação e saúde mostraram, na análise de Di Giovanni, a incorporação dos direitos de cidadania no vocabulário político geral, incluindo “reivindicações antes relativamente marginais como a democratização do transporte público”. De outro, as instâncias de poder público, que proveem serviços em geral pouco eficientes, não demonstraram, segundo Moisés, entender as razões dos manifestantes e não souberam comunicar suas tentativas de atendê-los. Ao mesmo tempo, a multiplicidade de demandas levadas às ruas, que iam de serviços básicos a direitos civis de minorias, demonstrou um grau de complexidade para o campo das políticas públicas que provavelmente não havia sido previsto pelos governantes. “A organização da sociedade em grupos de reivindicações e pressões é característica das democracias modernas, mas nossos representantes têm demonstrado dificuldade em equacioná-la”, conclui Di Giovanni. n

Livro DI GIOVANNI, G.; NOGUEIRA, M. A. Dicionário de políticas públicas. 2. ed. São Paulo: Unesp/Fundap. 2015, 1.012 p.

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MIGRAÇÃO INTERNACIONAL y

Brasileiros nos Estados Unidos evitam ser vistos como hispânicos, exceto quando conveniente Carlos Fioravanti

rasileiros que se instalam nos Estados Unidos, em geral com planos de voltar ao país de origem depois de alguns anos, tendem a manter a invisibilidade e a lutar para não serem confundidos com os hispânicos, a não ser em lugares e situações em que essa aproximação é benéfica. De modo oposto, os filhos de japoneses nascidos no Brasil, depois de serem rejeitados pela tradicional sociedade oriental, quando migram para o Japão assumem a identidade e os hábitos brasileiros, expondo-se em desfiles de Carnaval e exibindo comportamentos dissonantes, como falar português em voz alta em público, de acordo as análises de pesquisadores estrangeiros e brasileiros. Nos Estados Unidos, o primeiro movimento é a recusa de uma identidade indesejada. “Ao chegar aos Estados Unidos, a primeira coisa que os brasileiros aprendem é dizer: ‘Não sou hispânico e não falo espanhol’, porque em geral os americanos acham que o português 80  z  julho DE 2016

é falado somente em Portugal, não no Brasil”, conta a antropóloga Maxine Margolis, professora emérita da Universidade da Flórida, Estados Unidos. Autora de um livro de referência entre os estudiosos dessa área, Little Brazil: Imigrantes brasileiros em Nova York, de 1994, ela abriu no dia 16 de junho uma série de conferências sobre os movimentos migratórios de brasileiros no Museu da Imigração, em São Paulo, organizada pelo Observatório das Migrações, sediado no Núcleo de Estudos Populacionais da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp). Segundo ela, a maioria dos norte-americanos não distingue as diferentes culturas latinas, mais de três décadas depois da famosa viagem de 1982 do presidente Ronald Reagan, que propôs um brinde “ao povo da Bolívia” em um jantar oficial em Brasília. Os hispânicos representam hoje quase 50 milhões entre os 310 milhões de moradores dos Estados Unidos, enquanto os brasileiros devem formar um contingente entre 350 mil do Censo de

2010 dos Estados Unidos e 1,4 milhão estimado pelo Itamaraty. Não são, porém, mundos sempre à parte. Maxine observou que a afinidade com a comida e a música latina, raramente sentida no Brasil, emerge em cidades como Miami, cidade da Flórida com elevada proporção de sul-americanos, onde brasileiros se sentem à vontade e com relativa facilidade encontram restaurantes que servem arroz com feijão. “Brasileiros já me disseram: ‘Viemos à Florida e descobrimos que somos latinos!’”, relata a pesquisadora. “Para o brasileiro que chega aos Estados Unidos, o reconhecimento como hispânico é quase um susto”, observa a socióloga Ana Cristina Braga Martes, professora da Fundação Getulio Vargas. Ela chegou a essa conclusão ao entrevistar seus conterrâneos na década de 1990 em Boston como parte de seu doutorado, sob a orientação da antropóloga Ruth Cardoso (1930-2008), e depois reiteirou essa visão por meio de outros estudos que fez sobre o tema. Segundo


Spencer Platt / Getty Images

Nova York, 1o de maio de 2010: centenas de latinos protestam contra uma lei que exigia documentos de residência de imigrantes suspeitos de serem ilegais

ela, bolivianos, colombianos e outros latinos também perdem a primazia da identidade nacional ao serem enquadrados no mesmo grupo étnico hispânico, como todos os que vêm da América Latina são chamados nos Estados Unidos. A classificação, ainda que indesejada, pode facilitar o acesso a benefícios e a políticas públicas. “Vários imigrantes brasileiros me contaram que se aproveitaram da cota para hispânicos para colocar os filhos nas escolas ou conseguir um emprego”, diz Ana Cristina. “Dependendo do contexto, a identidade nacional é flexível. Ser brasileiro deixa de ser tão importante quando a prioridade é assegurar uma melhor inserção econômica ou social em outro país.” Em seu livro New immigrants, new land: A study of Brazilians in Massachusetts, a socióloga descreve as estratégias de construção da identidade e de sobrevivência no mercado de trabalho. Em geral os brasileiros aceitam trabalhos mais simples – as mulheres como faxineiras e os homens na construção civil ou em

restaurantes –, mas a queda do status em parte é compensada pelos rendimentos maiores e pelas relações sociais mais formais, segundo a pesquisadora. “Os imigrantes que entrevistei dizem que se sentem bem tratados e que é possível ter dignidade e uma vida melhor sendo faxineiros.” Em um estudo realizado em 2012, ela verificou que os brasileiros em Boston preferiam a rede de assistência médica norte-americana, na qual eram atendidos por meio de programas para populações carentes, do que a brasileira. uma terra distante

“No Brasil a identidade é simplesmente presumida, algo abstrato, raramente expressa e reconhecida por meio da cidade ou estado de origem, da classe econômica e da profissão. Nos Estados Unidos – e também em Portugal –, os brasileiros são vistos essencialmente como estrangeiros de uma terra distante e exótica, sem diferenciação”, diz Maxine Margolis. “Notei esse fenômeno em Nova York e depois outros pesquisadores viram o mesmo em cidades da Flórida e da Califórnia. Consequentemente, muitos se perguntam: ‘Quem sou eu?’.” Em seu livro mais recente, Goodbye, Brazil: Emigrantes brasileiros no mundo, a antropóloga norte-americana comenta que os filhos dos brasileiros que emigraram tal-

vez aceitem mais facilmente que os pais o fato de serem latinos, desse modo ingressando em grupos mais organizados. No Japão, também examinado nesse livro, os brasileiros descendentes de japoneses, chamados de nikkeijins, também são recebidos com frieza pelos nativos. “O orgulho étnico decai quando, depois de serem vistos de forma positiva no Brasil por causa da herança japonesa, são tratados como inferiores no Japão por causa da herança brasileira”, diz ela. A reação dos migrantes brasileiros no Japão – estimados em cerca de 250 mil – é peculiar. “Em vez de se tornarem mais japoneses, como pretendiam, os nikkeijins se tornam mais brasileiros, usam roupas verde-amarelas, desfilam em Carnaval, muitos pela primeira vez, e falam português alto em público. Nos prédios de moradia, os japoneses reclamam que os nikkeijins tocam música alto, não sabem reciclar e, principalmente, namoram na rua.” n

Livros MARGOLIS, M. L. Little Brazil: Imigrantes brasileiros em Nova York. Papirus, 1994. MARGOLIS, M. L. Goodbye, Brazil: Emigrantes brasileiros no mundo. Contexto, 2013. MARTES, A. C. B. New immigrants, new land: A study of Brazilians in Massachusetts. Gainesville: University Press of Florida, 2011.

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1

ECONOMIA y

Eficiência  Companhia Paulista de Estradas de Ferro foi uma exceção no setor ferroviário brasileiro Diego Viana

Acima, a estação de Rio Claro, uma das mais importantes da linha que liga Jundiaí ao noroeste paulista


fotos 1 Carlheinz Hahmann – coleção Eduardo J. J. Coelho 2 década de 1930, Acervo Museu da Companhia Paulista  mapa unesp

N

os cerca de 100 anos em que os trens foram o principal meio de transporte do Brasil, o país se transformou rapidamente. De 1854 até meados do século passado, as estradas de ferro conectaram regiões até então isoladas, mudaram as feições das cidades, expandiram a economia cafeeira, colaboraram para a industrialização e viram nascer as primeiras organizações sindicais. Mesmo assim, a história das ferrovias brasileiras foi de crises, diz o economista Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). A exceção, em termos de eficiência, foi a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Um motivo dos contínuos percalços do transporte ferroviário no Brasil é que, desde o início, o setor ferroviário precisou da interação constante, mas nem sempre harmoniosa, entre o capital privado – estrangeiro e nacional – e o setor público. Poucos investimentos se revelaram rentáveis e aos poucos os governos estaduais e federal tiveram de tomar o controle de ferrovias abandonadas pela iniciativa privada. Foi também um mercado quase sempre subordinado aos destinos dos produtos que transportava, como o café em São Paulo e a borracha no Norte, e por isso dependente dos destinos desses outros setores. Essas

características levam o também economista Ivanil Nunes, pós-doutorando na FEA-USP que estudou esse tema, a definir a história das ferrovias brasileiras como um “laboratório aberto para entender as relações entre o Estado e as elites no Brasil”. No livro Estado e capital ferroviário em São Paulo (Alameda Editorial), que se originou da pesquisa de doutorado de mesmo título, realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Grandi analisa a última empresa ferroviária privada do país antes das privatizações dos anos 1990. A Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fundada em 1868, ligava Jundiaí a cidades como Campinas e Rio Claro. Era caso único de sucesso empresarial no sistema ferroviário, com superávits operacionais, investimentos na formação de pessoal, capital aberto, aquisição de concorrentes e uma imagem positiva perante o público. Mesmo assim, a empresa sucumbiu às mudanças sociopolíticas de um Brasil que se industrializava e urbanizava rapidamente entre as décadas de 1950 e 1960. Com a expansão das rodovias e a pressão salarial dos sindicatos, o negócio da ferrovia começou a perder a viabilidade. Ela foi adquirida pelo governo paulista em 1961. “Em certo sentido, pode-se dizer que esse foi o momento em que acabou a era ferroviária no Brasil, se entendermos que foi quando o setor privado nacional saiu

completamente desse mercado”, pondera Grandi. É fácil determinar quando a chamada “era ferroviária” começou: em 1854, com a inauguração do primeiro trecho de estrada de ferro pelo Barão de Mauá (o empresário Irineu Evangelista de Sousa), com 15 quilômetros, ligando o porto de Mauá à localidade de Fragoso, na baixada Fluminense. É difícil, porém, definir quando essa era, de fato, terminou. A expansão da malha chegou ao fim na década de 1940, a estatização progressiva do sistema prolongou-se pelas duas décadas seguintes, e ao longo dos anos 1980 o transporte de passageiros perdeu relevância. Por outro lado, aponta Ivanil Nunes, o peso total da carga transportada por trens no Brasil não chegou a cair, graças a um processo de racionalização. Expandiu-se enquanto se enxugava ainda mais a rede de trilhos e a estrutura administrativa, passando de 30 bilhões de toneladas-quilômetros úteis (tku, medida correspondente ao transporte de 1 tonelada útil – isto é, descontado todo peso que não seja o da mercadoria – pela distância de 1 quilômetro) em 1970 para 120 bilhões de tku em 1990. No mesmo período, as rodovias passaram de 124 bilhões para 313 bilhões de tku. O sistema ferroviário brasileiro era rentável no momento em que as duas grandes estatais do setor, a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA, fundada em 1957) e a Ferrovia Paulista S/A (Fepasa, fundada em 1971),

sobre trilhos Pátio da estação da Companhia Paulista em Campinas na década de 1940

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foram privatizadas e arrendadas a várias companhias, ao longo da década de 1990. Desde a iniciativa pioneira do Barão de Mauá, no século XIX, a expansão ferroviária era essencialmente de capital privado, estrangeiro (principalmente inglês) e nacional, servindo à necessidade de escoar a produção agrícola de uma economia voltada sobretudo à exportação. Mas a presença do Estado era muito forte, principalmente por meio da chamada garantia de juros, pela qual os empresários poderiam estar certos de re­ cuperar uma determinada margem de seu capital, mesmo que o investimento se revelasse menos rentável. As empresas deveriam reembolsar o dinheiro a mais que receberam do governo quando o negócio se mostrasse pujante, mas a única empresa a devolver a diferença dos juros foi a Companhia Paulista, em 1877. Elite do café

Vinculado às oligarquias agroexportadoras, o setor ferroviário gozava de um grande poder de influência sobre os governos ao longo do Império e da Primeira República (1889-1930). Segundo Grandi, a Companhia Paulista era particularmente influente, sobretudo nesse período, dominada diretamente pela elite cafeeira, principalmente paulista. A perda dessa influência, com a mudança no bloco do poder ao longo do século XX, foi determinante para sua derrocada. A oligarquia cafeeira à qual a empresa estava vinculada perdeu parte de seu poder, levando consigo os interesses da ferrovia. Conse84  z  julho DE 2016

Desde o século XIX a expansão ferroviária foi essencialmente privada, mas com garantias do Estado

quentemente, outros problemas ganharam relevo, como a estrutura tarifária, que dava excessiva importância ao peso transportado. Carregar mercadorias volumosas, mas leves, como o algodão, era pouco rentável, assim como a execução de alguns serviços obrigatórios, como o transporte de mudanças e correios. Outra dificuldade da empresa veio do setor trabalhista. Ferroviários das empresas estatizadas vizinhas, como a Sorocabana e a Noroeste, recebiam salários maiores do que os da empresa privada. Em tempos de grande mobilização social, uma greve prolongada em 1961 revelou que a saúde financeira da empresa não era tão forte quanto parecia. Havia dívidas acumuladas que comprometiam os números operacionais positi-

vos, constantes até 1959, dois anos antes da estatização. A perda de relevância das ferrovias na matriz de transporte brasileira tem diversas causas, dentre elas o crescimento da importância do transporte rodoviário e o modelo de cálculo das tarifas. O serviço de passageiros jamais foi rentável e acabou praticamente extinto com a racionalização operacional das linhas, principalmente no período da RFFSA e da Fepasa. Frequentemente o Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek (19561961) é citado como fator de aceleração do modelo rodoviário em detrimento do ferroviário. Mas os pesquisadores, embora reconheçam o papel de Juscelino, também consideram essa responsabilização exagerada. “Houve em vários países, mesmo na Europa e nos Estados Unidos, a redução de malhas ferroviárias, até para fins de aumento da rentabilidade”, afirma o historiador Eduardo Romero de Oliveira, da Faculdade de Turismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus experimental de Rosana. “Estradas de ferro criadas no século XIX, quando não havia outro meio de transporte, ficaram obsoletas com o aumento de novos meios de transporte de passageiros, como automóvel e avião.” Apesar dos incentivos ao transporte rodoviário entre as décadas de 1950 e 1970, que incluíram a atração de fabricantes de veículos multinacionais, Oliveira defende que o diagnóstico segundo o qual esses estímulos seriam causadores da derrocada das ferrovias “é uma avaliação posterior, feita a partir dos anos 1970”. Segundo Grandi, nos Planos Nacionais de Viação, formulados ao longo dos anos 1930 e 1950, as ferrovias foram gradualmente perdendo importância, mas sempre estiveram presentes. A escolha consciente por enfatizar as estradas de rodagem teria sido apenas um elemento entre outros na transição do modelo de transportes brasileiro. n

Livro GRANDI, G. Estado e capital ferroviário em São Paulo. São Paulo: Alameda, 2013, 326 p.

foto  coleção Rafael Prudente Corrêa  mapa unesp

Trem de carga, típico da década de 1930


obituário y

O brasilianista por excelência Norte-americano Thomas Skidmore foi autor de estudo considerado clássico sobre o Brasil republicano

Collection Brown University

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e origem controversa, a expressão “brasilianista” começou a circular com mais frequência nos anos 1970 para designar uma geração de historiadores estrangeiros, sobretudo anglo-saxões, que voltaram seus olhos para o Brasil numa época em que a produção local era constrangida pela vigilância do regime militar. Entre os principais nomes estavam o britânico inglês Kenneth Maxwell e os norte-americanos Robert Levine (1941-2003) e Thomas Skidmore, o mais conhecido deles, que morreu no dia 11 de junho, aos 85 anos, dois dias depois de sofrer um ataque cardíaco. Portador do mal de Alzheimer, o historiador vivia desde 2009 num asilo em Westerley, estado norte-americano de Rhode Island. “Thomas Skidmore tem um lugar notório na historiografia do Brasil”, diz o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). “Por muito tempo, Brasil: de Getúlio a Castello e Brasil: de Castello a Tancredo foram os únicos manuais sobre a história política e social brasileira contemporânea.” Para Carlos Fico, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o primeiro dos dois livros “ousou tratar do período republicano e do golpe de 1964 quando, na universidade, o Brasil contemporâneo

chegava no máximo até Getúlio”. Segundo Fico, “Skidmore incitou toda uma geração de historiadores brasileiros, hoje responsável por uma notável produção sobre o período republicano”. Skidmore se doutorou em História Moderna Europeia pela Universidade Harvard. Veio ao Brasil com uma bolsa de pesquisa de pós-doutorado em 1961, dias depois da renúncia do presidente Jânio Quadros. A decisão de mudar de objeto de estudo foi incentivada pela direção da instituição, que pretendia suprir a reduzida quantidade de estudos sobre América Latina nos Estados Unidos. O historiador viria a dizer que ele e outros brasilianistas da época decidiram pesquisar a região movidos pelo interesse despertado pela revolução cubana (1959). Dos três anos que ficou no Brasil resultou Brasil: De Getúlio a Castello (1930-64), hoje considerado um clássico. Publicado nos Estados Unidos em 1967, recebeu edição brasileira dois anos depois. Skidmore publicaria em 1988 Brasil: De Castello a Tancredo, uma continuação que cobre o período entre o golpe e a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em novembro de 2012, o brasilianista afirmou que soube do golpe na véspera, quando jantou com Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil. O acesso a fontes privilegiadas e

O historiador Skidmore: pioneiro nos estudos sobre o regime militar

a apresentação de uma perspectiva norte-americana da história do país motivaram críticas de parte da comunidade acadêmica brasileira ao trabalho de Skidmore. O pesquisador respondeu a essas críticas na mesma entrevista à Folha dizendo que a visão exposta em seus livros não era dele, mas de seus amigos e interlocutores brasileiros, entre eles San Tiago Dantas, chanceler do governo João Goulart, e o historiador Caio Prado Júnior. Quando este foi preso pela ditadura em 1970, Skidmore foi um dos signatários de uma carta de protesto. “O que se percebe efetivamente em seus livros sobre o Brasil é uma visão de um estrangeiro liberal, a partir de uma perspectiva mais ou menos distanciada das paixões políticas do país”, opina Napolitano. Em 1966, Skidmore se tornou professor da Universidade de Wisconsin, onde ficou por 20 anos e editou o periódico Luso-Brazilian Review. Em seguida dirigiu o Centro de Estudos Latino-americanos na Universidade Brown até se aposentar em 1999. Ainda sobre o Brasil, Skidmore escreveu Preto no branco (1976) e a reunião de ensaios O Brasil visto de fora (1994). n Márcio Ferrari pESQUISA FAPESP 245  z  85


memória

Um país em números Aos 80 anos, IBGE modernizou os serviços de estatísticas sociais e econômicas no Brasil, mas hoje enfrenta falta de recursos Rodrigo de Oliveira Andrade

O Cartazes de divulgação dos censos, que contam os habitantes do país a cada 10 anos

86 | julho DE 2016

s registros estatísticos produzidos no Brasil até a década de 1930 eram irregulares e imprecisos. Apesar do esforço em se obter informações constantes e padronizadas e de se conhecer melhor o país do ponto de vista geográfico e cartográfico, o Brasil passou pelas primeiras décadas do século XX sem dispor de um acervo sistematizado de informações que dessem a real dimensão do território e de seu potencial agrícola, produtivo e comercial. Foi com o objetivo de modernizar e, acima de tudo, centralizar os instrumentos de estudo e levantamento estatísticos sobre aspectos diversos da vida nacional que foi criado em 29 de maio de 1936 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que completa 80 anos. O IBGE surgiu em um contexto histórico marcado pela percepção da necessidade de promoção do desenvolvimento nacional, processo este que deveria ser comandado pelo governo federal. Esse esforço envolvia a modernização e a centralização de instrumentos técnicos, como o de informação estatística, na esfera estatal.


fotos  acervo IBGE

A necessidade de um órgão que abrigasse esses dados levou o então diretor de estatística do Ministério da Educação, Mário Augusto Teixeira de Freitas, a desenvolver um modelo de gerenciamento de informações territoriais em que as decisões operacionais fossem concentradas em um único órgão coordenador. “A criação do IBGE, à época Instituto Nacional de Estatística (INE), representou um movimento de renovação

da estatística brasileira em termos operacionais e de ampliação das atividades de captação de dados relacionados a assuntos de interesse do Estado”, conta o historiador Nelson Senra, pesquisador do órgão. A geografia foi incorporada ao INE meses após sua criação. Em novembro de 1936, durante a Convenção Nacional de Estatística, o embaixador José Carlos de Macedo Soares, então diretor do instituto, destacou

Exposição Nacional dos Mapas Municipais de 1940 inaugurada por Getúlio Vargas (à esq.); caminhão de campanha de divulgação do Censo de 1950

Material censitário prestes a ser enviado para Goiás dias antes do início dos trabalhos de 1950

a necessidade de serem elaboradas cartas físicas e políticas do território dos estados com a divisão de seus municípios. No entanto, faltava um órgão que se dedicasse exclusivamente aos levantamentos geográficos e informasse a localização das áreas que seriam cobertas pelos censos, de modo a fornecer dados geográficos aos levantamentos estatísticos. Em março de 1937, foi criado o Conselho Brasileiro de Geografia (CBG), que assumiu a responsabilidade pelos projetos de reconhecimento do território nacional. “O CBG foi incorporado ao INE em 26 de janeiro de 1938, e a geografia e a cartografia passaram a ter um papel fundamental na qualidade dos levantamentos estatísticos no Brasil”, relata o engenheiro cartógrafo Cláudio João dos Santos, do Departamento de Engenharia Cartográfica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Segundo Santos, atribuiu-se tanta importância ao IBGE que o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) sugeriu PESQUISA FAPESP 245 | 87


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que o órgão fosse instalado no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então sede do poder executivo e residência oficial da Presidência. Em 1938, Vargas decretou que os 1.540 municípios brasileiros elaborassem mapas de seu território. “Os municípios que não apresentassem seus mapas até 1940 teriam seu território anexado ao município vizinho”, explica Santos. “Todos entregaram os mapas.” À época, geógrafos estrangeiros vieram ao Brasil treinar geógrafos do IBGE, incentivando-os a fazer cursos no exterior, sobretudo na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. “Este intercâmbio desencadeou estudos geográficos em diferentes regiões brasileiras”, explica o engenheiro cartógrafo Luiz Henrique Castiglione, da Faculdade de Engenharia da Uerj. Em 1941, Teixeira de Freitas elaborou e apresentou a Vargas o Plano de Base para o Brasil, documento que apresentava propostas relacionadas à unidade e integração nacional. Os pontos incluíam o reaparelhamento administrativo, a redivisão territorial, a interiorização 88 | julho DE 2016

da capital do país, entre outros. Em 1942, a partir da adoção da divisão regional do Brasil em cinco regiões geográficas proposta pelo engenheiro e geógrafo carioca Fábio de Macedo Soares Guimarães (ver Pesquisa FAPESP nº 158), o IBGE expandiu suas atividades aos estudos de geografia humana e regional. “Era preciso redescobrir o Brasil e mergulhar em aspectos de sua realidade até então desconhecidos”, comenta Senra. Para isso, o IBGE adotou como método de investigação expedições de campo, que permitiam observações detalhadas do processo de ocupação do território e estudos inéditos de transformações espaciais no país.

Contabilização de dados de 1940 (à esq.). Em 1960, o instituto passou a usar um computador de grande porte

Coleta de dados no bairro da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 1970

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Em 1943, a expedição ao Jalapão inaugurou um período de três décadas de expedições geográficas ao estudar a região localizada na divisa dos estados de Goiás (hoje Tocantins) e Bahia. Em 1949, o instituto assinou um convênio com a Comissão do Vale do Rio São Francisco para realizar levantamentos geológicos e geomorfológicos da bacia do rio e investigar sítios para a construção da Usina de Paulo Afonso. Em 1953, o órgão percorreu toda a área de transição da Amazônia com o Centro-Oeste e o Nordeste, resultando no estudo Delimitação da Amazônia para fins de planejamento econômico, divulgado na Revista Brasileira de Geografia – publicação científica editada pelo próprio instituto entre 1939 e 1996 e que em agosto de 2016 será relançada em comemoração aos 80 anos do IBGE. Os estudos demográficos, sociais e econômicos foram determinantes para a construção da credibilidade e relevância do IBGE ao longo das décadas, na avaliação do sociólogo Simon Schwartzman, presidente do órgão entre 1994 e 1998 e hoje pesquisador do Instituto


fotos  1, 2, 3 e 4 acervo IBGE 5 Licia Rubinstein

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de Estudos do Trabalho e Sociedade. A partir dos anos 1970, o IBGE se tornou uma Fundação Pública de Direito Privado e passou a dar mais ênfase às estatísticas econômicas, valendo-se de novos métodos e tecnologias para produzir informações sobre a evolução da economia em todos seus aspectos, o tamanho e a distribuição da população, emprego, educação, renda, índices de preço e contas nacionais. Com tantos serviços prestados, a sigla IBGE se tornou conhecida dos brasileiros graças aos grandes censos demográficos, que contam os habitantes do país a cada 10 anos e colhem informações específicas sobre a população. “Um dos méritos do instituto nesses 80 anos foi ser capaz de manter uma equipe técnica e profissional que deu continuidade aos trabalhos, sem interrupções ou mudanças bruscas de orientação”, avalia Schwartzman. Por outro lado, ele diz, o IBGE perdeu relevância em relação à produção de mapas

e informações territoriais, hoje produzidas por grandes empresas internacionais, ainda que siga produzindo mapas e cartas com a Diretoria do Serviço Geográfico do Exército. O principal problema do instituto nas últimas décadas, segundo o sociólogo, é a incerteza em relação aos recursos, que por vezes impedem que trabalhos importantes sejam feitos. Recentemente, foi preciso cancelar duas pesquisas de grande porte

Propaganda no estádio do Maracanã durante intervalo de jogo entre Flamengo e Vasco, em 1960

por falta de verbas decorrente de cortes no orçamento do órgão: o Censo Agropecuário e a Contagem Populacional de 2016, cujos custos estimados eram de R$ 330,8 milhões e R$ 2,6 bilhões, respectivamente. Para Schwartzman, uma área na qual o órgão poderia ter uma atribuição mais forte é a ambiental, ao combinar dados geográficos, climáticos, econômicos e sociais e acompanhar como está evoluindo a situação ambiental do país. n

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Em Aldeia Velha, Bahia, indígenas recepcionam funcionários do IBGE em 2010 PESQUISA FAPESP 245 | 89


Arte

Espetáculo de shopping Modelo de sala de cinema no Brasil, México e Argentina muda e privilegia cadeia de consumo Ricardo Calil

90 | julho DE 2016

A

o comparar gráficos da produção de filmes no Brasil, México e Argentina – as três principais cinematografias da América Latina –, a socióloga Anita Simis constatou que as linhas caíam vertiginosamente no mesmo período, no início dos anos 1990. Viu que a maioria dos estudos sobre o fenômeno tratava da produção de cada país, sua crise e sua retomada, e decidiu adotar uma linha de pesquisa em uma trilha ainda não percorrida: comparar o cinema desses três países pelo viés da exibição, analisando o período anterior à crise (primeira metade dos anos 1980) até sua superação (meados dos anos 1990). A principal conclusão é que houve uma mudança de modelo de salas de cinema, que hoje fazem parte de uma cadeia de produtos consumida por um número restrito de espectadores. Apesar das particularidades históricas das cinematografias do Brasil, México e Argentina, diz Anita, elas sempre tiveram um mesmo concorrente: o cinema norte-americano – o que resultou em dificuldades semelhantes para o desenvolvimento do mercado de cada um dos países. No entanto, se os três apresentaram crises anteriores

Novos padrões de exibição deram mais espaço aos filmes de alta bilheteria 1


fotos 1 Alf Ribeiro /Folhapress 2 e 3 léo ramos

em momentos distintos, é apenas nos anos 1990 que a decadência da paralisação da produção convergiu quase simultaneamente. Em aspectos como a distribuição, os filmes sempre foram um produto globalizado, criado em Hollywood e disseminado pelo mundo pelas chamadas majors, as grandes companhias cinematográficas norte-americanas. Mas, historicamente, no Brasil, México e Argentina a exibição era dominada por empresas locais. Nos anos 1990, porém, a globalização começou a chegar à exibição, concomitantemente com a falência de diversos grupos nacionais e a progressiva concentração do mercado em um reduzido número de redes de capital internacional. Segundo Anita, três grupos exibidores controlam atualmente 35,9% dos cinemas do país: em 2014, possuíam 1.017 das 2.833 salas brasileiras, atraindo 45,9% do total de público. São eles o norte-americano Cinemark, o mexicano Cinépolis e o Kinoplex, rede brasileira do Grupo Severiano Ribeiro que, em parte de suas salas, atua em joint venture com o grupo norte-americano UCI.

O gasto com alimentação agora faz parte de uma cadeia de consumo em que o ingresso é apenas um dos elos

2

MUDANÇA POLÍTICA

Anita indica que esse momento tem pano de fundo comum nos três países. Em relação à política local, foi o tempo da chegada ao poder de projetos neoliberais, que defendiam a diminuição do papel do Estado na economia como um todo e, em especial, no fomento à cultura. No Brasil, a extinção da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) em 1990, determinada pelo então presidente Fernando Collor, foi uma pá de cal na produção de filmes – dois anos depois, seria

Um dos poucos exemplos de cinema de rua que ainda resta em São Paulo, embora adaptado ao modelo de muitas salas

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lançada apenas uma produção nacional, A grande arte, falada em inglês. No México, a entrada no Nafta, o tratado norte-americano de livre comércio com Estados Unidos e Canadá, celebrado no governo de Carlos Salinas, atenuou barreiras comerciais que dificultavam a expansão da presença norte-americana no mercado exibidor do país. Na Argentina, o Instituto Nacional de Cinema sobreviveu às privatizações de Carlos Menem, mas sua dotação orçamentária diminuiu. Ao mesmo tempo, na virada dos anos 1980 para os 1990 o cinema norte-americano começou a passar por uma progressiva dependência do mercado externo. Em 1986 os filmes de Hollywood dependiam de 75% de receita doméstica e 25% de receita estrangeira para se pagarem. Em 1998, os números passaram a 45% e 55%. O avanço das redes exibidoras transnacionais foi a peça-chave para garantir o escoamento da produção hollywoodiana no mercado externo – e, com ele, vieram enormes mudanças na forma como se consome cinema. Em primeiro lugar, explica Anita, firmou-se o conceito de multiplex, conjunto de salas, geralmente instaladas dentro de shopping centers, em que a exibição do filme se torna um elo de uma cadeia de consumo, que inclui estacionamento, alimentação (elemento que cresce dentro do empreendimento), que é somado à sensação de segurança e ao percurso por um circuito de lojas. Ao mesmo tempo, os cinemas de rua – enfrentando problemas como a falta de investimentos, a desatualização tecnológica e a decadência dos centros urbanos – perdem espaço de forma progressiva e inexorável. Há também um aumento no preço dos ingressos que equipara valores em mercados periféricos como Brasil, México e Argentina, desconsiderando especificiPESQUISA FAPESP 245 | 91


Filmes produzidos no Brasil, méxico e argentina de 1980 a 2004 Simultaneidade do movimento de queda e a recuperação da produção cinematográfica nos três países durante o período estudado pela pesquisa

n  Brasil

120 100

n  México

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n  Argentina

80 60 40 20 0 1980

1982

1984

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1988

1990

1992

1994

1996

1998

2000

2002

2004

* Interrupção devido à ausência de dados confiáveis para o período Fonte  Artigo “Economia política do cinema, a exibição cinematográfica na Argentina, Brasil e México”, de Anita Sims

Salas de cinema e cineteatro na Argentina, Brasil e México Com a disseminação do modelo multiplex, típico de shopping centers, e a decadência dos cinemas de rua, o número de salas de exibição cresceu nos três países

6.000 5.000

n  Brasil

4.000

n  México

3.000

n  Argentina

2.000 1.000

*

0

1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 * Interrupção devido à ausência de dados confiáveis para o período Fonte  Artigo “Economia política do cinema, a exibição cinematográfica na Argentina, Brasil e México”, de Anita Sims

dades do poder aquisitivo local. Em terceiro lugar, os avanços da exibição digital permitem que um mesmo filme estreie mundialmente ocupando, por vezes, centenas de salas em um mesmo país. A pesquisadora relata algumas consequências dessas mudanças: o número de salas e de espectadores volta a crescer, depois da queda dos anos 1990, mas o cinema deixa de ser um entretenimento popular para se tornar um produto para uma faixa economicamente mais restrita. “Agora só um tipo de espectador, aquele com maior poder aquisitivo, pode alimentar toda a cadeia do consumo do shopping”, afirma. “A ideia de ir ao cinema apenas para seguir a obra de um diretor ou de um ator praticamente desapareceu para a maioria das pessoas que saem de casa para assistir a filmes.” BLOCKBUSTERS

André Gatti, professor de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e autor da tese “Distribuição e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003)”, endossa a análise de Anita. “Na época de seu lançamento, em 1964, o filme Deus e o diabo na terra do sol, 92 | julho DE 2016

de Glauber Rocha, teve 300 mil espectadores”, diz. “O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, chegou a mais de 3 milhões em 1968. São números absolutamente impensáveis para filmes de formatos ousados como esses no cinema brasileiro de hoje.” Para Marcelo Ikeda, professor da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e autor do livro Cinema brasileiro a partir da retomada – Aspectos econômicos e políticos (Summus, 2015), o conceito de multiplex com dezenas de salas poderia abrir a possibilidade de uma oferta de filmes mais pluralista. Mas o que se viu foi o contrário. “Os grandes lançamentos mundiais, que podem chegar aqui com mais de mil cópias, esmagaram o filme médio”, constata Ikeda. “Hoje, ou temos blockbusters, estrangeiros e nacionais, ou filmes de arte para público reduzido. Cerca de dois terços dos filmes lançados no Brasil têm menos de mil espectadores.” As principais conclusões do estudo de Anita foram registradas no artigo Economia política do cinema: Argentina, Brasil e México, publicado em maio de 2015 na revista Versión – Estudios de Comunicación y Política, da Universidad Autónoma Metropolitana, do México. Anita atua na área de sociologia da comunicação e é professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara. A pesquisadora é autora do livro Estado e cinema no Brasil (Unesp, 1996), resultado de sua tese de doutorado, no qual analisa as razões que impediram o florescimento de uma produção nacional estável e permanente, investigando a legislação promulgada entre 1932 e 1966. A pesquisa “Políticas para o audiovisual: Argentina, Brasil e México” durou dois anos e foi feita em arquivos, bibliotecas e sites da internet dos três países. “Ao contrário do que eu esperava, houve grande dificuldade em obter os dados em fontes primárias”, conta. “Tive de recorrer, na maior parte das vezes, a pesquisas publicadas por outros autores.” É essa a explicação para algumas interrupções nos gráficos de produção e número de salas reproduzidos nesta página. “Só recentemente surgem dados mais contínuos, possivelmente porque o cinema e as políticas culturais passaram a ser mais valorizados, e o acesso e a precisão dos dados foram facilitados pela digitalização.” n

Projeto Políticas para o audiovisual: Argentina, Brasil e México; Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Anita Simis; Investimento R$ 39.658,30.

Artigo científico SIMIS, A. Economia política do cinema: Argentina, Brasil e México. Versión - Estudios de Comunicación y Política, v. 36, p. 54-75. 2015.


resenhas

As interconexões das diversas ciências Maurício da Silva Baptista

V

Interconnecting the sciences: A historical-philosophical approach

eduardo cesar

Walter R. Terra e Ricardo R. Terra LAP Lambert 392 páginas | € 46,90 Informações: bit.ly/29hfn1a

ocê acredita que todos os fenômenos naturais serão completamente explicáveis pelas equações matemáticas da física? Já se perguntou em qual domínio das ciências naturais, ou seja, física, química ou biologia, é mais pertinente colocar uma proteína? Se interessa em saber se existe relação entre a biologia e a história? Fica curioso do porquê da criação de tantas novas disciplinas como, por exemplo, psicologia evolutiva e neurociência cognitiva? Se você se interessou por essas perguntas, não perca a oportunidade de ler a obra de dois professores da Universidade de São Paulo (USP), Walter R. Terra e Ricardo R. Terra, Interconnecting the sciences: A historical philosophical approach, lançada este ano pela editora LAP Lambert. Uma das maiores riquezas deste livro é que foi escrito por dois professores que atuam em áreas distintas: um é professor de filosofia (Ricardo) e outro de bioquímica (Walter). Irmãos de sangue, têm muita afinidade e tempo para discutir e trabalhar as ideias presentes no texto. O resultado é um livro – escrito em inglês – que traz uma abordagem histórico-filosófica do desenvolvimento da ciência comparando, parágrafo a parágrafo, as explicações nas versões das ciências exatas, biológicas e humanas. O ponto focal do livro são os fenômenos emergentes, que ocorrem quando um conjunto qualquer de objetos adquire um comportamento que não pode ser previsto pelo comportamento dos objetos individuais. Para uma explicação da emergência, imaginem uma célula qualquer extraída de um órgão do nosso organismo. Essa célula é constituída por uma infinidade de moléculas, muito bem organizadas, tendo cada uma a sua finalidade para manter a viabilidade e a atividade da célula no órgão. Agora imagine colocar essa mesma célula em um liquidificador de modo a desfazer esse conjunto e separar todas as moléculas individualmente. Seria possível prever que esta sopa desorganizada de moléculas individuais se organizaria sozinha para formar uma nova célula? Será possível explicar o funcionamento dessas moléculas na célula usando somente equações físico-químicas que as relacionam individualmente? A resposta é não para ambas as perguntas.

Não é somente uma questão de não termos suficientes ferramentas matemáticas ou conhecimentos físico-químicos para usar, e sim porque simplesmente essas moléculas são organizadas (dinamicamente) por um aparelho de nível hierárquico maior (órgão e ser vivo), que atua de acordo com a sua história evolutiva. No livro, os autores argumentam que as diferentes ciências foram criadas paralelamente com o surgimento de novos níveis de emergência. Analisam também as disciplinas de conexão, que usam a linguagem e as ferramentas de uma disciplina e a lógica de outra, para finalmente explicar as fronteiras, as semelhanças e as diferenças que existem entre as diversas ciências. Mais importante do que trabalhar com esses conceitos, os autores foram capazes de construí-los a partir de uma leitura histórica do desenvolvimento das ciências. O texto inicia descrevendo a trajetória da física, da química e da biologia com bom nível de profundidade, alcançando os aspectos atuais dessas ciências. A leitura deixa claro que as duas primeiras são ciências naturais e a biologia, além de obviamente natural, é também histórica, uma vez que o estágio de desenvolvimento de um organismo é sempre o resultado da sua história evolutiva. Dessa forma, Walter e Ricardo propõem um “divisor de águas” entre as ciências puramente naturais e as ciências históricas (o estágio atual depende do caminho temporal que foi percorrido), que incluem a biologia e todas as outras que a humanidade criou. O livro serve tanto como um texto-guia para que o leitor construa os seus pensamentos sobre as interconexões das diversas ciências quanto um texto de referência sobre o desenvolvimento histórico-filosófico dessas. Outro aspecto interessante é que se abordam assuntos de interesse comum, mas que raramente são encontrados em um texto único. Por exemplo: a mente, a linguagem, as artes, a religião, a sociedade e as ciências. Recomendo a todos os cientistas, bem como a qualquer curioso que queira entender essa fantástica atividade humana que chamamos de ciência. Maurício da Silva Baptista é professor titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP.

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Viagem pelo mundo da genômica Marie-Anne Van Sluys

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Ciências genômicas: Fundamentos e aplicações Leandro Marcio Moreira (organizador) SBG, Capes e editora Cubo Para baixar: moreiralab.net/Livro/

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e você faltou àquela aula de biologia no ensino médio, aqui está a sua chance de se redimir: em 403 páginas o leitor poderá fazer uma viagem ao mundo das palavras genes, genomas, genética e “quase” tudo de mais recente na área das ciências genômicas. O livro Ciências genômicas: Fundamentos e aplicações, coordenado pelo professor de bioquímica da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Leandro Marcio Moreira, é um esforço denso em conceitos modernos da biologia molecular, mas com a leveza e a vantagem de estar disponível gratuitamente na internet, basta baixar o arquivo. Ressalto que algumas das palavras usadas no livro pouco significavam, ou sequer existiam, há apenas 50 anos. Como bem disse o biólogo Fernando Reinach no Prefácio 1, o conhecimento dessas palavras ocorreu na janela de tempo de um século e a aplicação desse conhecimento está apenas aflorando. A molécula de DNA que guarda a informação genética passada para nossos filhos é universal. Isso quer dizer que todos os organismos vivos, visíveis a olho nu ou através de um microscópio, são formados por células com DNA em seu interior. Animais, plantas, fungos, bactérias e até mesmo nós, seres humanos, temos esta organização conhecida como Dogma Central da Biologia. O dogma preconiza que a molécula de DNA guarda a informação genética que será passada de pai para filho desde o início dos tempos da vida na Terra. A molécula de DNA transfere a informação para outra molécula mais versátil, conhecida como RNA, e esta é, por sua vez, traduzida em proteínas. Estas últimas são as formigas operárias que fazem o sistema celular existir. As proteínas garantem o metabolismo, a proteção, a comunicação entre as partes dentro e fora da célula. Pelos capítulos do livro, o leitor será atualizado sobre os três domínios da vida celular, porém com um pequeno deslize: o domínio Archaea é o grupo mais próximo de Eukarya, ambos distantes de Bacteria. Os mecanismos de controle do funcionamento celular incluindo os afeitos à epigenética também são expostos. O livro é uma fonte recente que discorre sobre todas as metodologias em uso no país que permitem determinar

a sequência do genoma de qualquer organismo, sua interpretação e potencial biológico. Os conceitos mais recentes de biologia sintética e de sistemas são apresentados. O livro é uma fonte atual para leigos na área que desejam ou precisam conhecer os assuntos tratados, sejam curiosos, professores ou alunos. Trata-se de uma exposição moderna e diversificada sobre o tema das ciências genômicas. O leitor poderá desfrutar de vários capítulos formativos, uma vez que não se trata de um livro para leitura dinâmica. Caracteriza-se por ser uma produção idealizada e realizada, em sua maioria, por jovens docentes, que na virada deste século estavam finalizando seus estudos nos cursos de graduação em várias partes do Brasil ou coletando os dados para seus projetos de mestrado ou doutorado em diversos programas de pós-graduação. Todos, ou quase todos, participaram de pelo menos um dos vários projetos genoma que ocorreram no país nos últimos 18 anos. Permitam-me uma pequena digressão: este livro indica que nosso sistema de ensino superior público, com programas qualificados de pós-graduação e grupos de pesquisa de qualidade internacional, funciona. A linguagem usada pelos 27 autores da obra é diversa e por isso alguns capítulos são de leitura fácil – outros, um pouco menos. Na verdade, o que fica claro no livro é que apenas as quatro letras do DNA (A-T-C-G) compõem a diversidade de organismos celulares. Também com suas quatro letras, o RNA (A-U-G-C) é capaz de fazer a ponte entre a informação armazenada e as proteínas. Estas últimas, formadas pela combinatória de 20 palavras principais, gerem a orquestra celular percebendo o ambiente. Aliás, nos três casos, a diversidade vem da organização combinatória de letras e palavras. Em função dessa lei fundamental é que podemos hoje usar a mesma metodologia para sequenciar e interpretar os genomas de organismos tão díspares e distantes como... Deixarei que escolha você o exemplo no livro. Boa leitura! Marie-Anne van Sluys é professora titular do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da USP.


carreiras

Ilustração

A ciência em aquarela

ilustração  rogério lupo

Desenhistas unem conhecimento científico e artes visuais Traçados bem definidos, preenchidos com tinta e de extrema complexidade plástica, ajustados às nuances dos pelos na cabeça de uma mosca ou das fibras das folhas de uma planta. Há tempos a simbiose entre arte e ciência se mantém como uma das formas mais precisas e sofisticadas de se registrar, traduzir ou complementar — por meio de imagens — estudos científicos. Os desenhos, quase sempre feitos à mão, muitas vezes sintetizam diferenças entre espécies à primeira vista bastante semelhantes, sobretudo em relação à pilosidade, à textura e ao tamanho. Em outros casos, dão vida a animais extintos há milhões de anos ou fazem saltar aos olhos organismos microscópicos.

A profissão de ilustrador científico se apresenta ao público na exposição Ciência e arte — A trajetória de Lilly Ebstein entre Berlim e São Paulo (1910-1960), no Museu da Santa Casa de São Paulo. A mostra, aberta até 29 de julho, marca os 50 anos da morte da desenhista alemã e reúne desenhos originais de anatomia humana feitos por ela. Lilly Ebstein chegou a São Paulo em 1925 e ilustrou teses de doutoramento e revistas científicas. Também produziu imagens realistas para aulas de professores de medicina, na tradição de mestres da pintura como o holandês Rembrandt (1606-1669) e o italiano Leonardo da Vinci (1452-1519), que tentavam reproduzir membros de cadáveres sendo dissecados.

Árvores em diferentes estágios de desenvolvimento compõem ilustração publicada em estudo sobre sistemas agroflorestais amazônicos

A ilustradora construiu sua trajetória entre a ciência e a arte realizando uma série de desenhos científicos na Faculdade de Medicina de São Paulo entre 1926 — quando a Universidade de São Paulo (USP) ainda não havia sido fundada — e 1956 e como colaboradora do Instituto Biológico na década de 1930. A profissão de ilustrador científico, em geral, requer talento, tempo e muita dedicação, mas pode ser recompensadora para os apaixonados por ciência e artes visuais. A concepção de uma ilustração costuma ser resultado de um processo criativo e coletivo, que muitas vezes envolve pesquisas e conversas com os cientistas sobre as características essenciais dos objetos que eles PESQUISA FAPESP 245 | 95


desejam retratar. Não raro, antes de começar um esboço, ilustradores mergulham na leitura de estudos científicos para reunir informações que ajudem a dar uma ideia mais refinada do que seus clientes desejam como resultado final. Diferentemente da fotografia, que capta exatamente o que está em frente à câmera, a ilustração científica permite reunir e dar forma, no papel, a uma série de informações científicas às vezes ainda pouco compreendidas pelos próprios pesquisadores, ressaltando com precisão detalhes pouco visíveis na foto. “Os desenhos devem ser precisos do ponto de vista científico, mantendo-se fiéis ao objeto sem exagerar ou minimizar nenhuma de suas características”, diz o ilustrador Rogério Lupo. Em geral, as ilustrações são feitas à mão, com o auxílio de um estereomicroscópio acoplado a uma câmara clara, um acessório que mescla visualmente as imagens do papel e do objeto que se pretende desenhar. As ilustrações podem ser em preto e branco ou coloridas. As em preto e branco costumam ser feitas com grafite ou nanquim, com bico de pena ou caneta.

Desenho em preto e branco faz saltar aos olhos detalhes de espécie nova de Pseudobombax sp., da família Malvaceae 1

Representações artísticas como a deste cauré (Falco rufigularis) envolvem conversas prévias com os cientistas sobre as características essenciais a serem retratadas

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As coloridas, feitas com lápis de cor, aquarela, acrílico e canetas hidrográficas. No caso de Lilly Ebstein, a desenhista usava a fotomicrografia, técnica fotográfica de obtenção de imagens ampliadas que permite o registro das imagens captadas pelo microscópio, possibilitando a observação de detalhes de estruturas invisíveis a olho nu. A partir dessas imagens, ela desenvolvia suas ilustrações, com auxílio de lupas. Dessa forma, o desenho era feito de forma rigorosa — condição imprescindível para que fosse considerado válido cientificamente. Atualmente, muitos desenhistas também usam softwares específicos para ilustrações digitais. Em alguns casos, uma única ilustração pode demorar semanas, às vezes meses, para ficar pronta. Conhecer ciência pode ser tão importante quanto dominar técnicas de desenho, de acordo com a ilustradora científica Rosa Alves Pereira. Ter noções gerais de estética, ou formação básica em


Ilustrações coloridas são feitas com lápis de cor, aquarela, acrílico e canetas hidrográficas, como a deste peixe-boi-marinho (trichechus manatus)

ilustrações 1 rogério lupo  2  Frederick Pallinger  3 rosa alves  4 klei sousa

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iluminação, cor e composição, ajuda o ilustrador a obter uma expressão visual exata do objeto a ser retratado, mas não por acaso muitos desenhistas têm formação em biologia ou botânica e conhecimentos básicos em biomedicina e anatomia. “É importante que o profissional tenha algum conhecimento científico para que possa estabelecer um diálogo mais consistente com seus clientes, em geral pesquisadores”, diz Rosa. Segundo ela, o ilustrador precisa a todo momento buscar informações em museus, coleções científicas, bibliotecas, revistas e livros, de modo a se manter atualizado sobre a qualidade das ilustrações. Muitos nessa área são autodidatas. Outros aprimoraram seu talento em cursos informais, como no caso de Lupo. Ainda na graduação em biologia na USP, ele começou a estudar desenho e pintura clássicos em uma pequena escola de arte em São Paulo. Com o tempo, passou a ilustrar os próprios trabalhos, o que atraiu a atenção de seus colegas e também de outros estudantes de pós-graduação, que começaram a requisitar seus desenhos científicos em teses e dissertações. Outros, como Rosa, frequentaram cursos credenciados de ilustração. Em 2002, ela se graduou em Artes Visuais na Escola de Belas

Simbiose entre arte e ciência muitas vezes sintetiza diferenças entre espécies à primeira vista bastante semelhantes

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Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dois anos depois, especializou-se em história da cultura e da arte na UFMG e em Lisboa, Portugal, e em 2011 defendeu a dissertação de mestrado em ilustração científica no Instituto Superior de Educação e Ciências, também em Lisboa. “O mestrado no exterior me ensinou a dominar técnicas diferentes daquelas a que estamos acostumados no Brasil”, afirma. Segundo ela, é possível encontrar cursos de ilustração científica espalhados por todo o país, como o oferecido pelo Núcleo de Ilustração Científica da Universidade de Brasília (UnB), pelo Centro de Ilustração Botânica do Paraná (CIBP), pela Escola Nacional de Botânica Tropical do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, entre outros. Como em muitos outros campos, os ilustradores científicos costumam ser autônomos, trabalhando em vários projetos e com diversos clientes ao mesmo tempo. “As possibilidades de trabalho para o desenhista científico variam bastante”, diz o ilustrador botânico Klei Souza. A principal frente de trabalho ainda está voltada ao ambiente acadêmico, sobretudo a áreas como arqueologia e paleontologia, biologia, cartografia e astronomia. Outra área que demanda o trabalho do ilustrador científico é a do mercado editorial, que os contrata para fazer ilustrações para coleções de livros didáticos. Também as agências de comunicação visual costumam encomendar desenhos para ilustrar embalagens de produtos cosméticos ou propagandas imobiliárias que querem valorizar a vida vegetal em volta de condomínios. “As áreas de atuação podem ser tão amplas quanto as próprias áreas da ciência”, comenta Rosa. Para Lupo, a arte pode ser uma importante ferramenta de comunicação científica, aproximando as pessoas de assuntos complexos e à primeira vista desinteressantes. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 245 | 97


Pesquisadores do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo (USP) analisaram informações sobre estudantes com idade média de 21 anos inscritos nos vestibulares de cursos nas áreas de humanas, exatas e biológicas entre 1980 e 2015. Os dados foram analisados e comparados com os obtidos em um questionário aplicado a 573 alunos de graduação. No estudo, publicado na revista Personality and Individual Differences, eles confirmaram o que já se desconfiava: nos últimos 35 anos as áreas de exatas atraíram mais homens, enquanto as de humanas e biológicas chamaram mais a atenção das mulheres. Eles também analisaram se uma teoria chamada empatia-sistematização estaria relacionada à escolha da profissão. A teoria, desenvolvida pelo psicólogo britânico Simon Baron-Cohen, assume a existência de um tipo cognitivo mais característico do gênero feminino (empatia) e outro do masculino (sistematização). Para avaliar os conceitos, ele desenvolveu escalas de empatia e de sistematização. No estudo, os pesquisadores verificaram que a empatia era maior entre as meninas, e a sistematização, entre os meninos. O conceito de empatia está relacionado a áreas que envolvem interações sociais por parte dos profissionais, como no caso de medicina, comércio, entre outras. O de sistematização diz respeito à capacidade de uma pessoa conseguir prever o comportamento de um sistema, considerando suas regras, e está mais ligado às áreas de engenharias, informática e química. Os resultados, segundo os pesquisadores, reforçam a importância dos tipos cognitivos como um dos fatores relacionados à escolha do curso universitário. 98 | julho DE 2016

perfil

Dos campos para os tribunais Botânico autodidata, desembargador Elton Leme já classificou mais de 350 espécies de bromélias no Brasil Na adolescência, na década de 1970, o desembargador Elton Leme costumava se embrenhar nas matas da fazenda do pai, no distrito de Gaviões, no Rio de Janeiro, à procura de bromélias e orquídeas. “Queria construir um viveiro para criar micos-leões-dourados”, conta. Logo abandonou a ideia, mas não deixou de cultivar as plantas que encontrava. Com o avô, transformou um antigo galinheiro em estufa, que em pouco tempo contava com uma pequena coleção de bromélias. À medida que floresciam, ele as fotografava e desenhava, sem chegar, contudo, à classificação de cada uma. Aos 19 anos, Leme começou a levar exemplares para o taxonomista Edmundo Pereira, à época pesquisador do Herbarium Brandeanum, no Rio de Janeiro, que o ajudou a identificá-las. Não demorou para que uma de suas bromélias fosse considerada nova para a ciência — a planta foi batizada de Vriesea eltoniana em sua homenagem. Quando se deu conta de que outra das plantas do garoto também era nova, Pereira perguntou se ele gostaria de ser homenageado ou de participar da elaboração do artigo científico que a apresentaria ao mundo. “Optei por participar da publicação da nova espécie.” Hoje com 55 anos, o botânico autodidata, que trabalha no Tribunal de Justiça do Rio, já classificou mais de 350 espécies de bromélias e publica tanto quanto

um botânico profissional. “Ao longo dos anos, reuni conhecimentos básicos em botânica, morfologia e taxonomia, entre outras áreas”, diz. Com isso, ganhou autonomia suficiente para continuar pesquisando e publicando. Em razão disso, costuma ser convidado para dar palestras em congressos internacionais, nos quais estreitou laços de cooperação com botânicos e biólogos de outros países. O estreitamento dessas relações científicas o fez produzir 241 artigos, em colaboração ou sozinho, além de livros como autor ou coautor, sempre sobre botânica. Hoje, Leme mantém várias linhas de pesquisa cooperativa com pesquisadores de universidades da Alemanha, Áustria, Estados Unidos, entre outras, para quem, ele diz, “o conhecimento vale mais que os títulos”, ao contrário do que afirma ocorrer no Brasil. Aqui suas colaborações são mais acanhadas, limitando-se aos pesquisadores do Jardim Botânico e da Universidade Federal do Vale do São Francisco, em Pernambuco. Enquanto desenvolvia estudos em botânica, Elton iniciou também a graduação em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Desenvolvi um gosto pelo direito com a mesma intensidade que apreciava a botânica e me especializei na área ambiental”, conta. O direito e a botânica o completam e, às vezes, misturam-se. Leme com frequência é convidado por revistas científicas para revisar artigos de botânica. “Talvez o meu treinamento como juiz me faça atuar com maior imparcialidade e, por isso, continuo a ser demandado como revisor pelos editores estrangeiros.” n R.O.A

arquivo pessoal

Empatia e sistematização na profissão


classificados

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FAPESP oferece recursos para

Pesquisa em Pequenas Empresas em São Paulo Chamada de Propostas para o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) As solicitações de financiamento devem apresentar projetos de pesquisa a serem desenvolvidos em uma das seguintes modalidades: Fase 1  viabilidade tecnológica de produto ou processo. Duração máxima: 9 meses. Recursos: até R$ 200 mil Fase 2  desenvolvimento de produto ou processo inovador. Duração máxima: 24 meses. Recursos: até R$ 1 milhão

Condições para participação   O proponente deve ser pesquisador vinculado a empresas com até 250 empregados e unidade de P&D no Estado de São Paulo n

O proponente deve demonstrar conhecimento e competência técnica no tema do projeto

A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada

Data-limite para apresentação de propostas 1º de agosto de 2016

n

A empresa não precisa estar formalmente constituída na submissão da proposta

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Previsão de divulgação do resultado da chamada 30 de novembro de 2016

A empresa deve oferecer condições adequadas para o desenvolvimento do projeto de pesquisa

n

As normas para submissão de propostas estão disponíveis em www.fapesp.br/pipe

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia

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