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dezembro de 2017 | Ano 18, n. 262
por uma
cidade mais saudável Novos estudos indicam que integrar saúde pública e planejamento urbano pode trazer mais benefícios do que custos
Livros que reúnem cartas escritas por intelectuais e artistas ganham espaço
Ações coletivas viabilizam projetos de pesquisa no país
Parasita de macaco pode ter provocado surto de malária humana no Rio de Janeiro
Primeira laranjeira transgênica é mais resistente à Xylella, causa do amarelinho
Pioneira nas pesquisas sobre reprodução, a demógrafa Elza Berquó quer investigar os jovens
Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13 às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM. Com reprise no sábado às 18h e na quinta-feira às 2h. Em janeiro, ouça as melhores entrevistas feitas em 2017
Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP
A cada programa, três pesquisadores falam sobre seus trabalhos recentes e ajudam a escolher a programação musical
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Você também pode baixar e ouvir o programa da semana e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br)
fotolab
A beleza do conhecimento
Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
Um DNA meio diferente Embora a dupla hélice seja consagrada desde sua descoberta, nos anos 1950, algumas partes do DNA podem ter três fitas emparelhadas em espiral. Para estudar a ocorrência e função dessa configuração, faltava uma maneira simples de localizá-la nos cromossomos. Não mais. Os geneticistas Eduardo Gorab e Peter Pearson, da Universidade de São Paulo, descreveram como um corante disponível comercialmente – o laranja de tiazol – pode substituir anticorpos produzidos especialmente para encontrar triplas hélices de DNA. Na foto, o anticorpo (vermelho) e o corante (verde) se misturam e se destacam no cromossomo tingido de azul.
Imagem enviada por Eduardo Gorab, professor do Instituto de Biociências da USP
PESQUISA FAPESP 262 | 3
dezembro 262
POLÍTICA DE C&T
TECNOLOGIA
38 Investimento Pesquisadores recorrem ao financiamento coletivo para tirar projetos do papel
48 Engenharia química Novo sistema de dessalinização usa carvões ativados obtidos de polímeros condutores
CIÊNCIA 42 Epidemiologia Equipe da Fiocruz propõe nova forma de malária, transmitida por mosquitos infectados ao picar macacos 46 Genética Desenvolvida a primeira laranjeira transgênica resistente à bactéria Xylella fastidiosa
HUMANIDADES 52 Edição de cartas Projeto franco-brasileiro estabelece critérios para a publicação de correspondência intelectual 56 Obituário Emília Viotti deixa importante legado para entender processos de abolição na América Latina
CAPA Melhorar a promoção da saúde nas áreas urbanas exige trânsito da pesquisa às políticas públicas p. 18 Temperaturas mais elevadas aumentam a mortalidade em todo o mundo p. 26
Foto da capa Léo Ramos Chaves
ENTREVISTA Elza Berquó Demógrafa quer investigar o comportamento dos jovens p. 30
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vídeos youtube.com/user/pesquisafapesp
SEÇÕES 3 Fotolab 6 Comentários 7 Carta da editora 8 Boas práticas Nutricionista que fazia recomendações de alimentação saudável tem artigos retratados por erros 11 Dados Resultados dos dispêndios em P&D nas universidades 12 Notas
58 Memória Expedições mostraram novo retrato das condições de saúde do Brasil no início do século XX
Física, biologia e tecnologia se unem para desvendar ritmos circadianos de roedor bit.ly/vCronobio
62 Resenha Desafios da notícia – O jornalismo brasileiro ontem e hoje, de Alzira Alves de Abreu. Por Eugênio Bucci 63 Carreiras Universidades desenvolvem estratégias de atendimento psicológico para alunos
Astrofísicos comentam o flagra da colisão de estrelas de nêutrons bit.ly/vEstrelasNeutrons
podcast bit.ly/PesquisaBr Fabio Santos do Nascimento Insetos se reconhecem por meio de substâncias que recobrem seus corpos bit.ly/PodFabioSN
Conteúdo a que a mensagem se refere:
comentários
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Revista impressa
Galeria de imagens Vídeo
Choques cósmicos
Estamos indo para a era do garimpo intergaláctico (“Fonte de ouro e régua do universo”, edição 261). Anderson Porto
Rádio / podcast
Assédio
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6 | dezembro DE 2017
Eu já enfrentei situações de assédio tanto na graduação como na pós e posso afirmar que a maioria das mulheres do meio científico que conheço também já passou por isso pelo menos uma vez na vida (“A sombra do assédio na integridade da ciência”, edição 260). Infelizmente essa é uma triste realidade que continua sendo ignorada. As pessoas preferem fechar os olhos porque, na maioria das vezes, os agressores são professores (orientadores, chefes) e colegas de trabalho. Marta Rodrigues
Diversidade de instituições
Cursei graduação, mestrado e doutorado em instituições diferentes (“Formação diversificada”, edição 260). Foi muito enriquecedor porque saí da zona de conforto ao final de cada etapa, conheci professores e colegas novos e aprendi a trabalhar em sistemas e realidades diferentes. Karina Merini Tonon
Sempre defendi isso. Minha formação acadêmica é um reflexo desse pensamento. Diversificar os debates e opiniões. Uma maneira de ampliar o conhecimento. Geise Pasquotto
Difícil é, em algumas universidades, os professores aceitarem quem vem de fora. Geraldo Moreno Florentino Júnior
Se não for mudar de instituição, então mude de orientador no mestrado, doutorado, pós-doutorado. Impressionante como isso lá fora é uma conduta de sucesso, mas no Brasil as pessoas curtem ficar sob a mesma influência intelectual durante a carreira acadêmica inteira. Uma decisão que não enriquece muito o repertório profissional. Camilo Lellis-Santos
Vídeos
Lima Barreto já denunciava a podridão da política brasileira (“Lima Barreto: Intérprete do Brasil pós-abolição”).
Jerônimo Lombardo
Considero Ataliba de Castilho o maior linguista brasileiro vivo (“A riqueza da língua falada”). E concordo sobre a abordagem do ensino da língua portuguesa no Brasil: temos que desprender do ensino gramático da língua. Gabriel Cândido
Bizarrias sem regra (desregradas ou antir regras) não se transformam, por si mesmas, numa normalidade... o hábito do erro não o faz correcto (sim, com C). Fernando Duarte
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
A mais lida de novembro no Facebook Equipes brasileiras ganham medalhas em competição internacional de bioengenharia bit.ly/2kvM3xD
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divulgação
Reportagem on-line
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
carta da editora
José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio
Saúde, população e diversidade
Conselho Técnico-Administrativo Carlos américo pacheco Diretor-presidente
Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico fernando menezes de almeida Diretor administrativo
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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais), Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro (Editor-assistente) repórteres Yuri Vasconcelos e Rodrigo de Oliveira Andrade redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira do Prado (Mídias Sociais) arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves banco de imagens Valter Rodrigues Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro Colaboradores Christina Queiroz, Eugênio Bucci, Márcio Ferrari, Pedro Franz, Pedro Hamdan, Renato Pedrosa, Victória Flório, Walter Rego
É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização
Tiragem 25.700 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
G
randes centros urbanos como São Paulo oferecem atrativos, como uma maior opção de emprego, programação cultural e uma diversidade de pessoas. Apresentam, também, uma série de obstáculos para uma vida saudável. A dificuldade de locomoção, a poluição e a escassez de áreas verdes são alguns deles. É preciso encontrar meios de transformar áreas urbanas em ambientes menos prejudiciais à saúde de seus habitantes. A ciência tem contribuído na mensuração desses problemas e de seus efeitos, assim como do impacto que determinadas medidas, algumas delas simples, podem ter, como mostra a reportagem de capa desta edição (página 18). A maior parte das ações necessárias para tornar as grandes cidades mais saudáveis depende do poder público. Disputam espaço com outras prioridades na agenda dos formuladores de políticas públicas e nos orçamentos. Com o apoio dos resultados dos estudos científicos sobre temas urbanos, é necessária uma mudança nas políticas e na alocação de recursos para medidas que promovam a saúde de modo preventivo. A população e seu comportamento reprodutivo é um dos objetos de estudo de uma figura central da demografia brasileira: Elza Berquó. Em entrevista concedida ao editor-chefe da Pesquisa FAPESP, Neldson Marcolin, a matemática de 92 anos contou algumas passagens de sua rica trajetória de pesquisa, desde a observação, em meados dos anos 1960, da queda na fecundidade das mulheres paulistanas e, posteriormente, das brasileiras, até seus interesses atuais, centrados no tema do suicídio entre jovens (página 30). Uma das fundadoras do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), criadora do Núcleo de Estudos
de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo, que hoje leva seu nome), professora aposentada compulsoriamente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1968, a história de Elza se entrelaça com a do país, enriquecida por meio de suas análises e pesquisas. A reportagem à página 38 mostra que o mecanismo de financiamento coletivo chegou à pesquisa. Mais disseminado na área cultural, no chamado crowdfunding, doadores colocam dinheiro em determinados projetos, apresentados on-line. Ainda incipiente, essa alternativa não deve substituir as fontes de apoio tradicionais, mas pode ser um complemento em um momento de recuo do investimento em ciência no país. É, também, uma forma de aproximação entre a ciência e a população. Neste mês, a revista consiste em uma edição menor, com 68 páginas, acompanhada por um suplemento especial com 36 páginas sobre os 20 anos do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). Criado em 1997, o programa foi inédito no país ao ofertar recursos para o desenvolvimento de atividades de pesquisa em ciência e tecnologia (C&T) dentro de pequenas empresas no estado de São Paulo. O princípio foi que, ao torná-las um lugar de pesquisa, o programa contribuiria para tornar mais densas as relações entre instituições de C&T e empresas, e aumentar sua competitividade. A edição especial conta a história do Pipe, mostra alguns programas correlatos em outros países, e como ele contribuiu para a construção de um novo ecossistema ao ser um precursor de instrumentos de apoio à inovação que se consagraram no Brasil. Em nome da equipe de Pesquisa FAPESP, desejo aos nossos leitores um feliz ano novo. PESQUISA FAPESP 262 | 7
Boas práticas
Método questionável admitido em público Nutricionista que fazia recomendações de alimentação saudável para os EUA tem artigos retratados por erros e negligência A revista Frontiers on Psychology anunciou em novembro a retratação de um artigo publicado em 2016 pelo especialista em comportamento e nutriçao Brian Wansink, pesquisador da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. O estudo em questão utilizou dados sobre os hábitos de 355 veteranos da Segunda Guerra Mundial e concluiu que experiências traumáticas podem interferir no modo como os indivíduos compram alimentos: os ex-combatentes que vivenciaram situações muito violentas exibiam menor fidelidade a marcas, enquanto as vítimas de traumas leves seriam mais influenciáveis por propaganda. Depois de receber denúncia sobre possíveis vieses no estudo, a revista reanalisou os dados brutos da pesquisa e concluiu que “não há base empírica para as conclusões do artigo”, segundo a nota de retratação. Esse foi o quarto artigo assinado por Wansink cancelado em 2017 e outros sete precisaram sofrer correções – há ainda cerca de 40 sob investigação. Houve até o caso de um artigo retratado duas vezes. Publicado em 2012 no Jama Pediatrics, o paper foi cancelado e republicado com a 8 | dezembro DE 2017
correção de erros estatísticos, mas em seguida teve uma retratação definitiva quando se constatou que suas premissas estavam totalmente equivocadas. Não se sustentava a conclusão de que crianças de 8 a 11 anos preferem maçãs a cookies se a fruta tiver uma estampa com o personagem Elmo, da Vila Sésamo, porque os dados do estudo haviam sido obtidos com crianças bem mais novas, de 3 a 5 anos. Brian Wansink é uma figura popular nos Estados Unidos. Escreveu livros de grandes tiragens, como Mindless eating, de 2007, em que defende o uso de pratos pequenos para ingerir menos calorias. Foi diretor do Centro para Promoção e Políticas de Nutrição do governo norte-americano e coordenou as U.S. Dietary Guidelines para o período de 2007 a 2009, com recomendações para uma alimentação mais saudável atualizadas com base em evidências científicas. Em 2010, foi um dos fundadores de um programa que recebeu US$ 22 milhões de financiamento federal para orientar estratégias de alimentação em mais de 30 mil escolas. Tais estratégias se baseiam, em boa medida, na produção científica do grupo de Wansink.
ilustração walter rego foto Jason Coski / Cornell News
As investigações sobre seus artigos foram deflagradas após a publicação de um texto polêmico, divulgado no blog pessoal de Wansink em novembro de 2016, em que ele relatou o uso de métodos questionáveis de tratamento de dados estatísticos. O post, intitulado “A estudante de pós-graduação que nunca diz não”, elogiava a aluna de doutorado turca Ozge Sigirci, estagiária de seu laboratório, pela disposição de investir tempo na reanálise de dados brutos que outros pesquisadores já haviam investigado, tendo encontrado apenas resultados nulos. Wansink contou ter oferecido a ela a chance de retrabalhar os resultados de um levantamento feito em um restaurante italiano, que fornecia um rodízio de pizza na qual o consumidor comia o quanto quisesse. “Eu disse à aluna: custou muito tempo e dinheiro para coletar essas informações. Deve haver algo aqui que pode ser salvo, pois se trata de um conjunto de dados legal, rico e único”, escreveu. Ozge Sigirci, que trabalhava de modo voluntário, analisou reiteradamente os dados e levantou tendências que, segundo o pesquisador, permitiram formular hipóteses e renderam quatro artigos submetidos a revistas. Um deles sustentava que homens comem mais quando estão na companhia de mulheres. Outro analisava a relação entre o preço do rodízio e a satisfação dos clientes. Feliz com a aplicação da estudante, Wansink desafiou-a a analisar outro conjunto de dados que havia sido rejeitado por um estagiário de pós-doutorado contratado pelo laboratório – ele não vira perspectiva de extrair dali algum artigo. A aluna reanalisou os dados e, novamente, fez descobertas que renderam artigos. O post da Wansink circulou no meio acadêmico e foi duramente criticado. Houve quem condenasse o fato de uma estudante estrangeira trabalhar sem ganhar nada, enquanto alguns pesquisadores identificaram no relato indícios de uma prática conhecida como p-hacking, ou manipulação dos valores de p, uma forma de tratar e selecionar exaustivamente dados estatísticos para extrair alguma tendência de resultados inconclusos.
Brian Wansink elogiou estagiária de doutorado que aceitou retrabalhar dados estatísticos que não haviam rendido artigos científicos
Groninger, e Tim van der Zee, professor da Universidade de Leiden, encontrou 150 inconsistências estatísticas nos quatro artigos resultantes do estudo sobre o rodízio de pizza. Em muitos casos, tabelas reproduziam dados com arredondamentos grosseiros. Tais achados renderam um manuscrito divulgado em um repositório de preprints, com o título “Azia estatística: Uma tentativa de digerir quatro publicações sobre pizza feitas pelo Laboratório de Nutrição e Marcas da MOMENTO SENSÍVEL Universidade Cornell”. O trio solicitou O pesquisador de Cornell descreveu a Wansink acesso aos dados da suas práticas controversas em um pesquisa, mas ele alegou que isso momento especialmente sensível, no qual a pesquisa em psicologia vive uma quebraria o anonimato dos participantes. Acionado, o Escritório de crise marcada pela inviabilidade de Integridade Científica da Universidade reproduzir e confirmar conclusões Cornell alegou que os dados são mesmo de estudos que renderam resultados sigilosos. Em sua única manifestação curiosos e boas manchetes de jornal. oficial até agora, a universidade Em 2014, uma força-tarefa de 100 pesquisadores de vários países lançou-se informou em maio não ter encontrado evidências de má conduta nos erros dos ao desafio de tentar reproduzir um quatro artigos sobre o rodízio de pizza – conjunto de 27 artigos da área de mas cogitava avaliar novas denúncias. psicologia social, e em um terço dos Em nota divulgada no site do seu casos não tiveram sucesso (ver Pesquisa FAPESP nº 220). Essa crise foi deflagrada laboratório, Wansink assumiu a responsabilidade pelos erros e disse ter por escândalos como o provocado solicitado as correções. Também por Diederick Stapel, professor de anunciou que adotou procedimentos psicologia social da Universidade para prevenir a repetição das de Tilburg, na Holanda, que teve 30 “negligências e erros” no futuro, além artigos retratados por manipulação de de criar um sistema capaz de tornar dados (ver Pesquisa FAPESP nº 190). anônimos os dados sobre participantes As críticas à postura de Wansink de pesquisas para que sejam chamaram a atenção de um grupo de compartilhados. Em relação a pesquisadores holandeses que criou retratações recentes, disse ao site ferramentas para detectar anomalias Buzzfeed que elas foram feitas a seu estatísticas em artigos. A equipe, pedido. Pelo menos no caso do artigo que reúne Jordan Anaya, biólogo computacional, Nick Brown, estudante do Jama Pediatrics, foi desmentido pelos editores da publicação. de doutorado da Universidade P é uma medida que representa a probabilidade de o efeito observado em um levantamento se dever ao acaso e não aos fatores que estão sendo estudados. Um valor menor ou igual a 0,05 é utilizado como indicador de significância estatística, pois sugere que os resultados são robustos. Também despontaram críticas ao fato de Wansink fatiar uma pesquisa de modo a render vários artigos.
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ilustração walter rego
Denúncias anônimas e desculpas frágeis A revista Oncogene, editada pelo grupo Springer Nature, publicou em outubro um editorial condenando dois comportamentos recorrentes que tumultuam a investigação de fraudes ou falsificações em artigos científicos. Um deles é o costume de denunciar suspeitas de má conduta de forma anônima, em geral por meio de cartas ou e-mails assinados com pseudônimos. “Há razões legítimas para a proteção do anonimato de denunciantes e os detalhes não são revelados às partes envolvidas durante as investigações. Mas é importante que o denunciante se identifique para o editor quando a acusação é feita”, escreveram Justin Stebbing, editor-chefe da revista e pesquisador do Imperial College de Londres, e David Avram Sanders, da Universidade Purdue, nos Estados Unidos. “Isso não significa que denúncias anônimas devam ser ignoradas. Elas devem ser avaliadas em seus méritos. Mas a cultura do anonimato é inconsistente com os valores do empreendimento científico e clínico e precisa ser desencorajada.” A dupla de editores também criticou de forma áspera e irônica as respostas evasivas que muitos autores dão aos pedidos de esclarecimento motivados por alguma suspeita ou incongruência encontrados em artigos publicados. Stebing e Sanders compilaram uma lista das desculpas mais frequentes. A mais comum é negar a existência do problema mesmo quando as evidências de que uma imagem tenha sido duplicada sejam esmagadoras. Essa estratégia tem nuanças: também há autores que, sem desqualificar totalmente a denúncia, tentam convencer os editores de que imagens obviamente duplicadas não são idênticas e que há pequenas diferenças entre elas, como em um jogo dos sete erros. 10 | dezembro DE 2017
Outra resposta frequente, que os autores batizaram de “meu cachorro comeu os dados”, envolve dizer que não há mais como tirar a dúvida porque os dados originais se perderam. Essa desculpa, diz o editorial, pode eventualmente ser válida. “Mas algumas vezes a manipulação é tão evidente que a falta dos dados originais não é circunstância atenuante.” Também é frequente tentar se livrar da culpa atribuindo o problema à inexperiência de pesquisadores juniores ou à falta de familiaridade com padrões de qualidade de colaboradores de outros países, ou então argumentar que a duplicação de dados não compromete os resultados do artigo. Nenhuma delas, contudo, reduz o impacto do erro ou exime o autor de suas responsabilidades.
Por fim, também há quem se faça de vítima e atribua a denúncia à perseguição anônima. “Talvez seja verdade, mas é irrelevante”, avalia o editorial. Afinal, não é porque o pesquisador virou alvo de um desafeto que a fraude ou a falsificação que cometeu se tornará aceitável.
As vidas de um artigo fantasma O paper “A arte de escrever um artigo científico”, do Journal of Science Communications, já recebeu quase 400 citações em artigos indexados na base de dados Web of Science. As citações são reais, mas o artigo é fictício e a revista que o teria publicado jamais existiu. As menções ao paper fantasma revelam a forma viciada com que foram produzidas as referências bibliográficas dos manuscritos. A origem da confusão é um guia para autores da editora Elsevier, que criou a referência fictícia como modelo de formato e estilo a ser seguido em seus periódicos. “Obviamente, os autores deveriam substituir o texto do modelo por uma referência de verdade”, contou Anne-Wil Harzing, professora da Universidade Middlesex, em Londres, em seu blog. O que ocorreu, segundo diz, é que isso
não foi compreendido por autores inexperientes ou com pouco domínio do inglês. Ela reconhece que alguns podem ter esquecido de apagar o modelo depois de concluir a lista de referências. Segundo Harzing, o artigo fantasma foi descoberto por Pieter Kroonenberg, professor da Universidade de Leiden, na Holanda. Ele reconheceu o nome de um colega, o psicólogo J. Van der Geer, como um dos autores. Ficou intrigado, pois jamais soube do interesse do amigo pelo universo da escrita científica. Logo percebeu que havia algo errado: além de não encontrar o artigo, constatou que o segundo autor do paper, um certo J. Hanraads, só havia publicado esse manuscrito em toda a sua carreira, algo estranho para alguém que se arvora a ensinar a arte de escrever um artigo científico.
Dados
Resultados dos dispêndios em P&D nas universidades
Os dispêndios em pesquisa e desenvolvimento (P&D) das universidades dos Estados Unidos totalizaram, em 2016, US$ 72 bilhões. No Brasil, o dado mais recente (2015) indica dispêndios de R$ 19,1 bilhões, ou PPC$ 10,2 bilhões1. Essa diferença reflete-se na produção científica registrada em publicações internacionais: são 483 mil trabalhos dos Estados Unidos e 53 mil do Brasil, em 20162. Os resultados das atividades de P&D nas principais universidades norte-americanas em 2016 estão fortemente associados ao volume de dispêndios. As três universidades paulistas foram incluídas no gráfico para publicações e a Unicamp no de startups, como referências3. publicações 12.000 R2 = 0,91
10.000
U Minnesota UCLA U Maryland MIT
Columbia UC Berkley
8.000
Publicações em função de dispêndios em P&D (US$ milhões)4
UMichAnn Arbor
Stanford
USP
U Washington U Pennsylvannia
Cornell Ohio St Yale Penn St U Wisconsin, Madison Duke Florida Northwestern UNC. Chapel Hill NYU UT Austin U Illinois Vanderbilt Texas A&M Caltech Rutgers Arizona St U Unesp Unicamp U South Cal
U Chicago
6.000 U Missouri
4.000
Princeton
2.000 N Carolina St U
0 0
200
400
600
800
1.000
1.200
1.400
1.600
1.800
2.000
dispêndios em P&D (US$ milhões) startups 35 Stanford
30 Unicamp
25
MIT
U Pittsburgh
Startups em função de dispêndios em P&D (US$ milhões)5
U Florida
15
Arizona St
Ohio St Vanderbilt
5 ilustração freepik.com
U Illinois
Texaz A&M
Caltech
10
U Minnesota
U Arizona
NC St
0
U Washington
Columbia
20
R2 = 0,60
U Maryland
Penn St
U Pennsylvannia Harvard UMich-Ann Arbor Cornell Duke U Wisconsin, Madison UNC. Chapel Hill
Chicago
0
200
400
600
800
1.000
1.200
1.400
1.600
dispêndios em P&D (US$ milhões) 1 Paridades de Poder de Compra de 2015 (PPC$ = 1,866 para 2015), World Bank. Esse fator de conversão de câmbio leva em conta os preços relativos de uma cesta de produtos e serviços, compensando a diferença de preços entre os países. 2 Articles, Reviews e Proceedings Papers listados na base Web of Science/Clarivate, com pelo menos um autor dos países considerados. 3 A Unicamp é a única universidade nacional com dados disponíveis sobre startups. As estimativas de dispêndios das universidades paulistas seguem a metodologia internacional, que, em geral, fornece valores maiores (entre 20% e 25%) do que a metodologia utilizada pela National Science Foundation para as universidades dos Estados Unidos. 4 Harvard, com 24 mil publicações e US$ 1,08 bilhão em dispêndios, foi considerada um outlier e não aparece no gráfico nem foi considerada no cálculo do coeficiente de correlação linear R2. 5 Empresas originadas das atividades de P&D das universidades. Stanford, o sistema da Universidade de Maryland e MIT foram considerados outliers, não sendo utilizados para estimar R2. Fontes Indicadores C&T Fapesp; Higher Education R&D Survey FY2016, NSF; Anuário Unicamp 2017; Incites-WoS/Clarivate; US Licensing Activity Survey 2017, AUTM; World Bank PPP$ tables.
PESQUISA FAPESP 262 | 11
Notas
1
Pterossauros nasciam sem a capacidade de voar Os filhotes de pterossauros, répteis alados já extintos, contemporâneos dos dinossauros, rompiam seus ovos prontos para andar, mas não para bater asas e ganhar os ares. Assim que nasciam, os ossos da cintura estavam formados. Isso permitia que eles se apoiassem sobre as patas traseiras e dessem os primeiros passos. Porém, a estrutura óssea que dá suporte aos movimentos do músculo peitoral, essencial para sustentar o voo, ainda não estava totalmente constituída. Os recém-nascidos também não tinham todos os dentes, limitação que provavelmente os impedia de se alimentar sozinhos. Para sobreviver até que os ossos de apoio das asas e os dentes estivessem completos, os filhotes tinham de permanecer um bom tempo sob o cuidado dos pais. Esse cenário, sobre o desenvolvimento embrionário e os primeiros movimentos, ainda tímidos, dos filhotes de pterossauros, é sugerido em um estudo feito por paleontólogos brasileiros e chineses (Science, 1º de dezembro). “O descompasso entre o desenvolvimento dos ossos da cintura e os da musculatura peitoral indica que os pterossauros não conseguiam voar ao nascer”, comenta o paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos autores do trabalho. Com o auxílio de imagens de tomografia computadorizada, o grupo analisou o interior de 16 ovos de pterossauros da espécie Hamipterus tianshanensis, que viveu há cerca de 120 milhões de anos na bacia de Turpan-Hami, no noroeste da China. Com cerca de 5 centímetros de altura, os ovos não se encontravam achatados e mantinham a tridimensionalidade. Os fósseis estudados fazem parte do maior conjunto conhecido de ovos desses répteis (215 no total), que estavam incrustados, ao lado de dezenas de ossos de exemplares adultos da espécie, em um bloco de arenito. 12 | dezembro DE 2017
Ovos fossilizados do pterossauro Hamipterus tianshanensis e reconstituição artística da espécie
O avanço das vacinas contra zika
e Inovio, ela provocou uma resposta imunológica em pelo menos 80% dos 40 voluntários que
Três candidatas a vacina
a receberam
contra a febre zika
(The New England
apresentaram resultados
Journal, 4 de outubro).
animadores em testes de segurança (fase 1) com seres humanos (The Lancet, 4 de dezembro). Duas formulações de uma vacina de DNA
Vahan Agopyan será novo reitor da USP
ilustração Zhao Chuang fotos 1 Wang et al., Science (2017) 2 Oast House Archive / Wikimedia Commons 3 Marcos Santos / USP Imagens
desenvolvidas por pesquisadores do
O engenheiro Vahan
Instituto Nacional de
Agopyan foi nomeado
Alergia e Doenças
reitor da Universidade
Infecciosas (Niaid), dos
de São Paulo (USP) pelo
Estados Unidos, foram
governador Geraldo
administradas em
Alckmin em 13 de
125 voluntários
novembro. Vice-reitor na
norte-americanos sadios
gestão do atual reitor,
com idade entre 18
Marco Antonio Zago,
e 50 anos. Em ambos
e professor titular da
os casos, a imunização
Escola Politécnica,
foi bem tolerada.
Agopyan, de 65 anos,
A versão mais eficaz da
encabeçou a lista tríplice
vacina estimulou uma
de candidatos à reitoria
resposta imunológica
por ter recebido o maior
em pelo menos 77%
número de votos do
das pessoas. A eficácia
colégio eleitoral da
(fase 2) dessa
universidade, que se
formulação está sendo
reuniu em 30 de
testada em cerca de
outubro. Ele assumirá
2.500 voluntários das
o cargo no dia 25 de
Pessoas com mais de 60 anos devem escolher áreas
Américas. Feito a partir
janeiro de 2018 para um
verdes e calmas para se exercitar. Um estudo do Imperial
de vírus inativado,
mandato de quatro anos.
College de Londres e da Universidade Duke, dos Esta-
outro tipo de imunizante
O vice-reitor será
dos Unidos, indica que os benefícios para o coração e os
foi testado em fase
Antonio Carlos
pulmões de duas horas de caminhada são rapidamente
1 em 55 adultos
Hernandes, professor
norte-americanos.
titular do Instituto de
Desenvolvida pelo
Física de São Carlos,
Instituto de Pesquisa
atual pró-reitor
Walter Reed, do Exército
de graduação da
norte-americano, a
universidade.
Andar por duas horas na Oxford Street, em Londres, quase não produziu benefícios à saúde
Modelo aponta que cultivo da cana poderia crescer sem afetar áreas de preservação ambiental ou de outras culturas agrícolas 2
Poluição praticamente anula efeito de caminhada em idosos
neutralizados se a atividade física for feita em uma área poluída (The Lancet, 5 de dezembro). Os pesquisadores
Professor titular da Escola Politécnica vai assumir a reitoria em 25 de janeiro
recrutaram 119 homens e mulheres dessa faixa etária: um terço deles saudável e dois terços com histórico de problema cardíaco ou pulmonar, mas com a doença sob controle. Os voluntários caminharam por um par de horas
vacina conferiu proteção
em um trecho calmo do Hyde Park, grande área verde de
contra o vírus zika
Londres, e, em outro dia, cumpriram essa mesma tarefa
em 90% das pessoas
em um ambiente poluído e agitado do centro da capital
imunizadas. Pouco
inglesa, um trecho comercial da Oxford Street. As análises
antes da divulgação
indicaram que todos os participantes que andaram no
dos testes do Niaid
parque apresentaram benefícios pulmonares significativos
e do Walter Reed, outra
e redução da rigidez das artérias uma hora após o término
vacina de DNA tinha
do exercício. Em muitos casos, os ganhos se estenderam
apresentado boas
por até 24 horas. Os exames, no entanto, indicaram que
perspectivas. Criada
a caminhada na zona mais poluída da cidade quase não trouxe ganhos de saúde ou produziu benefícios que se
pelas empresas GeneOne Life Sciences
3
prolongaram por apenas duas horas. PESQUISA FAPESP 262 | 13
Os 10 genes mais estudados
Número de Gene
artigos em que é citado
Uma das tarefas da
Agência norte-americana publicou documento de 31 páginas com orientações sobre o uso dessa tecnologia
Biblioteca Nacional de
TP53 8.479
Medicina dos Estados
Apresenta mutações
Unidos (NML) é classificar
em metade dos casos
os artigos científicos da
de câncer
base de dados PubMed. Desde os anos 1980, a NML tem catalogado papers que trazem informações sobre a estrutura, a função e a localização de um gene.
TNF 5.314 É alvo de possíveis terapias para câncer e doenças autoimunes EGFR 4.583
O bioinformata Peter
Com frequência sofre
Kerpedjiev, pós-
mutações em tumores
-doutorando que faz
resistentes a drogas
uma especialização na visualização de dados genômicos da Escola Médica da Universidade Harvard, nos Estados 1
Promove o crescimento dos vasos sanguíneos
Unidos, extraiu as
informações desse
APOE 3.977
levantamento sistemático e produziu, em parceria
FDA lança novas diretrizes para dispositivos médicos feitos por impressoras 3D
VEGFA 4.059
com o site da revista
Proteína envolvida no metabolismo de gorduras
Nature, uma lista dos genes humanos mais
IL6 3.930
estudados no período.
Interleucina 6 é uma
Dos cerca de 20 mil genes
proteína importante para a resposta do
A Food and Drug Administration (FDA), agência que regula
instruções para a
o comércio de alimentos e remédios nos Estados Unidos, pu-
produção de proteínas,
blicou em 5 de dezembro suas diretrizes técnicas atualizadas
apenas 100 são descritos
sobre a fabricação de produtos médicos em impressoras 3D,
em mais de um quarto
Regula a proliferação
área que julga extremamente promissora e de crescimento
dos artigos científicos
e a diferenciação
acelerado previsto para os próximos anos. Para formular as
catalogados. Entre os
celular
novas orientações, que se destinam à indústria e também
10 mais estudados, que
aos servidores da própria FDA, foram analisados mais de
aparecem em mais de 40
100 dispositivos confeccionados por meio dessa tecnologia
mil papers, destacam-se
Implicado no controle
cujo uso foi liberado no mercado norte-americano. Entre
genes que apresentam
do processamento dos
esses produtos figuram implantes de órgãos especialmente
alguma associação com o
desenhados para se encaixar na anatomia dos pacientes,
câncer ou com o sistema
como parte de um joelho, e até uma droga produzida em uma
imunológico. O gene
ESR1 2.864
impressora 3D para tratar convulsões cuja absorção pelo
TP53, que produz um
Fabrica receptor de
organismo é mais rápida do que medicamentos fabricados
fator de supressão
de forma convencional. “As novas diretrizes tornam mais
tumoral, foi citado em
claro o que os fabricantes de dispositivos médicos feitos com
quase 8.500 artigos
impressoras 3D devem incluir nos pedidos de submissão ao
e lidera o ranking (ver
FDA”, disse o médico Scott Gottlieb, diretor da agência, em
quadro). “A lista foi
comunicado divulgado para a imprensa. “Elas incluem nossa
surpreendente”, disse
visão sobre várias abordagens da impressão 3D, incluindo
Kerpedjie à Nature.
o desenho de dispositivos, teste de produtos em termos
“A presença de alguns
funcionais e de durabilidade e requerimentos para sistemas
genes era prevista; a de
para a sinalização
outros foi inesperada.”
celular
de controle de qualidade.” 14 | dezembro DE 2017
Fonte Peter Kerpedjiev /NCBI-NLM / Nature
sistema imunológico TGFB1 3.715
MTHFR 3.256
aminoácidos
estrógeno, alvo de estudos sobre câncer de ovário, mama e endométrio AKT1 2.791 Oncogene que produz proteína importante
ilustraçãO freepik fotos 1 Léo Ramos chaves, com produto da BioArchitects 2 Léo Ramos chaves
humanos que carregam
O peso das árvores nas emissões de metano da Amazônia
A produção do gás ocorre em áreas alagáveis
As árvores situadas em áreas alagáveis na Ama-
2
zônia emitem por ano mais de 20 milhões de
França “importa” 18 cientistas do clima
toneladas de metano (CH4), o equivalente ao que anunciou no início de
é emanado por todos os oceanos juntos (Nature,
dezembro que 18
4 de dezembro). A conclusão é de um grupo de
pesquisadores foram
pesquisadores da Universidade Aberta, do Reino
aceitos no programa
Unido, e de brasileiros de várias instituições,
Make Our Planet Great
entre eles a bióloga Luana Basso, do Instituto
Em junho, o presidente
Again. Os escolhidos vão
de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), e
Donald Trump anunciou
receber US$ 1,5 milhão
a química Luciana Vanni Gatti, do Laboratório de
a intenção dos Estados
para seus projetos de
Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de
Unidos de deixar o
pesquisa e cinco anos de
Pesquisas Espaciais (Inpe). O grupo analisou os
Acordo de Paris,
garantia no novo
índices de emissão de metano de 2.300 árvores
convenção internacional,
emprego. Dois terços dos
em regiões adjacentes aos rios Negro, Solimões,
patrocinada pelas
aprovados trabalhavam
Amazonas e Tapajós entre 2013 e 2014. Para isso,
Nações Unidas e
nos Estados Unidos.
eles instalaram pequenas câmaras em volta dos
assinada por quase 200
Os demais são da Itália,
troncos para coletar o ar. Ao analisar os índices de
países que tenta conter o
Espanha, Polônia, Índia,
concentração de CH4, verificaram que as espécies
avanço das mudanças
do Canadá e Reino Unido.
arbóreas emitiam 21,2 milhões de toneladas de
climáticas. O então
Em nota, o Sindicato
CH4 por ano. Os autores do trabalho explicam
recém-eleito presidente
Nacional dos
que as árvores funcionam como chaminés, ca-
da França, Emmanuel
Pesquisadores Científicos
nalizando o metano do solo submerso por meio
Macron, rapidamente
da França classificou a
dos troncos e liberando-o para a atmosfera. “Isso
ofereceu seu país como
iniciativa de Macron como
faz das árvores em regiões alagáveis uma das
uma alternativa de
uma jogada de marketing
principais fontes emissoras de metano da Ama-
trabalho para cientistas
e reclamou que “dar [aos
zônia”, explica Luana. O metano é um dos três
do clima que estivessem
cientistas de fora] uma
principais gases de efeito estufa. “Apesar de ser
descontentes com a
espécie de prioridade,
um processo natural da floresta, é importante
posição de Trump. Quase
sobretudo no que se
conhecer a dinâmica de produção desse e de
seis meses depois do
refere à remuneração,
outros gases para que possamos prever como a
chamado internacional, o
constitui um insulto aos
floresta se comportará em diferentes cenários de
governo francês
pesquisadores franceses”.
mudanças climáticas”, destaca Luciana. PESQUISA FAPESP 262 | 15
Equipe do WMAP, da Nasa, que fez mapa do céu sobre a radiação cósmica de fundo, foi um dos ganhadores
Os vencedores do prêmio Breakthrough
Três minutos por um pós-doc
sua toxicidade contra alvos distintos, como bactérias capazes de “comer” carne humana.
O biólogo Johan Seijsing,
Ele teve 180 segundos
Criado em 2012 por grandes empresários, como os
da Universidade de
para defender sua
donos do Google e do Facebook, o prêmio Break
Estocolmo, na Suécia,
proposta de pesquisa
through divulgou em 3 de dezembro os ganhadores
teve uma ideia que julgou
para um júri de oito
de 2018. Na área de física fundamental, os vencedo
promissora para a
acadêmicos e
res foram os 27 membros do Wilkinson Microwave
realização de pós-
empresários na etapa
Anisotropy Probe (WMAP), missão da Nasa que,
-doutorado: buscar na
final do Skolar Award,
desde 2001, tem realizado medições precisas na
natureza enzimas que,
competição realizada em
área de cosmologia. Uma de suas principais contri
com o auxílio de técnicas
1º de dezembro em
buições foi ter produzido o mais detalhado mapa do
moleculares, pudessem
Helsinque, na Finlândia.
céu sobre a radiação cósmica de fundo em micro
ser alteradas para
Seijsing venceu a disputa
-ondas, um resquício da luz do Cosmo logo após o
combater bactérias
com outros nove
Big Bang. Os participantes vão dividir o prêmio de
específicas. Para ajudar
candidatos e ganhou a
US$ 3 milhões. A láurea de matemática foi partilhada
na procura por novos
quantia de € 100 mil para
por Christopher Hacon, da Universidade de Utah,
antibióticos por meio
tocar seu pós-doutorado.
e James McKernan, da Universidade da Califórnia
dessa estratégia,
A edição de 2018 foi a
em San Diego. Ambos são matemáticos da área de
Seijsing pretende
terceira do Skolar Award,
montar um grande
cujo prêmio é bancado
arquivo com amostras
por seis fundações de
de diferentes variantes
pesquisa finlandesas.
de enzimas e testar
A competição ocorre
geometria algébrica. Cada um recebeu metade do valor em dinheiro da honraria. O prêmio de ciên cias da vida destacou cinco vencedores, cada um ganhou US$ 3 milhões: Joanne Chory, do Instituto Salk (por trabalhos sobre mecanismos moleculares
O biólogo Johan Seijsing venceu o Skolar Award e recebeu € 100 mil para sua pesquisa
durante o Slush, o maior
envolvidos na fotossíntese); Don W. Cleveland, do
evento de startups da
Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer que
Escandinávia. “Um
funciona na Universidade da Califórnia em San Diego
dos nossos objetivos é
(patogenicidade de um tipo hereditário de esclerose
estreitar a distância
lateral amiotrófica); Kim Nasmyth, da Universidade
entre a comunidade
de Oxford, no Reino Unido (separação deletéria de
acadêmica e as startups”,
cromossomos duplicados durante a divisão celular);
disse Annina Huhtala,
Kazutoshi Mori, da Universidade de Kyoto, no Japão,
cofundadora do
e Peter Walter, da Universidade da Califórnia em
KasKas Media, que
São Francisco (ambos por elucidar o mecanismo de
organiza a premiação,
resposta a proteínas mal enoveladas, uma espécie de sistema de controle de qualidade das células). 16 | dezembro DE 2017
ao Times Higher 1
Education.
Uma cola contra lesões oculares Um hidrogel concebido por pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos, e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) poderá auxiliar no tratamento
Cerâmicas de sítios arqueológicos de Santarém trazem figuras híbridas de pessoas e animais
inicial de lesões em que o globo ocular é cortado ou perfurado (Science Translational Medicine, 6 de dezembro). Em geral, nas primeiras horas após acidentes desse tipo, a pressão intraocular despenca, aumentando o risco de cegueira. Ela cai de cerca de 15 milímetros de mercúrio, unidade que mede a pressão ocular, para quase zero. No estudo, os pesquisadores criaram um polímero sensível à variação térmica. Em baixas temperaturas, ele se
Pequenas aldeias pré-coloniais da região Norte eram independentes
ilustraçãO NASA / WMAP Science Team fotos 1 Skolar Award 2 edivaldo pereira
mantém em estado líquido. Mas, ao entrar em contato
Um trabalho da arqueóloga Denise Maria Cavalcante Gomes,
com a temperatura da
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende a
superfície do olho, de cerca
ideia de que os povos ameríndios que viveram entre os anos
de 30 graus Celsius,
1000 e 1600 na região onde hoje está Santarém, no oeste do
solidifica-se, comportando-
Pará, tinham sociedades complexas com alguma organização
-se como uma cola.
sociopolítica, marcada pela existência de chefias emergen
“O objetivo é fechar a
tes, mas não chegaram a viver sob um poder centralizado
ferida e restabelecer a
(Cambridge Archeological Journal, maio de 2017). Entre 2006
pressão ocular logo após
e 2016, a pesquisadora estudou a disposição e a estrutura
o acidente”, explica o
de 30 sítios arqueológicos dispersos por uma área de 500
oftalmologista Paulo
quilômetros quadrados e analisou a iconografia de cerâmicas
Falabella, da Unifesp.
encontradas na região e relatos etno-históricos de cronistas
“Depois, quando o
que passaram pela Amazônia entre os séculos XVI e XVII.
paciente é submetido à
Onde hoje fica o centro de Santarém, existiam duas grandes
cirurgia, o médico espalha
aldeias que, no passado, eram separadas por um lago, hoje
uma substância gelada
aterrado. De acordo com datações de carbono 14, elas foram
sobre a cola, que volta a
contemporâneas e exibiam grande densidade demográfica.
ser líquida e removível.
Suas populações se relacionavam, caçavam e pescavam à
Desse modo, ele pode
beira do rio Tapajós. Segundo Denise, houve no século XIV,
suturar a área afetada.”
nessas duas aldeias, uma explosão demográfica que gerou
A estratégia apresentou
conflitos e distinções sociais entre seus habitantes. Esse ce
bons resultados em
nário teria motivado a dispersão de parte de seus moradores
experimentos em coelhos
por vilarejos menores e independentes. “As cerâmicas de
com lesões oculares e
todos os sítios contêm figuras híbridas de gente e animais,
deverá ser testada em
o que remete à noção de transformação corpórea, aludindo
humanos em até dois anos.
à ideia de instabilidade”, comenta a arqueóloga.
2
PESQUISA FAPESP 262 | 17
capa
Para tirar as
cidades
do pronto-socorro
Marginal do rio Pinheiros: ciclovia, ferrovia e vegetação isoladas por via expressa
18 | dezembro DE 2017
Transformar áreas urbanas em ambientes de promoção da saúde exige trânsito da pesquisa às políticas públicas
Texto
Maria Guimarães
Fotos
Léo Ramos Chaves
V
ias congestionadas, temperatura elevada, entraves sociais. A descrição de uma cidade grande pode ser facilmente percebida como a de um organismo doente. Da mesma maneira, suas células – os moradores da cidade – tendem a ser igualmente malsãs. A mobilidade (ou a sua falta) é a faceta das cidades que congrega os problemas mais aparentes. Os veículos motorizados conduzem ao sedentarismo e são responsáveis por boa parte das emissões de poluentes que causam uma série de malefícios. A dificuldade de locomoção resultante do excesso de carros aumenta a exposição à poluição e reduz o tempo que poderia ser dedicado à vida social e ao usufruto da própria cidade. É um entroncamento problemático, mas a boa notícia é que ele pode ser encarado como rumos para soluções, e não como fatalidade. “Em São Paulo há um enorme espaço para melhoria em transporte, habitação e desenho urbano”, ressalta o especialista em saúde pública Thiago Hérick de Sá. Pesquisador associado do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP), coordenado pelo médico Carlos Augusto Monteiro, Sá agora trabalha na Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, onde busca pôr a teoria em prática. PESQUISA FAPESP 262 | 19
A preocupação com a saúde das cidades não é trivial. As áreas urbanas somam menos de 1% do território brasileiro e abrigam 84% da população, um dos índices mais altos do mundo. O município de São Paulo tem, porém, uma particularidade. Apenas 10% dos 12 milhões de paulistanos vivem no chamado centro expandido, que oferece uma infraestrutura melhor para locomoção a pé, de bicicleta ou transporte público. Os demais 90% têm que atravessar longas distâncias dependendo de um transporte ineficaz, na maior parte dos casos, ou enfrentando engarrafamentos pesados.
N
ão à toa, tanto o Plano Diretor da cidade aprovado em 2014 como o plano estratégico “São Paulo 2040: a cidade que queremos” traçam estratégias para tornar o transporte mais inclusivo, menos individual e menos motorizado. Com base nessas propostas, Sá considerou um cenário em que a maior parte dos percursos não demora mais do que meia hora e é feita em grande parte a pé, de bicicleta e com 70% das viagens motorizadas em transporte público. Esse quadro, comparado a alternativas vigentes em São Paulo ou em cidades de outros países, poderia evitar 1.224 mortes por ano atribuídas à inatividade física (doenças cardiovasculares, alguns tipos de câncer, diabetes, demência e depressão) e outras 406 por efeitos diretos da poluição atmosférica, sobretudo por problemas cardiovasculares, de acordo com resultados publicados em novembro na revista Environment International. Conhecido como Análise de Risco Comparativo, esse tipo de cenário contabiliza os anos de vida perdidos em diferentes situações incluindo aqueles vividos com incapacidade em caso de acidente. Os resultados sugerem que o investimento a ser feito para melhorar as condições de transporte
seriam inferiores aos custos decorrentes de morte e incapacitação. “A preocupação com saúde não costuma fazer parte das políticas públicas e isso leva a mais mortes e custos maiores”, afirma Sá. Imobilidade
De acordo com os dados publicados na revista Lancet em 2016, um a cada três adultos e quatro de cada cinco adolescentes no mundo não atingem os níveis de atividade física recomendados para promoção da saúde e prevenção de doenças: 150 minutos por semana de atividade moderada ou vigorosa, ou 75 minutos por semana de atividade vigorosa. A partir de dados do Inquérito de Saúde do Município de São Paulo de 2015, o epidemiologista Alex Florindo, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP), avaliou o impacto
serviços e pessoas Dos 12 milhões de habitantes do município de São Paulo, apenas 10% vivem na região do centro expandido, onde a infraestrutura é melhor (em vermelho no mapa)
Praia no largo da Batata: movimentos de cidadãos ocupam espaços públicos 20 | dezembro DE 2017
Parque Minhocão no domingo (acima) e praça em cima do Centro Cultural São Paulo (à dir.): espaços inusitados
obesidade e atividade física Um de cada três adultos e quatro de cada cinco adolescentes no mundo não atingem os níveis de atividade física recomendados para combater os danos à saúde ligados à obesidade:
150 min/semana atividade moderada ou vigorosa ou
75 minutos por semana de atividade vigorosa
de parques, praças e ciclovias na propensão dos paulistanos de praticar atividades físicas, especificamente caminhadas. Os resultados, publicados em junho na revista International Journal of Environmental Research and Public Health, indicam que ter ao menos dois desses tipos de espaços públicos em um raio de até 500 metros (m) de casa aumentam as chances de as pessoas praticarem atividade física no tempo de lazer – especialmente praças e ciclovias. Essa disponibilidade é, porém, um privilégio de apenas um terço dos habitantes da cidade. Um quinto dos paulistanos não tem nenhuma dessas estruturas perto de casa. A presença de uma ciclovia aumenta em 55% a chance de caminhadas no tempo de lazer. Uma extensão do estudo, apresentada em agosto no Congresso Internacional de Epidemiologia no Japão, acrescenta que quem mora a até 500 m de uma ciclovia tem mais chance de pedalar como meio de transporte, e que a existência de estações de metrô ou trem dentro de um raio de 1 quilômetro (km) de casa está associada à locomoção a pé. “Isso vale para qualquer região da cidade, é preciso fazer mais estruturas com uma distribuição equânime”, diz Florindo. “Sem a contribuição do ambiente, não é possível melhorar o quadro de sedentarismo.” Parte disso é reduzir o calor, muitas vezes letal, por meio da arborização. “Nas cidades brasileiras a regra é a invasão do asfalto e do concreto em detrimento da natureza”, alerta a geógrafa Magda Lombardo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
em Rio Claro. No seu doutorado, defendido em 1985, ela mostrou que as áreas mais quentes de São Paulo chegam a ser 10 graus Celsius (°C) mais quentes do que as mais frescas. De lá para cá, o contraste aumentou para 15 °C. Segundo ela, a temperatura é 4 °C maior em avenidas movimentadas e um centro comercial pode representar um incremento de 2 °C na área que ocupa.
F
lorindo ressalta que cabe ao poder público providenciar o ambiente construído que abre possibilidades à população. O Plano Diretor de 2014 busca justamente diminuir iniquidades no ambiente e considera as ciclovias como centrais nesse processo. Uma estudante de seu grupo avaliou o uso da ciclovia da avenida Faria Lima – a mais movimentada da capital paulista, na zona oeste – e notou o incremento do uso ao longo de um ano. Outro integrante de sua equipe está examinando a viabilidade do parque Minhocão para atividades de lazer no elevado João Goulart, na zona central. O extenso e inóspito viaduto tem o trânsito de carros interrompido à noite e nos fins de semana, abrindo espaço para uma diversidade de atividades artísticas, esportivas e sociais. Já foi aprovada a lei que o transforma em parque permanente. Durante o Congresso Brasileiro de Atividade Física e Saúde, que aconteceu em novembro em Florianópolis, Santa Catarina, ficou claro que o desafio do momento são as intervenções urbanas. Florindo reuniu uma equipe multidisciplinar para estudar o que induz ou coíbe a atividade física na cidade, com especialistas em economia, geografia, epidemiologia e arquitetura, além da participação da sociedade. Mais difícil é chegar à tomada de decisão: a maior parte dos pesquisadores sente dificuldade no diálogo com gestores PESQUISA FAPESP 262 | 21
e tomadores de decisão para pôr em prática o conhecimento gerado pela pesquisa. Um experimento natural veio do programa Academia da Cidade, instaurado em 2006 no Recife, Pernambuco, para oferecer oportunidades gratuitas de atividade física orientada por profissionais. Diante do sucesso, em 2008 a iniciativa foi expandida para 184 cidades no estado, ganhando o nome de Academia das Cidades. Um grupo liderado pelo epidemiologista pernambucano Eduardo Simões, professor na Universidade do Missouri, Estados Unidos, avaliou os resultados da iniciativa em 80 cidades em 2011, 2012 e 2013. Os resultados, publicados em outubro na revista Preventive Medicine, revelaram um efeito significativo em mulheres e mostraram a importância de iniciativas de longo prazo: em cidades nas quais o programa estava em andamento por menos de três anos, aumentou em 9% a chance de as mulheres participantes atingirem o nível de atividade física recomendado pela OMS. Quando a oportunidade se prolongava por mais anos, o benefício aumentava para 46%. Em 2011, rebatizado como Academia da Saúde, o programa foi expandido para outras partes do Brasil. “Ele passou de um programa de promoção de atividade física para promoção da saúde em geral e acabou perdendo o foco”, critica Rodrigo Reis, especialista em saúde pública e planejamento 22 | dezembro DE 2017
urbano e professor da Universidade Washington em Saint Louis, Estados Unidos. Coautor do estudo da Preventive Medicine, ele lamenta que o programa tenha sido alterado antes que se tivesse cumprido o ciclo para avaliar o impacto. “A decisão de mudar não foi baseada em evidências.”
A
té 2016, enquanto professor do Programa de pós-graduação em Planejamento Urbano da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Reis participou de avaliações da prática de atividade física em Curitiba e outras cidades, como Vitória, no Espírito Santo, em diferentes faixas etárias. Fatores como boas calçadas, com iluminação pública, transporte e segurança, promovem a atividade física. Seu desafio, agora, é aplicar em Saint Louis o que aprendeu no Brasil em termos de pesquisa que apoia mudanças reais. “O contexto racial, político e social é mais complexo, com mais desigualdades”, compara. “A cidade teve um planejamento que resultou na segregação da população negra, que também é a mais pobre.” Ele está estudando o planejamento da expansão da rede de metrô de superfície em Saint Louis. “Avaliamos com vários métodos como o transporte público afeta a qualidade de vida e facilita o acesso ao trabalho, a hospitais, a estruturas de lazer.” Na conta entra a necessidade de cada comunidade, os tempos de caminhada, as taxas de
Ciclovia da av. Pedroso de Morais: uso de bicicletas promove atividade física e reduz emissões
problemas no ar A poluição atmosférica está por trás de
16% das mortes no mundo ou
9 milhões de mortes prematuras É um número
15x maior do que o de vítimas de
guerras e de violência em outros contextos Isso significa
1/3 dos casos de mortes por
câncer do pulmão, AVC, doença cardiovascular e doença pulmonar obstrutiva crônica
uso de bicicleta como transporte e a distância ideal entre estações. Reis explica que o encontro entre saúde pública e urbanismo é uma área em crescimento no mundo. “Há 20 anos era incomum pensar nisso, mas hoje não é mais moda: é necessidade”, afirma. A ótica do especialista em saúde pública é diferente, por exemplo, da do engenheiro de tráfego que precisa se preocupar em como as pessoas podem ir de um ponto a outro com segurança. “O que é melhor para a cidade? E para a saúde da população?”, questiona. Reis defende que a cidade precisa oferecer as alternativas para que cada pessoa possa optar por seu próprio modelo de lazer, transporte e atividade física. “É preciso que o cidadão perceba que ele transforma e modela a cidade quando entra no ônibus ou quando dirige.” O contexto das grandes cidades, das quais São Paulo é um exemplo emblemático, exige longos trajetos diários que levam a um sedentarismo compulsório e a horas de sono perdidas. “Quando a cidade se torna um obstáculo, impede que as pessoas se encontrem”, ressalta o médico Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP. O resultado é um quadro preocupante de obesidade em todas as idades, inclusive crianças. Para ele, é necessária uma mudança de cultura. “A proporção de paulistanos fumantes caiu de 40% nos anos 1960 para 12%
hoje, mas não porque as pessoas pararam de fumar”, afirma. “A nova geração retirou o valor do cigarro em termos de simbologia. O mesmo está acontecendo com o carro: hoje a posse é menos importante que o uso.” Sem fôlego
Um estudo do grupo de Saldiva ainda não publicado calculou, a partir de autópsias em pulmões de paulistanos, que cada duas horas em um carro no trânsito correspondem a um cigarro fumado. “A imobilidade aprisiona a pessoa no pior lugar para se estar”, alerta. A poluição atmosférica está por trás de 16% das mortes no mundo (ou 9 milhões de mortes prematuras), de acordo com levantamento feito pela iniciativa Carga de Doença Global, sediada na Universidade Washington em Seattle, Estados Unidos. É um número 15 vezes maior do que o de vítimas de guerras e de violência em outros contextos. A campanha Breathe Life, da OMS e da Organização das Nações Unidas (ONU) Meio Ambiente, detalha que isso significa por volta de um terço dos casos de mortes por câncer de pulmão, por acidentes vasculares cerebrais (AVCs), por doença cardiovascular e por doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). As cidades que aderem à campanha ( já são 37, nenhuma brasileira) assumem compromissos para reduzir a poluição do ar em busca de atingir a meta da OMS de 10 microgramas de material particulado 2,5 (MP2,5) por metro cúbico de ar (µg/m3). Trata-se do componente das emissões considerado mais perigoso para a saúde, por entranhar-se no sistema respiratório com grande capacidade de causar problemas. São Paulo, com um índice de 19 µg/m3
Ginástica para idosos na praça do Coco: atividades organizadas reduzem sedentarismo PESQUISA FAPESP 262 | 23
de exposição anual ao MP2,5, está 90% acima da meta internacional. No Brasil inteiro, de acordo com dados divulgados pela campanha, mais de 26 mil pessoas morrem por ano em consequência da poluição, a maior parte por cardiopatia isquêmica. O transporte ativo (a pé ou de bicicleta) é a melhor maneira de reduzir os danos causados pelo ar poluído – mesmo que o exercício físico faça a pessoa respirar mais, de acordo com estudo liderado pelo epidemiologista Marko Tainio, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, publicado em 2016 na revista Preventive Medicine. O estudo, que contou com a participação de Thiago Hérick de Sá, afirma que mesmo em áreas poluidíssimas, com concentrações de 100 µg/m3 de MP2,5, seria necessário pedalar mais de 1,5 hora por dia ou caminhar 10 horas para que a exposição ao particulado causasse danos maiores do que os benefícios do exercício. Isso se a alternativa fosse ficar em casa. Comparado a dirigir, o transporte ativo se torna ainda mais vantajoso.
redução do mp2,5 em São Paulo evitaria
5 mil mortes e economizaria
US$ 15 bilhões/ano se atingisse a meta da OMS
Ambiente construído
N
a escala individual, os números não impressionam. A fisioterapeuta Laís Fajersztajn, do Programa USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA), fez um levantamento de estudos latino-americanos e encontrou um aumento de apenas 2% no risco de morte por problemas respiratórios e 1% por doença cardiovascular, associados a níveis altos de MP2,5, como mostra artigo de setembro na revista International Journal of Public Health. “O cigarro tem um impacto muito maior”, explica. “Mas só vale para quem fuma, enquanto toda a população está sujeita aos poluentes do ar.” Para ela, o aspecto mais importante de seus resultados foi perceber que estão em linha com o que foi encontrado em outros países, inclusive os de maior renda. “Não é 24 | dezembro DE 2017
preciso refazer o que já foi feito, o que falta é melhorar os dados, medir a concentração de MP2,5 de maneira mais disseminada para traçar padrões.” Em busca de aumentar essa consciência e conclamar esforços para mais estudos sobre a poluição e seus efeitos, a revista médica Lancet lançou em outubro deste ano uma Comissão sobre Poluição e Saúde e pretende informar os formuladores de políticas sobre os custos econômicos e sociais associados ao problema. Os custos monetários são o foco da engenheira Simone Miraglia, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Usando a técnica de Análise de Impacto em Saúde (AIS), a biomédica Karina Abe estimou – durante doutorado na Unifesp orientado por Simone e coorientado por Saldiva – que São Paulo evitaria 5 mil mortes e economizaria US$ 15 bilhões por ano se atingisse a meta da OMS para redução do MP2,5, conforme publicou em 2016 na revista International Journal of Environmental Research and Public Health. “O que se pode fazer com mais tempo de vida?”, provoca a economista. Como os veículos motorizados são os principais emissores de poluentes, ela vem buscando maneiras de fazer a valoração econômica da ação contraposta à não ação. Nesse contexto, a bióloga Luciana Leirião, estudante de mestrado no grupo de Simone, calculou um cenário em que os carros mais velhos de São Paulo seriam substituídos por mais novos. Os dados, ainda não publicados, indicaram uma relevante queda na poluição ambiental. “Deveria haver um programa de incentivo para a renovação da frota, com cortes de impostos e inspeção veicular”, sugere Simone.
Praça Victor Civita (acima), onde por décadas funcionou um incinerador de lixo, recupera área para cidadão
Solucionar esses problemas requer pensar as cidades para as pessoas. Algumas regiões de São Paulo são cortadas por viadutos, vias férreas e rios que isolam em vez de conectar e tornam impossível o trânsito a pé. “Muitas cidades do mundo estão elaborando planos estratégicos, que devem ser harmônicos com o plano diretor”, afirmou o engenheiro Miguel Bucalem, da Escola Politécnica da USP, durante seminário no programa Cidades Globais do IEA. Ele esteve à frente da elaboração do plano São Paulo 2040 na prefeitura de São Paulo, entre 2007 e 2012, e ressalta que é necessário envolver as esferas social, econômica, urbana e ambiental. “A ideia é ter cidade em toda São Paulo: compacta, policêntrica, equivalente.” Um caso reconhecido no Brasil é Fortaleza, no Ceará, desde 2013 gerida pelo médico Ro-
berto Cláudio Bezerra. “O debate em torno da saúde raramente considera o bem-estar na cidade como uma caracterização do direito real à saúde”, afirma. Por isso, ele decidiu privilegiar a cidade como espaço de promoção da saúde por meio de iniciativas centradas em urbanismo e mobilidade, favorecendo o transporte coletivo ou ativo, buscando a redução da poluição e aumentando a segurança viária. Em novembro sua gestão comemorou a redução do número de mortes por acidentes de trânsito, que em 2016 ficou abaixo de 300 pela primeira vez desde 2002, a partir de uma série de medidas estimuladas pela parceria com a Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária, de Nova York. “Um estudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] em 2003 estimou o custo por acidentes de trânsito no Brasil, e Fortaleza chegava a R$ 720 milhões por ano”, diz Luiz Alberto Sabóia, secretário-executivo da Secretaria de Conservação e Serviços Públicos da capital cearense. Ele relata que um terço dos leitos de hospital da cidade é ocupado por acidentes de trânsito, 90% deles entre os vulneráveis: pedestre, ciclista, motociclista. “Fomos educados a ver como fatalidade, mas é um custo evitável, uma questão epidemiológica.” Em seu segundo mandato como prefeito, Roberto Cláudio afirma não ter mais dificuldades em implementar corredores de ônibus ou ciclo-
faixas. “Conseguimos uma mudança de cultura.” Hoje a cidade tem mais de 250 km de vias para bicicletas, a partir de 68 km em 2013, e por volta de 100 km de corredores exclusivos de ônibus – que mais do que duplicaram a velocidade média. Outra iniciativa são bicicletas disponíveis gratuitamente dentro de terminais de ônibus. A ideia é ajudar quem mora em áreas distantes a percorrer a última milha para chegar em casa, pernoitando com a bicicleta em um período de até 14 horas. “Instituímos um observatório da segurança viária em parceria com universidades locais e dos Estados Unidos”, relata o prefeito de Fortaleza. Um exemplo da parceria foi o estudo conduzido pelo grupo de Sudha Ram, especialista em gerenciamento de sistemas de informação da Universidade do Arizona (onde Roberto Cláudio fez doutorado), usando os dados gerados pelo sistema de bilhete único para analisar os percursos dos passageiros e sugerir ajustes na rede de ônibus. “A parceria ajudou a perceber novos aspectos das políticas públicas, como monitorar velocidades operacionais nos corredores e potencializar a implantação de bicicletas compartilhadas e sua integração para os usuários de ônibus”, comenta Sabóia. Um bom exemplo de pesquisa e prática que se informam mutuamente. n Os projetos e artigos citados nesta reportagem estão listados no site.
Telhado verde do Shopping Eldorado usa sobras de alimentos em horta e ameniza temperatura interna
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Ondas de calor Mais intensas, longas e frequentes Temperaturas mais elevadas aumentam mortalidade em todo o mundo
Reinaldo José Lopes e Carlos Fioravanti
26 | dezembro DE 2017
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s 3 da tarde de 11 de setembro de 2017, uma segunda-feira do final do inverno, a temperatura na capital paulista chegou a 31,9 graus Celsius (ºC), a mais alta da estação que deveria ser a mais fria do ano. Como o inverno do ano anterior já tinha chegado a 33 ºC, os moradores da maior cidade do país tiveram de conviver outra vez com o desconforto causado pelo sol forte, calor intenso e ar seco – a umidade relativa do ar caiu para 28% nesse dia de setembro. No mesmo dia, a cidade de Jales despontou como a mais quente e seca desse inverno no interior paulista, com 37,2 ºC e umidade do ar de 13%. Esse fenômeno climático é conhecido como onda de calor, uma sequência de ao menos três dias consecutivos com temperaturas máximas ou mínimas mais altas do que as esperadas para a mesma
região e para a mesma época do ano. Embora relatado há décadas, o também chamado été Indien (calor indiano) tem se tornado cada vez mais frequente, intenso e duradouro. Em um estudo comparativo entre seis capitais brasileiras, entre 1961 e 2014, Brasília foi a cidade que apresentou ondas de calor mais longas, com 20,5 dias de duração a cada ano, quase o triplo da cidade do Rio de Janeiro. Manaus lidera em número de dias com ondas de calor, 39 dias por ano em média, ainda que mais breves que as das outras cidades, segundo o estudo publicado em setembro na revista International Journal of Climatology. Em São Paulo, os períodos de calor extremos não chegavam a 15 dias por ano durante as décadas de 1960 e 1970, mas saltaram para cerca de 40 dias em 2010 e 50 dias em 2014 (ver gráficos nas páginas 28 e 29).
léo ramos chaves
Parque do Ibirapuera, São Paulo, novembro de 2017: frequentadores se refrescam para diminuir o desconforto
As ondas de calor estão também ligadas a ciclos climáticos naturais – a umidade e as chuvas assíduas na região de Manaus, por exemplo, variam de acordo com a oscilação de uma faixa de nuvens de tempestade conhecida como Zona de Convergência Intertropical –, mas podem também ter outras causas. “O aumento da duração, intensidade e frequência desse fenômeno climático refletem o acréscimo da temperatura média global decorrente da elevada emissão de gases do efeito estufa e é exacerbado, em parte, pelas ilhas de calor [áreas urbanas que aprisionam o calor e tor-
nam a temperatura mais alta que os arredores]”, diz a meteorologista Renata Libonati, professora do Departamento de Meteorologia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coautora do estudo. Segundo ela, a construção de prédios e a pavimentação das ruas fazem com que as superfícies urbanas absorvam mais radiação solar do que o solo e a vegetação. Por sua vez, a falta de áreas verdes impede que as cidades liberem o excesso de calor por meio da evaporação e da transpiração das árvores. “É muito provável que as mudanças climáticas globais causadas pela ação humana e o aumento das ondas de calor estejam ligadas”, diz Renata. Os climatologistas alertam há anos que as mudanças climáticas se manifestam não somente por meio de um aumento con-
tínuo da temperatura, mas por eventos extremos ocasionais, como ondas de calor e secas mais intensas e prolongadas, como a registrada atualmente no Nordeste brasileiro, iniciada em 2010 (ver Pesquisa FAPESP nº 249). Os dias não estão mais abrasadores apenas no Brasil. A Organização Meteorológica Mundial (WMO) atribuiu a uma onda de calor o recorde de temperatura de 54 ºC registrado em 21 de julho de 2016, em Mitrabah, no Kuait, e de 53,9 ºC em Basra, no Iraque, no dia seguinte. Ao mesmo tempo, uma ampla onda de calor atingia os Estados Unidos, com temperaturas entre 35 ºC e 38 ºC; no auge do verão no hemisfério Norte, em 22 de julho, o serviço de meteorologia norte-americano estimou que 124 milhões de pessoas estavam sob a onda excessiva de calor. PESQUISA FAPESP 262 | 27
Dois meses muito quentes por ano São Paulo, Manaus e Recife apresentaram o crescimento mais acentuado no número de dias por ano com ondas de calor de 1961 a 2014 50 Total de dias com ondas de calor
Esse fenômeno climático deve se intensificar neste século em todo o mundo, de acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), aumentando o desconforto das pessoas e o risco de mortalidade, principalmente de crianças e idosos. As ondas de calor deixaram cerca de 70 mil mortos na Europa em 2003, 10 mil na Rússia em 2010 e pelo menos 2.300 na Índia em 2015. “Essa temática é muito abordada no hemisfério Norte, mas ainda pouco no Brasil, apesar dos graves efeitos das ondas de calor sobre a saúde, principalmente das faixas mais vulneráveis da população”, diz Renata.
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Nos últimos anos na China, em consequência do calor excessivo, a mortalidade total causada por ondas de calor com duração de cinco dias aumentou 18%, a de idosos, 24% e a de mulheres, 22%. “Crianças e idosos são os grupos mais suscetíveis à variação térmica por causa da baixa capacidade de manter a temperatura corporal”, explica o epidemiologista Nelson Gouveia, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Segundo ele, pessoas com nível educacional mais baixo e viúvos também parecem estar sob risco ligeiramente mais alto do que a média da população durante esses eventos, o que talvez possa ser explicado pela menor probabilidade de procurarem ajuda médica quando necessário. “As ondas de calor antecipam mortes de pessoas vulneráveis”, sintetiza o economista Paulo Henrique Cirino Araújo, professor da Universidade Federal de Goiás. Em sua pesquisa de doutorado, concluída em 2017 na Universidade Federal de Viçosa, ele observou que, durante uma onda de calor, o total de mortes de crianças de até 5 anos internadas com infecções ou doenças parasitárias – principalmente dengue – aumentou de 24% a 30% em Mato Grosso, Goiás, São Paulo e no Tocantins, que apresentaram as ondas de calor mais intensas durante o período analisado, de 2008 a 2013. Em contrapartida, as internações por bronquite, pneumonia e outras doenças apresentaram uma redução de até 8%, no Rio Grande do Sul, durante as ondas de calor. Nas 27 capitais brasileiras, de acordo com seu estudo, os gastos extras anuais com internações hospitalares de
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crianças causadas por apenas uma onda de calor podem chegar a R$ 14,5 milhões. Os efeitos são diferenciados por classes socioeconômicas: 75% das crianças internadas vivem em domicílios relativamente pobres. O Brasil se mostrou vulnerável em um estudo comparativo entre 400 cidades de 18 países, publicado em agosto de 2017 na revista Environmental Health Perspectives, que indicou um aumento do risco de mortalidade proporcional à intensidade da onda de calor. Nesse estu-
Fonte Geirinhas et al., 2017
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do, que analisou um total de 26 milhões de mortes de 1972 a 2012, os efeitos das ondas de calor sobre a mortalidade apareceram imediatamente e duraram de três a quatro dias na maioria dos países examinados, exceto Itália e Espanha, onde o efeito persistiu por mais tempo. Como a Austrália, o Brasil apresentou um risco de morte de 5% a 10% maior, dependendo da severidade do calor. “O estudo mostra apenas a ponta do iceberg, porque não considera as pessoas que não morrem ou não procuram
o hospital por terem se sentido mal em consequência do calor intenso”, observou a meteorologista Micheline Coelho, pesquisadora da FM-USP e coautora do estudo. Nesse trabalho, as ondas de calor apresentaram uma associação mais clara com a mortalidade em regiões de frio e calor moderados, como o Sudeste do Brasil, do que em áreas mais quentes ou frias. Diante da mortalidade causada pelas ondas de calor em vários países, o biólogo colombiano Camilo Mora, professor da Universidade do Havaí em Ma-
Artigos científicos GUO, Y. et al. Heat wave and mortality: A multicountry, multicommunity study. Environmental Health Perspectives. v. 125 (8), p. 1-11. 2017. GEIRINHAS, J. L. et al. Climatic and synoptic characteri zation of heat waves in Brazil. International Journal of Climatology. On-line, 19 set. 2017. MORA, C. et al. Twenty-seven ways a heat wave can kill you: Deadly heat in the era of climate change. Circulation: Cardiovascular Quality and Outcomes. v. 10 (11), p. 1-6. 2017.
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Versão atualizada em 07/02/2018
Rio de Janeiro 50
noa, argumenta que os mecanismos de termorregulação – a capacidade de se adequar à variação de temperatura – do organismo humano poderiam ser incapazes de lidar com ondas de calor mais intensas. Em um artigo publicado em novembro de 2017 na revista Circulation: Cardiovascular Quality and Outcomes, Mora e outros pesquisadores das universidades Yale e Cornell, também dos Estados Unidos, apresentaram 27 formas de morrer em consequência do calor excessivo – por infarto, coagulação sanguínea, incapacidade respiratória ou danos no cérebro, rins, pâncreas e outros órgãos. Todo o organismo, argumentam os autores desse estudo, pode ser prejudicado pela escassez de oxigênio resultante da dilatação dos vasos sanguíneos, que direciona o sangue para a periferia do corpo como forma de dissipar o calor para o ambiente. Altas temperaturas são devastadoras também para animais de criação. De acordo com um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em granjas, as ondas de calor podem causar uma mortalidade de 34% das aves. “Políticas que possibilitem a adaptação ao calor extremo e promovam conforto térmico são fundamentais para contornar os efeitos causados pelas ondas de calor”, sugere Araújo. Um guia dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos (bit.ly/extguidebook) recomenda que as pessoas – principalmente crianças e idosos, os mais vulneráveis – evitem a exposição direta ao calor excessivo, permaneçam em ambientes com ar-condicionado, hidratem-se, usem roupas leves e de cor clara, não consumam refeições pesadas e quentes e conheçam os sintomas de doenças agravadas pela temperatura elevada. Segundo os CDC, é importante também não deixar crianças ou animais domésticos sozinhos em carros, que aquecem rapidamente sob o sol forte. Como medida mais ampla, o guia recomenda o plantio de árvores. n
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entrevista Elza Berquó
Marcas do pioneirismo na demografia Pesquisadora que revelou as mudanças no comportamento reprodutivo do brasileiro quer saber mais sobre os jovens Neldson Marcolin |
idade 92 anos especialidade Demografia formação Graduação em matemática na PUC-Campinas (1947), doutorado em bioestatística pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos (1958) instituição Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) produção científica Cerca de 100 artigos científicos e 26 livros escritos ou organizados
retrato
Léo Ramos Chaves
E
lza Salvatori Berquó é uma especialista em estatística e demografia que tem um gosto especial em abrir frentes de pesquisa inesperadas. Foi assim quando estudou a reprodução humana na cidade de São Paulo, em meados dos anos 1960, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), e observou pela primeira vez uma queda na fecundidade das mulheres paulistanas. E continua assim ao instar, em maio deste ano, os pesquisadores do Núcleo de Estudo de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp) a mergulharem em um novo projeto para entender o suicídio de adolescentes, que estaria crescendo em todo o mundo. Colecionadora de prêmios e homenagens, em 8 agosto deste ano Elza recebeu aquela que considerou definitiva. O auditório do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), de São Paulo, recebeu o seu nome. “Essa homenagem do Cebrap era o que faltava para mim”, diz. “Agora não falta mais nada.” Em 2014 o Nepo, criado por ela em 1982, fez algo parecido e incorporou o nome da demógrafa ao do núcleo. Recentemente, a Editora Unicamp lançou Demografia na Unicamp – Um olhar sobre a produção do Nepo, organizado por ela. A felicidade de Elza tem razão de ser. Quando foi compulsoriamente aposentada pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 1968, ela se viu sem chão. Suas pesquisas na FSP foram interrompidas e ela proibida de entrar na instituição. No ano seguinte, veio a alegria ao receber o convite para ser uma das fundadoras do Cebrap juntamente com Fernando Henrique PESQUISA FAPESP 262 | 31
Cardoso, José Arthur Giannotti, Cândido Procópio Ferreira de Camargo [19221987] e poucos outros. “Ela chegou com um projeto definido, já sabendo o que ia fazer e nos mostrou a revolução que estava acontecendo na reprodução dos brasileiros”, lembrou Giannotti durante a homenagem. Elza Berquó nasceu em Guaxupé, Minas Gerais, em razão das constantes mudanças do pai, funcionário dos Correios. Decidiu cursar matemática na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) quando a família estava radicada naquela cidade. A oportunidade de trabalhar na FSP ocorreu três anos depois de formada, em 1950. Nesses quase 70 anos como matemática, estatística e demógrafa fundou e ajudou a criar centros, núcleos e instituições e foi a principal responsável pelo ensino formal e regular da demografia no Brasil. Casou-se duas vezes. A primeira com o matemático Rubens Murilo Marques, que teve papel relevante nos primeiros anos da Unicamp. O segundo marido foi o administrador público José Ademar Dias, com quem ficou por 36 anos e de quem está viúva há 10 anos. Por opção, não teve filhos. Os 92 anos, completados no dia 17 de outubro, é um fator limitante apenas no que se refere à parte mecânica. “Parar de trabalhar, nunca parei”, afirma. Até sofrer uma queda, frequentava o Cebrap ao menos três vezes por semana. Recentemente retomou as idas, de modo mais espaçado. Fica bastante em casa, na zona sul de São Paulo, uma construção assinada pelo amigo e arquiteto Villanova Artigas (1915-1985), professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP também cassado pelo AI5. A casa – construída por encomenda de Elza e do primeiro marido – ficou pronta em 1968 e se tornou uma das obras mais admiradas de Artigas. Com certa frequência, a pesquisadora abre as portas para grupos de alunos de arquitetura e documentaristas que desejam mostrar seu interior. Foi na sala ampla, repleta de recordações de viagens, livros e revistas, que Elza concedeu a entrevista abaixo. Caso a reforma da Previdência em discussão seja aprovada, as pessoas terão de ficar mais tempo no mercado de trabalho para conseguir se aposentar. Isso pressiona os jovens, que precisam de 32 | dezembro DE 2017
emprego. A senhora vê alguma solução para esse conflito? Não. O que vem acontecendo é que as pessoas podem se aposentar até com 50 anos de idade por conta do tempo de serviço. Como começavam a trabalhar muito cedo, se aposentavam também cedo. Não vemos o mesmo no exterior. Não vejo ninguém na Alemanha, por exemplo, se aposentando com 50 anos. Acho que se tem de se mexer nisso para não ser injusto com ninguém. Agora, se é o momento do atual governo fazer isso é outra história. Projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, baseada em dados das Nações Unidas de 2015, indica que o perfil da população do Brasil se aproxima de países desenvolvidos, mais envelhecidos. Seus estudos já não previram isso há muito tempo? Essa questão foi muito bem estudada por nós, demógrafos. A primeira fase da transição demográfica no Brasil começou mais ou menos nos anos 1940 com o início da queda da mortalidade. A segunda fase se deu entre os anos 1960 e 1970 quan-
Sugeri aos pesquisadores do Nepo refletir sobre o suicídio de adolescentes, uma questão mundial
do constatamos a queda da fecundidade. Quem encarou isso profundamente foi o sociólogo Vilmar Faria [1942-2001], do Cebrap. Na análise dele, as famílias precisavam ser grandes porque morriam muitos filhos, mas outros sobreviviam e eram esses que iriam cuidar dos pais na velhice. Uma das razões para a queda da fecundidade estaria ligada à evolução da seguridade social: as famílias perceberam que não era preciso ter muitos filhos porque no futuro haveria aposentadoria. Outro fator foi o surgimento da pílula anticoncepcional, em 1965. E houve a revolução dos meios de comunicação, principalmente a televisão, que também contribuiu para a queda de fecundidade. Por quê? Porque todas as novelas, que sempre tiveram grande audiência, mostravam um modelo de família pequena. Tive a oportunidade de entrevistar vários diretores de novela quando, posteriormente, estudei a influência da TV na queda da fecundidade. Na época, entre 1996 e 1997, passava O rei do gado, da TV Globo. Eu perguntei para os diretores: “A Globo é a responsável por vocês terem um modelo de família pequena?”. Eles diziam: “De jeito nenhum, nós preferimos novelas com vários núcleos familiares pequenos porque fica mais interessante, em vez de fazer como as mexicanas, onde tem o rico e o pobre, o bem e o mal, em duas grandes famílias”. Essa pesquisa ganhou muita fama. Foi um grupo importante de pesquisadores que participou do projeto “Impacto social da televisão no comportamento reprodutivo”. A antropóloga Esther Hamburger, da USP, foi uma das coordenadoras do estudo que tiveram participação do pessoal do Cedeplar [Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais], do Nepo e da Universidade do Texas, dos Estados Unidos. Pesquisamos na cidade de São Paulo e em Montes Claros, em Minas. Tudo para poder ver na prática a influência que a televisão tinha na capital e em uma cidade do interior. Há mais fatores que ajudaram a explicar a queda de fecundidade dos anos 1960 para cá? O último é a política de crédito ao con sumidor. Quando se tem crédito e aspirações de consumo, é preciso pensar
lho envolveu a Bernadette Waldvogel e o Carlos Eugenio Ferreira, os dois do Seade, a Sandra Garcia e a Tânia di Giacomo do Lago, parceiras do Cebrap, e o Luís Eduardo Batista, do Instituto de Saúde. Trabalhamos juntos até fechar esse texto. Publicamos o primeiro trabalho na revista da Abep em 2014. Antes fizemos um seminário com essa equipe. No artigo confirmamos a queda dos níveis de fecundidade entre 1960 e 2010 e mostramos que aumentou a proporção de nascimentos de primeiros filhos entre as mulheres de 30 a 39 anos no período 2000-2010. Foram esses dados que nos levaram a supor a existência de adiamento, temporário ou definitivo, da reprodução da mulher paulista.
arquivo Pessoal
Cândido Procópio Ferreira de Camargo no lançamento de A fecundidade em São Paulo, de Maria Coleta de Oliveira e Elza (à dir.), em 1968
em como ajustar isso com o número de filhos. Esses quatro fatores – seguridade social, anticoncepcional, televisão e crédito –, no dizer do Vilmar Faria, não foram previamente pensados para reduzir a fecundidade, mas, de uma forma ou de outra, reduziram. Agora, no século XXI no Brasil, a mulher tem 1,8 filho em média. O que quer dizer que se pode ter dois ou um. Trabalhamos em uma pesquisa, feita no Cebrap e publicada em parte na Revista Brasileira de Estudos da População, da Abep [Associação Brasileira de Estudos Populacionais], em 2014, sobre um fenômeno que está acontecendo agora. As mulheres casam mais tarde ou não casam e vão adiando a reprodução. De repente, o tempo passa e elas não conseguem mais engravidar. Uma coisa é a fecundidade e outra é a fertilidade. A fertilidade é a capacidade de conceber; a fecundidade é a capacidade de, em tendo concebido, gerar um nascido vivo. São conceitos diferentes. Quando a mulher adia muito a reprodução, ela se coloca na parte descendente de uma curva de fertilidade, que vai diminuindo com a idade. Quando jovem, ela é alta. Quando não consegue engravidar, pode usar a reprodução assistida, se tiver recursos. À medida que a fertilidade – e a mortalidade – cai, cada vez teremos menos nas-
cimentos e, portanto, menos jovens. Mas a outra parte da população vai vivendo mais. Como se morre menos e vive-se mais, aumenta o envelhecimento. Como surgiu a proposta de pesquisar o adiamento da reprodução? Há cinco anos, ao conversar com demógrafos que moram em São Paulo e não estão na universidade verifiquei que eles tinham uma certa ansiedade porque só encontravam com os outros nas reuniões da Abep. Eu não sentia isso porque tinha meus grupos no Cebrap e Nepo. Resolvi criar o Café Demográfico no Cebrap. Uma vez por mês eu reunia esses pesquisadores que estavam soltos para tomar um café, sem agenda. Vinham do Seade [Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados], da Fundação Carlos Chagas, da Santa Casa, do Instituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde... Nós nos reuníamos sem pauta para conversar um pouco sobre o que cada um estava fazendo. Conversa vai, conversa vem, achamos que era importante estudar o adiamento da reprodução. Aí ficou diferente: ganhamos uma pauta. O pessoal do Seade tinha as informações para São Paulo porque tem acesso aos atestados de nascimento, com a idade da mãe, condição socioeconômica etc. Esse traba-
Esse projeto é o mesmo que recebeu o nome de “Mulher de 30”? Sim, ganhou esse nome por causa do adiamento da maternidade. O Luiz Eduardo lembrou, de brincadeira, uma canção do Miltinho [1928-2014], que se chama “Mulher de 30”. No primeiro refrão, a letra diz: “Você, mulher / Que já viveu, que já sofreu / Não minta / Um triste adeus nos olhos seus / A gente vê, mulher de 30”. Essa lembrança acabou batizando o projeto. Agora estamos estudando a mesma questão para o Brasil porque antes estávamos restritos a São Paulo. Já há informações que permitam dizer se os dados do país são diferentes dos de São Paulo? Temos alguns resultados, mas ainda não começamos a análise. Na minha vida inteira aprendi que onde há uma fenda que dê para passar um pensamento, ele vai longe. Talvez a Sandra Garcia já esteja vendo resultados e tirando algumas conclusões sobre isso. A velocidade do trabalho dela hoje é muito maior do que a minha. O Nepo não participou desse estudo? Não. Eu continuo pondo ovos nos dois lugares. Quando fui para a comemoração dos 35 anos do Nepo, em maio deste ano, na minha vez de falar avisei que não faria um recordatório das atividades. Eu já havia feito isso antes, quando o Nepo fez 30 anos, 25, 20... Em vez disso, sugeri aos pesquisadores refletir sobre uma questão importante, mundial, que é o suicídio de adolescentes. Esse é meu mais recente interesse, para o qual estou muito voltada. Quero trabalhar nisso em conjunto com PESQUISA FAPESP 262 | 33
Essa não é a primeira vez que a senhora mira o comportamento dos jovens. Em 2012 concebi um projeto no Cebrap junto com a Fundação Carlos Chagas, chamado “Dar voz aos jovens”. Fizemos em duas cidades, São Paulo e Itapeva, no interior paulista. Eu ficava muito intrigada com a sexualidade dos jovens. Até hoje a Aids não para de aumentar entre eles. A gravidez não planejada também, mesmo com a pílula do dia seguinte e vários outros meios para evitar a concepção. A pergunta era: o que eles estão querendo? Então achei que devia ouvir os jovens sobre sua sexualidade. Para isso, fizemos uma convocatória por meio do site do Cebrap. Precisei da ajuda de especialistas em comunicação para usar uma linguagem que fosse atraente. A convocatória foi estudada palavra por palavra e divulgamos nas redes sociais. A ideia era que alunos de ensino médio de escolas públicas de 14 a 19 anos mandassem uma narrativa abordando qualquer aspecto sobre sexualidade – amor, sexo, namoro, desejos, preferências, medos e gravidez na adolescência. Recebemos 200 delas e selecionamos as 20 melhores. Precisei desse mesmo comitê que pensou a convocatória para ajudar na consultoria. Participaram, entre outros, a Tânia Lago, a Clarice Herzog, que é publicitária, a Vera Paiva, psicóloga da USP que trabalha com Aids, a Sandra Unbehaum, coordenadora de pesquisas educacionais na Carlos Chagas, a Maria Coleta de Oliveira, demógrafa da Unicamp, o Alessandro de Oliveira dos Santos, da psicologia da USP, e o Jairo Bouer, médico e educador. Depois de selecionadas as narrativas, oferecemos oficinas de roteiro no Cebrap. Como foi esse processo? Os que foram selecionados fizeram 90 horas de oficina. Tínhamos 20 narrativas. Na primeira oficina cada um dos jovens recebeu todas as 20 narrativas para ler. Eles podiam escolher os temas nos quais deveriam trabalhar junto com o roteirista. Com os roteiros prontos, a diretora de audiovisual Paula Garcia saía de carro com o adolescente pela cidade 34 | dezembro DE 2017
Bacharel em matemática pela PUC-Campinas, em 1947: três anos depois, foi para a Faculdade de Saúde Pública da USP
temos apenas um, que é péssimo. Na Argentina tem um muito bom, chamado Calma. Quando a pessoa está no auge da depressão, ela aperta um botão e ouve: “Calma”, e começa a ser ajudada. Queremos fazer um aplicativo bom. Estou criando um grupo de reflexão.
procurando o melhor ambiente para fazer um filme a respeito do que escreveu. No final saíram 10 vídeos, de 10 a 15 minutos cada um, cinco feitos em São Paulo e cinco em Itapeva. Maravilhosos. Estão todos no YouTube. Itapeva foi escolhida porque eu queria ver como eram os jovens do interior e a cidade tinha uma taxa de suicídio um pouco acima da média. Eu já andava intrigada com o problema do suicídio e resolvemos fazer lá. E depois, o que foi feito desses vídeos? Apresentamos em um palco aberto, no Centro Cultural de Heliópolis, em São Paulo. Também foram assistidos nas casas dos adolescentes juntamente com gestores que trabalham com jovens para ver a reação da família. Para nós isso era importante porque há muita gente conservadora. Nesse ponto, nosso trabalho terminou. A médica Albertina Duarte, da Faculdade de Medicina da USP, costuma usar os vídeos quando lida com jovens. Tudo foi registrado, mas não publicamos artigo com esse relato. A pesquisa sobre suicídio já começou? Estamos buscando financiamento porque queremos construir um aplicativo. Existem 123 aplicativos para ajudar a evitar o suicídio no mundo. No Brasil
Como a senhora chegou à conclusão sobre a necessidade de pesquisar o suicídio de jovens? Primeiro por meio do contato com eles. Quando escrevem as narrativas, sinto que eles pedem ajuda. A homoafetividade apareceu muito nos relatos que recebemos. Tivemos dois vídeos sobre esse tema. Segundo me disse um dos jovens, a família levou um susto danado quando viu aquilo. Eles foram exibidos também com a ajuda do Jairo Bouer. Na apresentação que fizemos em Heliópolis, alguns familiares ficaram assustados ao ver, mas esse é um caminho pelo qual se tem de passar. Me aproximei de muitos jovens lá. Olhando as estatísticas, pensei que se eles sabem como prevenir a Aids e a gravidez e ainda assim assumem comportamento de risco é porque querem correr risco. E, se querem, é porque já atingiram um limite de desinteresse pelo que está aí. Esse foi meu raciocínio. Vamos falar um pouco sobre sua trajetória. A senhora se graduou em 1947 em matemática e poucos anos depois foi trabalhar com o professor Pedro Egydio de Oliveira Carvalho (1910-1958) na FSP. O que a motivou a sair de Campinas? A PUC-Campinas, na minha época, trazia professores do exterior. Os cursos que eu tive foram muito bons. A matemática mudou meu conceito de crença. Éramos educados na geometria euclidiana. Mas tive professores que me ensinaram outras geometrias, onde as retas
arquivo Pessoal
o Cebrap. No Brasil, a questão começou a ficar grave com o jogo que veio da Rússia, o Baleia Azul [trata-se de 50 desafios que o jogador adolescente tem de cumprir, incluindo automutilação; a última tarefa é o suicídio].
paralelas se encontram. Não era aquela coisa de se encontrar no infinito porque o infinito era onde estava Deus... Não. Na geometria de Nikolai Lobachevsky [matemático russo, 1792-1856], por exemplo, essas retas se encontram porque ela é construída sobre outros axiomas. Antes de vir para São Paulo fui lecionar em um ginásio em Capivari. Quando estava em férias com minha família, em Serra Negra, conheci um rapaz que morava na capital, também formado em matemática, que tinha sido convidado para ir para a FSP. Como não pôde, porque iria para o exterior, perguntou se eu não estava interessada. Marquei uma entrevista com o Pedro Egydio de Oliveira Carvalho, que dirigia o Departamento de Estatística. Era médico e matemático, um craque da estatística. Ele me aceitou, mas impôs as regras dele. Na época havia um casal de americanos dando aulas na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras e tive de ir com ele assistir às aulas. Minha tarefa era escrever toda a aula. Quando voltava para a faculdade, eu tinha de passar aquilo a limpo, ele conferia e dizia: “Tomou nota direitinho”. Quando fui fazer uma especialização na Universidade Columbia, Estados Unidos, entre 1954 e 1956, ele disse: “Mande cópia para mim de tudo o que estudar lá, que é para quando você voltar não saber mais do que eu”. O que a fez mudar da matemática para a estatística e dali para a demografia? Obviamente, eu gostava da matemática. Mas havia um certo determinismo que fazia me sentir meio aprisionada. Quando entrei na estatística, achei os modelos probabilísticos uma delícia porque as coisas têm um tanto de probabilidade de ser e um tanto de não ser. Aqueles modelos me encantaram. Fiz muita coisa boa em estatística. Mas chega uma hora em que dizemos, e daí? Qual a explicação que está por trás dos resultados para que tudo aconteça? Quais são os determinantes sociais, econômicos, culturais, políticos que estão por trás de tudo isso? Eu quis trabalhar com esses elementos. E isso é a demografia. A senhora chegou a essa conclusão nos Estados Unidos? Não, foi aqui mesmo. Quando o Pedro Egydio morreu precocemente, com 48 anos, em 1958, voltei por dois meses à Columbia para preparar minha tese de
doutorado e poder fazer o concurso para cátedra na FSP, que ocorreu em 1960. A Ruth Gold [1921-2009] e a Agnes Berger [1916-2002] eram duas estatísticas de primeira linha que haviam trabalhado com Jerzy Neyman [russo naturalizado norte-americano, 1894-1981], um luminar da estatística matemática, na Universidade da Califórnia em Berkeley, que conheci depois e muito me influenciou. Naquele período, Ruth e Agnes estavam em Columbia e me disseram que poderíamos trabalhar juntas na tese. Escolhemos uma análise estatística sequencial, algo bem recente na época, do húngaro Abraham Wald [1902-1950]. Na análise sequencial, o tamanho da amostra não é fixado a priori. A hipótese pode ser aceita, rejeitada ou exigir mais trabalho porque pode não haver evidências suficientes para se decidir sobre ela. Era algo diferente dos testes de hipóteses em que o tamanho da amostra era fixado a priori. Para eu poder usar exemplos na minha tese, estabelecemos uma colaboração com a Faculdade de Medicina de Columbia e utilizei um estudo deles, já encerrado, sobre o uso de dois medicamentos para bebês pre-
Qual a explicação por trás das estatísticas? Quis trabalhar com esses elementos. Isso é a demografia
maturos. Fiz a minha tese abordando o uso desse método estatístico relacionado a problemas de saúde pública. Há cinco décadas a demografia parecia ter pouca importância no Brasil. Hoje os gestores públicos praticamente não fazem planejamento sem levá-la em conta. Quando começou essa mudança? Fundei o Cedip [Centro de Estudos de Dinâmica Populacional], o primeiro núcleo de formação em demografia do país, dentro da FSP, em 1966. Antes, havia passado a dirigir o Departamento de Estatística quando Pedro Egydio morreu. Como a Faculdade de Filosofia não tinha ainda nada de estatística e matemática, e eu sabia que iria precisar das duas coisas, criei a disciplina de estatística matemática com o Rubens Murilo Marques, meu primeiro marido. Consegui um apoio grande para esse grupo. Já para formar o grupo de demografia, convidei o médico João Yunes [1936-2002], que foi secretário estadual de Saúde muitos anos depois, a socióloga Neide Patarra [1939-2013], o matemático e sociólogo Jair Lício Ferreira Santos, o economista Paul Singer e o Cândido Procópio, também sociólogo, que anos depois seria o primeiro presidente do Cebrap. Eu já tinha a visão de que a demografia é multidisciplinar. Com exceção do Procópio, mais velho, os outros eram jovens que saíram daqui com bolsa de estudo da Opas [Organização Pan-americana de Saúde] para fazer pós-graduação em demografia, cada um em um lugar. O Yunes foi para Michigan, o Singer para Princeton, a Neide e o Jair para Chicago. O Procópio tinha notório saber e viajou pelos Estados Unidos e pela Europa para conhecer programas de demografia que nos ajudassem na implantação do Cedip. Foi feito um convênio entre a FSP e a Opas em que, por cinco anos, a organização bancaria as bolsas de pós-graduação e os salários. Depois disso, a faculdade deveria assumir esses encargos. Ocorre que, depois que criamos o Cedip e começamos a trabalhar, a FSP não honrou os compromissos. Por ocasião desse trato com a Opas, o diretor da faculdade era o Rodolfo dos Santos Mascarenhas [1909-1979]. Há uma história curiosa que aconteceu nesse período. Eu era representante dos doutores no Conselho Universitário da USP. Fui para lá com o professor Mascarenhas. A reunião PESQUISA FAPESP 262 | 35
demorou para começar e eu perguntei para ele o que estava acontecendo. A razão era que o representante dos alunos não tinha paletó, estava em mangas de camisa e não podia entrar. Eu disse: “É um absurdo um aluno não poder entrar em mangas de camisa”. Então falaram para mim: “Mas a senhora entraria aqui de biquíni?”. Respondi: “Se eu andasse de biquíni na rua, entraria sim”. Depois dessa eu ganhei a parada. O aluno entrou e alguns dos professores arrancaram a gravata. Lembro da figura desse aluno até hoje. Ele foi entrando e pensei: “É isso que é o Conselho Universitário?”. Eu disse para o Mascarenhas: “Não quero mais vir aqui, não”. E não fui. Antes do Cedip não se ensinava e pesquisava demografia no Brasil? Não de modo formal, ligado a uma universidade. Apenas no IBGE, no Rio, o João Lira Madeira [1909-1979] era um demógrafo interessado em formar outros demógrafos. O Giorgio Mortara [1885-1967], que veio da Itália para cá, coordenou dois censos importantes no Brasil, de 1940 e 1950. O Lira Madeira trabalhou com ele. O IBGE era o único núcleo onde havia isso. Ainda em 1965, a senhora realizou a pesquisa de “Reprodução humana no distrito de São Paulo”. Como foi? Fizemos esse trabalho com essa turma, Paul Singer, Neide Patarra e Maria Coleta de Oliveira. Tínhamos o Censo de 1940 e o de 1950. O de 1960 foi feito, mas sua publicação só ocorreu em 1978. Há várias histórias sobre isso. Um computador foi usado para acelerar a produção dos dados, mas teve efeito contrário. Uma das versões diz que os dados foram enviados para centros avançados, como Chicago, para computar tudo. O material estaria num avião e a criptografia teria sido perdida por alguma razão. Há gente que coloca a culpa do sumiço dos dados no regime militar, que começou em 1964. E outra história, segundo a versão do sociólogo Nelson do Valle, diz que o material com os resultados ficou perdido dentro de um armazém do próprio IBGE. Como não tínhamos os dados de 1960, não podíamos ver a queda da fecundidade porque só conhecíamos as informações de 1940 e 1950. Fizemos a pesquisa restrita à cidade de São Paulo e ela mostrou que a fecundidade já estava caindo. 36 | dezembro DE 2017
Um trabalho do qual gosto muito, feito no Cebrap, foi o ‘Programa para a formação de pesquisadoras negras’
Poucos anos depois, o governo baixou o AI-5, em dezembro de 1968, e a senhora foi cassada. No ano seguinte, foi criado o Cebrap. A que se deu tamanha rapidez? Ao prestígio do Fernando Henrique, que teve apoio dos empresários paulistas que não estavam de acordo com a ditadura, e da Fundação Ford, que fez um endowment grande ao Cebrap. Além disso, ele é filho e neto de militar, embora isso não tenha diretamente a ver. Foi um período terrível para mim, morando nesta casa, que naquela época era distante de tudo. No dia seguinte ao AI-5, não podia mais entrar na FSP. Morava aqui, longe, e ficava muito isolada. Mas esse isolamento foi importante em alguns momentos... Sim, queria contar essa história. Escondi aqui jovens que estavam na luta armada. Esta casa era muito distante do centro e era mais fácil abrigar gente perseguida. Praticamente todos eles, uns 10, foram mortos posteriormente pelo regime, pelo que eu soube, inclusive uma moça grávida que hospedamos. Eles não ficavam muito tempo: vinham, passavam alguns
dias, iam embora e vinham outros. Ninguém sabia o nome de ninguém. Nem o meu, nem o do Rubens, meu marido na época, que era ligado ao Partido Comunista Brasileiro, assim como o Villanova Artigas – eu nunca fui de nenhum partido. Os jovens que ficavam aqui se entediavam e pediam para fazer alguma coisa. Eles pintaram aquelas lajotas de óleo queimado [aponta para determinada parte da sala]. Deixaram essa marca histórica nesta casa. A casa estava recém-pronta e as lajotas eram de tijolo aparente. O Rubens chegou a ser preso? Foi preso pela Oban [Operação Bandeirantes], em 1971. Uma vez, estávamos nós dois aqui, num sábado, tomando café depois do almoço, quando de repente ele disse: “Não se mexa”. Ele viu que tinha gente que estava começando a descer a rampa em direção à nossa casa. Era o pessoal da Oban e o levaram preso. Ficou algumas semanas lá, muito embora o tio dele fosse o secretário estadual de Segurança Pública na época. Por que a senhora não voltou para a universidade logo depois da Anistia, em 1979? Tive convites da FSP, por meio do Oswaldo Forattini [1924-2007], então diretor da faculdade, e do IME [Instituto de Matemática e Estatística da USP]. Com a reforma universitária que ocorreu quando estávamos fora da universidade, a minha disciplina de estatística matemática foi para o IME, que era mesmo o melhor lugar para ela. Para decidir pela FSP ou pelo IME, me tranquei em casa por 72 horas para ver o que prevalecia. O coração decidiu pela FSP. Quando avisei que voltaria, o Forattini me disse que tinha de passar pela Congregação da faculdade, o que achei óbvio. Mas, na votação, tive 50% de votos contra mim. Forattini deu o voto de minerva a meu favor. Com isso, decidi não voltar. Quem ficou na FSP foi o pessoal mais conservador possível. Fiquei só no Cebrap, o que foi muito bom. Como foi a ida para a Unicamp? Em 1982, o então reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti [1934-2009], me convidou. Aceitei com a condição de não ter nenhum contato com a burocracia da universidade. Também pedi carta branca
arquivo Pessoal
muito é o “Programa para formação de pesquisadoras negras”, realizado entre 1994 e 1996. A Fundação MacArthur financiou, com doação de US$ 2,3 milhões.
Maria Coleta de Oliveira, Maria Isabel Baltar da Rocha, Elza Berquó e Anibal Faundes (da esq. para a dir.) durante curso de saúde reprodutiva do Nepo, em 1993
para criar um núcleo. Isso foi na fase de criação de núcleos na universidade. Ele já tinha chegado à conclusão de que os departamentos eram estanques, não se comunicavam, e queria estabelecer comunicações. Os núcleos que ele criou faziam isso. Criei o Nepo e o coordenei por vários anos, mas não quis ocupar cargo nenhum e não acumulei aposentadorias. Quando a senhora considera que a área de demografia foi consolidada de fato? Está consolidada desde a criação da Abep, em 1976, também com o apoio da Fundação Ford, em plena ditadura. Hoje temos o Cedeplar, da UFMG, que é um belo centro de demografia, o Nepo, o IBGE progrediu muito com a Escola Nacional de Estatística, que faz demografia, e outros mais. A Ford financiou a Abep porque já havia financiado vários centros de excelência, inclusive o Cebrap. Eles tinham experiência de que só centros de excelência não bastavam. Era preciso algo que ligasse tudo isso, como as associações. A Ford financiou várias delas, como a Anpocs [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais], no mesmo período. Qual seu trabalho mais significativo no Cebrap? Há algum que goste mais? Tive vários projetos importantes. Um dos mais interessantes foi “Pesquisa nacional de reprodução humana”, um trabalho multidisciplinar realizado de 1973 a 1978. De certo modo, foi a continuação do tra-
balho que começamos na FSP em 1965, sobre a reprodução da mulher paulistana, interrompido pelas cassações. Era uma pesquisa grande que explorava as relações entre o comportamento reprodutivo e as diversas formas de organização da produção. Tinha um arcabouço teórico/metodológico inovador. O planejamento da pesquisa resultou de um esforço teórico na busca de tipologias das regiões brasileiras que incluísse duas dimensões: as formas dominantes da organização da produção em cada região e as formas de inserção de cada região na divisão social do trabalho, durante o processo de desenvolvimento. Nessa pesquisa foi montada uma tipologia dos setores rurais e urbanos do Brasil em nove áreas, desde a servidão rural, em Conceição do Araguaia, no Pará, até o capitalismo e estrutura socioeconômica, em São José dos Campos, em São Paulo. Essa estratégia de pesquisa foi montada por Vilmar Faria e Juarez Brandão Lopes [1925-2011]. Quem escrevia a história de cada região eram os pesquisadores do Cebrap, como Cândido Procópio, Fernando Henrique, Juarez, Vilmar, Neide Patarra, Octavio Ianni [1926-2004], Bolívar Lamounier, Vinícius Caldeira Brant [1941-1999], Maria da Conceição Quinteiro e outros. O Fernando Henrique, por exemplo, pesquisou São José dos Campos. Essa pesquisa envolveu o Cebrap de uma maneira talvez única. Não voltou a acontecer depois – pelo menos não na demografia. Outro trabalho que gosto
Por que pesquisadoras negras? Aí nós voltamos para os censos. O item raça/cor estava no Censo de 1940, de 1950; o de 1960 não saía publicado; e no de 1970 o regime militar tirou essa informação. Ficamos um tempo grande sem informação sobre cor. Não sabíamos como estava a população negra no Brasil. Sentíamos falta daquilo. Quando saiu o Censo de 1980, a população negra aparecia lá embaixo, em todos os indicadores. Pensei que precisaríamos fazer alguma coisa. Comecei a estudar a demografia do negro, fiz um projeto sobre a saúde reprodutiva da mulher negra, entre 1991 e 1993, publiquei trabalhos e realizamos vários seminários no Cebrap a esse respeito. Eu queria saber também sobre pesquisadoras negras. O problema era que, quando abríamos editais para bolsa de pesquisa, os negros nunca passavam – quem passava eram os brancos. Resolvi abrir um concurso específico com bolsas para pesquisadoras negras. Na primeira edição desse programa, preparei quatro delas, todas graduadas em ciências sociais. Por dois anos foram treinadas para fazer pesquisa de campo e estudaram estatística e demografia. Em seguida fizeram seus doutorados. Elas também pesquisaram a saúde da mulher negra. Foram a campo, preencheram questionários e depois fizemos uma análise. Publicamos esse trabalho. Há um vídeo que se chama Eu, mulher negra, com algumas conclusões da pesquisa. Fiz a segunda edição do programa porque a Fundação MacArthur achou aquilo incrível. Hoje essas pesquisadoras estão em universidades pelo Brasil ou em instituições internacionais. Depois de pesquisas em frentes tão diversas, quais os temas que ainda a entusiasmam para serem estudados pela demografia hoje? Em primeiro lugar, os refugiados. O Nepo tem, por exemplo, o Observatório das Migrações, coordenado pela Rosana Baeninger. Esse tema é fundamental. Na área de reprodução é o adiamento. E há os problemas de jovens, como as doenças sexualmente transmissíveis. Todos os problemas dos jovens são relevantes. n PESQUISA FAPESP 262 | 37
política c&T Investimento y
Apoio multiplicado Pesquisadores recorrem ao financiamento coletivo para tirar projetos do papel Bruno de Pierro
O
financiamento coletivo de projetos de pesquisa movimenta um volume respeitável de recursos nos Estados Unidos – a plataforma digital Experiment, uma das mais ativas no lançamento de campanhas para levantar fundos, já arrecadou US$ 7,5 milhões de mais de 40 mil doadores desde que foi criada, em 2012, obtendo recursos para cerca de 722 projetos em diversas áreas do conhecimento. No Brasil, esse modelo – conhecido por seu nome em inglês, crowdfunding – é mais disseminado no meio cultural, mas aos poucos vem sendo descoberto por pesquisadores. Em um exemplo recente, a Universidade Federal do ABC (UFABC) inaugurou em novembro em seu campus de São Bernardo o WikiLab, um laboratório utilizado por pesquisadores e estudantes e franqueado também a empreendedores da comunidade, para o desenvolvimento de tecnologias baseadas em softwares livres, como aplicativos voltados para as áreas cultural e de direitos humanos.
38 z dezembro DE 2017
“A ideia é unir o mundo das tecnologias livres com as ciências humanas”, disse o cientista da computação Jerônimo Pellegrini, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC. O laboratório tem 40 metros quadrados (m²) e foi construído em um terreno da universidade com painéis de madeira cortados por computador e encaixados sem o uso de pregos ou parafusos. O financiamento coletivo arrecadou R$ 72 mil – R$ 9 mil acima da meta estabelecida – e mobilizou mais de 900 doadores. A campanha foi realizada pela plataforma Catarse, utilizada principalmente por artistas que querem lançar CDs ou montar espetáculos. Em agosto, surgiu a primeira plataforma brasileira de crowdfunding dedicada a temas científicos. Batizada de Entropia Coletiva, foi idealizada pelo programador Frederico Reis, pela neurocientista Patrícia Bado e pelo físico Ivan José, do Rio de Janeiro, e teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A plataforma já hospeda
quatro campanhas de arrecadação. Uma delas é liderada por pesquisadores dos laboratórios de Investigação da Doença de Alzheimer e de Doenças Neurodegenerativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eles pretendem obter R$ 85 mil para a pesquisa de um tratamento contra Alzheimer com medicamentos usados para combater o diabetes. As plataformas de crowdfunding podem trazer retorno financeiro para seus donos – isso depende, claro, do sucesso das campanhas. “Cobramos 18% do total arrecadado por projeto. Nossa taxa inclui o custo com a operadora de pagamentos, de 5%, e o contrato com uma agência de marketing digital”, diz Frederico Reis, da Entropia Coletiva, que também oferece um serviço de consultoria para auxiliar pesquisadores a divulgar suas campanhas. Já a Experiment cobra 12%. A brasileira e a norte-americana adotaram modelos diferentes. A Entropia Coletiva é baseada no conceito de financiamento flexível, que permite ao pes-
Plataformas de crowdfunding dedicadas a projetos científicos
THINKABLE www.thinkable.org Lançada em 2014 por uma equipe da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, promove projetos tanto de instituições de
GIVE TO CURE
pesquisa quanto de empresas de base tecnológica
www.givetocure.org
EXPERIMENT
A ONG Give to Cure (EUA)
www.experiment.com
tem uma página na internet
Criada em 2012 por
para arrecadar doações
pesquisadores da Universidade
com a finalidade de financiar
de Washington (EUA),
ensaios clínicos para o
mobilizou 40 mil doadores a
tratamento do mal de
financiar mais de 720 projetos,
Alzheimer
movimentando cerca de US$ 7,5 milhões
MEDSTARTR
ilustraçãO freepik
FUTSCI (FUTURE SCIENCE)
www.about.medstartr.com Exclusiva para projetos nas
www.futsci.com
áreas de medicina e
Desde 2014, a plataforma
tecnologias em saúde, foi
criada no Reino Unido
fundada em 2016 nos EUA.
promove o financiamento
Abriga 133 campanhas de
coletivo de projetos nas
financiamento e promove
ciências da vida
eventos para incentivar
DODO
a interação entre
www.dodofunding.com
pesquisadores e empresas
Foi criada por brasileiros em 2015 e atualmente está hospedada no Chile.
quisador receber parcialmente qualquer valor arrecadado, mesmo que a campanha não tenha alcançado a meta prevista. A Experiment, por sua vez, utiliza o modelo all-or-nothing (tudo ou nada), que autoriza o resgate do valor doado somente se o pesquisador atingir o objetivo. Caso contrário, os doadores são reembolsados. “O modelo do ‘tudo ou nada’ faz com que os pesquisadores definam metas realistas e reduz o risco de envolver doadores em projetos que podem não sair do papel”, justifica a bióloga Cindy Wu, cofundadora da Experiment. Vinícius Maracaja-Coutinho, professor do Centro de Genômica e Bioinformática da Universidade Mayor de Santiago, no Chile, deu preferência para o modelo flexível quando lançou, em 2015, a plataforma de crowdfunding científica Dodo, que cobra 10% de taxa. A iniciativa é um projeto da Beagle Bioinformatics, startup que ele fundou em 2012 após concluir o doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Coutinho desenvolveu a platafor-
ma no Chile, ao participar de um programa federal de apoio à inovação. “Recebemos cerca de US$ 60 mil do governo chileno para conceber a Dodo. Em razão disso, transferi a startup para o Chile”, relata. No momento, a maioria dos projetos na Dodo é de sequenciamento genético. Um grupo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), por exemplo, conseguiu cerca de US$ 2 mil para sequenciar o genoma de um inseto chamado cochonilha. “A cochonilha é utilizada para produzir um corante vermelho, utilizado na indústria alimentícia. Mas em 2015 houve um surto no sertão pernambucano e o inseto acabou com as plantações de palma, impactando a produção de gado bovino, que depende da planta para se alimentar”, explica Coutinho, que faz parte do grupo da UFPB. Os pesquisadores esperam que o sequenciamento ajude no controle biológico da praga. Uma das primeiras campanhas de crowdfunding científico do Brasil ocorreu em 2013 e foi lançada por pesquisadores da UFRJ, que arrecadaram cerca
É direcionada a projetos de biotecnologia e ciências da vida
ENTROPIA COLETIVA www.entropiacoletiva.com Lançada em agosto de 2017 por ex-pesquisadores da UFRJ, é a primeira plataforma de crowdfunding de ciência do Brasil. Oferece serviço de consultoria em comunicação para pesquisadores
pESQUISA FAPESP 262 z 39
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Campanha para a construção do WikiLab, na UFABC, arrecadou R$ 72 mil de mais de 900 doadores
de R$ 40 mil para mapear o genoma do mexilhão-dourado, uma espécie invasora que causa problemas ambientais no país. Com os recursos, o biólogo Mauro Rebelo e sua então aluna de doutorado Marcela Uliano concluíram o sequenciamento e agora se preparam para publicar os resultados. “O objetivo é ajudar a criar estratégias para controlar o avanço da espécie”, diz Rebelo, que atualmente está envolvido no lançamento de uma iniciativa para estudar genomas chamada Genome Research Application Environment (GRAppE), que também será financiada coletivamente. Outro caso conhecido no país é o do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia), que reúne pesquisadores de várias instituições na tarefa de analisar os impactos ambientais resultantes do rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG). Logo após o desastre, em 2015, eles lançaram uma campanha na internet que conseguiu arrecadar R$ 90 mil junto a 1.473 doadores. “A gente se mobilizou por meio de uma página no Facebook, que conta hoje com 15 mil seguidores. Essa rede ajudou a divulgar a campanha na internet e a mobilizar doadores”, relata o biólogo Dante Pavan, integrante do Giaia. Do total arrecadado, cerca de R$ 70 mil já foram gastos com viagens e compra de materiais para a análise de 40 z dezembro DE 2017
água e sedimentos da bacia do rio Doce (ver Pesquisa FAPESP nº 243). Para Frederico Reis, da Entropia Coletiva, o ambiente no Brasil é mais desafiador do que o de países como os Estados Unidos, onde a prática do crowdfunding é favorecida pelo costume de empresas e indivíduos fazerem doações a instituições científicas. “Outro entrave é que os pesquisadores brasileiros não têm o hábito de buscar ajuda financeira em fontes que não sejam públicas”, argumenta Reis. Segundo ele, é preciso disseminar no país uma cultura de pesquisa que não dependa unicamente do apoio do governo, ainda mais em tempos de crise econômica e cortes no orçamento. “Trata-se de uma forma de complementar as fontes de apoio tradicionais, como as obtidas de agências de fomento.”
N
o exterior não faltam exemplos de projetos científicos que se viabilizaram graças a doações do público. Em 2015, mais de 18 mil pessoas contribuíram para uma campanha criada na Experiment. Um casal de Los Angeles, na Califórnia, conseguiu angariar US$ 2,6 milhões para financiar estudos sobre a doença de Batten, uma condição neurodegenerativa rara que se manifesta na infância, afetando a visão e as capacidades intelectual e motora. As duas filhas do casal sofrem da doença. A Experiment é uma criação de pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. “Acreditamos que é necessário diversificar e aumentar a quantidade de fontes de apoio para financiar pesquisas”, diz Cindy Wu.
Suzana Diniz, aluna de doutorado do Departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recorreu à Experiment em 2016 em busca de recursos para sua pesquisa. Ela angariou US$ 820 para realizar um estudo sobre o papel da reflexão de luz ultravioleta (UV) nos formatos feitos por aranhas em suas teias. O dinheiro foi usado para comprar materiais e custear o trabalho de campo. O objetivo era estimar o efeito da luz UV, refletida nas teias, sobre a atração de insetos que servem de alimento para as aranhas e sobre a incidência de predadores, como aves. “Observamos que, no geral, as decorações de teias que refletem luz ultravioleta atraem mais insetos do que as que tiveram o UV bloqueado. Mas, contrariamente ao esperado, quando refletem UV, as teias com decorações em formato de X atraem menos insetos visualmente guiados, como abelhas e moscas”, explica Suzana, que utilizou a plataforma Experiment também para divulgar resultados preliminares. Cindy Wu conta que a prática de publicar dados enquanto a pesquisa está em andamento é desejável, pois informa os doadores sobre o que foi feito com os recursos. “Também incentivamos a publicação de relatos informais sobre o processo da pesquisa”, diz Cindy. Ela explica que a Experiment pede aos cientistas que deixem claro ao público que os resultados são parciais e ainda não revisados por pares. Não é qualquer campanha que pode ser hospedada pela plataforma. A seleção de projetos é feita por uma comissão técnica.
fotos 1 wikilab / ufabc 2 giaia
O crowdfunding pode ajudar a complementar fontes de apoio tradicionais, como as das agências de fomento
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RECOMENDAÇÕES PARA levantar recursos Pesquisadores do Chile e do Brasil publicaram em 2016 na revista PLOS Biology um guia para auxiliar cientistas a lançar campanhas de financiamento coletivo, com base numa revisão da literatura sobre o tema. Abaixo, uma síntese das principais sugestões:
1 A FORÇA DAS MÍDIAS SOCIAIS
Pesquisadores habituados a se comunicar com o público pelas redes sociais têm mais chances de êxito. Campanhas bem-sucedidas chegam a mobilizar 60% de seus doadores por meio das redes. Água é coletada no rio Doce para ser analisada: recursos foram doados pela população em 2015, após o rompimento da barragem da mineradora Samarco em Minas Gerais
Criar uma página da campanha em alguma mídia social pode ser útil.
2 DIVULGAÇÃO EM EVENTOS
Apresentações em congressos, conferências e workshops são boas oportunidades de divulgar campanhas de financiamento
Um dos critérios é que o pesquisador esteja vinculado a alguma instituição científica e que o projeto seja endossado por outro colega da área. Para Frederico Reis, da Entropia Coletiva, o fato de os projetos financiados coletivamente não passarem por seleção rigorosa, como ocorre em agências de apoio, não significa que a qualidade não seja levada em consideração. “É comum que a pesquisa resulte na publicação de um paper e, então, passe pelo crivo da revisão por pares”, pontua Reis. “Mas o filtro principal é dos doadores, que decidem se um tópico vai ou não ser pesquisado”, avalia. A pesquisa do neurocientista Eduardo Schenberg só se tornou viável por causa do financiamento coletivo. Ele coordena um estudo sobre o uso do MDMA, o princípio psicoativo do ecstasy, no tratamento de pessoas com transtorno de estresse pós-traumático – uma linha de investigação considerada controversa. “A pesquisa atrai pouco interesse da comunidade científica brasileira, que encara com receio o potencial terapêutico dos psicodélicos”, afirma Schenberg. Em 2015, ele lançou uma campanha no Catarse e conseguiu arrecadar R$ 53 mil com mais de 400 doadores. O estudo faz parte de um projeto internacional desenvolvido pela Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies, organização norte-americana que aposta na psicoterapia assistida com uso de MDMA. A etapa brasileira é realizada pela Plantando Consciência, ONG criada por Schenberg em 2009, após concluir o doutorado na USP. “Em breve, iniciaremos testes com pacientes”, informa. n
para colegas e pessoas interessadas no tema da pesquisa.
3 MENSAGEM OBJETIVA
Para cativar os doadores, é essencial explicar a relevância da pesquisa de forma clara e entusiasmada. É importante apresentar, quando possível, o impacto do projeto em contextos como o econômico e o social.
4 USO DE VÍDEOS E FOTOS
Campanhas com imagens e vídeos têm mais chance de sucesso do que as que usam apenas texto na divulgação. Os vídeos devem ser curtos e informar seu objetivo logo nos primeiros 30 segundos.
5 TRANSPARÊNCIA
Os riscos do projeto devem ser informados. Os doadores devem estar cientes de que a pesquisa pode não dar certo ou alcançar resultados inconclusivos.
6 RELAÇÃO COM O DINHEIRO
Se o valor almejado for muito alto, uma saída pode ser dividir a campanha em projetos menores e procurar o financiamento para cada etapa. É essencial apresentar um orçamento de pesquisa para que os doadores saibam como o dinheiro será aplicado.
7 RECOMPENSAS PARA OS DOADORES
O crowdfunding geralmente prevê recompensas para doadores. O pesquisador pode, por exemplo, oferecer visitas ao laboratório ou uma menção de agradecimento em artigo científico. Se o projeto levar a um produto, pode oferecer uma amostra do protótipo como recompensa.
8 PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nas plataformas de crowdfunding, é possível informar como o projeto está progredindo, por meio da publicação de dados preliminares ou pequenos textos informativos. Isso aumenta a confiança dos doadores.
Fonte Vachelard, J.; Gambarra-Soares, T.; Augustini G.; Riul, P.; Maracaja-Coutinho, V.; (2016) A Guide to Scientific Crowdfunding. PLoS Biol 14(2): e1002373. doi:10.1371/journal.pbio.1002373
pESQUISA FAPESP 262 z 41
ciência EPIDEMIOLOGIA y
Equipe da Fiocruz propõe sexta forma de malária, transmitida por mosquitos infectados ao picar primatas silvestres da Mata Atlântica
De macacos para gente Carlos Fioravanti
E
m 1966, o parasitologista paraense Leônidas Deane (1914-1993), então professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), descreveu o primeiro caso conhecido de malária humana causada pelo protozoário Plasmodium simium. Até então, pensava-se que esse tipo de parasita provocava a doença apenas em macacos. Os protozoários haviam sido encontrados no sangue de um guarda florestal que coletava mosquitos na copa de árvores para pesquisadores no Horto Florestal da cidade de São Paulo, uma área de mata em que nenhum caso de malária fora registrado antes. A possibilidade de transmissão para outras pessoas dessa forma de malária por
G. Robert Coatney /Gertrude H. Nicholson / cdc
Formas do Plasmodium vivax em diferentes estágios de desenvolvimento em células vermelhas do sangue humano (na página à esquerda) e de P. simium nas de macaco (ao lado). A primeira célula de cada quadro não está infectada
mosquitos que haviam picado macacos infectados não pôde ser demonstrada na época em que foi apresentada. Meio século depois, uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) retomou a hipótese de Deane e propôs uma sexta forma de malária humana, transmitida por mosquitos que se infectaram com P. simium ao picar macacos contaminados. A proposta terá ainda de ser validada por outros estudos e reconhecida por organismos internacionais. A malária é transmitida às pessoas por mosquitos do gênero Anopheles contaminados com os agentes infecciosos – protozoários do gênero Plasmodium. As formas de malária são diferenciadas por meio da identificação ao microscópio
da espécie de Plasmodium que se multiplica nas células vermelhas do sangue. Embora os sintomas iniciais sejam semelhantes – febre, calafrios, dor de cabeça e dores no corpo –, a evolução da doença depende do agente causador: o P. vivax causa uma malária mais branda e o P. falciparum, mais grave (ver quadro na página 45). Uma das formas, causadas pelo P. knowlesi, foi descrita em 1965 na Malásia como a primeira a ser transmitida para pessoas por mosquitos que se infectaram ao picar macacos, caracterizando uma zoonose, doença intermediada por animais, que funcionam como reservatórios dos agentes infecciosos. Descrito em 1932 no sangue de macacos e facilmente confundido com P. malariae e P. falciparum, o pESQUISA FAPESP 262 z 43
Os focos de malária no Rio de Janeiro Transmissão por mosquitos infectados ao picar macacos poderia explicar casos humanos em áreas próximas a matas na região serrana Brasil
ES
Casos humanos de malária [2015-16] 1
2
4
n Macacos infectados
8 MG
n Mata Atlântica RJ
SP
P. knowlesi tem sido o responsável por um número crescente de casos na Malásia – foram de 703 em 2011 e 996 em 2013 –, na Tailândia, na Indonésia, no Vietnã e nas Filipinas. A conclusão de que macacos podem servir de reservatório para os protozoários causadores da malária também no Brasil resultou de análises de amostras de sangue de três animais e de 28 moradores da região serrana do Rio de Janeiro. “No começo acreditávamos serem casos de malária causados pelo P. vivax, a forma mais comum no Brasil e nessa região”, conta o parasitologista Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, pesquisador da Fiocruz do Rio de Janeiro. “Como os sintomas eram levemente diferentes, consideramos a possibilidade de se tratar da malária de macacos descrita por Deane.”
O
P. vivax e o P. simium pouco se diferenciam em exames de sangue ao microscópio. A equipe da Fiocruz distinguiu um do outro ao identificar dois trechos do DNA mitocondrial diferentes em cada espécie e considerou que a possibilidade de infecção por P. simium poderia explicar os surtos na área da Mata Atlântica fluminense. Os pesquisadores idenficaram P. simium em 28 dos 49 casos autóctones (de origem local) de malária registrados na região em 2015 e 2016. Realizado pela parasitologista da Fiocruz Patrícia Brasil e detalhado em um artigo
44 z dezembro DE 2017
fonte Brasil et al, 2017
publicado em outubro na Lancet Global Health, o trabalho alerta para o risco de ocorrência de malária em áreas distantes da Amazônia, origem de 99% dos 131 mil casos de janeiro a setembro de 2017, de acordo com o Ministério da Saúde. A Organização Mundial da Saúde registrou 214 milhões de casos de malária e 438 mil mortes em decorrência da doença em 95 países em 2015. Uma equipe da Fiocruz de Minas Gerais, também por análise molecular, identificou P. simium em nove de um grupo de 65 bugios-ruivos e macacos-prego mantidos em cativeiro ou em áreas de Mata Atlântica no município de Indaial, em Santa Catarina, como relatado em um estudo publicado em 2014 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. O muriqui é outra espécie de primata que pode abrigar esse parasita, identificado em 1951 em um macaco de uma mata próxima à cidade de São Paulo e descrito pela primeira vez pelo parasitologista carioca Flávio Oliveira Ribeiro da Fonseca (1900-1963), professor da FM-USP. Também se encontrou o P. simium em sangue de macacos nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Paraná, segundo a bióloga Cristiana Ferreira Alves de Brito, pesquisadora da Fiocruz de Belo Horizonte. “A letalidade da malária em pessoas fora da região amazônica é muito maior, porque os médicos das cidades do Sul e Sudeste não suspeitam de que a febre alta e a anemia possam ser
mapa Brasil et al, 2017 foto Vinícius Marinho / FIOCRuz imagens
Município do Rio de Janeiro
Sutis diferenças Transmitidas por mosquitos, as formas de malária variam de acordo com as espécies de protozoário que as causam
Plasmodium vivax
Plasmodium falciparum
Responsável por 90% dos
É a espécie mais comum no
casos no Brasil, causa acessos
mundo, responsável por
de febre a cada dois dias. A
cerca de 10% dos casos no
letalidade é baixa. As formas
Brasil, e de alta letalidade.
do parasita dormentes no
Causa a forma mais grave de
fígado podem causar recaídas,
malária, com febre intensa
responsáveis por até
de dois em dois dias e risco de
40% das crises de malária
complicações no cérebro
registradas no país Plasmodium knowlesi Plasmodium malariae
Espécie não encontrada
Responde por menos de 1% do
no Brasil, responsável pela
total de casos registrados no
maioria dos casos da Malásia.
Brasil, causa febre a cada 72
As febres são diárias.
horas, em geral mais baixa que
Doença grave e letal
a causada pelo P. vivax, e pode levar a complicações renais
Plasmodium simium Espécie restrita à Mata
Plasmodium ovale
Atlântica da região Sul e
É uma forma branda, comum
Sudeste. Em humanos, causaria
na África e não encontrada no
sintomas semelhantes aos do
Brasil. Pode apresentar
P. vivax. Essa proposta ainda
recaídas após o tratamento
precisa ser validada
Mosquito Anopheles de pesquisas da Fiocruz
fonte fiocruz
sintomas de malária”, afirma Cristiana. “Temos de alertar os médicos e os centros de saúde para fazer o diagnóstico correto, porque o tratamento é eficiente.” Em novembro de 2010, um viajante vindo da Nigéria e outro da Costa do Marfim morreram de malária em São Paulo depois de passarem por hospitais cujos médicos não souberam diagnosticar a doença (ver Pesquisa FAPESP nº 186). O Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo registrou oito casos de malária autóctone em pessoas em 2016 e cinco até
outubro de 2017, a maioria em cidades litorâneas próximas a matas. “Por causa da dificuldade dos médicos de fora da região amazônica em reconhecer a doença, a descrição de casos de malária no Rio de Janeiro como uma zoonose configura-se como um grande desafio para o controle da doença”, comenta a bióloga Silvia Di Santi, pesquisadora da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) e do Instituto de Medicina Tropical da FM-USP. “Para caracterizar melhor essa situação, é fundamental ampliar as áreas de estudo, em regiões com o mesmo perfil epidemiológico, e descrever o ciclo completo da transmissão, com mosquitos, macacos e pessoas infectados.”
O
s casos de malária transmitidos em áreas de Mata Atlântica ao longo do litoral caracterizam-se por uma forma benigna da doença, segundo Silvia. Os moradores da região serrana do Rio infectados com o P. simium apresentaram sintomas semelhantes, embora mais brandos, aos causados pelo P. vivax e responderam ao tratamento com uma associação de cloroquina e primaquina. Dois pacientes, por não poderem tomar primaquina, receberam apenas cloroquina e, 18 meses depois, não apresentaram recaída. Segundo Ribeiro, o fato de a malária não ter reaparecido nessas pessoas é uma indicação de que o P. simium, diferentemente do P. vivax, poderia não manter formas adormecidas do parasita no fígado, geralmente eliminadas pela primaquina. Segundo Ribeiro, a infecção poderia ser causada por P. simium ou por P. vivax que se adaptou ao macaco e chegou às pessoas por meio dos mosquitos: “Só vamos saber quando fizermos o sequenciamento completo de seus genomas.” Entre os especialistas, não há consenso se P. vivax e P. simium seriam mesmo espécies diferentes ou variações da mesma espécie. Em um artigo de 2005 na PNAS, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Irvine, Estados Unidos, argumentaram que pode ter havido pelo menos duas transferências de P. vivax de macacos para pessoas ou no sentido oposto, nos últimos milhares de anos. “Na África”, diz Cristiana, “o vivax e o falciparum vieram dos macacos para as pessoas”. n
Artigos científicos BRASIL, P. et al. Outbreak of human malaria caused by Plasmodium simium in the Atlantic Forest in Rio de Janeiro: A molecular epidemiological investigation. Lancet Global Health. v. 5, p. e1038-1046. 2017. COSTA, D. C. Plasmodium simium/Plasmodium vivax infections in southern brown howler monkeys from the Atlantic Forest. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 109 (5), p. 641-53. 2014. LIM, C. S. et al. Plasmodium vivax: Recent world expansion and genetic identity to Plasmodium simium. PNAS. v. 102 (43), p. 1552328. 2005.
pESQUISA FAPESP 262 z 45
genética y
Contra as pragas da citricultura Pesquisadores obtêm primeira laranjeira transgênica resistente à bactéria Xylella fastidiosa Rodrigo de Oliveira Andrade
A
Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), é uma bactéria oportunista. Tão logo infecta as laranjeiras, transmitida pela picada de um inseto, a cigarrinha, ela começa a se multiplicar e a obstruir os vasos responsáveis pelo transporte de água e nutrientes da raiz para a copa das plantas. O resultado são folhas com manchas amarelas e frutos duros e pequenos, que amadurecem mais rápido e são impróprios para a comercialização. Trabalhando em colaboração com pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, o grupo das biólogas Raquel Caserta e Alessandra Alves de
Souza, ambas do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em Cordeirópolis, interior paulista, conseguiu obter uma variedade de laranjeira transgênica resistente ao patógeno. A estratégia consistiu em introduzir no genoma da planta um gene da própria bactéria: o rpfF, responsável pela produção de uma proteína homônima que reduz a movimentação da Xylella. Nos testes iniciais, a diminuição da mobilidade da bactéria evitou que ela se espalhasse pela laranjeira, restringindo a colonização a poucas partes da planta. Na Xylella, a proteína RpfF controla a produção do fator de sinal difusível, ou DSF, molécula envolvida na regulação da
densidade populacional e do comportamento do microrganismo. Após invadir a planta e aderir à parede do xilema – o conjunto de vasos que leva água e nutrientes do solo para as folhas –, a bactéria se multiplica e permanece unida a suas descendentes, formando uma rede, ou biofilme, que permite que se comuniquem entre si e se comportem como um organismo único. Quando o biofilme já entupiu boa parte dos vasos da planta, a concentração de DSF aumenta e sinaliza para que as bactérias parem de se mover e de se espalhar pela laranjeira. No experimento, as pesquisadoras introduziram o rpfF da Xylella no genoma de duas variedades de laranja doce: pi-
1
Planta geneticamente modificada (à esq.) apresenta versão mais branda da infecção causada pela Xylella do que as tradicionais (à dir.) 46 z dezembro DE 2017
em Palma de Mallorca, na Espanha. Em parceria com os engenheiros-agrônomos Helvécio Della Coletta Filho, do IAC, e João Spotti Lopes, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), ela e pesquisadores italianos participam de um projeto que financia pesquisas e estimula a transferência de soluções inovadoras de controle da bactéria para a indústria, parte do Horizon 2020, o principal programa de fomento à pesquisa da União Europeia. Segundo Alessandra, a técnica de transgenia usada nas laranjeiras talvez possa ser adaptada para outras plantas. estratégias conjuntas 2
fotos 1 alessandra alves de souza / Iac 2 léo ramos chaves
Fruta saudável: com manejo adequado, a proporção de laranjais paulistas infectados com Xylella caiu de 43% em 2008 para 3% em 2017
neapple e hamlin. O objetivo era fazer a própria planta produzir a DSF e reduzir a capacidade da bactéria de colonizar o xilema. Em seguida, elas infectaram as plantas com a Xylella e as monitoraram ao longo de 18 meses. As laranjeiras capazes de produzir DSF apresentaram uma versão mais branda da doença, uma vez que a Xylella colonizou apenas parte (cerca de 30%) dos vasos. “Algumas plantas nem sequer apresentaram sintomas da doença”, explica Alessandra. A inserção do gene rpfF da Xylella nas laranjeiras também pode ser eficaz contra a Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico. A bactéria penetra na planta por aberturas nas folhas ou lesões no caule e nos frutos. Multiplica-se no local da infecção e se espalha pelo tecido sadio, danificando folhas e frutos. “A inserção do gene rpfF na laranjeira a fez produzir DSF e interromper a expressão de genes da Xanthomonas envolvidos na virulência e na patogenicidade da bactéria”, explica Raquel. A Xylella foi uma das piores pragas dos laranjais de São Paulo na década de 1990. A produção de mudas até então era feita a
céu aberto e deixava as plantas expostas ao inseto vetor da bactéria. À época, a praga atingia 34% dos pomares de laranja do estado, causando danos de cerca de US$ 100 milhões (o equivalente hoje a R$ 327 milhões) ao ano à citricultura paulista. Apoiados pela FAPESP, o sequenciamento do genoma da Xylella e o estudo da biologia da bactéria permitiram desenvolver um modelo de manejo da CVC — baseado no plantio de mudas cultivadas em viveiros protegidos, na poda ou eliminação das plantas contaminadas e no controle dos vetores — que fez a proporção dos laranjais paulistas afetados pela bactéria despencar de 43% em 2008 para 3% em 2017. Mesmo com a redução dos danos aos laranjais, ainda é necessário desenvolver outras estratégias de combate à Xylella, que, além de laranjeiras, afeta também videiras, oliveiras e amendoeiras em outros países. A Xylella vem causando estragos nos olivais da região da Apúlia, no sul da Itália, e recentemente chegou às plantações de uva e amêndoa da Espanha. Em novembro, Alessandra apresentou os resultados obtidos com as laranjeiras transgênicas em um congresso
Na Esalq-USP, a equipe do engenheiro-agrônomo Francisco Alves Mourão Filho trabalha há cerca de 20 anos na obtenção de laranjeiras transgênicas resistentes a pragas. Os estudos contaram com a participação da engenheira-agrônoma Beatriz Mendes, hoje aposentada. O resultado mais promissor que eles obtiveram foram laranjeiras com maior resistência à Xanthomonas. As plantas receberam um gene da mariposa Trichoplusia ni, que produz um composto antimicrobiano. As plantas estão sendo avaliadas, mas já indicam redução nos sintomas da doença. Para Mourão Filho, a produção de variedades transgênicas precisa ser acompanhada de outras medidas de manejo que ajudem a controlar as doenças no campo. Apesar dos resultados promissores, ainda há um longo caminho até que as laranjeiras transgênicas no IAC saiam das estufas e ganhem os campos. O próximo passo, segundo Alessandra, é entrar com um pedido de Liberação Planejada em Meio Ambiente na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável pela avaliação da segurança de organismos geneticamente modificados no Brasil. Se tudo der certo, a variedade poderá ser comercializada a partir de 2022. n
Projeto Interação Xylella fastidiosa-inseto vetor-planta hospedeira e abordagens para o controle da clorose variegada dos citros e cancro cítrico (nº 13/10957-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Alessandra Alves de Souza (IAC); Investimento R$ 1.246.847,60.
Artigo científico Caserta, R. et al. Ectopic expression of Xylella fastidiosa rpfF conferring production of diffusible signal factor in transgenic tobacco and citrus alters pathogen behavior and reduces disease severity. Molecular Plant-Microbe Interactions. v. 30 (11), p. 866-75. nov. 2017.
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tecnologia engenharia química y
Água sem sal Grupo desenvolve novo sistema de dessalinização que usa carvões ativados obtidos de polímeros condutores Marcos de Oliveira
P
ara extrair sal da água do mar ou água salobra de reservatórios subterrâneos, a tecnologia mais utilizada atualmente é a osmose reversa. O processo é considerado de alto custo pelo material utilizado e pelo gasto com energia elétrica: uma bomba de alta pressão força a água a passar por uma membrana polimérica, que retém os sais. Uma alternativa de dessalinização, com menor gasto de energia, é o processo de deionização capacitiva que utiliza carvões ativados com poros nanométricos (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão) para retirada da salinidade da água. Carvões com características diferenciadas para essa aplicação foram desenvolvidos por pesquisadores do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Eles são semelhantes aos usados em filtros de água comuns, mas com uma quantidade e tamanho de poros que proporcionam uma elevada área de retenção de íons e moléculas”, explica o engenheiro químico Luís Augusto Martins Ruotolo, professor da UFSCar. Os carvões ativados podem ser feitos com diferentes materiais, como madeira, bagaço de cana, casca de coco e polímeros. No invento da UFSCar, o carvão foi preparado aquecendo-se um polímero condutor de eletricidade, chamado de polianilina, 48 z dezembro DE 2017
a 800 graus Celsius (°C), em condições adequadas para eliminar a matéria orgânica volátil. O resultado foi um eletrodo rico em carbono. A inovação dos pesquisadores da UFSCar tornou os carvões ativados mais eficientes e com melhor capacidade de retenção de moléculas ou íons na superfície. Ruotolo e o doutorando Rafael Linzmeyer Zornitta, que são do Laboratório de Tecnologias Ambientais (Latea), inseriram dois desses eletrodos em uma célula eletroquímica composta por placas de acrílico e borrachas de vedação. Eles ficaram posicionados em lados opostos dentro da célula (ver infográfico na página 51) e separados por um canal onde escoa a água com sal (cloreto de sódio) a ser dessalinizada. Para viabilizar a dessalinização, uma tensão elétrica de 1,2 volt (V) foi aplicada na célula eletroquímica. Essa tensão é menor do que a transmitida por uma pilha comum (AA), de 1,5 V. Assim, um dos eletrodos ficou polarizado com carga negativa e o outro com carga positiva. Com a entrada da água salobra na célula, passando entre os eletrodos, os íons de sódio (Na+), que tem carga positiva, são atraídos e retidos no eletrodo negativo, e o cloreto (Cl-) se desloca ao polo positivo. Quando os eletrodos se tornam saturados por esses elementos, basta inverter a polaridade e o material aderido será repelido, podendo ser deslocado para fora da célula, em um processo
Instalações do sistema de purificação de água salobra na comunidade de Pedra Bonita, em Pé de Serra, na Bahia
Pedro Moraes / GOVBA
de retrolavagem. Os pesquisadores pretendem, no futuro, construir um protótipo e operá-lo com um painel de energia solar. Carvões ativados que adsorvem sais já existem no mercado, mas não são adequados ao processo de deionização capacitiva por possuírem pequenas áreas de retenção dos íons de sal. Os carvões desenvolvidos no Latea apresentam áreas para reter elementos químicos seis vezes maior que os carvões de mercado. A invenção resultou em um pedido de patente depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pela Agência de Inovação da UFSCar. A inovação abrange também outras possibilidades de uso desse material – como no tratamento de efluentes industriais e na extração de outros sais da água. “Em uma caldeira que gera vapor, por exemplo, a água tem que ser limpa o suficiente para que elementos como cálcio, magnésio e ferro não provoquem incrustações nas tubulações”, diz Ruotolo. Nesse estudo, ele conta com parcerias no Instituto Madrilenho de Estudos
Avançados (IMDEA-Energía) e na Universidade de Málaga, ambos na Espanha, e na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos. Vantagens e desvantagens
Passada a primeira fase do projeto, o doutorando Rafael seguiu para o Instituto Leibniz de Novos Materiais, na Alemanha, onde integra uma equipe liderada pelo professor Volker Presser, que desenvolve tecnologia para deionização capacitiva. Ele levou na bagagem carvões ativados feitos de lignina de cana-de-açúcar fornecida pelo Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), de Campinas (SP). A lignina é o componente do bagaço que sobra do processo da segunda geração de fabricação de etanol. Ela está sendo usada, na Alemanha, na produção de carvões ativados para estudos sobre a deionização capacitiva. “A perspectiva é de que a segunda geração avance no Brasil nos próximos anos e sobrem grandes quantidades de lignina nas usinas”, diz Ruotolo. pESQUISA FAPESP 262 z 49
A principal vantagem da deionização capacitiva sobre a osmose reversa, que domina o mercado de dessalinização, é o baixo custo de operação, por utilizar pressões de água menores e requerer baixas voltagens. Mas a deionização não serve ainda para a dessalinização da água do mar. Essa tecnologia não comporta um volume de sal maior que 10 gramas (g) por litro (l) – a água do mar contém 35 g/l. “Existe hoje uma grande mobilização da comunidade científica na busca por novos materiais ou estratégias de operação visando viabilizar a dessalinização por deionização capacitiva da água do mar”, comenta Ruotolo. Um processo ainda longo e difícil de superar nesse momento porque na osmose reversa a extração de sal é tão perfeita que a água sai na forma destilada. Para torná-la potável é preciso acrescentar pequenas quantidades de sais minerais.
E
mbora a tecnologia precise ser aperfeiçoada, a deionização capacitiva já é utilizada comercialmente por uma empresa da Holanda, a Voltea, que tem como investidores a Unilever Ventures e um fundo britânico de investimento em tecnologias ambientais, o Environmental Technologies Fund. A empresa, desde 2009, vende sistemas de dessalinização, embora não apropriados para a água do mar. A tecnologia usada pela Voltea se baseia na aplicação de uma tensão elétrica entre dois eletrodos de carbono poroso colocados em paralelo em uma célula. Os eletrodos de carbono são construídos camada a camada, na forma de filmes finos com espessuras em micrômetros. Esses dispositivos são dimensionados e posicionados conforme o volume da água que se quer dessalinizar. A tecnologia da Voltea é usada na dessalinização de água de torneira, para uso industrial e em irrigação na agricultura. A grande vantagem é o baixo consumo de energia. Mesmo com limitações, a Voltea foi reconhecida como uma das 21 Tecnologias Pioneiras em 2013, no Fórum Econômico Mundial, e premiada no 2010 Global Water Summit. A ampliação das potencialidades de aplicação da deionização capacitiva ainda demanda desenvolvimento tecnológico, mas pode ser uma questão de tempo. “A aplicação comercial da osmose reversa teve início em 1965, mas somente nos anos 1980 começou a ser usada de forma extensiva na dessalinização. Foi um amadurecimento tecnológico, com novas soluções que foram aparecendo”, diz o engenheiro químico Emilio Gabbrielli, italiano radicado no Brasil, que presidiu a Associação Internacional de Dessalinização (IDA) até outubro deste ano. Atualmente é diretor de Desenvolvimento de Negócios Global do Setor de Águas da Toray, empresa japonesa que fabrica filtros e membranas de osmose reversa, entre outros produtos. Ele conta que, como a deionização, 50 z dezembro DE 2017
No Nordeste brasileiro, 3 mil dessalinizadores produzem água potável para 200 mil pessoas
Acima, equipamentos da usina que utiliza osmose reversa em Ashkelon, Israel: 392 mil m3 de água processada por dia, quantidade que serve 1 milhão de pessoas
existem outras tecnologias experimentais que, em alguns anos, poderão substituir com custos mais baixos a osmose reversa. Gabbrielli estima que a quantidade de água dessalinizada em todo o mundo é de 100 milhões de metros cúbicos (1 m3 é igual a mil litros) por dia, o equivalente a 20 vezes a vazão média do rio Tâmisa, que corta a cidade de Londres. Isso ocorre em cerca de 19 mil instalações de dessalinização. Hoje utilizam água dessalinizada entre 300 milhões e 400 milhões de pessoas, principalmente em países como Israel, Arábia Saudita, Cingapura, Austrália e Espanha. “Busca-se cada vez mais o uso de energia renovável, como a solar e a eólica, para mover os dessalinizadores, e países como Austrália e Arábia Saudita estão na frente dessa opção energética.” Em relação ao preço desse processo, o ex-presidente da IDA diz que o m3 de água dessalinizada custa entre US$ 0,60 e US$ 1,50 nas usinas de maior capacidade, dependendo da região onde é utilizada. Comparativamente, a água tratada ou transportada pelas companhias de abastecimento no Brasil custa entre R$ 0,10/m3 e R$ 0,20/m3, mas em muitos casos, que envolve o transporte por rodovias, pode estar perto do custo da dessalinização. Para Gabbrielli, a dessalinização ganhará importância no país em um futuro próximo porque existe a necessidade de maior volume de água
Retenção eletroquímica Experimento com deionização capacitiva na UFSCar utiliza eletrodos feitos de polímero
Água + Sal [NaCl]
Célula eletroquímica
Bomba peristáltica
Eletrodo Separador
Polo positivo
Energia
Polo negativo
Energia Água dessalinizada
Cloro Sódio [Cl-] [Na+]
Dentro da célula eletroquímica, dois eletrodos recebem energia equivalente a uma pilha pequena. A água é bombeada para a célula e perde as moléculas de sal, que são quebradas. O sódio se liga ao eletrodo negativo e o cloro ao positivo
Água dessalinizada Fonte Luís Ruotolo / UFSCar
foto dima / flickr Infográfico ana paula campos ilustraçãO pedro hamdan
para as populações e se tornará importante em períodos de estiagem. O executivo prevê que um maior conhecimento das tecnologias e uma queda maior no preço dos dessalinizadores possam fazer as capitais brasileiras à beira-mar adotar esse processo. “Mas a tecnologia de osmose reversa também se aplica ao reúso de água. Imagino que dentro de 10 a 20 anos a água reusada servirá até mesmo para abastecimento tradicional”, diz o engenheiro químico.
N
o Brasil, a maior experiência de dessalinização acontece no sertão nordestino com os programas governamentais Água Boa (1998-2003) e Água Doce (2003-2010), do Ministério do Meio Ambiente, que levaram dessalinizadores para comunidades isoladas do semiárido. Nessa região, a água subterrânea é salobra porque entra em contato com rochas cristalinas. Hoje, 3 mil dessalinizadores atendem a cerca de 200 mil pessoas. Os dois programas governamentais foram inicialmente coordenados pelo engenheiro químico Kepler França, professor do Laboratório de Referência em Dessalinização (Labdes) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba. Ele também contribuiu para a implantação de dessalinizadores no arquipélago de Fernando de Noronha instalados em 1998. Lá, o
sistema instalado representa 40% do consumo das ilhas. O restante é fornecido por água de chuva acondicionada em poços e depois tratada. O próximo grande centro brasileiro a contar com dessalinização da água do mar deverá ser Fortaleza, no Ceará. A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) lançou, em agosto de 2017, um edital para escolher duas empresas que farão os estudos da futura usina. Recentemente, foram selecionadas as empresas espanholas GS Inima e Acciona, que entregarão o projeto em 150 dias. O empreendimento, que custará R$ 500 milhões, está previsto para 2020 e terá a meta de suprir 12% da água potável da Região Metropolitana de Fortaleza. n
Projetos 1. Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de novos eletrodos e otimização do processo (nº 15/16107-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Augusto Martins Ruotolo (UFSCar); Investimento R$ 228.804,27. 2. Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de eletrodos e otimização do processo (nº 15/26593-3); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Luís Augusto Martins Ruotolo (UFSCar); Bolsista Rafael Linzmeyer Zornitta; Investimento R$ 41.033,51; R$ 102.303,70 (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior).
Artigo científico Zornitta, R. L.; Ruotolo, A. M. Simultaneous analysis of electrosorption capacity and kinetics for CDI desalination using different electrode configurations. Chemical Engineering Journal. On-line. 11 set. 2017.
pESQUISA FAPESP 262 z 51
humanidades edição de cartas y De Graciliano Ramos para Nelson Werneck Sodré (1943)
Metodologia epistolar Projeto franco-brasileiro estabelece critérios para a publicação de correspondência intelectual
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radicional em países como a França, a publicação de cartas, sobretudo entre escritores, é uma atividade editorial que só recentemente, desde o início deste século, ganhou regularidade no Brasil. Levantamento de publicações de correspondência de intelectuais brasileiros, feito pelo pesquisador Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), indicou que foram lançados 301 títulos entre 1872 e novembro de 2017, sendo 125 desde 2000. A constatação de que o crescimento desse filão editorial não veio acompanhado de um esforço metodológico correspondente foi um dos motivos que levaram à criação do projeto “Artífices da correspondência: Procedimentos teóricos, metodológicos e críticos na edição de cartas”, coordenado pelos pesquisadores Marcos Antonio de Moraes e Antonio Dimas, também do IEB, ambos professores de literatura brasileira, e por Claudia Poncioni, docente do Departamento de Estudos Ibéricos e Latino-americanos da 52 z dezembro DE 2017
Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. A investigação reuniu, entre 2013 e 2016, pesquisadores brasileiros, portugueses e franceses dedicados à epistolografia – o estudo de cartas e correspondências –, com apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil. “Um dos objetivos foi definir pressupostos metodológicos sobre procedimentos de estabelecimento dos textos das cartas e da potencialização da anotação editorial”, conta Moraes. Há parâmetros metodológicos gerais, como atualizar a ortografia e fazer determinado tipo de anotação, e outros mais específicos que são definidos dependendo do leitor que se deseja atingir com a edição – o que interessa para filólogos e historiadores pode não ser relevante para leitores leigos. Isso significa valorizar a legibilidade do texto e a sua contextualização histórica e linguística. Outro eixo se voltou para “o estudo da carta como objeto e como fonte de pesquisa”, para o qual contribuíram especialistas em filologia e críti-
ca textual, bem como de diversas outras áreas de estudos. Como parâmetro foram tomados os estudos realizados a partir de meados dos anos 1960 na França, que ampliaram o interesse literário para além da leitura estrutural dos textos, predominante até então, e avançando para o campo da crítica cultural. De acordo com Eneida Maria de Souza, professora de teoria da literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “a crítica cultural veio preencher um vazio no que diz respeito à abordagem da obra de determinado autor, voltando-se para outros campos do exercício da escrita, como a correspondência, os diários, a produção de uma vida literária e o aspecto histórico e contextual da obra de determinado autor”. Embora essa seja uma tendência que no Brasil só começou a tomar impulso nos anos 1980, Moraes ressalta que o contexto da produção de obras literárias sempre foi importante na área de letras da USP graças à influência do crítico literário Antonio Candido. Em um estudo sobre Mário de Andrade, em 1946, Can-
cartas bndigital fotos youtube.com (reprodução)
Márcio Ferrari
De Machado de Assis para o Visconde do Rio Branco (1876)
De Drummond para Werneck SodrĂŠ (1982)
De Carlos Drummond de Andrade para Arthur Ramos (1947)
De MĂĄrio de Andrade para Arthur Ramos (1944)
dido afirmava que “a sua correspondência encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero em língua portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito”.
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oraes, que tem como “trabalho de vida” organizar e divulgar a “correspondência reunida” de Mário, dispersa em arquivos no Brasil e no exterior, encarou como estímulo para a criação do projeto “Artífices da correspondência” a convivência com o acervo epistolar do escritor, no IEB. Sob a coordenação da professora Telê Ancona Lopez, o instituto começou a organizar a Série Correspondência do escritor em 1989, quando se aproximavam os 50 anos da morte do escritor, prazo estipulado em uma carta testamento. “Mário conservou aquilo provavelmente pensando no testemunho da configuração de uma intensa rede de sociabilidade entre os modernistas”, supõe Moraes, lembrando que o escritor tratou de questões estéticas e sociais na sua correspondência com os poetas Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira e as artistas plásticas Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Atualmente a bibliografia da correspondência de Mário de Andradre tem mais de 40 volumes, o primeiro deles de 1958, organizado por Bandeira. Moraes percebeu que, em muitas das edições da correspondência do autor de Macunaíma, assim como em outras publicações do gênero, havia problemas de fidedignidade decorrentes de fragilidades metodológicas e mesmo de cortes nos textos sem que essas intervenções fossem comunicadas ao leitor. Mesmo
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Em geral, o leitor precisa de subsídios, como anotações, para entender expressões e contexto
Bandeira recorreu a esse expediente ao publicar sua correspondência com Mário, mas deixou isso claro no prefácio. Diante de tal situação, dialogando com pesquisadores franceses da área de epistolografia, o grupo sediado no IEB começou a propor novas metodologias. “Em geral o leitor precisa de subsídios, como anotações, para poder compreender nomes, expressões de época e contexto histórico”, afirma Moraes. Como a publicação de cartas em livros não recupera totalmente a complexidade do manuscrito, passou-se a dar importância à materialidade dos documentos – Bandeira, por exemplo, escreveu uma carta em papel de embrulhar pão –, incluindo caligrafia, intervenções gráficas dos interlocutores, timbres, filigranas. Moraes evoca o especialista francês, Philippe Lejeune, dedicado ao estudo das “escritas de si” (autobiografia, diários etc.), para
quem uma carta é um objeto, um texto e um ato. Por isso, a explicitação dos aspectos materiais recomenda as edições acompanhadas de fac-símiles. “O projeto que depois ganhou o nome de ‘Artífices da correspondência’ teve origem nos trabalhos vinculados à edição dos diálogos epistolares de Mário de Andrade, que vêm sendo divulgados na coleção Correspondência Mário de Andrade. São edições levadas a termo por diversos pesquisadores, orientadas por princípios metodológicos consistentes, as quais poderíamos chamar de científica, permitindo que as cartas sejam objeto e fonte confiáveis de estudos”, relata Moraes. As cartas de Mário oferecem desafios, como a manutenção do uso heterodoxo da língua. Ele escrevia, por exemplo, “eu sube”, no lugar de “eu soube”. “Se essa forma de experimentalismo linguístico não for respeitada nas edições, perde-se algo muito importante – a intenção do autor em criar um novo tipo de expressão literária de acordo com o seu projeto nacionalista.” Por outro lado, formas ortográficas antigas – como o “ph” em lugar do “f ” – devem ser atualizadas, a não ser que se trate de uma edição especificamente voltada para filólogos. O uso de itálico para palavras estrangeiras mereceu, no caso das correspondências entre modernistas, um cuidado especial. Para as expressões francesas, evitou-se o destaque gráfico, levando em conta o modo informal como surgem nas cartas, por tratar-se de um idioma quase cotidiano para a elite intelectual brasileira da época. O emprego de itálico daria a ideia de que o uso desses vocábulos era algo excepcional e, eventualmente, irônico.
cartas bndigital fotos youtube.com (reprodução)
De Mário de Andrade para Arthur Ramos (1933)
Vem daí a importância das notas explicativas. Hoje os editores sabem que o desconhecimento de um nome pode ser resolvido pelo leitor com uma busca na internet, mas é preciso explicar o porquê da referência, se isso não estiver claro no texto. O mesmo se dá com códigos linguísticos perdidos como, por exemplo, o presente em uma carta da poeta Cecilia Meirelles a suas filhas na qual usa a expressão “da pontinha”, uma referência à gíria “da pontinha da orelha”, que qualificava algo muito bom.
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ausência de conhecimento cultural ou filológico em determinados casos pode promover a perpetuação de mal-entendidos. “Os textos das cartas muitas vezes vão sendo modificados pelo editor da compilação”, explica Moraes. “Acontece de a pessoa não conhecer uma palavra e colocar no lugar outra que ela conhece.” Isso pode se misturar a dificuldades com a caligrafia do missivista. Uma carta de Machado de Assis a sua então noiva Carolina durante muito tempo incluiu, em suas edições em livro, a expressão “queimaremos o mundo”, enigmática e avessa ao temperamento do escritor. O retorno aos originais levou à conclusão de que a frase correta era “correremos o mundo”. Um dado interessante sobre a correspondência de Mário de Andrade é que o escritor guardou as cartas recebidas, mas raramente manteve cópias daquelas que escrevia. Hoje se conhecem as mais de 7 mil cartas recebidas por Mário, mas “apenas” 2,5 mil enviadas. O que se tem, contudo, já torna possível desenhar ou complementar um perfil enriquecido do escritor, embora exija cautela. “Mário não escreveu uma autobiografia nem deixou um diário”, lembra Moraes. “Nas cartas há a construção de um sujeito muito peculiar, moldado ao longo do tempo; portanto, ‘personagem’ não isento de contradições, em uma perspectiva diacrônica”, prossegue. “Mesmo quando ele escreve para duas ou três pessoas no mesmo dia, percebe-se que existe uma série de ‘encenações’ de si. A linguagem vai se moldando em relação ao outro.” Tomar os textos de cartas como expressão factual de uma biografia é, portanto, “um perigo”, adverte o pesquisador. Um caso que suscita perguntas é o de duas cartas escritas nos anos 1940 por Mário ao futuro político Carlos Lacerda,
De Manuel Bandeira para Anna Salles Brandão (1966)
então um jovem intelectual. O material foi examinado pelo pesquisador do IEB Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, que colaborou com Moraes na publicação de um dossiê derivado do projeto “Artífices da correspondência”, publicado este ano na Revista do IEB. Neves concluiu que as cartas nunca foram enviadas. Os textos revelam certo desagrado do escritor em relação a críticas a sua obra feitas pelo pretendido destinatário e também dilemas em relação a sua própria atuação política, provocados por Lacerda. Mário era crítico do autoritarismo do Estado Novo (1937-1945), ao mesmo tempo que trabalhou para vários órgãos públicos. “Algo no percurso entre a escrita e o lacre do envelope ocorreu na relação do autor com o que está exposto na carta”, supõe Neves. Para o pesquisador, um dos aspectos mais importantes do dossiê foi, “em vários casos, dar continuidade a projetos que já vêm sendo desenvolvidos por pesquisadores de outras instituições além do IEB, não necessariamente trabalhando com os seus acervos de origem”. Entre os centros de estudo que tradicionalmente se voltam para a epistolografia ele cita a UFMG, que abriga a correspondência de autores mineiros, a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro, e a Academia Brasileira de Letras, que publicou neste século quatro volumes da correspondência de Machado de Assis. Com um trabalho anterior na FCRB, a pesquisadora Ieda Lebensztayn, também do IEB, realizou um estudo de cartas inéditas de Graciliano Ramos descrito na revista do instituto, que abriga o arquivo do autor. Alguns desses textos mostram a estratégia do escritor em encarar, de início, alguns de seus romances como coleções de contos interligados, o que é
verificável, entre outros livros, em Vidas secas. Ieda também se dedicou às cartas enviadas e recebidas por Graciliano com interlocutores franceses sobre a publicação de suas obras na França. Nelas, o escritor evidencia sua admiração pelo legado de Honoré de Balzac. A correspondência mostra o perfil bem-humorado de um homem geralmente considerado taciturno. Em 1931, dirigindo-se ao jovem poeta Aloísio Branco, Graciliano escreveu: “Você não me mandou endereços, naturalmente porque vive fora da terra. Infelizmente o carteiro não vai a esses lugares por onde você anda – e eu sou forçado a escolher uma região intermediária, a Livraria Católica”. n
Projetos 1. Correspondances générales, correspondência reunida: Pressupostos metodológicos, críticos e interpretativos (nº 13/21659-0); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador responsável Marcos Antonio de Moraes (USP); Investimento R$ 32.738,58. 2. Entre letras e lutas: Edição de texto fidedigno e anotada da correspondência de Mário de Andrade e Carlos Lacerda (nº 16/18804-7); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marcos Antonio de Moraes (USP); Bolsista Rodrigo Jorge Ribeiro Neves; Investimento R$ 201.573,18. 3. O estilo de Graça nas cartas. Organização e estudo da Série Correspondência Graciliano Ramos no Instituto de Estudos Brasileiros-USP (nº 10/12034-9); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marco Antonio de Moraes (USP); Bolsista Ieda Lebensztayn; Investimento R$ 205.769,04.
Artigo científico Dossiê Artífices da correspondência. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. v. 1, p. 103-220, 240-74. 2017.
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obituário y
Vanguarda historiográfica Emília Viotti deixa legado fundamental para entender processos de abolição da escravidão na América Latina
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1964, intitulada “Escravidão nas áreas cafeeiras, aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos da transição do trabalho servil para o trabalho livre”, que renovou as pesquisas sobre a Abolição. Em 1966, o estudo foi publicado pela Difusão Europeia do Livro (Difel) com o título Da senzala à colônia. Barbara explica que Da senzala à colônia fez parte de uma leva de estudos que procuraram reduzir a ênfase em questões morais, políticas e ideológicas, ressaltando os fatores sociais e econômicos do processo de Abolição. “Emília foi uma das primeiras a reconhecer o papel dos escravos no processo de emancipação, especialmente por meio das fugas em massa das fazendas de café a partir de 1885”, analisa. Exílio nos Estados Unidos
Em reconhecimento ao valor desse trabalho, a historiadora foi convidada para ministrar a aula inaugural na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (hoje FFLCH) em 1968, ano do Ato Institucional número 5 (AI-5). Na ocasião, ela criticou o projeto universitário do regime militar. A professora titular do Departamento de História da USP Maria Helena Rolim Capelato lembra que, logo após o AI-5, Emília foi demitida da USP por causa de críticas feitas durante essa aula inaugural ao acordo firmado pelo governo brasileiro com uma organização norte-americana
Adriana Zehbrauskas / Folhapress
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eferência na historiografia brasileira e latino-americana e nos estudos sobre a escravidão e a diáspora africana, a historiadora Emília Viotti da Costa sempre considerou a docência uma atividade fundamental. Barbara Weinstein, historiadora e brasilianista da Universidade de Nova York (NYU), ingressou no doutorado na Universidade Yale em 1973 para estudar a Argentina. Acabou optando por pesquisar o Brasil por conta das aulas ministradas por Emília na instituição norte-americana. “Ela me mostrou que o país oferecia um campo rico para investigar questões da história do trabalho e que era impossível entender a classe operária sem estudar a trajetória dos empresários”, lembra. Emília morreu no dia 2 de novembro, aos 89 anos, em consequência de falência múltipla dos órgãos. Natural de São Paulo, Emília Viotti era professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e atuou durante 26 anos como docente de história da América Latina na Universidade Yale. A amiga Sylvia Bassetto, professora do Departamento de História da USP, lembra que Emília, desde suas primeiras experiências na escola básica até se tornar emérita em Yale, em 1999, atribuía à sua condição de professora o estimulo à vida intelectual. A pesquisadora defendeu sua tese de livre-docência sobre o trabalho escravo na USP em
A historiadora em São Paulo (1998): a docência era uma atividade fundamental
para a realização de reformas no sistema educacional do país. De acordo com Maria Helena, essa aula se transformou em um texto publicado pela revista do grêmio da FFLCH e circulou por universidades do país nas semanas seguintes. Emília exilou-se nos Estados Unidos em 1969 e, em 1973, passou a lecionar história da América Latina em Yale, cargo que ocupou até 1999. “Sua carreira acadêmica Carreira no no exterior permitiu formar pesexterior ajudou quisadores norte-americanos que se tornaram importantes brasiliaa formar nistas, entre eles John French e Barbara Weinstein, pesquisadora pesquisadores que, hoje, chamamos de embaixadora dos historiadores brasileiros que se nos Estados Unidos”, relata Maria tornaram Helena. Emília foi também diretora do Programa de Estudos da Mulher brasilianistas e do Conselho de Estudos Latino-americanos em Yale. Barbara, da NYU, lembra ainda que, nos Estados Unidos, Emília teve de se adaptar a um novo mundo acadêmico onde não contava com o mesmo prestígio que tinha no Brasil. “Eu demorei para entender os desafios que ela estava enfrentando. No meu olhar, ela era tão brilhante e carismática que era impossível pensar nela como uma pessoa vulnerável. Quando Emília ingressou em Yale, o Departamento de História era um clube de homens e não havia mulheres entre os professores titulares.”
Sylvia Bassetto considera que a carreira acadêmica de Emília nos Estados Unidos foi construída à revelia de uma situação desfavorável. Isso envolvia a ameaça de desemprego, os problemas de visto, a angústia de separar-se da família e, sobretudo, a infinita solidão e sensação de desenraizamento que sofrem os exilados. O filósofo Jézio Gutierre, diretor-presidente da Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), considera que uma das preocupações centrais da historiadora foi entender questões contemporâneas do Brasil olhando para aspectos do passado. “Emília se incomodava com historiadores que se debruçavam sobre a história antiga sem pensar nas consequências à vida contemporânea”, afirma. Maria Helena explica que outra grande contribuição historiográfica de Emília é o livro Coroas de glória, lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Memerara em 1883, publicado primeiramente em inglês, em 1994, e editado no Brasil pela Companhia das Letras, em 1998. “Com essa obra, Emília se tornou referência em história do Brasil, mas também na história de outros países da América Latina”, enfatiza. No Brasil, em seu trabalho mais recente, Emília publicou O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, em 2001, procurando colocar o Judiciário em primeiro plano ao analisar a história política do Brasil. “Avessa ao enquadramento a esquemas teóricos rígidos, Emília inspirou inúmeras direções aos estudiosos da escravidão, apontando lacunas e temas pouco explorados”, afirma Sylvia Basseto. n Christina Queiroz PESQUISA FAPESP 262 | 57
memória
Ciência no sertão Expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz apresentaram um novo retrato das condições de vida e da saúde no Brasil rural no início do século XX Rodrigo de Oliveira Andrade
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E
m março de 1912, os médicos Arthur Neiva e Belisário Penna, notáveis cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, deixaram seus laboratórios e embarcaram para Salvador, na Bahia, de onde seguiram rumo aos sertões de Pernambuco, Piauí e Goiás. A bordo de paquetes e marias-fumaças, a cavalo ou no lombo de mulas, eles percorreram regiões pouco conhecidas, avaliando as condições de saúde da população e a ocorrência de moléstias infecciosas. Ao mesmo tempo, documentavam aspectos geográficos, econômicos e socioculturais dos lugares que visitavam. Os registros dessa expedição resultaram em uma crônica das condições de vida da população interiorana, seus hábitos e modo de pensar. As fotos e diários produzidos tiveram grande repercussão entre a elite médica e intelectuais do país ao revelarem um Brasil doente, explorado e inculto que vivia à margem do cosmopolitismo das grandes cidades. A expedição chefiada por Neiva e Penna veio na esteira de outras viagens científicas levadas a cabo no início do século XX por demanda de órgãos governamentais e empresas privadas. O objetivo era explorar os potenciais econômicos do território brasileiro e promover a integração nacional a partir de ações que levassem o desenvolvimento aos rincões
Médico Astrogildo Machado (sentado, com os dedos cruzados) no vale do Tocantins, em fins de 1911
fotos Departamento de pesquisa em história das ciências e da Saúde da coc-fiocruz
Entrada da gruta, em Lassance (MG), onde Carlos Chagas encontrou e coletou barbeiros, vetores da doença de Chagas
do Brasil. Já em 1906 o médico Antônio Cardoso Fontes (1879-1943) havia sido enviado a São Luís, no Maranhão, para conter um surto de peste bubônica, enquanto o médico Carlos Chagas (1879-1934) executava a primeira campanha contra a malária no país, em Itatinga (SP), onde a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidrelétrica. No ano seguinte, ao lado de Arthur Neiva (1880-1943), Chagas também promoveu uma campanha para debelar a malária em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a Inspetoria Geral das Obras captava água para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro. Também em 1907, Chagas e Belisário Penna (1868-1939) seguiram para Minas Gerais para conter um surto de malária que dificultava os trabalhos de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil. Anos mais tarde, em 1910, o médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) realizou inspeções em áreas próximas às obras da usina hidrelétrica que a Light and Power construía em Ribeirão das Lages, no Rio. As expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz (atual Fundação Oswaldo Cruz), entre 1911 e 1913, partiram das mesmas demandas. Entre setembro de 1911 e fevereiro de 1912, o médico Astrogildo Machado (1885-1945) e o farmacêutico Antônio Martins percorreram os
Viagens revelaram um país doente, explorado e inculto que vivia à margem do cosmopolitismo das grandes cidades
vales do São Francisco e do Tocantins com as equipes da Estrada de Ferro Central do Brasil. Outra viagem importante foi a de Carlos Chagas, Pacheco Leão (1872-1931) e João Pedro de Albuquerque (1874-1934), em expedição requisitada pela Superintendência da Defesa da Borracha, entre outubro de 1912 e março de 1913. “Viajar por empreitada não era novidade para os pesquisadores de Manguinhos”, esclarece o historiador Fernando Pires-Alves, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa Oswaldo
Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz). “Muitos já haviam conduzido inspeções e medidas profiláticas em canteiros de obras de ferrovias, barragens e portos ao longo da costa brasileira.” No entanto, nenhuma expedição repercutiu tanto quanto a chefiada por Neiva e Penna, que pretendia conhecer e mapear a ocorrência de doenças no norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e norte e sul de Goiás. Os cientistas percorreram essas regiões entre abril e outubro de 1912. Dormiam muitas vezes em tendas improvisadas no meio da mata e estudavam as condições de vida e a história das localidades que visitavam para melhor compreender a incidência e
Belisário Penna e o fotógrafo José Teixeira pouco antes de embarcarem para a Bahia, em 1912 PESQUISA FAPESP 262 | 59
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a distribuição de algumas moléstias e propor medidas profiláticas para combatê-las. “A expedição de Neiva e Penna se destaca pelos detalhes das observações, depoimentos dos moradores das regiões percorridas e pelo vultoso registro fotográfico sobre o modo de vida das populações interioranas do Brasil”, conta a historiadora Dominichi Miranda de Sá, também do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da COC-Fiocruz. As cerca de 1.700 fotografias foram tiradas pelo fotógrafo da equipe, José Teixeira. Parte delas foi recuperada e hoje se encontra no acervo do Departamento de Arquivo e Documentação da COC-Fiocruz, que também reúne os diários de viagem e relatórios feitos pelos cientistas. Os registros indicam que os sertanejos eram vítimas de doenças como malária, tuberculose, sífilis, leishmaniose, hanseníase e bouba, um tipo de doença dermatológica. Eram frequentes os casos 60 | dezembro DE 2017
Vilarejo em Cidade de Paripi, no Amazonas, foi uma das regiões visitadas pelos pesquisadores em 1912
Neiva e Penna (ao centro, sentados) em acampamento no município de Bebe Mijo, no Piauí, em 1912
de difteria e carbúnculo, uma infecção de pele que costuma atingir a nuca e as costas. Alguns dos aspectos que impressionaram os médicos foram os casos de doenças desconhecidas, como “entalação” e “vexame”. Os que padeciam de “entalação” “provocavam irreprimivelmente o riso quando, em trejeitos e ginásticas tragicômicas, esforçavam-se por deglutir
o bolo alimentar, o que nem sempre conseguem, deixando de alimentar-se, às vezes, dois a três dias a fio”, escreveram os sanitaristas em seu diário de viagem. Já o “vexame” acometia sobretudo as mulheres, desencadeando “um ataque silencioso, mudo, sem contorções nem convulsões de qualquer espécie, caindo a paciente, se estava em pé, ou continuando sentada, se já
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fotos 1 e 2 Departamento de pesquisa em história das ciências e da Saúde da coc-fiocruz 3 reprodução do livro a ciência a caminho da roça
estava assim, sem fala, sem movimento, mas ouvindo, muitas vezes, e vendo o que se passava ao redor, durante esse estado de imobilidade de 10 minutos a uma hora”. Essas condições foram mais tarde esclarecidas como sendo manifestações clínicas da doença de Chagas. Os pesquisadores também registraram práticas curandeiras. Uma delas, aplicada a pessoas mordidas por cães infectados com o vírus da raiva — ou “estripados”, no jargão local —, consistia em uma mistura de alho, sal e urina, além da introdução da chave do sacrário da igreja na boca do paciente. Já para os casos de difteria, administrava-se limão e o dente canino esquerdo de um porco-do-mato que, depois de torrado, deveria ser diluído em álcool e bebido. Nas comunidades isoladas de Porto Nacional (no atual estado de Tocantins) e Goiás, fizeram observações sobre o estilo de vida dos habitantes: “(...) homens do mato, que falam pouco, ouvem muito e, em silêncio, decifram os sinais da natureza, indicando-lhes quando plantar e quando colher”. Diferentemente do sertão do Piauí, no de Porto Nacional e Goiás quase não havia bois, cavalos e mulas. O fumo só vingava em terras adubadas e o milho só dava uma ou duas espigas. Também não circulava dinheiro, e todos os mantimentos eram obtidos por meio da barganha. “Raro é o indivíduo que sabe o que é o Brasil”, escreveu Neiva em uma de suas notas. “O governo é, para esses párias, um homem que manda na gente, e a existência desse governo conhecem-na porque esse homem manda todos os anos cobrar-lhes os dízimos”,
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Em Caracol, também no Piauí, adultos e crianças eram acometidos com frequência por conjuntivite granulosa
Expedição de Neiva e Penna se destaca pelos detalhes das observações e vultoso registro fotográfico sobre o modo de vida das populações do interior do país
destacaram os médicos. Os relatórios de Neiva e Penna foram publicados em 1916 na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (disponível em http://bit.ly/ Vciencia). Apresentavam um sertão marcado pela vastidão, baixa densidade demográfica e pelo analfabetismo, em uma situação de ausência de meios de transporte e de vias de comunicação com o litoral. “Os relatos também evidenciaram a presença mínima de médicos, além da pobreza, apatia, desatenção às leis e resolução violenta de conflitos”, diz Dominichi. Segundo ela, os escritos tiveram grande repercussão em meio à opinião pública letrada das cidades do Rio e de São Paulo a partir de textos e artigos jornalísticos publicados em jornais como o Correio da Manhã. Após a expedição, Neiva e Penna se tornaram propagandistas
contumazes do saneamento do Brasil, procurando sensibilizar governantes sobre a ideia de que o progresso econômico, social e moral do país só viria com a melhoria das condições de saúde da população rural. Vários escritores foram influenciados pelos relatos desses cientistas, entre eles Monteiro Lobato (1882-1948), que aderiu à campanha em prol da consciência sanitária nacional. O próprio Lobato, após a divulgação dos relatórios, reviu suas concepções sobre Jeca Tatu — personagem do sertão que se tornou símbolo do Brasil rural e aparece no conto “Urupês”, que integra o livro homônimo publicado em 1918 —, em artigos publicados na imprensa. “O Jeca deixou de ser um problema, um mestiço preguiçoso e indolente diante de uma natureza que tudo dava, transformando-se em um homem doente e abandonado pelo poder público”, diz Pires-Alves. A repercussão dos relatos de viagem também contribuiu para o surgimento, em fevereiro de 1918, do Movimento Pró-Saneamento do Brasil. Outro desdobramento foi a criação de postos de profilaxia rural em diferentes estados do país. “O valor informativo e documental das imagens e dos diários de viagem fazem com que as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz tenham um alcance histórico inegável por terem contribuído para um conhecimento mais aprofundado sobre a sociedade brasileira”, destaca a socióloga Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz e autora do livro Um sertão chamado Brasil. n PESQUISA FAPESP 262 | 61
resenha
Para estudar o jornalismo
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Desafios da notícia – O jornalismo brasileiro ontem e hoje Alzira Alves de Abreu Editora FGV 228 páginas | R$ 49
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o longo de décadas, o nome de Alzira Alves de Abreu conquistou respeito entre os estudiosos da imprensa brasileira. Nada mais justo. Doutora em sociologia pela Universidade Paris V, ela desenvolveu um dos mais consistentes trabalhos de que dispomos sobre o século XX no Brasil e sobre a imprensa, em particular. Entre outras contribuições de valor, é dela a coordenação do projeto de atualização do Dicionário histórico-biográfico brasileiro (19301995), realizado no âmbito do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas. A minúcia, a precisão e a abrangência fazem dele um levantamento de qualidade ainda não superada. Além da biografia dos protagonistas da política brasileira da década de 1930 para cá, Alzira Alves de Abreu se interessa também pela imprensa e, na sintonia dessa predileção, escreveu páginas fundamentais, como A imprensa em transição, jornalistas e jornalismo econômico na transição democrática e A imprensa e a queda do governo João Goulart. Agora, com a publicação deste Desafios da notícia – O jornalismo brasileiro ontem e hoje, o leitor tem acesso a um apanhado panorâmico do estilo – e da “pegada” teórica – dessa pesquisadora da imprensa. Trata-se de uma reunião de 12 estudos que foram apresentados em seminários e congressos e publicados nos anais desses eventos. Boa parte dos textos tem como objeto a cena das redações durante a ditadura militar (1964-1985), mas alguns escapam desse corte temporal. O primeiro artigo, por exemplo, “Jornalismo eletrônico”, debruça-se sobre fatos atualíssimos, bem posteriores à ditadura, para descortinar as incertezas, as crises e as oportunidades incríveis abertas pelo advento das tecnologias digitais. Nesse paper, que diz muito sobre a acuidade do olhar da pesquisadora – que ora entrevista os atores dos fenômenos que estuda, ora recorre a documentos –, são esmiuçadas as questões que seguem sem solução definitiva na indústria e na pós-indústria do jornalismo. Logo nesse texto inicial o leitor nota, com alegria, que Alzira não tem nada em comum com a maioria das pesquisas sobre jornalismo publicadas no Brasil, que parecem ter sido produzidas por alguém que não faz a menor ideia do que se
passa numa editoria de política ou de cultura quando vai alta a madrugada. Nesses trabalhos medianos – que constituem a imensa maioria –, a rotina de repórteres e editores é retratada como uma atividade sem tônus muscular e sem alma cívica. Alzira, longe disso, enxerga as contradições com a familiaridade de uma jornalista veterana e sabe analisá-las e iluminá-las como acadêmica de primeira grandeza. Melhor para nós. Graças aos 12 ensaios, o leitor não apenas aprende sobre a imprensa – ele aprende também como pesquisar a imprensa. Desafios da notícia tem a virtude de mostrar como Alzira Alves de Abreu escolhe seus temas, isola-os, compreende-os e, depois, em vez de encerrá-los, devolve-os ao seu hábitat. A autora não se apressa em pôr pontos-finais em histórias ainda inconclusas. Seja quando fala de jornalismo eletrônico, seja quando trata do despertar da reportagem numa paisagem monopolizada pela opinião, logo no pós-guerra – “A década de 1950 marcou um momento de inflexão de um jornalismo de opinião e de crítica para um jornalismo de informação em que o acontecimento passou a ter lugar de destaque” (p. 75) –, Alzira Alves de Abreu sabe que está diante de histórias em curso. A sensação que fica é de que ela não estuda os fósseis do ofício, mas uma profissão viva. Daí que, mesmo quando descreve o passado de 70 anos atrás, lida com problemas que seguem abertos no presente. Em seu capítulo final, “O jornalismo como objeto de estudo”, ela observa que “os estudos sobre a mídia e sobre os jornalistas, elaborados por historiadores e cientistas sociais, são muito recentes” (p. 219). Tem toda a razão. A isso, poderíamos acrescentar a própria imprensa, como objeto de estudo, além de ser ela mesma recente, parece recusar-se a resumir-se num epitáfio. A imprensa, cuja morte vem sendo anunciada tantas vezes, não morre, nem mesmo quando o jornal fecha (num sentido ou no outro). Não, não é uma solução, mas ao menos é uma esperança que o passado nos lega – e que Alzira Alves de Abreu capta com delicadeza e sobriedade. Eugênio Bucci é jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e superintendente de Comunicação Social da USP.
foto eduardo cesar
Eugênio Bucci
carreiras
Saúde Mental
Distúrbios na academia
ilustração pedro franz
Universidades trabalham no desenvolvimento de estratégias de prevenção e atendimento psicológico de alunos de graduação e pós-graduação O caso de um estudante de doutorado que se suicidou nos laboratórios do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), em agosto deste ano, colocou em evidência a discussão sobre as pressões enfrentadas pelos que optam por seguir a carreira acadêmica e os distúrbios psicológicos relacionados à vida na pós-graduação. Esse é um assunto que aos poucos começa a ser mais discutido no Brasil. No entanto, ainda são poucas as universidades brasileiras que investem na criação de centros de atendimento psicológico aos seus estudantes de graduação e pós-graduação. O problema é mundial. Na Bélgica, um estudo publicado em maio na revista Research Policy
verificou que um terço dos 3.659 estudantes de doutorado das universidades da região de Flandres corria o risco de desenvolver algum tipo de doença psiquiátrica. Em 2014, um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, constatou que 785 (31,4%) de 2.500 estudantes de pós-graduação apresentavam sinais de depressão. O estudo fazia parte de um trabalho mais amplo, desenvolvido desde 1994, quando se constatou que 10% dos pós-graduandos e dos pesquisadores em estágio de pós-doutorado da universidade já haviam considerado se suicidar. No Reino Unido, um estudo publicado em 2001 na Educational Psychology verificou que 53% dos pesquisadores das universidades
britânicas sofriam de algum distúrbio mental, enquanto na Austrália a taxa foi considerada até quatro vezes maior no meio acadêmico em comparação com a população de modo geral. Apesar de se basearem em uma amostra relativamente pequena, esses estudos evidenciam uma preocupação que começa a se tornar latente no meio acadêmico no mundo: estudantes de graduação e pós-graduação estão sujeitos a pressões que podem desencadear uma série de transtornos mentais. Como nos outros países, no Brasil, a quantidade de estudos, dados e iniciativas envolvendo esse assunto ainda é singela. Em São Paulo, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) pretende lançar no início de 2018 o projeto “Bem viver para tod@s”. PESQUISA FAPESP 262 | 63
A iniciativa prevê a realização de palestras e debates com especialistas em saúde mental da própria universidade. “O objetivo é orientar alunos e professores sobre como identificar e lidar com esses problemas”, explica Cleópatra da Silva Planeta, pró-reitora de Extensão Universitária e coordenadora do projeto. Algumas universidades já contam com serviços de atendimento para seus estudantes. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, o Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante (Sappe), ligado à Pró-reitoria de Graduação, atua há 30 anos dando assistência psicológica e psiquiátrica aos alunos de graduação e pós-graduação. De acordo com a psiquiatra Tânia Vichi Freire de Mello, coordenadora do Sappe, cerca de 40% dos estudantes da universidade que procuram o serviço estão no mestrado ou doutorado. “A maioria relata experimentar insônia, estresse e ansiedade, além de crises de pânico e depressão”, ela conta. “É comum dizerem que tentam contornar esses problemas a partir do consumo de bebidas alcoólicas e drogas psicoativas, como maconha.” Esses problemas costumam ser resultado de uma convergência de fatores, na concepção do psiquiatra Neury José Botega, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Segundo ele, a dinâmica da pós-graduação é marcada por prazos apertados, pressão para publicar artigos, carga de trabalho excessiva e cobranças. “Vários estudantes alegam não conseguir dar conta dos prazos ou saber lidar com o nível de exigência dos professores e orientadores”, comenta. São frequentes os casos de crises de estresse, ansiedade, pânico e depressão. “Muitas vezes a continuidade dos estudos fica inviável e o aluno entra em desespero por não conseguir tocar suas atividades.” Um relatório divulgado em 2011 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais 64 | dezembro DE 2017
de Ensino Superior (Andifes), que mapeou a vida social, econômica e cultural de quase 20 mil estudantes de graduação das universidades federais brasileiras, verificou que 29% deles já haviam procurado atendimento psicológico e 9%, psiquiátrico, o que envolve problemas mais sérios. O estudo também constatou que 11% já haviam tomado ou estavam tomando medicação psiquiátrica. Um problema bastante comum entre os estudantes de pós-graduação, segundo Tamara Naiz, presidente da Associação Nacional dos Pós-graduandos (ANPG), é a chamada síndrome de burnout, quando o indivíduo atinge um nível grave de exaustão por trabalhar demais sem descansar. Há também a síndrome do impostor, que aflige acadêmicos que não conseguem aceitar os resultados alcançados como mérito próprio. “O desenvolvimento de transtornos na pós-graduação é um reflexo dos problemas da academia, que oferece poucas oportunidades”, ela destaca. “Ao mesmo tempo, as exigências e pressões envolvendo prazos curtos para qualificação e defesa, cobrança excessiva ou injusta por publicações em revistas de alto impacto, contribuem para agravar esse quadro.”
Também a relação com o orientador pode contribuir para o desenvolvimento de distúrbios psicológicos. Vários são os casos registrados pela ANPG de atitudes abusivas ou negligentes relatados por estudantes que sofreram assédio moral durante reuniões ou aulas. Igualmente frequentes são os casos que chegam à ANPG de orientadores omissos diante de questões ligadas à pesquisa de seus orientandos ou aqueles que solicitam aos alunos tarefas não relacionadas às suas pesquisas. Em outros casos, os relatos são de corte de bolsas e reprovação não justificadas ou com justificativas falsas ou não acadêmicas. Também o assédio sexual, em suas diversas formas, e a discriminação de gênero, que ainda persistem no mundo, são apontados como fatores desencadeadores de distúrbios psicológicos na academia, sobretudo entre as mulheres. O caso da medicina
A grande maioria dos estudos em epidemiologia psiquiátrica envolvendo o ambiente acadêmico brasileiro está relacionada aos alunos de graduação, sobretudo os de medicina. Isso porque o curso costuma ser caracterizado pela pressão contínua por boas notas e extenuante carga horária de aulas
ilustrações pedro franz
e estudo. Além disso, o ambiente entre os próprios estudantes é marcado pela competitividade desde o vestibular, em geral sempre muito concorrido. Um estudo publicado em 2013 na Revista Brasileira de Educação Médica por pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, envolvendo 384 estudantes de medicina, verificou que 33,6% tinham algum tipo de transtorno mental, como ansiedade, depressão e somatoformes, doenças que persistem apesar de as desordens físicas não explicarem a natureza e extensão dos sintomas nem o sofrimento ou as preocupações do indivíduo. Segundo a médica psiquiatra Laura Helena Andrade, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da USP, a dificuldade na administração do tempo, o contato diário com a morte, o medo de adquirir doenças ou cometer erros e o sentimento de impotência diante de certas enfermidades contribuem para que esses estudantes estejam mais suscetíveis ao desenvolvimento de transtornos mentais. “O aluno da área da saúde precisa ter mais resiliência para poder manter seu desempenho de estudo, pesquisa e atendimento às pessoas enfermas”, ela ressalta. Apenas nos últimos cinco anos, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) registrou 22 tentativas de suicídio envolvendo alunos de medicina, segundo dados publicados em setembro no jornal O Estado de S. Paulo. Já nas universidades federais de São Paulo (Unifesp) e do ABC (UFABC), cinco estudantes se suicidaram no mesmo período. Isso tem estimulado algumas universidades brasileiras a investirem na criação de núcleos de prevenção e atendimento psicológico específico para esses estudantes. Na Unicamp, há o Grupo de Apoio aos Estudantes de Graduação em Medicina, Fonoaudiologia e Residentes (Grapeme) da FCM. Já a USP conta desde 1986 com o Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno
(Grapal), entidade dedicada ao atendimento dos alunos dos cursos de fisioterapia, fonoaudiologia, medicina e terapia ocupacional, além dos residentes da FM-USP. Desde agosto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem dois núcleos de atendimento psicológico aos estudantes de graduação e pós-graduação. Paralelamente, essas instituições estão trabalhando para capacitar professores para que possam se antecipar a esses problemas. Segundo Tania Vichi Freire de Mello, do Sappe, é importante que eles fiquem atentos a mudanças súbitas de comportamento de seus alunos ou queda no rendimento acadêmico. A busca por orientação ou tratamento psicológico pode evitar que o estudante abandone o curso. A conclusão é de um levantamento feito em 2016 que
analisou o perfil de 1.237 alunos que passaram pelo atendimento do Sappe. No estudo, eles verificaram que a taxa de evasão de curso entre os atendidos pelo serviço era menor quando comparada com aqueles que não recorreram ao serviço. Para Botega, da FCM-Unicamp, é importante que os professores se mostrem mais abertos para conversar sobre esse assunto com seus alunos, sem desmerecer suas angústias. “Em geral, os professores estão mais preocupados com o desempenho acadêmico de seus estudantes, sem se darem conta de que isso está relacionado à sanidade mental do aluno”, afirma o psiquiatra. “É preciso agir no sentido de acolher esses estudantes, orientá-los e, se for preciso, encaminhá-los aos serviços de atendimento”, destaca Botega. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 262 | 65
USP é a brasileira mais bem colocada em ranking de empregabilidade
66 | dezembro DE 2017
Do genoma para o mercado Participação no projeto de sequenciamento da Xylella fastidiosa estimulou a bioquímica Ana Claudia Rasera a fazer pesquisa em empresas
arquivo pessoal
A Universidade de São Paulo (USP) foi a instituição da América Latina mais bem colocada no ranking de empregabilidade do Global University Employability Ranking 2017, divulgado no dia 16 de novembro. A lista foi elaborada a partir de entrevistas com diretores e responsáveis pela contratação de funcionários em grandes empresas de 22 países, incluindo o Brasil. As perguntas foram sobre as habilidades que os jovens profissionais precisam para se adaptar à revolução digital das próximas décadas e quais as instituições que melhor preparam seus alunos nesse sentido. Ao todo, o ranking classificou 150 instituições de ensino superior. A USP ficou na 75ª posição, à frente das prestigiadas universidades de Edimburgo, no Reino Unido, e da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos. Esse é o terceiro ano em que o ranking é publicado pela consultoria britânica Times Higher Education. Em 2016, a USP figurou na 71ª posição. Apesar de cair quatro posições, a universidade se mantém como a única instituição brasileira e a melhor latino-americana a aparecer na lista, cujas primeiras colocações foram ocupadas pelo Instituto Tecnológico da Califórnia (Caltech), seguido pela Universidade Harvard e Universidade Columbia, todas nos Estados Unidos. A USP também lidera entre as latino-americanas em dois outros rankings da consultoria: o World University Ranking 2017-2018 e o World Reputation Ranking. n
perfil
A bioquímica Ana Claudia Rasera tinha 30 anos quando, em 1997, foi convidada para participar do primeiro projeto de sequenciamento de um genoma no Brasil, o da Xylella fastidiosa, bactéria causadora da clorose variegada dos citros (CVC), então uma das piores pragas dos laranjais de São Paulo. Ela era professora de bioquímica e biologia molecular na Universidade de São Paulo (USP), cargo que ocupava desde 1996, e se juntou à equipe do bioquímico Fernando Reinach, então professor do Instituto de Química (IQ) da USP e coordenador de um dos laboratórios responsáveis pelo sequenciamento e treinamento dos pesquisadores. Pouco antes da conclusão do sequenciamento da bactéria, ela foi convidada para coordenar, ao lado do biólogo Jesus Ferro, o programa Genoma Funcional da Xylella, projeto paralelo ao do genoma que pretendia investigar a função dos genes identificados ao longo do sequenciamento e, assim, compreender como a bactéria desencadeava a CVC. Ela aceitou o desafio. Além de se qualificar na área de genética molecular e biotecnologia, a experiência adquirida ao participar do projeto genoma Xylella a estimulou a se engajar em outros empreendimentos voltados à área de pesquisa empresarial.
Em 2002, dois anos após a conclusão do sequenciamento da bactéria, a bioquímica deixou o laboratório onde trabalhava para fundar, com outros integrantes do projeto, a Allelyx (Xylella ao contrário), empresa de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) de produtos de biotecnologia voltada à geração de patentes e licenciamento de tecnologias em genômica aplicada. Ana Claudia tinha 35 anos e nunca mais voltou para a carreira acadêmica. “O trabalho na empresa nos permitiu estabelecer várias parcerias com a indústria, para entendermos seus problemas e tentar encontrar soluções biotecnológicas”, explica a pesquisadora. “Isso me motivou a fazer um curso de MBA [Master of Business Administration] em gestão empresarial para aprender a coordenar grandes equipes e a gerir adequadamente os recursos disponíveis para as pesquisas”, diz. Em 2008 a Alellyx foi vendida junto com a empresa CanaVialis para a multinacional norte-americana Monsanto por US$ 290 milhões (o equivalente hoje a cerca de R$ 980 milhões). Ana Claudia trabalhou mais dois anos na empresa antes de assumir o cargo de gerente de desenvolvimento de biotecnologia na DuPont, empresa norte-americana de produtos químicos, polímeros, produtos agrícolas, entre outros. Ela continuou na área de biotecnologia agrícola, coordenando projetos de pesquisa com cana-de-açúcar. Em 2016, foi convidada para assumir a área de gestão de P&D do Grupo Fleury. “Hoje coordeno uma equipe de mais de 20 pesquisadores que trabalham na área de genômica aplicada no campo da medicina personalizada”, conta. n R.O.A.
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