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Pesquisa FAPESP agosto de 2015
n.234
Os bastidores da bem-sucedida chegada a Plutão
Tecnologia no ar
Empresas vão ajudar a desenvolver nova fonte de luz síncrotron Estudo sobre Justiça na São Paulo colonial revela as estruturas de poder do período Guia mapeia 32 museus de ciência itinerantes no Brasil Três grupos indígenas brasileiros compartilham material genético com povos da Oceania
n.234
Novos sensores de umidade reduzem gasto de água na agricultura
Com cerca de 20 fábricas de aviões experimentais, que investem em inovação e na colaboração com universidades, Brasil tem o segundo maior mercado desse setor
O que a ciência brasileira produz
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fotolab
Por dentro da superfície Nanofolhas de cobre, íons de európio, nanopartículas de prata e de ouro, nanofolhas de óxido de zinco. As palavras remetem a uma química talvez misteriosa, mas em certa medida são materiais. E as fotografias são algumas das vencedoras do concurso Superfícies em imagens, promovido pelo Instituto Nacional de Engenharia de Superfícies com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foram 67 inscritos, de instituições e empresas de 10 estados brasileiros. As 12 ganhadoras desta segunda edição da competição comporão um calendário, lembrete cotidiano de que por trás dos fenômenos e estruturas há ciência e tecnologia, mas também beleza.
Imagens divulgadas pelo Instituto Nacional de Engenharia de Superfícies Todas as vencedoras e legendas: engenhariadesuperficies.com.br Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
PESQUISA FAPESP 234 | 3
agosto | 234 foto da capa léo ramos
TECNOLOGIA 62 Parcerias
Oito empresas integram-se ao esforço para desenvolver componentes da fonte de luz síncrotron Sirius
67 Agricultura
CAPA 16 Brasil tem cerca de
20 empresas de pequenas aeronaves, que investem em inovações e na colaboração com universidades para crescer
ENTREVISTA 24 Silvio Salinas
Físico fala dos trabalhos em estatística, de educação e política nuclear brasileira
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
42 Colaboração
Empresa brasileira licencia molécula com potencial para gerar tratamentos contra câncer
70 Pecuária
CIÊNCIA
72 Pesquisa empresarial
44 Astronomia
Bem-sucedida na tarefa de observar o planeta anão, a sonda New Horizons precisou resistir a ameaças de cancelamento da missão
48 Astrofísica
Mecanismo proposto por pesquisadores da USP pode explicar a origem de neutrinos de alta energia detectados na Antártida
51 Física
Materiais especiais ganham novas possibilidades de conduzir corrente elétrica em contato com semicondutores
52 Genética
Guia mapeia 32 museus científicos itinerantes no Brasil
Análises sugerem que humanos chegaram ao continente entre 23 mil e 15 mil anos atrás e que alguns indígenas do Brasil têm DNA oriundo de povos da Oceania
34 Indicadores
56 Paleobotânica
30 Difusão
FAPESP preservou investimento em pesquisa, apesar da desaceleração da economia, mostra Relatório de atividades 2014
38 Inovação
Livros indicam que os vínculos entre universidades e empresas têm impacto em países em desenvolvimento
Novos equipamentos possibilitam aumento na eficiência do uso da água no campo em mais de 30%
Fósseis em mina de carvão no Rio Grande do Sul revelam paisagem pantanosa sujeita a incêndios frequentes há 290 milhões de anos
58 Ecologia
Baía do litoral norte paulista exibe alta diversidade biológica, perde manguezais e sofre ameaça da possível ampliação do porto vizinho
Uso de resíduos da fabricação de acerola na alimentação de suínos diminui teor de gordura da carne Mectron desenvolve soluções tecnológicas avançadas para as áreas militar e espacial
HUMANIDADES 76 Comunicação
Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro escrevem há 60 anos sobre temas científicos, médicos e ambientais – e nem pensam em parar
82 História
Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil
seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Boas práticas 9 Dados e projetos 10 Estratégias 12 Tecnociência 86 Resenhas 88 Memória 94 Arte 96 Carreiras 98 Classificados
cartas
cartas@fapesp.br
Integridade na ciência CONTATOS Site No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br
A respeito da reportagem “Para promover uma cultura de integridade” (edição 233), desde o primeiro ano de graduação as boas práticas científicas já deveriam ser ministradas na academia.
você encontra todos os textos de
Dulcenéa De Paula
Pesquisa FAPESP, na íntegra, em
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português, inglês e espanhol. Também estão disponíveis edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar, CEP 05415-012, São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para
Patrimônio histórico
Moro em São Luiz do Paraitinga e entendo bem os problemas expostos na reportagem “Por trás das fachadas” (edição 233). O imóvel ou a área considerado patrimônio histórico é tombado e depois pouco ou nenhum suporte é dado para a manutenção desse mesmo“patrimônio”. Espero que os estudos apresentados no texto mostrem a necessidade e a urgência de políticas para preservar parte de nossa história. Parabéns aos pesquisadores. Vinicius Guimarães Via Facebook
assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue para (11) 3087-4212 ou envie e-mail para mpiliadis@fapesp.br
Boletim eletrônico
Muito bom o boletim eletrônico de 27 de julho com notícias produzidas por Pesquisa FAPESP. As reportagens sobre o Museu Paulista (“O colecionador”, edição 233) e povoamento das Américas (“A complexa ocupação das Américas”, edição on-line) mostram que o boletim passou para um patamar superior. Antonio Mário IAG-USP São Paulo, SP
Cerrado
Após ler a reportagem “Terra frágil” (edição 231), e em seguida o artigo de autoria de René Beuchle e colaboradores na revista Applied Geography, foi possível deduzir que, infelizmente, as taxas de redução das áreas ocupadas por ecossistemas naturais do Cerrado são, na realidade, bem superiores às mencionadas no texto de Pesquisa FAPESP. Por duas razões: 1) as áreas perdidas das fisionomias campestres do Cerrado – campos limpos, campos cerrados, veredas e campos rupestres – não foram contabilizadas; 2) as
extensas áreas sobre as quais a silvicultura de eucalipto está avançando dentro do domínio geográfico do Cerrado foram, equivocadamente, contabilizadas como “ganhos de cobertura arbórea”, como se servissem para “neutralizar” as perdas. O desafio metodológico de quantificar as formas campestres de vegetação precisa ser vencido para que quantificações futuras sejam mais precisas. O segundo desafio a vencer é o reconhecimento de que esses ecossistemas invisíveis são extremamente valiosos pela sua biodiversidade e, também, pelo seu papel na garantia da segurança hídrica do Brasil e, portanto, precisam ser conservados como são. Giselda Durigan Laboratório de Ecologia e Hidrologia Florestal do Instituto Florestal de São Paulo Assis, SP
Vídeos
Parabéns a todos os envolvidos na produção do vídeo “Teoria em construção”. É muito instrutivo e bem animado. Fico feliz de ver que, mesmo com todos os cortes em educação e pesquisa, as instituições e pessoas ainda conseguem dar nó em pingo d´água e produzir material de tamanha qualidade. Marco Araujo Bonamico Via Facebook
Muito boa a animação e a explicação do vídeo “O relevo econômico do interior”. Retransmiti para a primeira turma de Geografia do Instituto Federal do Sul de Minas – Campus Poços de Caldas. Jefferson Resende Via Facebook
Já utilizei o vídeo “O relevo econômico do interior” em sala de aula. É muito elucidativo. Parabéns à equipe responsável. Efraim Ferraz Via Facebook
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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Galeria de imagens
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
A mais vista do mês no Facebook CAPA
As novas faces do câncer
38.416 visualizações 226 curtidas 148 compartilhamentos entre 16 e 22 de julho no perfil de Pesquisa FAPESP
Exclusivo no site x Um novo material feito de borracha e nanotubos de carbono que pode ser 1000% esticado e, mesmo nessas condições, conduzir eletricidade foi desenvolvido por um grupo coordenado pelo físico norte-americano Ray Baughman, da Universidade do
Rádio Ecóloga fala sobre tradições agrícolas em bairros quilombolas do Vale do Ribeira
Confira no registro fotográfico de Léo Ramos como o manguezal de Guaratiba, no Rio de Janeiro, reage ao aumento do nível do mar
Texas. Estudo publicado na Science mostra que o material, capaz de abrigar sensores, células solares e outras
Vídeos do mês
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
tecnologias, poderá ser usado em marca-passos, braços robóticos ou cabos que poderiam ser esticados, sem perder a condutividade, até alcançarem 30 vezes o comprimento original.
x Uma questão que há muito intriga os biólogos começa a ser esclarecida: Assista ao vídeo:
qual a relação entre a quantidade de biomassa e a variedade de espécies num ecossistema? Em estudo na Science,
Pesquisadores sugerem que combate à dengue exige combinação de estratégias
pesquisadores reforçam a teoria de que a diversidade de plantas tende a ser maior em lugares que não sejam nem tão hostis nem tão hospitaleiros. Num ambiente com altas temperaturas, poucas espécies de plantas sobrevivem. Se as condições melhoram, o número de espécies tende a aumentar. Mas, quando há abundância de nutrientes, o ambiente é dominado por poucas espécies que captam recursos de modo mais eficaz. Essas espécies crescem mais rápido e tendem a vencer as outras na competição por espaço. 6 | agosto DE 2015
Assista ao vídeo:
Seleção natural agrupa características físicas de animais em módulos
fotos Léo Ramos
on-line
carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo
Universidades e empresas Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Celso Lafer, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Bruno Feitler, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Márcio Ferrari, Mauro de Barros, Rafael Garcia, Ricardo Aguiar, Salvador Nogueira, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos
É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 42.400 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
interação entre universidades e institutos de pesquisa é um tema presente em várias reportagens desta edição. A ideia de que essa interação é inexistente ou insuficiente permeia há tempos o debate no Brasil, e reportagem sobre dois livros recentemente publicados, que comparam o país com outras nações em desenvolvimento, indica que as relações formais entre as instituições de pesquisa e o setor privado crescem e se consolidam (página 38). O Brasil ainda está longe do patamar de Coreia do Sul ou China, mas a análise dos resultados apresentados contradiz o senso comum de que a pesquisa científica tem pouco impacto no desenvolvimento econômico do país. Considerando-se ainda que as pesquisas retratadas não contemplam interações como consultorias e contratos individuais de prestação de serviços por pesquisadores, muitos dos quais realizados por meio das fundações universitárias, o cenário é bem diferente do que tem sido propagado. Duas reportagens exemplificam interações bem-sucedidas entre o setor privado e a academia. A que está na capa aponta que uma das origens das empresas que compõem a significativa indústria nacional de pequenos aviões são as universidades e instituições de pesquisa e mostra como muitas trabalham em conjunto com esses organismos no desenvolvimento de inovações para seus produtos (página 16). Outra reportagem registra o primeiro grande sucesso de uma empresa brasileira de biotecnologia, a Recepta, que licenciou para uma empresa norte-americana a propriedade intelectual para o desenvolvimento de um medicamento contra câncer (página 42). A Recepta desenvolve seus produtos, os anticorpos monoclonais, em parceria com instituições como o Instituto Lud-
wig de Pesquisas contra o Câncer, de Nova York, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Instituto Butantan, com o apoio de agências como a FAPESP, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Um exemplo de interação em sentido inverso, na qual a instituição pública solicita a contribuição da iniciativa privada para executar um projeto, é retratado na reportagem sobre o anel de luz síncrotron Sirius (página 62). O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) selecionou, em parceria com a FAPESP e a Finep, oito empresas para enfrentar 13 desafios científicos e tecnológicos relacionados à empreitada. A superação de obstáculos científicos, técnicos e também políticos é contada em reportagem sobre o feito da sonda New Horizons, que chegou a Plutão após nove anos de viagem (página 44). A repercussão pela mídia internacional do sucesso da missão não exime Pesquisa FAPESP de registrar o feito e discutir o que se pode esperar em termos de avanço do conhecimento sobre os recantos do nosso Sistema Solar com os dados sendo transmitidos pelo equipamento. O ofício da comunicação da ciência, ou o jornalismo científico, que se propõe a discutir e divulgar os resultados das pesquisas científicas e tecnológicas e seus processos de criação, é objeto de uma série que marca os 20 anos do primeiro boletim Notícias FAPESP, publicação que, após 46 edições, deu origem a esta revista. A primeira reportagem apresenta o perfil de dois pioneiros nessa área, Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro (página 76). Aos pesquisadores, cuja produção é o alicerce do nosso trabalho, e aos leitores da Pesquisa FAPESP, nosso muito obrigada. PESQUISA FAPESP 234 | 7
Boas práticas Com a disseminação de programas de edição de imagens, como o Photoshop, tornaram-se mais comuns alterações em fotografias e figuras publicadas em artigos científicos. O Escritório de Integridade de Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos, que investiga suspeitas de má conduta em pesquisa financiada pelo governo federal, disponibiliza desde meados dos anos 2000 uma plataforma de ferramentas capazes de detectar falhas em imagens de papers. Para lidar com o problema, algumas revistas recorrem até a especialistas em imagem forense treinados para detectar indícios de plágio e de adulteração muitas vezes imperceptíveis aos olhos de revisores. Desde 2002, o Journal of Cell Biology tem em sua equipe um profissional desse tipo. Naquele ano, o editor-chefe da revista, Mike Rossner, publicou um artigo com recomendações sobre tratamento de imagens. “É muito tentador usar ferramentas do Photoshop. Não faça isso. Esse tipo de manipulação pode ser detectado”, escreveu Rossner. A European Molecular Biology Organization (Embo), sediada em Heidelberg, na Alemanha, contratou em 2011 Jana Christopher, uma ex-tradutora e ex-maquiadora da companhia de teatro inglesa English National Opera que se especializou em imagem forense. “Não tenho formação científica e não entendo o que as imagens querem dizer. Não preciso disso para fazer meu trabalho. Apenas verifico se as imagens foram duplicadas, adulteradas, giradas ou emendadas de modo ilícito”, disse à revista Nature. Só no ano passado, ela averiguou cerca de 2 mil imagens em mais de 350 manuscritos nos quatro periódicos sobre ciências da vida editados pela organização: Embo 8 | agosto DE 2015
Journal, Embo Reports, Embo Molecular Medicine e Molecular Systems Biology. Vinte por cento dos artigos avaliados por Jana apresentavam problemas. Em muitos casos, as alterações eram inofensivas: serviam para destacar uma proteína fluorescente, aprimorar o foco de faixas de DNA ou fazer cortes legítimos. Mas em uma pequena fração, o equivalente a 0,2% dos artigos submetidos, foram detectadas adulterações que comprometiam a integridade da pesquisa e os manuscritos foram rejeitados. Embora os papers passem pela revisão por pares, dificilmente os deslizes em imagens são identificados na análise dos revisores. Isso não significa, diz Jana, que o trabalho de revisão nos periódicos científicos seja mal executado. “Os problemas em
daniel bueno
Rigor com imagens científicas
imagens são menos notados porque os revisores consideram as figuras mais como ilustrações do que de fato representações de dados científicos”, explicou.
Fraude termina em prisão O biomédico Dong-Pyou Han, ex-pesquisador da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, foi condenado a quatro anos e meio de prisão pela fabricação e falsificação de dados em ensaios clínicos de vacina contra o vírus HIV, causador da Aids. Han, de 58 anos, também terá de ressarcir em US$ 7,2 milhões os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), principal agência de apoio à pesquisa biomédica do país, que financiou seu trabalho nos últimos anos. Em 2013, o cientista foi desligado da universidade após uma investigação concluir que ele falsificou o resultado de vários experimentos com as vacinas. Em um dos casos, misturou amostras de sangue de coelho com anticorpos anti-HIV humanos, dando a entender que os animais
desenvolveram imunidade. As denúncias chegaram ao Escritório de Integridade de Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos, responsável por investigar suspeitas de má conduta em pesquisas financiadas pelo governo federal, que proibiu Han de obter apoio de agências durante três anos. Segundo a revista Nature, o caso talvez acabasse aí se não tivesse chamado a atenção do senador republicano Charles Grassley, que tem um histórico no Congresso norte-americano de investigação de episódios de má conduta científica. Grassley denunciou o caso à imprensa e um procurador levou Han à Justiça. “A pena do ORI parece muito leve para alguém que adulterou ensaios clínicos e desperdiçou milhões de dólares dos contribuintes”, disse Grassley.
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em junho e julho de 2015 Processo: 2014/15657-8 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
TEMÁTICOS E-Sensing: análise de grandes volumes de dados de observação da terra para informação de mudanças de uso e cobertura da terra Pesquisador responsável: Gilberto Câmara Neto Instituição: Inpe/MCTI Processo: 2014/08398-6 Vigência: 01/01/2015 a 31/12/2018
Estudo Sabe: estudo longitudinal de múltiplas coortes sobre as condições de vida e saúde dos idosos do município de São Paulo coorte 2015 Pesquisadora responsável: Maria Lúcia Lebrão Instituição: FSP/USP Processo: 2014/50649-6 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Pensando Goa – Uma peculiar biblioteca de língua portuguesa Pesquisador responsável: Helder Garmes Instituição: FFLCH/USP
Estudos bioquímicos, moleculares e funcionais da relação leishmania-macrófago
Pesquisadora responsável: Lucile Maria Floeter Winter Instituição: IB/USP Processo: 2014/50717-1 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2018
SOS rare: multidisciplinary research towards a secure and environmentally sustainable suppli of critical rare Earth elements (NS and HREE). (FAPESP-RCUK Nerc Mineral S) Pesquisador responsável: Daniel Atencio Instituição: IGC/USP Processo: 2014/50819-9 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2019
Formados em programas de doutorado – 2013 Número de doutores e programas (total e avaliados com nota Capes 6 e 7) Doutores formados Total/Região
UF
Programas de Doutorado (DR)
Programas Dr Nota Capes 6 e 7*
Nº
Participação
Nº
Participação
Nº
Participação
Brasil
15.287
100%
1.804
100%
413
100%
Norte
257
1,7%
55
3,0%
3
0,7%
Acre Amapá
5
0,0%
1
0,1%
Amazonas
83
0,5%
19
1,1%
1
0,2%
Pará
155
1,0%
30
1,7%
2
0,5%
Rondônia
9
0,1%
2
0,1%
5
0,0%
3
0,2%
2.026
13,3%
270
15%
24
5,8%
Alagoas
24
0,2%
7
0,4%
Bahia
467
3,1%
62
3,4%
4
1,0%
Ceará
272
1,8%
46
2,5%
6
1,5%
Maranhão
19
0,1%
8
0,4%
1
0,2%
Paraíba
355
2,3%
35
1,9%
2
0,5%
Pernambuco
555
3,6%
66
3,7%
8
1,9%
Piauí
8
0,1%
3
0,2%
R. G. do Norte
270
1,8%
34
1,9%
3
0,7%
Sergipe
56
0,4%
9
0,5%
9.508
62,2%
998
55,3%
Esp. Santo
86
0,6%
21
1,2%
Minas Gerais
1.569
10,3%
176
R. de Janeiro
2.099
13,7%
244
São Paulo
5.754
37.6%
2.665
17,4%
Paraná
720
R. G. do Sul S. Catarina
Roraima Tocantins Nordeste
0% 291
70,5%
9,8%
53
12,8%
13,5%
68
16,5%
557
30,9%
170
41,2%
358
19,8%
81
19,6%
4,7%
109
6%
10
2,4%
1.450
9,5%
177
9,8%
53
12,8%
495
3,2%
72
4%
18
4,4%
831
5,4%
123
6,8%
14
3,4%
D. Federal
504
3,3%
68
3,8%
12
2,9%
Goiás
229
1,5%
29
1,6%
2
0,5%
Mato Grosso
33
0,2%
17
0,9%
M. G. do Sul
65
0,4%
9
0,5%
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Fonte: Geocapes 2013, Capes (http://geocapes.capes.gov.br/geocapes2/) * Dados da avaliação Capes se referem a cursos existentes no triênio 2010-2012 * Os programas com nota 6 e 7 (nota máxima) na avaliação Capes são aqueles considerados de nível internacional
Marine ferromanganese deposits a major resource of e-tech elements (FAPESP-RCUK Nerc Mineral S) Pesquisador responsável: Frederico Pereira Brandini Instituição: IO/USP Processo: 2014/50820-7 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2019 Glicosaminoglicanos e proteoglicanos: relação, estrutura e função Pesquisadora responsável: Helena Bonciani Nader Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2015/03964-6 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2020 Identificação e caracterização de mecanismos envolvidos no controle de massa e regeneração do músculo estriado esquelético Pesquisador responsável: Anselmo Sigari Moriscot Instituição: ICB/USP Processo: 2015/04090-0 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2020 Elaboração de uma vacina quimérica multicomponente recombinante baseada em epítopos de carrapatos Rhipicephalus microplus Pesquisadora responsável: Beatriz Rossetti Ferreira Instituição: EERP/USP Processo: 2015/09683-9 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2020 SPEC Iniciativa Global Sustainable Bioenergy (GSB) – Análise ambiental e espacial da intensificação da pastagem para a bioenergia Pesquisador responsável: John Sheehan Instituição: FEA/Unicamp Processo: 2014/26767-9 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2018 JOVEM PESQUISADOR Um enfoque demográfico e adaptativo visando à construção de estratégias sustentáveis de manejo de pragas agrícolas para o agroecossistema brasileiro Pesquisador responsável: Alberto Soares Correa Instituição: Esalq/USP Processo: 2014/11495-3 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2019
Aplicação das ômicas no entendimento da interação Puccinia psidii x Eucaliptus grandis Pesquisadora responsável: Maria Carolina Quecine Verdi Instituição: Esalq/USP Processo: 2014/16804-4 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2019 O papel das proteínas ligantes de ácidos graxos na infecção de macrófagos por leishmania: um alvo potencial para novas drogas contra leishmaniose Pesquisador responsável: Danilo Ciccone Miguel Instituição: IB/Unicamp Processo: 2014/21129-4 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2019 PESQUISA FAPESP 234 | 9
Estratégias
Perda na geografia Morreu no dia 16 de julho,
Familiaridade com a ciência
em São Paulo, Antonio Carlos Robert de Moraes, professor titular do
Percentual de brasileiros que visitaram espaços de difusão científica e cultural
divulgadas durante
Departamento de
41
a 67ª reunião anual
n 2006 n 2010 n 2015
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
25
28 29
28
30
17
16
campus da Universidade
12
Federal de São Carlos
13
Mineiro de Poços de
12 13
8
(UFSCar), trouxeram um
8
4
e a tecnologia. Uma delas entrevistou 2.002
Zoológico, parque ambiental ou jardim botânico
Museu de ciência e tecnologia
5
3
panorama atualizado brasileiros com a ciência
e Ciências Humanas de São Paulo (USP).
20
Biblioteca
de Filosofia, Letras (FFLCH) da Universidade
realizada em julho no
sobre a relação dos
Geografia da Faculdade
Feira ou olimpíada de ciência
Museu de arte
Caldas, tinha 61 anos e era presidente da banca de Geografia do concurso
Semana nacional de ciência e tecnologia
de ingresso na carreira de diplomata do Instituto Rio Branco. O geógrafo era assessor científico da
fonte pesquisa sobre percepção pública da c&t no brasil (cgee, 2015)
pessoas de 15 a 40 anos
FAPESP desde 1986 e foi membro da coordenação
em nove regiões
Universidade Federal de
que 61% dos brasileiros
metropolitanas do país
Pernambuco (UFPE) e
se declaram interessados
e mostrou que só 5%
consultor do Instituto
ou muito interessados
delas poderiam
Abramundo, entidade
em ciência e tecnologia,
ser consideradas
responsável pelo
percentual maior,
cientificamente letradas.
Indicador de Letramento
por exemplo, que os
Isso significa que apenas
Científico da população
53% registrados na
essa parcela foi capaz
brasileira, uma iniciativa
União Europeia em 2013.
de compreender
feita em parceria com
Dos entrevistados,
vocabulários e conceitos
a ONG Ação Educativa
73% afirmaram que as
básicos da ciência,
e o Instituto Paulo
atividades científicas
usados no cotidiano,
Montenegro, ligado
e tecnológicas trazem
como biodegradável
ao Ibope. Uma das
mais benefícios do
ou megawatt, e refletir
recomendações
que malefícios para a
de maneira crítica sobre
do estudo para elevar
população. Comparado
o impacto da ciência
o índice de proficiência
com os resultados de
na sociedade. Sessenta e
científica no Brasil
enquetes internacionais,
de Milton Santos, foi
quatro por cento dos
é considerar o ensino
o Brasil se destaca como
lançado em 2014. Moraes
entrevistados tiveram
de ciências prioritário
um dos países mais
morreu em decorrência
dificuldade de responder
nas escolas desde o
otimistas quanto aos
de complicações
a questões básicas,
ensino fundamental.
benefícios das atividades
surgidas após um
como, por exemplo, se
A segunda pesquisa
de pesquisa. A China
transplante de fígado.
compreendiam os efeitos
é a de Percepção Pública
apresenta índice idêntico
de medicamentos que
da Ciência e Tecnologia
ao brasileiro (73%),
costumam utilizar.
no Brasil, divulgada
enquanto os Estados
“Boa parte da população
na reunião da SBPC
Unidos registram 67%,
brasileira ainda não
pelo Centro de Gestão
a Espanha, 64%, seguida
consegue fazer uso
e Estudos Estratégicos
de Itália (46%) e França
social da ciência, porque
(CGEE) e o Ministério
(43%). Apesar disso,
para isso é necessário
da Ciência, Tecnologia e
apenas 12% dos
saber ler e interpretar
Inovação (MCTI). Foram
brasileiros visitaram
informações científicas”,
ouvidas 1.962 pessoas
museus ou centros
explica Anderson
com mais de 16 anos de
de ciência e tecnologia
Stevens Leonidas
idade em todo o país.
nos 12 meses anteriores
Gomes, professor da
O levantamento mostra
ao levantamento.
10 | Agosto DE 2015
de Ciências Humanas para níveis de letramento científico no brasil em 2015
a subárea de Geografia Humana na Fundação. Bacharel em Geografia e em Ciências Sociais pela
48% Elementar 31% Básico
16% Ausente
USP, no fim da década de 1970 Moraes obteve o título de mestre e doutor em Geografia Humana pela mesma universidade. Autor de dezenas de
5% Proficiente
artigos, também publicou e organizou 26 livros. O último, intitulado
fonte indicador de letramento científico / instituto abramundo
Território na geografia
2
Antonio Carlos Robert de Moraes: 26 livros
fotos 1 C. Godfrey (STScI) 2 mauro bellesa 3 departamento de Estado EUA 4 C. Godfrey (STScI)
Duas pesquisas
3
Otimismo na pesquisa do Irã Pesquisadores iranianos
Rouhani, presidente da
estão otimistas depois
Sociedade Física do Irã e
que o país se livrou de
pesquisador do Instituto
sanções econômicas
para Pesquisa em
impostas há décadas,
Ciências Fundamentais,
graças a um acordo
em Teerã. As restrições
firmado com um
econômicas fizeram com
conjunto de seis
que o Irã não tivesse
potências liderado pelos
recursos para participar,
Estados Unidos. A
nas mesmas condições
expectativa é que a
de outros países do
comunidade científica do
Oriente Médio, do
país participe agora de
Synchrotron-light for
modo mais ativo em
Experimental Science
colaborações com
and Applications in the
grupos de pesquisa e
Middle East (Sesame),
seja possível visitar o
grandes projetos
uma fonte de luz
país e estreitar a relação
internacionais. “As
síncrotron que está em
com cientistas de lá”,
parcerias com outros
construção na Jordânia.
disse Herman Winick,
países foram bastante
“Espero que o acordo
físico da Universidade de
prejudicadas durante o
fortaleça as conexões
Stanford, na Califórnia,
período de sanções nos
entre o Irã e a
Estados Unidos, e
últimos anos”, disse à
comunidade científica
membro do conselho
da Universidade de
revista Nature Shahin
global, permitindo que
consultivo do Sesame.
São Paulo (USP) o
O secretário de Estado norte-americano, John Kerry (esq.), e o chanceler do Irã, Mohammad Javad (dir.), trataram do acordo em Viena, na Áustria
Cluster de alto desempenho Foi inaugurado no campus de São Carlos
cluster computacional Euler, do Centro de Pesquisa, Inovação e
Depois do Hubble
Difusão em Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI),um dos Centros de Pesquisa,
diâmetro dos espelhos
Inovação e Difusão
O telescópio espacial Hubble deve ganhar
(Cepid) apoiados pela
um sucessor em 2018, com o lançamen-
FAPESP. Adquirido por
to do James Webb Space Telescope
R$ 4,5 milhões, o
(JWST), dotado de um espelho de 6,4
sistema composto por
metros de diâmetro. A aposentadoria do
104 computadores
Hubble ainda não aconteceu, mas cien-
ligados em rede é o mais
tistas ligados à Associação de Universi-
rápido instalado em
dades para a Pesquisa em Astronomia
universidades de
dos Estados Unidos (Aura, na sigla em inglês) já estão preocupados com a cons-
São Paulo, de acordo Hubble 2,4 m
JWST 6,4 m
trução de um novo telescópio para su-
HDST 11,7 m 4
com os coordenadores do centro. Enquanto
ceder o JWST em algumas décadas. Eles
vinculadas ao governo norte-americano
divulgaram um relatório no qual propõem
estão reavaliando as prioridades da pes-
de realizar 10 bilhões de
a construção do High-Definition Space
quisa em astronomia para a próxima
operações matemáticas
Telescope (HDST), que teria um espelho
década. No relatório, calcula-se que a
básicas por segundo
de quase 12 metros de diâmetro, cinco
construção do HDST custe aproximada-
– chamadas de FLOPs,
vezes maior do que o do Hubble. “É difí-
mente US$ 10 bilhões. Em 1996, a Aura
(da sigla em inglês
cil imaginar o quão espetacular ele po-
publicou um relatório semelhante, em
de floating point
deria ser”, disse à revista Nature Julianne
que defendia a construção de um teles-
operations per
Dalcan, astrônoma da Universidade de
cópio para o lugar do Hubble. O docu-
second) –, o cluster
Washington e coautora do documento.
mento serviu para pressionar o Congres-
computacional
A proposta foi apresentada em um mo-
so dos EUA e a Nasa a financiar a
de São Carlos consegue
mento pouco favorável, no qual agências
construção do JWST.
fazer 47 trilhões de
um laptop é capaz
FLOPs por segundo. PESQUISA FAPESP 234 | 11
Tecnociência Há 100 milhões de anos
1
Reservas subterrâneas de CO2
Aquíferos de desertos como o Atacama, acima, podem reter carbono
Insetos conservados em
de insetos pertencem à
âmbar descobertos na
família Zhangsolvidae,
caverna El Soplao, norte
cujos representantes
da Espanha, mostraram
eram antes conhecidos
como ocorria a
somente por meio de
fertilização das plantas
fósseis da China e do
no período Cretáceo,
Brasil. Uma das espécies
cerca de 105 milhões de
de insetos tinha milhares
anos atrás. Nessa época,
de grãos de pólen de
os insetos polinizadores
uma gimnosperma já
hoje mais comuns, como
extinta e indica que
abelhas e borboletas,
outros insetos de longos
ainda não existiam e a
probóscides poderiam
maioria das plantas
ter sido polinizadores.
era as gimnospermas,
O trabalho é resultado
sem flores (Current
da colaboração entre
Biology, 20 de julho).
especialistas do Instituto
As amostras de âmbar
Geológico e Mineiro
Os aquíferos que se
entravam antes nas
encontradas por
da Espanha (IGME)
formam nas profundezas
contas. Ao examinarem
pesquisadores da
e das universidades
de desertos ao redor do
o fluxo de água em
Espanha e dos Estados
de Barcelona e
mundo podem estar
um deserto na China,
Unidos continham,
Complutense de Madri,
ajudando a estocar mais
os pesquisadores
em perfeito estado de
Espanha, Harvard e
dióxido de carbono (CO2)
verificaram que o
conservação, duas
Cornell e do Museu
do que a metade de todas
CO2 suspenso na
espécies de insetos,
Americano
as plantas da Terra, de
atmosfera era absorvido
ambas já extintas.
de História Natural de
acordo com pesquisadores
por plantas, liberado no
Os dois insetos tinham
Nova York, Estados
da Corporação
solo e transportado para
um longo probóscide
Unidos. Nessa época,
Universitária para
os aquíferos no subsolo,
(espécie de tromba), que
as gimnospermas
Pesquisas Atmosféricas,
de onde não pode
servia para absorver o
com os pinus dominavam
nos Estados Unidos.
escapar de volta para a
néctar das estruturas
a paisagem terrestre,
Sabe-se hoje que 40% do
atmosfera (Geophysical
reprodutivas das plantas
e o principal agente
CO2 produzido pelo ser
Research Letters, 28 de
em pleno voo, como
de polinização,
humano por meio dos
julho). Eles acreditam que
fazem hoje os beija-
pensava-se até agora,
combustíveis fósseis e
esses aquíferos estejam
flores. As duas espécies
era o vento.
desmatamento
absorvendo 14 vezes
permanece suspenso na
mais CO2 do que se
atmosfera, enquanto
pensava todos os anos.
cerca de 30% vai para os
Segundo eles, conhecer
oceanos. Por muito tempo
a localização dos
os cientistas acreditaram
reservatórios
que os outros 30% seriam
subterrâneos – que
absorvidos pelas florestas.
cobrem uma área do
Agora se pensa que as
tamanho da América do
plantas podem não
Norte – poderia ajudar a
sequestrar todo esse CO2
aprimorar os modelos
remanescente. Uma nova
climáticos que hoje
pesquisa sugere que parte
estimam os efeitos das
do carbono está se
mudanças climáticas e os
dispersando em aquíferos
cálculos sobre o estoque
de desertos, que não
de carbono na Terra.
12 | agosto DE 2015
Raridades: insetos como este sugavam o néctar das plantas sem flores
2
Recontagem apura o número de Avogadro Mesmo quem prestou vestibular há mui-
terminar esses valores, a equipe liderada
to tempo talvez se lembre do número de
por Giovanni Mana, do Instituto Nacional
Avogadro: 6 x 1023. Esse valor é apenas
de Pesquisas Metrológicas, em Torino,
uma aproximação para facilitar as contas
Itália, desenvolveu um novo método para
nas aulas e nas provas de química. De
contar com precisão todos os átomos
acordo com a mais recente medida do
que formam uma esfera de um quilogra-
número de Avogadro, realizada por pes-
ma, feita do elemento silício–28. Os
quisadores da Itália, Japão e Alemanha,
químicos usam o número de Avogadro
o valor exato deve estar entre
para comparar as massas de substâncias
6,02214071 x 10 23 e 6,02214093 x
diferentes e acompanhar suas reações
10 23 (Journal of Physical and Chemical
químicas, por meio de uma unidade cha-
Reference Data, julho de 2015). Para de-
mada mol.
Contas refeitas: esta esfera de silício foi usada para aumentar a precisão de um número básico da química
fotos 1 Luca Galuzzi / www.galuzzi.it 2 Universidade de Barcelona 3 Enrico Massa e Carlo Sasso/INPM 4 CERN
Pentaquark, enfim, descoberto Uma classe incomum de
quase à velocidade da luz.
partícula estudada por
Cientistas procuraram por
físicos há pelo menos 50
essa partícula por pelo
anos foi inesperadamente
menos 50 anos, mas não
identificada por
a encontraram, o que os
pesquisadores da
fez pensar que ela
Universidade de Syracuse,
pudesse de fato não
nos Estados Unidos, que
existir. Curiosamente, os
integram um dos grupos
pesquisadores a
do Grande Colisor de
encontraram em meio a
Hádrons (LHC), em
trabalhos com objetivos
Genebra, na Suíça.
completamente
Uma nanossonda mais
O dispositivo era feito
Prótons e nêutrons – que,
diferentes. O estudo dos
fina que um fio de
de materiais leves
junto com os elétrons,
pentaquarks, que agora
cabelo que emitia luz
e, de acordo com os
formam átomos – são
não são mais apenas uma
e substâncias químicas
pesquisadores das
compostos de partículas
teoria, poderá ampliar o
permitiu a pesquisadores
universidades de Illinois
menores chamadas
conhecimento sobre as
dos Estados
e de Washington
quarks. Cada próton e
possibilidades de
Unidos controlar
responsáveis por esse
nêutron é composto por
interação entre as
o comportamento de
trabalho, foi implantado
três quarks. Anunciada
partículas elementares da
camundongos por meio
no cérebro dos animais
em julho pela
matéria.
de um comando sem fio, a
sem causar danos.
partir de um computador
O sensor era composto
para a Pesquisa Nuclear
(Cell, 16 de julho). No
por chips com
(CERN), que abriga o LHC,
estudo, os pesquisadores
semicondutores que
a partícula recém-
fizeram os animais irem
armazenavam diversos
descoberta, chamada
para um dos lados de uma
tipos de drogas e diodos
pentaquark, também
gaiola ao emitirem feixes
que emitem luz. Um
forma prótons e nêutrons.
de luz sobre neurônios de
recipiente continha as
A diferença é que ela é
uma região do cérebro.
drogas e um material
constituída por cinco
Em seguida as substâncias
expansível. Quando a
quarks, ou seja, quatro
químicas interrompiam a
temperatura de um
quarks e um antiquark,
comunicação entre os
aquecedor elétrico abaixo
com carga elétrica oposta
neurônios e os animais
do reservatório subia, o
à dos quarks — uma
começavam a andar em
material se expandia
combinação
círculos. Os comandos
e liberava as drogas, que
desconhecida até agora.
partiam de uma antena a
levavam os camundongos
Os quarks são partículas
pouco mais de 1 metro de
a agir de determinada
distância das gaiolas.
maneira.
Organização Europeia
que se movimentam
4
3
Um sensor no cérebro
Após 50 anos de buscas: o pentaquark, com quatro quarks e um antiquark
PESQUISA FAPESP 234 | 13
Hidrogênio a partir de etanol
1
Outra fonte da obesidade
Óleo de soja: possível causa de ganho de peso em experimento com animais
Os automóveis talvez
de modo ainda mais
possam um dia rodar
eficiente quando parte
com hidrogênio
do cobre misturado à
produzido a partir de
alumina é oxidada.
cana-de-açúcar. Tudo
Martins e seus colegas
depende, porém, de
de instituto, Sandra
tornar mais eficiente a
Pulcinelli e Celso Santilli,
reação química que
chegaram ao resultado
extrai do etanol o gás
em parte graças às
hidrogênio, normalmente
análises da estrutura
fabricado a partir de gás
cristalina de vários tipos
natural. A mesma reação
de materiais de alumina
também produziria
porosa com cobre,
acetaldeído e acetato de
realizadas por Aline
etila, dois compostos
Passos, Amélie Rochet e
solventes valorizados
Valérie Briois, usando a
por diversas indústrias
fonte de luz síncrotron
e normalmente
Soleil, na França.
O óleo de soja já não era
cada uma com um tipo de
muito bem visto pelos
óleo, se acrescentou
fabricados a partir do
“Assim podemos
médicos. Agora talvez
frutose, na proporção
petróleo. Os químicos já
produzir a partir do
seja ainda menos. Uma
consumida pelos
sabem que essa reação
etanol outros produtos
dieta rica em óleo de soja
americanos. As quatro
acontece mais rápido e
de valor comercial maior
poderia causar mais
dietas continham o
gasta menos energia
que o álcool, usando
obesidade e diabetes que
mesmo total de calorias.
quando o etanol é
metais relativamente
uma dieta rica em
Os animais que
colocado em contato
baratos como o cobre”,
frutose, um tipo de
consumiram óleo de soja
com um material poroso
explica Wellington
açúcar comum em
apresentaram um
feito de alumina (um tipo
Cassinelli, que faz
refrigerantes e alimentos
aumento de peso de 25%
de óxido de alumínio) e
pós-doutorado com
processados, de acordo
e de 9%, quando
cobre. Agora, um grupo
Santilli. Cassinelli
com um estudo realizado
comparados com os que
de pesquisadores
é o primeiro autor do
na Universidade da
se alimentaram de óleo
liderados por Leandro
artigo descrevendo
Califórnia em Riverside,
de coco e com os
Martins, do Instituto
a pesquisa, publicado
Estados Unidos
submetidos à dieta
de Química da
com destaque de capa
(PLoS ONE, 22 de julho).
enriquecida com frutose,
Universidade Estadual
pela ChemCatChem,
Os pesquisadores
respectivamente. Além
Paulista (Unesp), em
uma das principais
chegaram a essa
disso, o grupo do óleo de
Araraquara, verificou
publicações da área
conclusão alimentando
soja exibiu gordura
que a reação se passa
de catálise química.
quatro grupos de
localizada e sinais de
camundongos com
danos no fígado, diabetes
diferentes tipos de dietas,
e resistência à insulina.
cada uma delas contendo
Os pesquisadores viram
40% de gordura, similar à
também que a dieta com
que os norte-americanos
frutose resultou em danos
consomem. O primeiro
metabólicos menos
grupo de animais
severos que os
consumiu apenas óleo de
observados nos outros
coco, que consiste
grupos. Em um teste
essencialmente de
complementar, uma
gorduras saturadas.
dieta rica em óleo de
O segundo foi alimentado
milho resultou em um
com óleo de soja, que
ganho de peso maior que
contém principalmente
o da dieta à base de óleo
óleos poli-insaturados –
de coco, mas não
e é bastante consumido
tão alto quanto
também no Brasil.
o proporcionado
Às outras duas dietas,
pelo óleo de soja.
14 | agosto DE 2015
Em grande escala: leveduras fermentam o caldo de cana para produzir etanol
2
HPV em estudantes
Luvas para fazer compras
Estudantes universitárias de Belém, no
Uma luva equipada com
Pará, apresentaram uma alta prevalên-
uma microcâmera
cia de infecções causadas pelo papilo-
chamada Third Eye-IV
mavírus humano, o HPV, de acordo com
poderia ajudar deficientes
um levantamento realizado por pesqui-
visuais a fazer compras
sadores das universidades federais do
em mercados com mais
Pará e de Sergipe e do Instituto Evandro
independência.
Chagas. Nas amostras, os pesquisadores
No supermercado, ao
encontraram variedades consideradas
reconhecer um produto
de alto risco para o desenvolvimento de
que o usuário quer, a luva
câncer de colo do útero que não são
3
vibra e dirige a mão para
combatidas pelas vacinas adotadas atual-
HPV: 200 variedades já conhecidas, muitas
aquele item. A última
mente — dirigidas especificamente aos
inofensivas, outras causadoras de câncer
versão de um protótipo
tipos 16 e 18, de potencial elevado para
desenvolvido na
o surgimento de tumores, e 6 e 11, asso-
lho). O HPV é conhecido como o princi-
Universidade Estadual da
ciados à formação de verrugas geni-
pal agente causador de verrugas genitais
Pensilvânia, Estados
tais. Segundo a Agência Internacional
e de câncer de colo do útero, o terceiro
Unidos, reconheceu 87
para Pesquisa do Câncer, 13 variedades
tipo de tumor mais comum em mulheres,
mercadorias à mostra em
de HPV são classificadas como de alto
depois do de mama e cólon e reto. Exis-
prateleiras. A luva é um
risco para o desenvolvimento de cân-
tem no mínimo 200 variedades conhe-
dos resultados de um
cer. Os pesquisadores analisaram amos-
cidas do vírus. No estudo, os pesquisa-
projeto de criação de
tras de células da camada externa do
dores identificaram 20 delas, incluindo
dispositivos que possam
colo do útero de 265 jovens não fuman-
as 16 e 18, associadas ao surgimento de
ser vestidos e interpretar
tes com 25 anos de idade, em média, e
70% dos casos de câncer de colo do
uma cena complexa
identificaram trechos do DNA do vírus
útero. Apenas 50% das mulheres e 10%
como o cérebro humano.
em 67 delas, uma prevalência de 25,3%
dos homens infectados produzem anti-
O sistema de visão
(Infectious Agents and Cancer, 22 de ju-
corpos específicos contra o HPV.
reconhece um objeto como novo e então armazena a informação na memória. A meta é criar
Hidrogel com verme contra uma praga
um mecanismo que leia
fotos 1 e 2 eduardo cesar 3 wikimedia commons 4 Patrick Mansell/Penn State University
rótulos e interprete Uma mistura de água,
perfura o tronco da
combinada do muco e do
logotipos e imagens.
hidrogel e um verme
árvore, a vespa-da-
fungo leva a planta à
Especialistas em
microscópico, Deladenus
-madeira pode colocar
morte. De acordo com os
neurociência e de outros
siricidicola, tem servido
até 500 ovos e, ao
pesquisadores, esse
para simplificar o
mesmo tempo, liberar
novo tipo de aplicação
controle biológico da
uma secreção tóxica, um
reduziu em 46,5% os
vespa-da-madeira (Sirex
muco, com esporos de
custos de produção e em
noctilio), uma espécie
um fungo que obstrui os
66,7% o tempo de
acidentalmente
vasos condutores de
produção da solução
introduzida no Brasil que
seiva. Segundo os
usada para conter a
se tornou uma das
pesquisadores, o uso de
praga. No Paraná e em
principais pragas
hidrogel poderia ser
Santa Catarina, as áreas
de plantações de pinus,
mais simples que o da
de plantios de pinus
de acordo com
gelatina, cujo preparo
somam 145 mil hectares.
experimentos realizados
demanda tempo e exige
A árvore é usada como
na Embrapa Florestas,
uma batedeira elétrica e
matéria prima na
no Paraná. Hoje o verme
água gelada e quente.
produção de papel,
é misturado a uma
O hidrogel poderia ser
celulose, laminadoras,
gelatina ao ser aplicado
misturado com o verme
serraria, movelaria
em árvores para infectar
e a água em um saco
e resinas. Desde março
e esterilizar as fêmeas da
plástico e depois usado
de 2015, a Embrapa
vespa (Agência Embrapa,
ou armazenado em
usa o hidrogel
21 de julho). Quando
geladeira. A ação
em 6.276 hectares.
campos participam desse Luva óptica: reconhecendo produtos nas prateleiras dos mercados
trabalho, que recebeu um financiamento de US$ 10 milhões da National Science Foundation.
4
PESQUISA FAPESP 234 | 15
Berçário de aviões Yuri Vasconcelos
16 | agosto DE 2015
capa Brasil tem cerca de 20 fábricas de pequenas aeronaves, que investem em inovações e na colaboração com universidades para crescer
fotos léo ramos
E
m maio deste ano, pela primeira vez no Brasil, um avião elétrico tripulado voou, colocando o país no seleto grupo de nações que dominam a tecnologia de fabricação de aeronaves elétricas. O voo aconteceu em São José dos Campos, cidade paulista que abriga o maior polo aeronáutico do país e é sede da Embraer, terceira maior fabricante mundial de jatos comerciais de passageiros. O Sora-e pertence à ACS-Aviation, uma das cerca de 20 empresas brasileiras que se dedicam à fabricação de pequenos aviões classificados pela Agência Nacional de Aviação (Anac) como experimentais ou aeronaves leves desportivas. Essas últimas, uma subcategoria dos experimentais criada pela Anac em 2011, são conhecidas pela sigla LSA, de light sport aircraft, e podem ser vendidas completas, enquanto os experimentais de construção amadora são aeronaves leves, não homologadas, que vão para o mercado em forma de kits e precisam ter 51% de sua montagem feita pelo comprador, normalmente um piloto privado. Metade dos fabricantes desses aviões está localizada no interior de São Paulo, enquanto os outros se espalham por Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Santa Catarina, Paraná e Bahia. O Brasil tem o segundo maior mercado global de aviões experimentais, só superado pelos Estados Unidos. Segundo dados da Anac, existiam no país 4.958 aeronaves desse tipo em 2013. Principalmente destinados a pilotos amadores que querem voar em equipamento próprio, esses aviões são usados para lazer, recreação ou transporte pessoal, e não podem ser empregados em qualquer atividade comercial. “O Brasil é um país com dimensões continentais que comporta essa variação de aviões para atender às mais diversas necessidades”, explica Humbert Peixoto Silveira, presidente da Associação Brasileira de Aviação Experimental (Abraex). Os aviões experimentais custam a partir de R$ 50 mil, enquanto os LSA – os esportivos – saem até por R$ 750 mil. Apesar do porte pequeno e da capacidade limitada a dois ou quatro ocupantes, segundo Humbert, os experimentais são veículos tecnologicamente avançados. “No mundo todo, a aviação experimental funciona como um laboratório para as grandes fábricas de aviões, como Airbus, Boeing e Embraer. Esses aparelhos nascem de projetos inovadores em termos de estrutura e aerodinâmica, são construídos a partir de técnicas aprimoradas de fabricação, utilizam novos materiais em sua estrutura e são equipados com aviônicos [equipamentos elétricos e eletrônicos dos aviões] digitais e motores potentes, que podem levar alguns modelos a voar a mais de 300 quilômetros por hora [km/h]”, diz. O voo do Sora-e coroou dois anos de trabalho do engenheiro aeronáutico formado pela Universidade Federal de Minas Ge-
Túnel de vento para testes na UFMG e desenhos de aeronaves feitos por alunos da universidade PESQUISA FAPESP 234 | 17
1
MATERIAIS COMPOSTOS
Na aviação hoje procura-se utilizar compósitos – ou materiais compostos, como metal e polímero, carbono e vidro – na fabricação da estrutura das aeronaves, em substituição ao alumínio aeronáutico, em razão do baixo peso e da elevada resistência desses novos materiais. A empresa europeia 2
18 | agosto DE 2015
Airbus, por exemplo, entregou em janeiro deste ano para a Qatar Airways o primeiro jato da companhia com asas e fuselagem feita de polímeros reforçados com fibra de carbono, o A350 XWB, com capacidade para 366 passageiros. Outro fabricante brasileiro de aviões leves esportivos que recorreu a compósitos foi a Scoda Aeronáutica. Localizada em Ipeúna, a 195 quilômetros de São Paulo, a companhia fabrica o Super Petrel LS, um avião anfíbio (que pousa e decola tanto da água como da terra) que é um sucesso no exterior. “Já produzimos 350 unidades do Super Petrel LS e do Super Petrel 100, seu antecessor. Eles foram vendidos para 23 países e temos clientes em outros quatro prestes a receber suas encomendas”, conta Rodrigo Scoda, dono da empresa. O Super Petrel custa a partir de R$ 350 mil. Engenheiro aeronáutico graduado na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP), em São Carlos, Scoda ressalta que o sucesso de seu avião se deve, em boa medida, ao fato de ser certificado nos Estados Unidos e em outros países na categoria LSA. “Projetamos o Super Petrel LS com a norma do FAA [Federal Aviation Administration] na mão. Essa foi a maneira que encontramos de fabricar
1 Sora-e, primeiro avião elétrico fabricado no Brasil 2 Super Petrel LS: pouso e decolagem na água e na terra
fotos 1 Alexandre Marchetti 2 léo ramos
rais (UFMG) Alexandre Zaramella, sócio-diretor da ACS-Aviation, empresa localizada em São José dos Campos (ver Pesquisa FAPESP nº 228). “Existem no mundo meia dúzia de companhias focadas no desenvolvimento de aviões elétricos. E nós somos uma das poucas com um aparelho testado em voo”, diz ele. O desenvolvimento do Sora-e – uma versão do principal modelo da ACS-Aviation, o Sora com motor a combustão – teve a parceria do Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Montagem de Veículos Movidos a Eletricidade da Itaipu Binacional e recebeu uma subvenção de R$ 500 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), destinada à criação de um sistema elétrico para aeronaves. O avião tem dois motores elétricos de 35 quilowatts (kW) cada um, alimentados por um conjunto de seis baterias de lítio íon polímero de 400 volts, que podem manter a aeronave no ar por até uma hora e 30 minutos.
infográfico ana paula campos
Diversidade no ar Saiba quais são os modelos de destaque produzidos pelas principais fabricantes de aviões leves do país Homologados São aeronaves sem nenhuma limitação quanto à quantidade de pilotos, tripulação, tipo, peso, modelos e finalidades, desde que atendam às normas de homologação, como treinamento de pilotos, pulverização, transporte de cargas, transporte pessoal, de passageiros e outras. LSA Sigla em inglês para avião leve esportivo (light sport aircraft), essa subcategoria dos experimentais inclui modelos que podem ser vendidos montados. A Anac ainda estuda se esses aparelhos podem ter uso comercial. Experimentais São aviões leves, não homologados, de construção menos complexa, vendidos em kits ou feitos a partir de projetos. Por lei, 51% de sua fabricação deve ser feita pelo dono do aparelho, normalmente um piloto amador. Não podem ser usados para fins comerciais.
Super Petrel LS Scoda Aeronáutica Ipeúna-SP
Modelo Empresa/Instituição Localização
O que é
T-Xc Novaer São José dos Campos-SP
Avião monomotor de quatro lugares
Avião anfíbio para dois ocupantes
Fabricado inteiramente de materiais compostos, constituídos por fibra de carbono e fibra de aramida (kevlar)
Sora-e ACS-Aviation São José dos Campos-SP
Quasar Aeroalcool Tecnologia Franca-SP
Monomotor para duas pessoas
Uso de corte e furação a laser na fabricação de componentes metálicos complexos, como asas e superfícies
New Conquest Inpaer São João da Boa Vista-SP
Wega 180 Wega Aircraft Palhoça-SC
Super Flamingo Aeropepe Recife-PE
Ultraleve avançado de asa alta para duas pessoas
Asa com longarina de fibra de carbono, que reduz o arrasto e confere mais velocidade ao avião
P-1 Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) São José dos Campos-SP
Avião a pedal Escola de Engenharia de São Carlos-USP São Carlos-SP
Aeronave experimental movida a pedaladas
Feito de fibra de carbono e materiais compostos, foi o primeiro avião do gênero na América Latina
Anequim Centro de Estudos Aeronáuticos da UFMG Belo Horizonte-MG
Avião de corrida com aerodinâmica arrojada
Projetado para ser o mais rápido de sua categoria, pesa 330 kg e atinge 575 km/h
Característica inovadora
Valor de mercado
Emprego de fibra de carbono em larga escala na estrutura da aeronave, tornando-a mais leve e com melhor rendimento
R$ 2,5 milhões
R$ 350 mil
Primeira aeronave elétrica do país
Motorização composta por propulsores elétricos alimentados por baterias de lítio íon polímero
Em teste e sem preço
Pontas de asas com formas mais aerodinâmicas, resultando em melhor desempenho em voo
R$ 300 mil
R$ 300 mil
Aeronave leve para dois ocupantes
Monomotor experimental de dois lugares
Construído em compósito, é um avião com características acrobáticas, atingindo 350 km/h
R$ 620 mil
R$ 230 mil
Planador de dois lugares para treinamento
Enflexamento variável das asas (ângulo da asa em relação à fuselagem), conferindo melhor aerodinâmica
R$ 280 mil se fabricado em série
Sem preço, não é fabricado
Sem preço, não é fabricado
PESQUISA FAPESP 234 | 19
1 Monomotor Quasar: 60 aviões vendidos 2 P-1, planador desenvolvido e construído no ITA para instrução de pilotos
um produto global”, afirma. O FAA é o órgão dos Estados Unidos responsável pela regulamentação da aviação civil. Suas normas servem de modelo para vários países, inclusive o Brasil. Produzido com um compósito constituído de fibra de carbono e fibra de aramida (kevlar), o Super Petrel LS foi inspirado no avião anfíbio francês Hydroplum, dos anos 1980. A Scoda é responsável por 81% de seu processo produtivo e apenas as partes mecânicas são importadas. Um aspecto incomum do processo de desenvolvimento e certificação do Super Petrel LS foi o fato de 90% ter sido feito por estagiários do 4o e 5o anos do curso de engenharia aeronáutica da EESC-USP. “Sempre que possível, trabalhamos em parceria com universidades. Três de nossos oito engenheiros foram formados na EESC”, diz Scoda. A equipe de colaboradores da empresa é constituída por 100 profissionais, entre técnicos, engenheiros, mecânicos, pilotos e administradores. MODELOS CERTIFICADOS
Além da Scoda, a Indústria Paulista de Aeronaves (Inpaer) também está em busca de certificação de seus aviões para ganhar mercado. Fundada em 2002, a empresa mudou de mãos há dois anos quando foi adquirida pelos empresários Milton Pereira e Helio Gardini. “Desde 2013, já investimos R$ 40 milhões na Inpaer. Fizemos mudanças importantes no processo de gestão, reformulamos nosso portfólio de produtos e o quadro de funcionários passou de 60 para 115 pessoas. Queremos tornar a Inpaer uma companhia globalizada, seguindo os passos da Embraer”, diz Milton. O carro-chefe da empresa, o monomotor de dois lugares Conquest 180, foi modernizado e passou a se chamar New Conquest. “O avião está em processo de certificação como LSA. O objetivo seguinte é começar a exportar”, diz Milton. 20 | agosto DE 2015
Com 230 aviões entregues desde sua criação, a Inpaer está trabalhando em dois novos modelos, o EZY300A e o EZY300B. Esses aviões terão capacidade para quatro pessoas e autonomia para voar 1.950 km sem necessidade de reabastecimento. A diferença entre eles é o posicionamento das asas em relação à fuselagem: quando elevadas, como no modelo 300A, o avião fica mais panorâmico e com velocidade menor; já baixas, como no 300B, ele fica mais veloz. “Nossa intenção é homologar esses aviões segundo a norma 23 do Registro Brasileiro de Aviação Civil (RBAC 23). Com isso, eles poderão ser usados para fins comerciais, como treinamento de pilotos e transporte de passageiros e cargas”, explica Milton. O primeiro protótipo do 300A voou no ano passado e agora recebe melhorias, enquanto o 300B ainda está em projeto. AVIÃO A PEDAL E MOTOR A ÁLCOOL
Grande parte dos engenheiros aeronáuticos hoje responsáveis pelo projeto de novos aviões no país foi formada pela EESC-USP, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), instituição de
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fotos 1 e 2 Picasa 3, 4 e 5 léo ramos
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fotos 1 e 3 nonononono 2 nonononno
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3 Curso de engenharia aeronáutica da USP de São Carlos tem como foco a manutenção aeronáutica 4 Na UFMG a ênfase é dada à construção de protótipos 5 Montagem do anfíbio Super Petrel LS
4
ensino superior do Comando da Aeronáutica, e pela UFMG. “Durante os cinco anos da graduação, os estudantes aprendem a fazer um avião completo. O diferencial do nosso curso é a ênfase dada à homologação e à manutenção aeronáutica, o que torna nossos alunos cobiçados pelo mercado”, afirma James Waterhouse, professor da EESC-USP. “Fazer um avião que voe é fácil, mas fazer um que siga as normas aeronáuticas e possa ser homologado é 100 vezes mais difícil.” Um dos projetos mais inovadores da escola foi a construção de uma aeronave tripulada movida a pedal, a primeira do tipo na América Latina. No protótipo, de apenas 42 quilos, feito com estrutura de fibra de carbono e materiais compostos, o piloto aciona a hélice movendo pedais. O voo inaugural, de alguns metros, foi realizado há três anos. “Para conseguir voar, um avião a pedal precisa ter uma aerodinâmica refinadíssima. Nossos alunos estão agora aprimorando o projeto para voos mais longos”, diz Waterhouse, que tem doutorado na área de combustíveis alternativos para aeronaves. Waterhouse, além de lecionar na USP, é dono da Aeroalcool Tecnologia, em sociedade com o engenheiro aeronáutico Omar José Junqueira Pugliesi, mestre em Engenharia na área de motores pela EESC-USP. Instalada em Franca, a 400 quilômetros da capital paulista, a empresa foi criada em 2001 com a finalidade de amadurecer e comercializar a tecnologia do motor a álcool para aviões, projetado no começo dos anos 1980 na USP de São Carlos. “Conseguimos aperfeiçoar a tecnologia, mas, por contingências do mercado, nosso motor aeronáutico a etanol não virou um produto comercial”, conta Waterhouse. Os sócios decidiram investir no projeto de uma aeronave própria, batizada de Quasar. “Este foi um avião projetado do zero, peça por peça. Fabricamos rodas, freios e vários componentes que normalmente são importados. Em 2006, o Qua-
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sar fez seu voo inaugural”, lembra o professor. Já foram vendidos 60 aviões, sendo que as oito primeiras unidades foram exportadas para os Estados Unidos. A Aeroalcool verticalizou a produção de suas peças e conseguiu elevado índice de nacionalização. “Entre os componentes importados estão motor, hélice e aviônicos, que não vale a pena fabricar aqui”, diz Waterhouse. “Nossa maior inovação foi o uso de corte e furação a laser na fabricação de componentes metálicos complexos, como asas e superfícies do avião. Essa tecnologia, objeto de estudo durante o meu mestrado, resultou num projeto Pipe FAPESP [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas], que foi um sucesso. Com essa tecnologia, reduzimos em 80% a mão de obra de fabricação e o espaço físico e conseguimos maior padronização e qualidade de manufatura.” PLANADOR PIONEIRO
O professor do ITA Ekkehard Carlos Fernando Schubert desenhou e construiu um planador de dois lugares voltado à instrução básica e avançaPESQUISA FAPESP 234 | 21
Um projeto ambicioso Novaer planeja fabricar avião homologado para disputar mercado com grandes indústrias internacionais como as norte-americanas Cessna, Piper e Cirrus Fabricar mais de 100 aviões por ano
Sovi, tem apenas dois lugares e
a partir do quarto ano de produção
será destinada ao treinamento de
e destinar 75% das unidades ao
pilotos das forças aéreas. Os dois
mercado internacional. Essa é a
aviões são inspirados na aeronave
meta estabelecida pela Novaer,
experimental K-51, criada pelo
empresa que está desenvolvendo
engenheiro húngaro naturalizado
seu primeiro avião, provisoriamente
brasileiro József Kovács, um dos
chamado de projeto T-Xc. A
mais renomados projetistas
aeronave fez seu voo inaugural em
aeronáuticos do país. A maior
agosto de 2014 e encontra-se na
inovação do projeto T-Xc é a
fase de ensaios de certificação, que
aplicação da fibra de carbono
devem durar mais um ano. Um
em larga escala. “Vários aviões
diferencial da Novaer em relação à
comerciais já fazem uso desse
maioria dos fabricantes brasileiros
componente, mas, por enquanto,
é o fato de o T-Xc almejar a
nenhum possui 100% de suas
certificação pela norma 23 do
estruturas em fibras de carbono
Regulamento Brasileiro de Aviação
como a aeronave da Novaer”,
Civil (RBAC 23). Essa homologação
diz Graciliano.
permite que o avião seja usado
Atualmente sediada em São José
como táxi aéreo e para transporte
dos Campos, a Novaer tem planos
de cargas e treinamento de pilotos
de transferir parte de suas
civis e militares – o que não é
atividades para Lages, em Santa
permitido às aeronaves
Catarina, onde o governo estadual
experimentais. “Não teremos
planeja montar um polo industrial
concorrentes no Brasil. Nossos
aeronáutico. A intenção da Novaer
maiores competidores serão os
é estruturar a linha de montagem
fabricantes internacionais, como
do T-Xc e do Sovi em solo
Cessna, Piper e Cirrus”, afirma
catarinense. Criada em 1998, a
Graciliano Campos, presidente
empresa também se dedica ao
da Novaer.
desenvolvimento de componentes
O T-Xc será fabricado em duas
para aeronaves. Ela é a fornecedora
versões: utilitário e treinador.
do trem de pouso do T-27 Tucano,
O primeiro modelo, com quatro
avião de treinamento e combate
lugares, visa ao transporte de
leve fabricado pela Embraer e
passageiros e pequenas cargas.
empregado pela Força Aérea
A versão treinador, batizada de
Brasileira e de mais de 10 países.
n Fibra de carbono n Itens de fornecedor n Partes metálicas
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da de pilotos, batizado de P-1. O desenvolvimento do primeiro protótipo teve início em 1995 e foi finalizado em 2002, quando a aeronave fez seu primeiro voo. “Decidi construir um planador com dois lugares para treinamento porque achava que o Brasil precisava se livrar das importações de um produto relativamente simples. Quando comecei o projeto, havia uma possibilidade de o DAC [Departamento de Aviação Civil, depois transformado na Anac] adquirir um lote grande para os aeroclubes do país, o que não se concretizou”, conta Schubert, brasileiro de pais alemães. Os planadores são aeronaves que se sustentam em voo livre sem motor. Por isso, precisam ser fabricados com materiais leves e ter uma aerodinâmica própria. O P-1 foi feito com um compósito formado por fibra de vidro, resina epóxi e espuma de PVC rígido. Uma de suas principais inovações tecnológicas é a geometria das asas, com enflechamento (ângulo formado entre a asa e a fuselagem) variável ao longo da semienvergadura. “Esse desenho confere melhor aerodinâmica à asa e torna o voo mais eficiente”, diz o professor do ITA. Sua intenção é conseguir certificar a aeronave como LSA para tentar vendê-la para escolas de aviação no Brasil e no exterior. Nos anos 1960, os alunos do ITA, sob orientação do professor Guido Fontegalant Pessotti, que se tornaria diretor-técnico da Embraer nos anos 1980, já faziam planadores. Eles construíram o Urupema, modelo que chegou a ser fabricado pela Embraer, e o rebocador de planadores Panelinha. O ITA tem seis cursos de graduação na área e já formou 6 mil engenheiros aeronáuticos, aeroespaciais, mecânicos, eletrônicos, civis e de computação desde a sua fundação, em 1950. NASCEDOURO DE PROJETOS
A UFMG também tem papel de destaque na formação de profissionais para a indústria aeronáutica brasileira. Seu curso de engenharia aeroespacial forma entre 40 e 45 estudantes por ano. A universidade tem uma unidade, o Centro de 4
fotos 1 e 3 nonononono 2 nonononno
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1 Aeronave movida a pedal desenvolvida na EESC-USP 2 Painel do monomotor New Conquest
fotos 1 usp / divulgação 2 inpaer 3 Daniel Popinga 4 novaer
3 Monomotor Wega, feito a partir de projeto acadêmico
3
Estudos Aeronáuticos (CEA), focada em projeto, desenvolvimento e operação de protótipos de aeronaves. “Poucas instituições acadêmicas no mundo têm capacidade para trabalhar na fabricação de um avião. Desde o nosso primeiro protótipo, o planador Gaivota, que voou em 1964, já projetamos e construímos 10 aeronaves”, conta o engenheiro aeronáutico e professor da UFMG Paulo Henrique Iscold. A ênfase dada à construção de protótipos, segundo Iscold, é o diferencial do curso da UFMG. “Nossos alunos aprendem, na prática, a construir um avião. Nesse processo, sempre tentamos inovar e criar algo a mais que possa ser levado para a indústria”, diz o engenheiro. Cada avião demora de cinco a seis anos para ficar pronto e os alunos participam dos projetos, fazem desenhos e cálculos e montam a estrutura. O mais recente feito no CEA foi o Anequim, uma aeronave de corrida que pesa 330 quilos e atinge 575 km/h. O Anequim voou pela primeira vez em novembro de 2014 e, neste mês, seus criadores vão tentar quebrar sete recordes mundiais de velocidade. Os voos serão monitorados pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI), entidade sediada na Suíça e que homologa os recordes em aviação. O monomotor CEA-308, construído em 2011 pela UFMG, é reconhecido pela FAI como o mais rápido avião leve (abaixo de 300 quilos de peso total, incluindo piloto e combustível) do planeta. A aeronave bateu três recordes mundiais de velocidade, nos percursos de 3, 15 e 100 quilômetros, e um de razão de subida, até 3 mil metros. Há dois anos, o projeto de um avião para quatro tripulantes criado no CEA venceu um concurso internacional promovido pela fábrica de motores aeronáuticos Price-Induction, da França. Outro destaque do CEA é o Triathlon, uma aeronave acrobática feita de madeira e materiais compostos que começou a sair da prancheta entre 1997 e 2001, durante o doutorado do professor Cláudio de Barros, fundador do CEA, conta Iscold. O modelo serviu de inspiração para dois
aviões que foram construídos em escala industrial por empresas privadas – o Sora, aeronave da ACS-Aviation, e o monomotor Wega 180, da Wega Aircraft, de Santa Catarina. Criada pelo mecânico de aeronaves Jocelito Wildner, a Wega Aircraft fica em Palhoça, na Região Metropolitana de Florianópolis. É a primeira indústria do setor instalada no estado. Além do Wega 180, com motor de 180 hp (horse power), ela também fabrica o Wega 210, com motorização mais potente, de 210 hp. “Nossos aviões são feitos de carbono, vidro e resina de alta qualidade, possuem trem de pouso retrátil e seguem normas internacionais de segurança”, afirma Wildner, formado pela escola da extinta companhia aérea Varig. A capacidade de produção da Wega é de duas unidades por ano, sendo que oito aviões já foram vendidos. Pernambuco também tem sua fábrica de aviões, a Aeropepe, fundada em 1999, em Recife. Quinze unidades do Flamingo e do Super Flamingo, um monomotor de asa alta capaz de voar a 200 km/h, foram vendidos, um deles para Portugal. As aeronaves apresentam duas inovações principais: estrutura totalmente construída com materiais compostos e asa equipada com longarina de fibra de carbono, o que confere maior resistência estrutural e dispensa o uso de peças de fixação. “A aeronave sofre menos resistência do ar e desenvolve maior velocidade com menor consumo de combustível”, diz José Rodolfo Garrido Andrade, o Pepe, dono da empresa. Com base em uma mesma plataforma, o empresário quer lançar três novos aviões. O primeiro, um modelo certificado como LSA, contou com a parceria da Aeron, uma spin off nascida no CEA-UFMG. “Os engenheiros da Aeron ficaram responsáveis pelos cálculos aerodinâmicos e pelo design do avião, que ainda não tem nome nem data de lançamento”, diz Pepe. As outras aeronaves são uma versão do LSA com motor elétrico e um aparelho de alto rendimento, dotado de motor turboélice de passo variável e trem retrátil. n PESQUISA FAPESP 234 | 23
entrevista Silvio Roberto de Azevedo Salinas
Um físico de altas e baixas temperaturas Pesquisador fala dos trabalhos em estatística, de educação e política nuclear brasileira Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto |
retrato
Léo Ramos
S
ilvio Salinas gosta de uma boa conversa. Se for sobre sua especialidade, melhor ainda. Mesmo para os que têm pouca familiaridade com a física estatística, segmento da física teórica complicado para os não iniciados, ele tenta dar alguma noção da área em que trabalha há 45 anos. Entusiasmado, caminha até o quadro branco e anota conceitos e fórmulas. Depois de algum tempo, senta-se e solta um lamento: “Se tivéssemos mais uma hora, eu seria capaz de fazer vocês entenderem um pouco do que já estudei”, diz o professor titular sênior do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Para ele, seu trabalho como físico teórico tem como objetivo simplificar modelos complexos da física estatística para torná-los mais acessíveis. A física está longe de ser o seu único ponto de interesse. Discorre sobre política e educação. Sua trajetória acadêmica é singular. Sete dias após o golpe militar de 1964, Salinas foi preso e expulso do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, com outros estudantes e professores, acusados de subversão. “Éramos jovens de esquerda bastante ativos no centro acadêmico, mas ninguém pensava em explodir pontes, como nos acusavam”, conta ele. Libertado quatro meses depois, inscreveu-se em dois cursos, o de engenharia, na Escola Politécnica (Poli-USP), e o de física, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP, atual FFLCH). Passou no vestibular e cursou ambos simultaneamente. Natural de Araraquara, interior de São Paulo, Salinas optou pela física, área na qual fez mestrado na USP (1967-68) e doutorado nos Estados Unidos (1969-73). Na volta ao Brasil, participou dos debates sobre o acordo nuclear Brasil-Alemanha
24 | agosto DE 2015
idade 72 anos especialidade Física estatística formação Bacharelado em Engenharia Elétrica (Poli-USP) e Física (FFLCH-USP), mestrado (FFLCHUSP), doutorado (Universidade Carnegie Mellon) instituição Instituto de Física da USP produção científica 118 artigos científicos e sete livros. Orientou 27 mestrados e 17 doutorados
PESQUISA FAPESP 234 | 25
e mergulhou nas pesquisas sobre física estatística, interagindo com os físicos experimentais de matéria condensada. Um assalto sofrido há 12 anos o deixou cego do olho direito, mas não diminuiu seu entusiasmo. Inquieto aos 72 anos, orienta alunos, escreve artigos e se preocupa com questões domésticas e universais. Revela-se frustrado por não conseguir atrair historiadores para estudar a trajetória do IF-USP, que começou nos anos 1930 e contém a origem da docência e da pesquisa em física no país. E tenta vislumbrar uma saída para a física, que estaria num momento de indefinição. Casado, com dois filhos gêmeos – um advogado e outro bioquímico –, Salinas concedeu a entrevista abaixo para Pesquisa FAPESP. Sua prisão e expulsão do ITA ocorreram sete dias depois do golpe militar de 1964. O senhor participava de algum grupo de esquerda? Eu estava no quarto ano de engenharia elétrica e participava do centro acadêmico. Antes do golpe, havia um movimento estudantil forte no ITA, mesmo sendo uma escola comandada por militares. A vida cultural era intensa e o centro acadêmico recebia apoio da escola e do CTA [atual DCTA, Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, vinculado ao Comando da Aeronáutica], de onde vinha parte do orçamento. Podíamos usar esse dinheiro sem ingerência. Aprendi a gostar de cinema no ITA, que tinha uma sessão semanal de filmes de arte, além de apresentações de boas peças de teatro e shows de música. Para alguém de Araraquara, era fantástico. Aliado à cultura, havia o movimento estudantil, dividido entre esquerda e direita. Na esquerda estavam aqueles influenciados pelo Partido Comunista ou ligados aos movimentos sociais da Igreja Católica.
fessores e 12 alunos, eu entre eles, detidos por quatro meses na Base Aérea de Santos, respondendo a um IPM [Inquérito Policial Militar]. Fomos desligados do instituto. Em 2005, fui anistiado com outros expulsos por razões políticas em 1964, 1965 e 1975. A iniciativa foi de um reitor recente, Michal Gartenkraut, morto em 2013. Ele promoveu a reconciliação do ITA com seu passado e achava que o ambiente pré-1964 precisava ser resgatado, do ponto de vista intelectual e de comportamento das pessoas. De comportamento? É. Havia um ambiente cultural e acadêmico interessante. O curso básico era excelente e me permitiu mudar para a física, anos depois, sem traumas. Encontrei no ITA uma prática chamada disci-
tária, e, morando no Crusp [Conjunto Residencial da USP], dava para conciliar. O que o fez pender para a física? Primeiro, alguns cursos interessantes e os desafios intelectuais propostos. Em segundo lugar, não me animava a trabalhar como engenheiro. Decidi fazer mestrado em física e, para minha sorte, descobri a FAPESP. Fui bolsista já em 1967, quando acabei a graduação. Defendi o mestrado em 1969, mas, antes, já havia sido contratado como professor na Poli. Rápido assim? Era como acontecia na época. José Goldemberg, que não me conhecia, contratou-me para dar aula em março de 1968, em tempo parcial. A Poli tinha uma cadeira de física quase abandonada porque ninguém fazia pesquisa na área. Goldemberg ganhou a cátedra e queria melhorar essa situação. Foi antes da reforma na universidade. A cátedra de Física na Poli era diferente da cátedra de Física na Filosofia. Ele era ligado à FFCL, mas vagou a da Poli. Ninguém parecia interessado, com exceção do Roberto Salmeron, que estava no exterior e não veio fazer o concurso. Goldemberg ganhou e precisava de gente jovem para dar aula e fazer pesquisa. Achou ótimo que eu aparecesse lá.
Antes do golpe de 1964 havia um movimento estudantil forte e uma vida cultural intensa no ITA
Sua militância se restringia ao movimento estudantil? Sim, e era a mesma que havia em São Paulo. Os grêmios fortes eram o da Poli e o da Filosofia. Só com o golpe nos demos conta de que estudávamos numa base militar. No dia 7 de abril foram presos dois pro26 | agosto DE 2015
plina consciente. Era um conceito em que regras de convivência na instituição e as punições de suas transgressões eram administradas pelos próprios estudantes. Para ficar em um exemplo: o professor dava uma prova e saía da sala. Ninguém colava. Onde se encontra isso hoje? Como foi o ingresso na USP? Quando saí da cadeia fiz vestibular para a Politécnica e para o curso de física da FFCL. Passei e, a partir de 1965, fiz os dois cursos em dois anos porque pedi dispensa das disciplinas já cursadas. Acho que hoje não seria possível. Eu assistia às aulas da Poli pela manhã e ia aos laboratórios à tarde. Já a física eu fazia à noite. Tudo era na Cidade Universi-
Qual era sua linha de pesquisa? Matéria condensada. Inicialmente, trabalhei com semicondutores com o professor Luiz Guimarães Ferreira. Ele sugeriu que eu fizesse um estágio no Laboratório de Baixas Temperaturas e cursei meu mestrado lá. Esse é o laboratório que foi criado por Mario Schenberg nos anos 1960? Sim. Em algum momento, Schenberg percebeu que precisava ampliar as áreas de pesquisa do Departamento de Física da FFCL. A física da USP tinha vivido a época gloriosa dos estudos com raios cósmicos a partir de 1936, quando começaram as pesquisas em física. Mais tarde, esse pessoal se voltou para a física nuclear. Nos anos 1950 e 1960, despontaram novas áreas e a física do estado sólido,
foto Acervo pessoal
hoje chamada de matéria condensada, parecia promissora. Schenberg assumiu a construção de um laboratório de física do estado sólido, instalado em 1961.
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Essa não era a área dele. Não. O negócio dele era a física teórica. Schenberg já estava na fase mais abstrata da sua carreira e um tanto isolado. Como não era da área, precisava trazer pesquisadores para esse laboratório. Os primeiros foram Newton Bernardes e Carlos Quadros, que trabalhavam nos Estados Unidos. Quem projetou o laboratório foi um convidado norte-americano. O que vocês estudavam lá? A temperatura em que vivemos, de 20 e poucos graus Celsius, não é a temperatura usada nessas pesquisas. Usamos o Kelvin. Zero Celsius equivale a 273 Kelvin. Baixas temperaturas é ir abaixo disso, mas a segunda lei da termodinâmica impõe um limite: o zero Kelvin. Não se consegue ir abaixo disso, a não ser em situações especiais. Aí há alguns marcos importantes. Um deles é a liquefação do nitrogênio, que ocorre a 90 Kelvin. Essa temperatura não é tão difícil conseguir. Mas, para determinadas pesquisas, é preciso baixar mais. A única substância líquida a temperaturas muito baixas é o hélio. Sua temperatura de liquefação é 4 Kelvin e isso foi conseguido aqui um pouco antes de eu entrar no laboratório, em 1967. Com hélio líquido, dá para tomar medidas elétricas e magnéticas precisas e caracterizar materiais. Qual era seu trabalho? Participei de caracterização de materiais magnéticos. Há outros materiais, como os supercondutores, que, quando se quer caracterizar, é preciso trabalhar com temperaturas ainda mais baixas. A 4 Kelvin, o hélio liquefaz; a 1,2 Kelvin, o líquido vira superfluido e tem características notáveis, como a ausência de viscosidade. O hélio foi liquefeito pela primeira vez no mundo pelo holandês Heike Kamerlingh Onnes, em 1906, que descobriu efeitos sensacionais. O mais interessante foi a supercondutividade. Alguns materiais, abaixo de determinadas temperaturas, se transformavam em condutores perfeitos, sem dissipação de energia. Houve um esforço grande para caracterizar supercondutores. No mestrado trabalhei com uma bobina super-
Silvio Salinas, John Nagle e Carlos Yokoi no Rio de Janeiro (s/d)
condutora, sob a supervisão do professor Nei Oliveira, um pouco mais velho do que eu. Acho que essa foi a primeira bobina desse tipo no Brasil, doada por um laboratório de Grenoble, na França. Quais as possíveis aplicações dessas pesquisas? Embora a supercondutividade não tenha dissipação de energia, ela funciona a até 10 Kelvin. Por exemplo: para construir um trem que flutue nessas condições, seria preciso manter tudo a essa temperatura, o que é impossível. Há uns 20 anos descobriram materiais supercondutores a 100 Kelvin. Melhorou, mas esse ainda é um problema não solucionado tecnologicamente. Sabemos explicar a supercondutividade em baixas temperaturas, até 15 Kelvin. Há uma teoria chamada BCS, proposta por [John] Bardeen, [Leon] Cooper e [Robert] Schrieffer, que é a base da supercondutividade. Eles ganharam o Prêmio Nobel de Física graças a essa teoria. John Bardeen, um dos inventores do transistor? Isso, o único a ganhar duas vezes o Nobel de Física. Uma pelo transistor, com William Shockley e Walter Brattain, em 1956, e outra pela teoria BCS. Newton Bernardes foi aluno de mestrado do Bardeen, que propôs a ele um problema. Bernardes resolveu muito bem e publicou. Mas, no mesmo ano, Schrieffer re-
solveu outro que funcionou melhor para explicar o que Bardeen queria. Junto com Cooper, eles ganharam o Nobel de 1972. Bernardes deu um azar dos diabos. Hoje há uma disputa por uma nova teoria para supercondutores e alguns físicos dizem que a teoria BCS é incompleta. Se estava com a carreira encaminhada, por que saiu do país em 1969? O ano de 1969 foi terrível, com muitas perseguições. Na física saíram o Schenberg e o Jayme Tiomno. A repressão se tornou brutal e eu tinha um passado político que não ajudava. Decidi tentar ir para o exterior. Na época até estava bem situado, casei em 1968, tinha um Volkswagen e morava em um apartamento alugado. Meus amigos usavam essa infraestrutura para ações contra a ditadura e eu, embora não fizesse nada, estava indiretamente envolvido. Como conseguiu ir embora? O professor Fernando de Souza Barros, hoje no Rio de Janeiro, estava na Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, e me conseguiu uma posição como teaching assistant sem eu ter feito exame nem teste de inglês. Também fui aceito no doutorado. O convite foi intermediado por amigos físicos, como Amélia e Ernst Hamburger, que estavam na Universidade de Pittsburgh. A intenção era continuar o que estudava aqui, mas, depois de fazer cursos e conhecer as pesPESQUISA FAPESP 234 | 27
Com os filhos gêmeos e a esposa, Cristina, em Pittsburgh, Estados Unidos, no começo dos anos 1970
soas, mudei para a física teórica. Lá tinha um pessoal forte nessa área, como Robert Griffiths, James Langer e John Nagle. O seu orientador era norte-americano? Sim, foi o John Nagle. Inicialmente, eu iria trabalhar com o Fernando de Souza Barros, mas ele pretendia voltar para o Rio. Surgiu essa possibilidade na física teórica e a colaboração com Nagle me abriu perspectivas de trabalho em modelos de cristais com ligações de nitrogênio, que retomei depois na USP. Para me manter na Carnegie Mellon, ganhei uma bolsa da universidade que me obrigava a dar aulas. Fiz isso por dois anos. No início me protegeram bastante, porque eu falava inglês mal. Tinha que preparar bem as aulas e isso tomava tempo. Até eu descobrir que, com bolsa da FAPESP, poderia pesquisar em tempo integral e escolher o orientador. Pedi e ganhei. Era melhor, em termos de dinheiro, do que a que eu ganhava lá. Por que não ficou nos Estados Unidos? Na época, os meus amigos mantinham a perspectiva de voltar para o Brasil. Não era uma decisão fácil. Eu tinha problemas aqui, estive envolvido no IPM do Crusp quando descobriram a expulsão do ITA. Quando ia sair do país, pedi para o Goldemberg me demitir, mas ele sugeriu que eu pedisse uma licença sem vencimentos. Quando quisesse voltar, haveria um emprego. Ele manteve minha posição e renovou meu contrato por quatro anos. 28 | agosto DE 2015
Nesse tempo, houve a reforma universitária, a cátedra foi extinta e as cadeiras de Física da Poli e da Filosofia viraram uma só no Instituto de Física. Fiquei nos Estados Unidos até receber um ultimato do instituto. Se não voltasse, não seria possível renovar o contrato. Voltei em 1974. Não temeu retornar em plena ditadura? Um tio que era procurador da Justiça aposentado disse que não aconteceria nada. O IPM do Crusp já tinha ido para a auditoria militar e fui absolvido, como aconteceu no inquérito do ITA. Voltei e assumi minha posição de instrutor. O cargo era em tempo parcial e não dava para viver só com ele. Por sorte, existia o BNDE [atual BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], que iniciou uma linha de fomento depois assumida pela Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Na época, havia um projeto grande do banco que ajudava a complementar o meu salário e o de muita gente da USP. Mais tarde consegui tempo integral na universidade. O senhor continuou trabalhando com baixas temperaturas nos Estados Unidos? Sim, mas em física estatística. A física de sólidos é uma aplicação da mecânica quântica e da física estatística. Trata-se de trabalhar com um número muito grande de partículas, o que inviabiliza tratamentos individuais. Para isso é preciso ter uma visão de estatística. Trabalhei em
Qual foi sua contribuição de maior repercussão? Algumas das minhas contribuições foram no sentido de entender melhor o funcionamento desses sistemas e as teorias existentes na época. Há um livro de um amigo, Mario Oliveira, comemorando os 80 anos da USP, com artigos sobre trabalhos considerados importantes. Ali está um estudo que fiz com um aluno que hoje é professor aqui, o Carlos Yokoi, e outro docente de Pernambuco, o Mauricio Coutinho, relacionado a algo originado de conversas com o pessoal experimental. É um modelo de um diagrama de fases [gráfico das condições de equilíbrio entre as fases sólida, líquida e gasosa] em que dá para fazer conexões e medidas. Foi um trabalho de física estatística com certa repercussão. Um dos desdobramentos é que conseguimos fazer uma conexão com uma ideia que tinha surgido na época, na teoria de sistemas dinâmicos, sobre caos e fractais. Foi no início da década de 1980. O seu trabalho estava dirigido para modelos estatísticos desde o doutorado? Minha tese foi sobre um modelo estatístico para explicar a transição de fases em um cristal ferroelétrico. No meu período nos Estados Unidos publiquei alguns artigos. Esse relacionado à tese saiu na revista Physical Review B em 1974. O senhor acompanhou de perto a política nuclear brasileira. Pelo que se depreende do período, alguns físicos brasileiros tinham restrições ao acordo com a Alemanha, mas não se opuseram de forma clara a ele, mesmo o Brasil tendo um enorme potencial hídrico para gerar energia. Quais as razões dessa reação? Não foi bem assim. Eu estava bastante envolvido com a SBF [Sociedade Brasileira de Física] na época e o acordo com a Alemanha foi uma surpresa. Quando foi anunciado, em julho de 1975, estávamos numa reunião da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] em Belo Horizonte. Muitos físicos eram
foto Acervo pessoal
problemas de ferroeletricidade e aprendi técnicas de mecânica estatística no doutorado. Quando voltei, interagi com quem trabalhava com baixas temperaturas. Na época havia interesse em compreender fenômenos físicos chamados de transição de fase, críticos e multicríticos.
favoráveis ao acordo e alguns até participaram dele de modo velado, caso do José Israel Vargas. Outros ficaram aturdidos, como o Goldemberg. Ele era favorável ao uso da energia nuclear, mas queria um projeto que garantisse a independência do país e era contra os métodos baseados no enriquecimento do urânio. Havia físicos favoráveis a um programa nuclear brasileiro independente, com resistência às características do programa alemão. Foi um debate importante. Os físicos se abriram para a questão energética como um todo. O potencial hídrico brasileiro era pouco conhecido pelos físicos. O Goldemberg virou pesquisador de energia depois desses debates e hoje é crítico do uso da energia nuclear. Havia ainda a suspeita de que os militares desejavam produzir a bomba atômica. E como vê a questão hoje? Sou a favor de ter um reator multipropósito, como o que se deseja construir para produzir radioisótopos e fazer pesquisas nessa linha. Agora, erguer usinas nucleares para gerar eletricidade, não. Há problemas de segurança não resolvidos. Além do potencial hídrico, temos a possibilidade de explorar energia eólica e biomassa. Dá para ser um país mais limpo sem tantos riscos.
vez maiores e mais custosos. Para mim, é difícil enxergar uma saída. E como vê a física brasileira? Começou de uma maneira difícil, sem gente nem recursos, mas chegou a bom termo, graças ao trabalho do grupo inicial formado por Gleb Wataghin dos anos 1930 e 1940. Hoje há um bom número de pessoas trabalhando em física no país. Temos de ficar atentos se os trabalhos têm qualidade e geram impacto. Nos últimos anos, o senhor tem se preocupado em preservar o acervo do Instituto de Física. É fato que cedeu sua sala para guardar documentos históricos? Quando fui diretor do instituto, de 1993 a 2002, pediram para usar minha antiga
O senhor foi colaborador da Universidade do ABC [UFABC] em 2006 e 2007. Por que essa jovem universidade o impressionou? No início de 2006 encontrei, por acaso, o Hermano Tavares, meu contemporâneo no ITA e ex-reitor da Unicamp. Ele tinha acabado de assumir a reitoria pro tempore da UFABC, em Santo André, e disse que precisava da minha ajuda. Fui conhecer e achei a experiência inovadora. Todos os ingressantes faziam um bacharelado único, interdisciplinar, em ciência e tecnologia, por três anos. Metade das disciplinas eram optativas e tinham uma base comum: física, química, matemática, computação e ciências sociais. O aluno escolhia o que fazer. Depois de três anos, podia sair como tecnólogo, por exemplo. Ou, tendo interesse, desempenho acima de certo nível e uma escolha adequada de disciplinas optativas, poderia concluir um dos bacharelados (engenharia, física, química, matemática ou computação) com mais um ou dois anos suplementares de curso. A ideia era ter uma forte base conceitual e reduzir as distinções entre cientistas e engenheiros ou entre as diversas especializações. A universidade é a única no país que tem 100% dos docentes com doutorado. Foi uma época peculiar, pois a UFABC recrutou um bom número de doutores, formados nos nossos cursos de pós-graduação e às vezes com estágio de pós-doutoramento, que não conseguiam posições em São Paulo. A UFABC não tem departamentos, mas centros comuns, o que é bom porque agrega. Fui diretor do Centro de Ciências Naturais e Humanas. Achei meio estranho quando criaram um bacharelado em humanidades. Não seria preciso ter todas as áreas na UFABC, como querem muitas universidades brasileiras. As disciplinas de humanas são importantes para apoiar a formação do engenheiro, que precisa disso. Os Estados Unidos têm experiências incríveis com o que eles chamam de general studies, em Harvard inclusive. n
Sou a favor de ter reator nuclear para produzir isótopos e fazer pesquisa, mas não para eletricidade
Certa vez o senhor disse que a física estava num momento difícil. Por quê? Um exemplo: recentemente foi descoberto o bóson de Higgs, que confirma o modelo-padrão da física, um grande modelo teórico. O que vem depois? Há avanços observacionais em astronomia e astrofísica. Há 20 anos, a cosmologia era um tema meio metafísico. Hoje tem outro status. Há essas ideias de matéria e energia escura. Como é que fica o modelo-padrão da cosmologia? Como vai se ajustar às modernas teorias de campos?
Isso não é estimulante? Por um lado, sim, mas o que tem surgido para explicar? Uma das coisas mais interessantes é a teoria de cordas. Mas é muito complicado, porque não há como testá-la experimentalmente nem como construir aceleradores de partículas cada
sala de pesquisador. Ao sair da direção, ganhei outra sala, maior. Em 2012 me aposentei e continuei pesquisando, mas achei que não tinha sentido ocupar todo aquele espaço. Na época existia o projeto de acervo do instituto e os responsáveis estavam desesperados à procura de um lugar. Deixei a minha sala para colocarem a documentação. Quando a Amélia Hamburger faleceu, ocupei a sala dela, que é pequena. Além disso, sou físico teórico e posso trabalhar em casa. Há um projeto de digitalizar o acervo. Parte já foi feita. É algo difícil: faltam dinheiro e interesse dos historiadores de ciência. Gostaríamos de contar com dois ou três pesquisadores jovens, que se dedicassem a trabalhar com a história da física em São Paulo.
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política c&T Difusão y
Ciência sobre rodas Guia mapeia 32 museus científicos itinerantes no Brasil Bruno de Pierro
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carga transportada pelo motorista Daniel Batista da Silva é diferente de tudo o que ele já carregou em 25 anos de profissão. “Eu levo um museu de ciência”, disse, apontando para a carreta estacionada numa grande área a céu aberto. Sobre as rodas do caminhão funciona a Caravana da Ciência, um museu itinerante criado em 2007 pela Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj), que entre os dias 12 e 18 de julho foi uma das atrações da 67ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada no campus da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A iniciativa é um dos 32 museus científicos móveis em atividade no país, que promovem atividades em comunidades e municípios distantes dos grandes centros urbanos. Eles estão listados no recém-lançado guia de Centros e museus de ciência do Brasil 2015, publicado pela Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC), pela 30 z agosto DE 2015
Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelo Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A edição anterior do guia, divulgada em 2009, havia registrado apenas 20 projetos desse tipo no país. “Os museus itinerantes têm a capacidade de irradiar acervos e exposições científicas, principalmente para populações geográfica ou socialmente sem acesso a equipamentos científicos, como moradores de pequenos e médios municípios e periferias das grandes cidades”, explica José Ribamar Ferreira, presidente da ABCMC. Em sete anos, a Caravana da Ciência percorreu bairros e comunidades da cidade do Rio de Janeiro. Esteve também em 40 municípios fluminenses e recebeu a visita de 260 mil alunos do ensino fundamental e médio das redes pública e privada. Vistos de longe, o caminhão e as duas lonas gigantes armadas para abrigar o acervo lembram um circo. Crianças e jovens, conforme se aproximam, deparam-se com microscópios, espelhos côncavos e convexos, um gerador Van de
Graaff, que produz energia eletrostática e deixa os cabelos arrepiados, entre outros experimentos que se tornam fonte de conhecimento, inspiração e diversão. “Muitos moradores de comunidades carentes do Rio não se sentem incluídos nesse tipo de atividade e não frequentam museus de ciência mesmo quando moram perto de um”, diz Jessica Norberto Rocha, coordenadora da Caravana da Ciência. Para alcançar esse público, ela conta que já precisou pedir autorização ao crime organizado para montar a estrutura em morros do Rio de Janeiro. Com a colaboração da prefeitura da cidade, também levou o centro itinerante para o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), onde são mantidos menores que cometeram delitos. “Costumamos ser bem-vindos nesses locais”, observa.
suas cidades”, diz José Luís Schifino Ferraro, coordenador do Projeto de Museu Itinerante (Promusit) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Criado em 2001 pelo biólogo Jeter Bertoletti, o Promusit foi o primeiro museu itinerante do Brasil e se tornou uma referência. Em 14 anos, passou por todas as regiões brasileiras e por cidades próximas à fronteira com outros países, recebendo público de lugares como Argentina e Uruguai. Cerca de 75 experimentos nas áreas de física, química, biologia e matemática são montados na parte externa de uma grande carreta, cujo interior se transforma num auditório de 50 lugares, onde são exibidos documentários em 3D. O modelo do Promusit foi inspirado no Shell Questacon Science Circus, museu móvel do Centro Nacional de Ciência e Tecnologia do governo da Austrália em parceria com a empresa Shell. O projeto percorreu cerca de 500 cidades daquele país, incluindo 90 comunidades indígenas, desde que foi criado em 1985. Mas o advento dos museus móveis é mais antigo e remonta à década de 1950, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
O
crescimento do número de museus móveis é resultado da mobilização de universidades, instituições de pesquisa, secretarias estaduais e municipais, agências de fomento e do governo federal para ampliar o contato da população com iniciativas de popularização da ciência no país. Segundo a Pesquisa de Percepção Pública da Ciência e da Tecnologia 2015, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), apenas 12% dos brasileiros com mais de 16 anos visitaram museus ou centros de ciência e tecnologia nos 12 meses anteriores ao levantamento. Embora tenha triplicado em relação a 2006 (4%), o percentual é baixo quando comparado aos padrões europeus e norte-americanos, onde as taxas de visitação anual chegam a 20% da população. “Muitas prefeituras têm entrado em contato com museus itinerantes para solicitar visitas em
fotos Léo ramos
Museu Itinerante Ponto UFMG: dentro da carreta (alto) há módulos sobre os sentidos humanos (esq.) e uma sala que simula a vida dos bebês no útero pESQUISA FAPESP 234 z 31
publicou um manual orientando os responsáveis por museus de arte e cultura a desenvolver atividades itinerantes, sugerindo inclusive protótipos de carretas adaptadas. Em pouco tempo o conceito foi apropriado também por instituições como o Museu de Ciência da Virginia, nos Estados Unidos, e o National Council of Science Museums, da Índia. A experiência do Promusit inspirou outras iniciativas. Em 2004, a Academia Brasileira de Ciências e o MCTI lançaram o edital Ciência Móvel, que contemplou nove projetos e ajudou a fortalecer o modelo no país. Já a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) destinou em 2007 R$ 490 mil para montar o museu itinerante do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Com os recursos, compramos o cavalo mecânico e o chassi adaptado”, conta Tânia Margarida Lima Costa, diretora da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG e coordenadora do projeto. O interior da carreta abriga cinco salas interativas, que abordam temas como a vida no útero, os sentidos humanos, biomas, cidades e animais que vivem nas zonas abissais. Fora do caminhão, são organizados mais de 40 experimentos. “Estimulamos o público a compreender a ciência como um patrimônio de todos”, ressalta Lara Mucci Poenaru, coordenadora pedagógica do museu. Um dos objetivos é descentralizar a divulgação científica e levar pesquisas desenvolvidas na UFMG para lugares com poucos recursos, dentro e fora de Minas. Desde 2012, a iniciativa esteve no Acre, Brasília, Pernambuco, São Paulo e diversas cidades de Minas Gerais.
32 z agosto DE 2015
D
os 27 estados do país, apenas 12 dispõem de museus itinerantes. Das 32 iniciativas, quase metade está concentrada no Sudeste. O restante se divide entre o Nordeste (8), o Sul (5), o Centro-Oeste (3) e o Norte (1). “Descentralizar atividades de popularização da ciência não é uma tarefa simples”, explica José Ribamar, da ABCMC. Também é necessário lidar com o imprevisto para levar o conhecimento em cima de um caminhão. “Em Recife, nosso caminhão atolou na lama e precisamos improvisar uma ponte com tábuas de madeira”, lembra Tânia. “Esse é o lado menos glamoroso da divulgação científica.” Os responsáveis pelos museus itinerantes advertem, porém, que a experiência vivida pelo público costuma ser mais passageira do que a proporcionada por um museu permanente. As unidades móveis costumam ficar de cinco dias a uma semana nas cidades que visitam. Segundo Ferraro, do Museu de Ciências e Tecnologia da PUC-RS, museus com estruturas fixas criam a percepção de que o conhecimento científico está enraizado ali. “Isso é importante para criar uma cultura científica local e uma referência perene para aquela comunidade.” Para o físico Ernesto Kemp, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o museu itinerante é uma boa alternativa enquanto ainda não é possível ter o espaço físico para abrigá-lo. Esse foi o caso, por exemplo, da exibição NanoAventura da Unicamp, que em 2005 começou como unidade móvel e, em 2008, estabeleceu-se em uma área do campus da universidade. “Um museu permanente é um lugar onde o conhecimento pode ser acessado sempre”, avalia Kemp, que atualmente coordena a Oficina Desafio, um projeto do Museu Exploratório de Ciências da Unicamp, que percorreu mais de 10 municípios do estado de
de forma mais interativa, por meio de kits experimentais. As aulas são ministradas por professores do próprio Cecierj e de universidades e instituições parceiras, como a UFRJ e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), entre outros.
A
2
Caravana da Ciência, da Cecierj, tem experimentos como um giroscópio (acima, à esq.), espelhos que criam ilusão de óptica (acima) e um gerador Van de Graaff (abaixo, à esq.)
São Paulo desde 2008. Trata-se de uma oficina móvel equipada com ferramentas e materiais como madeira e cortiça, entre outros, utilizados na solução de desafios tecnológicos por estudantes do ensino médio. Para permitir que as marcas deixadas pelos museus itinerantes sejam mais duradouras, algumas iniciativas desenvolvem ações de educação com a população local. A Caravana da Ciência, por exemplo, costuma viajar acompanhada de outro projeto criado pela Cecierj: a Praça da Ciência Itinerante. O objetivo é fazer a formação continuada de professores da educação básica. Há mais de 40 oficinas nas áreas de biologia, física, química, matemática e artes, nas quais os professores são estimulados a ensinar ciências
3
fotos Léo ramos
Escola Móvel de Nanotecnologia do Senai: interior da carreta foi transformado em laboratório de microscopia
Caravana da Ciência também costuma recrutar cerca de 15 moradores do município visitado para trabalhar como mediadores voluntários junto com sua equipe fixa, formada por 20 pessoas. Em geral, participam alunos de graduação, professores do ensino médio e funcionários da prefeitura, que fazem um curso a distância sobre mediação em museus, oferecido pelo Cecierj, e ao final recebem um certificado. “Deixamos um legado na cidade. Há casos de pessoas que montaram grupos de divulgação científica em escolas públicas depois que passaram pelo nosso treinamento”, diz Jessica. O Museu Itinerante Ponto UFMG também envolve e qualifica educadores da localidade, por meio de curso a distância, para atuarem como mediadores. “É uma forma de criarmos vínculo com a comunidade”, observa Tânia Margarida. Outras iniciativas evitam recrutar pessoas desvinculadas do projeto. O Ciência Móvel da Fundação Oswaldo Cruz, por exemplo, monta um cadastro de mediadores, na maioria alunos de graduação de universidades do Rio de Janeiro, e os convoca de acordo com a disponibilidade para viajar. O trabalho é remunerado. “São pessoas que passaram por cursos na área de divulgação e educação científica”, conta Marcus Soares, coordenador do Ciência Móvel, cujo acervo transportado no caminhão inclui uma bancada de microscopia e jogos interativos sobre vacinas, entre outros. A equipe de 26 pessoas, entre motoristas, técnicos, professores e mediadores, ainda conta com atores de circo e de teatro que apresentam esquetes. Ainda neste ano o museu promoverá uma atividade para discutir a relação entre arte e ciência nas obras do pintor Candido Portinari (1903-1962). Em São Paulo, a Escola Móvel de Nanotecnologia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) se destaca por reproduzir o ambiente de laboratório. No interior da carreta foram instalados equipamentos como um microscópio eletrônico de varredura, um sistema de fabricação de microestruturas, um analisador de partículas e computadores. “Queremos despertar o interesse do aluno pela nanotecnologia, uma área fascinante, mas pouco conhecida”, diz Gilderlon Fernandes Oliveira, coordenador da unidade móvel do Senai. A iniciativa também mostra aos visitantes a aplicação da nanotecnologia na indústria, como a produção de camisetas feitas com tecido bactericida, microprocessadores, suplementos alimentares e medicamentos. n pESQUISA FAPESP 234 z 33
Indicadores y
Apoio demonstrado FAPESP preservou investimento em pesquisa apesar da desaceleração da economia, segundo Relatório de atividades 2014
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FAPESP investiu R$ 1,153 bilhão em fomento à pesquisa no ano passado, patamar superior ao R$ 1,103 bilhão desembolsado em 2013. O resultado é um dos destaques do Relatório de atividades 2014, lançado na sede da Fundação no dia 22 de julho com uma exposição de reproduções de obras da artista plástica Maria Bonomi, que ilustram a publicação. A receita da Fundação atingiu em 2014 R$ 1,222 bilhão, 5% a mais do que a de 2013, em valores correntes. Desse total, 81,7% vieram de transferências de recursos feitas pelo Tesouro paulista – a FAPESP recebe, conforme previsto pela Constituição estadual, 1% da arrecadação tributária do estado de São Paulo. Outros 12,2% tiveram origem em outras fontes, como convênios com agências de fomento, empresas e instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior. Os demais 6,1% se originaram de receitas patrimoniais da Fundação. Como prevê seu estatuto, a FAPESP mantém um patrimônio para investir no apoio a pesquisa em complemento aos recursos recebidos do Tesouro. “Apesar da desaceleração da atividade econômica no país registrada em 2014, com consequente decréscimo da arrecadação pública paulista, a FAPESP foi capaz de manter seus compromissos e de cumprir com sua missão de apoiar o desenvolvimento da pesquisa em nosso Estado”, afirmou o presidente da FAPESP, Celso Lafer.
34 z agosto DE 2015
A íntegra do relatório de 2014 e as edições de anos anteriores estão disponíveis em www.fapesp.br/publicacoes/. “Facilitar a visibilidade de suas atividades é central para a FAPESP, que deve ser uma das poucas organizações no Brasil que oferece ao contribuinte todos os seus relatórios anuais de atividades desde o ano de sua fundação, 1962, disponíveis pela internet”, disse o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. Nos últimos anos, as principais modificações no perfil de dispêndios da FAPESP foram a criação das bolsas Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe), programa destinado a alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado e pesquisadores de pós-doutorado de São Paulo para impulsionar a internacionalização da pesquisa que aumentou o dispêndio com bolsas no exterior de menos de 1% do total para quase 7%, e o apoio à infraestrutura de pesquisa por meio da Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa, modalidade de apoio para utilização em reformas de laboratórios, aquisição de equipamentos e organização de cursos para atualização de técnicos, entre outros, que tem estado em torno de 4% do dispêndio total. “Em ambos os casos deseja-se induzir mudanças institucionais no sistema paulista de pesquisa, num caso estimulando a experiência e conexões internacionais e noutro o planejamento das instituições”, afirmou Brito Cruz.
maria bonomi, Fronteiras (detalhes), 1964
Fabrício Marques
O avanço do investimento Evolução do desembolso realizado pela FAPESP entre 2009 e 2014 (em R$) e da participação percentual de cada objetivo de fomento
2009
2010
2011
2012
2013
2014
6%
38% 37%
9% 19% 10% 9%
7%
56%
Apoio à Pesquisa com Vistas a Aplicações
679.525.814 54%
780.033.468
32%
49%
37%
938.737.449 1.035.207.651
53%
39%
52%
41%
1.103.153.253
52%
1.153.088.452
Programa Biota-FAPESP; Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (CInAPCe); Programa de Pesquisas em eScience (eScience); Auxílios e bolsas das áreas de engenharias, saúde, agronomia e veterinária; Ensino Público; Jornalismo Científico (MídiaCiência); Programas de Pesquisas em Políticas Públicas: Pesquisa em Políticas Públicas e Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS (PP-SUS); Programas de Apoio à Pesquisa Inovativa em Micro e Pequenas Empresas: Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), Programas de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pipe Fase 3: Pappe/Finep); Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica: Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica – SUS (Pite-SUS); Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi/Nuplitec) Apoio ao Avanço do Conhecimento Bolsas Regulares no País: Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Doutorado Direto e Pós-Doutorado; Bolsas Regulares no Exterior: Pesquisa e Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe); Auxílios à Pesquisa – Regulares; Auxílios à Pesquisa – Projetos Temáticos, com as subdivisões: Temáticos Regulares, Temáticos Pronex e Temáticos Institutos
Recursos desembolsados em 2014 Por área de conhecimento (%) 28,56
Saúde 15,87
Biologia 10,44
Ciências humanas e sociais
Interdisciplinar
7,13 5,27
Química Física
4,41 2,75
Geociências Matemática e estatística Ciência e eng. da computação
Apoio à Infraestrutura de Pesquisa; Rede ANSP (Academic Network at São Paulo); Equipamentos Multiusuários; FAP-Livros; Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa; Reserva Técnica para Conectividade à Rede ANSP; Reserva Técnica para Coordenação de Programa
8,21
Agronomia e veterinária
Astronomia e ciência espacial
Apoio à Infraestrutura de Pesquisa
10,27
Engenharia
Nacionais de Ciência e Tecnologia, os dois últimos em convênio com o MCTI; Apoio a Jovens Pesquisadores; São Paulo Excellence Chairs (Spec); Capacitação de Recursos Humanos para Pesquisa (Capacitação Técnica)
2,68 1,65 1,60
Arquitetura e urbanismo
0,58
Economia e administração
0,57
Segundo o vínculo institucional do pesquisador (%) 47,55
USP Unicamp
14,29 13,41
Unesp Instituições federais
12,14
Inst. estaduais de pesquisa
5,43 4,45
Inst. part. de ensino e pesquisa Empresas particulares
2,39
Soc. e ass. cient. profissionais
0,25
Instituições municipais
0,09 pESQUISA FAPESP 234 z 35
Giant magellan telescope
Projetos apresentados por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), instituição responsável por pouco mais de um quinto de toda a produção científica brasileira, receberam 47,55% do desembolso da FAPESP em 2014. Em seguida vêm os da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com 14,29%, e os da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com 13,41%. Já projetos desenvolvidos em instituições federais de ensino superior e pesquisa instaladas em São Paulo, tais como a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre outros, receberam 12,14% do total. A área da saúde, que concentra 36 z agosto DE 2015
Um destaque de 2014 foi o aumento no investimento na área de astronomia e ciência espacial. O volume de recursos desembolsados no ano passado chegou a R$ 30,9 milhões, ante R$ 7,9 milhões em 2013. A integração da FAPESP ao consórcio internacional responsável pelo Giant Magellan Telescope (GMT), que começará a ser construído neste ano nos Andes chilenos, ajuda a explicar o aumento do investimento. O GMT, que deverá funcionar plenamente em 2021 e se tornará, então, o maior telescópio terrestre em atividade, promete multiplicar a capacidade de pesquisa da comunidade de astronomia de São Paulo. “Investimentos na astronomia, principalmente os de vanguarda, têm natureza estratégica e maturação de longo prazo”, diz o astrofísico João Steiner, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, idealizador e coordenador do projeto que alinhavou a entrada no GMT. “As decisões de hoje terão profundo impacto na próxima geração de cientistas paulistas. É nisso que estamos investindo.” A FAPESP vai investir US$ 40 milhões no projeto, 4% de seu custo total. Isso também garantirá 4% do tempo de operação para a comunidade astrofísica paulista, que reúne um terço dos pesquisadores do país e metade da produção científica nacional da área (ver Pesquisa FAPESP nº 231). O relatório mostra a natureza do investimento em pesquisa feito pela Fundação utilizando vários recortes. Quando são analisados, por exemplo, os objetivos do fomento, observa-se que 40,82% dos recursos foram destinados a pesquisas que buscam principalmente o avanço do conhecimento, enquanto 51,77% foram para projetos que combinaram o avanço do conhecimento com suas aplicações, e 7,4% tiveram como fim o aprimoramento da infraestrutura de pesquisa disponível no estado (ver quadro). A categoria cujo objetivo é o de avanço do conhecimento compreende projetos destinados
recursos Desembolsados Por linha de fomento e por programas selecionados – 2014
R$ 1000
%
Bolsas regulares
482.490
41,84
Bolsas no país
403.781
35,02
Bolsas no exterior
78.709
6,82
Auxílios regulares
423.962
36,77
Linha regular de auxílio à pesquisa
303.003
26,28
Projetos temáticos
120.958
10,49
Programas especiais
129.064
11,19
Programas de apoio à infraestrutura de pesquisa
78.070
6,77
Jovens pesquisadores
38.992
3,38
Outros
12.002
1,04
Pesquisa para inovação tecnológica
117.571
10,2
Centros de pesquisa, inovação e difusão
53.733
4,66
Pesquisa inovativa em pequenas empresas
26.061
2,26
Outros
37.776
3,24
à formação de recursos humanos e ao estímulo da pesquisa acadêmica, o que inclui parte significativa das bolsas, dos auxílios regulares e dos projetos temáticos, além de programas como o Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes e o São Paulo Excellence Chairs (SPEC), voltado para estabelecer colaborações entre instituições do estado de São Paulo e pesquisadores de alto nível radicados no exterior. Já o grupo das pesquisas com vistas a aplicações contempla iniciativas que, embora também busquem fazer o conhecimento avançar, tem um interesse econômico e social notável. Inclui, por exemplo, os auxílios e bolsas nas áreas de engenharia, saúde, agronomia e veterinária, além de programas como o Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) e o Pesquisa em Políticas Públicas. A terceira vertente, de apoio à infraestrutura, busca, entre outros exemplos, recuperar e modernizar laboratórios de universidades e instituições de pesquisa ou atualizar acervos, que resultam indiretamente em avanços do conhecimento. Uma outra forma de visualizar o investimento é distingui-lo segundo as linhas de fomento, agrupadas em três categorias. A principal delas, com 78,61% dos recursos, é a dos programas regulares, aqueles que atendem a demandas espontâneas de pesquisadores. A categoria inclui as diversas modalidades de bolsas, com investimento de R$ 482,49 milhões, ou 41,84% do total, e os auxílios regulares a
maria bonomi, sapho i, 1987
um grande número de pesquisadores e gera muitas solicitações de auxílios e de bolsas, foi a que recebeu mais recursos: o equivalente a 28,56% do total (ver quadro). Em seguida, aparecem a biologia (15,8%), as ciências humanas e sociais (10,4%), as engenharias (10,27%) e a agronomia e veterinária (8,2%).
Bolsas
Análise por pares
Número de solicitações e contratações
Número de pareceres por área do
de bolsas no país e no exterior – 2014
conhecimento – 2014
Solicitações
Contratações
Bolsas no país
10.370
5.127
Iniciação científica
3.282
2.143
2.735
1.006
Agronomia e veterinária
2.337
1.027
Química
Doutorado direto
189
113
Pós-doutorado
1.827
838
Bolsas no exterior
1.464
1.237
Pós-doutorado
342
253
1.122
984
11.834
6.364
programas especiais
Também foram contratados, em 2014, 3.949 auxílios regulares. O número é ligeiramente superior ao de 2013 (3.844), mas aquém do de 2012 (4.292). Dividem-se em auxílio regular à pesquisa (1.544), participação em reunião no exterior (963), organização de reunião (560), publicação (346), pesquisador visitante do exterior (241), participação em reunião no Brasil (200), projeto temático (76) e pesquisador visitante do Brasil (19). Uma segunda categoria é a dos programas especiais, com 11,19% do total, ou R$ 129,06 milhões em 2014. Eles buscam induzir a pesquisa em determinadas áreas do conhecimento e a superar carências do sistema de ciência e tecnologia paulista. Incluem vários programas, entre os quais o de Apoio à Infraestrutura e o de Pesquisa em eScience. A terceira é a dos programas de pesquisa para inovação tecnológica, como o Biota, que estuda a biodiversidade, o de Pesquisa em Bioe-
2.273 909
Ciência e eng. da computação
676
Física
665
Economia e administração
490
Matemática e estatística
451
Geociências
427
Arquitetura e urbanismo
365
Interdisciplinar Astronomia e ciência espacial
projetos de pesquisa, com R$ 423,96 milhões, ou 36,77% do total. Em 2014, foram pagas pela Fundação, em média, 11.197,4 bolsas por mês, divididas entre doutorado direto (4.068), iniciação científica (2.430), pós-doutorado (1.937), mestrado (1.910), Capacitação Técnica (697), Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes (79,5), Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (46,5), Ensino Público (20,5) e Jornalismo Científico (7).
2.631 2.307
Biologia
Mestrado
Total
4.049
Engenharia
Doutorado
Bepe
6.982
Saúde Ciências humanas e sociais
294 85
nergia (Bioen), o de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), entre outros. O relatório também apresenta dados que mostram o funcionamento do sistema que avalia o mérito das solicitações de bolsas e de auxílios, baseado na análise feita por pares. Cada pedido é examinado por um ou mais pesquisadores, sem vínculo formal com a Fundação, ligados à área do conhecimento do projeto em avaliação. Esses assessores emitem pareceres sobre a qualidade dos projetos que servem como subsídios para as decisões tomadas pela Fundação. Em 2014, a FAPESP contou com o apoio de 7.566 assessores, que emitiram 22.604 pareceres. A maioria (7.460 ou 98,6% do total) emitiu de um a quatro pareceres, enquanto 25 analisaram cinco ou mais projetos. Os assessores atuam em sua maioria no estado de São Paulo (19.524), mas também há a contribuição de pesquisadores do Rio de Janeiro (538 assessores), Minas Gerais (376) e Rio Grande do Sul (262). Como resultado do esforço de internacionalização que a FAPESP realiza nos últimos anos, vem aumentando a porcentagem de bolsas de pós-doutorado no Brasil concedidas a pesquisadores de outros países. Em 2014, pesquisadores do exterior responderam por 17% das concessões, com maior incidência em ciências exatas, da Terra, biológicas e humanas. “Este número é um dado ex-
tremamente positivo, pois a presença de pesquisadores de outras nacionalidades em São Paulo provoca necessariamente a produção de artigos e pesquisas em cooperação internacional, o que eleva a visibilidade e o impacto da ciência paulista”, afirmou Celso Lafer. Em 2014, foram contratadas 984 novas bolsas de estágio de pesquisa no exterior, com as quais bolsistas de graduação e pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado da FAPESP estagiam em centros de pesquisa de outros países. Os cinco destinos mais procurados foram os Estados Unidos, França, Inglaterra, Espanha e Canadá. Ainda no campo da internacionalização, 38 novos acordos de cooperação foram assinados em 2014 com agências de fomento e instituições de ensino e pesquisa estrangeiras. Outros 87 já estavam vigentes, firmados com 78 instituições de 18 países. A FAPESP manteve em 2014 sua série de simpósios FAPESP Week, promovidos desde 2011 com o objetivo de aumentar a projeção da ciência brasileira no exterior e estimular a cooperação com grupos estrangeiros. Pela primeira vez, a China e a Alemanha sediaram o evento, que também foi promovido nos campi de Berkeley e de Davis da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Em Washington, um seminário sobre pesquisa na Amazônia foi organizado pela FAPESP em cooperação com o Departamento de Energia dos Estados Unidos. n pESQUISA FAPESP 234 z 37
Inovação y
Interação produtiva Livros mostram que os vínculos entre universidades e empresas têm impacto em países em desenvolvimento
Developing national systems of innovation – University-industry interactions in the global South Organizadores: Eduardo Albuquerque, Wilson Suzigan, Glenda Kruss e Keun Lee Edição: Edward Elgar Publishing, IDRC Disponível em: http://goo.gl/q0iXmp
La transferencia de I+D, la innovación y el emprendimiento en las universidades – Educación superior en Iberoamérica – Informe 2015 Coordenador: Senén Barro Ameneiro Edição: Centro Interuniversitario de Desarrollo (Cinda), RedEmpreendia e Universia Disponível em: http://goo.gl/F7ttF1
D
ois livros lançados recentemente apresentam panoramas complementares sobre a construção de vínculos entre universidades e empresas no Brasil. Ambas as obras comparam o país com nações emergentes ou em desenvolvimento e mostram que o Brasil vem multiplicando as conexões entre o setor privado, universidades e centros de pesquisa e agências governamentais, tornando mais robusto seu sistema de inovação. Tais ganhos, no entanto, nem de longe foram suficientes para garantir ao país o status já alcançado, por exemplo, pela Coreia do Sul ou em via de ser alcançado pela China, que mobilizaram grupos de pesquisadores de vários campos do conhecimento em torno de desafios de muitos setores da indústria. “O Brasil não ficou parado, mas em termos comparativos continua na mesma colocação na corrida, pois outros países avançaram tanto ou mais do que ele”, diz Eduardo Albuquerque, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Albuquerque e o professor Wilson Suzigan, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), são coorganizadores brasileiros de um dos livros, intitulado Developing national systems of innovation – University-industry interactions in the global South, publicado pela editora Edward Elgar. A obra é fruto de um projeto internacional promovido pelo International Development Research Centre (IDRC), do Canadá, que comparou as estratégias de 12 nações para desenvolver seus sistemas nacionais de inovação: África do Sul, Argentina, Brasil, China, Coreia do Sul, Costa Rica, Índia, Malásia, México, Nigéria, Tailândia e Uganda. Levando-se em conta o desempenho científico desses países, medido em artigos publicados, e o tecnológico, avaliado pelo volume de patentes, observou-se sua distribuição em três grupos. Países como Nigéria e Uganda estão no último pelotão, com baixa produtividade e interação restrita entre a academia e o setor privado. Já latino-americanos como Brasil, México e Argentina, assim como a África do Sul, estão num regime tecnológico intermediário, patamar alcançado há quatro décadas, mas nunca superado. No primeiro pelotão, vê-se apenas a Coreia do Sul, que estava no grupo intermediário nos anos 1980, mas multiplicou as conexões entre empresas e institutos de pesquisa, trajetória que a China, ainda no segundo pelotão, está perto de cumprir. Para Suzigan, é preciso investir em qualidade, quantidade e diversidade na produção científica brasileira, fatores necessários para disseminar novas interações com as empresas. “Ciência e tecnologia caminham juntas: o crescimento de uma depende do crescimento da outra, as duas se reforçam mutuamente. Para que haja desenvolvimento tecnológico é preciso que haja crescimento e diversificação da produção científica e, sobretudo, que haja uma relação entre esses dois componentes do sistema nacional de inovação, ou seja, interação, que é a questão-chave tratada pelo nosso livro”, afirmou. Pesquisadores vinculados ao projeto do IDRC saíram a campo nos 12 países e mapearam conexões entre universidades e empre-
as
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pESQUISA FAPESP 234 z 39
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A matriz baseia-se em avaliação feita por 325 empresas brasileiras de vários setores, que consideraram “moderadamente importante” e “muito importante” a pesquisa feita em instituições públicas em diversos campos do conhecimento
infográficos ana paula campos
Conexões entre universidades e empresas
sas. Encontraram em todos eles exemplos que contrariam o senso comum, segundo o qual, em nações periféricas, a pesquisa científica tem pouco impacto no desempenho do setor privado. “Ao contrário, as ciências e as engenharias são importantes até para setores de baixa tecnologia. É o caso, por exemplo, da pesquisa na área de mineração no Brasil e no México ou em alimentos na Argentina”, diz Albuquerque. Nos países estudados, os responsáveis por pesquisa e desenvolvimento em empresas de diversos setores foram questionados sobre a contribuição da pesquisa científica para seu esforço de inovação, seguindo uma metodologia criada e aplicada nos Estados Unidos nos anos 1980 e 1990. Com o objetivo de adaptar a pesquisa às realidades locais, campos do conhecimento relevantes para a indústria de países latino-americanos, como agronomia, engenharia de minas e engenharia de alimentos, foram considerados. No caso brasileiro, 325 empresas inovadoras de 23 setores da economia manifestaram-se sobre a importância da pesquisa realizada em universidades e instituições públicas em 16 áreas das ciências e engenharias. O resultado é visualizável em uma matriz pontuada por conexões, mas também por vazios, que revela o peso da ciência para o desempenho do setor pri-
vado (ver quadro). Sempre que mais da metade das empresas de um determinado setor informava que a pesquisa em uma determinada disciplina era moderadamente importante ou muito importante para seu desempenho, considerou-se que existe ali um ponto de interação entre universidades e empresas. Na matriz brasileira foram detectados 29 pontos de interação em 20 setores da economia. O desempenho supera o resultado da pesquisa aplicada na Argentina (15 pontos de interação em 19 setores) e no México (23 pontos de interação em 15 setores), e, naturalmente, fica aquém do resultado obtido por um estudo realizado anteriormente nos Estados Unidos e usado como referência, no qual foram identificados 47 pontos de interação em 34 setores.
A
lém dos 29 pontos de interação, houve 195 pontos de conexão mais fraca, em que menos da metade das empresas relatou que a pesquisa naquela área era pelo menos moderadamente importante. E, em 144 pontos da matriz brasileira, o resultado foi igual a zero, ou seja, sem interação entre empresas e universidades. “A pesquisa é importante pelas interações que indica e também por mostrar a existência de muitos vazios, onde não há interações”, explica Albuquerque.
Patentes e publicações na Ibero-América Número de patentes de residentes outorgadas em 2011 Espanha
2.582 725
Brasil México
245
Argentina
224
Chile
104
Cuba
53
Colômbia
33
Fonte Ricyt
Número de publicações científicas em 2011 Espanha
55.209
Brasil
39.105
Portugal
12.038
México
11.069
Argentina
8.861
Chile Colômbia Venezuela
5.684 3.167 1.180
Cuba
931
Uruguai
818
40 z agosto DE 2015
Fonte Science Citation Index / Ricyt
A pesquisa brasileira na área de engenharia metalúrgica, de minas e de materiais revelou-se importante para sete setores; engenharia mecânica e agronomia para quatro setores; e química, ciência da computação e engenharia elétrica para três setores. Os setores com mais pontos de interação com a universidade foram os de mineração, produção de alimentos, papel, derivados de petróleo, produtos de metal, computadores e eletrônicos, equipamentos elétricos e veículos automotores. “Há setores que estão entre os mais importantes da economia brasileira. Os pontos de interação são, na realidade, frutos de um longo processo de construção de vínculos entre instituições,” afirma Albuquerque. “Mas a pesquisa não está suficientemente difundida em todos os setores da economia. E deveria haver mais conexões entre setores da economia já conectados à pesquisa com outros campos do conhecimento.” O pesquisador alerta que as interações têm facetas múltiplas e nem todas elas puderam ser captadas. “Conheci um pesquisador na UFMG que tem uma interação direta com uma multinacional norte-americana, que não passa pela filial brasileira. A inserção em redes internacionais ainda precisa ser medida.” O segundo livro, La transferencia de I+D, la innovación y el emprendimiento en las universidades, faz um diagnóstico comparativo dos países ibero-americanos, que reúnem Espanha e Portugal e as nações da América Latina, enfatizando a evolução da transferência de tecnologia para empresas e organizações da sociedade na primeira década do século XXI. Guilherme Ary Plonski, coordenador do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pelo capítulo sobre o Brasil, destaca uma mudança de mentalidade. “Ao longo do período estudado, a inovação tornou-se foco das preocupações do governo, das universidades intensivas em pesquisa e de alguns setores empresariais”, diz Plonski. “O estímulo ao empreendedorismo se enraizou no discurso das universidades, ainda que nem sempre a intensidade da prática seja consistente com esse discurso.” Dados do livro mostram que as instituições de ensino superior diversificaram sua estrutura de apoio à transferência de conhecimento. O número de núcleos de inovação tecnológica no Brasil cresceu de 11 no ano 2000 para 127 em 2012. A Lei de
Apoio à inovação
Universidades influentes
Núcleos de inovação tecnológica
Instituições ibero-americanas mais citadas em patentes mundiais (documentos citados)
mantidos por instituições de educação superior no Brasil
Universidade de São Paulo
783
Universidade de Barcelona
127
608
Universidade Autônoma de Madri
581
Universidade de Lisboa
90
456
Universidade Politécnica da Catalunha
445
Universidade Complutense de Madri 43
Universidade Autônoma de Barcelona Universidade Nacional Autônoma do México
11 2000 2006 2011 2012
Incubadoras de empresas que as instituições de educação superior mantêm em funcionamento 134
86
39
2000 2005 2010
Parques científicos e tecnológicos que as instituições de educação superior mantêm em funcionamento
10
20
28
2000 2005 2010
Apesar dos avanços, sistema de inovação brasileiro permanece bastante heterogêneo, mostra livro
414 365
Universidade Estadual de Campinas
346
Universidade Politécnica de Valência
343
Inovação, aprovada em 2004, compeliu as instituições científicas e tecnológicas a terem tais estruturas para cuidar de sua política de inovação e da gestão de sua propriedade intelectual. Da mesma forma, o número de incubadoras de empresas em instituições de ensino superior aumentou de 39 em 2000 para 134 em 2010 e o de parques científicos e tecnológicos, de 10 para 28 no mesmo período.
N
426
um diagnóstico convergente com o do livro organizado por Albuquerque e Suzigan, Plonski diz que as interações entre universidades e o setor produtivo precisam se multiplicar e destaca que, apesar dos avanços, o sistema de inovação brasileiro permanece bastante heterogêneo. No caso da aplicação dos recursos financeiros, por exemplo, menciona o exemplo de São Paulo, estado no qual, em contraste com o que acontece nas demais unidades da federação, mais da metade do esforço em pesquisa e desenvolvimento é feita pelas empresas, e não pelo governo. “O livro revela a situação de países como um todo, mas procurei mostrar que há realidades diferentes na esfera subnacional.” O desempenho de São Paulo também se distingue em outros indicadores. Na lista das universidades de países ibero-americanos com pesquisas mais mencionadas em pedidos de patente nos Estados Unidos, a USP aparece em primeiro, com 783 documentos citados, seguida pelas universidades de Barcelona (609) e a Autônoma de Madri (581). A Unicamp está em 9º lugar (346 documentos citados). Uma característica dos países ibero-americanos é que a grande maioria dos pedidos de patente é feita por não residentes, geralmente empresas estrangeiras que buscam proteger seus produtos
nos mercados da região. Na Espanha, por exemplo, 98% dos pedidos de patente em 2011 tiveram origem em não residentes. Em seguida vêm o México (92%), a Argentina (86%) e o Brasil (75%). Em números absolutos de patentes outorgadas para residentes, que em geral resultam de pesquisa e desenvolvimento nacional, a Espanha aparecia em primeiro lugar em 2011, com 2.582. O Brasil vinha em segundo, com 725 patentes. Já no ranking de patentes outorgadas (para residentes e não residentes) por milhão de habitantes, o Brasil, com 26, aparece em quinto lugar, diante de 552 da Espanha, 141 do México, 77 do Chile e 40 da Argentina. Embora só perca para a Espanha em número de publicações científicas (39 mil artigos ante 55 mil de espanhóis em 2001, segundo o Science Citation Index), a situação brasileira é menos favorável quando se analisa o número de publicações dividido por milhão de habitantes. O Brasil aparece na sétima posição, atrás de Espanha, Portugal, Chile, Uruguai e Argentina. O livro mostra que os países ibero-americanos estão mal posicionados quando comparados com os países desenvolvidos. “Mas, na América Latina e Caribe, é necessário distinguir Brasil, Argentina, México e Chile do restante. Esses países concentram em torno de 90% da atividade científica e tecnológica da região”, diz Senén Ameneiro, pesquisador da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e presidente da RedEmpreendia, responsável pela organização do livro. Para ele, o investimento continuado em educação e pesquisa seria a resposta adequada para combater essa defasagem, como fez a Coreia do Sul, que mesmo durante a crise do fim dos anos 1990 aumentou seus investimentos em educação e hoje se beneficia disso. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 234 z 41
Colaboração y
O marco dos anticorpos Empresa brasileira licencia molécula com potencial para gerar
A
empresa brasileira Recepta Biopharma, de São Paulo, firmou um acordo com a norte-americana Mersana Therapeutics para licenciar um anticorpo monoclonal que poderá ser usado em tratamentos contra câncer. Segundo os termos da parceria, a Recepta cederá à Mersana os direitos fora do Brasil sobre o anticorpo, que será usado pela companhia norte-americana para desenvolver um composto imunoconjugado contra diversos alvos tumorais. No Brasil, os direitos permanecerão com a Recepta. A Mersana detém uma tecnologia, conhecida como Fleximer, para criar o chamado ADC (antibody-drug conjugate). “Eles usam um ligante para unir o anticorpo a uma toxina. Esse imunoconjugado entrega de maneira muito específica a toxina às células tumorais”, diz o físico José Fernando Perez, presidente da Recepta. “Estamos animados com o desenvolvimento de um novo imunoconjugado para responder a necessidades ainda não atendidas dos pacientes com câncer”, afirmou, em um comunicado divulgado à imprensa, Anna Protopapas, presidente da Mersana. Os termos do acordo estabelecem que a Recepta terá direito a pagamentos à 42 z agosto DE 2015
vista e também sempre que marcos previamente determinados sejam atingidos no desenvolvimento, na aprovação regulatória e na comercialização da droga. Estima-se que esses valores possam alcançar US$ 86 milhões. O acordo comercial é inédito no Brasil. “É a primeira vez que uma empresa de biotecnologia brasileira licencia uma propriedade intelectual para o desenvolvimento de uma possível droga contra câncer”, diz Perez, que foi diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005. “Isso mostra que é possível fazer coisas mais ousadas, apesar das dificuldades para realizar pesquisa com fármacos no país.” Anticorpo é uma molécula de defesa do organismo que se liga especificamente ao seu alvo. Anticorpo monoclonal é derivado de um clone celular e, consequentemente, todas as moléculas são idênticas e dirigidas ao mesmo alvo. A Recepta trabalha no desenvolvimento de vários anticorpos monoclonais, a maioria deles descoberta pelo Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, organização sem fins lucrativos com sede em Nova York, com a qual a companhia tem parceria. O nome do anticorpo licenciado para a Mersana só será divulgado no fim do ano.
“A Recepta mostrou que é possível caminhar para um processo de expansão da inovação radical ao desenvolver novas moléculas”, diz o economista Carlos Gadelha, secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Segundo ele, as empresas brasileiras de biotecnologia investem quase sempre em inovação de forma incremental, apenas melhorando métodos e tecnologias conhecidos. “O fato de a Recepta ter transferido conhecimento para uma empresa norte-americana representa um marco no Brasil”, afirma Gadelha, que entre 2011 e 2014 foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. José Fernando Perez explica que o trabalho da Recepta foi facilitado por um ambiente favorável de oferta de re-
léo ramos
tratamentos contra câncer
medicamento, uma vez que a Mersana já domina uma tecnologia necessária para esse processo”, diz Quadros. linhagens
Análise clínica e produção de anticorpos monoclonais em laboratório
cursos governamentais. A compra de equipamentos e o trabalho de grupos em instituições de pesquisa receberam apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A empresa contou também com investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que desde 2012 é um dos seus sócios. “Esse é um exemplo de como é possível consolidar uma aliança estratégica, de longo prazo, entre iniciativa privada e governos federal e estadual”, salienta Gadelha. Para José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e atual diretor do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde da União de Nações Sul-americanas (Unasul), o desenvolvimento de anticorpos monoclonais pela Recepta pode também representar um avanço para o complexo industrial de saúde
no país. “Será necessário percorrer um longo caminho até este produto chegar ao mercado. E quando isso for atingido, a questão central será disponibilizar essa nova tecnologia para todos os brasileiros, sem restrições, por meio do SUS”, diz. Ruy de Quadros Carvalho, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que o exemplo da Recepta demonstra a viabilidade de distribuir o processo de inovação numa rede externa de parceiros, onde há lugar para universidades e parceiros próximos ou de outros países, cada qual ajudando de acordo com sua expertise. “Ao licenciar o uso dos anticorpos monoclonais, a Recepta possibilita que uma outra empresa acelere o desenvolvimento de um novo
No caso dos anticorpos monoclonais desenvolvidos pela Recepta, a associação com organizações de pesquisa do estado de São Paulo tem sido decisiva (ver Pesquisa FAPESP nº 223). Com apoio da FAPESP, a Recepta mobilizou instituições como o Instituto Butantan e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que participaram de forma colaborativa em diversas etapas desses estudos. Assim, entre outros avanços, foi possível dominar um dos estágios da produção de anticorpos monoclonais: a obtenção de linhagens de células capazes de produzir em grande quantidade e com o mesmo padrão de qualidade e estabilidade anticorpos para serem usados em seres humanos. “Produzimos anticorpos monoclonais para fins terapêuticos há mais de 20 anos. Já desenvolvemos, por exemplo, um tratamento contra a rejeição de órgãos transplantados”, explica Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan. Segundo ele, a parceria com a Recepta trouxe ganhos à pesquisa da instituição. “Pretendemos utilizar a técnica de anticorpos monoclonais humanos em outras frentes, como anticorpos contra o tétano ou contra alguns venenos de aranhas”, diz Kalil. Perez, da Recepta, também destaca a importância da atividade de pesquisa translacional da empresa em colaboração com grupos de pesquisa, como o de patologia clínica liderado por Venâncio Alves e o de oncologia experimental coordenado por Roger Chammas, ambos professores da FM-USP. “Além dos frutos tecnológicos, foram geradas também publicações científicas em revistas referenciais da área”, afirmou. n Bruno de Pierro
Projetos 1. Linhagens celulares de alta produtividade e estabilidade de anticorpos monoclonais humanizados para a terapia de câncer (nº 2005/60816-8); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisadora responsável Ana Maria Moro (Instituto Butantan); Investimento R$ 377.708,00 e US$ 810.616,85 (FAPESP), R$ 1.793.198,00 (Recepta). 2. Anticorpos monoclonais para tratamento de tumores do sistema nervoso central (nº 2008/57914-6 e 2011/50526-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Maria Carolina Braga Tuma (Recepta); Investimento R$ 124.788,20 (Fase 1) e R$ 456.631,34 (Fase 2).
pESQUISA FAPESP 234 z 43
ciência astronomia y
Uma jornada até Plutão Bem-sucedida na tarefa de observar o planeta anão, a sonda New Horizons precisou resistir a ameaças de cancelamento da missão Salvador Nogueira
A
conclusão bem-sucedida da primeira missão a Plutão foi amplamente noticiada, mas quase nada se disse do trabalho que deu chegar até lá – tanto os desafios tecnológicos quanto os políticos. A sonda New Horizons foi um dos projetos mais arrojados – e ameaçados – já levados a cabo pela Nasa, a agência espacial norte-americana. A espiadela no planeta (ou ex-planeta, conforme decisão da União Astronômica Internacional) sobre o qual se sabia muito pouco já revelou traços de uma geografia e uma composição surpreendentes e promete muito mais para os próximos tempos. Os resultados devem deixar cientistas do mundo todo bastante ocupados por pelo menos uma década. O desafio técnico, por si só, já foi extraordinário. Partindo da Terra, a sonda precisava ser conduzida pelo espaço de forma a atravessar um retângulo imaginário de 150 por 100 quilômetros (km) localizado a quase 5 bilhões de km daqui. Numa comparação ilustrativa apresentada por 44 z agosto DE 2015
Glen Fountain, gerente de projeto da New Horizons, era como dar uma tacada de golfe em Nova York e acertar o buraco em Los Angeles – na primeira tentativa. E o que aconteceria se a sonda não passasse por essa área imaginária, em sua aproximação final a Plutão? Basicamente, ela apontaria os instrumentos para o espaço vazio, uma vez que seus objetos de estudo não estariam nos locais previstos. Toda a programação de observações tinha de ser automatizada e armazenada nos computadores da sonda dias antes da aproximação máxima, sem margem para correções de última hora. Em certo sentido, a New Horizons reproduziu o sucesso obtido pelas sondas Voyager 1 e 2, que nos anos 1970 e 1980 visitaram os quatro maiores planetas do Sistema Solar – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno –, antes de deixar para sempre o Sistema Solar. Ocorre que o nível de precisão requerido para uma missão a Plutão é maior. Não só ele estava mais distante que qualquer dos alvos visitados pela Voyager como se move mais devagar, o que torna
NASA/JHUAPL/SwRI
mais difícil determinar com precisão a órbita em torno do Sol e, com isso, sua posição a cada momento. O sistema plutoniano era tão desconhecido que, quando a sonda começou a ser preparada, em 2001, só a maior de suas luas, Caronte, era conhecida. Em 2005, por ocasião de observações de reconhecimento feitas com o Telescópio Espacial Hubble, os astrônomos encontraram mais duas: Nix e Hidra. E somente em 2011 e 2012, quase na reta de chegada da New Horizons, as duas últimas conhecidas – Cérbero e Estige – foram achadas. É bem possível que as imagens da New Horizons revelem mais objetos nas redondezas. “Acredito que, com as imagens que ainda serão enviadas, há grandes chances de se descobrir novos satélites”, diz a especialista em dinâmica orbital Silvia Giuliatti Winter, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá. Modelos computacionais elaborados por ela ajudaram a equipe da New Horizons a planejar a travessia mais segura da região durante o sobrevoo, conforme a sonda se apro-
ximou a apenas 12,5 mil km da superfície do planeta anão (ver Pesquisa FAPESP nº 210). Durante os anos que antecederam o lançamento, contudo, a maior ameaça à missão foi bem mais prosaica: cortes no orçamento da agência feitos pelo governo norte-americano. Em 2000, a Nasa decidiu cancelar o projeto então em andamento, chamado Pluto Kuiper Express, conduzido pelo Laboratório de Propulsão a Jato (JPL). Mas os congressistas americanos, que historicamente se mobilizam em favor de expedições de ciência planetária, restituíram a missão, e a Nasa lançou um anúncio de oportunidade solicitando ideias com custo mais baixo. Daí nasceu a New Horizons, operada pelo Laboratório de Física Aplicada (APL) da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Foi a chance de Alan Stern, cientista-chefe da missão, pôr em prática planos que ele já elaborava desde 1989. Ainda que a etiqueta de preço tenha ficado mais barata que a antiga Pluto Kuiper Express, foram gastos respeitáveis US$ 720 milhões. E
Primeira imagem da atmosfera plutoniana, obtida sete horas depois da aproximação máxima: mais nebulosa e mais alta do que o previsto
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Retrato oficial: área em forma de coração ganhou o nome de Tombaugh Regio
mesmo depois da oficialização da missão, em 2001, ela passou por apuros. Em 2002, a Casa Branca (então ocupada por George W. Bush) tentou mais uma vez cancelar a missão. O Congresso, novamente, não deixou. Os resultados científicos, e por que não dizer midiáticos, observados a partir de julho de 2014 foram fruto direto daquelas intervenções providenciais dos parlamentares americanos.
produzir um objeto daqueles por ali, há 4,5 bilhões de anos. A questão ainda é controversa. Controvérsias e surpresas é que não faltaram já nas primeiras imagens colhidas durante a aproximação final. Elas revelaram um cenário geológico bastante inesperado. Cadeias de montanhas de gelo de água e terrenos geologicamente jovens, com menos de 100 milhões de anos, contrastam com regiões mais escuras e cheias de crateras, representando terrenos intocados por bilhões de anos. Tudo indica que ainda há processos movidos por calor interno em Plutão, algo difícil de explicar pelos atuais modelos geofísicos. O que se vê na superfície desse pequeno mundo com 2.372 km de diâmetro, que deveria estar geologicamente morto, pode até sinalizar a existência de um oceano de água líquida sob as profundezas de sua enorme crosta de gelo. “Parece que o Sistema Solar resolveu guardar o melhor para o final”, brincou Alan Stern em uma das muitas entrevistas coletivas concedidas para apresentar os primeiros resultados científicos da New Horizons. Quanto à superfície, ela parece conter gelos de diversas substâncias – água no caso das montanhas, mas sobretudo metano e outros compostos orgânicos, nitrogênio e monóxido de carbono. Aparentemente, este último é um componente importante da área mais brilhante e lisa de Plutão, batizada pela equipe da sonda de Tombaugh Regio, em homenagem ao descobridor do planeta anão, o astrônomo americano Clyde Tombaugh.
A TERCEIRA ZONA
A exploração de Plutão marca a primeira visita de uma espaçonave a um território até então inexplorado do Sistema Solar. Nas regiões mais internas ficam os planetas rochosos, dos quais a Terra é o maior representante. Indo mais longe, há os planetas gigantes gasosos, dos quais Júpiter é o maior. E, cruzando a órbita de Netuno, temos um agregado com centenas de milhares de objetos, o chamado cinturão de Kuiper, do qual Plutão é o maior representante. “A passagem da sonda é um marco no conhecimento da chamada Terceira Zona do Sistema Solar”, diz Silvia. “Acredito que os dados enviados pela sonda New Horizons nos trarão surpresas de Plutão e do próprio cinturão de Kuiper. Provavelmente teremos de rever e adequar os modelos dinâmicos de formação e evolução dos objetos do Sistema Solar.” Num trabalho recente, publicado no início de 2015, a pesquisadora da Unesp e seus colegas sugeriram que Plutão poderia ter se formado numa região mais interna do Sistema Solar e só depois teria migrado para o cinturão de Kuiper, sem que isso acarretasse a perda de seus satélites. Há razões para desconfiar que o planeta anão não seja mesmo nativo do cinturão de Kuiper, pois faltaria massa para 46 z agosto DE 2015
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fotos NASA/JHUAPL/SwRI 2 e 3 arquivos observatório lowell
Clyde Tombaugh no observatório Lowell (esq.), onde em 1930 descobriu o planeta batizado por sugestão de Venetia Burney, 11 anos, transmitida por telegrama do astrônomo H. H. Turner
Os pesquisadores também encontraram algu- “O Alice consegue medir a atmosfera até uns 170 mas surpresas na atmosfera de Plutão. Alguns dos km de altitude, e com ocultações conseguimos modelos atmosféricos sugerem que o ar plutonia- ir o resto do caminho, até próximo à superfície.” O brasileiro espera que a incrível fonte de dano poderia ser um fenômeno apenas temporário, que se congela e colapsa quando se aproxima do dos que será a New Horizons servirá para deafélio (ponto mais distante do Sol), voltando a se cifrar o estado atual da atmosfera de Plutão. A vaporizar no periélio (ponto mais próximo do partir daí, com novas ocultações estelares, será Sol). Verificar essa hipótese foi um dos argumen- possível investigar como ela evolui com o passar tos que salvaram a missão do cancelamento em do tempo, para então verificar processos como 2002. Agora, 25 anos depois do último periélio, o hipotético colapso temporário da atmosfera. é um bom momento para Caronte, a maior das analisar a atmosfera e tesluas, também se revelou tar os modelos. Com os daespecialmente intrigante. dos colhidos, ainda não foi A superfície não é tão repossível determinar se isso novada quanto a de Plutão, Tudo indica que realmente ocorre. Mas já mas ainda assim é mais joainda há sabemos que ela é um pouvem do que o esperado, e co mais fria e menos espesuma região escura no poprocessos movidos sa do que se imaginava. lo é um mistério completo Um dos cientistas brapara os cientistas. por calor interno sileiros mais interessados nesses resultados em parem Plutão O FUTURO ticular é Felipe Braga-RiO nível de empolgação bas, da Universidade Tecdos cientistas com os danológica Federal do Parados produzidos pela sonná (UTFPR), em Curitiba. da lembra o de uma torciEle estuda fenômenos coda em final de campeonanhecidos como ocultações estelares – momentos to. Literalmente. “Na semana do sobrevoo, após a em que objetos do cinturão de Kuiper, como Plu- última conferência da Nasa, eu e o pessoal da equitão, passam à frente de uma estrela mais distante, pe de que faço parte fomos com todos os memcom relação ao campo de visada aqui na Terra. bros do time da New Horizons assistir a um jogo Ao observar o padrão de obscurecimento da es- de beisebol do Nationals, em Washington”, conta trela conforme ela se esconde primeiro atrás da André Amarante, pesquisador do grupo da Unesp atmosfera, depois atrás da superfície de Plutão, é de Guaratinguetá e que no momento faz uma parte possível inferir propriedades atmosféricas como do doutorado na Universidade de Maryland, em pressão ou temperatura. Laurel (mesma cidade que sedia o APL). “Os dados das ocultações estelares complemen“O jogo teve de ser paralisado algumas vezes tam aqueles obtidos pelo instrumento Alice da por falta de energia, e enquanto isso o Alan Stern New Horizons, de ultravioleta”, diz Braga-Ribas. começou a mostrar para as pessoas imagens de Plutão, diretamente do seu celular. Foi demais! Agora sabemos onde chega o sinal da New Horizons”, brinca Amarante. O interesse específico de Amarante é encontrar objetos em regiões estáveis ao redor das luas conhecidas. “Nas simulações computacionais que fizemos, descobrimos que existe uma possibilidade real de que em algumas dessas regiões estáveis possa existir uma população de objetos denominados troianos, que compartilham a mesma órbita de uma dada lua”, diz. “Por isso estamos bastante ansiosos pelos dados da New Horizons.” A ansiedade ainda deve durar por um bom tempo. Transmitindo dos confins do Sistema Solar, a taxa de envio de dados é inferior à das antigas conexões de internet discada. Até baixar completamente os 5 gigabytes produzidos durante a passagem por Plutão, será preciso esperar 16 meses. A julgar pelo que chegou até agora, vai valer a pena. n 3 pESQUISA FAPESP 234 z 47
astrofísica y
Armadilha para fantasmas Mecanismo proposto por pesquisadores da USP pode explicar a origem de neutrinos de alta energia detectados na Antártida Ricardo Zorzetto
D
ois astrofísicos da Universidade de São Paulo (USP) propuseram um mecanismo para explicar onde e como surgem as partículas altamente energéticas que vêm sendo identificadas por um observatório imerso no manto de gelo da Antártida. Composto por 5.160 detectores que formam um cubo de 1 quilômetro de lado, o IceCube registra todos os anos dezenas de milhares de neutrinos, partículas elementares neutras e quase sem massa, vindas de diferentes regiões da Terra. Desde que começou a funcionar, em 2010, o IceCube já coletou informações de uma montanha de neutrinos. De todos, 54 foram considerados especiais. Eram partículas vindas provavelmente de fora da galáxia, com um nível de energia muito elevado, milhões de vezes superior ao dos neutrinos emitidos pelo Sol. Os astrofísicos imaginam que somente fenômenos de proporções cataclísmicas, como a morte explosiva de uma estrela de massa elevada ou um buraco negro de massa gigantesca se alimentando, são ca48 z agosto DE 2015
pazes de produzir partículas com níveis tão altos de energia. Até o momento, no entanto, não se havia encontrado um mecanismo capaz de gerar neutrinos como esses que chegaram à Terra. Elisabete de Gouveia Dal Pino, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, e seu aluno de doutorado Behrouz Khiali parecem ter identificado um fenômeno que poderia originar esses neutrinos superenergéticos. Para eles, essas partículas fugidias, que já foram chamadas de partículas fantasmas por interagirem raramente com a matéria, poderiam surgir como subproduto de um mecanismo físico chamado reconexão magnética. Nesse fenômeno, linhas de campos magnéticos de sentido contrário, ao se encontrarem, aniquilam-se e liberam energia magnética, responsável por acelerar as partículas eletricamente carregadas que estejam por perto. É o que acontece no Sol, quando linhas magnéticas produzidas pelo gás aquecido da coroa aproximam-se e se anulam, liberando
a energia que impulsiona as partículas do vento solar – esses eventos geram gigantescas alças ou loops que podem ser observados por telescópios na Terra. Na opinião de Elisabete e Khiali, esse mesmo fenômeno deve ocorrer na vizinhança de buracos negros com massa elevada. Afinal, esses poderosos devoradores de matéria reuniriam todas as condições necessárias para que isso acontecesse. Esses buracos negros acumulam uma massa dezenas de milhões de vezes maior que a do Sol em uma região com dezenas a centenas de quilômetros de diâmetro. Objetos tão densos apresentam uma gravidade absurdamente elevada e atraem toda a matéria ao redor, que em geral se encontra na forma de gás. Essa matéria passa a se mover em torno do buraco negro e cair em sua direção, como a água que corre para o ralo da pia. A rotação dessa camada de gás quente contendo partículas eletricamente carregadas – é o chamado disco de acreção – gera campos magnéticos em constante movimento. Por vezes, as linhas desses campos se en-
imagens icecube
Deserto gelado: vista aérea do observatório IceCube, instalado na Antártida próximo ao polo Sul
contram com as que existem ao redor do buraco negro. Quando elas têm sentidos (polaridade) opostos, aniquilam-se liberando calor e energia e impulsionando as partículas carregadas, como os prótons. Os prótons ficam aprisionados entre as linhas do campo magnético e ganham cada vez mais energia. “Imaginamos que aconteça algo parecido com o que ocorre com uma bola de tênis rebatida por jogadores correndo um de encontro ao outro”, explica Khiali, astrofísico iraniano que veio para o Brasil estudar reconexão magnética com Elisabete. “A cada rebatida, a bola ganha mais velocidade.” De modo semelhante, os prótons acumulam energia até que conseguem escapar dos campos magnéticos a velocidades próximas à da luz. No caminho em direção ao espaço, esses prótons acelerados podem se chocar com outros prótons ou com partículas de luz (fótons), ambos abundantes em uma vasta região em torno do buraco negro chamada coroa. O choque entre as partículas as destrói e gera outras.
IceCube
Detectores de superfície
Trajetória do neutrino
Flashs raros: dos inúmeros neutrinos que chegam ao IceCube, alguns poucos
Rede de 5.160 detectores imersos no gelo
interagem com moléculas de água e produzem elétrons que viajam a velocidades altíssimas e emitem uma luz azulada, captada pelos sensores. A passagem dos neutrinos ativa uma
Trajetória deixada por neutrino
sequência de detectores, permitindo reconstituir 2.450 m de profundidade
sua trajetória (acima)
324 m
Torre Eiffel pESQUISA FAPESP 234 z 49
Acelerador natural Jato
Aniquilação de linhas magnéticas próximas a buraco negro pode fornecer energia a partículas e gerar neutrinos
Disco de acreção
Jato
Coroa
Buraco negro
Buraco negro Disco de acreção
aceleração Ao se aproximarem, linhas magnéticas de polaridades opostas se aniquilam e liberam energia para os prótons da atmosfera (coroa) ao redor do buraco negro
Grande devorador: concepção artística de buraco negro com massa equilavente à de milhões de sóis
Linha s
de ca m magn po ético
Colisão Prótons Choque
Píon
Prótons acelerados colidem com fótons e outros prótons. Os choques geram píons, que produzem raios gama e neutrinos superenergéticos
Neutrino superenergético
detecção Após viajar longas distâncias sem sofrer desvios, os neutrinos de altas energias são detectados no IceCube
Antártida IceCube
Da colisão entre prótons ou entre um próton e um fóton, surgem partículas menos energéticas e mais instáveis, os píons, que liberam fótons de raios gama e neutrinos (ver infográfico). Os cálculos de Khiali e Elisabete sugerem que, ao redor de buracos negros com massa variando de 10 milhões a 1 bilhão de sóis, a reconexão magnética seria capaz de gerar prótons energéticos o suficiente para produzir os neutrinos superenergéticos do IceCube – antes, Elisabete, Luis Kadowaki e Chandra Singh já haviam verificado que esse mecanismo pode originar os raios ga50 z agosto DE 2015
ma produzidos próximo a buracos negros e sistemas binários de estrelas. A reconexão magnética não é o único modelo para explicar os prótons acelerados. Em 2014, os astrofísicos italianos Fabrizio Tavecchio e Gabriele Ghisellini haviam sugerido que essas partículas poderiam ser geradas pelos jatos que emanam próximo aos polos dos buracos negros. “Hoje, o mecanismo mais aceito para a produção de neutrinos superenergéticos é o choque na região dos jatos, mas ele não explica os eventos de tão alta energia como os detectados no IceCube”, diz o físico Orlando Peres, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Pode ser que isso ocorra por meio da reconexão magnética ou de outro mecanismo que ainda não conhecemos.” Elisabete lembra de outra vantagem de seu modelo em relação aos demais. “Além dos neutrinos, nosso mecanismo explica a produção de fótons de raios gama altamente energéticos e de raios cósmicos que poderiam ser produzidos na vizinhança desses buracos negros”, afirma a astrofísica, uma das coordenadoras da participação brasileira no Cherenkov Telescope Array (CTA), que vai montar dois conjuntos de telescópios para estudar raios gama de alta energia. “A proposta da equipe do IAG é interessante, mas é cedo para saber se está correta porque o número de neutrinos detectados é pequeno e não permite saber de onde vêm”, diz a física Renata
Funchal, da USP, que estuda os neutrinos com o objetivo de entender como poderiam interagir com outras partículas. “Esse modelo pode vir a ser testado em pouco tempo, caso ocorra a ampliação do IceCube”, conta Renata. Há o plano de dobrar o número de detectores e aumentar o tamanho do observatório para um cubo com 10 quilômetros de lado. Isso aumentaria a probabilidade de registrar partículas fantasmas tão energéticas. Como eles não interagem com praticamente nada na viagem até a Terra, sua trajetória pode revelar de onde vêm. A identificação da origem desses neutrinos pode permitir verificar se esse objeto também emite fótons de raios gama e raios cósmicos. “Isso poderia confirmar o modelo de Elisabete e Khiali e levar a uma era de astronomia de neutrinos, que permitiria estudar objetos sem o uso de telescópios de luz”, diz Peres. “Mas ainda estamos engatinhando nisso.” n
Projeto Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: teorias, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de instrumentação para o Cherenkov Telescope Array (CTA) (nº 2013-10559-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino (USP); Investimento R$ 9.451.122,83 (para todo o projeto – FAPESP).
Artigo científico KHIALI, B. e DE GOUVEIA DAL PINO, E. M. Very high energy neutrino emission from the core of low luminosity AGNs triggered by magnetic reconnection acceleration. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. No prelo.
imagem dana berry / nasa infográfico ana paula campos ilustração fabio otubo
Fonte behrouz Khiali e elisabete de gouveia dal pino/uSP
FÍSICA y
Eletricidade de muitas formas Materiais especiais ganham novas possibilidades de conduzir corrente elétrica em contato com semicondutores Igor Zolnerkevic
Fonte Seixas et al., Nature Communications
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m novo tipo de material especial, capaz de conduzir eletricidade em sua superfície, não em seu interior, poderia ganhar versatilidade – e conduzir eletricidade em várias direções e com níveis de energia diferentes – após ser colocado em contato com um material semicondutor de eletricidade usado há décadas em computadores, de acordo com simulações realizadas por físicos da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Politécnico Rensselaer, nos Estados Unidos. Resultado de um estudo que usou modelagem computacional, essa conclusão surpreendeu por indicar a possibilidade de reorganização dos elétrons responsáveis pela condução da eletricidade. Outro achado inesperado foi a indicação de que a corrente elétrica poderia ser criada e controlada por meio de feixes de laser aplicados na área de contato entre os materiais. Os pesquisadores chegaram a esses resultados ao analisar o que poderia acontecer quando o arseneto de gálio, material semicondutor usado na fabricação de computadores, LEDs e lasers, encostasse em um material de propriedades eletrônicas completamente diferentes, o seleneto de bismuto, capaz de conduzir correntes elétricas especiais. No seleneto de bismu-
to, uma propriedade dos elétrons semelhante à rotação, o spin, está sempre apontando em uma mesma direção, paralela à superfície do material. As simulações em computador indicaram que o contato entre os materiais diferentes aumentaria as possibilidades de organizar os spins das correntes elétricas na camada entre os materiais. “Ao entrarem em contato, o arseneto de gálio e o seleneto de bismuto modificam suas propriedades eletrônicas”, observou o físico brasileiro Leandro Seixas, um dos autores do estudo e hoje pesquisador na Universidade Nacional de Cingapura. Ele começou a investigar as interações entre os materiais durante um estágio no Instituto Rensselaer feito ainda em seu doutorado, concluído em 2014 sob a orientação de Adalberto Fazzio, do Instituto de Física da USP (ver Pesquisa FAPESP no 192). Os cálculos indicaram que, quando o seleneto de bismuto encosta no arseneto de gálio, os elétrons mantêm a capacidade de se movimentarem de forma ordenada pela área de contato entre os dois materiais. Além disso, alterações no nível de energia e na velocidade dos elétrons parecem permitir mudar o sentido de rotação (spins) e, ainda assim, mantê-los ordenados. Se for confirmada em medições experimentais, essa propriedade torna possível codificar e manipular informações nos spins, criando a base de uma nova tecnologia de computação chamada spintrônica. Nos computadores atuais,
Direções possíveis dos spins da corrente elétrica As setas indicam os vários sentidos dos spins na superfície de contato entre o arseneto de gálio e o seleneto de bismuto, como resultado da interação entre os materiais. Cada círculo representa níveis diferentes de energia dos elétrons. Os spins da corrente elétrica podem variar no sentido horário (círculos azuis) ou anti-horário (rosas).
o processamento da informação é realizado por meio de transistores de silício, um material semicondutor. Os transistores de silício controlam a passagem de correntes, feitas de multidões de elétrons, sem considerar seus spins, que nesses materiais semicondutores apontam em direções aleatórias. Para os físicos, materiais como o seleneto de bismuto, chamados de isolantes topológicos por conduzirem a corrente elétrica apenas em sua superfície, tornariam possível criar um novo tipo de transistor que processaria informação usando correntes elétricas de spins ordenados, o que pode, em princípio, ser mais rápido e gerar menor perda de energia. n Projeto Propriedades eletrônicas, magnéticas e de transporte em nanoestruturas (nº 2010/16202-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Adalberto Fazzio (IF-USP); Investimento R$ 1.327.201,88 (FAPESP).
Artigo científico SEIXAS, L. et al. Vertical twinning of the Dirac cone at the interface between topological insulators and semiconductors. Nature Communications. v. 6, n. 7630. 3 jul. 2015.
pESQUISA FAPESP 234 z 51
GENÉTICA y
A disputada conquista das Américas
Análises sugerem que humanos chegaram ao continente entre 23 mil e 15 mil anos atrás e que alguns indígenas do Brasil têm DNA oriundo de povos da Oceania
U
m tema controverso voltou à cena no final de julho: a chegada dos seres humanos às Américas. No dia 21, duas equipes independentes publicaram estudos em duas revistas concorrentes, a Science e a Nature, comparando as características genéticas de populações nativas americanas com as de povos de outras regiões do mundo. Os trabalhos analisaram o mais amplo conjunto de informações genéticas disponíveis de povos do Novo Mundo para tentar reconstruir a história da ocupação do último continente, exceto a Antártida, em que o Homo sapiens se estabeleceu. Os artigos chegaram a conclusões aparentemente distintas, mas ambos indicam que alguns grupos indígenas atuais do Brasil apresentam algum grau de parentesco com povos da Oceania. No estudo da Science, o grupo do biólogo Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, afirma que os primeiros humanos chegaram às Américas em uma única leva migratória. Eles teriam partido do leste da Ásia em algum mo-
ilustraçãO emiliano bellini
mento nos últimos 23 mil anos e alcançado o Novo Mundo depois de ter permanecido quase 8 mil anos na Beríngia, uma vasta extensão de terras (hoje submersa) que conectava a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte. Willerslev e seus colaboradores – entre eles a arqueóloga Niède Guidon, da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), no Piauí – chegaram a essa conclusão depois de sequenciar o genoma de 31 indivíduos de 11 populações atuais nativas das Américas, da Sibéria e da Oceania e de comparar esses dados com os do genoma de 23 indivíduos de povos extintos das Américas do Norte e do Sul e com variações genéticas de outras 28 populações.
Estudos discutem as afinidades genéticas entre grupos indígenas da Oceania e da Ásia (página ao lado) e das Américas (acima)
Os resultados sugerem que, uma vez no Novo Mundo, essa população ancestral teria se separado em duas, por volta de 13 mil anos atrás. Uma delas teria permanecido no norte do continente e originado o povo Atabascano, do Alasca, e os grupos indígenas Chipewyan, Cree e Ojibwa, do Canadá. A outra teria se espalhado pelo sul da América do Norte e pelo restante do continente, gerando a maior parte das demais etnias. Mesmo com mais dados à disposição, Willerslev não propõe algo totalmente novo. Nos últimos 15 anos, outros grupos, brasileiros inclusive, já haviam sugerido que os primeiros humanos a chegar às Américas poderiam ter vindo do leste pESQUISA FAPESP 234 z 53
Uma ocupação cheia de idas e vindas Modelos baseados em dados culturais e biológicos tentam explicar o povoamento das Américas 1986
1991
1995
Modelo tripartite — Evidências
Duas ondas — A partir da análise de
Onda única — A partir de 1995, vários
linguísticas e morfológicas e dados genéticos
crânios, Walter Neves e Héctor Pucciarelli
grupos usam dados genéticos para
levam Joseph Greenberg e colaboradores a
afirmam que duas levas de morfologia
reconstituir o parentesco entre populações e
propor que três ondas migratórias vindas do
distinta entraram no continente: uma vinda
defendem a vinda de uma só população, que
leste da Ásia chegaram às Américas
do sudeste e outra do leste asiático
teria passado algum tempo na Beríngia
da Ásia em um único deslocamento, até mesmo com uma parada na Beríngia (ver Pesquisa FAPESP nº 77 e nº 149). Tanto a proposta apresentada na Science como suas versões anteriores confrontam ideias mais antigas, segundo as quais duas, três ou até mais levas teriam sido necessárias para originar a diversidade genética e de feições de crânio encontrada nas Américas (ver infográfico acima). Como a maior parte dos trabalhos que falam de uma só entrada no continente americano, o modelo de Willerslev funciona bem para explicar como surgiram os povos nativos das Américas geneticamente mais próximos dos asiáticos atuais, com os quais compartilham algumas características anatômicas, como a face mais plana e o crânio arredondado. Mas falha em outros pontos. A ideia de uma só viagem torna difícil justificar, por exemplo, a semelhança genética encontrada entre os índios Suruí, da Amazônia brasileira, os Atabascanos e os nativos das ilhas Aleutas, no Alasca, e os povos nativos da Oceania, no Pacífico Sul.
Enquanto Willerslev e seus colaboradores falam em uma chegada, talvez complementada por uma segunda, o geneticista David Reich, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e seus colegas dizem ter evidências de que foi necessária a entrada de duas populações distintas em momentos diferentes para explicar a diversidade genética dos nativos americanos. Não estariam os dois grupos fazendo a mesma afirmação? Bem, sim e não. No artigo da Nature, Reich e seus colaboradores, quatro deles brasileiros, argumentam que só a vinda de duas levas com características distintas ajudaria a entender por que os Suruí e outros grupos indígenas brasileiros guardam uma afinidade genética com povos do Pacífico Sul. Mas essa não é toda a história. O estudo deste ano é um refinamento de um trabalho anterior. Em 2012, Reich e os pesquisadores Maria Cátira Bortolini e Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maria Luiza Petzl-Erler, da Universidade Federal do Paraná, e Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), além de outros colaboradores, compararam cerca de 365 mil trechos do genoma de 493 indivíduos de 52 populações nativas das Américas com os de 245 integrantes de 17 povos da Sibéria e os de 1.613 pessoas de 52 populações do restante do mundo. Na época, em artigo também publicado na Nature, concluíram que as Américas haviam sido povoadas por três levas migratórias diferentes: uma primeira e
mais densa, com indivíduos de características genéticas e traços asiáticos, que teria chegado às Américas, via Beríngia, há pelo menos 15 mil anos e originado a maior parte das populações americanas extintas e atuais; uma segunda, que, ao se miscigenar com a inicial, contribuiu para gerar os esquimós, na Groenlândia, e os habitantes das ilhas Aleutas, no Alasca; e uma terceira, que, ao chegar, misturou-se com os primeiros habitantes do continente e levou ao surgimento dos grupos indígenas canadenses. Agora, ao analisar mais trechos (cerca de 600 mil) do genoma de mais populações nativas (25) das Américas Central e do Sul e comparar com os dados de 197 populações de outras partes do mundo, eles encontraram algo semelhante ao que Willerslev observou e propuseram mais uma migração – a quarta, que teria alcançado a América do Sul há mais de 6 mil anos – para justificar a diversidade étnica do continente. Além dos Suruí, que vivem na floresta amazônica em Rondônia, essa migração mais recente teria originado também o povo Karitiana, de Rondônia, e os índios Xavante, do Cerrado do Mato Grosso. Esses três grupos compartilham de 1% a 2% do seu genoma com os povos da Oceania. “Essa proporção parece ser pequena, mas é importante”, afirma Tábita. “Temos de imaginar que ela era muito mais elevada na população ancestral que chegou às Américas e depois se diluiu ao longo de centenas de gerações”, explica.
Diferente, mas quanto?
Para Willerslev e seus colegas, esses dados podem indicar que houve um intercâmbio genético posterior ao povoamento inicial. Uma leva mais modesta de indivíduos aparentados dos aborígines da Austrália e da Melanésia teria se miscigenado com populações asiáticas que, mais tarde, teriam entrado nas Américas, possivelmente a partir das ilhas Aleutas. 54 z agosto DE 2015
2015
Fontes Tábita Hünemeier /USP; De Azevedo, S. et al. AJPA. 2011; Skoglund, P. et al. Nature. 2015; Raghavan, M. et al. Science. 2015
infográfico ana paula campos
2008
2012
Troca gênica
Troca gênica
Fluxo gênico recorrente — Para
Três ondas — David Reich e colegas
Rolando González, uma leva com indivíduos
sugerem o povoamento em três levas: a
com alta diversidade genética e de
primeira gerou maior parte dos povos
morfologia de crânio, seguida de outra menor,
americanos; a segunda, os grupos do Ártico;
explica a diversidade dos povos americanos
e a terceira, os indígenas canadenses
Troca gênica
Releituras — Com mais dados genéticos, Eske Willerslev e equipe propõem a vinda de uma onda principal e talvez uma segunda (no alto); o grupo de Reich acrescenta uma
Estudo na Nature mostra que três grupos indígenas do Brasil compartilham de 1% a 2% do seu genoma com povos da Oceania
Filhos de Ypykuéra
Essa leva migratória mais recente – a quarta segundo o artigo de 2012 ou segunda no de 2015 – não seria composta por indivíduos com características genéticas exclusivas dos povos do Pacífico Sul. Esses viajantes seriam descendentes de uma população mestiça, resultante do cruzamento de nativos da Oceania com asiáticos. Os pesquisadores deram a esse grupo o nome de população Y, inicial da palavra Ypykuéra, que significa ancestral em tupi. Para Reich e seus colaboradores brasileiros, os Suruí, os Karitiana e os Xavante atuais seriam descendentes da tal população Y, que ainda não se sabe dizer como teria chegado por aqui. “O fato de que os Suruí, os Karitiana e os Xavante compartilharem características genéticas com povos do Pacífico Sul sugere que houve uma miscigenação em uma área menos restrita do que se pensava”, explica Tábita, coautora dos artigos da Nature. Afinal, os dois primeiros vivem em Rondônia, na Floresta Amazônica, a centenas de quilômetros dos Xavante, que são do Cerrado, em Mato Grosso. Além da distância física,
há também uma divergência cultural. Os Karitiana e os Suruí falam tupi; os Xavante, jê. “Essa miscigenação tem de ter acontecido antes de 6 mil anos atrás, quando esses troncos linguísticos se separaram”, diz Tábita. A possível existência de uma população Y não surpreendeu alguns antropólogos físicos que estudam a ocupação das Américas. “Indiretamente esses resultados publicados na Nature são favoráveis à ideia que defendo, há 25 anos, da vinda de duas migrações para as Américas”, afirma o bioantropólogo Walter Neves, da USP. Com base na análise da morfologia de crânios de populações atuais e extintas de diferentes regiões das Américas – entre elas a do povo que viveu entre 12 mil e 7 mil anos atrás na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais –, Neves e o arqueólogo argentino Héctor Pucciarelli propuseram que as Américas foram colonizadas por duas levas migratórias: a primeira, há 14 mil anos, integrada por indivíduos com morfologia semelhante à dos nativos da África e da Austrália, seguida por outra com traços asiáticos, que teria substituído o grupo inicial.
leva de mestiços (acima)
Para Rolando González-José, antropólogo físico e diretor do Centro Nacional Patagônico, em Puerto Madryn, Argentina, as evidências apresentadas nos artigos da Science e da Nature são de certo modo semelhantes. “O parentesco com os australo-melanésios que eles encontraram já era esperado havia anos, pois indica que as populações das Américas compartilharam ancestrais comuns”, afirma. “Os dados são interessantes, mas, nesses artigos, são pouco discutidos e não levam em conta todos os cenários possíveis.” Em 2008, González e colegas brasileiros apresentaram a hipótese de que as Américas teriam sido colonizadas por uma população inicial de indivíduos com alta diversidade genética e de morfologia de crânio, seguida de outra menor, que deu origem aos esquimós. Segundo essa versão, contestada há cerca de três anos por Walter Neves, durante os milhares de anos que existiu a Beríngia teria havido contato entre populações da Ásia e das Américas. n Ricardo Zorzetto
Artigos científicos SKOGLUND, P. et al. Genetic evidence for two founding populations of the Americas. Nature. 21 jul. 2015 RAGHAVAN, M. et al. Genomic evidence for the Pleistocene and recent population history of Native Americans. Science. 21 jul. 2015.
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paleobotânica y
A
floresta
da água e
do fogo
Fósseis em mina de carvão no Rio Grande do Sul revelam paisagem pantanosa sujeita a incêndios frequentes há 290 milhões de anos
Maria Guimarães
56 z agosto DE 2015
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M
uito mudou na paisagem da região Sul do Brasil nos últimos 290 milhões de anos. A América do Sul se separou da África e ergueu-se a serra Geral, cujas montanhas acompanham de perto o que hoje é a costa dos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Registros preservados nas rochas sugerem que, antes disso, a região tinha áreas alagadas onde brotavam árvores de cerca de 15 metros de altura do grupo das pteridospermas, coníferas ancestrais que dominavam o que hoje são ambientes geradores de carvão no hemisfério Sul. O grupo da paleobotânica Margot Guerra-Sommer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), obteve mais do que fósseis em expedições à mina de carvão de Faxinal, no município gaúcho de Arroio dos Ratos. As rochas dali preservaram informações paleoecológicas que contam uma história de incêndios recorrentes em um ambiente onde se imaginava uma umidade constante. “No meio do carvão mineral encontramos fragmentos de troncos com cerca de 20 centímetros de diâmetro”, conta a bióloga Isabela Degani-Schmidt, doutoranda no laboratório de Margot. O achado é incomum porque a matéria orgânica vegetal queimada é extremamente delicada e costuma quebrar-se em fragmentos de no máximo 4 a 5 centímetros no caminho até o local no qual fica acumulada e encontra condições de ser preservada para a posteridade. Não foi
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fotos 1 e 2 Joalice de Oliveira Mendonça UFRJ/CCMN/IGEO/LAFO 3 e 4 Isabela Degani-Schmidt
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o que aconteceu na região estudada pelo grupo de Margot. Os fósseis de dimensões incomuns indicam que as árvores da região foram queimadas em pé. Os troncos, depois de caídos, permaneceram no mesmo lugar em que seriam encontrados bem mais tarde por mineradores e pesquisadores. O material guarda registros importantes do ambiente da época (início do período geológico conhecido como Permiano) naquela região, que agora podem ser interpretados. A fossilização dos troncos e das folhas indica que eram florestas em ambiente pantanoso. “São condições propícias à fossilização porque o material vegetal que cai na água acumula-se em um ambiente ácido inóspito para as bactérias e fungos responsáveis pela decomposição”, explica Isabela. Por isso, a ideia até agora era de um pântano permanente na região. “Nessa turfeira alagada em todas as estações, não se imaginaria que ocorressem incêndios.” Os achados recentes, publicados na edição de julho da revista International Journal of Coal Geology, pintam, porém, um quadro mais complexo. “O ambiente provavelmente nunca ficava seco”, propõe a pesquisadora, “mas haveria um período suficientemente seco para permitir incêndios naturais, que indicam nessas ocasiões uma atmosfera muito mais rica em oxigênio do que a atual”. O estudo de amostras de troncos e pólen por microscopia de fluorescência e eletrônica de varredura revelou também
1 Possível estrutura produtora de pólen ao microscópio de fluorescência 2 Brilho indica que pólen não foi queimado 3 e 4 Vistas a olho nu: folhas carbonificadas
que não eram incêndios avassaladores. A medula dos troncos e os pólens não foram carbonizados, revelando temperaturas relativamente baixas. Isabela interpreta o achado como indicação de que as estações secas nunca eliminavam por completo a umidade e o solo provavelmente ficava sempre recoberto por um filme d’água, favorecendo a fossilização no próprio local e pela queima incompleta. flora especializada
A hipótese mais plausível para a origem dos incêndios, segundo Isabela, é que seriam causados por raios. Outra possibilidade aventada seria vulcanismo, reforçada pela presença de uma camada de rocha de cor branca, rica em folhas fossilizadas, em meio ao carvão, interpretada como cinza vulcânica. Examinando essa camada de rocha, o grupo de Margot concluiu que as cinzas já teriam caído frias sobre a região e devem ter vindo de longe. Ainda não se sabe de onde. “Não há indícios de fontes de atividade vulcânica por ali”, afirma Isabela. Mais do que uma flora carbonizada, os achados revelam uma dinâmica ecológica. A pesquisadora defende que a mata
era adaptada ao fogo. “Encontramos a deposição de fósseis de pteridospermas em camadas diferentes, indicando que essas plantas permaneciam ali ao longo do tempo”, explica. Falta determinar se tinham recursos para subsistir nessas condições. “Estamos analisando estruturas nas folhas para ver se tinham especializações nesse sentido.” Os fósseis encontrados, assim como as condições ambientais que eles permitem inferir, podem ser uma pista de que a diversidade vegetal era um tanto limitada por ali, determinada pela capacidade de resistir aos incêndios constantes. São estudos curiosos porque revelam uma paisagem da qual já não há vestígios vivos, com protagonistas completamente extintos. Antes vistas como um elo evolutivo entre as samambaias e as coníferas, as pteridospermas pertenciam a um grupo de gimnospermas ancestrais cujos parentes mais próximos atuais são, provavelmente, as cicas e o ginkgo. “Não há nada parecido hoje no local”, conta a pesquisadora, que não conhece nenhuma paisagem como a que vê desenhar-se a partir dos fósseis. “Só analisando as rochas para extrair o que está preservado.” n
Artigo científico DEGANI-SCHMIDT, I., et al. Charcoalified logs as evidence of hypautochthonous/autochthonous wildfire events in a peat-forming environment from the Permian of southern Paraná Basin (Brazil). International Journal of Coal Geology, v. 146, p. 55-67. 1º jul. 2015.
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Ecologia y
Na lama e na areia do Araçá
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uando a maré baixa, a baía do Araçá se transforma. As águas se recolhem e a praia de areia e cascalho se abre em um lamaçal com centenas de metros de extensão. Adiante, podem-se ver os navios que chegam e saem do porto de São Sebastião, construído ao lado, e as canoas dos pescadores próximas à saída da baía, cercada por matas, casas e paredões de pedra. Essa enseada de cerca de 500 mil metros quadrados no município de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, tem revelado uma diversidade inesperada de formas de vida, algumas delas alimentadas pela poluição dos esgotos das casas e do porto. Os detritos despejados na baía pelo córrego Mãe Isabel parecem beneficiar alguns grupos de animais, como os poliquetas Heteromastus filiformis e Laeonereis culveri e o microcrustáceo Monokalliapseudes schubarti. Mas podem prejudicar outros, de importância ecológica ou ameaçados de extinção, como as espécies de poliquetas Eunice sebastiani 58 z agosto DE 2015
e Diopatra cuprea — semelhantes a minhocas espinhudas. Desde 2012, os 170 pesquisadores coordenados pela bióloga Cecília Amaral, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), investigam os fatores físicos, químicos, geológicos e socioeconômicos que influenciam a dinâmica do Araçá. O levantamento da diversidade biológica dessa baía levou à identificação de 1.368 espécies de organismos. A maioria faz parte do bentos, grupo de organismos que vivem em costões rochosos, manguezais e entre grãos de areia. Do total, 56 espécies foram encontradas pela primeira vez, como a Jebramella angusta, um verme transparente com tentáculos esbranquiçados, que vive sobre rochas ou em fragmentos de conchas. Com base nos trabalhos iniciados nessa baía em 1950, Cecília considera o Araçá a região costeira com uma das mais altas biodiversidades do país. Muitos dados do projeto coordenado por ela estão apresentados no livro A vida na Baía do Araçá, lançado no dia 5 de agosto em São Paulo.
Mesmo com a perda de manguezais nas últimas décadas, baía do litoral norte paulista exibe alta diversidade biológica Rodrigo de Oliveira Andrade, de São Sebastião, SP
eduardo cesar
A praia descoberta: quando a maré baixa, a baía se transforma em um banco de lama. Ao fundo, o porto de São Sebastião
Em 2014, os dados sobre a diversidade biológica da baía foram usados pelo Ministério Público Estadual para contestar, do ponto de vista ambiental, o pedido de outra ampliação do porto, considerada essencial para receber navios maiores pela Companhia Docas de São Sebastião, estatal responsável por sua administração. A proposta de ampliação, apresentada em 2011 pelo governo do estado, prevê a duplicação do porto, hoje com 400 mil metros quadrados. Em dezembro de 2013, ao avaliar o relatório de impacto ambiental feito pela Companhia Docas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu licença prévia para o início de duas das quatro fases da obra. Em comunicado à Pesquisa FAPESP, a Companhia Docas informou que a obtenção da Licença Ambiental Prévia, concedida pelo Ibama em dezembro de 2013, foi embasada no Estudo e Relatório de Impacto Ambiental do projeto, elaborado por uma equipe técnica multidisciplinar de aproximadamente 80 profissionais al-
tamente qualificados, composta por biólogos, geólogos, geógrafos, oceanógrafos, economistas, engenheiros de pesca, ambientais, civis, florestais e agrônomicos. De acordo com o comunicado, a versão mais recente do projeto possibilitaria a preservação das áreas de rocha que cercam a baía, as duas pequenas ilhas e as quatro praias que a compõem. Ainda segundo a Docas, “ao longo do processo de licenciamento, iniciado em 2008, o projeto inicial foi aprimorado justamente para contemplar a alternativa ambientalmente mais viável, considerando os fatores técnicos, de avaliação de impactos, engenharia e econômicos. A evolução do projeto possibilitou enormes ganhos ambientais, dos quais pode-se citar a drástica redução da área de ocupação da baía do Araçá, que passou de 84% para 34%”. Segundo Antonio Carlos Marques, diretor do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (USP), esse valor refere-se apenas às duas etapas iniciais de ampliação do porto, e não a todo o projeto. pESQUISA FAPESP 234 z 59
Uma baía ao lado de um porto Córrego Mãe Isabel
Porto de São Sebastião
Praia do Germano
Praia de Pernambuco Ilha Pedroso
Ilha Pernambuco
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Baía do Araçá
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São Sebastião Ilhabela
Ponta do Araçá
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60 z agosto DE 2015
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Fonte: adaptado do livro VIDA NA BAía do araçÁ
Se aprovada integralmente, a ampliação do porto implicaria a construção de uma laje de concreto apoiada sobre 17 mil estacas fincadas no fundo do mar, como alternativa ao aterro da baía, proposta considerada inicialmente. Marques considera que a fixação das estacas comprometeria a troca de água na baía, prejudicando as comunidades de organismos e o estoque de peixes da região. Poderia haver também outros efeitos. “A perfuração do leito da baía para a instalação das estacas implicaria mover cerca de 140 mil metros cúbicos de sedimento do fundo da baía”, diz ele. “Isso liberaria substâncias contaminantes para a superfície e alteraria a constituição física atual da área.” Já, segundo a Companhia Docas, o uso de estacas “permitirá a troca de água e de nutrientes com o mangue, contribuindo com a preservação da vida no local e a fixação de fauna aquática, fundamentais para a manutenção e fortalecimento da cadeia trófica”. Cecília aponta outro possível efeito da ampliação do porto: a laje prevista sobre a baía causaria uma grande área de sombra sobre suas águas. “Sem a luz do sol, as algas não conseguiriam fazer fotossíntese e morreriam”, diz ela. “Como consequência, a região se tornaria uma zona morta”, conclui o biólogo Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da
al
Se
USP e um dos membros da equipe de Cecília, que, como ele e Marques, questiona o processo de licenciamento ambiental aprovado pelo Ibama. O debate continua. O Ministério Público Estadual usou os argumentos dos pesquisadores que estudam a região para constestar a licença prévia concedida pelo Ibama. Em julho de 2014, a licença
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foi suspensa, por meio de decisão judicial provisória (liminar), até que o processo seja julgado. MANGUEZAL MENOR
A redução da área de manguezal do Araçá vem ocorrendo há pelo menos cinco décadas. “Estima-se que os manguezais da baía do Araçá tenham diminuído 70%
Habitantes da baía: Teotônio Jesus escava a praia em busca de berbigões. Ao lado, a minhoca-do-mar Diopatra aciculata e o microcrustáceo Monokalliapseudes schubarti, abundantes na região. Abaixo, vista geral da baía
fotos 1 e 4 eduardo cesar 2 e 3 Gabriel Monteiro
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desde a década de 1960”, diz Caiuá Mani Peres, oceanógrafo da equipe de Turra, do IO-USP. Com base em fotos históricas e imagens de satélite, Peres concluiu que a redução da área de manguezal pode ter sido efeito de uma combinação de impactos ambientais, como o acúmulo de lixo e óleo trazidos pelas águas que banham a baía e alterações do sedimento do Araçá decorrentes da construção do emissário submarino e de outras obras de ampliação do porto, inaugurado em 1955. “Muita coisa mudou nos últimos tempos”, testemunha Teotônio Nobre de Jesus, pescador nascido em São Sebastião. Aos 69 anos, a pele rachada pelo sol, seu Teotônio, como é chamado, passa o dia agachado na praia, remexendo a mistura de lama e areia com as mãos à procura de berbigões, um molusco com conchas
cobertas de nervuras brancas, pequenas estrias pardas e negras, cientificamente chamado de Anomalocardia brasiliana. “Olha só o tanto que já peguei hoje”, ele diz, na tarde do dia 20 de julho, mostrando um balde com dezenas de berbigões apanhados desde a manhã. Em quatro horas, ele coleta cerca de 30 quilogramas. Uma parte vai para sua família e outra é vendida aos restaurantes locais que os preparam refogados. Em seguida ele se levanta, limpa o suor da testa com as costas da mão e aponta para uma das ilhas, a Ilha de Pernambuco, formada por duas das três espécies de mangue encontradas no Araçá. “Vê lá aquele monte de árvore? É o que sobrou do mangue. Antes tinha muito mais, tudo ligado um ao outro.” Apesar das mudanças, o Araçá abriga um dos últimos remanescentes de man-
guezais do litoral norte de São Paulo, com um emaranhado de raízes expostas que mantêm as árvores altas em pé. Ao todo, a baía mantém três espécies de árvores típicas de manguezais: o mangue-preto, o mangue-branco e o mangue-vermelho. Os pesquisadores têm procurado mostrar as conclusões de seus estudos ao moradores da região e conversar com eles — o livro lançado em agosto foi mais uma forma de disseminar informações e valorizar a riqueza biológica da baía. “Vamos às escolas, passamos nas casas e falamos com os pescadores na praia para que compareçam às reuniões”, comenta Turra. Seu Teotônio disse que conhece os pesquisadores e já ouviu falar das reuniões, mas ainda não se motivou a ir. n
Projeto Biodiversidade e funcionamento de um ecossistema costeiro subtropical: subsídios para gestão integrada (nº 2011/50317-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa - Temático; Pesquisadora responsável Antonia Cecília Zagagnini Amaral (IB-Unicamp); Investimento R$ 2.986.800,0 (FAPESP).
Artigos científicos VIEIRA, L. M., MIGOTTO, A. E. & WINSTON, J. E. Ctenostomatous Bryozoa from São Paulo, Brazil, with descriptions of twelve new species. Zootaxa. v. 3889, n. 4, p. 485-524. dez. 2014. AMARAL, A. C. Z. et al. Araçá: biodiversidade, impactos e ameaças. Biota Neotropica. v. 10, n. 1, p. 219-64. mar. 2010.
Livro AMARAL, A. C. Z. et al. A vida na Baía do Araçá – Diversidade e importância. São Paulo: Lume, 2015.
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tecnologia parcerias y
Desafios compartilhados Oito empresas integram-se ao esforço para desenvolver componentes da fonte de luz síncrotron Sirius
A
FAPESP e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) anunciaram o resultado de uma seleção pública para o desenvolvimento de componentes do Sirius, a nova fonte de luz síncrotron do Brasil que deve começar a operar em 2018. Oito empresas foram selecionadas para superar 13 desafios científicos e tecnológicos relacionados à construção do anel, que será quase seis vezes maior que o atual, em operação desde 1997. Com 518,4 metros de circunferência, a fonte será instalada num prédio de 68 mil metros quadrados cuja estrutura lembra, nas dimensões e no formato, um estádio de futebol. Caso consigam cumprir os desafios, as empresas se qualificarão como fornecedoras do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), responsável pela construção e pela operação da fonte. “A intenção do edital não é apenas a de ajudar a desenvolver o Sirius, mas permitir que empresas inovadoras do estado de São Paulo e suas equipes de pesquisa ampliem 62 z agosto DE 2015
seu leque de produtos tecnológicos, criando uma cadeia de fornecedores em condição de atuar no mercado global”, afirma Douglas Zampieri, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador de área de pesquisa para inovação da FAPESP. Fontes de luz síncrotron são equipamentos planejados para produzir um tipo de radiação de alto brilho e amplo espectro, que abrange o infravermelho, o ultravioleta e os raios X. Capaz de penetrar a matéria e revelar características sobre sua estrutura molecular e atômica, é usada para compreender a natureza microscópica de materiais. A radiação é gerada por elétrons produzidos num acelerador, que ficam circulando em um grande anel perto da velocidade da luz e, quando passam por ímãs, sofrem uma deflexão provocada pelo campo magnético. Fótons são emitidos, resultando na luz síncrotron. As ondas eletromagnéticas serão utilizadas por pesquisadores em estações de trabalho espalhadas em pontos do anel, para estudos sobre a estrutura de materiais
léo ramos
Fabrício Marques
Maquete em tamanho real de um trecho equivalente a um vigésimo do túnel do Sirius: uma das primeiras fontes de luz de quarta geração do mundo
como polímeros, rochas, metais, além de proteínas, moléculas para medicamentos e cosméticos, ou imagens tridimensionais de fósseis ou de células. A fonte Sirius terá 40 dessas estações. Com um custo estimado em R$ 1,5 bilhão, será uma das primeiras fontes de quarta geração no mundo. O brilho da luz emitida será, em algumas frequências, mais de 1 bilhão de vezes superior à atual. No anel hoje em operação, a energia do feixe de luz permite analisar apenas a camada superficial de materiais duros e densos, já que os raios X produzidos penetram esses materiais com profundidade de alguns micrômetros. “A alta energia do Sirius permitirá que esses mesmos
materiais sejam analisados em profundidades de alguns centímetros”, diz o físico Antônio José Roque da Silva, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do LNLS. As fontes de luz síncrotron são compostas por três estruturas de aceleração: um acelerador linear, um acelerador injetor e um anel de armazenamento (ver quadro). As especificações dos componentes são muito precisas não apenas pela intensidade da energia, mas porque oscilações até mesmo abaixo da casa dos micrômetros (1 milionésimo de metro) podem atrapalhar o posicionamento dos feixes de elétrons e de fótons. Parte significativa desse esforço de pesquisa e pESQUISA FAPESP 234 z 63
A estrutura do Sirius O funcionamento da nova fonte de luz síncrotron
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Canhão de elétrons O equipamento emite o feixe de elétrons, que é impulsionado até chegar ao acelerador linear
ACELERADOR LINEAR O feixe de elétrons começa a ganhar energia, acelerado a uma velocidade próxima à da luz
3 ACELERADOR CIRCULAR Sua função é aumentar a energia do feixe. Os elétrons giram até atingir a energia máxima projetada para a máquina
3 4 1
trajetória do feixe
2
165 m
5 Fonte LNLS
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anel de armazenamento O feixe é mantido em órbitas estáveis com o auxílio de ímãs. A trajetória dos elétrons, então, é curvada para a produção da luz síncrotron
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6 luz síncrotron Uma radiação de amplo espectro magnético e alto brilho é produzida quando os elétrons com alta energia e em alta velocidade têm a trajetória desviada
desenvolvimento está sendo feita pela equipe de 240 pesquisadores e técnicos do LNLS, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990 com a construção da fonte em operação. “Cerca de 70% dos componentes do anel serão desenvolvidos no Brasil”, diz José Roque. Para cumprir o cronograma de construção, a participação de empresas nacionais tornou-se importante. Algumas engajaram-se há mais tempo, como a Termomecânica, de São Bernardo do Campo, que desenvolveu o processo para a fabricação das câmaras de vácuo, feitas de uma liga de cobre e prata, e dos fios de cobre ocos para os eletroímãs, que permitem circulação de água para refrigeração. Outro exemplo é a Weg, de Santa Catarina, que deverá fornecer 1.350 eletroímãs para os aceleradores.
linhas de luz A radiação de alto brilho é guiada para estações experimentais instaladas ao redor do acelerador e conduzida até as amostras, de forma a revelar informações sobre o material analisado
Para as empresas selecionadas pelo edital da FAPESP e da Finep, o interesse não se limita à possibilidade de fornecer os componentes da fonte. A Equatorial Sistemas, de São José dos Campos, é responsável por três projetos aprovados. Em um deles vai fornecer monitores fluorescentes de feixes de elétrons, dispositivos que permitem a determinação das dimensões e da posição dos feixes nos aceleradores. Os monitores são compostos por uma tela que pode ser interposta no caminho dos elétrons e serão úteis para ajustar a trajetória do feixe. Um segundo projeto prevê o fornecimento de bloqueadores de fótons, dispositivos de segurança das linhas de luz que bloqueiam o feixe emitido pelo acelerador de partículas, interpondo um bloco de metal refrigerado no seu caminho. “Cada linha de luz terá pelo menos um desses obturadores. Queremos nos tornar fornecedores internacionais desses equipamentos”, afirma César Ghizoni, presidente da Equatorial. O principal interesse da empresa é o terceiro projeto, de produção de detectores de raios X seguindo uma tecnologia, a Medipix, desenvolvida em colaboração internacional por 20 laboratórios, sob coordenação da Organização Europeia para Pesquisas Nucleares (Cern). O LNLS integrou-se a esse consórcio em 2013. “Nos experimentos, os raios X gerados pelo acelerador interagem com o material estudado e se espalham ao redor. Esses detectores mostram de onde a radiação saiu, sua direção e intensidade, tudo em tempo real”, diz Ghizoni. “Essa tecnologia tem um grande potencial para a área médica, pois permite fazer imagens de raios X em tempo real. Temos interesse em desenvolver aplicações”, afirma. A empresa já desenvolveu dispositivos para o telescópio Soar, no Chile, e para o detector de raios cósmicos Pierre Auger, na Argentina, projetos que envolvem pesquisadores de São Paulo e foram apoiados pela FAPESP. Criada em 1996, a Equatorial tem
foto léo ramos infográfico ana paula campos ilustraçãO alexandre affonso
uma equipe de pesquisa e desenvolvimento com 12 técnicos e engenheiros e desde 2006 é controlada pela Airbus Defence & Space. A Atmos Sistemas, de São Paulo, assumiu o desenvolvimento de um dispositivo eletrônico que mede a posição do feixe de elétrons. O feixe precisa ser posicionado com grande precisão no centro do anel, com a utilização de campos magnéticos. “O monitor mede a posição do feixe em duas dimensões, através da digitalização, filtragem e processamento de sinais provenientes de sondas colocadas ao longo do anel”, diz Fábio Fukuda, responsável pelo projeto. “O dispositivo medirá a posição do feixe com precisão submicrométrica.” Um dos objetivos da Atmos é se capacitar para fornecer sistemas similares para fontes de luz síncrotron de outros países. “Há a possibilidade de aproveitamento da tecnologia de tratamento de sinais e processamento em outros produtos da nossa empresa, como radares”, afirma. A Engecer, empresa de base tecnológica de São Carlos (SP) que atua no segmento de cerâmicas técnicas há mais de 20 anos, propôs-se a desenvolver e produzir peças para os monitores de posição do feixe de elétrons. “São cerâmicas com propriedades elétricas muito específicas”, diz Tatiani Falvo, pesquisadora da Engecer. Na fonte de luz síncrotron atual, elas foram produzidas com alumina. Já na fonte Sirius, devem ser fabricadas com outros materiais, o nitreto de boro e o nitreto de alumínio. O processo de prensagem exige temperaturas entre 1.600 e 2.000ºC e não é feito no Brasil. “Será necessário adquirir uma prensa a quente para a fabricação da cerâmica. A empresa tem interesse no conhecimento desse novo processo para eventualmente incorporá-lo à sua linha de produção”, diz Tatiani. A Engecer comprometeu-se a entregar alguns protótipos feitos com os dois materiais, para que o LNLS avalie qual é o melhor. A FCA Brasil, de Campinas, vai fornecer protótipos de câmaras de ultra-alto vácuo e outros componentes para a fonte Sirius, que serão utilizados em vários pontos do anel e nas estações experimentais. WORKSHOP
A ideia de atrair empresas inovadoras para auxiliar na construção da fonte foi estimulada pela FAPESP, que sugeriu a utilização de programas como o de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). Há dois anos, foi realizado um workshop no LNLS, em Campinas, do qual participaram mais de 50 empresas. Elas conheceram um conjunto de desafios tecnológicos envolvidos na construção e as possibilidades de financiamento disponíveis. Mas as conversas esbarraram em um obstáculo. Várias empresas afirmaram que parte substancial de seus custos corresponderia ao
Teste em protótipo de sistema de regulação digital das fontes: duas empresas estão debruçadas sobre desafio tecnológico
tempo trabalhado por seus pesquisadores. Mas entre os itens financiáveis por projetos do Pipe não está previsto o pagamento de salários, apenas de bolsas. A solução foi recorrer a um convênio existente entre a FAPESP e a Finep, que mantém o Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe). “Após alguns meses de negociação com a Finep lançamos o edital”, diz Douglas Zampieri. “A qualidade dos projetos para a construção do Sirius foi muito boa.” Das 13 empresas que apresentaram propostas, oito foram selecionadas. O envolvimento de empresas na construção de grandes instalações científicas é prática comum na Europa e nos Estados Unidos. “Seria ótimo se, depois da fonte Sirius, conseguíssemos mobilizar empresas para lidar com desafios de outros projetos científicos, criando um mercado como o que existe na Europa e nos Estados Unidos”, diz José Roque. A Omnisys, empresa com sede em São Bernardo do Campo (SP) que desenvolve componentes eletrônicos de armamentos, satélites e radares, é responsável por quatro projetos aprovados. Fundada em 1997 por três engenheiros eletrônicos, a empresa passou, em 2006, para o controle da multinacional francesa Thales, da área de defesa, aeroespacial e de transportes. Seus 70 técnicos e engenheiros no Brasil vão se dedicar a desafios como a fabricação, a montagem e os testes de três tipos de placas eletrônicas, utilizadas pelo sistema de medida de posição de feixe de elétrons. O projeto prevê o fornecimento de 12 protótipos de cada tipo de placa. Outra meta é desenvolver componentes eletrônicos para os detectores de posição de fótons nas estações experimentais. A empresa também se propôs a desenvolver fontes de corrente de alta potência, usadas na alimentação dos ímãs. pESQUISA FAPESP 234 z 65
habilitou-a a participar do desafio. “As lentes têm o tamanho de uma caneta, com 1 centímetro de diâmetro por 25 centímetros de comprimento, e se assemelham à fibra óptica antes de ser afinada”, explica.
A Omnisys busca ainda criar módulos de regulação digital de fonte. Trata-se do único desafio que foi assumido por duas empresas. A Macnica DHW, distribuidora de componentes eletrônicos, também está debruçada sobre essa tarefa. Uma fonte de luz síncrotron necessita de campos magnéticos estáveis, que dependem de fontes de corrente altamente confiáveis. O desafio é substituir o sistema analógico usado pela fonte em operação por outro, digital. A Omnisys e a Macnica DHW vão usar componentes diferentes e se comprometeram a entregar algumas dezenas de protótipos para testes. A equipe do LNLS também desenvolveu a tecnologia necessária, mas acredita que as empresas podem fornecer um produto melhor. “Serão mais de 1,3 mil reguladores que precisarão trabalhar em harmonia. É algo tão crítico para o desempenho da fonte que selecionamos duas empresas para o desafio”, diz Regis Neuenschwander, vice-gerente da Divisão de Engenharia do LNLS. Parte dos desafios envolve tecnologias no campo da óptica. A Luxtec Sistemas Ópticos, de Campinas, vai desenvolver protótipos de componentes para reflexão de raios X. “Não se trata de uma lente convencional, mas de um tubo de vidro em forma elíptica capaz de direcionar os raios X”, explica Cícero Omegna de Souza Filho, responsável pelo projeto. A Luxtec montará um conjunto de três máquinas para produzir esse tipo de tubo. Sua experiência com fibras ópticas 66 z agosto DE 2015
A Opto Eletrônica, de São Carlos, pretende desenvolver o processo de fabricação e caracterização de espelhos de altíssima qualidade, de rugosidade na ordem de poucos nanômetros, para aplicação em sistemas de focalização de luz síncrotron. “Poucos países do mundo dominam o processo de polimento para gerar esse tipo de espelho”, diz Rafael Alves de Souza Ribeiro, físico responsável pelo projeto. “O domínio dessa técnica e o posicionamento estratégico do Brasil como fornecedor de componentes ópticos para aplicação em luz síncrotron geraria demandas nos mercados interno e externo. Se conseguirmos dominar a técnica, abriremos portas enormes em frentes de pesquisa fundamental e aplicada, como desenvolvimentos de equipamentos para raios X, sistemas ópticos para câmeras de satélites e aplicações em astronomia.” A empresa, que fornece lasers para a área médica, equipamentos para a defesa e câmeras para satélites, promete entregar para o LNLS oito protótipos de espelhos planos com formato retangular, com cerca de 40 centímetros de dimensão cada um. “Seria ótimo se, A FAPESP e a Finep planejam utidepois do Sirius, lizar o mesmo formato de edital para envolver empresas em outros desapudéssemos fios tecnológicos. Uma nova chamada para o desenvolvimento de tecmobilizar nologias para a fonte Sirius e uma seleção de propostas para empreempresas para sas de tecnologia nas áreas aeroesdesafios de pacial e de defesa devem ser lançados em breve. No caso do Sirius, os outros projetos desafios propostos relacionam-se a tecnologias e processos dos quais o científicos”, início de operação da fonte de luz não depende diretamente. Um deles diz José Roque, é criar softwares para robôs que dedo LNLS terminem os pontos no solo em que equipamentos deverão ser fixados. Outro é criar a eletrônica para um trem de monitoramento, dotado de sensores e câmeras, que percorrerá o anel para detectar eventuais problemas de funcionamento. “Podemos começar a funcionar sem esse sistema de monitoramento operando plenamente, mas uma hora teremos de instalá-lo”, diz Regis NeuensSala de metrologia do LNLS: análise chwander, do LNLS. Ele acredita que empresas de protótipos dos brasileiras que fabricam drones poderão ter inmagnetos que serão teresse em desenvolver softwares para o trem utilizados na nova de monitoramento. n fonte de luz
léo ramos
espelho
Agricultura y
Combate ao desperdício Novos equipamentos possibilitam aumento na eficiência do uso da água no campo em mais de 30%
foto Ana Druzian / olhar imagem
A
Sistema de irrigaçao agrícola em Sud Mennucci, interior de São Paulo
preocupação com o alto consumo de água para irrigação no Brasil – cálculos da Agência Nacional de Águas (ANA) apontam que essa técnica, muito utilizada na agricultura, responde por 72% do gasto total – tem incentivado pesquisadores a procurar alternativas para reduzir o desperdício. Grupos de pesquisa de diferentes instituições desenvolveram tecnologias que podem diminuir o consumo atual em mais de 30%. Em diferentes fases de desenvolvimento, alguns projetos já resultaram em depósitos de patentes e caminham para se tornar diferentes tipos de produtos comerciais. Duas dessas tecnologias foram desenvolvidas na Embrapa Instrumentação, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em São Carlos (SP). Uma delas é o chamado sensor diédrico, que pode ser instalado entre as raízes da planta, para medir a tensão da água na terra, isto é, a força com que a umidade é retida pelas partículas do solo. O instrumento é formado por duas placas, que podem ser de vidro ou cerâmica, de dimensões ajustáveis – medem, por exemplo, 5 centímetros (cm) de comprimento por 3 cm de largura –, instaladas de modo a formar um diedro. Com as laterais e a abertura vedadas, a água presente no solo penetra no equipamento através de uma placa de cerâmica
porosa e preenche um volume de face retangular escurecida em seu interior. O comprimento desse retângulo, medido a partir do vértice, permite o cálculo da tensão da água, que por sua vez indica a necessidade ou não de irrigação. Trabalhos anteriores estabeleceram as tensões críticas da água – momento em que se deve irrigar – para uma série de culturas. Assim, basta comparar a tensão detectada pelo sensor diédrico com o que está na literatura para aquela cultura e o tipo de terreno para saber se a lavoura precisa ou não ser irrigada. Segundo o pesquisador Adonai Gimenez Calbo, líder do grupo de pesquisa que desenvolve o equipamento, a área com líquido no interior do sensor diédrico é facilmente percebida porque fica mais escura. “A leitura pode ser visual ou com um dispositivo óptico”, diz. De acordo com o pesquisador, em comparação com outros tensiômetros e sensores de umidade convencionais, o sensor diédrico se destaca pelo uso de materiai s de baixo custo, como vidro e cerâmica, pela simplicidade e por não sofrer interferência de fatores como temperatura, salinidade, densidade do solo e presença de substâncias ferromagnéticas. Outras vantagens em relação aos produtos concorrentes são a leitura direta e a medição de ampla faixa de tensão da água no solo. “Com isso, o sensor pESQUISA FAPESP 234 z 67
diédrico pode atender variadas demandas, dentre elas a definição de tensão de água no solo muito baixa ou muito alta, o que outros equipamentos não fazem.” Chamado de IG, que em tupi significa água, o outro sensor criado por Calbo e colaboradores é formado por um bloco de cerâmica porosa contendo, em seu interior, partículas de pequenas dimensões, como esferas de vidro. Instalado entre as raízes das plantas, o equipamento também mede a tensão da água no solo e pode ser usado para automatizar a irrigação. Quando a terra está seca, o ar atravessa o sensor, acionando os dispositivos de irrigação em gotejamento, por exemplo. Quando o solo está úmido, a água retida entre as esferas restringe a passagem do ar, interrompendo o escoamento da água. Os dois sensores desenvolvidos na Embrapa não dependem de manutenção frequente para a operação e por isso são adequados para
A agricultura consome 72% do total de água e as novas tecnologias poderão ajudar a evitar o gasto excessivo no campo
Lavoura monitorada Sistema criado no Inatel, em Minas Gerais, avalia solo e ar para determinar a necessidade de irrigação
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Os dados do solo e da atmosfera são enviados para a unidade de transmissão
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2
Estação meteorológica capta informações do ambiente
As informações vão para um banco de dados
Os dados são coletados no solo da lavoura
1 5 Alertas são enviados para dispositivos móveis do produtor
Um software faz a leitura dos dados coletados pelos sensores
6 Fonte inatel
68 z agosto DE 2015
automatizar a irrigação. As aplicações das duas tecnologias são semelhantes, embora o sensor IG seja o mais adequado para o manejo da irrigação. Atualmente no Instituto de Química do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a pesquisadora Sonia M. Zanetti desenvolveu um tipo de sensor baseado em uma mistura – que ela preferiu não revelar – de óxidos semicondutores. “Pelo método de síntese que usamos, esses óxidos geram um pó com partículas nanométricas que é prensado, formando um sensor cerâmico nanoestruturado e poroso”, explica. Suas propriedades elétricas são alteradas pela presença da água e, dessa forma, é possível medir a umidade pelo monitoramento da resistência elétrica do sensor. Quanto mais água tiver no solo, menor a resistência. O trabalho foi feito em parceria com o Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, e desenvolvido na empresa Sencer, de São Carlos. O projeto coordenado por Sonia começou em 2007 e foi concluído no ano passado. “O resultado não foi só o desenvolvimento do sensor, mas sim de um sistema completo”, diz a pesquisadora. “Ele é composto por sondas instaladas na plantação [hastes com os sensores integrados] conectadas a uma unidade de transmissão wireless, que envia os dados para um computador, além de uma plataforma on-line para a visualização e o tratamento dos dados coletados.” As sondas monitoram a temperatura e a umidade da terra simultaneamente em até três níveis de profundidade. O produtor pode acessar esses dados por meio de smartphones e tablets, facilitando a tomada de decisões relacionadas ao manejo da irrigação da cultura. O sistema possibilita a integração com dados climáticos públicos, como previsão do tempo, índices pluviométricos, temperatura e umidade do ar, velocidade e direção do vento. Com isso, é possível fazer análises avançadas do solo e do plantio com base em históricos de dados, tendências e estatísticas, resultando na otimização do uso de água. A economia desse recurso pode chegar a 30%. Em Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais, quatro jovens engenheiros desenvolveram um algoritmo (programa de computador) que automatiza a irrigação da plantação. Chamado de SMPIn (Sistema de Monitoramento de
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1 Sensor de umidade em plantação de café desenvolvido em parceria pela Unesp, CDMF e Sencer
fotos Eduarddo Cesar
2 Sistema de gotejamento com sensor IG, criado pela Embrapa
Plantações Inteligentes), ele pode gerar uma economia de 40% da água usada na lavoura e 28% no consumo de energia. Além do programa de computador, o sistema é composto por estação de coleta de dados, instalada na plantação, equipada com sensores de temperatura e umidade do ar e do solo, velocidade e direção do vento, pluviômetros e GPS. “Essa estação coleta os dados e os envia, por wi-fi ou pela rede de telefonia celular, para o nosso banco de dados”, explica Pedro Lúcio Leone, um dos quatro sócios da empresa SPIn, responsável pelo projeto. “Com o nosso algoritmo, fizemos os cálculos sobre a necessidade de irrigação. Tudo depende da plantação, do clima, da evapotranspiração da planta e da terra. Assim, pega-se a variante meteorológica, calcula-se o que evaporou, e o agricultor irá saber quanto precisa irrigar.” O sistema, que se adapta a diferentes tipos de plantio, funciona em qualquer método de irrigação controlado, como a aspersão ou o gotejamento. Os dados podem ser acessados por dispositivos móveis, como smartphone ou tablet. O projeto do SMPIn começou em 2013, depois que produtores de morango da região do sul de Minas Gerais sofreram
uma perda de 80% da produção em decorrência de problemas climáticos. Na época, os alunos do Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel) Luiz Cláudio de Andrade Junior, Vitor Ivan D’Angelo, Wellington Faria e Leone decidiram criar um projeto voltado para o agronegócio e fundaram a empresa, incubada no Inatel. O sistema ainda se encontra em fase de teste e validação. Segundo D’Angelo, o diferencial em relação aos existentes no mercado é que a maioria deles só oferece o controle de irrigação. “O nosso sistema disponibiliza também uma avaliação microrregional do clima, com informações mais precisas para o agricultor”, diz ele. Outra vantagem, de acordo com ele, é que o sistema não requer instalação em computador do produtor rural, reduzindo os custos na implementação. Patentes e licenças
Segundo o engenheiro agrícola Everardo Chartuni Mantovani, professor da Universidade Federal de Viçosa e sócio da empresa de consultoria Irriger, essas quatro tecnologias – da Embrapa, Unesp e Inatel – vão se juntar a outras já existentes no mercado. “Isso não inviabiliza a necessidade de desenvolver novas metodologias ou melhorar as disponíveis”, diz. Para Mantovani, dos quatro, o desenvolvido pela parceria Unesp, CDMF e empresa Sencer, de São Carlos, é o mais promissor. “Trata-se de um sistema ainda não existente”, avalia.
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No caso dos sensores desenvolvidos por Calbo e colaboradores, a Embrapa depositou pedido de patente para os dois tipos de tecnologia, que foram licenciados para empresas brasileiras e dos Estados Unidos para transformá-los em produto. No Brasil, o diédrico foi licenciado para a Tecnicer Tecnologia Cerâmica, de São Carlos, e no mercado americano para a Irrometer, da Califórnia. O direito de exploração comercial do IG também foi concedido a essas duas companhias e ainda para a Hidrosense, de Jundiaí, a Acqua Vitta Floral, de Bauru, e a R4F, de Campinas. Com essas duas tecnologias, diferentes tipos de equipamentos poderão ser fabricados em versões fixa e portátil. Estima-se que cheguem ao mercado com preços entre R$ 10 e R$ 150. A Sencer depositou pedido de patente de Modelo de Utilidade para a haste com os sensores integrados. O sensor desenvolvido por Sonia, da Unesp, está em fase final de testes. “Temos o produto em demonstração e avaliação em alguns lugares e estamos negociando as primeiras vendas”, diz a pesquisadora. n
Projeto Aperfeiçoamento do dispositivo sensor para determinação da umidade do solo: aplicação em agricultura de precisão (nº 2012/50132-8); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Sonia Maria Zanetti (Sencer); Investimento R$ 181.302,71 (FAPESP).
pESQUISA FAPESP 234 z 69
Porco magro Uso de resíduos da fabricação de acerola na alimentação de suínos diminui teor de gordura da carne Evanildo da Silveira
70 z Agosto DE 2015
T
odo ano são processadas no Brasil 32 mil toneladas de acerola (Malpighia punicifolia) para a fabricação de suco, polpa e extrato. Desse total, sobram cerca de 6,5 mil toneladas de resíduo, composto por casca, sementes, restos de polpa e algumas folhas, que tem pouco aproveitamento. Segundo pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), esse material poderá ser usado, na forma de farelo, na alimentação de suínos, tornando a carne dos animais mais light, com menor teor de gorduras que contribuem para aumentar o colesterol de quem a consome. A acerola aumenta os níveis de ômega 3 na carne, substância que ajuda a prevenir doenças cardiovasculares. As conclusões são de um estudo desenvolvido pelo zootecnista Fabrício Rogerio Castelini no seu doutorado na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, do campus de Jaboticabal, da Unesp, sob orientação da professora Maria Cristina Thomaz. O projeto de pesquisa tinha como principal objetivo a busca de alimentos alternativos, ricos em fibra, para serem fornecidos aos suínos durante a fase de terminação – quando seu peso vai de 70 a 130 quilos (kg). Nesse período o animal não pode consumir uma dieta muito energética porque o excesso resulta no acúmulo de gordura, o que prejudica a carne. “Normalmente, o fornecimento de alimentos ricos em fibra, no caso o farelo de acerola, faz os animais comerem apenas o necessário para encher seu estômago e saciar a fome”, explica Castelini. “Esse processo é chamado de restrição alimentar qualitativa.” Ele realizou dois experimentos para avaliar os resultados da inclusão do farelo de acerola na dieta dos suínos. Inicialmente, determinou-se a composição química e os valores nutricionais do ingrediente. Depois, procurou-se estimar o efeito da inclusão da acerola em diferentes teores
– em 9%, 18% e 27% do total da dieta formada normalmente por milho e farelo de soja – sobre o desempenho, a digestibilidade das dietas e as características das carcaças. “Nesse experimento, também avaliamos a qualidade da carne, os pesos dos órgãos do sistema digestivo e os indicadores de retorno econômico”, afirma. O resultado mais importante, segundo Castelini, foi a melhora qualitativa do lombo suíno em relação à composição dos ácidos graxos. O ácido graxo ômega 3, que possui ação preventiva contra problemas cardíacos, teve seus níveis aumentados em 21,74% nos animais que consumiram os maiores teores de farelo de acerola. Já os ácidos graxos saturados são considerados hipercolesterolêmicos, ou seja, aumentam o colesterol, dos quais os mais perigosos são o mirístico, o palmítico e o láurico. “Com a inclusão de 27% de farelo de acerola na dieta, observamos redução de 7,63% do primeiro e de 5,02% do segundo, e o láurico permaneceu no mesmo nível”, informa o pesquisador. “Esses ácidos estão relacionados com o desenvolvimento de mudanças degenerativas nas paredes das artérias e seu consumo em demasia pode provocar doenças cardiovasculares.” oportunidade de mercado
“Em relação às outras variáveis analisadas, observou-se menor ganho de peso (-39,92%) nos animais alimentados com acerola, menor espessura média de toucinho (-37,13%) e redução da área de gordura nas carcaças (-39,84%)”, diz Castelini. Esses dados sugerem ganhos à saúde do consumidor, mas a redução do peso e do toucinho pode diminuir o lucro do produtor. Segundo o pesquisador da Unesp, em São Paulo os frigoríficos não possuem um programa de pagamento pela qualidade da carcaça. Por isso, como os animais alimentados com farelo de acerola pesam menos, o valor deles é menor. “No
fotos 1 Bdieu / wikicommons 2 Fabrício Rogerio Castelini infográfico ana paula campos
Pecuária y
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Sobras do processamento da acerola usadas para alimentar suínos melhoraram composição de ácidos graxos
27%
farelo de acerola na dieta 2
estado de São Paulo, o porco é abatido com 90 quilos; se fosse com 120 quilos, o ganho do produtor poderia ser maior com o animal light. Acreditamos que esse cenário possa ser revertido com a criação de um nicho de mercado que valorize a excelente qualidade das carcaças apresentadas pelos animais”, diz. Para o gerente comercial Renato Celso Cavichioli, do Frigorífico Suíno Leve, de São Carlos (SP), que abate 1.200 porcos por semana, animais com menores teores de gordura fariam sucesso no mercado brasileiro. “O consumidor procura hoje produtos mais light e um suíno com menos gordura por certo venderia bem”, diz Cavichioli. De acordo com ele, embora o melhoramento genético já tenha levado ao desenvolvimento de suínos mais magros, a carne de porco ainda sofre preconceito. O economista Júlio Eduardo Rohenkohl, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, especialista em suinocultura, também acredita em uma possível oportunidade de mercado. “Certamente existe espaço no Brasil e no mundo para carnes mais magras, com diminuição da gordura e aumento do ômega 3, por exemplo, desde que ela mantenha a suculência, a cor e a textura. Empresas no estrangeiro exploram variações qualitativas e satisfazem mercados específicos.” Para o economista, é possível segmentar o mercado da carne de porco in natura. Isso aconteceria com a garantia de procedência do produtor, a devida identificação de insumos utilizados, como a ração de acerola, e um selo na carne com a inscrição light ou porco magro no ponto final de venda. Outro
corpo enxuto aumento do ômega 3 aumento do ômega 6
22%
redução no ganho de peso
40%
redução da área de gordura na carcaça
40%
Projetos
25% 37% redução do colesterol mirístico fonte: unesp
5%
redução na altura do toucinho
8%
aspecto, segundo Júlio, é verificar como fica o custo do animal com a adição da acerola e a diminuição de ingredientes como milho, soja e sorgo, por exemplo. “Em relação à qualidade da carne, fizemos testes sensoriais e não detectamos diferença no sabor ou na maciez”, diz Castelini. As amostras de carne foram testadas por 100 pessoas, escolhidas aleatoriamente. “Em relação ao conteúdo nutricional e à qualidade da carne, podemos recomendar a inclusão do resíduo da fruta nas dietas de suínos em terminação, até o nível de 27% da ração.” Quanto ao valor da dieta dos suínos, o pesquisador aponta que, à época da pesquisa (2012), com o milho custando R$ 0,60 o quilo, o farelo de acerola, a R$ 0,10 o quilo, mostrou-se econômico. Castelini lembra, no entanto, que um eventual aumento na procura por resíduos de acerola pode mudar essa relação. “Acredito que as regiões mais propícias para esse tipo de alimentação dos suínos seriam o noroeste paulista e a região Nordeste brasileira, onde existem mais plantações de acerola. Mas isso vai depender do custo e do preço do frete.” De acordo com Teresinha Marisa Bertol, pesquisadora da Embrapa Suínos e Aves, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, localizada em Concórdia (SC), no Brasil há poucos grupos envolvidos em pesquisas com alimentação de suínos visando melhorias na qualidade da carne. “Na Embrapa estão sendo desenvolvidos experimentos com o intuito de elevar o conteúdo de ômega 3 na gordura associada à carne suína, com resultados positivos. Também estamos estudando o efeito de antioxidantes naturais via dieta, como, por exemplo, o bagaço de uva, com o objetivo de melhorar a qualidade da carne de suínos. Embora a carne produzida em larga escala, nos sistemas industriais, já seja de ótima qualidade nutricional, nosso objetivo é torná-la ainda mais saudável e atrativa.” n
redução do colesterol palmístico
1. Farelo de acerola em programa de restrição alimentar para suínos pesados (nº 2011/22906-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Cristina Thomaz (Unesp); Investimento R$ 64.989,45 (FAPESP). 2. Farelo de acerola em programa de restrição alimentar para suínos pesados (nº 2011/22563-1); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisadora responsável Maria Cristina Thomaz (Unesp); Bolsista Fabrício Rogerio Castelini; Investimento R$ 93.940,52 (FAPESP).
pESQUISA FAPESP 234 z 71
pesquisa empresarial y
Inovação na defesa A Mectron desenvolve soluções tecnológicas avançadas para as áreas militar e espacial A partir da esquerda, Henrique Mohallem, Aristóteles Carvalho, Marta Suarez e Cesar Buonomo, da equipe de P&D, e Wagner Silva, diretor da Mectron
Yuri Vasconcelos
D
esde o ano passado, os jatos de combate JF-17 Thunder, de fabricação sino-paquistanesa, e os franceses Dassault Mirage III e IV da Força Aérea do Paquistão voam equipados com um armamento inteligente, o míssil antirradiação MAR-1. Lançado de aeronaves, o míssil é usado contra defesas antiaéreas e tem como alvo radares no solo, essenciais para identificação da posição de aviões hostis. Considerado uma arma sofisticada, o MAR-1 foi projetado e desenvolvido pela brasileira Mectron, uma das quatro empresas do mundo que dominam a tecnologia de fabricação do armamento – as outras três são as norte-americanas Raytheon e Alliant Techsystems e a russa Zvesdat. “Somos a única empresa brasileira com capacidade para projetar mísseis.
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O desenvolvimento do MAR-1 representou um grande desafio para a indústria bélica nacional e foi conquistado com o capital intelectual multidisciplinar que temos na Mectron”, afirma o engenheiro aeronáutico Wagner Campos do Amaral Silva, de 57 anos, diretor e um dos fundadores da empresa. “O míssil também será instalado futuramente em caças AMX da Força Aérea Brasileira (FAB), recentemente modernizados pela Embraer.” O projeto MAR-1 remonta a 1998, quando a Mectron começou a desenvolver o armamento para a FAB. Dez anos depois, foi assinado o contrato de exportação para o Paquistão. A empresa tem sede em São José dos Campos, polo da indústria aeroespacial do país, e atua nos mercados de defesa, aeronáutico e espacial, desenvolvendo e fabricando produtos de alta tecnologia
tanto para aplicações militares como civis. Fundada no início dos anos 1990 por cinco engenheiros formados pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a empresa foi adquirida em 2011 pela Odebrecht Defesa e Tecnologia (ODT), braço da Organização Odebrecht voltado ao desenvolvimento de soluções tecnológicas para as Forças Armadas do Brasil. EQUIPE QUALIFICADA
Com um faturamento de R$ 124,7 milhões em 2014, a Mectron possui uma bem estruturada área de pesquisa e desenvolvimento (P&D). No ano passado, 52% da receita da empresa, equivalente a R$ 65,5 milhões, foi direcionada para as atividades de P&D e inovação. Nessa conta, não entram as subvenções de projetos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) no valor de R$ 6,2 milhões.
empresa Mectron
Centro de P&D São José dos Campos, SP
Nº de funcionários 405
Principais produtos Armamentos inteligentes, radares, sistemas de comunicação e equipamentos
léo ramos
para satélites
Para projetar e construir equipamentos como armamentos inteligentes, radares, sistemas de comunicação e aviônicos, a empresa dispõe de um especializado corpo de colaboradores. Do seu quadro de 405 empregados, cerca de 300 integram os setores de P&D – dos quais 178 são engenheiros. Aproximadamente 70% dos funcionários têm diploma superior, sendo que 22% são pós-graduados. O engenheiro da computação Henrique Mohallem Paiva, de 36 anos, faz parte desse grupo. Após obter os títulos de bacharelado, mestrado e doutorado no ITA, ele fez um pós-doutorado na Universidade Concórdia, em Montreal, Canadá. “Nos meus estudos de pós-graduação, dediquei-me às áreas de processamento de sinais e de sistemas de controle automático. Continuo estudando e publicando artigos científicos, como bolsista
de produtividade em pesquisa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e como pesquisador no ITA. O conhecimento acadêmico adquirido tem aplicação direta nas minhas atividades como engenheiro porque trabalho numa área que requer sólidos conhecimentos teóricos”, diz Mohallem. Funcionário da Mectron desde 2010, ele atua no projeto MAR-1, sendo responsável pela simulação computacional do míssil e de seus subsistemas e pelo projeto de sistemas de controle automático. A engenheira Marta Cristina Suarez Garcia, de 28 anos, também se dedica ao programa MAR-1. Ela é coordenadora da etapa de certificação do atuador, o subsistema responsável pela deflexão independente das superfícies aerodinâmicas utilizadas para controlar as manobras em voo do míssil. Formada em engenharia PESQUISA FAPESP 234 | 73
1 Montagem de subsistema mecatrônico de míssil 2 Placa eletrônica de míssil 3 Simulação operacional de sistema de comunicação por enlace de dados para uso militar
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elétrica pela Faculdade de Engenharia de São Paulo (Fesp) e com mestrado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), ela ingressou na Mectron como trainee em 2012. “Atuei inicialmente na engenharia industrial, implantando melhorias nas áreas produtivas e nos processos de manufatura. Depois, fui convidada para integrar a equipe do MAR-1”, diz Marta. ARMAS INTELIGENTES
Orçado em R$ 500 milhões, o MAR-1 é o maior projeto em desenvolvimento nos laboratórios da Mectron, mas não o único. Na área de armamentos inteligentes, a principal da empresa, também estão em construção dois mísseis do tipo ar-ar (lançados de uma aeronave contra
outra aeronave), os modelos MAA-1B e A-Darter. O primeiro deles é uma versão atualizada do míssil Piranha, fabricado pela Mectron na década de 1990. “O projeto Piranha foi iniciado nos anos 1970 na FAB, mas sofreu interrupções por falta de recursos, embargos de componentes importados e o fracasso de empresas privadas que não resistiram à crise do setor nos anos 1980. Coube a nós concluir o desenvolvimento, modernizar e realizar a certificação e homologação nos caças F-5 e F-5M, e fabricar os lotes encomendados pela FAB”, recorda-se Wagner Silva. O A-Darter é um desenvolvimento conjunto com a empresa sul-africana Denel Dynamics e as brasileiras Opto e Avibras. O míssil é dotado de múltiplos sensores de infravermelho para ima-
INSTITUIÇÕES QUE FORMARAM PESQUISADORES DA EMPRESA Wagner Campos do Amaral Silva, engenheiro aeronáutico, diretor da Mectron
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA): graduação
Henrique Mohallem Paiva, engenheiro de computação, dedicado ao Programa MAR-1
ITA: graduação, mestrado e doutorado Concordia University (Montreal, Canadá): pós-doutorado
Aristóteles de Sousa Carvalho, engenheiro eletrônico, dedicado ao Programa MAN-SUP
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): graduação Instituto Militar de Engenharia (IME): mestrado University of Sheffield (Inglaterra): doutorado
Marta Cristina Suarez Garcia, engenheira elétrica, dedicada ao Programa MAR-1
Faculdade de Engenharia de São Paulo (Fesp): graduação Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP): mestrado
Cesar Augusto Buonomo, engenheiro aeronáutico, coordenador técnico do Programa MAN-SUP
ITA: graduação e mestrado
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geamento térmico do cenário aéreo, o que eleva sua capacidade de detecção e rastreio de alvos. Em fase de industrialização, o A-Darter irá equipar os jatos multifuncionais de última geração Gripen NG, adquiridos em 2013 pela FAB da empresa sueca Saab. Assim como a FAB, a Marinha do Brasil é um cliente importante da Mectron. Para a força naval, a empresa desenvolve projetos de um míssil antinavio, batizado de MAN-SUP, e de um torpedo pesado, conhecido no segmento de defesa pela sigla TPNer. Feito em parceria com a alemã Atlas Elektronik, o TPNer é empregado por submarinos contra esquadras. “Nosso forte é engenharia de sistemas. Desenvolvemos e produzimos a eletrônica embarcada dos armamentos, que incluem os sistemas de computação de bordo, os sensores e os atuadores de comando”, explica Wagner Silva. O prazo para fabricação do TPNer é de oito anos. Os orçamentos de todos esses projetos não são divulgados. O objetivo do MAN-SUP é o desenvolvimento de um míssil antinavio nacional para ser lançado de uma embarcação con-
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tra outra, para combates em mar aberto, explica o engenheiro aeronáutico Cesar Augusto Buonomo, de 40 anos, coordenador técnico do programa na Mectron. Ele, que tem mestrado em aerodinâmica, explica que cabe à sua equipe o desenvolvimento do subsistema de guiamento, navegação e controle do míssil. Várias tecnologias utilizadas, como o radar altímetro para medir a distância do míssil até a superfície do mar, o sistema de atuação das superfícies aerodinâmicas de controle para a realização de manobras e os computadores para a realização dos cálculos de trajetória, são soluções desenvolvidas pelos pesquisadores da Mectron. Os demais subsistemas estão sob responsabilidade de outras companhias brasileiras do setor de defesa, entre elas Avibras e Omnisys.
Gravador digital de dados do satélite Cbers-4, que armazena imagens captadas pelas câmeras, foi construído pelos pesquisadores da companhia
fotos léo ramos
mísseis revitalizados
O engenheiro eletrônico Aristóteles de Sousa Carvalho, de 56 anos, lidera a área de radiofrequência do programa MAN-SUP, coordenando quatro pessoas. “Os conhecimentos que adquiri na pós-graduação, na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, foram fundamentais para enfrentar os desafios do desenvolvimento dos subsistemas de radiofrequência do MAN-SUP”, diz. O programa, que tem previsão de conclusão para 2017, deve prover independência à Marinha brasileira no que tange a essa arma. Enquanto isso, a Marinha revitalizou os seus antigos mísseis Exocet, de fabricação francesa, e a Aeronáutica optou por comprar mísseis Harpoon, da Boeing.
Além de mísseis e torpedos de última geração, os engenheiros e técnicos da Mectron também estão envolvidos no projeto de um sistema de comunicação por enlace de dados (data-link) para emprego militar, chamado de Link BR-2. Projetado para a FAB, o sistema vai integrar e processar em tempo real informações entre aeronaves e centros de comando e controle com criptografia de dados, voz e imagens. O projeto, orçado em R$ 250 milhões, está na fase final de desenvolvimento. Outro campo de atuação da Mectron é o setor espacial. A empresa fez parte do consórcio responsável pela construção do Cbers-4, o Satélite Sino-Brasileiro
de Recursos Terrestres, lançado com sucesso do Centro de Lançamentos de Taiwan, na China, em dezembro do ano passado. Couberam aos pesquisadores da companhia o projeto e a fabricação do Gravador Digital de Dados (DDR), equipamento que faz o armazenamento das imagens terrestres captadas pelas câmeras do satélite. O Cbers-4 é dotado de quatro câmeras de alta definição, projetadas para coletar imagens do território brasileiro, especialmente da Amazônia, auxiliando no combate ao desmatamento ilegal e queimadas. Os pesquisadores da Mectron estão envolvidos no desenvolvimento de uma Plataforma Multimissão (PMM) para satélites de baixa altitude do Programa Espacial Brasileiro. A PMM é um arcabouço básico para ser utilizado na construção de diferentes tipos de satélite e a empresa está fabricando dois subsistemas da PMM: o de suprimento de energia, que contempla painéis solares e seus servo-posicionadores, baterias e unidades de condicionamento e distribuição; e o de rastreamento, telemetria e telecomando, que inclui transponders e antenas. Com uma área de 37 mil metros quadrados situada ao lado da Embraer e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as instalações da Mectron incluem uma sala limpa para montagem de componentes críticos, laboratórios eletrônicos, de sistemas aviônicos, de radiofrequência e de comunicação, além de áreas de montagem mecânica, de integração mecatrônica e de ensaios ambientais. Em 2007, a empresa depositou sua única patente, relacionada ao desenvolvimento de uma antena de banda larga do míssil MAR-1. “No mercado de defesa, não é prática trabalhar com registro de patentes”, explica Wagner. Uma dificuldade recorrente enfrentada por outras empresas do setor de defesa também atingiu a Mectron. “Tínhamos ideia de adquirir a antena de um fornecedor norte-americano, mas o Departamento de Defesa dos Estados Unidos impediu a concretização do negócio por se tratar de um componente crítico e não autorizou o Brasil a ter acesso a essa tecnologia”, recorda-se Wagner. “A saída que encontramos foi fazer o desenvolvimento desse componente com o nosso pessoal. Esse é apenas um exemplo de muitas outras situações enfrentadas no nosso dia a dia.” n PESQUISA FAPESP 234 | 75
humanidades comunicação y
Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro escrevem há 60 anos sobre temas científicos, médicos e ambientais – e nem pensam em parar Carlos Fioravanti
O
jornalismo dedicado à cobertura da pesquisa científica em todas as áreas de conhecimento tem suas particularidades, ao mesmo tempo que faz parte do ofício jornalístico em geral. O aniversário de 20 anos da primeira edição do boletim Notícias FAPESP, em agosto de 1995 – transformado em Pesquisa FAPESP na 47ª edição, em outubro de 1999 –, motivou a publicação de uma série de reportagens, da qual esta é a primeira, sobre as origens, o estado da arte e o futuro dessa atividade. As origens mais remotas do chamado jornalismo científico no Brasil remetem aos jornais O Correio Braziliense e O Patriota no início do século XIX e foram tratadas na edição nº 100 de Pesquisa FAPESP (“Primórdios da divulgação científica”), e cientistas que escreveram para jornais no início do século XX são apresentados na versão on-line desta edição. Dois precursores, a seguir perfilados, retratam um passado mais recente: Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro. Ambos, hoje com mais de 60 anos nessa área, começaram a trabalhar como repórteres quando as páginas dos jornais eram montadas com chumbo quente derretido em máquinas chamadas linotipos (ao lado) e seguem em plena atividade.
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AGênCIA ESTADO
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Oficina de linotipia do jornal Estado de S.Paulo : processo artesanal
s mesas de trabalho eram ocupadas quase inteiramente por monumentais máquinas de escrever – os telefones ainda eram raros – quando Júlio Abramczyk, aos 17 anos, começou a trabalhar no jornal paulistano O Tempo, em 1949. Como revisor, apurou a gramática, depois, como repórter, aprendeu a escrever rápido – pelo menos três reportagens por dia. Hoje silenciosas, as redações eram então lugares barulhentos por causa das máquinas de escrever e das conversas entre os jornalistas, que, além de falar alto, em geral fumavam. “Era bom, sempre havia alguém por perto para tirar dúvidas”, contou Doutor Júlio, como é conhecido, aos 82 anos, na sala de sua casa, no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Cardiologista que trabalhou no Hospital Santa Catarina durante 47 anos, até 2013, Abramczyk é um dos precursores do chamado jornalismo científico no Brasil, quando ainda nem existia esse termo, que ele ajudou a implantar, cooperando na criação ou fortalecendo associações e promovendo debates, congressos e cursos para jornalistas. Em 2009 ele completou 50 anos de trabalho contínuo como jornalista escrevendo para a Folha de S.Paulo e nem pensou em parar com sua coluna Plantão médico, publicada aos sábados, que hoje escreve em casa e envia por computador. Todo dia ele passa algumas horas procurando artigos para apresentar em sua coluna de 200 a 300 palavras. Um dos que examinava na tarde do dia 14 de julho tratava dos danos à pESQUISA FAPESP 234 z 77
Boas fontes: Walter Leser (esq.), Abrahão Rotberg (centro), ambos da Unifesp, e Abramczyk em 1962. Abaixo, Abramczyk em 2013
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saúde causados pela prática de skate. Como bom jornalista, ele adora entrar em assuntos inexplorados. “Olhe aqui”, disse ele, abrindo uma pasta com os recortes de reportagens publicadas em 1972 e lendo os títulos: “‘Crianças espancadas’, ‘A preocupação com os velhos’. Acho que apenas entrei nos assuntos antes de virarem moda”. O entusiasmo do aprendiz convive com a maturidade profissional de quem sabe que tem de checar, sempre, qualquer informação e reconhece os próprios limites: “Nunca escrevi como se eu mesmo soubesse. Até hoje escrevo o que o outro sabe. Não sou eu que vou pontificar”. Abramczyk saiu de O Tempo no fim do terceiro ano do colegial (hoje ensino médio) para estudar para as provas de medicina, mas, no segundo ano do curso da Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), voltou ao jornal, dessa vez para a Folha, que procurava um redator médico. O chefe de reportagem, que queria um médico já formado, torceu o nariz ao saber que ele era apenas estudante, mas lhe deu um tempo de experiência. Abramczyk aproveitou para mostrar que era um bom repórter. Várias de suas reportagens ganharam destaque na primeira página. Uma delas tratava da cultura de células do bacilo de Hansen, causador da então chamada lepra, ainda bastante desconhecida e sem tratamento. “Os repórteres eram mais ousados naquela época.” Abramczyk lembrou-se de que a pesquisa sobre o bacilo de Hansen que motivou sua reportagem tinha sido vista inicialmente com indiferença por José Reis, médico e pesquisador do Instituto Biológico, que escrevia desde 1947 na Folha – ele contribuiu para o jornal durante 55 78 z agosto DE 2015
anos, até pouco antes de sua morte, em 2002. Reis exercitara seu talento em escrever de modo simples na revista O Biológico, que publicava artigos dos próprios pesquisadores, sobre suas especialidades, para os produtores rurais (ele era especialista em doenças de aves). Abramczyk começou a se interessar por ciência quando era adolescente, ao ler um livro escrito por Rômulo Argentieri, físico nuclear paulista e prolífico divulgador científico. Argentieri escreveu cerca de 30 livros sobre astronomia e trabalhou como redator de ciência para vários jornais de São Paulo de 1939 a 1967. Outro divulgador de amplo alcance foi o agrônomo carioca Eurico Santos, que escreveu para jornais, criou quatro revistas de agronomia e publicou cerca de 50 livros sobre animais e plantas do Brasil de 1910 até o fim da década de 1960 (ver Pesquisa
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FAPESP no 229). Os especialistas é que escreviam sobre os assuntos mais complicados, mas um colega de Abramczyk na Folha, o jornalista José Hamilton Ribeiro, começava nessa época a escrever sobre ciência e mais tarde fez história com suas reportagens na revista Realidade e no programa Globo Rural. “Tínhamos prazer em noticiar as novidades da ciência”, recorda Abramczyk. “Hoje talvez falte um pouco de joie de vivre [alegria de viver], como diriam os franceses.” Havia, é certo, uma liberdade maior que a de hoje, como na manchete de 9 de março de 1948 do jornal A Noite, já extinto, assim como O Tempo: “Sensacional descoberta de um cientista brasileiro”, ao noticiar a identificação do físico Cesar Lattes de uma nova partícula atômica.
fotos 1 reprodução eduardo cesar 2 duardo Knapp/Folhapress
NA Selva
Contratado na Folha em janeiro de 1960, Abramczyk era o responsável pela seção de medicina e biologia. Para saber das novidades, lia as revistas médicas e ia muito a congressos no Brasil e em outros países. “Olhe só quanto espaço eu tinha”, disse ele, mostrando um recorte de 1972 de uma reportagem sua sobre um congresso de imunologia em Lisboa, que saiu em três colunas de alto a baixo de página do jornal. No início ele estudava durante o dia, chegava no jornal no final da tarde e trabalhava até o início da madrugada, mas às vezes os dois mundos se cruzavam. Foi em uma reunião da Associação Paulista de Medicina que Abramczyk ouviu os colegas médicos falarem de uma pesquisa sobre uma doença transmitida na Amazônia. Ele foi até lá e relatou na edição do dia 9 de fevereiro de 1961: “Os mosquitos são apanhados por uma pessoa que, de braços e pernas descobertas, fica à espera de que os insetos venham picá-la. Antes mesmo de atingir o corpo da isca humana, os mosquitos são apanhados em redomas individuais”. Ele também fez a foto do pesquisador na mata fechada com o vidro na mão, pronto para pegar o mosquito, e com esse trabalho ganhou o Prêmio Governador do Estado em 1961. “Boas fontes são fundamentais”, disse ele, indicando uma foto amarelada de três homens em uma das estantes. O ano é 1962. À esquerda está Walter Leser, professor de medicina preventiva da Unifesp e secretário da Saúde por duas vezes, ao centro está Abrahão Rotberg, professor de dermatologia também na Unifesp, e à direita Abramczyk. “Eram as minhas fontes. Jantei com os dois durante mais de 30 anos, uma vez por mês. E cada um pagava a conta.” Ele também se dispunha a avaliar e fortalecer o jornalismo científico. Em 1974, ao cobrir o 1º Congresso Ibero-americano de Periodismo Científico, realizado em Caracas, ele escreveu sobre
a finalidade do profissional que se dedica a essa área: “Informar sem deformar e quando possível interpretar. Assumir uma posição decidida em benefício da ciência e da cultura”. Depois, ele próprio ajudou a organizar o 4º Congresso Ibero-americano e o 1º Brasileiro de Jornalismo Científico, em 1982, em São Paulo. Seus artigos sobre jornalismo científico constituem um dos blocos de seu livro Médico e repórter, ao lado de outros, sobre saúde pública, doenças do coração, saúde pessoal e doenças de personalidades. Como presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), que ele ajudou a fundar em 1978, Abramczyk tentou criar núcleos de jornalismo nos estados. Nem tudo saiu como ele esperava. Poucos núcleos se formaram de fato e avançaram. Para falar sobre jornalismo científico em uma das reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ele convidou um colega da Folha, Claudio Abramo, que, no entanto, disse que o jornalismo científico não deveria existir e que jornalista não deveria ser especializado. Uma de suas ideias era promover estágios de estudantes de jornalismo em laboratórios de pesquisa, de modo que os pesquisadores perdessem o medo de falar com jornalistas e os futuros jornalistas deixassem de ver os cientistas como inacessíveis. De certo modo, essa ideia tomou forma nos cursos promovidos pelo Laboratório de Jornalismo (LabJor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que reúne os dois grupos, pesquisadores e jornalistas, para debaterem problemas comuns. n
E
m sua fase de maior vitalidade, de 1966 a 1969, a revista Realidade conquistou oito prêmios Esso, o mais importante do jornalismo brasileiro, em reconhecimento a reportagens tão bem-feitas que ainda hoje podem ser lidas com gosto. Dos oito prêmios, quatro foram para reportagens de ciência. Das quatro, três foram escritas por José Hamilton Ribeiro, que diz ter sentido o prazer de ser repórter aos 9 ou 10 anos de idade ao saber que um avião monomotor tinha caído perto de sua cidade, Santa Rosa do Viterbo, perto de Ribeirão Preto, correr para lá com outros meninos, ver a cena, falar com o piloto e depois relatar o acontecimento para os familiares e vizinhos que o aguardavam em sua pESQUISA FAPESP 234 z 79
casa. Aos 80, completados neste mês de agosto, José Hamilton, como é chamado, diz que agora vive “um ritmo muito manso”. Não precisa mais seguir a rotina acelerada de produção do programa Globo Rural – onde começou há 33 anos, imaginando que passaria lá apenas alguns meses, antes de voltar para o Globo Repórter, ambos da TV Globo –, mas ainda viaja e faz reportagens. No final de julho ele estava trabalhando em duas, uma sobre São Gonçalo, um santo português pouco conhecido no Brasil, e outra sobre uma nova raça de boi criada no Pantanal. José Hamilton Ribeiro começou a trabalhar como jornalista em 1955 no jornal O Tempo e no ano seguinte se mudou para a Folha de S.Paulo. Era repórter da editoria de geral, cobrindo o dia a dia e às vezes ciência. “Naquela época havia um preconceito de que os jornalistas comuns eram mal preparados e não conseguiriam entender e escrever sobre os assuntos de ciência”, conta ele, ao repassar sua trajetória, no escritório de sua casa, no bairro da Aclimação, em São Paulo. “Do outro lado, o cientista não acreditava que um repórter geralmente novo seria capaz de entender um fenômeno com tal profundidade que pudesse escrever sobre aquilo para as pessoas comuns.” Por esse motivo, havia os especialistas – em agronomia, medicina ou engenharia – que escreviam sobre suas respectivas áreas nos jornais. Um deles, na Folha, era o médico carioca José Reis, que um dia aconselhou o jovem repórter a ler as revistas especializadas para se preparar melhor para as reportagens. Sua prática nessa área intensificou-se depois que ele saiu da Folha e, após uma temporada na revista Quatro Rodas – nessa época ele cursou e concluiu Direito –, entrou para a Realidade em Mergulho na reportagem: José Hamilton no Pantanal do rio Paraguai em 2006
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1966. Ali ele apurou o olhar e a habilidade de descrever pessoas, lugares e situações. Nos primeiros anos, até ser bloqueada pela censura à imprensa, a revista publicava reportagens longas, muito bem escritas, sobre temas surpreendentes, como a vida difícil, cercada de preconceitos, das mulheres desquitadas. “A chave da história da Realidade, em todas as áreas, era o tratamento de texto. Em jornal o chamado copidesque corrigia e às vezes reescrevia o texto do repórter”, disse ele. “Na Realidade, o editor de texto trabalhava o texto com o repórter, levantava problemas, dizia ‘o começo não está bom’, ‘está acabando por morte súbita’ e pedia para o repórter construir melhor os personagens e as situações, para a história deslizar melhor. Porque, em um texto longo, se eu não entendo alguma coisa, deixo de ler o resto.” Aos poucos ele e os outros repórteres que escreviam sobre ciência, como Marcos de Castro, que ganhou um Prêmio Esso com uma reportagem sobre ciência na fase inicial da revista, aperfeiçoaram o método de lidar com assuntos complicados e com os cientistas. “Quando me cabe fazer reportagem sobre medicina, engenharia ou agronomia, tenho uma fonte básica, de preferência mais de uma, e peço ao entrevistado principal uma leitura do copião, a primeira versão, antes da edição do texto, para corrigir qualquer erro técnico. Não era para a fonte avaliar a estrutura, se o texto estava bonito ou feio, mas apenas dizer ‘esse conceito não é assim, vamos explicar melhor’.” Na Realidade, essa prática, que depois se tornou habitual, nasceu com uma reportagem sobre o primeiro transplante de rim no Brasil, realizado em São Paulo. Os médicos tinham evitado a
Em Portugal: José Hamilton percorre os campos para mostrar os usos da casca da árvore sobreiro, em 2013
imprensa com medo do sensacionalismo, mas concordaram em atender a equipe da revista. “Foi uma negociação, um pacto de confiança. Um assistente do médico leria o material bruto, para evitar qualquer erro. Fora isso, o trabalho seguia o ritmo de sempre, com as mesmas preocupações da edição de texto.” A reportagem, publicada em dezembro de 1966, começa com uma descrição do homem que ganharia um rim – “Valter Mendes de Oliveira, 41 anos, três filhos, sócio de uma torrefação em São Paulo, é bastante cuidadoso com a saúde. Ele já andou bem ruim e agora tem suas cautelas. Logo cedo, na hora do café, toma sua pílula diária. É um remédio caro, que vem do exterior e que só seis pessoas no Brasil usam.” – e só depois apresenta os médicos.
fotos reprodução eduardo cesar
Viver, Antes de escrever
A construção da reportagem, que rendeu a José Hamilton o primeiro de seus sete Esso, constitui um dos capítulos do livro Jornalismo científico: teoria e prática, lançado em 2014 em coautoria com Jose Marques de Melo, professor da Universidade de São Paulo e da Universidade Metodista. Sua preferida, porém, é uma que apresenta Chico Heráclio, um autêntico coronel do Nordeste, foi publicada em novembro de 1966 e republicada no livro recém-lançado O jornalista mais premiado do Brasil, resultado de 10 anos de pesquisas do jornalista Arnon Gomes. Dos tempos da Realidade, José Hamilton lembra de outra lição importante, o que chamou de vivência. “Nenhum repórter escrevia sem ter um mínimo de conhecimento prático sobre o assunto. Se fosse escrever sobre uma colônia de pescadores, teria de passar alguns dias lá, conviver com os pescadores, comer a mesma comida que eles. Quando fosse escrever, escrevia sobre o que conhecia, não era só de ouvir dizer e só o que outras pessoas observavam.” Ele sabe que hoje às vezes é preciso dar uma notícia com base apenas em um
artigo científico, “um voo de pássaro”, como ele chamou, mas, ponderou, pode-se também “falar com o autor, ver o laboratório, ver com quem interage e as condições em que trabalha. Depende do que se quer fazer”. Enquanto estava na Realidade, José Hamilton deu aulas de jornalismo na Faculdade Casper Líbero (onde estudou, mas não terminou o curso), na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e nas Faculdades Objetivo. Uma das aulas foi em um anfiteatro, com uma porta de cada lado da mesa do professor, em frente ao auditório com os alunos sentados. De repente uma mulher entrou gritando: “Socorro! Ele quer me matar!”, e em seguida, pela outra porta, entrou um homem com o que parecia ser uma faca na mão, também gritando: “Vou te matar!”. Eram apenas dois atores amadores, que saíram logo da cena. O professor pediu para os alunos escreverem sobre o que tinham visto. Na aula seguinte, supreendeu a todos mostrando que a cor da roupa do homem e da mulher variava de um relato para outro, e o homem, em vez do canivete que de fato segurava, teria um punhal ou até mesmo uma pequena espada. “Se vocês, futuros jornalistas, em uma condição privilegiada, sentados e com uma visão ampla da cena, viram com tantas distorções, imaginem a pessoa comum”, ele comentou. “Vocês não podem confiar demais apenas em sua observação.” Ainda preocupado com a formação de profissionais nesse campo, José Hamilton foi presidente da Associação de Jornalismo Científico (ABJC) de 1999 a 2001, em uma época de perda contínua de sócios, e ajudou a organizar um congresso em Florianópolis. Depois de alguns anos dirigindo jornais de Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Campinas, José Hamilton voltou a São Paulo no início dos anos 1980 para trabalhar no Globo Repórter – sua primeira reportagem foi sobre os garimpeiros de Serra Pelada, então o maior garimpo a céu aberto do mundo. Em caráter temporário, enquanto a equipe do Globo Repórter se reorganizava, foi para o Globo Rural e não saiu mais. Sabendo ouvir e contar, mostrou os cupinzeiros luminosos de Goiás, ao lado do químico da USP Etelvino Bechara, acompanhou pesquisadores pelo Pantanal, correu o Brasil e conquistou o respeito dos entrevistados e do público a ponto de ser homenageado tornando-se parte do nome científico do antúrio-mirim (Anthurium hamiltonii nadruz), descoberto em 2009 em uma reserva de Mata Atlântica do Espírito Santo. n
Livros ABRAMCZYK, J. Médico e repórter. São Paulo: Publifolha, 2012. GOMES, A. O Repórter mais premiado do Brasil. Araçatuba: Editora Eko, 2015. MELO, J. M. e RIBEIRO, J. H. Jornalismo científico: teoria e prática. São Paulo: Intercom, 2014.
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HISTÓRIA y
Privilégios
ancestrais Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil
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econstituir o funcionamento da Justiça no Brasil colonial é, ao mesmo tempo, mapear as estruturas de poder do período, reconhecer arraigados maus costumes e observar a formação de uma elite que se manteria dominante até as primeiras décadas do século XX. Esse recorte define o livro Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709-1822, de Adelto Gonçalves, lançado em julho pela Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo. Verificar e descrever as atribuições dos membros de uma rede de poder que ocupava cargos de ouvidores, juízes de fora, provedores, corregedores, juízes ordinários e vereadores foi um dos objetivos primordiais de Gonçalves, que procurou seguir uma tendência recente na historiografia brasileira, “que procura privilegiar as pesquisas sobre as formas de governar”. O autor, no entanto, não é da área de história e adquiriu familiaridade com o período que estudou pela porta da literatura. Jornalista aposentado, Gonçalves é doutor em Letras – Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e 82 z agosto DE 2015
até 2014 lecionou língua portuguesa no curso de direito da Universidade Paulista (Unip), em Santos, que financiou sua pesquisa sobre a Justiça colonial em São Paulo. Seu interesse pelo assunto foi despertado por suas pesquisas de doutorado sobre o poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e pós-doutorado sobre o poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), esta realizada com apoio da FAPESP. Gonzaga foi ouvidor em Vila Rica e o pai de Bocage fez carreira no Judiciário em Portugal até ser acusado de desvios e cair em desgraça política. As suas pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa – complementadas no acervo do Arquivo do Estado de São Paulo –, permitiram estabelecer as atribuições dos altos funcionários do estado, começando pela relação completa dos governadores e capitães-generais (cargos concomitantes) no período estudado, corrigindo erros de listas anteriores. “Fui levantando a nobreza da terra, as pessoas que mandavam e recorriam à Justiça para conseguir privilégios, como car-
Charge de Manuel de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
acervo fundação biblioteca nacional
Márcio Ferrari
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gos e títulos”, diz o pesquisador. Eram os chamados “homens bons”, “que usufruíam tanto quanto podiam de suas relações com os representantes do poder”. Dessa casta saíam os camaristas ou vereadores – membros das câmaras municipais –, que, até fins do século XVII, acumulavam funções administrativas com o exercício da Justiça ordinária. Em geral, as vilas, tanto de Portugal quanto das colônias, mantinham apenas um juiz ordinário e um juiz de órfãos. No Brasil os casos criminais ficavam a cargo dos primeiros, que se baseavam, para julgá-los, apenas nos usos e costumes. Muitas vezes as câmaras nem sequer tinham sede apropriada. “Os julgamentos eram feitos embaixo de árvores por autoridades que não tinham formação em direito nem a quem recorrer, porque raramente havia nas colônias alguém formado em leis”, diz Gonçalves. Essas autoridades eram chamadas de “juízes pedâneos” porque julgavam de pé. 84 z agosto DE 2015
Já havia nessa época a figura do ouvidor-geral, criada por um regimento de 1628 que revogava a atribuição concedida aos titulares das capitanias hereditárias (capitães donatários) a fazer justiça nas terras de seu domínio. O envio regular de ouvidores e juízes de fora por Portugal, no entanto, só se deu no século XVIII. “Eram, pela primeira vez, especialistas em direito vindos da Universidade de Coimbra e tinham a missão de disciplinar e uniformizar a execução da Justiça”, diz Gonçalves. Como medida moralizante, os ouvidores não podiam se casar com mulheres residentes no Brasil sem autorização da Coroa, para não se envolver com as famílias poderosas e seus interesses econômicos. “Mas acabavam se envolvendo mesmo assim”, diz o pesquisador. “E, com o tempo, as famílias abastadas começaram a mandar seus filhos estudar em Coimbra e voltar aptos a ocuparem o cargo de juiz de fora.”
Reproduções de documentos relativos a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Na prática, apenas os pobres eram condenados pela Justiça colonial. Segundo um regimento de 1669, o ouvidor tinha autoridade para executar a pena de morte, sem apelação, para os crimes cometidos por escravos e índios. Mas, se um juiz ou ouvidor pretendesse punir um grande proprietário de terra, estava correndo risco. “Os que tinham prestígio ou haviam prestado favores à Coroa eram intocáveis.” O ouvidor não podia ser preso ou suspenso por nenhuma autoridade local, nem mesmo o capitão-general. Suas decisões não se baseavam propriamente em leis formalizadas. Somente com o Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, de 1669, e o Regimento dos ouvidores de São Paulo, de 1770, surgiram referências explícitas para aplicação geral de princí-
fotos Reprodução
pios. Foi também com esses decretos que o ouvidor-geral passou a ter o cargo civil mais alto das possessões portuguesas de ultramar. As apelações tinham duas instâncias, o Tribunal de Relação da Bahia e a Casa da Suplicação, em Lisboa, mas raramente os processos passavam da instância primária. Os ouvidores tinham enorme poder econômico em mãos, Na prática, apenas uma vez que cabia a pobres eram eles a fiscalização do recolhimento de tricondenados pela butos e outras fontes de receita. Desde o séJustiça colonial. culo anterior, a maior parte dos ingressos fiO ouvidor tinha nanceiros de Portugal autoridade vinha das colônias ou das alfândegas. Tampara executar a pena bém cabia ao ouvidor fiscalizar os gastos e a de morte para atuação de vereadores e juízes ordinários – escravos e índios embora não pudesse se imiscuir nas funções da Câmara, que, a essa altura, tinha suas atribuições autô- foram identificados como desbravadonomas reduzidas à execução de pequenas res, os lavradores que ocupassem terras obras. O poder das Câmaras, ocupado por eram “invasores” ou “intrusos”. “Como filhos e netos das primeiras elites, mante- mostram os documentos, os juízes quase ve-se de modo mais ou menos simbólico. sempre usaram o direito para interpretar “Eram ocupados por aqueles potentados cartas de doação, revogação de sesmaque viriam décadas depois a ser chamados rias, sucessões e desmembramentos de de ‘coronéis’”, diz Gonçalves. terras de acordo com os interesses dos O poder nas mãos dos prepostos da poderosos locais”, diz o pesquisador. Coroa era tal que, para obter e manter privilégios e recursos indevidos, jogavam Justiça Eclesiástica com a possibilidade de estimular a se- Outro aspecto da Justiça em São Paulo cessão da Colônia. “Portugal era, a rigor, no mesmo período histórico é tema de um país pobre nessa época”, diz Gonçal- um projeto de pesquisa em andamento ves. “Não tinha Exército ou outros meios no Departamento de Letras Clássicas e para reprimir rebeliões pela força.” Foi Vernáculas da Faculdade de Filosofia assim que proliferaram as figuras dos Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da “grossos devedores”, autoridades locais USP. Um grupo de pesquisadores coorque desviavam tributos até que a Coroa, denado pelo professor Marcelo Módopara recuperar essa “dívida”, entrava em lo está às voltas com documentos que acordo com vistas a um ressarcimento registram processos relativos à suposta parcial. Segundo Gonçalves, “a questão prática de feitiçaria. A pesquisa intitufundamental residia na própria fragilida- lada Bruxas paulistas: edição filológica de do reino, que, para sobreviver, sempre de documentação sobre feitiçaria conpermitia brechas para ações praticadas siste no estudo e na transcrição dos 12 sob a proteção do próprio Estado”. processos desse tipo abertos entre 1739 A própria narrativa histórica domi- e 1771 pela Justiça eclesiástica, braço do nante até há poucas décadas traz sinais Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) no desse modelo – enquanto os posseiros Brasil, depositados no Arquivo da Cúria ricos e, até certo ponto, aliados da Coroa Metropolitana de São Paulo.
A Justiça eclesiástica corria paralelamente à Justiça comum, que, no entanto, acatava as decisões da primeira, uma vez que o Estado assumia para si a fé católica. Promotores e juízes eclesiásticos eram membros da Igreja que avaliavam denúncias, procediam às investigações e proferiam a sentença. A execução cabia à Justiça comum. “Eram procedimentos parecidos com o atual inquérito policial”, explica a doutoranda em Letras Nathalia Reis Fernandes, graduada em Letras e Direito, integrante do grupo de pesquisa. Entre as penas possíveis estavam a morte e a perda de bens – nesses casos, o processo era enviado para a sede do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Foi o que aconteceu com dois dos casos estudados, mas não é possível, pela documentação acessível no Brasil, saber se eles resultaram em execuções. Os réus eram quase sempre negros e muitas das acusações estavam ligadas a práticas das religiões de origem africana. Há desde processos supostamente relacionados a mortes, como a da escrava Páscoa, acusada de “uso de magia” para causar pelo menos quatro mortes numa mesma família, até casos banais, como o do escravo Pascoal José de Moura (um dos poucos réus identificados por nome e sobrenome nos documentos), processado por confeccionar patuás. “Há também o caso de um grupo de homens negros que foram presos por participar de um batuque em que havia uma cabra e um casco de cágado”, conta Módolo. O estudo coordenado por Módolo está na fase do estudo filológico e linguístico, começando pela transcrição “semidiplomática” dos documentos – aquela que procura manter a ortografia e a sintaxe originais. O trabalho é dificultado por lacunas causadas pela deterioração do material, caligrafia particularmente complicada e ortografia desafiadora numa época em que as pessoas letradas eram minoria e não havia padronização rígida da língua escrita. Uma segunda fase deverá se debruçar sobre os reflexos historiográficos dos processos relatados nos documentos. n > Leia resenha “Ações do Santo Ofício no Brasil” na página 86.
Livro Gonçalves, Adelto. Direito e Justiça em terras d’El Rei na São Paulo colonial 1709-1822. Imprensa Oficial. São Paulo, 2015
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resenhas
Ações do Santo Ofício no Brasil Bruno Feitler
H Igreja e Inquisição no Brasil Aldair Carlos Rodrigues Alameda 406 páginas | R$ 60
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á não muito tempo, a menção da Inqui sição no título de um livro, mesmo acadêmico, remetia inapelavelmente às fogueiras ou em todo caso à perseguição de hereges e à repressão de minorias. A historiografia brasileira, a partir dos anos 1960, produziu então textos importantes para um melhor entendimento das mentalidades e dos matizes da religiosidade dos moradores da América portuguesa. Há cerca de duas décadas começaram a surgir estudos que, impulsionados por esses primeiros, se interessaram cada vez mais pela estrutura que permitiu com que essas perseguições ocorressem. De lá para cá, o conhecimento das estruturas e do funcionamento da Inquisição portuguesa aprofundou-se, graças à influência da produção italiana e portuguesa. Pelo que toca esta última, foram fundamentais os trabalhos de José Pedro Paiva e de Fernanda Olival sobre as lógicas institucionais e sociais do Antigo Regime português e sobre a influência do Santo Ofício sobre a sociedade. O presente livro de Aldair Carlos Rodrigues, Igreja e Inquisição no Brasil, origina-se dessas várias correntes historiográficas, mas oferece um conhecimento mais detalhado e profundo de algumas das questões tratadas pela produção anterior sobre a Inquisição (com a qual poderia sem dúvida ter dialogado um pouco mais do que fez). A obra é, assim, uma grande e durável contribuição para a área, além de explorar e esclarecer pontos importantes e inéditos da história das instituições religiosas do Brasil Colônia. Quem eram os agentes da Inquisição no Brasil? Quais as ligações entre Inquisição e clero local? Qual o seu impacto social? Defendido como tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) em 2012 e agraciado com o Prêmio Capes de História e com o Grande Prêmio Capes de Tese Darcy Ribeiro, ambos em 2013, o trabalho de Rodrigues busca entender a Inquisição a partir de uma ótica relacional. Ou seja, não se pode responder às questões acima sem inserir o Santo Ofício de modo pleno no contexto eclesiástico e social locais. Partindo desse postulado metodológico, foi-lhe necessário conhecer em detalhe o sistema de provisões e as carreiras do clero secular da América
portuguesa, usando como base principal de análise o centro-sul da colônia. A partir de um conhecimento profundo da documentação, Rodrigues mostra como esses cargos entravam claramente na economia da mercê (a retribuição por serviços por meio de honras e/ou ofícios), tanto régia quanto episcopal, e como eram essenciais para a reprodução das elites locais, que rapidamente os monopolizaram, servindo também às famílias em busca de ascensão social. Isso não impediu que a Coroa continuamente afirmasse, mais ainda no final do período estudado, que o duplo padroado sob o qual o clero do Brasil existia (o régio e o da Ordem de Cristo) dava-lhe primazia na escolha e nomeação dos benefícios locais, podendo assim passar por cima das escolhas dos bispos. Já as nomeações ao cargo de comissário inquisitorial eram um elemento a mais de distinção para essa elite, confirmando sua limpeza de sangue. Como afirma Rodrigues, tanto a Igreja quanto a Inquisição dispunham, desse modo, “de instrumentos eficazes de intervenção no campo social, gerindo recursos simbólicos que exerciam forte impacto na estruturação e reiteração das hierarquias sociais”. Apesar disso, a intervenção de Lisboa na escolha dos cônegos, dignidades e outros beneficiados foi pequena. No que concerne ao funcionamento e aos meios de ação da Inquisição, uma das conclusões mais importantes do trabalho é de que a formação da rede de comissários não significou uma autonomia do Santo Ofício em relação às estruturas da Igreja. Muito pelo contrário, fica claro que os inquisidores se corresponderam preferencialmente com um pequeno grupo de comissários que não por acaso faziam parte da cúspide da hierarquia eclesiástica local. Não se tratava, como lembra Rodrigues, de uma exclusividade do caso brasileiro, mas, tendo em vista a falta de um tribunal local da Inquisição, essas conexões sem dúvida hipertrofiavam-se. Fica ao leitor, com esse importante trabalho, a descoberta dos detalhes dessas carreiras epíscopo-inquisitoriais e dos meios de ação do tribunal do Santo Ofício no Brasil. Bruno Feitler é professor de História Moderna na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Um panorama dos avanços da física Ricardo Aguiar
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fotos eduardo cesar
História da física: artigos, ensaios e resenhas Cássio Leite Vieira CBPF 198 páginas Disponível em http://goo.gl/xGle79, ou baixe o livro pelo QR-code
xplicar para um público amplo como algumas das maiores descobertas da física foram feitas não é tarefa simples. Em História da física: artigos, ensaios e resenhas, editado e publicado pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), o jornalista Cássio Leite Vieira faz justamente isso. A obra traz uma coletânea de reportagens escritas pelo autor ao longo das últimas décadas. São textos que fornecem um panorama dos grandes avanços científicos da física nos séculos XIX e XX. Dividido em três partes, o livro aborda primeiro a física internacional, depois a física no Brasil e, por último, apresenta resenhas de livros sobre grandes cientistas da área. Os textos são escritos em linguagem simples e são acessíveis mesmo a quem não possui conhecimentos de física. Além de contar como a física evoluiu e a história das grandes descobertas, Vieira fala sobre a vida dos cientistas por trás delas e fornece o contexto histórico de cada avanço. Assim, o leitor pode compreender melhor não apenas como uma nova teoria pode mudar a forma de se enxergar a física, mas também como as ideologias de uma época influenciaram a mente de seus criadores. Algumas das teorias de John Bell sobre mecânica quântica, consideradas filosóficas, ganharam força com o movimento hippie dos Estados Unidos do fim da década de 1960. A frase do físico norte-americano John Clauser ilustra a relação entre história e ciência: ‘‘A guerra do Vietnã dominava os pensamentos políticos da minha geração. Sendo um jovem físico naquele período de pensamento revolucionário, eu naturalmente queria ‘chacoalhar o mundo’”. Esses bastidores da ciência continuam com histórias sobre relações e debates entre pesquisadores. Exemplo disso são as discussões entre o físico alemão Albert Einstein e o dinamarquês Niels Bohr, classificadas por alguns como “o maior debate filosófico do século passado”. Einstein buscou provar que a mecânica quântica, teoria defendida por Bohr para explicar fenômenos em escala microscópica, estava equivocada por indicar apenas as probabilidades de um fenômeno ocorrer, e não a “certeza”. Einstein também criticava o fato de que, segundo a teoria, depois de duas partículas interagirem, surgiria uma “comunicação instantânea” entre elas. Em algumas situações, essa co-
municação teria que ocorrer em uma velocidade superior à da luz, o que ia contra as ideias de Einstein. Entretanto, esse fenômeno se demonstrou real e ficou conhecido como emaranhamento. Outro atrativo do livro de Vieira é discutir as implicações e as aplicações práticas de descobertas da física teórica. O emaranhamento, por exemplo, pode ser utilizado no futuro para criptografar dados, aumentando a segurança e a privacidade de informações. Mesmo a descoberta do bóson de Higgs, que o autor reconhece como não tendo nenhum impacto direto em nossas vidas, teve consequências indiretas – a tecnologia necessária para fazer a sua descoberta levou à criação do sistema World Wide Web, uma das linguagens usadas na internet. A obra traz também a história dos principais nomes da física brasileira. Desde a geração de cientistas que surgiu em nosso país na primeira metade do século XIX, como Mario Schenberg, Joaquim Costa Ribeiro, Marcelo Damy de Souza Santos e Sonja Ashauer, até a geração atual, incluindo o matemático Artur Ávila, laureado em 2014 com a Medalha Fields, o “Nobel” da matemática. Entre diversas histórias, o autor narra como Cesar Lattes, talvez o mais conhecido dos físicos brasileiros, esteve envolvido na descoberta e na primeira produção artificial de partículas subatômicas chamadas mésons-pi – responsáveis por mediar a força que mantém prótons e nêutrons unidos no núcleo de um átomo – e como seu papel foi fundamental para o desenvolvimento da física experimental brasileira. Demais nomes, como o de José Leite Lopes e Jayme Tiomno, também são lembrados e discutidos com maior aprofundamento por Vieira. Além disso, histórias menos conhecidas da física brasileira são contadas. Por exemplo, a de como uma comunidade de físicos japoneses, no Brasil, ajudou o desenvolvimento da física de partículas no Japão após a Segunda Guerra Mundial. História da física: artigos, ensaios e resenhas está disponível gratuitamente e pode ser baixado pela internet. Boa notícia para todos os interessados em aprender mais sobre física. Ricardo Aguiar é biólogo com especialização em Divulgação Científica pelo Labjor/Unicamp.
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memória
Na trilha de “A região torna-se cada vez mais montanhosa. O caminho é margeado por mata virgem muito cerrada; em alguns lugares torna-se muito duro e difícil vencê-lo” Saint-Hilaire, 25 de abril de 1822
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Botânicos veem perda de biodiversidade, mas também lugares preservados, ao refazerem expedição de 1822 Carlos Fioravanti (Texto) e Eduardo Cesar (fotos), de Bananal
Saint-Hilaire
ilustração pindamonhangaba, c. 1827, jean-baptiste debret foto eduardo cesar
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omerciante em Bananal, Vilmar da Silva estranhou ao passar com seu carro e ver um cinquentão grisalho com jeito de estrangeiro trepado em um barranco, segurando-se em um arbusto, na entrada de seu sítio, ao lado da rodovia dos tropeiros, antiga estrada Rio-São Paulo. Logo a tensão se desfez. O botânico francês Marc Pignal, do Museu Nacional de História Natural, de Paris, tinha subido no barranco apenas para coletar uma amostra de planta que havia lhe interessado. Eram 9 horas da manhã de 9 de junho de 2015, primeiro dia da expedição que refez o trecho paulista de uma viagem do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire à região em março e abril de 1822.
Durante cinco dias, quatro botânicos observaram lugares bastante modificados e outros preservados desde a região de Bananal, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, até Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, quando comparados com os registros de Saint-Hilaire, publicados no livro Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Em muitos casos as mudanças eram grandes, mas nem Saint-Hilaire nem os botânicos da expedição de junho cederam à nostalgia. Ainda que fascinado pela flora tropical, o naturalista francês previa que as florestas poderiam desaparecer para ceder lugar ao progresso e à civilização. “Ele pensava em
As marcas do tempo: ao lado, matas e serras de Pindamonhangaba em 1827. Acima, eucaliptos e morro erodido nos arredores de Bananal em 2015 pESQUISA FAPESP 234 z 89
Em campo: Gaglioti coleta ramos de uma árvore (esquerda); prensagem das amostras; Pignal, no barranco, e Jeanson (ao lado); e Gaglioti e Jeanson colhendo plantas à beira de um lago (acima)
alternativas de desenvolvimento para o Brasil, com base nos ideais da Revolução Francesa, e tinha uma visão utilitarista do espaço”, disse Sérgio Romaniuc Neto, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo e coordenador da expedição. Financiada pelo instituto e pelo governo francês, a viagem integra um plano de resgate do trabalho de Saint-Hilaire no Brasil, coordenado por Romaniuc e Pignal. Romaniuc conheceu os cadernos de campo e a coleção de plantas brasileiras de Saint-Hilaire no Museu de História Natural de Paris, onde fez o doutorado, de 1996 a 1999. Para repatriar as imagens desse material, ele formalizou um acordo de cooperação entre o museu, o Instituto de Botânica e o Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), de Campinas, e foi um dos coordenadores da montagem de um herbário virtual (hvsh. cria.org.br), com os cadernos e cerca de 9 mil registros de plantas coletadas por Saint-Hilaire (ver Pesquisa FAPESP nº 229). Quando o herbário virtual entrou em operação, em 2009, Romaniuc e Pignal, coordenador dos acervos virtuais do museu, começaram a planejar as viagens para refazer os trajetos do naturalista francês. Esta foi a primeira. A próxima está prevista para outubro, partindo de Franca, norte paulista, até Itapeva, ao sul. Pouco antes de chegar à entrada do sítio Joana D’Arc, no início do trabalho de campo, Romaniuc parou ao lado da ro90 z Agosto DE 2015
Espalhadas pelas margens da estrada e das matas havia muitas flores amarelas do melão-de-são-caetano (Momordica charantia), singelas, mas desimportantes para os botânicos, “um sinal da globalização das plantas”, definiu Jeanson. A mata que examinavam ocupou a área de um hoje extinto cafezal, informou Silva, o dono do sítio. Segundo ele, a mata tem pelo menos 60 anos, pois já existia na década de 1950, quando sua família comprou as terras. “O que havia continua preservado”, ele acrescentou. Diversidade
dovia para examinar a paisagem. “É uma mata bonita, mas não é mais primária”, explicou, apontando para um dos blocos de árvores em meio às pastagens e áreas de eucaliptos e bambus. “Não tem mais árvores de grande porte. Tem guapuruvu, uma árvore de porte, mas que também faz parte da vegetação secundária, porque cresce rápido e morre rápido.” “Parece que não existe mais nenhuma espécie nativa”, disse Pignal ao descer do barranco. “Talvez esta não seja introduzida”, comentou Marc Jeanson, coordenador do herbário nacional francês, mantido no museu de Paris, colhendo um ramo de um arbusto do gênero Mimosa.
Antes de seguir para a cidade, Silva caminhou até um sítio vizinho e mostrou um rio transformado em córrego, que passava sob a rodovia, quase todo coberto pelo capim braquiária, espécie exótica adotada como alimento para o gado por causa do baixo custo. “É o rio Carioca, tinha peixe, hoje não tem mais nada.” Nesse dia e no seguinte, Romaniuc viu rios que Saint-Hilaire descrevia como generosos transformados em córregos tímidos cobertos pela terra que desce dos morros, mais suscetíveis à erosão por causa das pastagens. Em 25 de abril de 1822, ao se aproximar da então aldeia de Bananal, vindo de Minas Gerais em direção ao Rio, ansioso por voltar a Paris porque soubera que a mãe estava doente, Saint-Hilaire anotou em seu diário: “A região torna-se
PASSA QUATRO
SP
RJ
GARGANTA DO EMBAÚ 10 de junho de 2015
Rodovia dos Tropeiros
CRUZEIRO AREIAS
MG
Visão histórica
LORENA
SÃO JOSÉ DO BARREIRO Bananal Saída 9 de junho de 2015
APARECIDA
RJ
SP Rodovia Dutra
Botânicos paulistas e franceses refazem expedição de 1822 a partir de Bananal
Jacareí Guararema Poá
São paulo
Mogi das Cruzes 11 de junho de 2015
Chegada 12 de junho de 2015
mapa ana paula campos ilustração sandro castelli
CACHOEIRA PAULISTA
cada vez mais montanhosa. O caminho é margeado por mata virgem muito cerrada”. Quase 200 anos depois, os botânicos verificaram que as montanhas evidentemente continuam e as matas mais antigas escassearam, principalmente às margens das estradas. “Perdemos biodiversidade por causa do avanço descontrolado da agropecuária, que deixou de lado as preocupações com o equilíbrio do ambiente”, reconheceu Romaniuc no final da manhã do primeiro dia. “Não podemos imaginar Saint-Hilaire no tempo zero”, observou Pignal, que viaja ao Brasil desde 1993 e na semana anterior estava em Salvador. “Quando ele andou por aqui, já havia desmatamento, cana e pasto.” Ao chegar à vila de Areias, hoje uma cidade com 4 mil habitantes, Saint-Hilaire notou a diversidade da paisagem: “Esta alternativa de cafezais e matas virgens, roças de milho, capoeiras, vales e montanhas, esses ranchos, essas vendas, essas pequenas habitações rodeadas das choças dos negros e as caravanas que vão e vêm, dão aos aspectos da região grande variedade”. Saint-Hilaire chegou ao Rio de Janeiro em 1816 acompanhando o embaixador francês e, antes da viagem a essa região, já tinha viajado pelo Rio, Minas Gerais, norte e sul de São Paulo, Mato Grosso, Espírito Santo e pelos estados do Sul, além de Uruguai, Argentina e Paraguai. Nessa época outros europeus percorriam
o Brasil com suas próprias expedições. O botânico Carl Friedrich von Martius e o zoólogo Johann von Spix, ambos alemães, exploraram uma vasta área, de São Paulo ao Amazonas, de 1817 a 1820. Pouco depois, de 1822 a 1829, o barão russo-alemão Georg Heinrich von Langsdorff , com uma equipe de 39 pessoas, incluindo botânico, médico, astrônomo e artistas, percorreu vários estados. Saint-Hilaire andou pelo interior de Minas com Langsdorff e depois escreveu: “Na companhia de Langsdorff, o homem mais ativo e mais infatigável que jamais conheci em minha vida, aprendi a viajar sem perder um só instante, a me condenar a todas as privações, e a sofrer alegremente todos os gêneros de incômodos”. Viajando com uma equipe de apenas sete auxiliares, o naturalista francês notou a expansão da cultura do café na região. Sobre Bananal, então com uma única rua, ele registrou: “É provável que adquira logo importância, pois se acha no meio de uma região onde se cultiva muito café e cujos habitantes, por conseguinte, possuem rendas consideráveis”. Com os cafezais, que ocuparam o espaço das florestas, Bananal e as cidades vizinhas foram ricas durante algumas décadas, depois encolheram, quando os cafezais ocuparam outras áreas férteis, e hoje vivem uma vida modesta, à base do turismo. Como disse uma moradora de Bananal, os mais novos saem para
ROTA ORIGINAL Em 1822 Saint-Hilaire veio de Minas e passou pelas vilas do Vale do Paraíba, Mogi das Cruzes e São Paulo antes de retornar ao Rio de Janeiro pela rodovia dos Tropeiros, passando por Bananal
estudar, os mais velhos para trabalhar e algumas mulheres ainda ficam para dar aulas às crianças. Dos tempos do café, restaram algumas construções históricas (ver Pesquisa FAPESP nº 233) e raras florestas, uma parte delas protegida pelo Parque Nacional da Serra da Bocaina. Uma lobeira grande
O botânico André Luiz Gaglioti, que estuda alguns grupos de plantas da coleção de Saint-Hilaire em seu pós-doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), aproveitou uma parada do grupo para investigar uma pastagem atrás do hotel-fazenda em que se hospedavam. “Pelo Google Earth vi que tem uma mata mais adiante”, disse. No início ele se decepcionou ao achar que a mata que tinha visto era uma composta essencialmente de bambu, sem relevância científica, mas depois de meia hora de caminhada chegaram a uma faixa de mata que seguia da margem de um tanque de água para gado ao alto de um morro. “Era esta. Pequena, mas deve ter coisas interessantes.” Ali eles encontraram uma árvore da família botânica Anacardiaceae, a mesma da manga e do caju, que parecia típica da região – portanto, finalmente, uma provável espécie nativa – e da qual coletaram um ramo para uma identificação mais apurada em laboratório. Ao lado de um pasto coletaram partes de um arbusto conhecido como lobeira (Solanum pESQUISA FAPESP 234 z 91
lycocarpum), inexplicavelmente bem mais alta e com frutos maiores que os da mesma espécie encontrados no Cerrado da região central do país. As plantas coletadas foram organizadas no fim de cada dia entre folhas de jornal e prensadas entre folhas de papelão. Depois elas seriam identificadas em laboratório e comparadas com as coletadas por Saint-Hilaire, tendo-se assim uma visão comparativa das espécies da região há 193 anos e hoje. No fim de julho, em uma análise preliminar, os botânicos verificaram que, como o naturalista francês em 1822, encontraram timburi (Enterolobium contortisiliquum), candeia (Moquiniastrum polymorphum) e figueira-branca (Ficus guaranitica), mas não encontraram jequitibá (Cariniana estrellensis), araçá (Psidium cattleianum) e canela-sassarás (Ocotea odorífera), típicas de Mata Atlântica, relatadas por Saint-Hilaire, reforçando a hipótese de perda de biodiversidade. 92 z Agosto DE 2015
Em seis anos no Brasil, o naturalista francês reuniu cerca de 2 mil espécies de pássaros, 16 mil insetos, 120 mamíferos, 35 répteis e 76 mil plantas, das quais 4 mil ainda não haviam sido descritas. O naturalista francês foi o primeiro a descrever, em 1816, logo depois de chegar ao Brasil, a erva-mate (Ilex paraguariensis), de uma fazenda próxima a Curitiba, e o pequizeiro (Caryocar brasiliense), em Minas Gerais. De volta à França, publicou o Flora Brasiliae Meredionalis, em três volumes, descrevendo as plantas que havia coletado no Brasil. Uma mata inesperada
No fim do primeiro dia, inesperadamente, os botânicos identificaram uma faixa de mata preservada em um morro ao lado da rodovia de Bananal à cidade vizinha de São José do Barreiro. “É similar às que cobriam os morros e vales desta região há 200 anos”, afirmou Romaniuc. “Ali no meio está uma Cecropia hololeu-
ca, árvore que só cresce em matas ombrófilas maduras, e aqui embaixo, perto da estrada, uma Cecropia pachystachya, típica de áreas mais alteradas.” A primeira espécie é também chamada, por causa da cor das folhas, de embaúba-prateada, naquele momento com flores vermelhas, e a outra de embaúba branca, ambas se destacando da mata por causa do tronco fino e das folhas em forma de mão aberta. De Bananal, Saint-Hilaire foi para o Rio, cuja paisagem o deslumbrava. “Nada no mundo, talvez, haja tão belo quanto os arredores do Rio de Janeiro”, ele escreveu. “Florestas virgens, tão antigas quanto o mundo, ostentam sua majestade às portas da capital brasileira.” Por praticidade, os botânicos da expedição de junho adotaram o sentido oposto. Na quarta, dia 10, saíram de Bananal, passaram por São José do Barreiro, Areias e Silveiras, cruzaram a via Dutra, chegaram a Cruzeiro e seguiram até um vale da serra da Mantiqueira, chamado Garganta do Embaú, já na divisa
Um espaço preservado: a igreja de Nossa Senhora da Escada, em Guararema. Ao lado, plantas coletadas: flor e fruto da lobeira (Solanum lycocarpum); assa-peixe (Vernonanthura westiniana) e embaúba-vermelha (Cecropia glaziovii)
com Minas (ver mapa). Mais adiante, já em Minas, chegaram às matas bastante preservadas do município de Pouso Alto, onde Gaglioti encontrou uma espécie rara de árvore da família Urticacea, Myriocarpa stipitata, com flores mais simples que as das espécies próximas. Chegando a Pouso Alto em 12 de março de 1822, Saint-Hilaire havia enviado um assistente à frente, para se apresentar à autoridade máxima da vila, o comandante, e conseguir onde dormir aquela noite. Como o comandante não estava, o vigário é que examinou seus documentos, afastando-se sem oferecer o pouso desejado. “Fomos então obrigados a procurar um canto, em pequena venda, onde me deram uma sala imunda e cheia de pulgas. À noite fomos testemunhas de grande rixa entre mulatos”, relatou. As crianças também não escaparam de seu olhar etnológico, e ao passar pela vila de Taubaté, em 26 de março, anotou: “Em quase todas as casas veem-se crianças de grande beleza, mas as
que atingiram 12 a 15 anos já a perderam; são magras, de ar enfermiço, cor cadavérica e terrosa, o que provém, sem dúvida, do mau regime e da alimentação insalubre ou insuficiente que tiveram”. A botânica Renata Scabbia, professora da Universidade de Mogi das Cruzes, uniu-se ao grupo em Mogi no dia 11. Juntos, exploraram a serra de Itapeti, uma área de mata com 5,3 mil hectares (53 quilômetros quadrados), parcialmente ocupada por agricultores e moradores de bairros periféricos. Na manhã do dia seguinte, o último da viagem, sob uma chuva miúda eles percorreram a periferia de Mogi das Cruzes. “Ainda existem por aqui muitos elementos da biodiversidade original,
que vão se perdendo com a expansão dos bairros periféricos”, observou Romaniuc. A parada seguinte foi na igreja Nossa Senhora da Escada, em uma praça de Guararema, que tinha sido uma aldeia de índios antes de Saint-Hilaire a visitar. “Existem tão poucos hoje que não percebi um único nem na cidade nem nos arredores”, ele anotou, impressionado também com a pobreza do lugar: “A maioria das casas cerca uma grande praça e pode-se avaliar quanto é pobre pelo fato de que inutilmente pedi aguardente de cana em várias vendas”. A grande praça ainda está lá, com uma ampla figueira, cercada de casas que não parecem mais pobres. Ao chegar, Romaniuc perguntou para várias pessoas se conheciam o rio atrás da igreja. Nenhuma tinha ouvido falar do rio, que tinha sido coberto e ocupado por algumas casas. “Saint-Hilaire disse que tinha uma imensa dificuldade em obter informação dos moradores dos lugares que ele encontrava”, disse ele. “Não mudou muito.” Em seguida os botânicos voltaram a São Paulo por um caminho bucólico e arborizado nos tempos de Saint-Hilaire e hoje totalmente urbanizado – uma longa avenida cortando a periferia de Mogi, Suzano, Poá e Itaquaquecetuba, abrindo-se em uma ampla favela à direita ao chegar a Guaianazes, o primeiro bairro de São Paulo para quem chega daquela direção. n
Projeto Herbário Virtual Saint-Hilaire (nº 2006/57363-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa; Pesquisador responsável Sérgio Romaniuc Neto (Instituto de Botânica-SP); Investimento R$ 160.123,56 (FAPESP).
Livro SAINT-HILAIRE, A. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1976, ou pela Brasiliana Eletrônica, www.brasiliana. com.br. pESQUISA FAPESP 234 z 93
Arte
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Imagens para a história sobreviventes da luta armada e documentos dos arquivos de órgãos de segurança Márcio Ferrari
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or mais que hoje isso pareça intrigante, os órgãos de repressão da ditadura militar costumeiramente documentavam e guardavam registros de boa parte das ações violentas ocorridas em quartéis e delegacias. Durante quatro anos, Anita Leandro, professora da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cineasta e editora de imagens, vasculhou os acervos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do antigo estado da Guanabara, do Serviço Nacional de Informação (SNI) e do Superior Tribunal Militar. Do grande volume de material que passou por suas mãos, ela escolheu quatro vidas para narrar no documentário Retratos de identificação – histórias entrecruzadas de militantes de grupos que pretendiam combater o regime pela luta armada. Os personagens são Antônio Roberto Espinosa, Maria Auxiliadora (Dora) Lara Barcelos e Chael Charles Schreier, do grupo Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), e Reinaldo Guarany, da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Schreier foi morto durante tortura (segundo a versão aceita atualmente) e
Acima, a foto em que Guarany figura entre os presos trocados pelo embaixador suíço em 1970
fotos Divulgação
Filme confronta
Dora se suicidou em 1976, jogando-se em frente a um trem de metrô em Berlim. No filme, os dois sobreviventes são confrontados com documentos e fotos que não conheciam, colhidos pela cineasta. Anita não fez perguntas, deixando a câmera registrar as reações e os depoimentos espontâneos. “O encontro com as fotografias é a base do método de trabalho que desenvolvi”, diz. “O personagem principal é a imagem, o arquivo, que desencadeia a fala.” Diante das fotos, Guarany, companheiro de Dora no exílio, emociona-se e conta que preferiu não guardar imagens dela (com uma exceção). Espinosa constata que, no seu retrato de identificação no Dops, o pescoço aparece fartamente ensanguentado – marca de tortura. Guarany vê pela primeira vez uma foto de 1970, no aeroporto do Galeão (Rio), em que ele aparece no grupo de presos políticos trocados pela libertação do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, sequestrado por guerrilheiros. Tão rico e revelador é o material colhido por Anita que foi possível mostrar o caminho percorrido por Dora ao sair de casa, numa manhã no Rio de Janeiro, pela sequência de fotos tiradas por um policial que vigiava seus passos. Entretanto, a ideia de que os arquivos podem por si mesmos reconstituir a história com exatidão é questionada pela própria diretora, em parte porque muitos documentos estão em estado de decomposição. “A prática corrente dos documentaristas, ao lidar com montagem de arquivo, é criar um texto que unifique o discurso e usar as imagens como ilustração”, diz Anita. “Mas essas imagens que sobraram criam vazios irremediáveis, e procurei mostrar que as lacunas fazem parte da narrativa.” O recurso usado foram intervalos em que a tela aparece totalmente negra. “Essa opção valorizou a singularidade de cada imagem e seu valor documental específico.” Para Anita, os filmes podem ser documentos históricos, embora não necessitem ter a forma
Acima, o retrato de Dora nos arquivos do Dops; ao lado, Chael Schreier, cuja morte o filme investiga
“acabada” de um compêndio ou de uma tese derivada de arquivos textuais. “As imagens não trazem informação tão imediata e exigem um olhar mais atento e prolongado”, diz. Uma demonstração da validade do cinema para esclarecer o passado é o fato de o filme ter comprovado que a morte de Chael Schreier não foi, como sustentava a versão oficial, consequência de ferimentos ocorridos em um confronto com a polícia, uma vez que documentos dos arquivos do Instituto Médico Legal (IML) não evidenciam lesão alguma. No filme, Espinosa descreve as sessões de tortura de que foi vítima ao lado de Schreier e Dora (de quem era companheiro na época). Também fazem parte do filme trechos de entrevistas da ex-guerrilheira no exílio, para um documentário chileno e outro americano, em que fala de Schreier. O material que Anita reuniu sobre o guerrilheiro morto foi solicitado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) instituída pela presidente Dilma Rousseff. O capitão do Exército Celso Lauria, que assinou o relatório do Inquérito Policial Militar sobre a morte do guerrilheiro, foi convocado a depor na CNV, mas não compareceu. Anita iniciou a pesquisa que resultou no filme – e em uma exposição realizada no Rio em 2014 – no programa de pós-graduação da ECO-UFRJ, para um estudo sobre a palavra filmada e a edição de material de arquivo em filmes documentários. O foco na ditadura militar e nas violações de direitos humanos do período foi escolhido por seu interesse em uma época que considera mal conhecida ou mesmo ignorada pela maior parte dos brasileiros. Realizado com recursos próprios, o filme obteve verba de finalização (cerca de um terço do orçamento total) de uma parceria da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça com a UFRJ. Retratos de identificação vem participando de mostras no Brasil e no exterior e não tem data de estreia no circuito comercial. n PESQUISA FAPESP 234 | 95
carreiras
Inovação
Cresce aporte de investidores-anjo Tecnologia da informação, biotecnologia, educação e agronegócio são as áreas mais procuradas O aporte de capital de investidores-anjo é responsável pela transformação de vários projetos inovadores de startups em casos de sucesso comercial. No Brasil, um dos mais emblemáticos e antigos é o da Bematech, de Curitiba. Em 1991, um grupo de oito empresários investiu US$ 150 mil na ideia de dois estudantes de engenharia eletrônica que haviam desenvolvido sistemas para impressoras matriciais, em troca de 50% de participação na empresa. O projeto desenvolvido pelos estudantes tinha sido aceito, em 1989, como o primeiro empreendimento da então recém-fundada Incubadora Tecnológica de Curitiba. Hoje a empresa atua como provedora de soluções para automação comercial em várias áreas, possui quatro 96 | agosto DE 2015
centros de P&D e atuação no Brasil, China, Taiwan, Estados Unidos, Argentina, Chile, Portugal e México. “Antes de buscar o investimento de anjos, o pesquisador que quer se tornar um empreendedor precisa prospectar o mercado e entender a necessidade do cliente, além de fazer um protótipo do produto desenvolvido”, diz o engenheiro eletrônico Cassio Spina, fundador e presidente da Anjos do Brasil, organização que faz a aproximação entre empreendedores e investidores. Ele ressalta que a primeira questão avaliada pelos investidores antes da decisão de investir é o grau de inovação da pesquisa ou produto. Entre os setores mais procurados hoje pelos anjos estão os de biotecnologia,
educacional, agronegócio e tecnologia da informação. “É preciso que o negócio tenha escala e possa crescer sem exigir grande soma de capital, além de potencial de abrangência de mercado no mínimo nacional.” O HBS Alumni Angels of Brazil, um grupo de investidores formado por ex-alunos da Universidade Harvard, dos Estados Unidos, também tem como objetivo promover o encontro entre empreendedores e investidores. “No nosso caso, alguns desses investidores são os próprios membros do grupo”, diz o engenheiro mecânico com mestrado em administração Magnus Arantes, presidente do grupo e responsável pela sua
foto arquivo pessoal ilustraçãO daniel bueno
implementação no país. Convidado pela Harvard Angels Global para formar o grupo brasileiro, ele conversou inicialmente com 30 ex-alunos para avaliar o interesse na iniciativa e, no primeiro semestre de 2012, foi feito o lançamento oficial. Hoje são 96 participantes. “O Brasil faz parte de um grupo global com 15 organizações em oito diferentes países”, diz Magnus. A apresentação dos projetos que receberão investimento se dá por três caminhos: conhecer um ex-aluno de Harvard; ser indicado por uma instituição que os anjos conheçam, como fundos de investimento e universidades; ou se inscrever pelo site do grupo. Entre os critérios de seleção estão que o produto ou serviço esteja no mercado e seja rentável, que seja altamente escalável e tenha alguma barreira de entrada, como patente, por exemplo. O grupo tem em seu portfólio quatro empresas – de tecnologia aplicada à educação, tecnologia de assinatura digital de documentos, aplicativo para automação de vendas e agência de intercâmbio digital –, nas quais foram investidos R$ 5 milhões no total. “Já analisamos mais de 250 empresas, das quais 12 continuam nos apoiando, mas não com investimento financeiro.” O investimento-anjo não é empréstimo. “É investimento em troca de participação na empresa”, ressalta Spina. A relação entre o empreendedor e o investidor se dá por meio de um contrato societário. O investidor tem participação minoritária e atua como conselheiro dos fundadores da startup. “Um dos grandes desafios desse modelo no Brasil é a falta de mecanismos legais de proteção”, relata. “Aqui não existe distinção entre investidor e sócio da empresa.” Por isso, só ao fim do contrato é feita a conversão do valor aplicado em participação na empresa.
interdisciplinar
Estatística aplicada à neurociência João Ricardo Sato utiliza ferramentas matemáticas, estatísticas e computacionais para estudar o funcionamento do cérebro O estatístico e neurocientista João Ricardo Sato, de 34 anos, desde criança gostava de ciências, principalmente física, biologia e computação. A proximidade com a área de exatas ocorreu naturalmente, já que sua mãe é professora no Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). A aptidão para a área ficou mais patente durante o ensino médio, o que o levou a prestar vestibular para o bacharelado em Estatística no Instituto de Matemática e estatística (IME) da USP. A escolha teve como motivação o seu desejo de trabalhar no mercado financeiro. “Desde o primeiro ano da faculdade comecei a fazer iniciação científica nessa área e procurei um especialista em séries temporais, o professor Pedro Alberto Morettin”, relata. As séries temporais envolvem o estudo de observações feitas sequencialmente ao longo do tempo, com aplicações em vários setores. “Gostei tanto do tema que fiz três projetos de iniciação científica nessa área e realizei meu estágio no mercado financeiro.” Após terminar a faculdade em 2002, trabalhou no ramo de investimentos e ações, época em que começou a cursar o mestrado no IME. Nesse período ele conheceu Daniel Takahashi, médico formado que estava cursando uma segunda graduação em matemática. “Nas nossas conversas de café, ele me
mostrou que métodos de séries temporais e estatística poderiam ser aplicados à área médica, não somente em epidemiologia, mas também em neurociências, para entender melhor o cérebro”, conta. “Decidi que era isso o que queria fazer, aplicar e desenvolver métodos quantitativos para entender melhor como o cérebro funciona em uma pesquisa interdisciplinar”, explica Sato. Começou o doutorado em 2004 com um projeto voltado para o desenvolvimento de métodos estatísticos e neuroimagem para responder a questões sobre a conectividade cerebral. Em 2006 fez doutorado-sanduíche no Instituto de Psiquiatria do King’s College, de Londres, na área de aprendizado de máquinas, e em 2009 passou em concurso para o Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC (UFABC). “A minha contratação e de outros cinco docentes deu início às atividades do Núcleo de Cognição e Sistemas Complexos, unidade vinculada à reitoria”, diz Sato. “O grupo conta atualmente com 30 docentes associados e incubou o primeiro bacharelado em neurociência do Brasil e também o programa de pós-graduação em neurociência e cognição da universidade.” Entre 2009 e 2014, Sato foi coordenador da equipe desse núcleo, que hoje abriga a infraestrutura laboratorial em neurociências e promove atividades de pesquisa, ensino e extensão na área. Atualmente, seu foco de pesquisa se concentra no estudo do neurodesenvolvimento, envelhecimento e bases neurais dos transtornos mentais. PESQUISA FAPESP 234 | 97
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