Pesquisa FAPESP outubro de 2017
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outubro de 2017 | Ano 18, n. 260
Célulastronco em revisão
Ano 18 n.260
Resultados inconclusivos de testes em seres humanos reduzem expectativa dessa terapia, mas não a tiram do páreo na busca de novos tratamentos para lesões do coração
Avaliação da Capes mostra que pós-graduação cresceu e teve ganhos de qualidade
Novo material para painel solar é mais eficiente do que o de silício usado hoje
Abelhas e formigas se reconhecem por meio de substâncias que recobrem seus corpos
Debate envolve o destino do acervo de museus policiais
Última geração de instrumentos deve facilitar a caça por planetas parecidos com a Terra
Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13 às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM. Com reprise no sábado às 18h e quinta-feira às 2h
Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP
A cada programa, três pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes e ajudam a escolher a programação musical
Você também pode baixar e ouvir o programa da semana e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br)
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fotolab
A beleza do conhecimento
Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
O Pampa microscópico Quem vê os capinzais gaúchos não nota a profusão de grãos de pólen que compõe a paisagem. O biólogo Jefferson Nunes Radaeski enxerga essa diversidade não apenas no espaço: também no tempo. Sua pesquisa indica que há 10 mil anos predominavam nos Pampas as gramíneas de campo, em um ambiente frio e seco. Os bambus, de pólen maior, tornaram-se comuns na composição de ambientes florestais cerca de 3 mil anos atrás. O resultado é, até hoje, um mosaico de campos e manchas de floresta. Na imagem, o grão maior é de um bambu florestal e os menores são de gramíneas campestres – os cinzentos obtidos em microscópio óptico e os amarelos em microscópio eletrônico de varredura.
Imagem enviada por Jefferson Nunes Radaeski, pesquisador da Rede de Catálogos Polínicos online (RCPol), Universidade Luterana do Brasil
PESQUISA FAPESP 260 | 3
outubro 260
POLÍTICA DE C&T 30 Formação Avaliação da Capes mostra avanços na pós-graduação brasileira, mas atrai críticas 36 Inovação Embrapii já financiou projetos de inovação de 210 empresas industriais 41 Políticas públicas Estudos abordam o papel de lideranças que mobilizam a sociedade CIÊNCIA 48 Embriologia Nas mulheres, uma das cópias do cromossomo X é desativada no início do desenvolvimento embrionário 50 Paleobiologia Túneis fossilizados sugerem que organismos complexos já existiam há 540 milhões de anos CAPA Terapia com células-tronco para problemas cardíacos não apresenta resultados conclusivos e leva a novos testes in vitro e com animais p. 18
52 Paleontologia Reconstituições em 3D revelam novas características de crocodilo e dinossauro extintos
58 Astrofísica Nova geração de espectrógrafos deve permitir a descoberta de planetas como a Terra 62 Sobras da formação dos planetas teriam originado o cinturão de asteroides do Sistema Solar TECNOLOGIA
HUMANIDADES 82 Literatura Biografia de Lima Barreto surge em um momento de retomada do gênero na academia 87 Museologia Destino de acervos policiais provoca debate entre pesquisadores e movimentos sociais
64 Energia Células solares de perovskita poderão suceder as de silício em painéis fotovoltaicos 69 Ecologia das estradas Sistema é desenvolvido para diminuir atropelamentos de animais nas rodovias 72 Química Produtos renováveis começam a substituir derivados de petróleo 76 Agricultura Agrônomo propõe método alternativo de plantio de arroz
p. 52
ENTREVISTA Ana Maria Giulietti Botânica organiza grupos de pesquisa em instituições do Norte e Nordeste p. 24
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SEÇÕES 3 Fotolab
vídeos youtube.com/user/pesquisafapesp
6 Comentários 7 Carta da editora
Biologia Abelhas e formigas se reconhecem e se organizam por meio de compostos que recobrem seus corpos p. 44
8 Boas Práticas Geofísicos incluem assédio sexual no rol das más condutas científicas 11 Dados Colaboração internacional das universidades públicas de São Paulo
Sapos do gênero Brachycephalus, da Mata Atlântica, não escutam o próprio canto bit.ly/vSaposSurdos
12 Notas 78 Pesquisa empresarial Biolab investe em medicamentos 91 Memória Há 190 anos eram criadas as faculdades de direito de São Paulo e Recife
Física Estudo indica com maior precisão que raios cósmicos vêm de fora da Via Láctea p. 56
94 Resenhas Disseram que voltei americanizado – Relações sindicais Brasil-Estados Unidos na ditadura militar, de Larissa Rosa Corrêa. Por Reginaldo C. Moraes Literatura infantil brasileira: Uma nova/outra história, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman. Por Gabriela Pellegrino Soares
96 Carreiras Mudar de instituição na pós-graduação pode ser enriquecedor
Ilustração da capa Fabio Otubo
Cana-de-açúcar transgênica é resistente à principal praga dos canaviais bit.ly/vCanaTrans
rádio bit.ly/PesquisaBr O biólogo Eduardo Ottoni comenta a transmissão de práticas culturais entre macacos-prego bit.ly/PBrEduOttoni
Conteúdo a que a mensagem se refere:
comentários
cartas@fapesp.br
Revista impressa Reportagem on-line Galeria de imagens Vídeo Rádio / podcast
Especial IAC 130 anos
Tenho orgulho de fazer parte da equipe do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) há 10 anos (IAC 130 Anos, que circulou com a edição 259). Ciência é importante, sim. A gente “só estuda” para colocar comida na mesa.
Programa de rádio
Fiquei feliz ao ouvir a pesquisadora Ma riana Moraes de Oliveira, no programa Pesquisa Brasil, quando nos mostrou o quão independente e determinada era a etnógrafa austríaca Wanda Hanke (edição 258).
Ernna Oliveira
Laís Granato
revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp
Pesquisa Fapesp
pesquisafapesp
É motivo de celebração para o IAC o fato de, em meio a tantas instituições de pesquisa, o instituto ocupar as páginas de uma edição especial feita pela equipe da revista Pesquisa FAPESP. Reforço que ter esse registro é de extrema relevância para o IAC. Para nós, da comunicação, a edição reúne um olhar e um talento especiais, que vocês têm e comparti lharam conosco. Carla Gomes
Revistas científicas
Um verdadeiro crime contra a huma nidade terem transformado publicação científica em mercadoria visando o lucro (nota “Elsevier avança em repositórios”, edição 258). O conhecimento científico pertence a todos. Lucas Rodolfo
Vídeos
O vídeo “Canto silencioso” é bem expli cado, de fácil compreensão e com ótima animação. Muito bom mesmo.
cartas@fapesp.br R. Joaquim Antunes, 727 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP
Assessora de Imprensa do IAC
Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@ fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h
Há novas hipóteses sobre a origem da vida na reportagem “Refúgios aprazíveis em um mundo de vulcões” (edição 258). Ciência em ação, com brasileiros participando.
A ecologia do canto dos anuros é fasci nante, e pesquisas como essas tornam ainda mais relevantes os resultados envolven do esse comportamento.
Ivano Casagrande Jr.
Ricardo Santos
Para anunciar Contate: Paula Iliadis Por e-mail: publicidade@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212 Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212
6 | outubro DE 2017
Campinas, SP
Origem da vida
Carro elétrico
Sobre a reportagem “Os desafios do Brasil” (edição 258), deveríamos buscar uma al ternativa menos radical, como carros híbridos com uma parte elétrica e outra a combustível normal, para, aos poucos, formar uma rede de sistemas elétricos junto a já existente.
Ronaldo Licio
Esdley Moreira
Maravilhoso o trabalho dessa galera (“Combate genético”, sobre cana transgê nica). Tanto da pesquisa quanto do trabalho de divulgação. Seria muito legal se os outros estados seguissem o exemplo. Kelton Moraes
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
A mais lida de setembro no Facebook arqueologia
Homo sapiens no centro da América do Sul http://bit.ly/HomoAm
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fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
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José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio
Dois passos para trás, um para frente
Conselho Técnico-Administrativo Carlos américo pacheco Diretor-presidente
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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais), Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro (Editor-assistente) repórteres Yuri Vasconcelos e Rodrigo de Oliveira Andrade redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira do Prado (Mídias Sociais) arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves banco de imagens Valter Rodrigues Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro Colaboradores Alexandre Beraldo, Augusto Zambonato, Christina Queiroz, Cláudio Machado, Diego Freire, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Gabriela Pellegrino Soares, Luana Geiger, Pedro Hamdan, Reginaldo C. Moraes, Renato Pedrosa, Victória Flório, Zaire É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização Tiragem 25.700 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
U
ma das críticas frequentemente direcionadas à mídia que cobre ciência e tecnologia é que apenas os sucessos são objeto de atenção. A reclamação procede: o jornalismo gira em torno de notícias e a “antinotícia” tende a ser de interesse de um público mais reduzido. A reportagem de capa desta edição (página 18) não traz uma “não notícia”, mas recupera um tema de muito destaque na década passada que saiu da pauta de cobertura sobre ciência: a terapia com células-tronco adultas. Encontradas principalmente nos embriões, mas também em alguns tecidos adultos como o adiposo (gordura), as células-tronco têm a capacidade de se transformar em células de diversos tipos. A chamada plasticidade das embrionárias é maior, mas os desafios éticos desse tipo de pesquisa levaram a atenção de muitos cientistas às adultas. Na virada do milênio, publicações científicas em periódicos importantes sugeriam que ambas teriam propriedades equivalentes. Ao serem injetadas em órgãos danificados, como um coração infartado, esperava-se que as células-tronco adultas pudessem originar vasos sanguíneos e células cardíacas. Teve início uma série de ensaios clínicos – testes em pessoas – que foram amplamente noticiados. Hoje, sabe-se que as células-tronco adultas não são tão versáteis quanto prometiam. Os resultados dos ensaios não foram animadores. Mas isso não significa que tenham sido descartadas como possível tratamento ou que os esforços tenham sido desperdiçados. Na ciência, o negativo também é um resultado; mesmo que não renda prêmios ou resulte em publicações, contribui para o avanço do conhecimento, até mesmo para a reflexão sobre a decisão de dar início aos ensaios clínicos naquele momento. Os resultados levaram os pesquisadores a voltar para a
bancada. Querem entender os mecanismos que aparentemente fazem essas células-tronco liberarem compostos que ajudam na revascularização e na irrigação do músculo cardíaco danificado. A promessa atual, mais modesta, é que a implantação de células-tronco adultas pode ser um tratamento complementar a outros já existentes. *** A avaliação do sistema nacional de pós-graduação é tema de reportagem na página 30. A necessidade de aferir se os programas atendem aos objetivos de formação de pessoal não é questionada, mas os critérios e o peso atribuído a cada um deles são objeto de amplo – e saudável – debate no meio acadêmico. A regularidade desse processo de avaliação faz dele um pilar importante não apenas do sistema de ensino superior como também do de pesquisa, pois seus resultados são um parâmetro que norteia a distribuição de bolsas e recursos aos programas e grupos de pesquisa a eles associados. Seu peso no sistema de ensino superior e pesquisa acirra as discussões. Críticas frequentes são que o modelo de avaliação privilegia programas consolidados ou que os critérios variam de peso entre diferentes áreas de conhecimento. O sistema cresce de forma consistente há muitos anos, mas o aumento da oferta de vagas não necessariamente resulta em bons programas: sinal disso é que aqueles que receberam a nota 3, mínima para continuarem credenciados, representam 32,86% do total; os considerados de excelência, com nota 6 e 7, somam 11,14% do total. Por outro lado, programas mal avaliados, com nota 1 ou 2, são descredenciados, e a prática da avaliação regular mobiliza os corpos docente e discente a melhorar seu desempenho, construindo gradativamente um sistema de ensino superior e pesquisa melhor. PESQUISA FAPESP 260 | 7
Boas práticas
A sombra do assédio na integridade da ciência Sociedade de geofísicos amplia definições de má conduta para incluir os casos de intimidação sexual no ambiente acadêmico A American Geophysical Union (AGU), sociedade sediada em Washington, Estados Unidos, atualizou no mês passado seu código de ética e incluiu o assédio sexual na definição de exemplos de má conduta científica. Em um comunicado divulgado no dia 15 de setembro, a AGU observou que os efeitos destrutivos do assédio e da intimidação de caráter sexual atingem não somente as suas vítimas, mas todo o entorno do ambiente de pesquisa, e podem inclusive afastar as mulheres da carreira científica. “Embora intolerável, o assédio sexual é um problema enfrentado de forma persistente pela comunidade científica”, justificou Eric Davidson, professor da Universidade de Maryland e presidente da AGU. “Precisamos criar um ambiente que dê apoio e estímulo aos jovens talentos, em vez de intimidá-los.” A nova política se aplica aos 62 mil membros da sociedade e a qualquer indivíduo que participe de suas atividades. Além do assédio sexual, o bullying e a discriminação também foram incluídos no rol dos comportamentos antiéticos. 8 | outubro DE 2017
De acordo com as diretrizes da AGU, qualquer pessoa pode apresentar uma queixa de assédio. As alegações que não puderem ser resolvidas pelo estafe da sociedade serão encaminhadas a uma comissão encarregada de investigá-las. Se o caso envolver pesquisa financiada com recursos federais, a AGU irá notificar a instituição a que o acusado estiver vinculado e determinar a quem caberá fazer a investigação. A punição máxima prevista é expulsão do membro considerado culpado. A adoção da nova política foi discutida ao longo de um ano e reacendeu um antigo debate sobre definições de má conduta científica. A abordagem consagrada desde os anos 1990 restringe tais definições a comportamentos com impacto inequívoco sobre a pesquisa, como fraude, fabricação de dados e plágio. Mas sempre houve questionamentos sobre o que fazer com desvios éticos não específicos das atividades científicas que ocorrem em seu ambiente. Por alguns anos, a National Science Foundation (NSF), principal
foto agu ilustração luana geiger
agência de fomento à pesquisa básica nos Estados Unidos, chegou a incluir em suas diretrizes éticas uma quarta categoria de má conduta, descrita vagamente como “outros desvios sérios”. Em 2000, contudo, o governo norte-americano optou pela interpretação mais restrita. Rebecca Barnes, professora do Programa de Meio Ambiente do Colorado College, em Colorado Springs, e membro da AGU, disse à revista Science que a princípio não enxergava uma conexão entre assédio sexual e prejuízo à integridade científica. “Minha impressão era de que os problemas seriam de tipos diferentes”, afirmou. Mas, segundo ela, a visão da sociedade evoluiu e prevaleceu a noção de que o assédio produz consequências negativas para o ambiente acadêmico comparáveis às do plágio ou de não dar o crédito devido ao autor de um trabalho científico. “O assédio sexual também sinaliza para suas vítimas que elas não são valorizadas, com impacto no ambiente de trabalho.” Uma pesquisa feita em 2015 pela Association of American Universities em 27 universidades mostrou que 62% das alunas de graduação e 44% das de pós-graduação sofreram assédio sexual no ambiente acadêmico. Além da AGU, outras sociedades científicas se mobilizam. No mês passado, a American Chemical Society abordou o assédio sexual em uma reportagem de capa de sua revista Chemical & Engineering News, em que as editoras Linda Wang e Andrea Widener relatam as experiências de várias mulheres que foram assediadas sexualmente quando eram estudantes de química por professores ou dirigentes acadêmicos. Na reportagem, a britânica Kate Sleeth Patterson, presidente da National Postdoctoral Association, relata o drama vivido por alunas e por estagiárias de pós-doutorado estrangeiras nos Estados Unidos, inclusive o dela própria na época de graduação, que enfrentam ameaças de afastamento de grupos de pesquisa ou perda do visto de permanência no país caso denunciem os professores assediadores.
Encontro anual da American Geophysical Union em 2015: novas diretrizes éticas buscam proteger alunas e pesquisadoras
A decisão da AGU acontece em paralelo a uma série de escândalos em instituições de ensino e pesquisa norte-americanas. Na Universidade de Rochester, em Nova York, o linguista Florian Jaeger, professor do Departamento de Ciências Cognitivas, foi acusado por nove mulheres de assediá-las sexualmente enviando fotos de conteúdo sexual, de promover festas para estudantes oferecendo drogas ilícitas e de prejudicar alunas e pesquisadoras que resistiram a suas investidas. Em um documento de 111 páginas encaminhado à Comissão de Igualdade de Oportunidades no Trabalho do governo norte-americano, o grupo, que envolve docentes, alunas e estagiárias de pós-doutorado, acusa a direção da universidade de proteger Jaeger – que foi investigado duas vezes e inocentado – e de retaliar autoras de denúncias. O reitor Joel Seligman anunciou em setembro que vai abrir uma investigação independente, depois de enfrentar protestos no campus. Também promete contratar um avaliador com autonomia para rever seus procedimentos relacionados a assédio e discriminação. renÚncia
Um outro caso envolveu a Texas Tech University. O biólogo Robert Baker foi acusado no ano passado de assediar alunas de graduação e pós-graduação por décadas e seu colega Lou Densmore, de convidar estudantes para festas sexuais em sua casa.
No final do ano passado, o paleoantropólogo norte-americano Brian Richmond renunciou ao cargo de curador da seção de Origens Humanas do Museu Americano de História Natural, em Nova York, acusado de assédio a alunas e a colegas e de comportamento inapropriado em trabalhos de campo (ver Pesquisa FAPESP nº 251). Erika Marín-Spiotta, professora de biogeoquímica na Universidade de Wisconsin-Madison, sustenta que o assédio sexual pode acabar com carreiras científicas. Ela lidera uma iniciativa de US$ 1,1 milhão financiada pela NSF, que irá levantar dados sobre a prevalência do assédio sexual nas geociências, campo do conhecimento em que as mulheres são 39% das alunas de graduação, mas menos de 20% das docentes e pesquisadoras. Marín-Spiotta, que desenvolveu um programa de treinamento obrigatório em sua universidade contra o assédio sexual, busca agora levantar estratégias que ajudem os cientistas a dar respostas e a prevenir o problema em laboratórios e salas de aula, e em pesquisas de campo. “Muitas vezes ouvimos que as pessoas simplesmente não sabem como reagir a casos de assédio”, disse ela à revista Nature. A pesquisadora espera que seu grupo consiga criar e implementar ferramentas nos próximos anos capazes de ajudar os membros do corpo docente a intervir de forma adequada em incidentes de assédio sexual envolvendo estudantes. PESQUISA FAPESP 260 | 9
ilustração elisa carareto
Planos de gestão de dados se incorporam a projetos de pesquisa no Brasil As solicitações de financiamento de projetos de pesquisa na modalidade Projeto Temático submetidas à FAPESP a partir de 31 de outubro devem conter um documento complementar: o Plano de Gestão de Dados, que trata das formas pelas quais o pesquisador responsável pela proposta pretende gerenciar as informações resultantes de seu trabalho. A obrigatoriedade do plano deve se estender gradativamente para outras modalidades de apoio, como as propostas de Auxílio à Pesquisa – Regular, Jovem Pesquisador, bolsas de Doutorado e de Pós-doutorado, a partir de 2018. O comunicado sobre o requisito (www.fapesp.br/gestaodedados) ressalta “a gestão adequada dos dados de pesquisa como parte essencial das boas práticas de pesquisa” e a importância de as informações oriundas de projetos financiados pela Fundação serem “gerenciadas e compartilhadas de forma a garantir o maior benefício possível para o avanço científico e tecnológico”. Exigido por agências públicas e privadas de apoio à pesquisa científica dos Estados Unidos, da Europa e Austrália, o plano de gestão permite que pesquisadores, como parte do planejamento do seu projeto, explicitem como os dados produzidos serão tratados. O Reino Unido, por exemplo, considera que “dados resultantes de pesquisa financiada por agências públicas são um bem comum e como tal devem ser disponibilizados de forma aberta com o menor número de restrições possível, de forma responsável e em tempo hábil”. O compartilhamento facilita a economia de recursos, evita a duplicação de pesquisas, protege a integridade, reduzindo o risco de plágio, além de ampliar a visibilidade do conhecimento 10 | outubro DE 2017
produzido e a possibilidade de colaboração. O site da FAPESP contém instruções com exemplos que podem ajudar na elaboração do documento, com base em registros similares de instituições dos Estados Unidos e do Reino Unido. O plano valoriza o compartilhamento de informações por meio de repositórios públicos on-line, mas não descarta a possibilidade de o pesquisador manter os dados sob sua guarda quando, por razões éticas ou de proteção à propriedade intelectual, as informações não puderem ser publicadas, como alguns estudos da área biomédica que devem preservar a privacidade dos pacientes. “O estado de São Paulo será pioneiro, no Brasil, no estabelecimento de políticas e implementação de mecanismos de gestão de dados científicos”, comentou a pesquisadora Claudia Bauzer Medeiros, coordenadora do programa eScience da FAPESP e uma das proponentes dessa
iniciativa da Fundação. Ela lembrou que o Código de boas práticas científicas, lançado em 2011, estabelece que os pesquisadores devem disponibilizar os registros resultantes de sua pesquisa. “Agora, com o plano de gestão, poderão explicitar como os dados serão gerenciados – desde a coleta até a preservação – e de que modo, onde e a partir de quando serão disponibilizados”, diz ela.
Engano de revista gera retratação A revista Annals of Surgery anunciou a retratação de dois artigos publicados em 2015 que, no entanto, não continham erros ou qualquer evidência de má conduta. A justificativa dos editores é de que os papers haviam sido rejeitados, mas, por engano, acabaram sendo publicados on-line. “Noventa por cento dos manuscritos submetidos à revisão por pares da publicação não são aceitos e isso aconteceu com esses dois artigos”, disse ao site Retraction Watch o editor da revista, Keith Lillemoe, professor da Escola de Medicina de Harvard. “A retratação era a nossa única opção, já que a publicação
de artigos de baixa qualidade não seria aceitável.” Rajesh Panwar, autor de um dos artigos retratados e pesquisador do All India Institute of Medical Sciences, em Nova Delhi, queixou-se da postura da publicação. “Não fizemos nada para causar ou facilitar esse erro”, disse, preocupado com o impacto que uma retratação pode causar em sua reputação acadêmica. “Os periódicos devem ter mecanismos rigorosos para prevenir erros como esses, que causam problemas desnecessários aos autores.” Segundo Panwar, a revista havia enviado uma carta rejeitando o trabalho, mas dois meses depois enviou outra, aceitando-o.
Dados Publicações
Colaboração internacional das universidades públicas de São Paulo
Pesquisadores das universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp) e de federais localizadas em São
% Colaborações internacionais
Brasil
213.732
70.404
32,9%
94.219
32.781
34,8%
quinquênio 2012-2016. Equivale a 34%
Públicas SP
79.587
27.271
34,3%
do total de 79.587 publicações com
USP
45.796
16.878
36,9%
pelo menos um autor de uma dessas
Unesp
16.919
4.861
28,7%
instituições, que, por sua vez, foram
Unicamp
14.675
4.672
31,8%
Unifesp
9.048
2.657
29,4%
UFSCar
4.967
1.502
30,2%
UFABC
1.913
1.047
54,7%
ITA
672
227
33,8%
publicaram 27.271 artigos científicos2 com coautores de outros países no
85% das 94.219 publicações com pelo menos um autor sediado no estado. Essas representaram 44% do total de 213.732 publicações com pelo menos um autor sediado no Brasil, no período.
Universidades que mais colaboraram 2012-2016
Colaborações internacionais
São Paulo
Paulo (Unifesp, UFSCar, UFABC, ITA1)
Países líderes
Total 2012-2016
1997-2001
2002-2006
2007-2011
EUA
EUA
EUA
França
França
Alemanha
2012-2016
EUA
11.228
Reino Unido 4.630
Reino Unido
Alemanha
França
Alemanha
4.069
Alemanha
Reino Unido
Reino Unido
França
3.972
Itália
Itália
Espanha
Espanha
3.858
Espanha
Canadá
Canadá
Itália
3.225
Canadá
Espanha
Itália
Canadá
2.762
Argentina
Argentina
Argentina
Portugal
2.496
Rússia
Rússia
Holanda
Austrália
2.177
Japão
Japão
Portugal
China
2.070
Chile
Holanda
Rússia
Suíça
2.035
Holanda
Chile
China
Holanda
1.923
A Universidade Pierre et Marie Curie, de Paris, é a que tem mais coautorias com as universidades públicas em São Paulo.
Pierre et Marie Currie Harvard Chicago Ohio St. La Sapienza Lomonosov (Moscou) Charles (Praga) Bolonha Atenas Wisconsin (Madison) MIT Nápoles
1.572 1.483 1.435 1.413 1.241 1.237 1.223 1.213 1.156 1.152 1.130 1.102
1 O Instituto Tecnológico de Aeronáutica não é uma universidade, mas foi incluído por ser uma instituição pública com atividades regulares de pós-graduação e pesquisa. 2 Articles e Reviews indexados pelo Incites/WoS. Números agregados são menores do que a soma dos números individuais das universidades, pois são excluídas as multiplicidades de publicações com coautoria de pesquisadores de mais de uma delas. Fonte Incites/Web of Science, Clarivate/ThomsonReuters, dados extraídos entre 23 e 25 set. 2017.
PESQUISA FAPESP 260 | 11
Notas
1
Lagarto-preguiça (Polychrus acutirostris), encontrado no Cerrado e na Caatinga
O primeiro mapa global de répteis
2
Uma Nasa para a Austrália
Estratégias destinadas a conservar a biodiversidade do planeta exigiriam ações mais efetivas em áreas de savana, como o Cerrado
O governo da Austrália anunciou em setembro
e o sul da África, e em regiões áridas e semiáridas, caso da Caatin-
que vai lançar sua própria agência espacial. A
ga e desertos da Austrália. A recomendação surge de um esforço
decisão visa fortalecer a indústria nacional para
internacional que mapeou pela primeira vez a distribuição global
que o país possa aumentar sua participação,
de 10.064 espécies de répteis (Nature Ecology & Evolution, 9 de
hoje de menos de 1%, como fornecedor de ser-
outubro). Embora os répteis somem quase um terço das espécies
viços e produtos para o mercado internacional
de vertebrados terrestres conhecidas, não havia um esforço ante-
aeroespacial, que movimenta anualmente US$
rior para mapear esse grupo, gerando uma lacuna importante no
320 bilhões. “A indústria espacial global está
conhecimento sobre a biodiversidade global. Um grupo internacio-
crescendo rapidamente e é crucial que a Aus-
nal de 39 pesquisadores, incluindo quatro brasileiros, revisou as
trália seja parte desse crescimento”, disse a
informações disponíveis em coleções de museus, na literatura
ministra interina da Indústria, Inovação e Ciên-
científica e em bases de dados digitais. Também foi a campo em
cia, Michaelia Cash, em comunicado oficial. A
diferentes regiões do mundo coletar novas amostras. Ao sobrepor
Austrália tem tradição no setor. Foi um dos
a localização das espécies de répteis às das áreas de conservação
primeiros países a lançar, em 1967, um satélite.
existentes, os pesquisadores verificaram que a proporção de espécies desses vertebrados protegidos em parques e reservas (3,5% do total) é menor do que a de aves (6,5%) e mamíferos (6%). Segundo os pesquisadores, isso ocorre porque as áreas de preservação foram definidas com base em informações sobre a distribuição de espécies de aves, mamíferos e anfíbios. “Nossos resultados sugerem que os répteis, em particular lagartos e tartarugas, precisam ser mais bem incorporados nos esquemas de conservação”, escreveram os autores da pesquisa. 12 | outubro DE 2017
fotos 1 Marcio Martins 2 Jamie Tufrey/UNSW 3 Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva / Science 4 CDC
Não deu zika nos Jogos Olímpicos do Rio Estudo de médicos da
Jogos Olímpicos.
Universidade de Utah
“Os que tiveram
feito com 457 atletas e
sorologia negativa antes
pessoal de apoio da
da viagem e positiva
equipe norte-americana
após os jogos devem ter
que participou dos Jogos
apresentado a forma
Olímpicos do Rio de
assintomática da Febre
Janeiro em 2016 não
do Nilo Ocidental
detectou nenhum caso
enquanto estiveram no
de infecção pelo vírus
Brasil”, diz o pediatra
zika. No entanto, 7% dos
Krow Ampofo, um dos
indivíduos (32 casos)
autores do estudo. O
testaram positivo para
Brasil não dispõe de
outras arboviroses, que
registros sistemáticos
teriam sido contraídas
sobre casos da Febre do
durante sua
Nilo Ocidental, cujo vírus
sérios problemas
Um estudo recente indica que pode haver um pouco
permanência na capital
é transmitido ao homem
neurológicos, como
mais de neandertal no Homo sapiens moderno do que se
fluminense. Por meio de
principalmente por
encefalite e meningite,
pensava até agora. Um trabalho coordenado por pes-
exame de sangue ou
mosquitos dos gêneros
e levar à morte. “O
quisadores do Instituto Max Planck de Antropologia
sorologia, foram
Culex, o popular
resultado do estudo é
Evolutiva, de Leipzig, na Alemanha, estima que a por-
confirmadas duas
pernilongo, e Aedes. O
estranho e carece de
centagem de DNA desse hominídeo, extinto entre 30
infecções por dengue,
primeiro caso em seres
comprovação”, pondera
mil e 40 mil anos atrás, presente nas populações huma-
três por chikungunya e
humanos no país foi
o virologista Maurício
nas atuais de origem não africana varia entre 1,8% e
27 pelo vírus da Febre do
relatado em 2014, no
Lacerda Nogueira, da
2,6% (Science, 5 de outubro). As populações da Austrá-
Nilo Ocidental (Open
interior do Piauí. Nos
Faculdade de Medicina
lia e Oceania, seguidas dos asiáticos e europeus, são as
Forum Infectious
Estados Unidos, a
de São José do Rio
que mais apresentam material genético de origem nean-
Diseases, 4 de outubro).
presença desse vírus é
Preto (Famerp). ”Mas
dertal (ver mapa). Dados anteriores sugeriam que a con-
Os autores do trabalho
relativamente comum.
não ficaria surpreso se
tribuição dos neandertais, espécie mais próxima do
fizeram testes nos
A maioria dos infectados
tivéssemos muito mais
ponto de vista evolutivo do H. sapiens, no DNA humano
membros da equipe dos
é assintomática, mas, em
casos de Febre do Nilo
flutuava entre 1,5% e 2,1%. Na Europa, as duas espécies
Estados Unidos pouco
menos de 1% dos casos
Ocidental do que
podem ter coexistido por alguns milhares de anos e
antes e logo depois dos
a doença pode provocar
imaginamos.”
houve cruzamentos sexuais entre elas. A nova compa-
A porcentagem de DNA neandertal em diferentes populações atuais do globo
3
0
1%
2%
3%
O neandertal em cada um de nós
ração tomou como base um sequenciamento de alta qualidade do genoma completo de uma fêmea neander-
4
tal que viveu há cerca de 55 mil anos. Um fragmento de osso da mulher neandertal foi encontrado na caverna Vindija, na Croácia, a partir do qual foi possível extrair uma amostra de DNA. Também foram levados em conta nas análises outros DNAs sequenciados de neandertais, de hominídeos de Denisova (outra espécie extinta) e dos humanos modernos de diferentes partes do globo. Segundo o estudo, há indícios no DNA dos neandertais de que eles receberam material genético dos humanos Mosquito Culex quinquefasciatus, o popular pernilongo, que pode transmitir o vírus da Febre do Nilo Ocidental
entre 130 mil e 145 mil anos atrás. Outro achado do trabalho foi ter encontrado nas populações atuais de seres humanos variações de genes de origem neandertal que estão ligadas a aspectos da saúde: níveis de colesterol e de vitamina D no plasma, distúrbios alimentares, acúmulo de gordura visceral, artrite reumatoide, resposta a drogas psicotrópicas e até esquizofrenia. PESQUISA FAPESP 260 | 13
Obesidade cresce 11 vezes entre jovens
Além disso, havia, também no ano passado, 213 milhões de pessoas dessa faixa etária com sobrepeso. A conclusão é de uma meta-análise coordenada por
1
Arroz domesticado há 4 mil anos na Amazônia
Planta teria sido cultivada pelos habitantes pré-históricos em Rondônia
O número de crianças e
pesquisadores do
adolescentes obesos no
Imperial College London
mundo aumentou 11
e da Organização
vezes nas últimas quatro
Mundial da Saúde. O
décadas (Lancet, 10 de
trabalho analisou dados
outubro). Em 1975, havia
de 2.416 estudos
11 milhões de indivíduos
epidemiológicos feitos
com idade de 5 a 19 anos
em diferentes partes do
no mundo que estavam
globo desde meados dos
exageradamente acima
anos 1970. Esses
do peso. Em 2016, as
trabalhos forneceram
crianças e os jovens
informações sobre o peso
obesos eram 124 milhões,
e a altura de 130 milhões
dos quais cerca de 60%
de indivíduos da faixa
eram do sexo masculino.
etária analisada.
Arqueólogos do Brasil e da Inglaterra encontraram evidências de domesticação do arroz por populações indígenas do sudoeste da Amazônia de cerca de 4 mil anos atrás (Nature Ecology and Evolution, 9 de outubro). Segundo o estudo, esses agricultores da pré-história sabiam manipular a variedade selvagem do arroz para que a planta produzisse grãos maiores e proporcionasse safras mais abundantes. Esse conhecimento, no entanto, teria sido perdido depois da chegada do colonizador europeu no final do século XV, que levou ao quase extermífiada por José Iriarte, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), analisou 16 amostras de restos microscópicos de arroz achados no sambaqui
Telas do aplicativo SOS Chuva, do Inpe
2
Chuva da hora no celular
de Monte Castelo, em Rondônia. Feitas por brasileiros, as escavações no sítio arqueo-
Quer saber se está chovendo aonde você está indo? Se seu destino
lógico abrangeram 10 períodos de ocupação
estiver no estado de São Paulo, consulte o aplicativo SOS Chuva, que
da região. Nos níveis mais recentes asso-
indica a intensidade e os lugares onde está chovendo e a previsão do
ciados à presença humana, havia mais ves-
clima para os 20 minutos seguintes. As informações provêm de uma
tígios de arroz do que nas camadas mais
rede de radares em Campinas, Bauru, Presidente Prudente e São Roque,
antigas, um sinal de que a planta começou
no interior paulista, e Petrópolis, no Rio de Janeiro, e de imagens do
a ganhar mais importância na dieta local e
satélite Goes em alta resolução. “O aplicativo pode ajudar as pessoas
como cultivo há cerca de quatro milênios.
a se preparar para enfrentar chuvas intensas, reduzindo a vulnerabili-
Os autores do estudo afirmam que, até o
dade da população”, diz o meteorologista Luiz Augusto T. Machado,
momento, o sítio de Monte Castelo é a pri-
pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e
meira evidência de domesticação de arroz
coordenador do Projeto Chuva. Já com 50 mil downloads, o SOS Chuva
nas Américas.
pode ser baixado em celulares com os sistemas Android e iOS da Apple.
14 | outubro DE 2017
fotos 1 Jee & Rani Nature Photography / Wikimedia Commons 2 Reprodução da tela 3 Wikimedia Commons 4 Jon Rou 5 Bryce Vickmark 6 Ican/Flickr 7 Colaboração Ligo
nio dos indígenas da região. A equipe, che-
Nobel Barry C. Barish, Kip S. Thorne e Rainer Weiss
Richard H. Thaler 3
física
4
5
6
-tempo. Entre os mais de
A física Olga Botner, da
economia
mil pesquisadores de 18
comissão que decide o
países (Brasil inclusive)
Nobel, destacou que os
que participam do Ligo,
três selecionados têm
a academia selecionou
competências bem
três físicos que foram
complementares. Weiss
importantes na história
teve a ideia e deu forma
Uma teoria da contabilidade mental
do observatório para
ao projeto Ligo a partir
Desde 2016 se
receber o Nobel. O
dos anos 1960. Ele
Por seus estudos pioneiros em um campo
especulava que a
alemão Rainer Weiss, do
desenvolveu o protótipo,
conhecido como economia comportamen-
detecção de ondas
Instituto de Tecnologia
demonstrou o princípio e
tal, o norte-americano Richard H. Thaler,
gravitacionais, um
de Massachusetts (MIT),
mapeou as fontes de som
de 72 anos, foi agraciado com o Nobel.
fenômeno previsto por
ficou com metade do
que seriam detectadas.
Professor emérito de economia e ciências
Albert Einstein (1879-
prêmio de 9 milhões de
Thorne, um dos
comportamentais da Universidade de Chi-
1955) um século atrás,
coroas suecas, cerca
fundadores do Ligo, teve
cago, nos Estados Unidos, Thaler incorpo-
fosse um avanço
de R$ 3,5 milhões. A outra
um papel importante na
rou suposições psicologicamente realistas
científico digno da
metade foi dividida entre
teoria que definiu o que se
ao processo de tomada de decisões eco-
premiação. Ano passado,
os norte-americanos
deveria procurar. Barish,
nômicas e desenvolveu uma teoria da con-
o Nobel não veio para os
Barry C. Barish, de 81
definido por Olga como o
tabilidade mental. Suas análises levam em
envolvidos com a
anos, e Kip S. Thorne,
visionário por trás da
conta três traços psicológicos que sistema-
descoberta, pois o feito
de 77, ambos do Instituto
iniciativa de aumentar
ticamente influenciam pessoas em suas
era recente demais.
de Tecnologia da
a sensibilidade do
decisões econômicas: racionalidade limi-
Mas, em 2017, a Real
Califórnia (Caltech).
instrumento para
tada, percepções sobre equidade e falta de
Academia Sueca de
possibilitar a detecção,
autocontrole. Segundo sua teoria de con-
Ciências reconheceu
uniu-se ao projeto em
tabilidade mental, as pessoas simplificam
1994 e foi seu principal
suas decisões financeiras e criam contas
pesquisador até 2005.
separadas em suas mentes nas quais privi-
Ondas gravitacionais premiadas
a contribuição dada pela colaboração científica internacional abrigada no Observatório
Representação artística da fusão de dois buracos negros
legiam o pequeno impacto de cada decisão 7
individual em vez de seu efeito geral. Outro
Interferométrico de
ponto importante de sua contribuição ex-
Ondas Gravitacionais
plora a tensão interna que existe nas pes-
(Ligo), nos Estados
soas entre o planejamento de longo prazo
Unidos, cujos detectores
(como poupar para aposentadoria) e as
mediram pela primeira
ações de curto prazo (comprar produtos
vez as ondas
para satisfação imediata). Nesse contexto,
gravitacionais,
Thaler produziu estudos que mostram como
resultantes do processo
o conceito de nudging – às vezes traduzido
de fusão de dois buracos
como arquitetura de escolha ou simples-
negros, em setembro de
mente um empurrãozinho – leva as pessoas
2015. Até agora, o Ligo
a tomar a decisão que se quer estimular,
mediu em quatro
sem, no entanto, que ela tenha de receber
ocasiões esse fenômeno,
algum tipo de incentivo direto ou seja coa-
que deforma o espaço-
gida a agir assim. PESQUISA FAPESP 260 | 15
paz
Luta contra as armas nucleares Em vez de uma pessoa, uma organização não governamental ganhou o prêmio de 2017: a Campanha Internacional para Abolir Armas Nucleares (Ican). De acordo com a advogada norueguesa Berit Reiss1
2
medicina
Nobel reconhece estudos sobre o ritmo biológico
3
Michael Rosbash, Jeffrey C. Hall e Michael W. Young
-Andersen, do comitê norueguês do Nobel, que define o prêmio da Paz, o Ican teve um papel de destaque em relação a iniciativas de desarmamento ao longo do último ano, chamando a atenção do público para as consequências humanitárias catastróficas do uso de armas nucleares.
DNA e comportamento.
grega parceiros em 101 países, incluindo
norte-americanos
O anúncio da láurea de
o Brasil. “Buscamos uma mudança de
receberam o Nobel por
Medicina quase sempre
enfoque que foi muito bem-sucedida”, diz
desvendarem o
é uma surpresa, mas,
o brasileiro Cristian Wittmann, professor
mecanismo por trás do
para a bióloga Maisa
de direito na Universidade Federal do
ciclo circadiano, o
Araújo, o prêmio deste
Pampa, em Santana do Livramento (Rio
relógio biológico que
ano não foi inesperado.
Grande do Sul), e integrante do comitê
regula em animais e
“Eles trabalham com isso
gestor do Ican. “Antes a preocupação
plantas os padrões
há anos em colaboração
era impedir a proliferação de armas nu-
diários de
estreita e produzem
cleares, não criar novos focos de confli-
comportamento e
resultados de alta
to; mas o risco é iminente, intencional
funções vitais, como o
qualidade”, avalia a
ou não, e era preciso criar um tratado de
metabolismo, níveis de
pesquisadora, que em
proibição.” O Tratado sobre a Proibição
hormônio, sono e
abril de 2017 voltou de
de Armas Nucleares, resultado de exten-
temperatura corporal.
um estágio de pós-
sas negociações por gerações de repre-
Jeffrey C. Hall, de 72
doutorado de dois anos
sentantes dos Estados no âmbito da
anos, Michael Rosbash,
no laboratório de
Organização das Nações Unidas (ONU),
de 73, e Michael W.
Rosbash e agora está na
foi aprovado neste ano e, em 20 de se-
Young, de 68,
Fundação Oswaldo Cruz
tembro, começou a receber assinaturas.
compartilham o prêmio
(Fiocruz) em
A começar pela brasileira. Depois das
de Medicina ou
Rondônia. O Prêmio
Fisiologia. Os dois
Nobel reconheceu a
primeiros foram
importância
agraciados por trabalhos
fundamental do ciclo
feitos na Universidade
circadiano para a vida de
Brandeis, em
qualquer organismo.
Massachusetts, nos
Não basta se adaptar às
Estados Unidos, e o
situações; prever o que
último por pesquisas na
vai acontecer em
Universidade
seguida é essencial para
Rockefeller, em Nova
a sobrevivência. “Há
York. Ao isolar, a partir
uma grande vantagem
dos anos 1970, genes
em usar as primeiras
ligados ao ritmo
horas do dia para caçar
biológico, como o
ou evitar ser comido”,
timeless (TIM) e o period
exemplificou Anna
(PER), eles foram
Wedell, chefe da
pioneiros em estabelecer
comissão que definiu o
conexões diretas entre
prêmio de Medicina.
16 | outubro DE 2017
assinaturas, o documento precisa ser Manifestação do Ican na Austrália em junho de 2017 contra as armas nucleares
ratificado: são necessárias 50 ratificações para que entre em vigor e espera-se mudanças reais quando isso acontecer. 4
fotos 1 e 2 Universidade Brandeis 3 Universidade Rockefeller 4 Universidade de Chicago 5 UNIL
Fundada há 10 anos, a organização conTrês geneticistas
química
Moléculas biológicas em 3D Jacques Dubochet, Richard Henderson e Joachim Frank
Responsável por uma revolução na bioquímica por permitir enxergar a 5
estrutura atômica
6
7
fotos 6 MRC Laboratory of Molecular Biology 7 Centro Médico da Universidade Columbia 8 Jeff Cottenden
tridimensional de moléculas biológicas, a
permite criar um modelo
área de criomicroscopia
tridimensional nítido a
eletrônica foi destacada
partir de imagens
pelo Nobel. O biólogo
bidimensionais. Com
escocês Richard
isso, ele aumentou as
Henderson, de 72 anos,
possibilidades de
da Universidade de
aplicações da técnica.
Cambridge, no Reino
Dubochet conseguiu
Unido, e os biofísicos
acrescentar água ao
Joachim Frank, de 77,
sistema, de uma maneira
alemão radicado na
especial. No vácuo,
Universidade Columbia,
necessário ao
O escritor nipo-britânico Kazuo
Estados Unidos, e
funcionamento do
Ishiguro, de 62 anos, levou a
Jacques Dubochet, de
microscópio, a água
honraria deste ano. Ele nasceu
75, da Universidade de
líquida evapora e as
Lausanne, na Suíça,
moléculas colapsam.
dividiram em três partes
Ao resfriar rapidamente
anos. Ishiguro, que escreve em inglês, é
iguais o prêmio.
a gota de água que
autor de oito livros, o primeiro deles
Henderson foi o primeiro
envolve a amostra, ele
publicado em 1982. Vestígios do dia
a obter uma imagem
conseguiu que ela
(1989), vencedor do Booker Prize, e Não
tridimensional com
adquirisse uma estrutura
me abandone jamais (2005) foram adap-
resolução atômica
semelhante à do vidro
tados para o cinema. No Brasil, a Com-
usando criomicroscopia,
(vitrificação), na qual as
panhia das Letras edita sua obra e pu-
em 1990. Até então, o
moléculas mantêm sua
blicou cinco livros, entre eles Quando
método que permitia
configuração natural.
éramos órfãos (2000), Noturnos (2009)
obter imagens mais
Assim é possível
e O gigante enterrado (2015), seu mais
detalhadas era a
observar a sua estrutura,
recente trabalho. Segundo a Academia
cristalografia, mas nem
ver como a conformação
Sueca, a memória, o tempo e a desilusão
sempre funcionava.
de proteínas se altera
de si próprio são temas marcantes na
“Muitas estruturas em
em determinadas
trajetória literária do escritor. Após o
biologia eram resistentes
situações e como as
anúncio, Sara Danius, secretária da aca-
aos outros métodos,
moléculas interagem.
demia, explicou que, em sua obra, Ishi-
como a cristalografia
“O uso de
guro demonstra uma preocupação em
por raio X ou a
criomicroscopia
compreender o passado “não para o
espectroscopia de
eletrônica para análise
redimir, mas para revelar o que temos
ressonância magnética
de biomoléculas nos
de esquecer para podermos sobreviver
nuclear”, explicou
permite, literalmente,
enquanto indivíduos e enquanto socie-
Henderson ao site do
ver as moléculas no
dade”. Em entrevista publicada no site
Prêmio Nobel. Esse era o
estado em que se
do Prêmio Nobel, o escritor mostrou-se
caso das proteínas de
encontram em solução”,
surpreso por ter ganho o reconhecimen-
membrana celular que
comenta o físico Rodrigo
to no ano seguinte a Bob Dylan, seu
ele estudava. Frank
Portugal, do Laboratório
herói desde os 13 anos. Ishiguro deu uma
desenvolveu entre 1975
Nacional de
palestra na Universidade de São Paulo
e 1986 um método de
Nanotecnologia
(USP) há cerca de 20 anos, a convite do
processamento que
(LNNano), em Campinas.
Conselho Britânico.
literatura
8
O tempo e a memória de um nipo-britânico
em Nagasaki, no Japão, e muKazuo Ishiguro
dou-se para a Inglaterra aos 5
PESQUISA FAPESP 260 | 17
capa
Thiago Turaça, pesquisador da equipe do InCor, prepara cÊlulas-tronco para experimento
18 | outubro DE 2017
De volta à bancada Testada em seres humanos desde os anos 2000, terapia com células-tronco para problemas cardíacos não apresenta resultados conclusivos e leva a novos testes in vitro e com animais Ricardo Zorzetto
léo ramos chaves
P
or algum tempo se pensou que as células-tronco adultas extraídas do interior dos ossos ou da camada de gordura sob a pele resolveriam um antigo problema da cardiologia. Capazes de se multiplicar e gerar células de alguns outros tecidos, elas supririam o coração com novas células cardíacas. Experimentos com animais e seres humanos feitos na década passada sugeriam que bastava implantá-las na quantidade e no lugar certos para pôr fim a uma limitação natural desse órgão, que bate 86.400 vezes por dia e não repõe as células mortas ao longo da vida. Como toda célula madura e especializada em executar uma função – a das cardíacas é contrair e relaxar ciclicamente –, essas células têm uma capacidade limitada de se dividir, o que impede a reparação do órgão em eventos de morte celular em massa, como o infarto. Hoje se sabe que as células-tronco adultas são versáteis, mas não mágicas. Sozinhas, não restauram o coração, embora liberem compostos que podem evitar a morte de células cardíacas e estimular a formação de vasos sanguíneos. Após uma fase de otimismo excessivo, especialistas em importantes centros de pesquisa e tratamento em cardiologia do mundo tiveram de voltar à bancada e realizar mais testes – com células, roedores e animais maiores –, ao mesmo tempo que continuavam a avaliar o uso
dessas células em pessoas com problemas cardíacos. Desse recuo necessário e estratégico, podem emergir novos usos para as células-tronco adultas, que são encontradas em alguns tecidos do corpo, mas são menos versáteis do que as extraídas de embriões – as células-tronco embrionárias, estas, sim, capazes de originar células de qualquer tecido. Em vez de fazer corações combalidos funcionarem como novos, as células-tronco adultas talvez possam otimizar o desempenho de terapias e medicamentos disponíveis. As esperanças atuais de reparação do tecido cardíaco recaem sobre células mais versáteis, como as obtidas a partir de células-tronco de pluripotência induzida (ver quadro na página 23). “Atualmente enxergamos as células-tronco adultas de maneira diferente, com uma plasticidade [capacidade de originar células de diferentes tecidos] limitada, mas ainda com potencial de modificar o ambiente no qual elas são inseridas”, afirma o biólogo Rafael Dariolli, membro de uma equipe no Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP) que investiga a utilidade das células-tronco para tratar problemas cardíacos. O grupo é coordenado pelo médico e pesquisador José Eduardo Krieger, responsável por um ensaio clínico do Ministério da Saúde que avalia a capacidade das células-tronco adultas de melhorar a irrigação do músculo cardía-
PESQUISA FAPESP 260 | 19
co em pessoas com isquemia crônica (redução no fluxo de sangue para o coração). Em paralelo aos testes com seres humanos, Krieger e sua equipe retomaram várias vezes os experimentos em laboratório para entender como essas células se comportam – em um estudo recente, feito com porcos e publicado na revista PLOS ONE, Dariolli, Krieger e colaboradores mostraram que células-tronco extraídas da gordura aumentaram a formação de vasos e a irrigação do tecido cardíaco, além de reduzir a cicatriz causada pelo infarto, permitindo ao coração contrair melhor. “A ciência tem uma dinâmica própria, que, muitas vezes, gera incertezas”, pondera a socióloga Maria Conceição da Costa. Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela estuda como governos, pesquisadores, agências de fomento e a população influenciam a agenda científica de um país e está começando a comparar a regulamentação de pesquisas e terapias com células-tronco no Brasil e na Índia. “Às vezes, é preciso mais tempo para entender se e como certas técnicas funcionam.” Krieger concorda: “Se uma tecnologia não está madura para se tornar um tratamento, é preciso dar um passo atrás”.
S
e até hoje não se conhece bem como essas células funcionam, não teria sido precipitado testá-las em seres humanos no início dos anos 2000? “Não considero que os ensaios clínicos tenham começado cedo demais”, afirmou a pesquisadora Enca Martin Rendon, do Instituto de Células-tronco de Oxford, um dos centros ligados à Universidade de Oxford, na Inglaterra, à Pesquisa FAPESP. “Já tínhamos um conhecimento extensivo sobre células-tronco da medula óssea, usadas havia mais de 40 anos em transplantes de medula para tratar alguns cânceres sanguíneos.” Não foi apenas a experiência prévia dos transplantes de medula que permitiu a transição rápida, em apenas dois anos, dos testes com animais para os ensaios clínicos com seres humanos para verificar a eficácia das células-tronco na reparação cardíaca. Na virada do milênio, surgiram estudos propondo propriedades até então não imaginadas para as células-tronco adultas. “A partir de 1999, fomos inundados por publicações de alto impacto indicando que essas células teriam uma plasticidade comparável à das células-tronco embrionárias”, recorda o fisiologista Antonio Carlos Campos de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com o biólogo croata Raduan Borojevic, também professor da UFRJ, Carvalho havia concluído em 2001 experimentos sugerindo que células-tronco adultas injetadas no coração de ratos com insuficiência cardíaca melhoravam a capacidade do órgão de se contrair. Esse trabalho ajudou a embasar um dos primeiros ensaios clínicos com esse tipo de célula no país, 20 | outubro DE 2017
Estudos iniciais sugeriam que células-tronco adultas poderiam regenerar o tecido cardíaco
finalizado em 2003 – pouco depois, como coordenador de ensino e pesquisa no Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio, Carvalho comandou um dos maiores ensaios clínicos com células-tronco para tratamento cardíaco já realizados no mundo. O estudo que mais impactou e estimulou as pesquisas com células-tronco na cardiologia, a área da saúde em que os estudos com essas células mais avançaram, foi publicado em 5 de abril de 2001 na revista Nature. Em um artigo de quatro páginas, o grupo do médico ítalo-americano Piero Anversa, então um eminente pesquisador na área de doenças cardiovasculares no New York Medical College, nos Estados Unidos, apresentou os resultados que deixariam uma parte dos pesquisadores de reparação cardíaca maravilhada – e outra parte desconfiada. Os experimentos indicavam que células-tronco adultas (da medula óssea) injetadas no coração de camundongos teriam originado, além de vasos, células cardíacas que repovoaram 70% da área danificada no infarto. Mais importante, as novas células pareciam capazes de contrair e melhorar o batimento cardíaco. “Era tudo o que queríamos ouvir”, conta Krieger. “Naquele momento, pensamos que os problemas de reparação cardíaca estavam resolvidos.” Havia mais. No ano seguinte Anversa e sua equipe relataram no New England Journal of Medicine que, em corações transplantados, até 10% das células cardíacas seriam originárias do próprio receptor, sugerindo que o órgão poderia se regenerar a partir de células-troncos da circulação sanguínea. Em 2003, na Cell, o grupo informou ter identificado, por fim, células-tronco específicas do coração. Um pouco antes haviam surgido indícios de que era seguro injetar essas células no coração humano. Em setembro de 2001, o cirurgião Kimikazu Hamano e outros pesquisadores da Universidade Yamaguchi, no Japão, relataram no Japanese Circulation Journal os resultados de um ensaio clínico de segurança, feito para verificar se o tratamento não causa danos à saúde. Após testes em cães, eles injetaram células-tronco da medula óssea no coração de cinco pessoas submetidas a uma cirurgia de revascularização cardíaca. Um
1
Aglomerado de células-tronco do tecido adiposo cultivadas no laboratório do InCor para serem implantadas no coração de porcos que sofreram infarto
ano depois, não havia sinais de efeitos indesejados, e a circulação local havia melhorado em três delas. Em outubro do ano seguinte, o grupo do cardiologista Bodo Strauer, da Universidade de Dusseldorf, Alemanha, apresentou na revista Circulation dados indicando uma redução maior na área de infarto no coração de 10 pessoas tratadas com medicamentos e células-tronco do que no de outras 10 apenas medicadas.
foto rafael dariolli / incor-usp
O
Brasil não estava atrás. O cardiologista Hans Dohmann e sua equipe no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, em parceria com Emerson Perin, cardiologista brasileiro do Texas Heart Institute, já haviam implantado células-tronco no coração de 14 pessoas com insuficiência cardíaca crônica em um estudo com 21 participantes (ver Pesquisa FAPESP nº 88). Das 14 tratadas com as células, 12 sobreviveram e apresentaram aumento na irrigação e na capacidade de contração do órgão, segundo dados publicados em 2003 na Circulation. Não houve melhora significativa nos sete indivíduos do grupo de controle. Por volta dessa época, começavam a surgir questionamentos. Intrigados com os achados de Anversa, vários grupos tentaram replicar seus
experimentos sem sucesso. Charles Murry, da Universidade de Washington, e Loren Field, da Universidade de Indiana, publicaram em 2004 na Nature um artigo afirmando que, diferentemente do que Anversa teria observado, células-tronco da medula óssea não se transformavam em células cardíacas – a desconfiança sobre os trabalhos de Anversa cresceram nos anos seguintes e levaram a Universidade Harvard, para onde ele se transferiu mais tarde, a abrir investigação sobre alguns estudos e pedir a retratação de um artigo de 2012 e colocar sob suspeita um de 2011; seus achados mais antigos não foram reproduzidos, perdendo credibilidade. “O conhecimento nessa área se comportou como um pêndulo”, conta Carvalho, da UFRJ. “Em um primeiro momento se acreditou que as células-tronco adultas originavam qualquer coisa, para, anos depois, as mais importantes revistas científicas publicarem artigos indicando que nada disso acontecia.” Ainda era pouco para reavaliar o que parecia ir bem. Os ensaios em andamento eram, em geral, pequenos (de fase 1), destinados a verificar a segurança do tratamento. Quase sempre mostravam resultados animadores, como o conduzido por Dohmann no Brasil. Na época, estavam no início os estudos de fase 2, com mais participantes e metodologia mais rigorosa – comparando a injeção de células-tronco com a de um composto inócuo (placebo) e selecionando aleatoriamente o que seria administrado a cada participante. À medida que se tornaram conhecidos os resultados dos ensaios de fase 2, a magia inicial das células-tronco adultas começou a se desfazer. O POSEIDON, feito com 37 pessoas nos Estados PESQUISA FAPESP 260 | 21
Unidos, o BOOST-2, realizado com 153 pacientes na Alemanha e na Noruega, e o TECAM Trial, que envolveu 120 participantes na Espanha, indicaram um benefício mais modesto do que o observado anteriormente. No Brasil, os dados já publicados de um dos maiores ensaios clínicos para avaliar a eficácia das células-tronco adultas na reparação cardíaca também não animam. Lançado em 2004 pelo Ministério da Saúde, o estudo multicêntrico randomizado de terapia celular em cardiopatias (Miheart) custou R$ 13 milhões e tinha por meta tratar com células-tronco da medula óssea 1.200 pessoas vítimas de infarto, doença isquêmica crônica, cardiomiopatia dilatada e cardiomiopatia causada pela doença de Chagas.
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Em verde, células semelhantes às do coração, obtidas a partir de células pluripotentes
Células-tronco adultas não reparam o coração, mas liberam compostos que reduzem os danos
para outros tipos de células.” Apesar de sua visão crítica, ele não desistiu. Retomou os testes com animais e, com a parasitologista Maria Terezinha Bahia, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), tenta utilizar células-tronco do tecido adiposo, mais homogêneas do que as da medula óssea, para tratar o coração de cães com Chagas. No InCor, Krieger segue otimista. Para ele, o experimento com os porcos e a revisão do papel das células-tronco adultas abrem novas possibilidades de uso – em especial, para as extraídas da gordura. Ele e Dariolli atribuem a melhora no coração dos animais à capacidade dessas células de tornar o ambiente da lesão menos hostil. Elas liberam ao menos 30 compostos. Alguns estimulam a formação de vasos sanguíneos; outros podem controlar a inflamação e evitar uma degradação maior do tecido privado de sangue. “Essas células não reparam o coração, mas talvez aumentem a eficácia de tratamentos clínicos e cirúrgicos existentes”, diz Krieger. Ele suspeita ainda de que elas possam beneficiar pessoas com danos cardíacos menos graves que os tratados nos primeiros ensaios clínicos. Enca Rendon, de Oxford, também
foto rafael dariolli e chrystian j. alves
ois de seus quatro braços já foram concluídos, e os resultados publicados sem chamar muita atenção. Um deles avaliou a injeção de células-tronco nas artérias que irrigam o coração para melhorar a função cardíaca em 183 pessoas com Chagas. Outro investigou o efeito dessas células em 160 participantes com cardiomiopatia dilatada, aumento do coração que dificulta o bombeamento de sangue. Em ambos os casos, a melhora provocada pelas células foi semelhante à apresentada por quem recebeu placebo. Os dados do terceiro braço (infarto) estão submetidos para publicação e também não mostram vantagens; os do quarto (isquemia crônica) se encontram em análise. Com o que se conhece até o momento, não haveria razão para indicar o uso dessas células para tratar os problemas avaliados no Miheart. Ao menos, não para o nível de gravidade, em geral elevado, dos casos incluídos no estudo. Estudos de meta-análise, que se valem de ferramentas estatísticas para agrupar ensaios clínicos semelhantes e aumentar o número de casos em busca de efeitos mais sutis, são igualmente inconclusivos até o momento. Uma das razões é que há diferenças na concepção dos ensaios, o que dificulta analisar os dados em conjunto – a estratégia de injeção de células-tronco pode variar (nas artérias ou no músculo cardíaco) e o desfecho que se mede também pode mudar (por exemplo, aumento na capacidade de bombeamento ou redução na mortalidade). Em um comentário publicado em junho deste ano no British Medical Journal, Enca Martin Rendon e seu grupo, após analisar 38 ensaios clínicos, afirmam que é preciso esperar os resultados de trabalhos com mais pessoas antes que se possa recomendar ou não o uso das células-tronco adultas na prática clínica. Um dos estudos aguardados é o ensaio clínico europeu BAMI, que pretende testar células-tronco da medula óssea em 3 mil vítimas de infarto. “Se o BAMI não mostrar benefícios, não haverá mais o que discutir”, diz Carvalho. “Será preciso partir
Apostas de restauração ilustraÇão pedro hamdan
Grupos de vários países testam diferentes tipos de células para reparar danos no tecido cardíaco
Células precursoras do músculo esquelético Em 2000, após testes com ratos, o grupo do cirurgião Philippe Menasché, do Instituto Nacional de Pesquisa e Saúde (Inserm) da França, implantou células imaturas do músculo esquelético no coração de pessoas após o infarto. O órgão melhorou, mas surgiram arritmias. O uso dessas células foi abandonado
Células-tronco mesenquimais da medula óssea Encontradas no interior dos ossos, começaram a ser testadas em seres humanos no início da década passada. Hoje se sabe que não originam células cardíacas, mas estimulam a formação de vasos e evitam a morte de células do coração. Os ensaios clínicos ainda não permitem concluir se vale a pena utilizá-las
Células-tronco mesenquimais do tecido adiposo Semelhantes às células-tronco do interior dos ossos, existem em grande quantidade na gordura que se acumula sob a pele. Só agora começam a ser usadas em ensaios clínicos com um número restrito de pessoas, planejados para verificar se não causariam danos à saúde
Células-tronco cardíacas Identificadas no coração em 2003 por Piero Anversa, à época pesquisador do New York Medical College, nos EUA, gerariam células cardíacas. Foram implantadas por Anversa e Roberto Bolli, da Universidade Louisville, EUA, em 33 pacientes e, segundo dados publicados em 2012, melhoraram o funcionamento cardíaco Células progenitoras cardíacas São células imaturas retiradas do próprio coração e depois cultivadas em laboratório até se transformarem em células cardíacas. Um pequeno ensaio clínico conduzido pela equipe do cardiologista Eduardo Marbán, do Instituto do Coração Cedars-Sinai, nos EUA, publicado em 2014, sugeriu que seu uso seria seguro e reduziria a cicatriz causada pelo infarto
Células-tronco de pluripotência induzida (iPS) Obtidas a partir de células da pele ou do sangue reprogramadas em laboratório, são similares às células-tronco embrionárias e originam cardiomiócitos, as células contráteis do coração. Nos últimos cinco anos, cardiomiócitos originados a partir dessas células vêm sendo testados em macacos e porcos. Em alguns casos, causaram arritmia
Células-tronco embrionárias humanas Retiradas de embriões humanos nos primeiros dias de vida, são capazes de gerar células de todos os tecidos do corpo, inclusive do coração. Foram testadas em animais de laboratório e, em 2015, implantadas em um paciente pela equipe de Philippe Menasché, do Inserm. Sua extração provoca polêmica por destruir o embrião
Fonte Antonio Carlos Campos de Carvalho / UFRJ
vê potencial nessas células – e em células imaturas do coração (progenitores cardíacos) – para amenizar a insuficiência cardíaca, hoje resolvida com o transplante do órgão. No exterior, já se iniciaram testes com células-tronco aparentemente mais versáteis. O cardiologista Eduardo Marbán e sua equipe no Instituto do Coração Cedars-Sinai, na Califórnia, já inseriram no coração de animais e seres humanos células obtidas de progenitores cardíacos e, depois, cultivadas em laboratório. Um ensaio de segurança, com 17 pessoas vítimas de infarto, sinalizou que o procedimento era seguro e teria reduzido a cicatriz no coração, segundo artigo de 2014 no Journal of American College of Cardiology. Na Universidade de Osaka, Japão, o cardiologista Yoshiki Sawa e seus colaboradores implantaram no coração de porcos células cardíacas (cardiomiócitos) humanas obtidas de células-tronco de pluripotência induzida (iPS), células adultas reprogramadas para se comportarem como células-tronco. Análises iniciais apresentadas em agosto deste ano na Scientific Reports indicam que as células se incorporaram ao órgão e melhoraram sua capacidade de bombear sangue. Mas nem sempre os resultados animam. No Simpósio de Medicina Regenerativa Cardiovascular, realizado em setembro nos Estados Unidos, Michael Laflamme, do Instituto de Pesquisa do Hospital Geral de Toronto, no Canadá, relatou seus experimentos com cardiomiócitos humanos obtidos de células iPS. Implantados no coração de porcos, eles se integraram à região do infarto, mas não houve benefícios e, dos sete animais tratados, dois morreram em consequência de alterações nos batimentos cardíacos (arritmia). “Agora se busca compreender o que causa essa arritmia”, conta Carvalho, que acompanhou o evento. “Na ciência médica, veem-se mais controvérsias do que certezas”, conta Rafaela Zorzanelli, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que, com colaboradores, traçou a evolução das pesquisas com células-tronco no Brasil em um artigo de outubro de 2016 na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. “Hoje talvez haja menos expectativas grandiosas sobre o uso das células-tronco. Não creio que seja um retrocesso, mas uma perspectiva mais realista do que esperar desse tipo de biotecnologia.” n
Projeto Genômica cardiovascular: Mecanismos e novas terapias – CVGen mech2ther (nº 13/17368-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável José Eduardo Krieger (InCor-USP); Investimento R$ 6.902.193,63.
Artigo científico DARIOLLI, R. et al. Allogeneic pASC transplantation in humanized pigs attenuates cardiac remodeling post-myocardial infarction. PLOS ONE. 27 abr. 2017.
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idade 71 anos especialidade Botânica formação Graduação em história natural (1967) pela Faculdade Frassinetti do Recife, mestrado (1970) e doutorado (1978) pela Universidade de São Paulo instituição Universidade de São Paulo (1975-1996), Universidade Estadual de Feira de Santana (desde 1996), Instituto Tecnológico Vale (desde 2014) produção científica 250 artigos e capítulos de livro, 14 livros, além de orientações ou coorientações de doutorado, mestrado e supervisões de pós-doutorado
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entrevista Ana Maria Giulietti Harley
De flor em flor Sem acomodar-se em universidade consagrada, botânica coleciona guinadas, floras e iniciativas para solidificar grupos de pesquisa Maria Guimarães |
ilustrações flora brasiliensis
Sempre-vivas: Paepalanthus speciosus (acima) e P. steudelianus (à dir.)
retrato
Bel Pedrosa
A
pernambucana Ana Maria Giulietti é reconhecida como professora da Universidade de São Paulo (USP), mas também da Estadual de Feira de Santana (UEFS). Em cada uma delas, deixou marcas de curiosidade e trabalho com afinco, desbravando áreas desconhecidas e ajudando a organizar instituições. Há poucos anos, porém, deixou (em suas palavras) rede e maniçoba na Bahia para enfrentar a Amazônia, um sonho antigo. Seu entusiasmo inesgotável agora rende frutos para o Instituto Tecnológico Vale (ITV), em Belém. No final de 2014 ela protagonizou a parceria entre o ITV e o Museu Paraense Emílio Goeldi para executar a tarefa hercúlea de catalogar e estudar as plantas da serra dos Carajás, no Pará, que deve ser concluída em fevereiro de 2018. A região, uma ilha de vegetação mais rasteira em meio à floresta amazônica típica, tem uma profusão de espécies raras de bichos e plantas que só existem ali e correm risco devido à mineração e à pecuária. “É uma biodiversidade única, maravilhosa, espetacular”, disse ela no final de agosto em palestra no Congresso Nacional de Botânica, no Rio de Janeiro, onde conversou com Pesquisa FAPESP durante o horário de almoço depois de uma noite de pouco sono. Resolveu aperfeiçoar a apresentação, na véspera, enquanto esperava a retransmissão de um jogo do Corinthians. Apesar de saber que o gol havia sido marcado no último miPESQUISA FAPESP 260 | 25
nuto se envolveu tanto no trabalho que, quando viu, tinha perdido. Ela declara que ser corintiana é um ponto que tem em comum com o primeiro marido, de quem se separou ao mudar-se para Feira de Santana. Os três filhos são a outra conexão. Atualmente é casada com o botânico britânico Ray Harley. Sem se deixar abater por um problema de audição sério, Ana parecia uma celebridade no congresso. Difícil resistir à analogia com suas plantas prediletas, a família das eriocauláceas: as populares sempre-vivas. Sua trajetória envolve muitas mudanças. O que conduz esses movimentos? Eu sou nordestina, pernambucana. Nasci em Pesqueira, no meio da Caatinga, e caí em São Paulo. Mas eu sempre dizia que queria voltar para o Nordeste, para minhas origens. Por que você foi para Feira de Santana, e não Recife? Em Recife já estava tudo feito, eu seria mais uma, e queria mostrar que era possível fazer algo do início. Um dia, quando estava na USP, recebi a divulgação de uma vaga de taxonomia de angiospermas com ênfase em monocotiledôneas na UEFS. Quando abri, achei que fosse um sinal, bem a minha área. Cheguei em casa e disse para o marido e os filhos: “Vou fazer esse concurso. Um deles me chamou a atenção. ‘Mãe, é para professor assistente’. Respondi: ‘Qual é o problema? Estou me aposentando da USP, posso fazer isso’”. No outro dia de manhã eu estava no laboratório e tocou o telefone. Era Fábio França, coordenador da área de botânica da UEFS, me convidando para integrar a banca. Eu disse que não podia aceitar porque queria concorrer, a não ser que houvesse um professor substituto ao qual a vaga fosse destinada. Se eles quisessem uma velhota meio saracoteadora, eu iria. Mas, antes, propus uma visita para explicar o que queria fazer. Se não houvesse condições, não iria. Quando cheguei, um monte de gente me esperava. A reitora já queria propor o mestrado, mas expliquei que com apenas um doutor não era possível. Eu sabia que os professores tinham mestrado, tinha visto os currículos de todos eles. Fiz o concurso e não tirei 10. Tirei 9,9 no currículo porque não pus resumos que tinha apresentado em congressos. No resto, tirei 10. Meu ex-mari26 | outubro DE 2017
Eu queria mostrar que é possível fazer pesquisa de qualidade em qualquer lugar, basta disposição
do trabalhava no Instituto de Economia Agrícola da Secretaria da Agricultura de São Paulo e disse que Feira de Santana era demais para ele, que não ia. Minha filha mais nova já tinha 21 anos, os três estavam na universidade e avisei, “Estou indo”. E fui. A conquista foi construir o curso? Exatamente. Cursei história natural na Faculdade Frassinetti do Recife. Minhas amigas que foram para a pesquisa diziam: “Você consegue tudo porque trabalha na USP, vem para cá ver os nossos problemas”. Eu dizia que quando pudesse me aposentar mostraria que é possível fazer pesquisa de boa qualidade em qualquer lugar, basta disposição. Então você se aposentou pela USP e mostrou que dava para trabalhar em Feira de Santana. Eu tinha a vantagem de conhecer muita gente, saber o caminho das pedras, perceber quando dá e quando não dá. Tive sorte também de ter uma reitora, Anaci Paim, que ficou encantada com a possibilidade de eu ir para lá. O governador da Bahia tinha declarado que queria melhorar o nível das universidades,
com contratação de professores visitantes que fossem doutores. Fui a primeira doutora a chegar na área de Botânica da UEFS, no corpo docente só havia mestres e especialistas. Então fizemos um plano de capacitação de cinco anos para todos fazerem doutorado. Conversei com vários professores da USP, para recebê-los depois de aprovados na seleção. O planejamento era que em cinco anos montaríamos o curso de mestrado e em sete anos o de doutorado. Cheguei em fevereiro de 1996, em março de 2000 implantamos o mestrado e em março de 2002 o doutorado. Hoje o curso de Botânica em Feira de Santana é nível 5 na avaliação da Capes. Foram quase 20 anos lá? Em 2008 decidi sair porque estava cuidando da minha mãe. Ela tinha quase 90 anos e sofria de diabetes. Queria morar em Salvador e era muito difícil ir e voltar todos os dias. Nos anos anteriores eu era pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação, era muito desgastante. Pensei em pedir demissão, mas, como eu tinha mais de 60 anos e mais de 12 anos de trabalho lá, fui aconselhada a pedir uma aposentadoria proporcional, assim continuaria na instituição. Parei de dar aulas na graduação porque já começava a ter problema auditivo, o que é muito limitante para dar aula. Preciso de outra pessoa junto comigo e quase não interajo com os alunos devido à pouca audição. Continuei dando aulas na pós-graduação para turmas pequenas e ainda tenho dois doutorandos. Mas em agosto de 2014 a bióloga Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, da USP, me ligou e disse que estava trabalhando no ITV. A instituição queria fazer um convênio com o Museu Paraense Emílio Goeldi para estudar a flora de Carajás. Ela disse algumas palavras-chave para mim: Amazônia e campo rupestre! Uma semana depois fui conversar com eles e telefonei para o Ricardo Secco, do Goeldi, “Junte todos que vou aí para fazermos um convênio”. Quando cheguei, estavam todos lá e contei que se eles assinassem o convênio para trabalharmos juntos em Carajás eu iria para Belém. Redigimos um documento com metas que todos diziam ser impossível cumprir. O ITV já tinha dito que me daria todas as condições de fazer, só era preciso trabalhar. Foram três anos intensos. Às vezes, passamos de 10 a 15 dias no campo a cada
arquivo Pessoal
Trabalho de campo em Mucugê, Bahia, 1980: Condessa Beatrix Orssich, Raymond Harley, Nanuza Luiza de Menezes, Pat Brennan (da esq. para a dir. atrás); motorista, Ana Giulietti, Graça Sajo, Maria Mercedes Arbo e João Semir (frente)
mês. Outras vezes até mais, 20 dias. Era importante para mim que meu atual marido, Ray Harley, pudesse me acompanhar. Ele é botânico também e sobe serra com mais força até do que eu, apesar de ter 10 anos a mais. Ele é inglês? É. Eu o conhecia desde 1968, quando veio para uma expedição da Royal Society em Xavantina, Mato Grosso. Eu estava fazendo parte do mestrado na Universidade de Brasília com a Graziela Maciel Barroso. Ela foi convidada para ir ao acampamento e fui junto. Lá conheci o Ray e ficamos amigos desde então. Ele era casado, depois se separou e casou de novo, eu me casei e tive filhos. Tivemos projetos conjuntos entre a USP e o Jardim Botânico Real de Kew, na Inglaterra, onde ele trabalhava. Um ano depois que fui para a UEFS ele se aposentou, ganhou uma bolsa para a Bahia e resolveu morar em Feira de Santana. Estávamos os dois solteiros. Depois de 30 anos começamos a namorar, mas não tínhamos pensado em nos casar. Compramos uma casa em Rio de Contas, no sul da Chapada Diamantina, na Bahia. Metade de cada um, não era para ser como casal. Mas durante uma excursão umas abelhas me pegaram em cheio no rosto. Fiquei muito inchada, a médica pediu uma radiografia e viram que tenho a síndrome de Paget, um problema do metabolismo que retira o cálcio dos ossos e deposita em outro lugar. É uma doença genética incurável que no meu caso leva à surdez, porque vai preenchen-
do os ossos do crânio. É mais comum na Holanda e no norte da Inglaterra, ninguém aqui conhecia. Pesquisei na internet e encontrei um médico especialista no Recife, Francisco Bandeira. Ele tinha feito um pós-doutorado em Oxford, na Inglaterra, para trabalhar com metabolismo exatamente onde a incidência dessa doença é grande. Quando voltou para Recife, percebeu que vários pacientes que ele tratava como portadores de artrose, na verdade tinham Paget, o que ele atribuiu à presença holandesa que houve na região. Fui para Recife e fiz o que chamavam de tratamento de choque, fiquei internada no hospital por duas semanas com medicação na veia. Fiquei na casa dos meus pais, que ainda moravam lá. O Ray estava na Inglaterra e ligou assim que saí do hospital. Depois de conversar comigo, falou com meu pai e pediu minha mão em casamento. Fiquei surpresa, não era nosso plano. Mas ele tinha descoberto uma Associação de Paget na Inglaterra e se fôssemos casados eu teria acesso a mais tratamentos. Ele disse, “Eu gosto de você, quero ficar com você toda a vida, quero casar com você”. Três meses depois, nos casamos na Inglaterra. Nem posso falar mal da doença, até me casei com meu segundo marido por causa dela. Estamos casados há 17 anos. Voltando para a pesquisa: o tipo de projeto que envolve muita gente, como o do ITV, propicia a formação de recursos humanos. Isso é importante para você? Sim. Sempre priorizei a formação de re-
cursos humanos, acho que passaram pelas minhas mãos mais de 100 alunos hoje espalhados em várias regiões do país e até fora, são o meu orgulho. O ITV se associou ao CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para a implantação de 50 bolsas de pesquisa. No ano passado o instituto elaborou um programa de pós-doutorado com a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior], também no modelo da associação público-privado. No mestrado em desenvolvimento sustentável dou aula sobre espécies ameaçadas, endêmicas e raras, além das leis que controlam sua ocorrência em áreas onde há utilização dos recursos naturais. As coletas de plantas em Carajás, ligadas ao licenciamento da mineração, iniciaram-se na década de 1970 e em 2015 partimos de cerca de 300 espécies conhecidas para mais de mil. Quando concluída, a flora da canga, nos afloramentos ferríferos, representará mais de 10% da flora registrada para o Pará inteiro. Certamente esse dado não corresponde à real diversidade do Pará, o que temos é ainda um enorme desconhecimento dessa flora e muitas lacunas a ser preenchidas. O paradigma de se é possível ter compatibilização de desenvolvimento sustentável com a utilização de recursos naturais e da floresta me instiga muito. E tem outras perguntas: será que canga é realmente campo rupestre? Que adaptações ela tem? Não são só perguntas práticas, mas acadêmicas mesmo. Você não sabe as respostas? Não, ainda não existem as respostas. Teve uma mesa-redonda de campos rupestres aqui no congresso, eu disse ao Pirani [José Rubens Pirani, professor da USP] que as questões que eles estavam discutindo eram as mesmas que tínhamos há 30 anos, quando ele foi meu primeiro aluno de iniciação científica. Levou esse tempo todo para começarmos a entender que flora é aquela, de onde ela vem, como pode ter campo rupestre em Minas separado da Bahia. Os gêneros são mais ou menos os mesmos, mas com uma diversidade diferente, as espécies são outras. Sabemos que a serra do Espinhaço, em Minas e na Bahia, está levantada desde o período Cretáceo, assim como Carajás, que a vegetação das cimeiras está lá desde o Terciário. Se conhecermos melhor, fica mais fácil conservar o que precisa PESQUISA FAPESP 260 | 27
Trabalhando na flora de Carajás este ano no herbário do projeto, com o técnico Lourival Tisky
ser conservado. Porque não é possível preservar todas as populações, mas algumas precisam ser mantidas para não levarmos espécies à extinção. O que vocês descobriram de mais interessante sobre Carajás? É o conjunto dos dados. As áreas em Carajás sobem e descem ao longo do tempo geológico e cria-se uma flexibilidade na superfície que forma os mais variados ecossistemas. Tem todo esse sistema de lagoas. As plantas que estão nas lagoas permanentes são diferentes das encontradas nas lagoas temporárias, devem ter origens evolutivas distintas. É muito complexo, e é isolado como se fosse uma ilha no meio de uma floresta impenetrável. Provavelmente boa parte das espécies teve origem em especiação local. Estamos estudando e tentando juntar tudo. Houve descobertas mais marcantes no levantamento? Um dia, Rodolfo Jaffé [biólogo, pesquisador do ITV] trouxe umas raízes estranhas perguntando o que eram. “Ficam na caverna, parece um monte de pelos”, ele contou. Eu disse para ele marcar uma viagem e lá fomos. A entrada da caverna é muito pequena, você tem que se arrastar no chão. Quando entrei, tinha um guano [fezes] de morcego bem no meio do caminho, caí no meio dele. A caverna é maravilhosa e aquelas raízes 28 | outubro DE 2017
só nascem onde a água percola e bate nas que correm paralelamente ao solo. Coletamos, olhamos na lupa e no microscópio, tinha estrutura de raiz. Extraímos DNA, comparamos com banco de dados e conseguimos identificar até gênero, uma delas até espécie. Eram coisas diferentes, todas dicotiledôneas. Foi espetacular, estamos publicando agora. Você fez levantamento de flora de outros biomas? Comecei com a Caatinga no Instituto de Pesquisas Agronômicas em Recife, sob orientação de Dárdano de Andrade-Lima. Depois, quando cheguei a São Paulo, passei a trabalhar com campos rupestres na serra do Cipó e na parte norte da cadeia do Espinhaço. Quando fui para a Bahia um dos atrativos era a Chapada Diamantina. Em Feira de Santana, além da Chapada Diamantina, trabalhei na Caatinga de novo. Naquela época, meu foco era o semiárido. Com a questão da transposição do rio São Francisco, o governo fez uma chamada para o Instituto do Milênio do semiárido. Nós ganhamos a chamada e durou cinco anos, o projeto contou com mais de 20 instituições do Nordeste e montou grande parte da infraestrutura de pesquisa da UEFS e outras instituições. Então o trabalho desse Instituto do Milênio ainda produz resultados? Sim. Compramos o primeiro sequencia-
Como define a importância de se conhecer a flora? Levantar os dados disponíveis em bancos de dados públicos e fazer modelagem, por exemplo, é uma atividade importante. Porém, fazer isso complementar todas as lacunas, esse é o diferencial. Quando tivermos o banco de dados autenticado de Carajás, não vai ter outro tão completo. São 16 mil, até 20 mil registros de uma mesma área que poderão ser trabalhados em termos de modelagem, distribuição das espécies, relação com mudanças climáticas, áreas mínimas para conservação e muito mais. Os estudos na serra dos Carajás, incluída no domínio da floresta amazônica, pode ser um modelo de como avançar para o preenchimento das lacunas de conhecimento na flora dessa região. Também pode responder a perguntas que tenho na cabeça há muito tempo e outras novas, por exemplo: a flora das cangas de Carajás é similar à das cangas de outras regiões do país? Quais os principais mecanismos de especiação das espécies endêmicas das cangas? Como a longa história geológica da serra dos Carajás e as flutuações climáticas do Quaternário podem ter estimulado essa especiação? Como você compara a maneira como trabalhava antes e como vai ser depois? Hoje é possível integrar ecologia, modelagem, sequenciamento genético. Muda muito a forma de se trabalhar, as questões formuladas? Sempre gostei de trabalhar com especialistas de várias áreas. Em Feira de Santana, por exemplo, por causa do Instituto do Milênio, tínhamos uma boa relação com pesquisadores da fitoquímica e farmacologia. Parte do material coletado ia
joão marcos rosa
dor para plantas no Nordeste, um microscópio eletrônico de varredura, e a pesquisa da rede do Milênio passou a ser um diferencial para a região. Muitos diziam que a flora da Caatinga era pobre e estava quase toda degradada, e provamos que não. Fizemos a primeira lista de espécies do semiárido brasileiro incluindo todos os tipos de vegetação, foi uma das bases para a elaboração da lista da flora do Brasil, concluída em 2010. A transição da vegetação da Caatinga para a de Cerrado de altitude e os campos rupestres, entre mil e 2 mil metros de altitude, é espetacular.
para o herbário da UEFS e outra parte mandávamos para a UFBA [Universidade Federal da Bahia], onde se fazia uma triagem das substâncias mais promissoras para doenças do próprio semiárido, como esquistossomose e doença de Chagas. Lá e na Universidade Federal da Paraíba era feita a parte mais detalhada da química. Na Fiocruz, faziam testes in vitro das substâncias mais promissoras, para depois continuar os estudos. No ITV não são instituições diferentes, são mesas contíguas na mesma sala. Posso conversar com um colega e trocar ideias, decidir testar, fazer modelagem ou outras coisas, vamos para o campo juntos. Essa proximidade é algo novo para mim. Tenho todos os equipamentos ali, tenho o Museu Goeldi com o herbário e todos os pesquisadores. Vou dormir, acordo com uma ideia e vou realizar. Tem gente que não gosta desse ambiente, reclama do barulho. Mas para mim não tem problema: basta tirar o aparelho de ouvido e me concentro muito no que estou fazendo. Os prêmios que você tem recebido, como esse recente da Sociedade Botânica da América, dos Estados Unidos, o que representam neste momento em que está concentrada em avançar na pesquisa científica? O prêmio foi a minha inclusão como “Corresponding Member” por toda a vida da Sociedade Americana de Botânica, com direito a receber todas as edições do American Journal of Botany. Um reconhecimento importante. Em 2013 recebi uma homenagem do Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos, como principal pesquisadora daquele ano na América Tropical. Acho que isso contou bastante na seleção para este prêmio mais recente. Era difícil ganhar como taxonomista, hoje o foco da pesquisa é muito mais em genética. Acho que nos dois casos eles quiseram premiar o avanço que fizemos em sistemática no Brasil. Por isso, ofereci a homenagem a todos os meus alunos, ex-alunos, aos que eles orientaram. Meus filhos, netos e até bisnetos científicos. Mesmo nos bisnetos eu sinto que ainda tem ali o que ensinei. Então acho que é muito mais pelo que formei, que está distribuído no país inteirinho e fora do país, mais do que algo que eu tenha publicado em uma revista de alto impacto. O impacto conjunto é muito mais relevante para o país.
Levou 30 anos para começarmos a entender a flora dos campos rupestres, de onde ela vem, por exemplo
Com isso tudo, suas plantas favoritas ainda são as eriocauláceas? São, mas não fui eu que escolhi. Ainda no Recife eu tinha aberto uma flor de eriocaulácea. Achei muito difícil, não entendi nada e deixei para lá. Mas o Aylthon Brandão Joly [1924-1975], o maior especialista de algas que já tivemos, decidiu se dedicar a plantas superiores, porque quase ninguém as estudava em São Paulo, e começou um levantamento da flora da serra do Cipó. Eu tinha feito mestrado na USP e voltei a Recife para trabalhar no Instituto Agronômico de Pernambuco, onde havia feito a iniciação científica. Mas meu marido não quis ficar, acabamos voltando a São Paulo e fui perguntar ao Aylthon se eu podia ter uma bolsa da FAPESP para fazer doutorado. Eu queria fazer a revisão do gênero Byrsonima, com que trabalhei no mestrado, mas ele impôs uma condição: que eu estudasse eriocauláceas da serra do Cipó. “Elas são muito bonitas”, ele disse. “E muito difíceis também”, respondi. “É por isso que estou dizendo para você estudar.” E depois você continuou com elas? Sim. Acho que tudo aquilo que a gente estuda intensivamente, se apaixona. Se é
difícil, melhor ainda. Nanuza trabalhava com veloziáceas, a Walquíria Monteiro com anatomia de eriocauláceas. Íamos para a serra do Cipó com os alunos, como a Marlies e o Ivan Sazima, o João Semir. Aylthon Joly os levou depois para a Unicamp porque estava formando o departamento. Ele quis me levar também, mas meu marido tinha emprego aqui e argumentei que, se eu fosse para Campinas, quem ficaria na USP para dar aula de taxonomia de angiospermas? Mas antes do Aylthon se aposentar na USP, em abril, fomos para a serra do Cipó e ele estava com muita tosse. Chovia muito, então ele disse que ficaria no hotel para fazer uma chave de identificação para as famílias da serra do Cipó sem usar as flores. À noite nos mostrou esse trabalho, um documento precioso. Voltamos para São Paulo e ele continuou com tosse. Faleceu naquele mesmo ano, foi um câncer de pulmão rapidíssimo. Continuei o doutorado sob orientação do Carlos Bicudo, especialista em algas de água doce, e resolvemos continuar o sonho do Aylthon Joly na serra do Cipó. O conhecimento sobre o local cresceu muito e decidiu-se que deveria ser um parque. Os trabalhos que fizemos na USP sempre tinham um objetivo maior e buscávamos transferir o conhecimento para os alunos. Mas sua situação hoje não fica atrás. Eu ainda me sinto da USP, de Feira de Santana, da Amazônia e do ITV. Porque em todos esses lugares deixei uma semente que são meus amigos, meus filhos, meus amores. Acho que sou do Brasil, nunca pensei morar fora apesar de ter família por todos os lados. Minha filha mais velha mora em Brasília, o segundo casou com uma espanhola e mora em Sevilha, a terceira casou com um escocês e mora em Munique. E os filhos do Ray, o mais velho vive na França e a outra, na Inglaterra. Juntos, temos 10 netos. Os dele eu também considero meus netos. Gosto de ser avó, de levar presentes para os netos, de estar com eles. Por isso acho que no ano que vem não quero mais ter tantos compromissos – quando assumo um compromisso não gosto de deixar pela metade. No ITV existem várias pessoas que podem tocar o trabalho. Foi a mesma coisa na USP e em Feira de Santana. É preciso perceber quando já não estou contribuindo como contribuía e deixar espaço para que os outros cresçam. n PESQUISA FAPESP 260 | 29
política c&T Formação y
Pós-graduação
em movimento Avaliação quadrienal da Capes mostra avanço no número e na qualidade de cursos e reprova 3% dos programas Fabrício Marques
O
30 z outubro DE 2017
As etapas da avaliação 1 Comissões de avaliação de cada área analisam os dados informados e recomendam uma nota a cada programa, numa escala de 1 a 5
2 Os programas de doutorado com nota 5 e conceito Muito Bom em todos os quesitos são reavaliados e podem receber nota 6 ou 7
3 Dados da avaliação são verificados e revisados 4 Relatório de avaliação é elaborado e encaminhado à análise de relatores
5 Coordenadores de área se reúnem para discutir, retificar ou ratificar os resultados
fonte capes
ilustrações augusto zambonato
sistema brasileiro de pós-graduação avançou nos últimos quatro anos tanto na oferta de vagas quanto em indicadores de qualidade. Entre 2013 e 2017, cresceu em 25% o número de programas stricto sensu, aqueles que oferecem diplomas e são sujeitos a reconhecimento e autorização do Ministério da Educação para funcionar. Existem 4.175 programas hoje, ante 3.337 de quatro anos atrás, de acordo com a avaliação quadrienal da pós-graduação realizada pela Coordenação Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cujos resultados foram divulgados em 19 de setembro. São oferecidos 2.202 cursos de doutorado, 3.398 de mestrado e 703 de mestrado profissional. O número de programas de nível internacional, aqueles que recebem notas 6 e 7, as mais altas na escala da Capes, subiu de 412 para 465, e representam 11% do total. No outro extremo, 119 programas, ou 3%, receberam notas 1 ou 2 e seus cursos serão descredenciados. As solicitações de reconsideração de notas serão analisadas até o final do ano. “O resultado mostra que o sistema vem crescendo e ganhando qualidade. Nosso modelo se mostra capaz de perceber o avanço da pós-graduação e também de apontar necessidades de correção para instituições e programas”, disse o presidente da Capes, Abílio Baeta Neves, ao divulgar o balanço. Todos os estados brasileiros tiveram programas avaliados – do Amapá, com apenas quatro, a São Paulo, com 894. Mas há uma notável concentração dos cursos com notas 6 e 7 em
A análise do desempenho dos programas acadêmicos
conceitos atribuídos
Os quesitos avaliados / peso*
Mu bo ito m
Bom Proposta do programa
Corpo docente
Corpo discente, teses e dissertações
Produção intelectual
Inserção e impacto social e regional
—
—
—
—
—
**
De 10 a 20%
De 30 a 35%
De 35 a 40%
De 10 a 20%
Regular Fraco Insuficiente
* O peso atribuído varia de acordo com a área do conhecimento. ** Não tem peso determinado. Programa com conceito insuficiente neste quesito poderá alcançar no máximo nota 2.
fonte capes
As notas finais
1e2
3
4
5
7
6
Programas com
Programas com
Programas com
Programas com
Programas que
Programas
desempenho
padrão mínimo
conceito Bom em ao
conceito Muito bom
incluem doutorado
com conceito
insuficiente, seus
de qualidade,
menos três
em ao menos
com conceito
Muito bom
cursos perdem
com predomínio
quesitos, entre os
4 quesitos, entre os
Muito bom em
em todos os
autorização
de conceitos
quais os de corpo
quais os de corpo
todos os quesitos*,
itens de todos
de funcionamento
Regular e Bom
discente e de
discente e de
embora com
os quesitos*
produção intelectual
produção
conceito Bom em
intelectual. É a
alguns itens
maior nota para programas só de mestrado
Distribuição das notas de todos os programas em 2017
35,33% 32,86%
Notas
n n n n n n n
* Formação e produção científica devem ser equivalentes a de centros internacionais de excelência e superior a dos demais programas da área. Devem nuclear novos programas e apoiar programas não consolidados
17,82%
1 2 3 4
6,85%
5 6 7
2,63%
4,29%
0,22% fonte capes
pESQUISA FAPESP 260 z 31
A evolução dos alunos titulados Número de formados anualmente em programas de mestrado, mestrado profissional e doutorado no país
mestres
42.780
45.281
46.109
47.595
48.986
39.387
35.965
doutores 11.210
12.267
13.879
15.610
17.262
18.983
8.998 3.236
3.591
4.251
5.986
20.599
10.612
6.917
mestres profissionais 2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
fonte capes
seis unidades da federação: São Paulo (171), Rio de Janeiro (78), Rio Grande do Sul (61), Minas Gerais (56), Paraná (20) e Santa Catarina (20). Em termos relativos, o desempenho do Paraná chamou a atenção: tinha 11 programas com notas 6 e 7 em 2013 e hoje tem 20.
E
m 10 estados, não há um programa sequer com as duas notas mais elevadas. A maioria deles está nas regiões Norte e Centro-Oeste – mas nessa lista também está o Espírito Santo, no Sudeste. O reitor da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Luiz Eduardo Bovolato, foi a Brasília conversar com o presidente da Capes sobre o desempenho das universidades da região Norte – a UFT teve 22 programas avaliados, sendo que sete tiveram nota 4 e os demais, 3. “Pedimos maior sensibilidade da comissão de avaliação em relação a nossa realidade local e ampliação do olhar da Capes às universidades da região Norte”, disse Bovolato, segundo o site da UFT. A Universidade de São Paulo (USP) se destaca em vários indicadores. Teve 265 programas avaliados, quase o dobro da segunda colocada, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), com 135. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aparece em terceiro, com 116 (ver quadro na página 35). A USP res32 z outubro DE 2017
ponde sozinha por 18% dos programas com notas 6 e 7 – são 83 ao todo. Num segundo pelotão, aparecem a UFRJ, com 39 programas, e a Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com 36, e a Estadual de Campinas (Unicamp), com 32. A avaliação quadrienal repercute fortemente na comunidade acadêmica por ser usada como parâmetro sobre a relevância dos programas e dos grupos de pesquisa associados a eles, e por nortear a distribuição de bolsas e de verbas. Os programas com notas 6 e 7 têm mais autonomia e recebem financiamento di-
retamente da Capes, enquanto os com nota até 5 também são aquinhoados por intermédio da direção da universidade. Por todas essas razões, é natural que as universidades se movimentem quando não ficam satisfeitas com os resultados. O desempenho da Unicamp manteve-se estável em relação a 2013, com 70% dos cursos com notas de 5 a 7. Mas os resultados trouxeram uma surpresa desagradável: o número de programas com nota 7 caiu de 16 para 14. “Fomos duramente avaliados”, afirma o economista André Tosi Furtado, pró-reitor de Pós-graduação e professor do Instituto de Geociências. “A Unicamp é uma instituição que se destaca na pós-graduação brasileira. Somos a segunda melhor universidade do país de acordo com vários rankings e indicadores, mas em programas nota 7 ficamos dessa vez em quarto lugar”, afirma Furtado, que estuda recorrer de alguns resultados. A nota do programa de engenharia mecânica, reduzida de 7 para 5, foi a que mais causou perplexidade. Furtado observa que houve programas com recomendação das comissões de avaliação para aumentar a nota. “Mas, na etapa final, a progressão da nota não foi confirmada.” Rita Barradas Barata, diretora de avaliação da Capes, explica que os critérios não são estáticos. “As notas são definidas com base em critérios conhecidos, mas os pesos atribuídos a eles podem ser modificados por decisão dos coordenadores de área no final da avaliação, a fim de refletir a situação do conjunto de programas. Não estamos comparando os programas com o que eles eram há quatro anos, mas mostrando a posição de uns em relação aos outros em 2017”, diz. Ela cita o exemplo da produção científica dos alunos. “Com o avanço da cultura de publicação, um número crescente de estudantes passou a publicar mais. Se o critério era ter pelo menos dois artigos por aluno em determinada área, mas a maioria publicou quatro artigos, é possível adaptar o peso atribuído ao critério a essa nova realidade ”, conta. À parte o mal-estar, a Unicamp teve resultados bastante positivos, com a
O crescimento da pós-graduação Evolução do número de cursos avaliados pela Capes em 2013 e 2017 3.398 mestrado 2.893
2.202 doutorado 1.792
mestrado profissional
703
397
2013
2017
ilustrações augusto zambonato
fonte capes
progressão para a nota 7 de programas em clínica odontológica e biologia vegetal, assim como diversos programas evoluíram da nota 5 para a 6. “A avaliação da Capes tem sido importante para nortear a evolução do sistema, uniformizando critérios sobre a qualificação de docentes e a produção científica”, pondera Furtado. A Capes dá apoio e monitora a pós-graduação brasileira desde 1976 e segue há quase 20 anos um modelo de avaliação em que os responsáveis pelos programas preenchem periodicamente um questionário com informações sobre vários quesitos: a proposta do programa, a qualificação do corpo docente, o perfil dos estudantes e a produção intelectual, além da inserção internacional dos cursos e a sua influência sobre outros programas (ver quadro na página 31). Tais dados são analisados primeiro por comitês de especialistas de 49 áreas do conhecimento, aos quais cabe apurar os resultados e recomendar notas. Em um segundo momento, o Conselho Técnico-Científico da Educação Superior da Capes, composto por coordenadores e coordenadores adjuntos das áreas dos programas acadêmicos e profissionais, reavalia os resultados e define as notas. Tais etapas ocorreram entre agosto e setembro e duraram seis semanas. “Es-
Entre 1998 e 2013, a avaliação foi feita a cada três anos. Agora, tornou-se quadrienal
gotamos nas primeiras quatro semanas os programas acadêmicos e nas duas últimas avaliamos os de mestrado profissional e os oferecidos por redes de instituições”, explica Rita Barradas Barata. O trabalho teve a participação de 1.550 membros da comunidade científica. Entre 1998 e 2013, as avaliações foram trienais. Com o crescimento do sistema, optou-se por ampliar o período e fazer o levantamento quadrienalmente. A avaliação promovida pela Capes encontra paralelo em poucas iniciativas no mundo. “Nos Estados Unidos, associa-
ções científicas fazem os processos de acreditação e de avaliação dos programas, mas de forma descentralizada. Nos países latino-americanos, os conselhos de pesquisa avaliam informações prestadas pelos programas e permitem ou não que continuem funcionando”, relata a diretora de avaliação da Capes. Há uma semelhança, pelo tamanho da empreitada, com o sistema de avaliação das universidades do Reino Unido, que acontece a cada cinco anos – nesse caso, porém, a qualidade da pesquisa também é analisada junto com a do ensino e, com base na análise de indicadores e principalmente em avaliação por pares, define-se a distribuição de recursos para as instituições no período seguinte (ver Pesquisa FAPESP nº 156).
A
regularidade da avaliação da Capes ajudou a moldar o sistema de pós-graduação brasileiro. A Unesp comemorou o crescimento dos programas nota 7 – eram três e agora são seis – e os de nota 6, que subiram de 15 para 21. O crescimento foi fruto de uma política de acompanhamento dos programas, com a exigência de relatórios anuais, com especial vigilância sobre os programas com nota 3. Não por acaso, a Unesp não teve nenhuma recomendação de descredenciamento. Já os programas de boa qualidade ganharam incentivos. “Não foi um esforço trivial em um cenário de retração orçamentária e de dificuldade em contratar novos pesquisadores”, conta o geógrafo João Lima Sant’Anna Neto, pró-reitor de Pós-graduação da Unesp e professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente. A acreditação de um novo curso de pós-graduação na Capes depende de um processo semelhante ao da avaliação: a proposta de cada programa é analisada por uma comissão de especialistas na área, que recomenda uma nota. Se ela for igual ou superior a 3, a comissão encaminha um parecer ao Conselho Técnico-Científico da Educação Superior, a quem cabe a decisão final. A avaliação quadrienal não dá notas a cursos recém-criados. Não existem atalhos para alcançar as notas mais altas – o processo, em geral, é lento e cumulativo. A pós-graduação da Universidade Federal do ABC (UFABC), instituição criada há apenas 11 anos, vem evoluindo paulatipESQUISA FAPESP 260 z 33
namente. Dos 22 programas avaliados pela Capes, seis melhoraram a nota, um piorou e os outros 15 permaneceram no mesmo patamar. Três ganharam nota 5: o de nanociências e materiais avançados, o de ciência e tecnologia química e o de física. Na avaliação anterior, só o de física teve 5. Segundo o neurocientista Alexandre Kihara, pró-reitor de Pós-graduação da universidade, a avaliação privilegia instituições já consolidadas. “As notas mais altas estão em parte relacionadas com o poder de nucleação que um programa tem, se ele trabalha em conjunto com programas mais novos ou se um egresso vira docente em outras universidades. Instituições jovens têm dificuldades nesses quesitos”, afirma. Segundo Kihara, o desempenho da UFABC em rankings universitários e em certos indicadores, como internacionalização e impacto da pesquisa, é melhor do que o observado na avaliação da Capes. Diversidade de critérios
Rogério Mugnaini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, estudou os critérios do Qualis-Periódicos, um sistema usado pela avaliação da Capes para classificar a produção dos programas de pós-graduação no que se refere aos artigos publicados em periódicos científicos, entre 1998 e 2012. Em um estudo apresentado em 2015, ele mostrou como a qualidade da produção dos programas é mensurada de formas variadas, a depender do campo do conhecimento, e apontou vulnerabilidades do modelo. Em áreas com tradição de publicar resultados em revistas estrangeiras indexadas, como física e química, indicadores de citação, principalmente o Fator de Impacto dos periódicos, são usados como referência da qualidade dos artigos. “Mas há uma parte da produção publicada fora dessas bases que deixa de ser avaliada.” Em áreas como geociências e nutrição, nas quais há um número restrito de periódicos indexados nas bases internacionais – como Web of Science e Scopus –, as citações não permitem distinguir a produção segundo seu impacto. Nesses casos, aceita-se como critério o fato de o periódico estar vinculado a alguma base de dados, na suposição de que passaram por algum crivo para chegar ali. “Mas seria necessário auditar se as bases de dados aplicam os critérios de qualidade que declaram. Não há garantias de que sejam isentas de vieses”, afirma. E tam34 z outubro DE 2017
A divisão segundo as áreas disciplinares Número de programas de pós-graduação nos 49 campos do conhecimento classificados pela Capes
fonte capes
Engenharias I, II, III e IV
420
Interdisciplinar
335
Medicina I, II e III
242
Ciências Agrárias
223
Administração, Ciências Contábeis e Turismo
182
Ciências Biológicas I, II e III
171
Educação
170
Letras/ Linguística
154
Biodiversidade
141
Ensino
140
Ciências Ambientais
112
Odontologia
101
Direito
99
Saúde Coletiva
87
Psicologia
84
Ciência da Computação
77
Comunicação e Informação
76
Medicina Veterinária
76
Enfermagem
74
História
71
Química
69
Zootecnia / Recursos Pesqueiros
69
Economia
67
Farmácia
64
Geografia
64
Astronomia / Física
63
Educação Física
62
Biotecnologia
61
Arquitetura, Urbanismo e Design
59
Matemática/ Probabilidade e Estatística
59
Ciência de Alimentos
57
Artes/ Música
56
Geociências
55
Sociologia
53
Planejamento Urbano/ Demografia
47
Filosofia
45
Ciência Política e Relações Internacionais
43
Materiais
36
Serviço Social
34
Antropologia/ Arqueologia
29
Nutrição
27
Ciências da Religião e Teologia
21
Total 4.175
260
O ranking das universidades
Número de programas
240
Distribuição de notas das 40 instituições de ensino superior do país com maior número de programas de pós-graduação
220 200 180
Nota quadrienal 2017
160 140
n n n n n n n
120 100 80
7 6 5 4 3 2 1
60 40 20
Udesc
Unioeste
UFMS
PUC-RIO
UFRPE
UFJF
Fiocruz
Ufal
FUFPI
Ufam
Uel
UFMT
UFU
Uem
UFV
UTFPR
FUFSE
UFPEL
UFSM
Ufscar
Uerj
Ufes
Unifesp
UFC
UFPB
UFG
UFPA
UFRN
UFPR
Unicamp
UFF
UFSC
UFPE
UFBA
UFMG
UNB
UFRGS
UFRJ
USP
Unesp
0
fonte capes
bém há campos do conhecimento, como artes e arquitetura e urbanismo, em que a qualidade das publicações, por não estarem vinculadas a revistas ou bases consagradas, é aferida por critérios como a origem diversa dos autores ou dos membros do conselho editorial do periódico. “É um critério importante para evitar a endogenia – aliás, esse tipo de critério é comumente exigido por bases de dados –, mas não suficiente para garantir a qualidade dos artigos publicados pelos programas de pós-graduação.” Em palestras em eventos de associações científicas e na própria Capes, Mugnaini sugeriu que a produção dos programas seja mensurada de uma forma mais ampla, a partir de indicadores que combinem várias bases de dados. “Dessa forma se teria uma visão mais fidedigna da produção brasileira.” Um dos aspectos da avaliação quadrienal que mais gera controvérsias tem a ver com a autonomia conferida a cada comitê de área para aferir a qualidade de seus programas. “Há comitês que tiram pontos do programa se o mestrado superar 24 meses e o doutorado, 48 meses, enquanto outros têm mais tolerância”, diz João Lima, da Unesp. “É justo que a Capes utilize esses prazos como referência para duração de bolsas, mas não entendo por que penalizar um progra-
ma por algum atraso, já que isso não têm impacto em sua qualidade.” Lima, que foi coordenador de geografia da Capes entre 2008 e 2014, considera que a avaliação foi assumindo uma perspectiva muito tecnicista. “Existe uma receita a ser seguida que pode elevar a nota do programa ao longo do tempo por seus aspectos mais quantitativos. Mas há casos de programas de excelência que se recusaram a seguir essa receita, porque seus membros têm uma tradição mais humanista, e sofrem com isso”, explica Lima, referindo-se a programas consolidados de universidades tradicionais.
P
ara o médico Carlos Gilberto Carlotti Junior, pró-reitor de Pós-graduação da USP e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), o sistema de avaliação deveria evoluir para captar mais elementos da excelência acadêmica. “É importante saber não apenas o quanto foi produzido, mas também qual é o impacto do conhecimento gerado tanto na ciência brasileira quanto na formulação de políticas públicas e no desenvolvimento do país”, sugere. “O produto final de um programa de pós-graduação não é a dissertação ou a tese, mas o aluno formado. Hoje, há vários aspectos sobre o aluno
que não são mensurados. Nem mesmo a qualidade da tese é avaliada.” A USP, embora concentre programas de excelência, também enfrentou problemas na avaliação. Um curso de doutorado de clínica cirúrgica, por exemplo, recebeu nota 2 e será fechado. Outros seis programas tiveram nota 3 no mestrado e 2 no doutorado, situação que leva ao descredenciamento do doutorado. “Vamos nos reunir com cada programa e estudar o que fazer”, afirma Carlotti. Rita Barradas Barata, da Capes, concorda que os critérios de avaliação precisam evoluir. Entre as mudanças cogitadas para a próxima avaliação quadrienal, estuda-se modificar o sistema de pontuação, atribuindo também notas intermediárias, como 6,5, em vez de apenas notas cheias. “Isso permitiria mostrar que o programa de alguma forma mudou de uma avaliação para outra, mesmo quando apenas acompanhou o movimento dos demais programas”, afirma. Mas as mudanças podem ser mais amplas. “O essencial é diminuir a ênfase na normatização e aumentar a preocupação com a qualidade. É preciso promover os artigos que tenham relevância, valorizar a flexibilidade da pós-graduação e a possibilidade de reconhecer formas diferentes de organização”, afirmou. n pESQUISA FAPESP 260 z 35
Inovação y
Risco partilhado Modelo adotado pela Embrapii oferece a empresas recursos não reembolsáveis e cooperação de grupos de pesquisa
C
erca de 210 empresas industriais do país já utilizaram uma modalidade de financiamento à inovação que oferece recursos não reembolsáveis e, simultaneamente, o apoio de grupos vinculados a universidades ou instituições de pesquisa tecnológica. O modelo foi implementado em 2014 pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). O investimento é tripartite: cada projeto recebe da Embrapii um certo valor, que não precisa ser devolvido, enquanto a empresa proponente investe uma contrapartida igual ou superior a essa quantia. O terceiro pilar são as 42 unidades credenciadas da Embrapii, formadas por equipes de pesquisadores ligadas a laboratórios de universidades ou de instituições tecnológicas especializados em temas de interesse da indústria, como automação, sistemas inteligentes, materiais, comunicações ópticas, entre outros. As unidades, que desenvolvem os projetos em conjunto com as empresas, complementam o investimento – não na forma de dinheiro, mas no uso de seus laboratórios e no apoio em gestão. O formato tem características distintas de linhas oferecidas tradicionalmente por agências e instituições de fomento do país. A Embrapii não tem contato com as empresas nem esco-
36 z outubro DE 2017
lhe os projetos que serão patrocinados. Esse papel cabe às unidades credenciadas, que são selecionadas em chamadas públicas e se comprometem a cumprir uma série de metas, como a prospecção de um certo número de clientes potenciais, a contratação de projetos e a solicitação de patentes relacionadas às inovações produzidas. Cada unidade é contratada pela Embrapii para aplicar um determinado montante em projetos e tem autonomia para negociá-los com empresas, prestando contas sobre o cumprimento das metas a cada seis meses. Unidades e empresas combinam a divisão da propriedade intelectual gerada nos projetos. “Algumas unidades dividem meio a meio, outras permitem que as empresas explorem comercialmente a inovação sem ônus, com pagamento de algum valor em royalties se houver licenciamento para terceiros ou resguardando direitos caso a patente não seja utilizada”, diz o diretor-presidente da Embrapii, Jorge Guimarães. Entre os projetos já concluídos, um exemplo é um cimento dentário desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo, com a Angelus, empresa de produtos odontológicos de Londrina, no Paraná. Empresas como Natura, Boticário, TheraSkin e Yamá se uniram em um projeto para desenvolver uma técnica de nanoencapsulamento de cosmé-
fotos IPT
Laboratórios de metalurgia e materiais (acima) e de estruturas leves (à esq.) utilizados pela unidade Embrapii do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em São Paulo
ticos que permite levar princípios ativos até camadas mais profundas da pele (ver Pesquisa FAPESP nº 243). O custo do projeto, de R$ 2,3 milhões, foi dividido pelas empresas e a Embrapii, em parceria também com o IPT. Outro destaque é um robô submarino construído pelo Senai-Cimatec, da Bahia, por encomenda do BG Group para prospecção em águas profundas, que teve um custo total de R$ 30 milhões. Foram contratados até o momento mais de 330 projetos, num total de R$ 525 milhões em investimentos. Entre 2014 e 2016, os repasses da Embrapii às unidades chegaram perto de R$ 70 milhões (ver quadro na página 40). “Empresas de São Paulo, que é o estado mais industrializado do país, contrataram 49% desses projetos, mas há muitas empresas e setores industriais ainda a serem atendidas e muito espaço para crescer”, afirma Carlos Eduardo Pereira, diretor de operações da Embrapii.
A Embraer é a empresa brasileira que mais tem projetos cofinanciados pela Embrapii. Já foram 14 parcerias, espalhadas por diversas unidades credenciadas, como a do IPT, para o desenvolvimento de materiais leves utilizados em estruturas aeronáuticas, a da Fundação Certi, de Santa Catarina, por meio de um laboratório especializado em sistemas eletrônicos de uso aeronáutico, e a do Senai-Cimatec, com foco em soluções para redução de custos de manutenção das aeronaves e automatização da análise de dados e reparos. “São projetos de pesquisa e desenvolvimento de fase pré-comercial, em que as tecnologias têm menor maturidade e o risco é maior. O modelo da Embrapii é interessante por permitir o compartilhamento do risco e do investimento e complementa outras modalidades de financiamento à inovação mais voltadas às fases finais de desenvolvimento”, diz Daniel Moc-
zydlower, diretor de desenvolvimento tecnológico da Embraer. O balanço que a Embraer faz das parcerias é bastante positivo e há mais quatro projetos sendo negociados. Moczydlower faz apenas uma ressalva: as unidades, muito mobilizadas para oferecer competência tecnológica, precisam investir também na gestão dos projetos. “Algumas unidades já compreenderam que as grandes empresas têm demandas crescentes no campo da transparência e de compliance e estão promovendo a profissionalização da gestão”, afirma. Na avaliação de Jorge Guimarães, o formato tornou-se atraente justamente por ajudar as empresas em projetos de custo elevado e retorno incerto. “A Embrapii não foi criada para fomentar a inovação industrial nos níveis mais altos de maturidade tecnológica. Somos uma espécie de vestibular no qual as empresas concebem um projeto inovador. Nossa pESQUISA FAPESP 260 z 37
intenção é que depois elas recorram a agências como a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] ou então o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] para as fases finais de desenvolvimento”, afirma. Desde 2016, a FAPESP e a Embrapii mantêm um acordo de cooperação que prevê o financiamento de projetos executados em instituições de ensino superior e pesquisa do estado de São Paulo com a participação e cofinanciamento de empresas do país. As duas instituições já são parceiras no apoio ao desenvolvimento de próteses ortopédicas feitas com ligas de nióbio-titânio e titânio-nióbio-zircônio, em um projeto do IPT, da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração e da Associação de Assistência à Criança Deficiente, no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), da FAPESP.
G
38 z outubro DE 2017
Pelo menos 10% dos 38 mil grupos de pesquisa brasileiros poderiam cooperar com empresas, diz Jorge Guimarães
Calori, coordenador técnico da unidade Embrapii do CPqD. “Mas estamos otimistas com a melhora da economia. De janeiro a setembro de 2017, o CPqD teve um crescimento de 20% em valores e de 70% em número de projetos em relação a 2016.” O modelo da Embrapii está influenciando a forma como universidades e instituições tecnológicas financiam atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). O IPT é um exemplo. Instituição centenária habituada a prestar serviços tecnológicos a empresas, o IPT viu o quinhão de seu faturamento oriundo de projetos de P&D crescer de 12% em 2010 para 36% em 2016 – a meta agora é alcançar e manter a proporção em 40%. De acordo com Flavia Gutierrez Motta, coordenadora de gestão das duas unida-
fotos 1 Instituto de pesquisas eldorado 2 léo ramos chaves
uimarães considera que há espaço para ampliar tanto o número de projetos apoiados quanto o de unidades credenciadas. Segundo ele, pelo menos 10% dos 38 mil grupos de pesquisa brasileiros cadastrados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) têm potencial para cooperar com empresas em projetos inovadores – hoje, há cerca de 300 grupos de pesquisa engajados em unidades da Embrapii. “Estimamos haver pelo menos 4 mil grupos em áreas como engenharias, química, física, matemática, geociências e biológicas com capacidade para responder a desafios da indústria.” Atribui-se à crise econômica uma dificuldade para ampliar o número de projetos contratados. A Fundação CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), de Campinas, credenciada em outubro de 2014 para atuar em projetos em comunicações ópticas, enfrentou obstáculos recentes. A estimativa inicial era de que o investimento de cada projeto giraria em torno dos R$ 3,5 milhões, mas a média ficou abaixo disso, na casa de R$ 1,6 milhão. A unidade já viabilizou 22 projetos, em uma carteira de R$ 36 milhões. “Já atingimos a meta de número de projetos, mas não a dos valores previstos. Mas essa não é uma realidade apenas do CPqD. Segundo a Embrapii, os valores contratados por todas as unidades ficaram abaixo da meta”, considera Marcelo Fogolin
Unidade do Instituto de Pesquisas Eldorado, especializado em conectividade e microeletrônica: R$ 1,3 milhão em média por projeto
Os preicient que num ium re ratia nus eos nonsequi tem haribus et pre, officipit, tem esequiatur sitae nonsectur 1
Laboratório da BR Photonics: parceria com a Embrapii para melhorar o desempenho de sistemas ópticos
2
des do IPT na Embrapii, uma dedicada a materiais e outra, mais recente, à biotecnologia, essa mudança de perfil foi impulsionada, num primeiro momento, por investimentos do Fundo Tecnológico (Funtec), do BNDES, que também oferece recursos não reembolsáveis a parcerias entre instituições e empresas, mas seleciona e avalia os próprios projetos. “Como os recursos do Funtec diminuíram, o desempenho recente é resultado em boa medida do trabalho das unidades da Embrapii”, ela conta. Um dos projetos do IPT foi firmado com a fabricante de cimento e derivados Intercement e resultou no desenvolvimento de uma rota tecnológica para tratamento de escória de aciaria, um resíduo gerado no processo de produção de aço. As duas unidades do IPT obtiveram um orçamento de R$ 49,4 milhões junto à Embrapii para execução em seis anos. Desse total, já contrataram projetos no valor de R$ 25,8 milhões e, entre 2014 e 2016, receberam efetivamente R$ 3,8 milhões em repasses. A prospecção de clientes ajuda a difundir o modelo. Laércio Silva, superintendente de negócios da Fundação Certi, de Santa Catarina, que mantém uma unidade Embrapii especializada em sistemas inteligentes, realizou mais de 260 sondagens que resultaram em 16 projetos contratados e investimentos de R$ 41 milhões. “Buscamos conhecer o problema do cliente e entender suas estratégias de forma a apresentar uma proposta relevante para redução de cus-
tos, aumento da produtividade e ampliação da sua competitividade”, diz Silva. A unidade tem contratos com empresas como a Siemens e a Embraer. O engenheiro Vanderley John, professor da Escola Politécnica da USP e coordenador de uma unidade da Embrapii voltada para o desenvolvimento de materiais e componentes ecoeficientes para construção civil, conta que o trabalho de buscar parcerias com empresas gera um aprendizado permanente. “Estamos sempre descobrindo demandas que muitas vezes nos levam a atualizar nossos temas de pesquisa”, ressalta. Ele diz que esse contato com as empresas está enriquecendo a universidade. “Fomos conversar com uma empresa de construção e ela apresentou um desafio de pesquisa que inclui o uso de inteligência artificial, algo com que não trabalhamos. Para atender solicitações dessa natureza, começamos a trabalhar com colegas do Instituto de Matemática e Estatística especializados no tema. Sem essa demanda, dificilmente abriríamos uma frente multidisciplinar.” A unidade se comprometeu a investir R$ 30 milhões num horizonte de seis anos. Por enquanto, devido à crise da construção, conseguiu mobilizar R$ 2,1 milhões em quatro projetos.
A
s unidades da Embrapii ligadas a institutos de pesquisa públicos e privados, que têm experiência em cooperar com empresas e há tempos mantêm parcerias financiadas com recursos da Lei de Informática ou do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), obtêm resultados mais rapidamente do que as unidades vinculadas a universidades, carentes da mesma expertise. Marcelo Calori explica que o cre denciamento da Fundação CPqD ocorreu de forma natural. “A adaptação dos nossos processos ao guia de referência da Embrapii foi tranquila. Isso se deveu ao amadurecimento decorrente da privatização do CPqD, em 1998, quando adotamos como estratégia buscar novos mercados e fazer parcerias com empresas, por meio de incentivos, como os da Lei de Informática, e financiamentos da Aneel, Finep, BNDES, entre outros”, informa. Alguns clientes da unidade já haviam utilizado anteriormente os serviços da Fundação CPqD, caso, por exemplo, da fabricante de cabos ópticos Furukawa. pESQUISA FAPESP 260 z 39
Mas também há parcerias novas, como a Taggen, que desenvolve soluções em Internet das Coisas. “Com eles, desenvolvemos o primeiro beacon nacional, que está sendo comercializado”, diz Calori, referindo-se a um dispositivo que emite sinais por meio de tecnologia bluetooth. José Eduardo Bertuzzo, um dos responsáveis pela unidade da Embrapii no Instituto de Pesquisas Eldorado, em Campinas, especializada em conectividade e microeletrônica, conta que as negociações com empresas têm um fluxo rápido. “Como o investimento está pré-programado e não é necessário submeter o projeto ao crivo de ninguém mais, logo se começa a discutir quais são as etapas de desenvolvimento de produtos”, afirma. A unidade, criada há um ano, já tem nove projetos contratados, com investimento médio de R$ 1,2 milhão por projeto. Um deles é uma parceria com a BR Photonics, empresa de comunicação óptica. Os pesquisadores do Instituto Eldorado desenvolvem soluções para melhorar o desempenho de sistemas ópticos dos produtos da BR Photonics. Em julho, a Embrapii credenciou sete novas unidades. O estado de São Paulo, que tinha uma participação modesta na estrutura da instituição, aumentou sua participação de seis para 10 unidades. Uma delas é o Centro de Química Medicinal de Inovação Aberta (CQMED), formado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O grupo, apoiado pela FAPESP, faz parte da rede internacional Structural Genomics Consortium (SGC), que reúne mais de 10 empresas do setor farmacêutico, entidades de apoio à pesquisa e cientistas de universidades do Reino Unido e do Canadá, com o objetivo de criar inovações por meio da identificação de alvos biológicos para doenças e do desenvolvimento de moléculas ativas (ver Pesquisa FAPESP nº 230). “A meta da nossa unidade é atrair cinco empresas farmacêuticas do país para o desenvolvimento de moléculas com potencial para se tornarem medicamentos nos próximos seis anos”, explica a farmacêutica Katlin Massirer, uma das coordenadoras da unidade. “Não é um desafio trivial. A indústria farmacêutica começa a fazer pesquisa e desenvolvimento no Brasil e pretendemos ter um papel decisivo nessa etapa da inovação nacional.” n Fabrício Marques 40 z outubro DE 2017
Investimentos executados pela Embrapii Repasses a 28 unidades (*) entre os anos de 2014 e 2016 Sede da unidade
repasses em R$ 2014
2015
2016
Total
Senai-Cimatec (Salvador, BA)
2 milhões
2 milhões
11 milhões
15 milhões
Fundação Certi (Florianópolis, SC)
1,85 milhão
-
9 milhões
10,85 milhões
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações – CPqD (Campinas, SP)
2,75 milhões
2 milhões
2 milhões
6,75 milhões
Centro de Engenharia Elétrica e Informática (Campina Grande, PB)
1 milhão
1 milhão
4,5 milhões
6,5 milhões
POLO – UFSC (Florianópolis, SC)
1,55 milhão
1,5 milhão
1,5 milhão
4,55 milhões
Coppe – UFRJ (Rio de Janeiro, RJ)
4,5 milhões
-
-
4,5 milhões
Instituto de Pesquisas Tecnológicas – Materiais (São Paulo, SP)
1 milhão
-
2,3 milhões
3,3 milhões
Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA (São José dos Campos, SP)
-
1,25 milhão
1 milhão
2,25 milhões
Laboratório de Metalurgia Física da UFRGS (Porto Alegre, RS)
2 milhões
-
-
2 milhões
Instituto Federal Fluminense (Campos dos Goytacazes, RJ)
-
300 mil
750 mil
1,05 milhão
Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais – CNPEM (Campinas, SP)
1 milhão
-
-
1 milhão
Instituto Nacional de Tecnologia (Rio de Janeiro, RJ)
1 milhão
-
-
1 milhão
Institutos Lactec (Curitiba, PR)
1 milhão
-
-
1 milhão
Senai – Polímeros (São Leopoldo, RS)
1 milhão
-
-
1 milhão
Instituto Nacional de Telecomunicações (Santa Rita do Sapucaí, MG)
-
-
1 milhão
1 milhão
Instituto de Pesquisas Eldorado (Campinas, SP)
-
-
1 milhão
1 milhão
Instituto de Tecnologia em Computação Gráfica – PUC-RJ (Rio de Janeiro, RJ)
-
-
1 milhão
1 milhão
Instituto Federal do Ceará (Fortaleza, CE)
-
-
900 mil
900 mil
Departamento de Ciências da Computação – UFMG (Belo Horizonte, MG)
-
-
700 mil
700 mil
Instituto Federal do Espírito Santo (Vitória, ES)
-
580 mil
-
580 mil
Embrapa Agroenergia (Brasília, DF)
-
-
500 mil
500 mil
Instituto de Pesquisas Tecnológicas – Biotecnologia (São Paulo, SP)
-
-
500 mil
500 mil
Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Recife, PE)
-
-
500 mil
500 mil
Escola Politécnica da USP (São Paulo, SP)
-
-
495 mil
495 mil
Faculdade de Engenharia Mecânica – UFU (Uberlândia, MG)
-
-
300 mil
300 mil
Instituto Federal da Bahia (Salvador, BA)
-
273 mil
-
273 mil
Núcleo Ressacada de Pesquisas em Meio Ambiente (Florianópolis, SC)
-
-
250 mil
250 mil
Instituto Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)
-
150 mil
-
150 mil
TOTAL
20,65 milhões
9,053 milhões
39,195 milhões
68,898 milhões
(*) Unidades credenciadas até 2016.
Fonte RELATÓRIO ANUAL 2016 – Embrapii
Políticas públicas y
Arautos de mudanças Estudo aborda o papel de indivíduos que ajudam a mobilizar a sociedade e a catalisar
ilustraçãO Lee Woodgate
transformações Bruno de Pierro
A
importância de indivíduos que mobilizam a sociedade em favor de ideias e agendas, catalisando transformações, é um tópico de estudos acadêmicos sobre a gênese de políticas públicas. Um exemplo desses agentes, denominados empreendedores de políticas públicas, é Ken Livingstone, prefeito de Londres entre 2000 e 2008 que se tornou referência internacional no debate sobre a mobilidade nas cidades – ele criou o pedágio urbano, uma taxa voltada para reduzir o fluxo de automóveis no centro da capital britânica. Em um artigo publicado em setembro na revista Policy and Society, os cientistas políticos Felipe Gonçalves Brasil e Ana Cláudia Niedhardt Capella abordam o papel dos empreendedores de políticas públicas no Brasil e discutem exemplos nacionais. “Embora o estudo das políticas públicas tenha experimentado um período de forte expansão no Brasil nas últimas décadas, há uma lacuna nessas análises envolvendo os empreendedores”, afirma Brasil, pESQUISA FAPESP 260 z 41
Os empreendedores de políticas públicas unem soluções, problemas e contexto político, diz Ana Capella
doutorando na Universidade Federal de São Carlos (UFScar). O artigo mapeou teses e dissertações defendidas no país nos últimos anos que utilizam modelos teóricos sobre os empreendedores de políticas públicas e propôs que o caso do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira é um dos que melhor se enquadram nesse figurino. No comando da reforma administrativa no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), o então ministro da Administração Federal empunhou a tese de que a burocracia tinha um papel na crise do Estado brasileiro e apresentou uma série de alternativas para enfrentar o problema. “Bresser disseminou a ideia da reforma gerencial, influenciado por discussões que ocorriam na Europa”, diz Ana Cláudia Capella, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O ministro publicou artigos em revistas acadêmicas e na imprensa e viajou pelo país participando de discussões. Em pouco tempo, a reforma administrativa entrou no debate nacional. Bresser recorda que, embora o assunto não estivesse na agenda de reformas proposta no programa eleitoral de Fernando Henrique, recebeu carta branca para agir. “Eu estava convicto de que os problemas da administração pública brasileira eram incompatíveis com o desenvolvimento econômico e com o Estado de bem-estar social. Conhecia experiências de modernização de empresas estatais em países como França e Inglaterra e havia um interesse do governo em promover algumas reformas”, relata Bresser. “Aproveitei esse cenário e organizei um conjunto de ideias. Em apenas seis meses, montamos o plano diretor da reforma 42 z outubro DE 2017
administrativa”, completa. A proposta de Bresser mudou regras de concursos públicos, instituiu a gestão por resultados e criou a figura das organizações sociais, entidades privadas sem fins lucrativos para as quais o Estado transferiu a administração de serviços.
E
studos de políticas públicas em que aparecem a figura dos empreendedores adotam com frequência um referencial teórico desenvolvido nos anos 1980 pelo cientista político norte-americano John Kingdon. Segundo o modelo de múltiplos fluxos, a criação de políticas é explicada pela confluência de três fatores. Um é o fluxo de problemas, caracterizado por crises e eventos que demonstram a relevância do tema. O segundo é o fluxo de soluções, que é a viabilidade técnica e econômica de saídas para o problema e sua aceitação pela sociedade. O terceiro é o fluxo político, entendido como a articulação de forças organizadas que impulsiona a busca de soluções. A convergência dos três abre uma janela de oportunidade para resolver o problema – e a contribuição do empreendedor consiste em aproveitar o momento favorável e propor a solução.
“Os empreendedores de políticas públicas conseguem unir soluções, problemas e o contexto político, aproveitando as oportunidades para implementar novas ideias na sociedade e na administração pública”, explica Ana Cláudia. O cientista político Eduardo Marques, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), explica que algumas teorias se voltam mais para a abordagem individual, enquanto outras se dedicam a análises estruturais. “O modelo de Kingdon avança no sentido de reconhecer o papel de um ator específico, mas sem deixar de inseri-lo no contexto social e político”, afirma Marques, que é pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Nikolaos Zahariadis, professor do Rhodes College, nos Estados Unidos, ressalta que estudos sobre empreendedores de políticas públicas ajudam a estudar como ideias se disseminam. “As ideias não existem em um vácuo. Elas são defendidas, negociadas e implementadas por pessoas ou grupos”, salienta. Um exemplo mencionado na literatura sobre o tema é o do economista Alfred Kahn (1917-2010), que à frente do Conselho de Aviação Civil no governo do presidente Jimmy Carter (1977-1981) promoveu uma desregulamentação capaz de abrir espaço para as companhias aéreas de baixo custo nos Estados Unidos. Em uma tese de doutorado defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o sociólogo Márcio Barcelos aponta o engenheiro Ernesto Lopes da Fonseca Costa (1881-1953) como um
empreendedor de políticas públicas no Brasil, muito antes da existência do conceito teórico. Professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e fundador, em 1921, do Instituto Nacional de Tecnologia, Fonseca Costa atuou no desenvolvimento de uma tecnologia nacional para a produção de biocombustíveis no Brasil, ao mesmo tempo que mobilizou políticos e autoridades para a busca de alternativas ao petróleo, articulando no governo Vargas a pesquisa sobre álcool combustível com o Instituto do Açúcar e do Álcool. Outro caso descrito é do agrônomo e ecologista José Lutzenberger (19262002), por sua influência na formulação de uma legislação de controle do uso de agroquímicos no Rio Grande do Sul em 1982, que teve reflexos na Lei Brasileira de Agrotóxicos, de 1989, conforme mostrou a socióloga Caroline da Rocha Franco em uma dissertação de mestrado em políticas públicas defendida em 2014 na Universidade Federal do Paraná – Lutzenberger se tornaria secretário nacional do Meio Ambiente no governo Fernando Collor de Mello (1990-1992).
montagem sobre ilustração de Lee Woodgate
N
o terreno da educação, um destaque foi o grupo liderado por Ivo Gomes, secretário municipal de Educação da cidade cearense de Sobral no início dos anos 2000, responsável por um conjunto de ações experimentais para reforçar a alfabetização nas escolas públicas que se tornou referência para o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, um programa do Ministério da Educação (MEC). “No Ceará foi constituído um grupo coeso, em termos técnicos e políticos, que foi capaz de estabelecer uma alteração na agenda edu-
As ideias não existem no vácuo. Elas são defendidas, negociadas e implementadas por pessoas, afirma Nikolaos Zahariadis
cacional, aproveitando-se da experiência anterior e criando novos instrumentos”, escreveu o cientista político Fernando Abrucio, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, autor de um estudo sobre o tema. Eduardo Marques, da USP, salienta que nem sempre é possível identificar um empreendedor vinculado a uma política pública. “Em muitos casos as mudanças ocorrem de forma gradual, influenciadas por várias ideias e grupos”, afirma. Ele cita como exemplo o programa Bolsa Família, implementado no primeiro governo Lula (2003-2006). “Nesse caso houve uma transformação em relação ao governo anterior. Mas essa mudança concentrada e de porte foi precedida de uma mudança incremental e gradual ainda nos anos 1990. Por isso, na minha opinião, não se consegue identificar a figura de um empreendedor por trás dessa política”, diz. Pode ocorrer de o empreendedor da política ser também o autor da ideia. No entanto, os estudos mostram que, em boa parte dos casos, ele cumpre mais a função de organizador. “Trata-se da pessoa que faz as coisas acontecerem a partir da identificação de impasses e da articulação de possíveis soluções”, afirma Paul Cairney, pesquisador da área de políticas públicas da Universidade de Stirling, na Escócia. Para Felipe Gonçalves Brasil, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (2005-2012) também pode ser classificado como um empreendedor de políticas públicas. “No MEC, Haddad esteve à frente do debate sobre ampliar o acesso à universidade. Embora o desafio fosse conhecido, ele criou uma nova imagem do problema, que só poderia ser resolvido se fossem criadas novas vagas no ensino superior”, conta Brasil, ao citar programas como o Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e o Universidade para Todos (ProUni). “Não necessariamente todas essas ideias vieram da cabeça de Haddad. Mas ele filtrou propostas e expandiu ideias, além de avaliar a viabilidade das ações que propôs”, afirma Brasil. n
Artigo científico BRASIL, F. G. et al. Translating ideas into action: Brazilian studies of the role of the policy entrepreneur in the public policy process. Policy and Society. Publicado on-line em 12 set.
pESQUISA FAPESP 260 z 43
ciência BIOLOGIA y
A linguagem química dos insetos Carlos Fioravanti 44 z outubro DE 2017
No interior das colônias, abelhas e formigas se reconhecem e se organizam por meio de compostos que recobrem seus corpos
léo ramos chaves
C
Em colônias da abelha sem ferrão Tetragonula carbonaria, as rainhas indicam se estão férteis por meio dos hidrocarbonetos cuticulares, que também detêm o ímpeto reprodutivo das operárias
omo os insetos sociais – abelhas, vespas, formigas e cupins – se reconhecem, organizam-se e dividem as tarefas na completa escuridão de suas colônias? Em 2003, ao planejar sua pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), o biólogo Fábio Santos do Nascimento verificou que as análises genéticas e os estudos de comportamento não ofereciam uma resposta satisfatória para essa pergunta. Em busca de alternativas, ele começou a estudar um grupo de compostos químicos produzidos pelos insetos, os hidrocarbonetos cuticulares (HCCs), que chamavam a atenção também de grupos de pesquisa dos Estados Unidos e da Europa. Nascimento e o químico Norberto Peporine Lopes, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, logo observaram que os HCCs indicam se a abelha, vespa, formiga ou cupim é macho ou fêmea, operária ou rainha. Cada indivíduo, espécie e colônia apresenta sutis variações na composição dos HCCs que as diferenciam. Esses compostos se mostraram fundamentais também para a divisão de tarefas entre as castas e a coesão das colônias. Ao liberar HCCs, as rainhas indicam que estão férteis e inibem o ímpeto de acasalamento das operárias, de acordo com um estudo do grupo da USP publicado em junho de 2017 na revista Nature Ecology & Evolution. “É a sinalização química induzida pelas rainhas que mantém as operárias dedicadas à limpeza e à guarda do ninho ou à busca de alimentos”, conta Nascimento, contratado em 2009 como professor da FFCLRP. As equipes de Ribeirão Preto verificaram também que as rainhas de abelhas Melipona scutellaris espalham HCCs sobre os compartimentos em que depositam seus ovos, sinalizando que as operárias não devem mexer ali. Produzidos por glândulas subcutâneas, os HCCs formam a cera amarelada que reveste o esqueleto externo dos insetos. São substâncias formadas apenas por átomos de carbono e hidrogênio organizados em longas estruturas lineares com ligações simples ou duplas entre os carbonos. “A posição das ligações duplas entre os átomos de carbono varia segundo a espécie ou o gênero dos insetos”, diz Lopes. “E a variação nas estruturas dessas moléculas permite o pESQUISA FAPESP 260 z 45
reconhecimento de indivíduos da mesma colmeia e torna possível o dialeto entre eles.” Em 2003, quando começou a trabalhar com Nascimento, seus equipamentos de análise química caracterizavam hidrocarbonetos com até 40 carbonos, mas agora uma nova técnica de espectrometria de massa adotada em seu laboratório permite a identificação de compostos de cadeia ainda mais longa, com 60 carbonos, que também se mostraram diferentes entre machos e fêmeas e entre rainhas e operárias. Contato revelador
1
Uma rede de canais, as traqueias (detalhe abaixo), contribui para o azul das asas da Zenithoptera lanei
As asas vivas de uma libélula Encontrada no Cerrado e conhecida como morpho por sua semelhança com um gênero de borboletas predominantemente azuis, a libélula Zenithoptera lanei pode ter se tornado o primeiro caso de um inseto adulto com asas constituídas por tecido vivo – e não morto, como se pensava. O biólogo Rhainer Guillermo Ferreira, professor da Universidade Federal de
2
São Carlos (UFSCar), identificou por meio de imagens de microscopia eletrônica uma
a cor azul das asas e protege
rede de canais – as traqueias –
o inseto do excesso de luz solar.
em meio às membranas das
“Uma das indicações de
asas de um azul intenso
que as células das asas estão
dessa espécie.
vivas é que o azul perde o brilho
Como detalhado em um artigo publicado em setembro de 2017 na revista Biology
rapidamente depois que a libélula morre”, diz ele. A rede de traqueias deve
Letters, as traqueias têm um
também contribuir para a
diâmetro variando de 3 a
sustentação das asas e para
200 nanômetros e devem
o controle da temperatura
abastecer com oxigênio as
desses insetos. “Por enquanto,
células que produzem uma cera
essa espécie é a única com esse
espessa que recobre as asas.
tipo de estrutura”, afirma.
Segundo Ferreira, a cera deve
“Examinamos outras
refletir a radiação ultravioleta,
40 espécies de libélulas e não
o que ao mesmo tempo acentua
encontramos nada parecido.”
46 z outubro DE 2017
Essa forma de comunicação depende do contato físico entre os insetos. Uma formiga, por exemplo, reconhecerá que outra formiga é da mesma espécie ou da mesma colônia tocando seu corpo – principalmente a cabeça – com as antenas, dotada de poros ou receptores próprios para a identificação dos HCCs. Por essa razão é que os mais de mil HCCs já identificados são chamados de feromônios superficiais ou de contato. Essa classificação os diferencia dos feromônios sexuais, liberados no ar pelas fêmeas aptas a procriar. “Nas colmeias, os insetos sociais se comunicam principalmente através de sinais químicos”, informa Lopes. “Fora da colônia, a primeira forma de comunicação entre as espécies é a visual. Se um inseto da mesma espécie ou de outra tentar invadir o formigueiro, as formigas vão reconhecê-lo como inimigo e o atacarão de imediato.” Quando há luz, as vespas Polistes satan se reconhecem também por meio de sinais peculiares em suas faces, de acordo com um estudo conduzido pela bióloga Ivelize Tannure Nscimento, da USP de Ribeirão Preto, e publicado em 2008 na Proceedings of the Royal Society B. Dois dias depois de saírem do ovo, as vespas já produzem o HCC característico da colônia, por causa do contato com os outros integrantes do grupo. A composição dessas substâncias pode mudar, em resposta, por exemplo, à variação na dieta. Sob a orientação de Nascimento, o biólogo Lohan Valadares dividiu uma colônia de saúvas em dois grupos e alimentou um com folhas e pétalas de rosa e outro com folhas de extremosa (Lagerstroemia sp.), árvore de flores rosa usada na arborização urbana. Depois, ele colocou as formigas de um grupo em outro. As que chegavam eram hostilizadas. As análises indicaram que o cheiro das formigas tinha mudado depois da alteração da dieta. “Como o perfil químico dos hidrocarbonetos cuticulares se alterou, as formigas que faziam parte de uma mesma colônia deixaram de se reconhecer”, comenta Nascimento. A habilidade de produzir esses compostos deve ter surgido antes mesmo de os insetos começarem a viver em colônias, há cerca de 100
de dezembro de 2016 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Os pesquisadores observaram também mudanças nas estruturas cerebrais das formigas, o que indicou que os insetos precisariam dos receptores de odor para o cérebro se desenvolver corretamente. Os HCCs explicam comportamentos intrigantes dos insetos sociais – e não só o fato de viverem se tocando com as antenas. “Depois de se sujarem ou saírem da água, as formigas se limpam ou se enxugam com as pernas como forma de recuperar a camada de hidrocarbonetos que cobre seu corpo. De outro modo, os guardas da colônia não os reconheceriam e não os deixariam entrar”, exemplifica Nascimento. Outro mistério resolvido se refere ao fato de as abelhas operárias da espécie Melipona scutellaris decapitarem as rainhas virgens com sete dias, quando poderiam atrair os machos interessados na cópula. Tocando o corpo – principalmente a cabeça – das rainhas virgens, as operárias percebem que o HCC delas é diferente do das rainhas fecundas. A percepção dessa diferença induz à matança, concluiu o biólogo Edmilson Souza, professor da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Não haveria grandes danos à colmeia porque as rainhas das colônias de abelhas sem ferrão como a uruçu produzem com frequência ovos que originam rainhas. Ao unirem biologia e química, esses estudos estão complementando os trabalhos sobre genética das abelhas, iniciados pelo geneticista paulista Warwick Kerr na década de 1950, e os de biologia do comportamento de insetos sociais, com a bióloga Vera Imperatriz Fonseca, a partir da década de 1970, e exigem uma visão multidisciplinar dos pesquisadores. “Aqui no laboratório”, conta Nascimento, “todo aluno e pesquisador, mesmo sendo biólogo, tem de ser um pouco químico, aprender a usar o cromatógrafo e a interpretar os resultados que produzirem”. n 3
fotos 1 Ana Cotta / wikimedia 2 Rhainer GUILLERMO FERREIRA / UFSCAR 3 léo ramos chaves
A formiga Dinoponera australis reconhece, por meio de compostos químicos captados pela antena, se outra da mesma espécie é macho ou fêmea
milhões de anos. Os biólogos Ricarda Kather e Stephen Martin, da Universidade de Salford-Manchester, Inglaterra, examinaram o perfil químico dos HCCs de 241 espécies de insetos, incluindo 164 de hábitos sociais, da ordem Hymenoptera — a maior desse grupo, com 130 mil espécies. Como detalhado em um estudo de 2015 na Journal of Chemical Ecology, espécies solitárias apresentaram um perfil de HCCs tão complexo quanto o das sociais. Outro grupo da Inglaterra indicou que as antenas – ao menos as das formigas Iridomyrmex purpureus – não apenas recebiam, mas também transmitiam sinais químicos, desse modo ampliando a conclusão do psiquiatra e entomologista suíço Auguste-Henri Forel (1848-1931). No final do século XIX, Forel mostrou que as antenas funcionavam como órgãos capazes de captar sinais químicos ao remover as antenas de quatro espécies de formigas e observar que os insetos se desorientavam e amontoavam-se, independentemente da espécie. FORMIGAS DESNORTEADAS
Sem HCCs, do mesmo modo, os insetos ficam desnorteados e a organização social se quebra. No laboratório de comportamento e evolução da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, a equipe do biólogo Daniel Kronauer desativou o gene orco, responsável pela produção de receptores dos HCCs, em formigas da espécie Ooceraea biroi, originária do Japão. Assim que saíam da fase larval e tornavam-se adultas, as formigas geneticamente alteradas mostravam de imediato um comportamento incomum para a espécie: não andavam mais em linha, mas se moviam sem direção, a esmo, como detalhado em um artigo
Projetos 1. Avaliação dos mecanismos exógenos e endógenos que influenciam a variabilidade dos hidrocarbonetos cuticulares em insetos sociais neotropicais (nº 15/25301-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fábio Santos do Nascimento; Investimento R$ 191.870,92. 2. Metabolismo e distribuição de xenobióticos naturais e sintéticos: Da compreensão dos processos reacionais à geração de imagens teciduais (nº 14/50265-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Norberto Peporine Lopes; Investimento R$ 1.137.805,87. Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.
pESQUISA FAPESP 260 z 47
Embriologia y
Silenciar para sobreviver Uma das cópias do cromossomo X é desativada nas mulheres nos primeiros dias do desenvolvimento embrionário Rodrigo de Oliveira Andrade
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inco ou seis dias após o espermatozoide fecundar o óvulo, ocorre um fenômeno genético que garante que os embriões do sexo feminino se desenvolvam de modo saudável: o desligamento de uma das duas cópias do cromossomo X. Apesar de sua importância para a viabilidade dos embriões femininos, pouco se sabia sobre o momento em que esse processo era desencadeado, sobretudo nos seres humanos. Em um estudo publicado em setembro na revista Scientific Reports, as geneticistas Lygia da Veiga Pereira e Maria Vibranovski, ambas do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), oferecem uma nova explicação sobre o início desse fenômeno. A partir de análise de sequências de RNA de células de embriões humanos disponíveis em banco de dados públicos, elas verificaram que a inativação do cromossomo X se dá nos primeiros dias após a fecundação, antes do que se pensava. As células humanas têm 46 cromossomos, cada uma com 22 pares de cromossomos somáticos, iguais em homens e mulheres, e um par de cromossomos sexuais: nas mulheres são dois cromossomos X e nos homens, um X e um Y. Com 48 z outubro DE 2017
uma dose dupla dos genes presentes no cromossomo X, as mulheres poderiam produzir duas vezes mais proteínas relacionadas a esses genes do que os homens. Isso não acontece porque, durante o desenvolvimento embrionário, um dos dois cromossomos X é silenciado, evitando que seus genes sejam superexpressos. “A inativação de uma cópia do cromossomo X é um importante mecanismo epigenético responsável por calibrar a atividade dos genes ligados a essas sequências de DNA nas mulheres”, explica Lygia. Nas últimas duas décadas, muitas hipóteses foram apresentadas na tentativa de explicar esse fenômeno, sem que se chegasse a uma conclusão sobre como e quando isso acontecia. A explicação mais recente foi proposta em março de 2016 por um grupo de pesquisadores suecos em um estudo publicado na revista Cell. Em oposição a quase tudo o que havia sido proposto até então, eles descartaram a existência de um mecanismo de inativação do cromossomo X no início do desenvolvimento embrionário. Segundo eles, a equiparação dos níveis da atividade genética se daria por meio da redução dos níveis de expressão gênica nos dois cromossomos X nos embriões femininos.
Os primeiros indícios sobre o processo de inativação do cromossomo X foram identificados na década de 1940 pelo médico canadense Murray Llewellyn Barr (1908-1995), que observou um pequeno novelo de DNA junto à face interna da membrana do núcleo das células femininas que não se desenrolava durante a mitose. Nos anos 1960, a partir dos trabalhos da geneticista inglesa Mary Lyon (1925-2014), constatou-se que essa estrutura era um cromossomo X inativado, e que isso era uma característica própria das células das fêmeas dos mamíferos que assegurava o desenvolvimento adequado do embrião. Nos anos seguintes, verificou-se que esse processo se dava de modo distinto em outros organismos. Nos vermes, a expressão dos genes nos dois cromossomos X da fêmea era reduzida pela metade. Já nas moscas, os machos duplicavam a expressão dos genes de seu único cromossomo X. Em mamíferos, a inativação do cromossomo X foi estudada sobretudo em células embrionárias de camundongos, nos quais esse processo se dá assim que o embrião em estágio blastocisto se implanta na parede do útero e as células começam a se diferenciar. Sabe-se hoje
Os cromossomos sexuais X e Y, encontrados nas células masculinas, e as duas cópias do cromossomo X, típicas das células femininas
O grupo de Lygia e Maria decidiu seguir essa linha de pesquisa em 2013. Ao lado da bióloga Joana Carvalho Moreira de Mello, elas começaram a trabalhar no sequenciamento de RNA de células isoladas de embriões humanos. A estratégia permite identificar quais genes estão ativos, ou determinar em que momento se tornam ativos. “Pretendíamos analisar a atividade dos genes ligados ao cromossomo X em embriões em diferentes estágios de desenvolvimento”, explica Maria. No entanto, no mesmo ano, um grupo de pesquisadores chineses publicou um artigo analisando a mudança de expressão gênica em embriões a partir dos mesmos experimentos que elas pretendiam fazer.
CAVALLINI JAMES / BSIP /Alamy /Latinstock
Na espécie humana, a inativação do cromossomo ocorre antes de o embrião se fixar à parede do útero
que essa inativação pode acometer tanto o cromossomo X paterno como o materno, e que, uma vez definido o X inativo, seus genes deixam de ser expressos, característica que se mantém nas células descendentes. Até então, pensava-se que o processo em humanos seria igual ao observado em camundongos. Nos últimos anos, no entanto, com a descoberta das células-tronco embrionárias humanas e o desenvolvimento de uma nova técnica de mapeamento de DNA capaz de sequenciar o genoma completo de uma única célula, tornou-se possível estudar melhor esse fenômeno e com isso muitos grupos passaram a investigar a inativação do cromossomo X humano.
Atalho inesperado
Os chineses haviam feito toda a parte laboratorial: conseguiram os embriões humanos, separaram as células, extraíram e sequenciaram o RNA, mas não olharam para a inativação do cromossomo X. Eles também disponibilizaram todas as informações em bancos de dados genômicos. “Com isso, não precisamos gastar tempo com os experimentos, apenas com a análise dos dados prontos”, conta Lygia, que também é chefe do Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias e pesquisadora principal do Centro de Terapia Celular da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Elas interromperam o sequenciamento de RNA e passaram a analisar os dados com o apoio de estratégias de bioinformática, determinando o sexo dos embriões com base em dados de RNA e avaliando a expressão dos genes no cromossomo X. No estudo, elas monitoraram a dinâmica de expressão dos genes do cromossomo X no início do desenvolvimento embrionário humano. Verificaram que o gene XIST, responsável por iniciar a inativação, era expresso em embriões femininos a partir do estágio de oito células e que sua expressão se estabilizava no estágio de blastocisto, seis dias após a fertilização. Os resultados sugerem que o processo de inativação do cromossomo
X em embriões humanos tem início em um estágio anterior ao dos embriões de camundongos. “O ajuste da atividade gênica em humanos se dá pela inativação de um dos cromossomos X, como em camundongos”, explica Lygia. “A diferença é que em humanos esse processo começa a se desenhar antes de o embrião se fixar à parede do útero, enquanto em camundongos isso acontece quando as células estão começando a se especializar.” Na avaliação da geneticista Anamaria Camargo, do Centro de Oncologia Molecular do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, o trabalho se destaca pelo rigor científico e pela análise cuidadosa dos dados. “O padrão de expressão observado é compatível com o modelo de inativação de um dos cromossomos X e permite refutar o modelo proposto pelos pesquisadores suecos”, comenta a pesquisadora, que não participou do estudo na Scientific Reports. “Trata-se de uma contribuição valiosa para uma melhor compreensão do mecanismo de ajuste da atividade dos genes ligados ao cromossomo X em seres humanos.” Segundo Lygia, o próximo passo é estudar como se dá a escolha do cromossomo que será silenciado, isto é, se se trata de um processo aleatório ou não. Para isso, pretendem analisar o processo de inativação do cromossomo X logo após a fertilização. As pesquisadoras também pretendem seguir monitorando as etapas seguintes da inativação do cromossomo X para investigar melhor esse mecanismo. n
Projetos 1. Centro de Terapia Celular – CTC (nº 13/08135-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas (FMRP-USP); Investimento R$ 25.560.734,64 (para todo o projeto). 2. O papel da gametogênesis na origem e evolução dos genes novos (nº 15/20844-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Maria Dulcetti Vibranovski (IB-USP); Investimento R$ 394.581,10. 3. Análise in silico do estado epigenético do cromossomo X em embriões humanos em estágio pré-implantacional (nº 15/03610-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Maria Dulcetti Vibranovski (IB-USP); Bolsista Joana Carvalho Moreira de Mello; Investimento R$ 233.872,74.
Artigos científicos MELLO, J. C. et al. Early X chromosome inactivation during human preimplantation development revealed by single-cell RNA-sequencing. Scientific Reports. set. 2017. LANNER, F. et al. Single-cell RNA-Seq reveals lineage and X chromosome dynamics in human preimplantation embryos. Cell. v. 165, n. 4, p. 1012-26. mai. 2016.
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Paleobiologia y
Vermes nada insignificantes Túneis fossilizados sugerem que organismos complexos surgiram antes da explosão de diversidade do período Cambriano Maria Guimarães
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arcas muito discretas, como fiapos embutidos em rochas retiradas de pedreiras na região de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, por anos passaram despercebidas. “Nem enxergávamos”, lembra a paleontóloga Juliana Leme, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). Ela começou a trabalhar com esse material em 2010, 50 z outubro DE 2017
estudando os fósseis dos primeiros seres vivos com esqueleto do planeta (ver Pesquisa FAPESP nº 199). Nos últimos anos, porém, ficou claro que ali há um tesouro ainda mais valioso: os tais fiapos são pistas deixadas por seres mais complexos do que se esperava entre 541 milhões e 555 milhões de anos atrás, quando se imaginava existir apenas organismos bem mais simples.
Os fiapos são, de acordo com artigo publicado em setembro na revista Nature Ecology & Evolution, túneis deixados por vermes muito pequenos conhecidos como nematoides. Naquele momento de evolução da vida, caracterizado por organismos moles habitando a superfície, foi uma surpresa encontrar indícios de vermes que se locomoviam por contração muscular e escavavam o sedimento, mesmo que chegassem apenas a alguns milímetros (mm) de profundidade. É o registro mais antigo de fósseis de animais conhecidos como meiofauna, seres de no máximo 1 mm que habitam o sedimento no fundo do mar ou em corpos de água doce. A região de Corumbá, agora parte do Pantanal, naquela época era mar. As rochas da região já eram muito procuradas pelos paleontólogos por conterem vestígios da fauna conhecida como biota de Ediacara, que começou a surgir entre 580 milhões e 560 milhões de anos atrás, como os gêneros Corumbella e Cloudina. Por isso, quando o paleobiólogo britânico Martin Brasier, da Universidade de Oxford (Reino Unido), veio à USP em 2012 como professor visitante, ele foi visitar a área e levou seu então aluno de
mestrado, Luke Parry. Eles também não enxergaram os sutis riscos nas amostras de rocha que levaram para continuar e aprofundar os estudos. De volta à Inglaterra, Parry examinou as amostras usando a técnica de microtomografia tridimensional por raios X e então enxergou os túneis que chegam a mergulhar 7 mm na superfície, atravessando camadas de sedimento. Mais do que isso, as marcas feitas pelos antigos moradores dos túneis indicam o tipo de movimento que faziam, deixando espaços ligeiramente mais alargados, como se fossem gomos. Trata-se, segundo os pesquisadores, de cicatrizes de contrações musculares, marcas de organismos classificados como bilaterais, já portadores de certa complexidade morfológica. Os túneis são preenchidos com pirita, um material diferente da camada de sedimentos externa, indicando que ali havia muco orgânico. O achado era surpreendente em rochas da Formação Guaicurus, do início do Cambriano. Nessa época, 541 milhões de anos atrás, começou a grande diversificação conhecida como Explosão Cambriana da Vida, quando surgiu boa parte dos filos que deram origem à biodiversidade atual. O orientador, Brasier, faleceu em 2014 em um acidente, mas Parry continuou o trabalho e este ano terminou o doutorado. É ele o primeiro autor do artigo agora publicado.
Em 2016, em parceria com o paleobiólogo Alex Liu, da Universidade de Cambridge, Parry e os pesquisadores brasileiros encontraram vestígios dos mesmos organismos em amostras retiradas de outra camada, mais antiga, na Formação Tamengo. A descoberta foi mais surpreendente ainda, já que os fósseis ali armazenados são mais antigos e, ainda por cima, podem ser datados graças à presença de cinzas vulcânicas coletadas pelo geólogo Paulo Boggiani, do IGc. Essa datação, considerada confiável, também foi feita na Inglaterra e atesta a existência desses organismos antes do Cambriano. Camadas de cinzas vulcânicas ainda não foram encontradas na Formação Guaicurus, o que torna mais complicada a datação de fósseis encontrados nela. de volta ao passado
Como não se pode falar em comprovação em ciência, sobretudo quando se trata de acontecimentos tão antigos, os pesquisadores são cautelosos. “Se nossa interpretação estiver correta, significa que já havia organismos complexos antes da Explosão Cambriana da Vida”, sugere Juliana, da USP. Esses animais já estariam modificando o ambiente ao perfurar o sedimento e assim levar oxigênio para as camadas internas, possivelmente tornando o meio mais hospitaleiro para a colonização por outras formas de vida.
É o que o biólogo Cleber Diniz pretende investigar mais a fundo durante o doutorado em curso, sob orientação de Juliana. “Eu estava estudando Corumbella, mas descobri que havia algo muito mais desconhecido para explorar”, conta. Ele já fez uma coleta detalhada, camada por camada, em pedreiras da região, e já sabe onde estão os vestígios de nematoides. Nos próximos anos, um grupo de cerca de 15 docentes brasileiros e estrangeiros, e seus estudantes, devem esmiuçar esses achados no âmbito de um projeto de pesquisa coordenado pelo geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Por enquanto, Juliana comemora o fato de hoje o Brasil estar no mapa dos estudos do Pré-Cambriano. Literalmente: no início da colaboração entre o grupo da USP e os colegas do Reino Unido, Mato Grosso do Sul não era considerado importante para se entender esse momento geológico. n
Projeto O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico (nº 16/06114-6). Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (USP); Investimento R$ 4.305.689,93.
Artigo científico PARRY, L. A. et al. Ichnological evidence for meiofaunal bilaterians from the terminal Ediacaran and earliest Cambrian of Brazil. Nature Ecology & Evolution. n. 1, p. 1455-64. 11 set. 2017.
fotos léo ramos chaves
Icnofóssil (resquício da atividade) do gênero Multina minima revela túneis feitos por vermes há 542 milhões de anos
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paleontologia y
Fósseis em movimento 5 cm
Reconstituições em 3D apontam novas características de crocodilo e dinossauro que viveram há milhões de anos no Brasil Diego Freire
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ncontrar um fóssil é parte importante do trabalho de um paleontólogo e talvez a mais célebre, mas, em muitos casos, esse é apenas o primeiro passo de um intenso esforço de interpretação dos ecos de um passado tão remoto que quase não podem mais ser ouvidos. Dois estudos recentes de equipes brasileiras mostram como o uso de imagens tridimensionais, geradas por tomógrafos, pode levar a reinterpretações sobre hábitos e características de fósseis já conhecidos e permite reconstituir digitalmente como devem ter sido os movimentos de animais que viveram centenas de milhões de anos atrás. 52 z outubro DE 2017
Um trabalho de paleontólogos paulistas e fluminenses sugere que uma espécie de crocodilo extinto, descoberto em 2004 em Monte Alto, no interior paulista, tinha hábitos de locomoção terrestre. A hipótese se baseia na análise da anatomia das patas do réptil, que viveu há 80 milhões de anos. Outro estudo, produzido por paleontólogos de São Paulo, Minas Gerais e da Alemanha, reconstrói as estruturas do cérebro de um dinossauro de 230 milhões de anos, encontrado na década de 1990 no Rio Grande do Sul. No trabalho, os autores defendem a ideia de que o animal tinha um pescoço tão ágil que lhe permitia ser basicamente
carnívoro, e não estritamente herbívoro, como típico do grupo a que pertencia. Mais de uma década depois de ter participado da descoberta de fósseis do crocodilo Montealtosuchus arrudacamposi, a paleontóloga Sandra Simionato Tavares, diretora do Museu de Paleontologia de Monte Alto, no interior paulista, reconstituiu as articulações e a musculatura do animal. Em parceria com pesquisadores do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), ela obteve imagens de tomografia das diferentes partes do fóssil, composto por crânio, vértebras e uma pata dianteira. Essas imagens foram
fotos TAVARES, S. et al. / Cretaceous Research
depois trabalhadas por colaboradores no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), ambos em Campinas, no interior de São Paulo, e permitiram recriar os movimentos do réptil em um ambiente virtual. O resultado desse trabalho, que contou com a participação de Fresia Ricardi Branco, do Instituto de Geociências da Universidade de Campinas (Unicamp), foi publicado em julho deste ano na revista Cretaceous Research. “O crocodilo estudado possui algumas características de espécies atuais e outras dos seus ancestrais mais remotos”, conta Sandra. As articulações da mandíbula com o crânio do Montealtosuchus eram semelhantes às dos crocodilos vivos. Porém, o posicionamento frontal das narinas e as órbitas alocadas lateralmente no crânio da espécie extinta são indicativos de que a espécie habitava ambientes terrestres. Por meio de exames de tomografia, os pesquisadores do grupo de Sandra puderam ir além das descrições das características morfológicas do bicho e compreender aspectos de sua biomecânica. Os resultados das análises indicam que a postura das patas do Montealtosuchus era mais ereta do que a de seus congêneres atuais, de vida aquática. O crocodilo extinto, que media entre 1,30 metro (m) e 1,50 m, pesava de 25 a 50 quilos. A reconstituição digital sugere que as articulações dos ossos da sua cintura escapular e do seu esqueleto apendicular anterior, que auxilia na sustentação e na movimentação corporal, distribuíam-se de modo a permitir que as
Imagens de tomografias do crocodilo Montealtosuchus arrudacamposi e esqueleto montado com os fósseis encontrados do réptil
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Ossos do crânio do dinossauro Saturnalia tupiniquim, que viveu 230 milhões de anos atrás
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20 cm
patas fossem posicionadas verticalmente abaixo do corpo e não ao lado. A reorganização em 3D dos ossos indica que a articulação entre a escápula, o coracoide e o úmero, juntamente com os metacarpos mais comprimidos e próximos uns dos outros, possibilitava ao crocodilo movimentar-se em ambientes terrestres por longas distâncias em busca de presas, sem depender de grandes corpos de água ou de ambientes muito úmidos.
Estruturas do cérebro indicam que o Saturnalia era um predador, e não estritamente um herbívoro
“O
entendimento do passado da vida na Terra deve transcender ao simples conhecimento da diversidade de formas existentes”, destaca o paleontólogo Ismar Carvalho, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos coautores do trabalho. Para o pesquisador, avaliar a mecânica dos movimentos e a fisiologia desses animais permite aprimorar interpretações ecológicas. “As soluções anatômicas e fisiológicas dos animais traduzem aspectos dos espaços ecológicos em que eles vivem, mas esse conhecimento é limitado pela dificuldade de se extrair mais informações dos fósseis sem danificá-los. As tomografias permitem a modelagem de como a musculatura se inseria e se distribuía no corpo, aspectos dificilmente possíveis de
Sítio paleontológico gaúcho onde foi encontrado o dinossauro 54 z outubro DE 2017
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serem avaliados pela simples observação dos registros fósseis”, informa. Foi graças ao aprimoramento da tomografia computadorizada que pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e da Universidade de Munique Ludwig-Maximilians, na Alemanha, conseguiram estudar em detalhes os fósseis de ossos que ficam ao redor do cérebro, o chamado neurocrânio, do Saturnalia tupiniquim. Encontrado em rochas do período Triássico do Rio Grande do Sul, esse é um dos dinossauros mais antigos do mundo. A espécie faz parte da linhagem de dinossauros sauropodomorfos, a mesma dos maiores animais terrestres que já habitaram o planeta, herbívoros pescoçudos de até 40 m de comprimento e 90 toneladas. Diferente de seus descendentes famosos, o dinossauro brasileiro era baixinho. Media cerca de 1,5 m. Além de plantas, também devia comer pequenos animais. A compreensão sobre os hábitos alimentares do animal foi ampliada por meio da reconstituição da estrutura interna do crânio, que permitiu estimar a forma e a dimensão do cérebro e dos outros órgãos que constituem o encéfalo. Dessas análises vieram as evidências adicionais de que os
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Reconstituição artística da aparência do dinossauro e modelagem do crânio em sua cabeça
fotos 1 Jay Nair 2 Divulgação 3 e 4 Rodolfo Nogueira
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sauropodomorfos mais antigos também deveriam ser predadores. Em uma reconstituição virtual, os pesquisadores preencheram o neurocrânio fossilizado e perceberam estruturas bastante volumosas, como o flóculo e o paraflóculo, que integram o cerebelo e estão relacionadas ao controle da visão e de movimentos da cabeça e do pescoço do animal. “Estruturas tão desenvolvidas sugerem que ele deveria apresentar um comportamento típico dos predadores, que usam movimentos rápidos de pescoço e cabeça para capturar presas pequenas e esquivas”, diz o paleontólogo Mario Bronzati Filho, primeiro autor do artigo, publicado em setembro na Scientific Reports, com os resultados da análise. Bronzati atualmente faz doutorado na universidade alemã.
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e acordo com Max Cardoso Langer, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, foi a primeira vez que partes do cérebro de um dinossauro tão antigo foram reconstituídas virtualmente. “Com esse estudo, foi possível ir além na compreensão de hábitos que costumam ser inferidos com base apenas na morfologia dos dentes e de outras partes do esqueleto e que estão intimamente relacionados à evolução da vida na Terra”, diz o pesquisador, um dos descobridores do dinossauro na década de 1990. O paleontólogo Jonathas de Souza Bittencourt Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também participou do estudo com o Saturnalia.
Para o paleontólogo Sérgio Alex Azevedo, do Museu Nacional da UFRJ, que não participou dos estudos com o crocodilo de Monte Alto nem com o dinossauro gaúcho, o uso de tomografia nas pesquisas paleontológicas não é uma novidade, mas tem se tornado mais eficiente com o desenvolvimento de tecnologias de maior resolução. Esses aparelhos mais sofisticados permitem enxergar além do que os tomógrafos médicos são capazes. No caso dos fósseis, não há a preocupação de controlar rigidamente a radiação empregada nos exames a fim de evitar danos à saúde dos animais, mortos há muito tempo. “Trata-se de uma técnica não invasiva, que não altera em nada a forma do que está sendo analisado, fundamental quando estamos lidando com materiais que estão resistindo à deterioração natural e não podem correr o risco de sofrer danos mecânicos. Com isso, temos acesso a uma série de informações que antes não estavam disponíveis, como estruturas em cavidades internas”, explica. n
Projeto A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 14/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer (USP); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.959.890,17.
Artigos científicos TAVARES, S. et al. The morphofunctional design of Montealtosuchus arrudacamposi (Crocodyliformes, Upper Cretaceous) of the Bauru Basin, Brazil. Cretaceous Research. 11 jul. 2017. BRONZATI, M. et al. Scientific Reports. 20 set. 2017.
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física y
Estudo indica com maior precisão que essas partículas ultraenergéticas vêm de fora da Via Láctea Victória Flório
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s partículas com as mais altas energias da natureza são observadas nos raios cósmicos. Alguns deles são milhões de vezes mais energéticos que as partículas criadas em aceleradores como o Grande Colisor de Hádrons (LHC). Os raios cósmicos são núcleos atômicos, constituídos de prótons e nêutrons, que viajam no espaço a velocidades próximas à da luz. Podem ser núcleos leves, como os do hidrogênio, elemento mais abundante do Universo, ou pesados, como os do ferro. Pistas sobre a origem dos raios cósmicos ultraenergéticos podem ser obtidas a partir da análise de suas direções de chegada na Terra. Ao entrar na atmosfera do planeta, os raios cósmicos colidem
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com núcleos de nitrogênio e oxigênio do ar. Avalanches de partículas resultantes dessas colisões atingem a superfície da Terra. O fenômeno é conhecido como chuveiro atmosférico. Durante 13 anos, os pesquisadores do Observatório Pierre Auger, instalado na província argentina de Mendoza, estudaram as partículas provenientes desses chuveiros para rastrear a origem de mais de 30 mil raios cósmicos com energias superiores a 8 exaelétron-volts ou 8×1018 elétron-volts. O trabalho da colaboração, publicado em 22 de setembro na revista Science, sinaliza que a maior parte desses raios se origina de outras galáxias que não a Via Láctea. “Esse resultado indica fortemente a natureza extragaláctica dos raios cósmi-
cos ultraenergéticos”, comenta a física Carola Dobrigkeit Chinellato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), líder da participação brasileira no Pierre Auger, que reúne pouco mais de 400 pesquisadores de 18 países. “A chance de essa conclusão ser fruto do acaso é de duas em 100 milhões e equivale à de uma pessoa acertar os seis números da Mega-Sena.” Em nota divulgada com o artigo, o físico britânico Alan Watson, da Universidade de Leeds, no Reino Unido, porta-voz emérito do observatório, disse que o resultado do estudo é “um dos mais excitantes que obtivemos e que resolve um problema perseguido desde que o observatório foi concebido por Jim Cronin [norte-americano prêmio Nobel de Física de 1980 morto em 2016] e por mim mais de 25 anos atrás”. O Pierre Auger foi projetado e começou a ser construído na década de 1990 para detectar raios cósmicos de alta energia, cuja existência foi comprovada na década de 1960. Suas atividades tiveram início em 2004 e a construção terminou em 2008 ao custo de US$ 54 milhões (valores de então). A chuva de
foto A. Chantelauze / S.Staffi / L.Bret mapa Colaboração Pierre Auger / Science
A origem dos raios cósmicos
raios cósmicos é registrada por 1.660 detectores de superfície, os chamados tanques Cherenkov, que operam ininterruptamente e estão espalhados por uma área plana, ao lado dos Andes argentinos, de 3 mil quilômetros quadrados, correspondente a duas vezes a da cidade de São Paulo. Os sensores detectam a luz ultravioleta emitida na água quando as partículas energéticas que compõem os chuveiros passam pelos tanques. Em noites de bom tempo e sem luar, as medições são complementadas pelos dados obtidos por 27 telescópios de fluorescência, que registram a luz ultravioleta emitida pelas moléculas de nitrogênio da alta atmosfera quando excitadas pelo chuveiro de partículas. PArtículas raras
Diferentemente dos raios cósmicos de menor energia, que são abundantes na atmosfera terrestre (chega uma dessas partículas por metro quadrado no topo da atmosfera por segundo), as partículas de altas energias são bem mais raras. A cada ano, um raio cósmico atinge a atmosfera por quilômetro quadrado. Para o físico Ronald Cintra Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), um dos 30 brasileiros que integram a colaboração internacional, o principal mérito do trabalho reside na precisão com que determinaram a origem extragaláctica desses raios cósmicos ultraenergéticos. “Eles não viajam grandes distâncias na escala cósmica. Então, devem vir de galáxias vizinhas, distantes no máximo 200 megaparsecs, cerca de 250 vezes a distância de Andrômeda, a galáxia
Representação de partículas derivadas de raios cósmicos caindo sobre tanque do Observatório Pierre Auger, na Argentina
A concentração de partículas no céu Os pesquisadores do
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Observatório Pierre Auger mediram
mais próxima da nossa”, explica Shellard. Inicialmente, os pesquisadores do Auger chegaram a cogitar a possibilidade de que os raios cósmicos altamente energéticos viessem das proximidades do centro da Via Láctea, onde há possíveis fontes desse tipo de fenômeno. A região de Sagittarius A, por exemplo, abriga um desses candidatos, um buraco negro supermassivo. “Mas os nossos resultados evidenciam que os raios cósmicos ultraenergéticos vêm de uma direção bem distante do centro da Via Láctea, vêm de outras galáxias”, esclarece Carola. Os pesquisadores mediram o padrão de anisotropia dos raios cósmicos, ou seja, como sua incidência varia em diferentes regiões do espaço, e constataram que o fenômeno ocorre preferencialmente em uma região de alta concentração de galáxias (ver quadro). Apesar das evidências de que o fenômeno se origine fora da Via Láctea, muitos enigmas persistem. Ainda não é possível afirmar de quais galáxias surgem os raios cósmicos. Também não se conhece com precisão a natureza dessas partículas nem os fenômenos que as produzem. Em um estudo de 2007, feito a partir da observação de apenas 27 raios cósmicos de energia ainda mais alta do que a relatada no trabalho atual, os pesquisadores do Auger haviam sugerido que esse fenômeno se originaria no núcleo de galáxias ativas vizinhas à Via Láctea. Essa observação, no entanto, não se confirmou com o avanço dos trabalhos no observatório. Até o final de 2018, a colaboração internacional pretende fazer melhorias no sistema de detectores de superfície do observatório. O funcionamento do Auger custa US$ 1,9 milhão por ano. O Brasil contribui anualmente com US$ 120 mil, pagos pela FAPESP, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A previsão é de que o observatório continue a coletar dados, pelo menos, até 2025. n
como a incidência de raios cósmicos varia em diferentes direções do espaço
360
0
e constataram que o fenômeno ocorre preferencialmente em uma região
Centro da
distante da
Via Láctea
Artigo científico
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Via Láctea (área em vermelho)
Projeto Estudo dos raios cósmicos de mais altas energias com o Observatório Pierre Auger (nº 10/07359-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Carola Dobrigkeit Chinellato (Unicamp); Investimento R$ 5.122.504,57.
fonte Observatório Pierre Auger
The Pierre Auger collaboration. Observation of a large-scale anisotropy in the arrival directions of cosmic rays above 8×1018 eV. Science. 22 set. 2017.
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Distância da Terra (anos-luz) 4,2
0
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39 41
GJ 667 C c 0,84
Trappist-1 e 0,85
GJ 667 C e* 0,60 Terra 1
proxima cen b 0,85
kapteyn b* 0,67
Trappist-1 f 0,68 Trappist-1 g
GJ 667 C f*
LHS 1140b
0,58
0,68
0,77 Ranking Esi de similaridade com a Terra
O tamanho das ilustrações artísticas dos exoplanetas respeita a escala da Terra. *Exoplanetas ainda não confirmados.
astrofísica y
Mundos como o nosso Nova geração de espectrógrafos deve possibilitar a descoberta de planetas gêmeos da Terra Marcos Pivetta
U
ma nova fase na busca por planetas rochosos semelhantes à Terra fora do Sistema Solar, as chamadas exoterras, deverá ter início no próximo ano com a entrada em operação de dois espectrógrafos de última geração com nomes parecidos: o americano Expres e o europeu Espresso. O primeiro está em fase final de testes nos Estados Unidos e o segundo, em instalação no Chile. Esse tipo de instrumento separa a luz emitida pelas
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estrelas em seus diferentes comprimentos de ondas e possibilita o estudo de algumas características físicas e químicas de objetos celestes e a determinação de seu movimento relativo no espaço. Com o Expres e o Espresso, os astrofísicos esperam ter, pela primeira vez, a capacidade de encontrar e estudar gêmeas da Terra em torno de estrelas vizinhas similares ao Sol. Um sistema ideal seria composto por uma exoterra, com massa e tamanho
iguais ou quase iguais aos da Terra, situada aproximadamente à mesma distância de sua estrela que nosso planeta se encontra em relação ao Sol, ou seja, na zona habitável onde pode haver água líquida, pré-requisito para a existência de vida. Apesar de mais de 3.500 mundos extrassolares terem sido descobertos nos últimos 20 anos e de existirem outros 4.500 candidatos a exoplanetas, pouco mais de uma dúzia deles exibe um bom grau de semelhança com a Ter-
561
1.115
770
1.200
kepler-442 b 0,84 kepler-186 f 0,61
kepler-1229 b 0,73
kepler-62 f 0,67
13 exoplanetas com potencial de abrigar vida
phl.upr.edu
Entre os 3.500 exoplanetas conhecidos, astrofísicos da Universidade de Porto Rico, em Arecibo, classificaram os melhores candidatos a mundos habitáveis
Esses exoplanetas têm massa e raio semelhantes ao da Terra e apresentam, em tese, condições de abrigar água líquida na superfície
ra. Por ora, segundo o catálogo criado e periodicamente atualizado pelo Laboratório de Habitabilidade Planetária da Universidade de Porto Rico, em Arecibo, o exoplaneta que orbita a estrela mais perto de nós, a Proxima Centauri, a 4,2 anos-luz de distância, é o mais parecido com a Terra (ver quadro acima). Se funcionarem a contento, os novos espectrógrafos terão uma resolução 10 vezes superior à dos melhores instrumentos atuais e deverão medir o tênue efeito gravitacional causado periodicamente por uma gêmea da Terra na órbita de sua estrela – algo como uma sacudidela que altera infimamente a trajetória e a velocidade com que a estrela se afasta ou se aproxima da Terra, chamada velocidade radial. Registrar esse tipo de perturbação, por meio do efeito Doppler, foi o método usado em 1995 por astrofísicos do Observatório de Genebra, na Suíça, para descobrir o primeiro exoplaneta em torno de uma estrela do tipo solar, um gigante gasoso com metade da mas-
Não há certeza se eles são realmente corpos sólidos, mas suas órbitas se situam dentro da chamada zona habitável
Os astrofísicos os classificaram em função de um índice de similaridade com a Terra (ESI), que leva em conta alguns parâmetros dos exoplanetas e de suas estrelas
sa de Júpiter localizado muito próximo de sua estrela. O problema é que mundos rochosos pequenos como a Terra causam oscilações gravitacionais tão diminutas em estrelas como o Sol que nem os melhores espectrógrafos atuais conseguem flagrar. O mais potente desses dispositivos em funcionamento atualmente – o Harps, instalado no observatório de La Silla, do Observatório Europeu do Sul (ESO), no sul do Chile – registra variações de no mínimo 1 metro por segundo (m/s) na velocidade radial de estrelas. “A Terra não seria encontrada por um extraterrestre que usasse a nossa tecnologia atual”, compara a astrofísica Debra Fischer, da Universidade Yale, dos Estados Unidos, que encabeça o projeto do Expres. “Ele apenas descobriria os maiores planetas do Sistema Solar.” A massa de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar, é 317 vezes maior do que a da Terra. Sua força gravitacional provoca um efeito Doppler sobre o Sol
Quanto mais próximo de 1 for o ESI, maior a semelhança com nosso planeta. Proxima Cen b é o exoplaneta mais próximo e mais bem rankeado no índice
de 13 m/s. A gravidade da Terra causa uma perturbação muito mais sutil: faz a velocidade radial do Sol oscilar 10 centímetros por segundo (cm/s) a cada volta completa dada pelo planeta em torno da estrela. Planetas de fora do Sistema Solar semelhantes à Terra devem provocar perturbações dessa ordem, de uns poucos cm/s, na órbita de sua estrela-mãe. É esse o nível de resolução que o Expres e o Espresso precisam atingir para ser úteis na busca por exoterras. Quanto menor for a distância e maior a massa de um exoplaneta em relação à de sua estrela, maior será a variação na velocidade radial dessa estrela. “Queremos encontrar planetas rochosos dentro da zona de habitabilidade de sua estrela”, comenta o astrofísico Francesco Pepe, do Observatório de Genebra, coordenador do projeto Espresso e que trabalhou no desenvolvimento do Harps. O Espresso é uma iniciativa da Suíça, Itália, Espanha e Portugal em parceria com o ESO. Ele está sendo instalado no Very Large pESQUISA FAPESP 260 z 59
Telescope (VLT), um conjunto de quatro telescópios principais, cada um com um espelho de 8,2 m, no sítio do ESO em Cerro Paranal, no Chile. “O Espresso pode funcionar com apenas um ou com até os quatro telescópios do VLT”, explica Pepe. O custo estimado do espectrógrafo é de € 23 milhões. Debra, que foi coautora da descoberta do primeiro sistema com mais de um exoplaneta em 1999, esteve em São Paulo em setembro deste ano para participar da reunião anual da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). Em sua apresentação, falou da busca por exoterras e do Expres, que custou cerca de US$ 5,2 milhões. Até o final de outubro, deve terminar a montagem do espectrógrafo no Telescópio do Canal Discovery, dotado de um espelho de 4,3 m, que fica no Observatório Lowell, no Arizona. “No dia 9 de dezembro, está programada a primeira luz do Expres”, comenta Debra, que toca desde 2014 um projeto para encontrar 100 exoplanetas parecidos com a Terra na vizinhança do Sistema Solar. O Discovery é um telescópio mais modesto do que o VLT, capaz de fazer medições em estrela de menor brilho. Os construtores do Expres, no entanto, esperam compensar essa desvantagem com a adoção de um calendário mais flexível de uso do seu espectrógrafo do que o adotado pelo Espresso no VLT, um dos mais disputados telescópios do mundo. “Ter mais tempo disponível para realizar observações é um diferencial importante”, opina o astrofísico José Dias do Nascimento Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), responsável pela vinda de Debra ao encontro da SAB. “Às vezes, temos de seguir por dois anos um exoplaneta para determinar sua órbita.” O Expres vai cobrir apenas o céu do hemisfério Norte. A astrofísica de Yale planeja ter um clone do espectrógrafo instalado em um telescópio no hemisfério Sul. “O Soar, no Chile, é muito parecido com o Discovery e seria fácil instalar nele uma cópia do Expres”, comenta Debra. O Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica, nome completo do Soar, é um telescópio com espelho de 4,1 m construído e mantido por investimentos do Brasil, dos Estados Unidos e do Chile. O custo de implantação dessa réplica do Expres, denominada Sorceress, seria de US$ 3,6 milhões. “O 60 z outubro DE 2017
Usando a gravitação para encontrar exoplanetas A técnica da velocidade radial é uma das mais empregadas para descobrir planetas em torno de estrelas Estrela
Exoplaneta
Um exoplaneta causa uma perturbação gravitacional na órbita de sua estrela que altera infimamente a velocidade com que ela se afasta ou se aproxima da Terra (velocidade radial). Com um espectrógrafo, os astrofísicos medem o efeito Doppler (objetos que se aproximam da Terra emitem luz azul e os que se distanciam, vermelha) e calculam a velocidade da estrela. A descoberta dessa perturbação periódica é um sinal de que deve haver um exoplaneta ao redor da estrela Fonte Eso
instrumento, sem dúvida, é bom e, em princípio, há interesse”, comenta Bruno Vaz Castilho, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), que gerencia a participação brasileira no Soar. “Mas o comitê científico do telescópio tem que avaliar se ele se encaixa nas operações e na proposta futura de pesquisas do Soar.” As soluções tecnológicas empregadas no Espresso e no Expres são diferentes, mas basicamente tentam equacionar os mesmos problemas a fim de atingir a precisão desejada: manter a parte óptica do espectrógrafo em um ambiente com vácuo, pressão e temperatura (de cerca de -200 Kelvin) controlados. A conexão entre os instrumentos e os telescópios em que estão sendo instalados é feita por uma rede de fibras ópticas. “Outros espectrógrafos de última geração estão sendo construídos, mas só nós e o Ex-
pres assumimos publicamente a meta de medir variações na velocidade radial das estrelas da ordem de 10 cm/s”, comenta Pepe, do projeto Espresso. Para chegar a esse nível de precisão, os aparelhos terão de ser capazes de distinguir instabilidades típicas da superfície das estrelas – caldeiras borbulhantes e magnetizadas com gases que se movimentam a centenas de metros por segundo – da tênue sacudidela gravitacional de 10 cm/s provocada na órbita dessa mesma estrela por um planeta como a Terra. Técnicas complementares
O sonho dos astrofísicos é obter imagens diretas, de preferência no campo da luz visível, dos novos mundos que buscam em torno de outras estrelas que não o Sol. Mas a luminosidade das estrelas é tão forte que ofusca eventuais exopla-
2
O espectrógrafo Expres (abaixo) está sendo instalado no Telescópio do canal Discovery, no Arizona
fotos 1 Debra Fischer / Expres 2 Telescópio do Canal Discovery
1
netas ao seu redor. Talvez os novos supertelescópios que devem começar a operar nos anos 2020, como o GMT e o E-ELT, atinjam esse objetivo. Por ora, pouco mais de 1% dos 3.510 planetas extrassolares descobertos na vizinhança de 2.615 estrelas foram identificados por meio da obtenção de imagens, de baixa resolução, desses objetos celestes ocultos. Em quase 99% dos casos, a presença dos exoplanetas foi deduzida por efeitos indiretos que os objetos celestes causam nas suas estrelas. A técnica de microlente gravitacional, que mede alterações na curvatura da luz, foi a responsável pela descoberta de pouco mais de 1% dos planetas extrassolares. De 1995 até 2010, a maioria dos exoplanetas foi descoberta pela técnica da velocidade radial. Nos anos mais recentes, com o envio ao espaço de missões destinadas a procurar exoplanetas, como os satélites francês CoRoT e sobretudo o norte-americano Kepler, o método do trânsito se tornou o mais produtivo em termos do número de exoplanetas encontrados. O trânsito mede a diminuição de brilho provocada pela passagem de
Quase 20% dos exoplanetas foram descobertos com o emprego do método da velocidade radial
um exoplaneta em frente de sua estrela-mãe, algo como um minieclipse. Hoje 18% de todos os exoplanetas confirmados foram descobertos pela técnica da velocidade radial e 78%, pelo trânsito. Ambos os métodos, no entanto, apresentam um viés comum: favorecem a localização de exoplanetas gigantes, em geral gasosos, ou, na melhor das hipóteses, mundos rochosos maiores do que a Terra.
Mais do que abordagens concorrentes, as duas técnicas têm caráter complementar. “A velocidade radial consegue determinar a massa mínima que um exoplaneta pode ter”, explica Eduardo Janot Pacheco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que coordenou a participação brasileira no CoRoT e é fundador da recém-criada Sociedade Brasileira de Astrobiologia. “O trânsito fornece o tamanho, o diâmetro, do exoplaneta. Um método ajuda a confirmar a descoberta feita pelo outro e a refinar os dados.” Com esses dois parâmetros, massa e volume, é possível calcular a densidade aproximada de um objeto e, assim, ter uma noção se um exoplaneta é gasoso ou sólido. Não faltarão novos e velhos parceiros, que usem o método do trânsito, para fazer uma dobradinha com o Expres e o Espresso, ou mesmo outros espectrógrafos. Em 2018, a Nasa deve lançar o satélite Tess, sucessor do Kepler. Na próxima década, a agência espacial europeia (Esa) prevê levar ao espaço a missão Plato, que usará o método do trânsito na busca por exoterras. n pESQUISA FAPESP 260 z 61
As pedras que ficaram Modelo alternativo propõe que sobras da formação dos planetas do Sistema Solar deram origem ao cinturão de asteroides
B
ilhões de corpos de formato irregular, a maioria do tamanho de uma pedra e uns poucos com centenas de quilômetros de diâmetro, giram em torno do Sol na região compreendida entre as órbitas de Marte, o último dos quatro planetas rochosos, e Júpiter, o maior de nosso sistema. Esse grupo de rochas em órbita compõe o que se convencionou chamar cinturão de asteroides. A origem da aglomeração de asteroides é um mistério, mas as ideias mais aceitas partem do pressuposto de que havia uma quantidade muito maior de matéria nessa região nos primórdios do Sistema Solar e, por algum motivo, 99% dela teria sido expelida dali. Os astrofísicos André Izidoro, do Grupo de Dinâmica Orbital e Planetologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Guaratinguetá, e Sean Raymond, da Universidade de Bordeaux, na França, propuseram um novo modelo, baseado em simulações computacionais, para explicar a origem do cinturão que adota uma visão radicalmente opos-
ta às ideias mais tradicionais. A dupla publicou artigo em 13 de setembro na revista científica Science Advances com os detalhes de seu modelo alternativo. Segundo os dois astrofísicos, a região em que está hoje o cinturão teria sido um grande vazio de matéria no nascimento do Sistema Solar, há cerca de 4,5 bilhões de anos, em vez de ter sido um lugar com grande concentração de massa, como advogam os modelos mais difundidos. Por essa nova proposta, a configuração atual do cinturão não decorre de uma enorme perda de matéria ao longo da história do sistema, mas de um modesto ganho de matéria. “A parte mais externa do cinturão teria se originado como um subproduto do processo de formação do núcleo sólido dos planetas gigantes gasosos, Júpiter e Saturno”, explica Izidoro. “Já a mais interna teria surgido a partir de resíduos dos embriões planetários que deram origem aos planetas terrestres, Mercúrio, Vênus, Terra e Marte.” De acordo com essa hipótese, aglomerações de matéria que não entraram na composição tanto dos planetas gasosos como dos terrestres, especialmente de Júpiter e de Marte, teriam sido expelidos para essa área então vazia do nascente Sistema Solar devido a interações gravitacionais e a ação da força de arrasto do gás presente no espaço. Assim teria surgido o cinturão, “um campo de refugiados cósmicos”, metáfora usada por Raymond para descrever esse recanto de pedras de variados tamanhos.
Asteroides 433 Eros (à esq.) e 253 Mathilde: o primeiro é do tipo S, rico em sílica e típico do interior do cinturão; o segundo, do tipo C, com carbono e mais encontrado na parte externa 62 z outubro DE 2017
Do nada ao cinturão Segundo modelo proposto
Marte
por astrofísicos do Brasil e da França, a parte interna do cinturão teria se formado
Mercúrio
em grande medida a partir de matéria não usada para gerar os planetas rochosos,
Cinturão de asteroides
sobretudo Marte.
Vênus
Os asteroides da porção
Terra
mais externa teriam se originado majoritariamente de restos do processo de formação de Júpiter
fonte André izidoro e sean raymond
fotos Nasa mapa ESA / Hubble, M.
Júpiter
O novo modelo também fornece uma explicação para a disposição dos dois principais tipos de asteroides do cinturão. Na parte mais externa em relação ao Sol, concentram-se os asteroides do tipo C, escuros e ricos em carbono, que representam 75% dos objetos do cinturão. No trecho mais interior, a maior parte dos objetos são asteroides do tipo S, mais brilhantes e com alta concentração de sílica, que respondem por 17% dos corpos do cinturão. Segundo o modelo proposto por Izidoro e Raymond, os asteroides do tipo C, também denominados molhados, teriam se originado de sobras da matéria do processo formativo dos planetas gigantes gasosos. “A água da Terra pode ter vindo também desses asteroides que eventualmente colidiam com nosso planeta ainda em fase de formação”, comenta o astrônomo brasileiro, que, ao lado do colega de Bordeaux, tratou desse tema em outro artigo recente, de 30 de junho, na revista científica Icarus. Os asteroides do tipo S, considerados secos, seriam a sobra da matéria não
utilizada na formação de Marte e dos outros mundos terrestres. Durante meses, Izidoro e Raymond rodaram mais de 200 simulações em computadores de como poderia ter sido o processo de formação dos planetas do Sistema Solar e do surgimento do cinturão de asteroides. Nas simulações, eles partiram da premissa de que entre Marte e Júpiter não havia matéria primordial e conseguiram reproduzir virtualmente a constituição atual do cinturão. “Nosso próximo passo é testar cada um dos modelos que existem, o nosso e os outros, para explicar o cinturão de asteroides e ver o que podemos aprender sobre a formação do Sistema Solar”, destaca Raymond.
sistema, não é necessário ter havido um cinturão de asteroides muito mais massivo”, comenta Meléndez. “Um dos problemas do modelo atual é explicar como esse cinturão [supostamente massivo em seus primórdios] teria perdido tanta massa.” Atualmente, a massa do cinturão não passa de 4% da Lua e é mais de mil vezes menor do que a da Terra. Apesar de seus asteroides girarem em torno de uma enorme faixa do sistema, o cinturão apresenta uma baixa densidade de objetos em relação à sua área. Apenas um corpo celeste, o planeta anão Ceres, responde por um terço da massa do cinturão. n Marcos Pivetta
Baixa densidade
Formação e dinâmica planetária: Do Sistema Solar a exoplanetas (nº 16/12686-2); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável André Izidoro (Unesp); Investimento R$ 178.755,00.
Para o astrofísico Jorge Meléndez, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), as simulações feitas pela dupla são muito interessantes e trazem uma nova visão sobre o Sistema Solar. “O estudo mostra que, no início do
Projeto
Artigos científicos RAYMOND, S. N. e IZIDORO, A. The empty primordial asteroid belt. Science Advances. 13 set. 2017. RAYMOND, S. N. e IZIDORO, A. Origin of water in the inner Solar System: Planetesimals scattered inward during Jupiter and Saturn’s rapid gas accretion. Icarus. 30 jun. 2017.
pESQUISA FAPESP 260 z 63
64 z outubro DE 2017
léo ramos chaves
Células de perovskita desenvolvidas no Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar do Instituto de Química da USP
tecnologia ENERGIA y
Luz mais eficiente Células solares de perovskita podem ser uma alternativa mais barata e eficaz aos módulos de silício que dominam o mercado mundial de painéis fotovoltaicos
Yuri Vasconcelos
U
ma nova geração de células solares feitas a partir de um material sintético cristalino conhecido como perovskita foi escolhida como uma das 10 tecnologias emergentes de 2016 pelo Fórum Econômico Mundial, organização suíça que reúne anualmente líderes empresariais e políticos para discutir questões globais. O material tem provocado entusiasmo entre cientistas por causa de sua elevada capacidade de converter fótons em elétrons, gerando eletricidade. Em julho deste ano, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Ulsan (Unist), na Coreia do Sul, anunciou a produção em escala laboratorial de células solares de perovskita com eficiência energética de 22,1%, um recorde. Esse índice, obtido em células de pequena dimensão, menores do que os modelos comerciais, supera o dos painéis de silício, que dominam o mercado, com 90% das vendas. A taxa de conversão deles situa-se entre 15% e
20%, dependendo do grau de pureza do silício usado na construção dos módulos. Fabricantes de painéis solares e vários grupos de pesquisa no mundo, inclusive no Brasil, trabalham no aprimoramento dessa tecnologia, que ainda precisa superar alguns obstáculos, como a baixa durabilidade, para chegar ao mercado consumidor. No Reino Unido, a Oxford Photovoltaics, uma spin-off da Universidade de Oxford, montou células de perovskita com índice de eficiência de 20% e trabalha com a possibilidade de acoplá-las aos painéis de silício para elevar a conversão de energia. O fundador da empresa, o físico Henry Snaith, foi um dos primeiros cientistas a reconhecer o potencial do material como conversor de luz solar em eletricidade. A Oxford Photovoltaics espera lançar os primeiros modelos comerciais dessas células no fim de 2018, segundo revelou Frank Averdung, presidente da companhia, à agência de notícias Bloomberg em março deste ano. pESQUISA FAPESP 260 z 65
Ela é composta por um conjunto de filmes semicondutores transparentes que transformam a luz solar em corrente elétrica
1
2
Absorção da luz
n Vidro n FTO n TiO2 n Perovskita
A luz solar atravessa o substrato de vidro e é absorvida pelo filme de perovskita (CH3NH3Pbl3)
n Spiro-OMeTAD n Ouro
separação de cargas
3
A energia da luz absorvida (fótons) é suficiente para gerar elétrons (cargas negativas) e buracos (cargas positivas) na célula
h+
1 micrômetro Contatos de ouro
transporte das partículas
Os elétrons (e-) migram para o filme de dióxido de titânio (TiO2) e os buracos (h+), para a camada de Spiro-OMeTAD. Uma vez separados, é difícil que se recombinem e se anulem
“As células solares de perovskita são uma tecnologia recente e promissora”, atesta o químico Rodrigo Lopes Sauaia, presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), entidade que reúne empresas do setor. “É positivo que existam inovações e projetos em desenvolvimento como esse no segmento fotovoltaico, ainda mais no Brasil, um país com enorme potencial de geração de energia solar”, diz (ver Pesquisa Fapesp nº 258). A produção nacional desse tipo de energia no país ainda é pequena, de 176 megawatts (MW), e corresponde a 0,1% da matriz elétrica, mas tem crescido em ritmo acelerado. “Até o fim do ano deve atingir 1 gigawatt (GW)”, informa Sauaia. Em junho, começou a operar o Parque Solar da Lapa, no sertão baiano, o maior do país, com capacidade para produzir 158 MW, o suficiente para atender às necessidades de 166 mil famílias por ano. A perovskita usada em células solares é um material semicondutor, de fórmula química CH3NH3PbI3, cuja estrutura se assemelha à do mineral titanato de cálcio (CaTiO3) descoberto nos Montes Urais, na Rússia, em 1836. Esse mineral foi batizado de perovskita em homenagem ao mineralogista russo Lev Alexeievitch Perovski (1792-1856). A matéria-prima empregada na produção das células não 66 z outubro DE 2017
e-
4 Geração de corrente
Finalmente, os elétrons migram pela camada FTO (filme formado por óxido de estanho dopado com flúor) em direção aos contatos de ouro, gerando a corrente elétrica
é retirada da natureza, mas sintetizada em laboratório. Elas são construídas em camadas, com diferentes filmes finos com composição química e funções diferentes (ver infográfico acima). A evolução dessa tecnologia em curto espaço de tempo chama a atenção dos cientistas. Quando a perovskita foi aplicada pela primeira vez a uma célula solar, em 2009, o índice de conversão de luz em energia elétrica era inferior a
Alto rendimento Confira a evolução da eficiência energética da perovskita em testes de laboratório (em %) 25
22,1 19,3
20
15,7 15,6
15
9
10
20,1
21,1
15 12,3
6,5 5
3,8 0 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
4%. Menos de uma década depois, esse percentual cresceu mais de cinco vezes (ver gráfico abaixo) e deve continuar evoluindo. Os professores Yang Yang, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, e Jingbi You, do Instituto de Semicondutores da Academia Chinesa de Ciências, estimam que essas células solares devem alcançar 25% de eficiência energética em dois anos, segundo artigo publicado na revista Nature de abril deste ano. As pastilhas de silício, por sua vez, já estão no mercado há mais de 50 anos e parecem ter atingido seu limite. Nos últimos 15 anos, não foram registrados grandes progressos em sua taxa de conversão. GRAU DE PUREZA
As células de perovskita também são mais baratas e fáceis de produzir do que as de silício. “Para que se obtenha alta eficiência energética, as células de silício precisam ter um grau de pureza muito elevado, o que aumenta o consumo de energia durante a fabricação e eleva seu custo”, explica a química Ana Flávia Nogueira, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e líder de um dos grupos de pesquisa desse tipo de dispositivo no país, o Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar (LNES). A pureza do silício é necessária porque pequenas imperfeições no cristal interferem em sua capacidade de transformar a luz absorvida em eletricidade. Já as células solares de perovskita não requerem elevada pureza, uma vez que defeitos em sua estrutura não reduzem sua eficiência. Elas são feitas com compostos químicos baratos e podem ser elaboradas com métodos simples que reduzem seu custo. Além disso, o processo produtivo não contribui para o aquecimento global. Durante a produção das lâminas de silício, o dióxido de silício (SiO2), matéria-prima básica do dispositivo, precisa ser fundido a altas temperaturas, em torno de 1.500 °C, liberando dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. “A fabricação das células de perovskita não emite CO2”, diz a pesquisadora da Unicamp. O grupo de Ana Flávia Nogueira foi o primeiro a fazer células solares de perovskita no Brasil, em 2016. “Esse estudo começou com a dissertação de mestrado do químico Rodrigo Szostak. Não foi difícil iniciar o desenvolvimento dessas células,
Fonte Silvia Fernandes infográfico ana paula campos ilustração pedro hamdan
Como a célula funciona
Enel / Divulgação
já que nosso laboratório pesquisa desde 2004 células solares orgânicas e células sensibilizadas por corantes, duas tecnologias que serviram de inspiração para as células de perovskita”, conta a pesquisadora. O dispositivo desenvolvido no LNES já atinge valores de eficiência próximos a 16% e deve alcançar 18% até o fim do ano. Outra característica das células solares de perovskita é sua espessura, em torno de 1 micrômetro (a milionésima parte do metro), diante de cerca de 180 micrômetros das pastilhas de silício. “Elas são produzidas na forma de filmes ultrafinos e podem ser semitransparentes, o que poderá levar à fabricação de painéis leves e flexíveis, permitindo uma quantidade maior de aplicações”, afirma a química Silvia Letícia Fernandes, que fez seu doutorado sobre o tema. Um dos problemas das células fotovoltaicas de silício é que elas são pesadas e rígidas, o que dificulta e limita os lugares de instalação dos módulos solares. Silvia defendeu no ano passado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) a tese de doutorado “Desenvolvimento de células solares de perovskita baseadas em filmes de óxidos nanoestruturados”, sob orientação da professora Maria Aparecida Zaghete, do Instituto de Química da Unesp de Araraquara. O trabalho teve apoio do professor Carlos Frederico de Oliveira Graeff, da Faculdade de Ciências da Unesp de Bauru, para preparação das células solares. Maria Aparecida e Graeff
O Parque Solar da Lapa (BA), o maior do país, gera energia suficiente para atender 166 mil famílias por ano
são pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. CALCANHAR DE AQUILES
Mesmo com tantas vantagens, as células de perovskita ainda precisam vencer desafios para se tornar um produto co-
mercial e disputar espaço no mercado de energia solar fotovoltaica. O principal deles é a baixa durabilidade do material. “Esse é o calcanhar de aquiles”, admite o químico Rodrigo Szostak, do grupo de pesquisa da Unicamp. “Outro grande problema em relação ao silício é a estabilidade. A perovskita é sensível à água e à umidade, que causam sua degradação”, afirma. As primeiras células feitas no mundo com o material permaneciam estáveis por apenas alguns minutos, mas alterações em sua estrutura elevaram a durabilidade para pouco mais de um ano. Recentemente, o grupo do professor Michael Gratzel, da Escola Politécnica
Maior poder de absorção Equipe do MIT usa nanotubos de carbono e cristais nanofotônicos para criar dispositivo solar mais eficiente
Um grupo de pesquisadores do Instituto
ondas da luz na faixa do visível, do
o protótipo apresentou um índice de
de Tecnologia de Massachusetts (MIT),
violeta ao vermelho; o restante é
eficiência relativamente baixo, de
liderado pela engenheira mecânica
perdido. O dispositivo é capaz de
6,8%, mas seus inventores acreditam
Evelyn Wang, o físico Marin Soljacic e o
absorver a energia de todo espectro
que ele tem potencial para evoluir.
aluno de doutorado David Bierman, está
solar para gerar eletricidade.
trabalhando em um novo tipo de célula
Outra vantagem é que esse tipo de
Alguns obstáculos precisam ainda ser ultrapassados, como o elevado
solar, capaz, segundo eles, de gerar o
célula poderia ser eficiente também em
custo de fabricação do novo sistema.
dobro de energia do que os painéis de
dias sem sol. Embora dependa da
Outro é que a tecnologia se mostre
silício existentes. O segredo da nova
radicação solar para gerar eletricidade,
viável em condições ambientais normais,
tecnologia é sua elevada capacidade de
uma vez que o material absorvedor
já que, até o momento, os testes
absorção da radiação solar, de acordo
tenha captado essa luz, ele gera calor.
foram realizados apenas no vácuo
com a publicação MIT Tech Review.
Esse calor pode ser armazenado para
e não no ambiente. O novo dispositivo
As células fotovoltaicas modernas
produzir energia em dias nublados ou
foi avaliado pela MIT Tech Review como
absorvem apenas comprimentos de
mesmo durante a noite. Em laboratório,
uma tecnologia promissora.
pESQUISA FAPESP 260 z 67
Federal de Lausanne (EPFL), na Suíça, um dos mais avançados no estudo de células de perovskita, conseguiu fabricar módulos solares de 10 por 10 centímetros quadrados (cm2) por meio de um processo adaptado para produção industrial. Os dispositivos apresentaram eficiência de 11,2% e mostraram-se estáveis por mais de 10 mil horas (415 dias). Apesar do avanço, a durabilidade ainda é muito inferior à dos painéis de silício, que operam sem sofrer degradação por até 25 anos. Outro problema a ser superado é o uso de chumbo na montagem da célula, um elemento químico que traz riscos à saúde e ao ambiente. “O chumbo é sempre uma preocupação ambiental grande, mas a quantidade utilizada é muito pequena. Seu uso em células solares na forma de filmes finos seria muito menos impactante para o ambiente do que as baterias de chumbo-ácido usadas pela indústria automobilística”, frisa Silvia Fernandes. O problema poderia ser contornado com o descarte adequado e a utilização das células em locais seguros. “O uso do dispositivo em parques solares, com terreno preparado, tem baixo risco de causar dano ambiental”, afirma Ana Flávia. Mais estável
Para ajudar a contornar a baixa estabilidade das células de perovskita, o grupo da Unesp inseriu na composição da célula filmes de pentóxido de nióbio (Nb2O5), o que a tornou mais estável. “A célula solar é formada basicamente por um filme de perovskita e outros dois filmes, um responsável pelo transporte dos elétrons e outro pelo de buracos [um buraco é uma partícula caracterizada pela ausência de um elétron, tendo carga de mesmo valor, mas de sinal oposto à do elétron]. Esses elétrons e buracos gerados pela luz migram para lados opostos do material, criando uma tensão que pode ser usada 68 z outubro DE 2017
O uso de chumbo na célula e sua reduzida durabilidade são problemas que ainda precisam ser superados
para alimentar dispositivos elétricos”, explica Silvia. “A maioria das células usa como transportador de elétrons o dióxido de titânio [TiO2]. Nós introduzimos o pentóxido de nióbio, que se mostrou muito eficiente e ainda melhorou a estabilidade.” O dispositivo montado na Unesp apresentou eficiência de até 15%. Parte do estudo foi feita no Laboratório Federal Suíço de Ciência e Tecnologia de Materiais (Empa), sob orientação do professor Frank Nüesch. “Em 2015, passei cinco meses no laboratório do professor Nüesch. Ele nos cedeu o espaço físico e a experiência na montagem das células. Nós utilizamos os filmes de pentóxido de nióbio preparados no Brasil e montamos as células lá. Hoje conseguimos fazer toda a montagem e caracterização dos dispositivos no Laboratório de Novos Materiais e Dispositivos (LNMD), com a mesma qualidade”, diz Silvia. Um terceiro grupo de pesquisa brasileiro, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), trabalha no aprimora-
mento das células solares de perovskita. A inovação foi acrescentar um aerogel de dióxido de titânio (ou titânia) na arquitetura do dispositivo a fim de elevar sua taxa de conversão. A pesquisa foi liderada pela equipe do físico Carlos Rambo, coordenador do Laboratório de Materiais Elétricos (Lamate) do Departamento de Engenharia Elétrica e Eletrônica, e teve a parceria das físicas Maria Luísa Sartorelli e Françoise Toledo Reis, do Laboratório de Sistemas Nanoestruturados (LabSiN) do Departamento de Física. “O aerogel é um material conhecido como fumaça sólida por apresentar uma elevada área superficial e ser muito leve. Desenvolvemos pela primeira vez no mundo células solares de perovskita à base de aerogel”, afirma Rambo. “Adicionamos o aerogel de dióxido de titânio na arquitetura do dispositivo e duplicamos sua eficiência em relação ao de uma célula com camada compacta de titânia.” Para Rodrigo Sauaia, da Absolar, os esforços de pesquisa no Brasil e no mundo são fundamentais para melhorar as características físicas e químicas das células de perovskita e aperfeiçoar o processo produtivo. “O desafio atual é transformar células de pequeno porte, que apresentam bons resultados em bancada de laboratório, em produtos comerciais, produzidos em larga escala”, aponta Sauaia. De acordo com ele, o sucesso dessa nova tecnologia vai depender da existência de um módulo solar competitivo que atenda às exigências do mercado. n
Projetos 1. Nanoestruturas híbridas em células solares de terceira geração (3G) (nº 14/21928-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ana Flávia Nogueira (Unicamp); Investimento R$ 291.986,83. 2. Desenvolvimento de células solares híbridas baseadas em filmes nanoestruturados de ZnO e Nb2O5 (nº 12/07745-9); Modalidade Bolsa de Doutorado – Brasil; Pesquisadora responsável Maria Aparecida Zaghete Bertochi (Unesp); Bolsista Silvia Letícia Fernandes (Unesp); Investimento R$ 106.393,98 e R$ 45.284,17 (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior, nº 14/23336-7).
Artigos científicos SZOSTAK, R. et. al. Understanding perovskite formation through the intramolecular exchange method in ambient conditions. Journal of Photonics for Energy. v. 7, n. 2. 24. mai. 2017. FERNANDES, S. L. et. al. Nb2O5 hole blocking layer for hysteresis-free perovskite solar cells. Materials Letters. v. 181. 15. out. 2016. PINHEIRO, G. K. et. al. Increasing incident photon to current efficiency of perovskite solar cells through TiO2 aerogel-based nanostructured layers. Colloids and Surfaces A: Physicochemical and engineering aspects. v. 527, p. 89-94. 20. ago. 2017.
Sílvia Fernandes / Divulgação
Material criado pelo grupo da Unesp de Araraquara alcançou 15% de eficiência
ECOLOGIA DE ESTRADAS y
Cinco milhões de animais de grande porte, como capivaras, onças e macacos, são mortos por ano nas estradas brasileiras
Animais
na pista Novas tecnologias para evitar atropelamentos de bichos e reduzir acidentes nas rodovias foto Alex Saberi / gettyimages
são criadas no país
C
erca de 1,2 mil atropelamentos de animais silvestres e domésticos foram registrados no ano passado nos 6,9 mil quilômetros (km) de rodovias paulistas privatizadas, segundo dados da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp). Considerando toda a malha viária estadual, composta por 35 mil km de vias asfaltadas, 4% dos acidentes são causados por colisões com bichos, algumas delas fatais para os ocupantes dos veículos. Não existem dados disponíveis do problema em nível nacional, mas uma estimativa do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), da Universidade Federal de Lavras (Ufla), elaborada a partir da análise de 14 estudos científicos com registros de mortes em diversos biomas, aponta que 5 milhões de animais de grande porte, como capivaras, onças, macacos e lobos-guará, são mortos anualmente em rodovias e estradas do país. Para reduzir a mortandade de animais e tornar as rodovias mais seguras, concessionárias e órgãos públicos do setor rodoviário adotam há algum tempo soluções para diminuir o problema, como a instalação de cercas ou barreiras nas pESQUISA FAPESP 260 z 69
A bióloga Fernanda Abra, da ViaFauna, segura uma jaritataca, conhecida popularmente como gambá, atropelada na estrada que corta o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás
margens das pistas e a construção de passagens subterrâneas para a fauna. Outra possibilidade recente são as tecnologias antiatropelamento. Uma dessas soluções foi formulada pela consultoria ambiental paulistana ViaFauna e ganhou o nome de Passa-Bicho, um sistema de detecção animal baseado em um conjunto de sensores posicionados em pontos da rodovia com alta presença de animais. Por meio de luzes de advertência ou mensagens
em painéis, o sistema alertará motoristas sobre a existência de bichos na pista (ver infográfico na página ao lado). Especializada em estudos e manejo de fauna em rodovias, ferrovias e aeroportos, a ViaFauna já tem um protótipo funcional do Passa-Bicho, capaz de detectar animais silvestres e domésticos a partir de 3 quilos. A empresa deve iniciar nos próximos meses testes em campo para refinar a tecnologia. “Nossa
Monitoramento nos trilhos Concessionária cria aplicativo para prevenir acidentes com bichos em linhas férreas Colisões com animais também afetam o
fica hospedada no aplicativo Chave na
coletados ainda não são suficientes para
setor ferroviário, embora não existam
Mão, já usado pelos maquinistas da Rumo
análises. As primeiras estatísticas devem
estatísticas que mostrem a dimensão do
para a comunicação de eventos ocorridos
estar disponíveis no fim do ano”, informa
problema em linhas férreas. Em maio
na linha férrea. Ao perceber que um bicho
Stefani Gabrieli Age, coordenadora do
deste ano, a Rumo, concessionária que
foi atropelado, o maquinista aciona o
setor de licenciamento ambiental da
administra 12 mil km de malha ferroviária
botão de alerta e a informação sobre o
Rumo. Outra medida adotada pela
do país, inclusive os trechos para os
local e a hora do evento é repassada para
empresa para lidar com o problema foi a
portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR),
o setor de licenciamento ambiental, que
construção de passagens subterrâneas
adotou uma nova medida para prevenir o
analisará o dado e buscará soluções para
para animais. Segundo Stefani, as
choque das locomotivas com animais.
prevenir novas ocorrências, como a
câmeras instaladas nos 70 túneis em
construção de cercas nas margens da
operação na Malha Norte da Rumo, que
ferrovia ou de túneis sob os trilhos.
vai de Rondonópolis (MT) a Aparecida do
Com a mesma lógica de funcionamento do Sistema Urubu, a ferramenta Alerta Atropelei um Animal permite o registro em tempo real dos atropelamentos. Ela
70 z outubro DE 2017
“Como o Alerta Atropelei um Animal foi implantado há poucos meses, os dados
Taboado (MS), flagraram 4.573 animais em circulação entre 2014 e 2016.
foto viafauna / divulgação infográfico ana paula campos ilustraçãO pedro Hamdan
meta é ter um modelo comercial até 2019. Os atropelamentos em rodovias são um dos principais fatores de redução da população de animais silvestres no mundo. No caso do Brasil, estamos falando de espécies ameaçadas de extinção, como lobo-guará, onça-parda e tamanduá-bandeira”, diz a bióloga Fernanda Delborgo Abra, uma das sócias da startup juntamente com as também biólogas Mariane Rodrigues Biz Silva e Paula Ribeiro Prist. O sistema, abastecido por energia solar, foi desenvolvido em parceria com a Trapa Câmera, empresa especializada na fabricação de equipamentos eletrônicos para conservação da fauna, como câmeras para filmagem de animais na mata. Embora ainda não esteja pronto, o Passa-Bicho desperta interesse do mercado. “Queremos fazer um teste-piloto em uma de nossas rodovias com grande presença de animais”, afirma Luciano Louzane, diretor-superintendente das concessionárias Centrovias e Intervias, que administram cerca de 600 km de rodovias no estado de São Paulo. “Os atropelamentos de animais são um problema sério. Em determinado trecho de uma de nossas rodovias já foram registradas 700 ocorrências envolvendo capivaras. Além da perda de biodiversidade, as colisões afetam a operação da malha viária, geram perdas materiais e colocam em risco a vida do motorista e ocupantes dos veículos.” Sistemas como o desenvolvido pela ViaFauna são inéditos no Brasil, mas já fun-
Rodovia mais segura
4
Saiba como funciona o sistema Passa-Bicho, criado pela startup ambiental ViaFauna
feixe infravermelho emissor
Câmeras registram todos os eventos detectados pelo Passa-Bicho, permitindo a identificação das espécies presentes no local
5
As informações são registradas por um coletor de dados (datalogger) e podem ser compartilhadas com os administradores da rodovia
datalogger câmera
1
Um par de sensores de movimento (emissor e receptor) é instalado nas duas margens da rodovia em pontos com alta presença de fauna (hotspots)
2
Quando o animal entra na pista, o feixe de luz infravermelho (invisível ao olho humano) emitido pelo emissor é rompido
receptor
3
Com isso, o sistema aciona, via sinal de rádio, um painel luminoso ou uma luz piscante antes do trecho onde o animal foi detectado, alertando o motorista
cionam no Canadá, nos Estados Unidos, na Holanda, na Finlândia e na Suíça. “Esse tipo de tecnologia reduz em até 90% os atropelamentos nos locais onde é adotado. Além de poder ser instalado em qualquer ponto da rodovia, o sistema apresenta alta eficiência em comparação com outras medidas para diminuir os atropelamentos, como passagens de fauna, cercas, muros de concreto e placas de sinalização de travessia de animais”, destaca Fernanda Abra. Segundo ela, o Passa-Bicho também poderá ajudar os especialistas em ecologia de rodovias. “Um dos maiores gargalos desse campo de pesquisa é saber quantos animais atravessam a rodovia com sucesso. Hoje, só temos dados sobre os animais que morrem na pista.”
Fonte ViaFauna /Trapa Câmera
As colisões com animais colocam em risco a vida de motoristas e afetam a operação da malha viária
URUBU SAFE
Para o oceanógrafo Alex Bager, coordenador do CBEE e professor de ecologia da Ufla, tecnologias de detecção animal como o Passa-Bicho podem tornar as rodovias brasileiras mais seguras, mas para isso é preciso atentar para uma questão: o local onde ela vai ser instalada. “A tomada de decisão sobre o ponto preciso em que o sistema vai ser implantado é crucial para o seu sucesso. É preciso identificar os chamados hotspots, que são os lugares críticos de atropelamento”, alerta.
A fim de ajudar nesse mapeamento, o CBEE desenvolveu um aplicativo gratuito para telefone celular capaz de reunir informações sobre a mortalidade de animais nas estradas. Batizado de Sistema Urubu, ele coleta dados de atropelamentos fornecidos por motoristas, pesquisadores, concessionárias e órgãos governamentais. “O Sistema Urubu é uma grande rede social de conservação da biodiversidade. Quase 22 mil pessoas já baixaram o aplicativo e participam da
iniciativa, registrando a ocorrência de acidentes com animais silvestres”, relata Bager. Para participar, o usuário só precisa fotografar o animal atropelado e enviar a imagem, via aplicativo, para os pesquisadores do CBEE. Com base nos dados do Sistema Urubu, a startup UpgradeX, que funciona na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Ufla, criou um aplicativo de segurança viária, o Urubu Safe, para modelar o risco de ocorrência de uma colisão com animais em toda a malha viária brasileira. “A probabilidade se baseia em registros efetivos de acidentes e considera parâmetros como estação do ano, sazonalidade do tráfego, entre outros”, destaca Bager, um dos sócios da UpgradeX. “Com o aplicativo, o motorista terá a informação da probabilidade do acidente a cada quilômetro da rodovia e poderá ficar alerta nos pontos críticos.” A UpgradeX pretende negociar o aplicativo com concessionárias rodoviárias, empresas de logística e usuários de rodovia. n Yuri Vasconcelos
Projeto Desenvolvimento de Sistema de Detecção Animal Antiatropelamento em Rodovias – “Passa Bicho” (nº 15/08607-7); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Fernanda Delborgo Abra (ViaFauna); Investimento R$ 143.904,61.
pESQUISA FAPESP 260 z 71
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Química y
Reações verdes Produtos com base em matérias-primas renováveis começam a substituir derivados do petróleo
E
Marcos de Oliveira
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m um planeta cada vez mais necessitado de cuidados ambientais, a indústria química passa pelo desafio de encontrar substitutos para os derivados de petróleo. Essa matéria-prima, segundo estudo da petrolífera britânica BP, conforme dados de 2016, tem reservas mundiais para mais 50,6 anos. Além de fatores econômicos, como a variação dos preços do petróleo, existem também restrições ambientais ao uso de produtos de origem petrolífera em função do aquecimento global, da destruição da camada de ozônio e da poluição. O caminho para encontrar substitutos leva o nome de química verde, que busca produtos análogos que substituam os compostos petroquímicos ou novas substâncias para uso da indústria e para o consumo. O conceito de química verde, que inclui a diminuição da dependência petrolífera, surgiu nos anos 1990 nos Estados Unidos. O marco principal é de 1998, quando os químicos norte-americanos Paul Anastas e John Warner apresentaram no livro Green chemistry: Theory and practice (Química verde: Teoria e prática) os 12 princípios da química verde, que nortearam os caminhos dessa nova área. “Na Europa já havia algumas iniciativas de cunho ambiental ainda nos anos 1960, principalmente na Alemanha. Nos anos 1990, a inquietação com a contaminação por produtos químicos começou primeiro na indústria, preo-
fotos 1 e 2 léo ramos chaves 3 Arlene Corrêa / UFSCar
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cupada em aprimorar seus processos e melhorar a imagem passada aos consumidores, depois em órgãos governamentais e logo tornou-se um assunto a ser tratado também nas universidades”, explica a química Vânia Gomes Zuin, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professora visitante no Centro de Excelência em Química Verde da Universidade de York, na Inglaterra. O movimento da química verde ainda é lento. Por um lado, existe uma grande variedade de produtos petroquímicos, com preços baixos; por outro, faltam substâncias e processos sustentáveis que possam substituir os atuais. Nos anos 2000, algumas soluções começaram a aparecer. Os óleos vegetais, como os de soja e milho, surgiram como candidatos promissores para substituir derivados de petróleo. Um dos exemplos de uso de biomassa, que pode ajudar a mudar os parâmetros da indústria química, é o da empresa Elevance, dos Estados Unidos, que utiliza desde 2007 um processo para quebrar as moléculas de óleos vegetais e produzir matéria-prima para detergentes, ceras, solventes e óleos para cosméticos. A empresa emprega um processo de catálise (para realizar as reações químicas) chamado metátese de olefinas, que substitui alguns derivados petrolíferos, usa menos energia, produz menos resíduos e reduz as emissões de gases nocivos que contribuem para o efeito estufa.
Imagem de microscopia (acima) mostra catalisador para substituir reagentes constituído por argila e microesferas de magnetita, em experimento na UFSCar
Os estudos iniciais que levaram a esse processo inovador foram reconhecidos com o Nobel de Química de 2005, concedido ao francês Yves Chauvin e aos norte-americanos Robert Grubbs e Richard Schrock, que desenvolveram a metátese. Trata-se de uma reação entre duas moléculas orgânicas com cadeias contendo duplas ligações que possuem grupos similares e são trocadas entre si, permitindo a síntese de novos compostos químicos, com temperaturas e pressões menores por meio de catalisadores metálicos. Em 2012, a Elevance, fundada pelas empresas químicas Cargil e Materia, ganhou o Prêmio Presidencial de Química Verde, da Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos, por utilizar o processo de metátese. A empresa tem duas fábricas nos Estados Unidos e uma na Indonésia, que utiliza óleo de palma. A vantagem desse óleo está em ser mais barato do que os de soja e milho, usados para alimentação humana e de animais. O prêmio anual de química verde concedido pela EPA revelou em 2016 outra empresa que desenvolveu uma solução com microrganismos para substituir insumos derivados do petróleo. A norte-americana Verdezyne desenvolveu uma plataforma de fermentação de leveduras Candida sp. para produção do ácido dodecanodioico (DDDA), usado na fabricação de um tipo de fio de nylon utilizado em plásticos de alta resistência a produtos químicos e, ainda, em adesivos, revestimentos e lubrificantes. A Verdezyne foi criada em 2008 e em 2014 começou a produzir – ainda em escala muito pequena – o novo produto feito com base em vários óleos vegetais. A empresa está instalando uma fábrica na Malásia, onde a partir de 2018 deve também iniciar a produção comercial com óleo de palma. Exemplo brasileiro
Um exemplo da química renovável nasceu no Brasil. Uma inovação mundial é o plástico verde da Braskem, a quinta maior petroquímica do mundo. A produção a partir de etanol da cana-de-açúcar é feita na unidade de Triunfo (RS) desde 2010. A Braskem vende a resina a clientes que a empregam em mais de 150 produtos em todo o mundo, que transformam o material em embalagens de alimentos, produtos de higiene e limpeza, cosméticos, bebidas lácteas e sacolas. O biopolímero foi desenvolvido pela empresa, com envolvimento de engenheiros, químicos e técnicos, e um investimento de US$ 290 milhões. Hoje a empresa tem capacidade de produzir 200 mil toneladas de origem renovável. A Braskem não informa se existe diferença de preços da mesma resina produzida com cana ou petróleo. Em 2007, após a apresentação do produto em uma feira na Alemanha, a estimativa do preço do plástico verde, em uma fase comercial, era de 15% a 20% mais caro que pESQUISA FAPESP 260 z 73
Princípios da química verde Os químicos norte-americanos Paul Anastas e John Warner criaram etapas para o desenvolvimento de produtos menos tóxicos Prevenção Evitar a produção do resíduo é melhor do que tratá-lo ou limpá-lo após sua geração Economia de Átomos Deve-se procurar desenhar metodologias sintéticas que possam maximizar a incorporação de todos os materiais utilizados no produto final Síntese de Produtos Menos Perigosos Utilizar e gerar substâncias que possuam pouca ou nenhuma toxicidade à saúde humana e ao ambiente Desenho de Produtos Seguros Os produtos químicos devem ser concebidos para que realizem a função desejada e ao mesmo tempo reduzam a toxicidade Solventes e Auxiliares mais Seguros O uso de substâncias auxiliares deve ser desnecessário sempre que possível e inócuo quando utilizado Busca pela Eficiência de Energia A utilização de energia nos processos químicos precisa levar em conta os impactos ambientais e econômicos e deve ser minimizada. Os processos químicos devem ser conduzidos à temperatura e pressão ambiente para diminuir a quantidade de energia gasta Uso de matérias-Primas de Fontes Renováveis A utilização de matérias-primas renováveis deve ser escolhida em detrimento de fontes não-renováveis Evitar a Formação de Derivados Derivados desnecessários devem ser evitados porque essas etapas requerem reagentes adicionais e podem gerar resíduos Catálise Reagentes catalíticos são melhores que outros tipos por serem usados em menores quantidades Desenho para a Degradação Os produtos químicos devem ser concebidos para que, ao final de sua função, se fragmentem em produtos de degradação inócuos e não persistam no ambiente Análise em Tempo Real para a Prevenção da Poluição É necessário o desenvolvimento de metodologias que viabilizem o monitoramento e o controle em todos os processos químicos Química Intrinsecamente Segura para a Prevenção de Acidentes Nas novas reações da química verde também é preciso observar a maneira como uma substância é utilizada em um processo químico 74 z outubro DE 2017
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o do petróleo. Hoje o preço do barril custa cerca de 56% a menos que naquele ano, descontada a inflação. Um exemplo que mostra as dificuldades econômicas para a evolução da química verde. O polietileno verde é exportado para Estados Unidos, Europa e Ásia. “Esse exemplo da Braskem está consolidado como uma inovação brasileira na química verde”, comenta Vânia, da UFSCar. As próximas investidas da empresa nesse campo estão em desenvolvimento em um laboratório de biotecnologia próprio em Campinas. “São projetos de alto risco que envolvem, por exemplo, engenharia genética de microrganismos e biomassa”, conta Mateus Schreiner, gerente global de Inovação em Tecnologias Renováveis da Braskem. Outra empresa brasileira, a Nexoleum, utiliza o óleo vegetal de soja como o principal ingrediente da produção de um plastificante de policloreto de vinila (PVC). “Os clientes usam o óleo para substituir o dioctil ftalato [DOP], um produto petroquímico útil para tornar o PVC [mais conhecido na forma rígida em tubos e conexões] maleável para utilização em fios e cabos, couro sintético, filmes para embalagens alimentícias e brinquedos”, explica Jacyr Quadros Júnior, presidente da empresa, fundada em 2007, em Cotia (SP). A Nexoleum vende o ingrediente para empresas que fabricam os produtos finais. “O preço para o cliente é de 5% a 10% menor que o mesmo produto originário de petróleo”, afirma Quadros. A tecnologia foi licenciada do Instituto Battelle, dos Estados Unidos, mas a empresa já desenvolveu outras tecnologias para o mesmo processo de produção. Em 2016, a Nexoleum fez uma joint-venture com uma grande empresa química brasileira pertencente ao Grupo Itaú, a Elekeiroz, que atua no mercado de plastificantes, e queria entrar na química verde. “Com isso conseguimos, com o apoio da Elekeiroz, atingir o mercado internacional”, explica Quadros.
também comenta no estudo que leis e normas reguladoras de fabricação e o problema do descarte de produtos químicos tradicionais em países como Estados Unidos e os integrantes da União Europeia ajudam a impulsionar a produção e o consumo dos renováveis. Outra consultoria de mercado norte-americana, a Navigant Research, aponta que o faturamento desse setor em 2020 deverá ser de US$ 98 bilhões, o equivalente a 1,85% da receita da indústria química global, no mesmo ano, que deverá atingir US$ 5,3 trilhões. Dificuldades e ensino
fotos 1 Eduardo Cesar 2 Léo Ramos chaves
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Uma das razões pelas quais os pesquisadores buscam substituir insumos e processos atuais por soluções verdes está na diminuição da quantidade de produtos utilizados na indústria química. “Nos processos convencionais, os reagentes são usados na mesma quantidade que as matérias-primas principais de uma reação química. De uma forma geral e muito simplificada, para 1 quilo (kg) de qualquer matéria-prima é preciso aproximadamente 1 kg de reagente. No processo em que se usa o processo de catálise, são utilizados 10% de outros compostos (catalisadores) no lugar do reagente, o que resulta na geração de menos resíduos”, conta a química Arlene Gonçalves Corrêa, professora do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenadora do Centro de Excelência para Pesquisa em Química Sustentável (CERSusChem), que tem parceria com a farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK). Arlene e seu grupo de 18 pesquisadores procuram, desde 2016, quando começou o projeto, novos catalisadores em substituição aos reagentes convencionais. A pesquisadora conta que um dos desafios em relação à adoção de substâncias verdes na indústria é a necessidade de o custo de produção ser competitivo com os derivados de petróleo. Um exemplo é a possibilidade do uso do óleo das sementes de anis, chamado de anizol, para substituir o tolueno (usado em tintas) e o benzeno, que é cancerígeno. Mas ainda não é utilizado porque o preço do produto natural é alto. Mesmo com grande parte dos preços não competitivos, o mercado de produtos e derivados químicos renováveis, incluindo o etanol de cana usado como combustível e na indústria química, deve chegar a US$ 85,6 bilhões no mundo em 2020, comparado a US$ 51,7 bilhões em 2015, segundo um estudo divulgado em 2016 pela consultoria norte-americana BCC Research. A taxa de crescimento estimada, tomando-se o período de 2015-2020, seria de 10,6% ao ano. A empresa
Óleo vegetal (à esq.) e síntese de substâncias com microrganismos (acima) são duas linhas de produção renováveis para substituição de derivados de petróleo
Embora ainda engatinhando no mundo da indústria, a química verde ganha, no Brasil, estratégias para desenvolvimento do setor que incluem envolver cada vez mais a pesquisa e o ensino. É o que faz a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). “Colaboramos desde 2010 na criação da Rede Brasileira de Química Verde [RBQV], uma instituição sem fins lucrativos para promover inovações científicas e tecnológicas para empresas nacionais, e apoiamos a Escola Brasileira de Química Verde na Universidade Federal do Rio de Janeiro [EBQV-UFRJ]”, conta o químico industrial Fernando Tibau, gerente de Inovação e Assuntos Regulatórios da Abiquim. A EBQV é uma escola virtual que não tem estrutura própria. Reúne projetos voltados principalmente ao estudo do bagaço de cana-de-açúcar, com pesquisadores da UFRJ, do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Etanol (CTBE), de Campinas, e do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), do Rio de Janeiro. “Nosso interesse maior é estudar resíduos de biomassa para convertê-los em matérias-primas de maior valor agregado”, explica o químico Peter Seidl, coordenador da EBQV. Seidl entende que trabalhar apenas utilizando a química verde ainda não é possível. “É preciso desenvolver processos, além de ser necessário verificar os gargalos tecnológicos das empresas.” Ele afirma também que é necessário criar mais programas de pós-graduação em química verde no país. Na UFRJ existe um programa de pós e está sendo estudada a oferta da disciplina na graduação. Química verde já está na grade curricular da graduação na UFSCar e a partir de 2018 também estará disponível na pós-graduação. n
Projeto Green chemistry: Sustainable synthetic methods employing benign solvents,safer reagents, and bio-renewable feedstock (FAPESP-GSK) (nº 14/50249-8); Modalidade Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisadora responsável Arlene Corrêa (UFSCar); Investimento R$ 3.948.414,14 (FAPESP) e R$ 2.849.094,73 + US$ 601.093,17 (GSK).
Artigo científico Erlen Y. C. Jorge, E. Y. C. et al. Metal-exchanged magnetic β-zeolites: Valorization of lignocellulosic biomass-derived compounds to platform chemicals. Green Chemistry. v 19, p. 3856-68. jul 2017.
pESQUISA FAPESP 260 z 75
Agricultura y
Menos água no arroz Agrônomo desenvolve novo método de plantio para a rizicultura Evanildo da Silveira
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m busca de terras mais baratas e de olho no crescimento da população e no aumento da demanda por alimentos, produtores de arroz do Rio Grande do Sul começaram a migrar para o norte de Goiás no final dos anos 1970. Com a emancipação daquela região, dando origem ao estado do Tocantins, em 1988, outras levas de rizicultores de diversas regiões do Brasil se estabeleceram por lá. Eles levaram para as novas paragens suas técnicas de cultivo, com destaque para a permanente inundação da lavoura de arroz durante o ciclo de desenvolvimento da cultura. Como a escassez de água é um dos principais desafios da agricultura mundial, o engenheiro-agrônomo André Borja Reis, que trabalhou como consultor em fazendas da região, desenvolveu um modelo de irrigação com economia de até 50% de água e 15% de fertilizantes, além de aumentar a produtividade em até 25%. A técnica de manejo de irrigação foi elaborada durante seu doutorado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, sob orientação do professor José Laércio Favarin. Reis conta que durante o tempo em que trabalhou como agrônomo naquela região do Tocantins, mais precisamente no município de Lagoa da Confusão, a cerca de 200 quilômetros (km) da capital, Palmas, ele identificou o principal gargalo do sistema produtivo local: como 76 z outubro DE 2017
economizar água de irrigação sem prejudicar o desenvolvimento da planta nem aumentar impacto ambiental. “Aquela situação merecia ser alvo de uma pesquisa científica”, diz Reis. O arrozeiro é naturalmente adaptado ao solo inundado porque respira por uma estrutura vascular especializada, chamada de aerênquima, que capta o oxigênio da atmosfera e o leva para as células das raízes. Grande parte das plantas extrai o oxigênio pelas raízes, diretamente do solo, e não sobrevive em um ambiente inundado. De acordo com ele, nas tradicionais regiões de cultivo de arroz no Brasil e
no mundo, como Ásia e Estados Unidos, é amplamente recomendado que a irrigação seja feita por inundação, ou seja, mantendo a planta dentro d’água. “Com o solo inundado, se estabelece um ambiente em que o nitrogênio, nativo do terreno ou acrescentado como fertilizante, permanece disponível, o que diminui a perda e aumenta a absorção pela planta. Mas para isso se gasta um volume considerável de água e, dependendo do tamanho da área e da disponibilidade de recursos hídricos, inviabiliza-se o plantio.” Para substituir o modelo de inundação permanente da lavoura por um processo
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Um dos experimentos realizados no Tocantins foi o plantio tradicional com lâmina d’água
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fotos 1 e 2 André borja Reis / Esalq-USP
No município de Lagoa da Confusão (TO) foi estabelecido o padrão do novo sistema de plantio de arroz em que o solo fica úmido mas não inundado
com menor utilização de água seria necessário ficar atento às perdas do nitrogênio – sem esse elemento, cai drasticamente a produtividade. Ao desenvolver uma técnica alternativa, Reis realizou um experimento de campo durante três anos, entre 2014 e 2017, em uma área de 2.500 metros quadrados (ou 0,25 hectare), em parceria com produtores locais que plantam aproximadamente 70 mil hectares (ha) de arroz. O pesquisador testou cinco regimes diferentes de irrigação: o tradicional, com lâmina d’ água permanente; duas combinações de alternância entre inundação e drenagem em diferentes ciclos; solo saturado, mas sem lâmina d’água sobre a superfície; e insaturado, com teor de umidade próximo à capacidade de absorção do campo. Segundo Reis, em todos os modelos de irrigação testados foram acrescentadas doses variadas de nitrogênio. O objetivo foi verificar o desempenho da produtividade da cultura em cada situação. Além disso, foi utilizado ureia enriquecida com
o isótopo estável de nitrogênio 15 (15N) para marcar o destino desse fertilizante no solo e na planta, e informar posteriormente em análises específicas como o regime de irrigação influenciou a absorção da planta. O isótopo de nitrogênio é um elemento natural e não radioativo, que se diferencia pelo número de nêutrons presentes no núcleo. menor impacto
O estudo indicou que, para o tipo de solo daquela região do Tocantins – antigo, depauperado quimicamente e bem poroso –, o melhor sistema é o insaturado. “Esse método de irrigação alternativo atende plenamente a demanda de água da cultura, mas usa menos líquido que a técnica por inundação e ainda aumenta a disponibilidade de nitrogênio”, conta Reis. Nesse sistema, o terreno mantém os microporos do solo parcialmente preenchidos com água, em torno de 60%, e o restante com ar – ou seja, o solo fica bastante úmido, mas sem lâmina d’água por cima. Dessa forma existe água para o desenvolvimento da cultura e também oxigênio. “Consideramos que o modelo desenvolvido é de menor impacto ambiental no tocante à conservação do nitrogênio no sistema solo-planta, uma vez que a perda desse nutriente para o ambiente reduziu-se em 40%.”
O Brasil tem uma área plantada de 1,97 milhão de ha, sendo 1,45 milhão de ha de arroz irrigado e o restante de sequeiro, que são cultivares plantados em solo sem irrigação, portanto necessitam de período chuvoso adequado para a cultura completar seu ciclo de vida. O país deverá colher 11,5 milhões de toneladas na próxima safra, crescimento de 8,5% em relação à de 2015/2016. O modelo desenvolvido por Reis não poderá substituir o tradicional, usado principalmente nos estados da região Sul. “O que propomos é adequado apenas para solos da região do Cerrado, mantidos parcialmente úmidos (60%)”, explica o pesquisador. Segundo o pesquisador Luís Fernando Stone, do Laboratório de Análise Agroambiental da Embrapa Arroz e Feijão, localizada em Santo Antônio de Goiás (GO), o modelo de irrigação criado por Reis é realmente novo no país. “O que se tem estudado no Brasil como alternativa ao sistema tradicional é a inundação intermitente, que consiste em ciclos de alagamento”, esclarece. Stone considera o novo método promissor para várzeas tropicais com as características semelhantes às usadas no estudo. Reis diz que seu sistema pode ser usado na várzea do vale do rio Araguaia, além de outras regiões no Cerrado ou mesmo na África. n pESQUISA FAPESP 260 z 77
pesquisa empresarial
Inovação em fármacos O laboratório farmacêutico brasileiro Biolab investe no desenvolvimento de novas moléculas e medicamentos
U
ma das 10 maiores indústrias farmacêuticas nacionais, a Biolab, completou neste ano duas décadas de atividade. O portfólio da empresa, com sede em São Paulo, é composto por mais de 100 produtos, dos quais 50% são inovadores em sua composição, molécula ou forma farmacêutica. Dois exemplos são o fotoprotetor Photoprot com fator de proteção solar 100, elaborado com nanocápsulas, e o medicamento para tratamento de enjoos Vonau Flash, pioneiro no uso de uma tecnologia para dissolução oral imediata, com efeito mais rápido no organismo. Lançado em 2009, o Photoprot foi elaborado em conjunto com cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enquanto o Vonau Flash, que chegou ao mercado em 2005, foi feito em parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). “Sempre acreditamos que o futuro da indústria farmacêutica está na inovação, e não na cópia de medicamentos, como é o caso dos genéricos. Há anos, a Biolab trabalha na síntese de moléculas capazes de resultar em novos fármacos. Atualmente estamos testando 60 moléculas”, con-
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empresa Biolab
Centros de P&D São Paulo, Itapecerica da Serra (SP) e Toronto (Canadá)
Nº de pesquisadores 120
Principal produto Medicamentos
Epudand aeceat alitaturiae doluptas inverrum erferit atest, quia parchil lestrum quias aliqui occullabo poratur si cum rerspie nihille ndignienet fugiam,
fotos eduardo cesar
Equipamento usado por cientistas da Biolab para produção de novas drogas (ao lado). Laboratório de pesquisa com maquete de molécula desenvolvida pela empresa, em primeiro plano (acima)
ta o diretor científico da farmacêutica, Dante Alario Junior. Para dar suporte a seu programa de inovação, a Biolab investe entre 7% e 10% do faturamento em P&D. Em 2016, a companhia faturou R$ 1,25 bilhão e a projeção para este ano é de crescimento de 12%. A empresa é líder em vendas de medicamentos com prescrição médica nas áreas de cardiologia e dermatologia, e tem atuação relevante nos setores de endocrinologia, geriatria, ginecologia, ortopedia, pediatria e reumatologia. Até o fim de 2018, a companhia espera lançar mais dois remédios inovadores: o antifúngico Zilt, cuja molécula foi modelada e sintetizada nos laboratórios da Biolab, e o nanoanestésico tópico Nanorap, um dos primeiros do gênero no mundo (ver Pesquisa FAPESP nº 238). Os dois estão em fase final de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Indicado para o tratamento de infecções por fungos, o Zilt tem como princípio ativo uma molécula inovadora chamada dapaconazol. “O Zilt tem um núcleo químico conhecido, o imidazol, que foi modificado por nossos cientistas, tornando-se mais potente e com espectro de ação mais amplo”, explica Alario. Com isso, a droga age sobre maior número de microrganismos do que os antifúngicos existentes no mercado. Segundo o médico Gilberto De Nucci, especialista em farmacologia, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e dono da Galeno Desenvolvimento de Pesquisas Clínicas, o dapaconazol é um me-too, termo empregado pelo setor farmacêutico para designar medicamentos surgidos a partir de uma pESQUISA FAPESP 260 z 79
Em ritmo crescente
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Número cumulativo de pedidos de patentes
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Fonte Biolab
te incrementais, elas têm sua relevância. Alguns desses novos medicamentos embutem melhorias que aumentam a adesão dos pacientes e tornam o tratamento mais eficaz”, destaca Magalhães. “Se fazer uma molécula totalmente nova é algo extremamente complexo até para as grandes multinacionais farmacêuticas, imagine para um laboratório brasileiro.” UNIDADES DE P&D
Ao longo de sua história, a Biolab depositou 263 pedidos de patentes no Instituto Nacional da Propriedade Indus1
trial (INPI) – média de uma patente por mês –, dos quais 53 foram concedidos. As inovações da farmacêutica são desenvolvidas em duas unidades de pesquisa. A síntese de moléculas é realizada na Sintefina, spin-off da companhia instalada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), que funciona na Cidade Universitária, em São Paulo. A Sintefina está em processo de incorporação e até o fim do ano vai se transformar em laboratório próprio da Biolab. Trabalham nela seis químicos, todos com doutorado, e especialistas em síntese. Uma das moléculas testadas pela equipe da Sintefina mostrou-se promissora no tratamento de hipertensão. “Já temos uma patente dessa molécula. Nos ensaios com ratos, ela foi eficaz para baixar a pressão. Agora estamos realizando novos testes para saber por quanto tempo a droga age no animal”, conta o diretor científico da Biolab. O mecanismo de
A equipe de pesquisadores da Sintefina, spin-off da Biolab, é responsável pela síntese de moléculas capazes de resultar em novos fármacos 80 z outubro DE 2017
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Confira a evolução de pedidos de patentes da Biolab nos últimos anos; 53 já foram concedidas
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nova molécula cuja estrutura química, já conhecida, foi modificada. “É uma nova entidade química, realmente inovadora, mas que não representa uma quebra de paradigma”, aponta De Nucci, contratado pela Biolab para conduzir os testes pré-clínicos e clínicos do Zilt. Já o Nanorap é um anestésico em forma de creme destinado a pacientes que vão se submeter a pequenas intervenções de pele, como tratamentos a laser e retirada de sinais. Trata-se de uma inovação incremental, pois resulta de modificações feitas em dois princípios ativos conhecidos, a lidocaína e a prilocaína. “A novidade do produto é seu nanoencapsulamento, que garante melhor permeabilidade na pele”, ressalta De Nucci, que também organizou os estudos clínicos do medicamento. O Nanorap surte efeito em 10 minutos, um sexto do tempo dos anestésicos convencionais não injetáveis. As inovações na indústria farmacêutica podem ser classificadas como radicais, quando resultam de uma nova molécula não registrada no mundo, ou incrementais, quando decorrem de melhorias em uma molécula já conhecida. Para o químico Jorge Lima de Magalhães, pesquisador do Núcleo de Inovação Tecnológica do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, medicamentos como os elaborados pela Biolab são importantes para o país. “Embora as inovações feitas pelo setor farmacêutico nacional sejam basicamen-
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fotos 1 eduardo cesar 2 e 3 divulgação biolab
O centro de P&D de Itapecerica da Serra (acima) concentra as pesquisas relativas a drogas incrementais. Ao lado, pesquisador analisa com microscópio medicamento em desenvolvimento pelo laboratório
ação da molécula ainda não é conhecido. “Devemos fazer um acordo com uma universidade para descobrir como ela age, porque essa é uma pesquisa básica.” Além da síntese de moléculas, a equipe da Sintefina iniciará em breve a realização de testes de comprovação de eficácia dessas mesmas moléculas. “Hoje enviamos nossas moléculas para laboratórios nos Estados Unidos ou na França para comprovação da atividade. Em alguns meses, faremos esses ensaios aqui no Brasil, com a mesma segurança, eficácia e confiabilidade. Adquirimos equipamentos, compramos os kits para realização dos ensaios e contratamos um pesquisador que está terminando o doutorado para cuidar dessa área”, informa Alario. A farmacêutica mantém um segundo centro de P&D em Itapecerica da Serra, município a 38 quilômetros de São Paulo, onde atuam cerca de 100 pesquisadores. Essa unidade é dedicada principalmente a inovações incrementais, como mecanismos de liberação programada de medicamentos, sistemas de dissolução oral e novas formulações e encapsulações, como as realizadas por meio de nanotecnologia. Por volta de 100 novos projetos estão em desenvolvimento em Itapece-
rica, entre eles a criação de filmes (finas películas) para tratar aftas. Para reforçar sua estrutura de P&D, a Biolab inaugura neste mês uma terceira unidade voltada à inovação, dessa vez no exterior. O novo centro de pesquisa funcionará no MArS Discovery District, polo de pesquisa em saúde e fármacos de Mississauga, cidade vizinha a Toronto, a maior metrópole do Canadá. Com mil metros quadrados, a instalação terá 15 pesquisadores e, segundo Alario, faz parte da estratégia de internacionalização da empresa. A primeira missão do laboratório, que custou US$ 50 milhões, será adequar a documentação do Zilt e do Nanorap para os mercados do Canadá, Estados Unidos e Europa. “Vamos produzir dossiês para as autoridades regulatórias desses países. Se queremos entrar em mercados desenvolvidos, temos que oferecer drogas inovadoras, como Zilt e Nanorap”, destaca o diretor científico da Biolab. O centro canadense também dará suporte à área de pesquisa no Brasil. “Hoje, quando importamos reagentes usados na pesquisa de novas moléculas, precisamos esperar até seis meses pela chegada do produto. No Canadá, esse prazo cai para uma semana. Com isso, parte do
desenvolvimento de novas moléculas ou de fármacos incrementais pode ser feita por lá”, explica Alario. NOVA FÁBRICA
O laboratório tem três unidades industriais, situadas nos municípios paulistas de Jandira, Taboão da Serra e Amparo – nessa última também são fabricados alimentos funcionais e produtos veterinários. Em julho deste ano, a empresa anunciou a construção de uma nova fábrica em Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais, com investimento orçado em R$ 450 milhões. Desse total, cerca de 40% são recursos próprios e o restante deve ser obtido no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e em outras fontes. Prevista para entrar em operação dentro de três a quatro anos, a fábrica foi projetada para atender também o mercado externo – suas instalações serão construídas conforme as exigências das agências regulatórias dos Estados Unidos (Food & Drug Administration, FDA) e da Europa (European Medicines Agency, EMA). A unidade terá capacidade para fabricar 200 milhões de unidades de medicamentos por ano, mais do que duplicando o potencial produtivo da Biolab. n Yuri Vasconcelos pESQUISA FAPESP 260 z 81
humanidades literatura y
Lima Barreto como intérprete do Brasil pós-Abolição Antropóloga escreve biografia do escritor carioca em um momento de retomada do gênero na academia Christina Queiroz
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ncorada no campo de estudos sobre o período pós-Abolição, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz biografou Lima Barreto (1881-1922) a partir de um olhar permeado pelas questões raciais. O livro Triste visionário (Companhia das Letras) mostra como foi a vida de um intelectual negro após a Abolição oficial da escravidão, em maio de 1888, e traz à luz o modo como o autor utilizava a cor da pele como marcador de diferença social em seus personagens. “Barreto se afirmava como intelectual negro, algo incomum à época, e procurava se integrar na cena literária brasileira a partir de uma postura de oposição”, afirma a pesquisadora, que trabalha com a questão racial há mais de 30 anos e é docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e professora visitante na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Na biografia, Lilia procura mostrar como Barreto reafirmava sua origem afrodescendente por meio da literatura, construindo protagonistas negros que iam além dos estereótipos. Esses personagens eram descritos com seus diferentes tons de pele: “pardos”, “pardas”, “pardos claros”, “escuros”,
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Caricatura feita por Hugo Pires, em 1919 1
Aos 7 anos, o escritor estava com o pai diante do Paço Imperial quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, na presença de uma multidão
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fotos 1, 3 e 4 divulgação companhia das letras 2 Luiz Ferreira /Wikipedia
Os pais de Barreto, João Henriques e Amália Augusta, eram filhos de escravos
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Lilia lembra que o autor nasceu em 1881, ano de lançamento em livro de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Com isso, permaneceu no meio do caminho entre Machado de Assis e o Modernismo, em uma espécie de vácuo literário. De acordo com ela, Barreto não deve ser considerado “pré-modernista”, rótulo que contesta por acreditar que representa uma espécie de “não lugar”. “Mais do que pré-modernista, o escritor deve ser visto como pioneiro do Modernismo, entre outros elementos pela oralidade presente nos seus textos”, defende.
“morenos”, “morenas”, “caboclos”, “caboclas”, “azeitonados” e “morenos pálidos” foram algumas denominações utilizadas pelo escritor para mostrar a complexidade do universo que queria representar. Lilia comenta que o uso da cor como marcador de diferença social aparece, por exemplo, no romance Clara dos Anjos (escrito em 1922 e publicado em 1948), quando o autor descreve um dos seus personagens como “branco na linguagem dos subúrbios, mas negro quando vai para a capital”. Segundo a pesquisadora, a descrição minuciosa das características dos personagens afrodescendentes e do ambiente dos subúrbios cariocas destoava da literatura produzida por outros escritores da época.
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ilia também procura evidenciar os paradoxos que permeiam a trajetória do escritor. Nesse sentido, reforça que Barreto reconhecia a importância da obra de Machado de Assis, embora criticasse seu projeto institucional e o de outros literatos da Academia Brasileira de Letras. Apesar disso, ele tentou entrar na instituição por três vezes, sem sucesso. “Barreto queria fazer parte dos circuitos literários por meio de uma postura contestatória, mas não foi bem-sucedido”, conta. Outros paradoxos que envolvem a figura do escritor e que Lilia evidencia em seu trabalho biográfico são as denúncias que Barreto fazia em relação aos abusos da sociedade contra as mulheres e, ao mesmo tempo, suas acusações de que o feminismo era uma “importação barata e fora do lugar”. “Ele defendia os hábitos populares, mas não gostava de futebol, samba e Carnaval. Detestava os funcionários públicos, mas tirava seu ganha-pão na Secretaria da Guerra como amanuense [escriturário]”, escreve Lilia na introdução. Assim, ela sustenta a pESQUISA FAPESP 260 z 83
Notícia de A Noite sobre livro que Barreto estava escrevendo acompanhada de ilustrações dos personagens que aparecem no romance
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ideia de que Barreto ocupava uma posição ambivalente tanto no espaço da cidade, transitando entre os subúrbios e a capital, como também em esferas culturais e sociais. A pesquisadora levou a ambiguidade que circunda a vida e a obra do escritor ao próprio título da biografia. “Triste” representaria a ideia de um escritor desiludido, mas também teimoso. Já “visionário” pode ser alguém com visão de futuro, mas na fala de um dos personagens de Barreto ganha, também, o sentido de “louco”. Um dos aspectos abordados pela pesquisadora envolve o trânsito do escritor entre a realidade e a literatura. “Os textos do autor contêm traços evidentes do seu entorno, mas mesmo assim ele ficcionaliza todo o tempo”, considera. Lilia dá como exemplo desse processo quando Barreto assina uma das partes do Diário do hospício (1953, póstumo) – que retrata o período em que o au-
O escritor destoa de seus colegas da Politécnica: “Pobre de mim. Um pretinho. Seria o único a ser preso”, escreveria, anos mais tarde 84 z outubro DE 2017
tor ficou internado – com o nome de um de seus personagens (Vicente Mascarenhas), ou quando em Cemitério dos vivos (1953, póstumo), obra de caráter ficcional, escreve “Lima Barreto” para se referir ao personagem Vicente Mascarenhas. Felipe Botelho Corrêa, professor de literaturas e culturas do Brasil, de Portugal e da África lusófona na universidade King’s College de Londres, lembra que a fortuna crítica de Barreto já tinha notado como ele se valia de aspectos de sua vida para escrever. “O autor dizia que não se escondia em sua literatura, que sempre mostrava quem realmente era, mesmo que isso fosse visto como um rebaixamento literário”, conta Botelho. Segundo ele, Barreto procurava utilizar uma linguagem popular e acessível, como forma de atingir um maior número de leitores, o que não era bem-visto na época. Daí as inúmeras críticas que ele recebeu por escrever uma literatura “mal-acabada”. “Outra prova disso são os textos que ele escreveu para meios populares, como a revista Careta, lugar em que ele mais publicou durante a vida e que custava o preço de uma passagem de bonde de segunda classe”, avalia Botelho, que em 2016 publicou Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia das Letras) com 164 textos até então inéditos e que em sua grande maioria foram assinados por pseudônimos de Lima Barreto.
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ntes do livro de Lilia, Lima Barreto já contava com uma biografia importante, publicada pelo historiador Francisco de Assis Barbosa (1914-1991) em 1952. Barbosa foi responsável por editar as obras de Lima Barreto em 17 volumes, em um momento em que os livros do autor tinham praticamente desaparecido do mercado. O trabalho do historiador marcou um processo de renascimento do autor carioca na
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Retrato de 1914 da ficha de internação no Hospício de Alienados, onde fez tratamento para o alcoolismo
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fotos 1 a 3 divulgação companhia das letras 4 Aymoré Marella / reprodução do livro O velho Graça (Boitempo)
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cena literária. Ele foi precursor de uma geração que tirou Lima Barreto do limbo e o reposicionou na literatura nacional. Beatriz Resende, docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta que o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) e Antônio Arnoni Prado, professor aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), foram os primeiros a estudar a obra de Lima Barreto no Brasil após os trabalhos de Barbosa. Na Itália, Roberto Vecchi, hoje diretor do Departamento de Línguas, Literatura e Cultura Moderna da Universidade de Bolonha, foi outro pioneiro no processo de formação da fortuna crítica de Barreto. Em 2004, quando Beatriz preparava a publicação de livros contendo as crônicas do escritor, pesquisou registros de entrada dele no hospício em 1919, encontrando a hoje conhecida foto de Barreto totalmente debilitado aos 39 anos. “Esse evento trouxe à tona o aspecto da vida dele relacionado ao alcoolismo”, conta a pesquisadora. Segundo Beatriz, quando Barreto morreu, era uma referência entre escritores nacionais, mas foi sendo esquecido na medida em que o racismo se apropriou do discurso científico, em um momento que marcou a exclusão dos negros do meio intelectual. Ela explica que uma das qualidades da biografia escrita por Barbosa é que o historiador teve acesso a familiares e amigos ainda vivos. No entanto, o biógrafo não abordou a questão do racismo, porque não queria se desviar
do seu objetivo, que era chamar a atenção para a importância da literatura dele. “Nos anos 1950, a crítica literária ainda era depreciativa com os textos de Barreto, que circularam primeiramente entre os historiadores”, destaca Beatriz. Com essa fortuna crítica no horizonte, Lilia conta que procurou desenvolver a biografia atual a partir da elaboração de novas perguntas, agora relacionadas à questão racial e que não haviam sido abordadas por Barbosa no trabalho precedente. “Deparei-me com ele [Lima Barreto] há pelo menos 30 anos, quando realizei minha tese de doutorado e estudei o darwinismo racial”, relata a pesquisadora. Lilia afirma que pretende mostrá-lo como um intérprete de seu tempo, tanto do Brasil como das questões negras. De acordo com ela, a questão racial ganhou vulto nos últimos anos e permite explorar com um novo olhar a vida e a obra do escritor. “Nos seus romances, nas crônicas, nos contos, nos diários e na correspondência, Barreto jamais deixou de tocar nesse tema”, argumenta.
Última foto de Graciliano Ramos: biografia do autor escrita por Dênis de Moraes foi relançada em 2012, após 20 anos
historiador João José Reis, professor no Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que Barreto nasceu na última década de vigência da escravidão, cuja abolição testemunhou aos 7 anos de idade. “Ele sofreu o racismo de uma sociedade que cultivava a ideia de que o negro pertencia a uma raça inferior. Tinha a consciência aguda de que a explicação para grande parte de seus infortúnios teria de buscar numa compreensão mais profunda do que havia sido a escravidão”,
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seus limites intrínsecos e, nesse caminho, a experiência de vida do escritor se integra aos seus textos como representação do vivido e não como reflexo direto e literal dos fatos. Nos anos 1980 essa nova vertente da crítica marcou o início de um processo de retomada do gênero biográfico, movimento que, hoje, parece ter atingido seu ponto alto. “Como regra geral, biografias feitas por jornalistas costumam se preocupar mais em documentar a trajetória, enquanto pesquisadores acadêmicos tendem a pensar o percurso biográfico desde um ponto de vista fragmentado e a partir de um problema”, compara Eneida. Em 1980 Roland Barthes (1915-1980) publicou A câmara clara, criando o conceito de “biografema”, segundo o qual as trajetórias de vida só podem ser recompostas por meio de detalhes, fragmentos e gestos, que são enfocados conforme a relação que estabelecem com a subjetividade do biógrafo. Conforme essa concepção, o gênero biográfico deve ser entendido como capaz de espelhar uma realidade a respeito de um sujeito, mas sem a ambição de oferecer a verdade sobre ele.
“O
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comenta. Reis considera que a biografia de Lilia retrata, por meio da trajetória de um personagem, a história da passagem da escravidão para uma liberdade incompleta e amiúde sequestrada dos negros. “Ao discutir o contexto de Barreto, o livro esclarece não apenas a biografia de um indivíduo, mas a de um país no fim da escravidão e, sobretudo, no pós-Abolição”, observa. A nova biografia de Lima Barreto chega em um momento de retomada do gênero biográfico entre pesquisadores acadêmicos de diversas áreas. Em relação ao contexto histórico, Eneida Maria de Souza, professora de teoria literária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esclarece que, há 40 anos, a crítica não se detinha em explorar o lado biográfico dos autores, por considerar a obra de arte autônoma em relação às outras disciplinas e à vida dos escritores. No entanto, entre os anos 1970 e 1980, emergiu uma nova vertente de crítica cultural, que procura entender a obra a partir de um leque mais amplo de associações, que envolvem a vida do autor e também suas relações com outras produções, como o cinema. Segundo Eneida, essas leituras interpretam a literatura para além dos
Livros SCHWARCZ, L. M. Lima Barreto: Triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 645 p. SOUZA, E. M. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, 178 p.
wikimedia commons
Mário de Andrade (de chapéu) com outros modernistas: o filósofo Eduardo Jardim biografou o escritor em 2015
trabalho do biógrafo é montar os cacos de um quebra-cabeça existencial. Quanto mais cacos puderem ser montados, mais a biografia se aproximará de uma certa verdade”, opina Dênis de Moraes, professor associado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que escreveu as biografias de Graciliano Ramos, Henfil e Oduvaldo Vianna. Apesar de identificar que 90% das biografias feitas no Brasil foram produzidas por jornalistas, Moraes reconhece que o gênero adquire cada vez mais importância em áreas como história e literatura, passando a ser visto como capaz de iluminar uma época ou os problemas desse tempo. “Nesse movimento, elementos do jornalismo, entre eles o uso de fontes orais e uma linguagem menos rebuscada, também passaram a ser usados nos trabalhos de historiadores e sociólogos que fazem biografias”, avalia. Além de Moraes, Maria Augusta Fonseca, professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, e o filósofo Eduardo Jardim, que foi pesquisador residente na Biblioteca Nacional, são apenas alguns acadêmicos que se valeram do gênero biográfico para abordar o percurso de literatos, tendo escrito, respectivamente, biografias de Oswald de Andrade (1990) e Mário de Andrade (2015). n
MUSEOLOGIA y
Máscaras mortuárias de cangaceiros expostas na 3ª Bienal da Bahia, em 2014
Léo Ramos Chaves / Coleção Museu Estácio de Lima / 3ª Bienal da Bahia
O destino incerto dos acervos policiais Pesquisadores defendem a preservação das coleções, enquanto movimentos sociais e familiares reivindicam a retirada de objetos e remanescentes de corpos Carlos Fioravanti
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omo uma das curadoras da 3ª Bienal da Bahia, a comunicóloga paulista Ana Mattos Porto Pato entrou pela primeira vez no Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima, em Salvador, no dia 8 de março de 2014. O museu ocupava uma sala do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em um sobrado em estilo neoclássico da Secretaria de Segurança Pública, e tinha sido fechado para visitação pública nove anos antes. Em dezenas de caixas de papelão e isopor, Ana e a equipe do Museu de Arte Moderna da Bahia, responsável pela organização da Bienal, encontraram fotografias, documentos e cerca de 500 peças, incluindo pESQUISA FAPESP 260 z 87
armas, objetos de arte popular, instrumentos médicos, roupas de cangaceiros e centenas de crânios, com escassas informações sobre as datas, autores e locais das coletas. As etiquetas de dois corpos mumificados informavam apenas que se tratava de uma “índia carajá” e de um “cafuso”. “Estávamos diante de um museu da polícia e de uma história de dor, racismo e violência contra a população pobre e marginalizada”, ela relatou em um artigo de 2015 na Revista CPC, do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (USP). Em setembro de 2017, ao rever essa experiência, ela comentou: “Objetos sagrados do candomblé apreendidos pela polícia estavam ao lado de fetos deformados, armas e drogas”. Ela examinou essa experiência em seu doutorado, concluído no início deste ano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Giselle Beiguelman. A abertura das caixas foi mais um capítulo do debate sobre o que fazer com o acervo dos museus de antropologia criminal, que há alguns anos extrapola os espaços acadêmicos na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pesquisadores ligados a universidades argumentam que as coleções deveriam ser mantidas e expostas à visitação pública, enquanto movimentos sociais e familiares requerem a retirada dos remanescentes de pessoas próximas que permanecem em museus. De modo geral, o destino dos acervos com essas características continua incerto no mundo inteiro. A antropologia criminal foi criada no final do século XIX pelo médico italiano Cesare Lombroso (1836-1909), que aplicava o determinismo biológico no campo criminal e assegurava que era possível identificar a propensão para a criminalidade por meio dos traços físicos. Médicos da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Pernambuco se apoiaram em suas propostas – que se mostrariam inconsistentes décadas mais tarde – para reforçar a ideia de degenerescência das raças, em vigor no início do século XX, segundo a qual o atraso do país era uma consequência da mestiçagem com negros e índios, considerados inferiores. Em São Paulo, o zoólogo alemão Hermann von Ihering (1850-1930), fundador e primeiro diretor do Museu Paulista, defendia o extermínio dos índios. 88 z outubro DE 2017
Carranca que fez parte da exposição no Arquivo Público do Estado da Bahia, em 2014
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Em Salvador, o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), adepto de Lombroso, criou um museu na Faculdade de Medicina da Bahia para abrigar uma coleção de objetos que atestassem a inferioridade dos negros. Em 1905, um incêndio destruiu a coleção, que incluía a cabeça do cearense Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830-1897), líder da revolta de Canudos. Em 1958, um discípulo de Rodrigues, o médico alagoano Estácio Luiz Valente de Lima (18971984), reabriu o museu na Faculdade de Medicina. Por ser também diretor do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, Lima recebeu sete cabeças de cangaceiros do bando de Lampião mortos pela polícia em 1938 e as deixou expostas, durante décadas, com o argumento de que eram uma forma de identificar marginais. Após intenso debate, as famílias dos cangaceiros enterraram as cabeças
em 1969. Em 2010, quando o museu já tinha sido transferido para o Instituto Médico Legal, a maior parte dos objetos de candomblé foi transferida para o Museu Afro, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como resultado de uma negociação que começou cerca de 10 anos antes. sepultamento
Em 2014, depois de desencaixotar o acervo, Ana propôs a um grupo de artistas selecionados para a Bienal que trabalhasse aqueles objetos. Em uma exposição no Arquivo Público do Estado da Bahia, o artista mineiro Paulo Nazareth deitou-se entre os crânios e fez cerimônias simbólicas de sepultamento dos dois corpos mumificados, que ele colocou em uma urna de madeira depois de orar um dia inteiro por eles. Quem entrasse na exposição veria a urna e o vídeo, mas não mais os corpos mumificados.
Museu de Polícia de São Paulo expõe bustos de criminosos famosos e documentos sobre os crimes que cometeram
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fotos 1 Alfredo Mascarenhas / Coleção Museu Estácio de Lima / 3ª Bienal da Bahia 2 léo ramos chaves
Lombroso não era tão simples quanto suas reinterpretações no Brasil, diz antropólogo da UFBA
Os documentos administrativos do museu Estácio de Lima continuam no Arquivo Público, que os recebeu para a exposição de 2014. O acervo documental consiste em 403 documentos textuais, 697 iconográficos e oito negativos fotográficos, já organizados, que só poderão ser liberados para consulta pública após determinação da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, informou Teresa Mattos, diretora-geral do Arquivo. Segundo ela, a diretoria da Fundação Pedro Calmon (FPC), vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, encaminhou em fevereiro de 2017 um ofício à Secretaria de Segurança Pública solicitando a guarda dos documentos. O diretor-geral da FPC, Edvaldo Mendes Araújo, espera que o material seja liberado para consulta pública até novembro, mês da consciência negra, “para servir de exemplo da intolerância e da discriminação religiosa”, diz ele.
A direção do Departamento de Polícia Técnica da Bahia (DPT), por meio de uma nota da assessoria de comunicação, informou que reconhece a importância histórica dos documentos, entende a necessidade do acesso a eles e “ainda está avaliando a solicitação de permanência do acervo no Arquivo Público da Bahia”. As peças do acervo usadas na exposição no Arquivo Público voltaram em março de 2017 para o DPT, responsável pelo museu Estácio de Lima, que permanece fechado. Manter ou devolver?
O antropólogo italiano Livio Sansone, professor da UFBA e um dos coordenadores do Museu Digital da Memória Africana e Afro-brasileira, critica o desmembramento do acervo, que, segundo ele, deveria ser mantido coeso e aberto à visitação pública como forma de promover debates sobre a segregação social e racial. “Os crânios dos cangaceiros e os objetos
sagrados do candomblé apreendidos pela polícia trazem memórias dolorosas, mas temos de lidar com as contradições, em vez de apagar tudo”, recomenda. De modo mais amplo, ele ressalta, “precisamos de um plano museológico, para organizar as instituições, definir as metas e garantir a continuidade dos acervos”. Como exemplo de possibilidade de ação, Sansone cita o Museu de Antropologia Criminal Cesare Lombroso, de Turim, na Itália. Criado por Lombroso em 1892 e fechado para o público em 1914, foi reaberto em 2011, com uma vasta coleção de crânios, máscaras mortuárias, fotografias e pedaços de pele de criminosos. “Os organizadores de hoje montaram um museu antirracismo, que discute os erros de uma teoria científica, mantendo as peças do acervo, sem repatriar nada”, comenta o professor da UFBA, que também é pesquisador do museu italiano. “Lombroso não era a favor do massacre de povos nativos ou do imperialismo nem acreditava que a mestiçagem poderia degenerar um povo. Ele não era tão simples quanto suas reinterpretações no Brasil”, diz ele. O direito de posse dos museus etnográficos tem sido questionado em vários países. Com base em leis internacionais, a Organização para a Unidade da África resgatou em 2000 e enterrou em Botswana o corpo de um guerreiro de 27 anos morto em 1830 que tinha sido levado à Europa por um comerciante francês e permanepESQUISA FAPESP 260 z 89
Cena do julgamento simbólico de Preto Amaral organizado pela Defensoria Pública de São Paulo
Magia Negra
A historiadora de arte norte-americana Amy Buono, professora da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Estados Unidos, considera o Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, na capital fluminense, um exemplo de “parábola para entender como a cultura material do Brasil se cruza com o poder institucional e a prática disciplinar”, como ela escreveu em um artigo de 2015 na revista Getty Research Journal. Criado em 1912 na antiga sede da polícia, o museu serviu de sala de aula para estudantes da corporação e foi aberto para o público na década de 1930. Como o Estácio de Lima, reuniu objetos considerados ilegais: armas, materiais de jogos, drogas, dinheiro falso, flâmulas nazistas e objetos de terreiros de candomblé. As imagens, instrumentos musicais, cuias, búzios e outras peças religiosas formaram a Coleção de Magia Negra e foram tombados em 1938 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O destino dessa coleção, que não está em exibição para o público, também é incerto. Em junho deste ano, mães de santo, militantes do movimento negro, intelectuais e políticos lançaram a campanha Libertem Nosso Sagrado, por meio da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, para reaver aproximadamente 200 objetos colocados em uma coleção e em um museu que expressariam preconceito religioso. 90 z outubro DE 2017
Ativistas do Rio de Janeiro reivindicam os objetos religiosos mantidos no Museu da Polícia Civil
Preto Amaral
“Não devemos desfazer os acervos dos museus, mas sim refazer a memória para mostrar os horrores que ainda vivemos”, sugere o historiador Paulo Fernando de Souza Campos, professor da Universidade Santo Amaro (Unisa), em São Paulo. No doutorado, ele resgatou a história do mineiro José Augusto do Amaral (1871-1927). Filho de escravos libertado pela Lei do Ventre Livre, sem emprego após desertar do Exército, Preto Amaral, como era chamado, foi preso em São Paulo, sob a acusação de ter assassinado e violentado sexualmente três adolescentes. O médico Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1998), diretor do
hospital Juquery e criador da disciplina de psiquiatria na USP, “usou o caso de Preto Amaral para aplicar a teoria da degeneração das raças”, conta Paulo Campos. “Para a medicina e para o direito do início do século XX, o negro era um criminoso nato”, afirma. Amaral morreu de tuberculose cinco meses depois de ser preso e era chamado de o primeiro serial killer – assassino em série – brasileiro, mesmo sem julgamento. Com base nessa situação, em 2006 a Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste montou a peça Os crimes do Preto Amaral e em 2012 a Defensoria Pública do Estado de São Paulo organizou um julgamento simbólico na Faculdade de Direito da USP. Preto Amaral foi absolvido, por falta de provas. O Museu da Polícia de São Paulo, conhecido como Museu do Crime, que faz parte da Academia de Polícia, na Cidade Universitária, mantinha em exposição um busto do Preto Amaral. A pedido de familiares, a peça foi retirada do espaço expositivo e guardada. “Poderia ficar à mostra”, cogita Campos, “para mostrar como medicina e direito construíram a representação do negro como criminosos”. n
Projeto Arte contemporânea e arquivo: Como tornar público o arquivo público? (no 13/08130-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Giselle Beiguelman (USP); Bolsista Ana Mattos Porto Pato; Investimento R$ 160.873,04. Os quatro artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.
Sergio Menezes / Defensoria Pública do Estado de São Paulo
cido em um museu da Espanha por 170 anos. Três museus de Seattle, Denver e Chicago, nos Estados Unidos, tiveram de devolver objetos e remanescentes de corpos a povos tradicionais do Canadá, dos quais tinham sido removidos. Por outro lado, “os museus podem ser muito úteis para os indígenas que sofreram processo de deculturação violenta, ações contra seus valores, suas tecnologias, seus conhecimentos”, observou o antropólogo João Pacheco de Oliveira, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), em um artigo de 2007 na revista Tempo. “O museu é um instrumento poderoso para inculcar e reforçar demarcações identitárias, recusando o preconceito e a invisibilidade com que tais coletividades são tratadas em outros contextos.”
Jean Georges Renouleau / Wikicommons
memória
Fachada do convento franciscano do século XVII onde foi instalada a Academia de Direito de São Paulo, em 1827
Para formar homens de leis Criadas há 190 anos, faculdades de direito de São Paulo e Recife contribuíram para a construção da identidade nacional após a Independência Rodrigo de Oliveira Andrade
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s anos seguintes à proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, foram marcados por agitações políticas e intensas negociações sobre a criação da nação brasileira e a definição de um perfil de Estado nacional. Era preciso investir na formação de uma elite intelectual capaz de gerir a pátria recém-emancipada, instituindo-lhe uma identidade própria, em oposição à portuguesa. Mais do que novas leis, o país precisava de uma consciência jurídica, que deveria emanar de cursos estabelecidos em território nacional. Foram esses e outros argumentos que deram o tom das discussões políticas que culminaram na criação das primeiras faculdades de direito do Brasil, em São Paulo e Recife, em agosto de 1827. As articulações políticas que contribuíram para a criação dessas instituições tiveram início durante os debates travados na primeira Assembleia Nacional PESQUISA FAPESP 260 | 91
Constituinte do Brasil. Convocada em maio de 1823, a Assembleia representou um passo fundamental no processo de consolidação da independência política e econômica do país. Cabia aos deputados a tarefa de estruturar as bases políticas e institucionais do Brasil e, assim, inaugurar juridicamente o regime constitucional. A proposta de criação de um curso de direito foi apresentada na sessão de 14 de junho de 1823 pelo advogado José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo (1774-1847). Tratava-se de um pedido de brasileiros matriculados na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde estudava a maioria dos que pretendiam seguir nas profissões jurídicas, inclusive os próprios parlamentares. O projeto apresentado por Fernandes Pinheiro foi encaminhado para debate na Assembleia, e logo iniciaram as divergências sobre a localização dos cursos jurídicos. Os debates transcorreram de forma apaixonada. “Os
Sede da Faculdade de Direito de Olinda, antes de sua transferência para Recife, em 1854
Prédio construído para abrigar o curso paulista, no Largo São Francisco, região central da cidade
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parlamentares advogavam em favor de suas províncias de origem, já que desses cursos sairia a futura elite política do país”, comenta a advogada e historiadora Bistra Stefanova Apostolova, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Bistra estudou a criação das primeiras academias de direito no Brasil em seu doutorado, analisando os discursos dos parlamentares registrados em anais da Assembleia Constituinte de 1823 e da Assembleia Geral, instituída em 1826. Segundo ela, durante as discussões, muitos parlamentares saíram em defesa do Rio de Janeiro, onde estava a capital, inclusive Pedro I, primeiro imperador do Brasil (1822-1931). Outros defendiam que o curso fosse aberto em São Paulo. “Próximo ao porto de Santos, tem baratos víveres, clima saudável e moderado, é muito abastecida de gêneros de primeira necessidade e os habitantes das províncias do Sul e do interior de Minas podem ali dirigir os seus jovens filhos
com comodidade”, destacou o deputado baiano Luís José de Carvalho e Melo (1764-1826) na sessão de 19 de agosto 1823. O projeto foi sancionado pela Assembleia Constituinte em 4 de novembro de 1823. Determinava a criação de duas faculdades de direito, uma em São Paulo e outra em Olinda, Pernambuco. O texto, no entanto, não foi convertido em lei, assim como muitos outros projetos debatidos e aprovados pelos deputados constituintes. À medida que os trabalhos avançavam, os parlamentares ganhavam força política diante do poder Executivo. Sentindo-se ameaçado, na madrugada de 12 de novembro, em um episódio que ficou conhecido como “Noite da agonia”, Pedro I fez a balança pender para o seu lado, resolvendo momentaneamente as disputas entre os poderes. Com o apoio do Exército, cercou o Paço da Câmara e ordenou que o brigadeiro José Manuel de Morais entregasse ao presidente do Senado o decreto
fotos 1 Wikicommons 2 Acervo da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 3 Acervo Fundação Joaquim Nabuco
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dissolvendo a Assembleia Constituinte. A questão das escolas de direito só foi retomada em maio de 1826, na Assembleia Geral Legislativa. “A memória do projeto de criação das faculdades de direito mantinha-se viva entre as elites políticas”, comenta Bistra. Foi o deputado mineiro Lúcio Soares Teixeira de Gouveia (1792-1838) quem propôs a retomada do assunto com base no projeto de lei já aprovado pela primeira Constituinte. O texto foi discutido e recebeu várias emendas. Por fim, em 1827, decidiu-se mais uma vez por São Paulo e Olinda. “A criação de escolas de direito nas regiões Sul e Norte, como se dizia na época, pretendia integrar as diferentes regiões do país, fortalecendo a unidade territorial”, explica a advogada e historiadora Ana Paula Araújo de Holanda, da Universidade de Fortaleza, Ceará, que estudou as articulações políticas que contribuíram para a
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criação dos primeiros cursos de direito do Brasil. O projeto aprovado na Assembleia Geral, no entanto, não rompeu totalmente com a tradição jurídica portuguesa. Houve alguns desencontros entre as intenções dos parlamentares e a prática, segundo Bistra. Adotam-se provisoriamente os Estatutos da Universidade de Coimbra. A chamada Academia de Direito de São Paulo foi instalada em um convento franciscano do século XVII na região da cidade hoje conhecida como Largo São Francisco – somente em 1936 a faculdade foi transferida para o prédio atual, ao lado do mosteiro, de arquitetura neocolonial, projetado pelo arquiteto português Ricardo Severo da Fonseca e Costa (1869-1940). Dois anos antes, a faculdade havia sido uma das unidades fundadoras da Universidade de São Paulo (USP). Por determinação de Pedro I, foi nomeado como seu primeiro diretor o tenente-general José Arouche de Toledo Rendon
A criação de cursos em São Paulo e Olinda fazia parte de um projeto político que pretendia integrar as diferentes regiões do Brasil
Edifício do Centro de Ciências Jurídicas da UFPE
(1827-1833), doutor em leis e armas. As matrículas para a primeira turma foram abertas em março de 1828, com 33 estudantes, entre os quais José Antonio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente (1803-1878), um dos principais líderes do movimento abolicionista que levou à libertação dos escravos em 1888. Já o curso de Olinda foi instalado em um salão no mosteiro de São Bento, sob direção do político e jurista Pedro de Araújo Lima (17931870), e transferido para Recife em 1854 – desde 1946 está incorporado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em seu discurso inaugural, o desembargador Lourenço José Ribeiro, diretor interino do curso, destacou a importância social do curso jurídico para o progresso do país e da província em que fora instalado, as facilidades que traria àqueles que desejassem seguir nas profissões jurídicas, sem mais haver a necessidade de se deslocarem para a Europa. As aulas começaram em junho de 1828. Ao todo, 41 estudantes haviam sido admitidos. Ambas as faculdades, além de serem os únicos centros de formação jurídica do país, tornaram-se importantes polos inspiradores das artes literárias e poéticas, contribuindo para a construção da identidade nacional. As instituições também foram importantes para os principais momentos cívicos, literários e políticos que se seguiram ao longo das décadas no país, como os que levaram à proclamação da República, em 1889, à Abolição, um ano antes, e às Diretas Já, em 1983. n PESQUISA FAPESP 260 | 93
resenhaS
Ambiguidades de uma relação sindical
E Disseram que voltei americanizado – Relações sindicais Brasil-Estados Unidos na ditadura militar Larissa Rosa Corrêa Editora Unicamp 416 páginas | R$ 50,00
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m Disseram que voltei americanizado – Relações sindicais Brasil-Estados Unidos na ditadura militar, o subtítulo descreve o conteúdo. O título, por sua vez, remete à ambiguidade das conclusões que podemos extrair da cuidadosa pesquisa da autora, Larissa Rosa Corrêa. Contudo, diz ela, muitas nuances podem ser anotadas nesses dizeres. O livro trabalha com grande variedade de fontes, examinadas com argúcia de detetive: documentos oficiais do governo norte-americano, de agências privadas que volta e meia operacionalizavam objetivos de governo (fundações, sindicatos), material de imprensa, entrevistas, literatura especializada. O roteiro tem certo suspense: o que se fazia para “modelar” o sindicalismo pátrio, de modo a americanizar seus modos, os obstáculos encontrados e a recepção peculiar da ação externa por parte dos agentes internos (alguns deles, literalmente agentes internos ou quintas-colunas). Papel fundamental é atribuído ao Instituto para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre (Iadesil), sonda norte-americana instalada em território brasileiro em 1961 para fazer prospecções, recrutar e treinar simpatizantes, difundir comportamentos e ideias que o instituto julgava “saudáveis”. A criação do instituto é parte de um conjunto de políticas, planos e organizações inventadas pelo governo norte-americano ou por empresários daquele país para influir sobre sindicatos e movimentos populares brasileiros. A lista vem de longe. Já em 1943, o governo de Franklin Roosevelt (1933-1945) criara o programa de “adidos trabalhistas” em embaixadas e consulados norte-americanos. O Programa do Ponto IV, do presidente Harry Truman (1945-1953), também tinha dispositivos nessa direção – e a Guerra Fria iria ampliá-los significativamente. Mas a coisa cresceu depois da Revolução Cubana. O livro de Larissa mostra alguns desses episódios: a Aliança para o Progresso, a Usaid, o Peace Corps, todos criados em 1961, com objetivos parecidos, embora em áreas diferentes. A descrição das atividades do Iadesil é especialmente saborosa e reveladora. Em certo momento, a autora recupera uma frase de Adriano Campanhole, antigo dirigente do sindicato dos jornalistas de São Paulo: “Um bom dirigente sindical não se faz do dia para a noite”. Era um bom lema para o
instituto. O investimento seria paciente, ardiloso. O Iadesil passaria sua rede entre dirigentes, convidando-os para viagens de “instrução e treinamento” nos Estados Unidos. Ao lado de conferências e seminários, visitas a instituições e envolvimento com as maravilhas do modo americano de viver – alguns se entusiasmam com o telefone sem fio, outros com o metrô. Muitos voltam um pouco americanizados – como a Carmen Miranda a que faz referência o título do livro. Mas, diz a autora, nem tanto. Os resultados, segundo ela, foram pequenos e decepcionantes para os promotores. Em certa medida, alguns dos resultados foram mesmo frustrantes. Larissa comenta a trajetória de Clodesmit Riani, sindicalista enviado aos Estados Unidos para a doutrinação usual. Volta e... alia-se a comunistas para criar o Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT, que John Kennedy lamentava ver surgir, já em 1962, como fruto dessa “degeneração” de Riani. Larissa recupera as declarações de Arnaldo Sussekind, um dos ministros do Trabalho e da Previdência Social da ditadura militar. Ele sonhava com a formação de novos líderes sindicais “capazes e honestos, com experiência democrática”, que não fossem “nem comunistas nem bonecos dos empregadores” e não batessem de frente com o ministério. Ironia das ironias, alguns anos depois surgiria no ABC paulista alguma coisa perto do perfil que sonhava. Contudo, mais do que um remédio, constituiria uma dor de cabeça. Nesta breve resenha, não faço justiça ao grande número de questões levantadas pela reflexiva reconstrução apresentada no livro, que não apenas recupera um momento revelador do passado. Mostra, também, o quanto pode mostrar sobre o presente. É um convite a estudos mais demorados sobre o que temos como passivo norte-americano na nossa história. Algo como um balanço da penetração do Brasil pela presença norte-americana – na economia, na política, na cultura e em tantos outros aspectos. Com ambiguidades e resultados inesperados, por vezes indesejados, como no caso dos personagens descritos pela pesquisadora. Reginaldo C. Moraes é professor de ciência política no IFCHUnicamp e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos.
Léo Ramos Chaves
Reginaldo C. Moraes
O mar agitado da literatura infantil Gabriela Pellegrino Soares
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Eduardo cesar
Literatura infantil brasileira: Uma nova/ outra história Marisa Lajolo e Regina Zilberman PUCPress/FTD 152 páginas | R$ 49,90 (e-book e impresso)
m Literatura infantil brasileira: Uma nova/ outra história, Marisa Lajolo e Regina Zilberman retomam a parceria de outras obras, referenciais para o campo da teoria e da crítica literária, assim como da história dos livros para crianças no Brasil. O livro representa um novo passo em relação a coautorias anteriores, ao abordar as atuais encruzilhadas dos livros impressos e das práticas de leitura. Com uma análise arejada, as autoras expressam otimismo em relação ao presente e ao “futuro do livro”. Percorrem com clareza e precisão diferentes dimensões que conformam a literatura infantil, problematizando as formas pelas quais são afetadas por dinâmicas do tempo presente – dos usos dos suportes digitais às concepções que norteiam políticas públicas de compra de livros, às fusões e aquisições no mundo das grandes casas editoriais. A literatura infantil navega nesse mar agitado, reinventando-se na busca por mercados e leitores nascidos em franca era digital. Ao fazê-lo, explora as fronteiras entre texto e imagem, textos clássicos e (re)criações intertextuais, escola e literatura, políticas educacionais e mercado editorial, obra e autor e os circuitos complementares de promoção da leitura (blogs e bienais, por exemplo). Nos prismas pelos quais enveredam, Lajolo e Zilberman observam a passagem do “livro”, tal como foi se definindo a partir do século XVIII, associado à ideia de “originalidade da escritura” e “propriedade literária de seu autor” (segundo o prefácio escrito por Roger Chartier), ao ambiente das edições digitais, as quais procuram se libertar “de formas e conceitos, através de textos móveis, abertos, maleáveis, que podem ser palimpsestos e polifonia”. Nessa passagem, o velho suporte “livro” não desaparece, mas certamente se abrem possibilidades de experimentação. Concebida como segmento da produção editorial, a literatura infantil desde cedo caminhou, sublinham as autoras, por territórios com fronteiras fluidas. Clássicos como Robinson Crusoé e Viagens de Gulliver consagraram-se como obras para crianças quando, em suas versões originais, não guardavam essa destinação. Por outro lado, nos livros infantis, texto literário e ilustrações emaranhavam-se. Nos livros de antigamente como nos contemporâneos podia-se até mesmo prescindir
do texto. A narrativa vinha das imagens. Hoje, a literatura pode inclusive prescindir do livro. As autoras citam a diversidade de formatos no ciberespaço, dos textos à moda antiga, que mantém sua estrutura, aos hipertextos em que personagens como D. Quixote vivem novas aventuras, recriadas. Dentre os debates sobre inovações tecnológicas que a obra captura, sublinho um – o de que o formato digital do “livro” e suas múltiplas plataformas “impõem novas sensibilidades e formas de percepção”, favorecendo processos de leitura não sequenciais e lineares (p. 32). Ao se conjugar texto, imagem e som na experiência de leitura, o leitor é levado a construir percursos com hipertextos, acionando links que o conduzem a novos conteúdos. Angela-Lago, autora de reconhecimento internacional, hospeda em seu site um trabalho inspirado em Chapeuzinho Vermelho, personagem dos contos de fadas eternizada por Charles Perrault. O modo pelo qual a história de Chapeuzinho é apresentada, com imagens e sons, é objeto de uma densa análise. Um elemento ganha particular importância – o fato de, no trabalho de Lago, o enredo de Chapeuzinho sofrer alterações profundas. As imagens reforçam o protagonismo da menina, ao mesmo tempo que, “a cada trecho da narrativa”, o usuário pode fazer “opções que conduzem a ação a distintos desdobramentos” (p. 41). Lajolo e Zilberman concluem: “O desenvolvimento e a difusão da informática parece ter encontrado na literatura infantil e juvenil – particularmente na fatia infantil do gênero – campo extremamente favorável à expansão da inventividade de seus criadores” (p. 43). A literatura infantil no Brasil ganha vigor com o cruzamento dos tantos recursos em cena. O tom otimista do excelente livro é justo. Mas faz brotar a pergunta sobre como os percursos em aberto atuam sobre a criança, na contrapartida das boas histórias “com fim”. Pois estas, já sabemos, estruturam narrativas, enraízam representações de mundo e se prolongam no sonho, com imagens que transbordam o controle do leitor.
Gabriela Pellegrino Soares é professora livre-docente do Departamento de História da FFLCH-USP e autora de Semear horizontes: Uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil (Editora UFMG, 2007).
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carreiras
Qualificação
Formação diversificada Mudar de instituição na pós-graduação é enriquecedor para a construção de um forte perfil acadêmico Muitos estudantes prestes a concluir a graduação não conseguem se ver em uma instituição diferente da qual estão matriculados. A maioria está acostumada com a universidade, familiarizada com os professores e, às vezes, participa de projetos de pesquisadores seniores, o que facilita a solicitação de bolsa de mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Essas são razões pelas quais emendar todas as etapas da carreira acadêmica na mesma instituição costuma ser tentador. Mas há motivos para se fazer o caminho contrário. Começar tudo do zero em outro lugar pode ser enriquecedor para a construção da carreira profissional, permitindo ao indivíduo entrar em contato com novos grupos de pesquisa, diversificar suas habilidades científicas e intelectuais e experimentar diferentes rotinas de trabalho. 96 | outubro DE 2017
No Brasil, os estudantes normalmente têm o primeiro contato com a pesquisa acadêmica durante a graduação por meio de programas de iniciação científica, cujos temas frequentemente estão alinhados aos objetivos e necessidades dos projetos coordenados pelos orientadores. Os grupos de pesquisa costumam reunir indivíduos em diferentes estágios de desenvolvimento profissional, de modo que os coordenadores identifiquem as características de cada integrante da equipe, avaliem suas capacidades e limitações e distribuam as atividades de acordo com o nível de formação de cada um. “Ao ser integrado a um grupo de pesquisa, o estudante tende a querer se aprofundar em determinado assunto, optando por fazer mestrado e doutorado no mesmo laboratório, sob orientação do mesmo professor”, diz a
bióloga Maria de Lourdes Spazziani, professora do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. “Ao mesmo tempo, os professores, ao investirem na formação dos graduandos, incentivam a permanência dos alunos nos seus grupos de pesquisa”, completa. Maria de Lourdes é um bom exemplo de quem construiu a carreira em diferentes instituições. Após concluir a graduação em ciências biológicas na Universidade de Guarulhos (UnG), em 1979, ela mudou de cidade várias vezes. Fez uma especialização em educação ambiental na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá, e o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seguida, foi para o interior de São Paulo fazer o doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela ainda fez várias visitas de intercâmbio em instituições do Brasil, Espanha, Portugal e Cuba até ser contratada como professora na Unesp, campus de Botucatu, onde obteve a livre-docência. Ela explica que sempre se deixou guiar pela vocação e pelo interesse em temas específicos, buscando as instituições mais adequadas às suas expectativas de formação.
aprofundamento teórico e metodológico”, destaca. Vale sempre buscar os melhores programas de pós-graduação na área de atuação do profissional, estejam eles na mesma instituição ou em outra. Vivenciar a experiência de trabalhar com grupos de pesquisa em diferentes universidades pode, segundo Maria de Lourdes, ajudar no amadurecimento profissional, fazendo com que os pós-graduandos ou os pesquisadores já doutores se tornem mais críticos em relação aos seus temas de interesse. “Essa mudança é importante para que eles entrem em contato com novas dinâmicas de pesquisa e aprendam outros métodos, procedimentos e protocolos”, diz Knobel. Caso viajem para o exterior, é também uma oportunidade de aperfeiçoar o idioma, além de criar redes de contato com pesquisadores de diferentes áreas e instituições, ampliando as possibilidades de colaborações em futuros projetos de pesquisa. n Rodrigo de Oliveira Andrade
ilustrações Zaire
sem acomodação
Segundo Maria de Lourdes, uma das vantagens de se fazer o mestrado e doutorado em uma nova instituição é a motivação. Ficar na instituição pode significar assistir às aulas com os mesmos professores da graduação. Em alguns casos, isso pode levar a uma acomodação, fazendo o aluno pensar sempre de acordo com as ideias às quais está familiarizado e se sinta mais confortável. Ao mudar de instituição, o estudante tem a chance de cursar novas disciplinas, conhecer outras ideias, pontos de vista e modos de trabalho diferentes. Para o físico Marcelo Knobel, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), essa mudança é ainda mais importante durante o estágio de pós-doutorado, durante o qual o pesquisador precisa obter independência intelectual e autonomia para estabelecer e gerenciar seus próprios grupos de pesquisa. “O indivíduo precisa se adaptar à rotina de trabalho em um novo laboratório, familiarizar-se com os métodos de investigação do grupo e estabelecer uma boa relação com os outros profissionais para corresponder às expectativas dos líderes de pesquisa sem abrir mão das próprias demandas de PESQUISA FAPESP 260 | 97
Aplicativo permite busca de bolsa em universidades
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Carreira à base de mel A farmacêutica Franciane Marquele de Oliveira trabalhou como pesquisadora e professora antes de abrir uma startup
arquivo pessoal
Um aplicativo lançado no final de agosto pretende facilitar a busca por oportunidades de bolsas de estudo e descontos em cursos de universidades privadas de todo o Brasil, diminuindo o número de vagas que não são preenchidas. O Quero Bolsa, como foi batizado, permite que o usuário faça pesquisas abrangentes de acordo com filtros como tipo de curso, nível de formação (graduação ou pós-graduação), instituição, modalidade presencial, semipresencial ou a distância e o valor que o interessado está disposto a pagar — a partir de R$ 100 por mês. Por meio desses filtros, o usuário pode programar o aplicativo para que o notifique sempre que novas bolsas ou descontos forem disponibilizados na plataforma. Caso se interesse por alguma das ofertas, o candidato à bolsa pode, no próprio aplicativo, acessar as regras para a contratação do benefício na instituição de ensino e os pré-requisitos que precisa seguir para manter o benefício até o fim do curso. Algumas bolsas são oferecidas apenas para quem já está matriculado no curso. Em outros casos, elas são destinadas somente para alunos novos. O Quero Bolsa é gratuito e está disponível para download em tablets e celular com os sistemas Android e iOS. O aplicativo oferece consultas de bolsas com descontos que podem variar entre 5% e 75% em mais de 1.100 instituições de ensino do país cadastradas na plataforma. O aplicativo também mostra uma ampla variedade de informações sobre universidades, cursos, comparativo de preços e dicas de estudo e orientação profissional. n R.O.A.
perfil
O gosto por transitar entre os ambientes acadêmico e empresarial é uma característica da farmacêutica Franciane Marquele de Oliveira. Ela nasceu em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo, e cresceu em Araras, no interior paulista, onde cursou farmácia no Centro Universitário Hermínio Ometto. Concluiu a graduação em 2001 e logo começou a trabalhar no antigo Laboratório Zurita, também em Araras. “Era responsável por qualificar fornecedores e estabelecer protocolos de validação”, conta. Logo voltou para os estudos. Mudou-se para Ribeirão Preto e ingressou na pós-graduação, dando início ao mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP). Não demorou muito para embalar na carreira como pesquisadora. Cerca de um ano após começar o mestrado, escreveu e publicou seu primeiro artigo científico na revista Journal of Pharmaceutical and Biomedical Analysis. O trabalho tratava da avaliação da atividade antioxidante de extratos de própolis, resina produzida pelas abelhas para vedar e esterilizar as colmeias, em formulações farmacêuticas tópicas. O trabalho como pesquisadora e o artigo tiveram boas repercussões no seu meio, o que lhe permitiu converter o mestrado em um doutorado direto na mesma instituição. Após concluir o doutorado, em 2007, Franciane ainda fez dois estágios de pós-doutorado com foco em nanotecnologia na FCFRP-USP antes
de iniciar sua carreira de docente. Começou dando aula de tecnologia farmacêutica no curso de farmácia da Universidade Paulista (Unip) de Ribeirão Preto. Em 2012, foi convidada para trabalhar como pesquisadora associada em projetos de inovação na empresa Apis Flora, dedicada à produção de medicamentos à base de mel, própolis e produtos naturais. A farmacêutica tentou conciliar as atividades de professora na universidade com a de pesquisadora na empresa por algum tempo. Mas logo a situação tornou-se insustentável. “Com dois filhos em casa, decidi me dedicar apenas à Apis Flora”, conta. À medida que se envolvia em novas etapas do processo de pesquisa e desenvolvimento de produtos farmacêuticos, percebeu que poderia ampliar o raio de atuação da empresa para outros tipos de compostos. Ao lado da bioquímica Andresa Aparecida Berretta e Silva, gerente de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) da Apis Flora, ela montou um plano de negócio de uma startup e o apresentou ao dono da empresa, que aprovou o projeto. Assim fundaram a Eleve Pesquisa e Desenvolvimento, incubada na Apis Flora. A startup trabalha na concepção de sistemas inovadores de liberação de fármacos com patentes já expiradas. “Assim pudemos iniciar o desenvolvimento de um medicamento contra leishmaniose”, conta. A ideia é encapsular o fármaco para que seja liberado no alvo específico, reduzindo os efeitos colaterais do tratamento. Em outra frente, a empresa investe em um modelo de pele obtido em laboratório que substitua animais em testes de cosméticos. n R.O.A.
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