Alzheimer

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novembro de 2018 | Ano 19, n. 273

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Pesquisa FAPESP novembro de 2018

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Ano 19  n.273

Depressão, ansiedade e distúrbios do sono e do apetite podem ser, em parte dos casos, os primeiros sinais clínicos da doença

Tecnologia ajuda a evitar o desaparecimento de línguas indígenas

Fundo paulista investe R$ 100 milhões em 20 startups inovadoras

Ambiente hostil desestimula doutorandas na área de ciências exatas

Institutos Senai de Inovação desenvolvem soluções de interesse da indústria

Centro de física sediará projetos de curta duração com brasileiros e estrangeiros


O que a ciĂŞncia brasileira descobre, vocĂŞ encontra aquI

Nas bancas e livrarias revistapesquisa.fapesp.br | assinaturaspesquisa@fapesp.br


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o conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Círculos magnéticos Tiras de luz do tipo LED, um ímã cilíndrico e um filme muito fino de ferrofluido (líquido composto por nanopartículas que respondem ao magnetismo). É a receita para esse efeito de difração em que as luzes coloridas formam círculos – ninguém sabe por quê. No processo de investigar o mistério, os físicos Adriana e Alberto Tufaile levaram a demonstração à Conferência Internacional sobre Magnetismo, que aconteceu em julho nos Estados Unidos. “Só vão os maiores especialistas da área, e eles nunca tinham visto o efeito”, conta ele.

Imagem enviada por Alberto Tufaile, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP)

PESQUISA FAPESP 273 | 3


novembro  273

p. 18 Amostras de cérebro do Biobanco de Estudos do Envelhecimento da USP

CAPA Depressão, distúrbios do sono e do apetite podem ser os primeiros sinais de Alzheimer p. 18

ENTREVISTA José Antonio Marengo Orsini Climatologista diz que a sociedade tem dificuldade de se adaptar às mudanças climáticas p. 24 Aquecimento global

Simulações indicam mais calor e menos chuva no eixo Rio-São Paulo até o fim do século p. 30

POLÍTICA C&T 32 Financiamento Fundo paulista busca quadruplicar capital ao investir em 20 empresas inovadoras

46 Infraestrutura Acordo prevê aporte de R$ 75 milhões para navio hidroceanográfico CIÊNCIA

38 Inovação Empreendedores de vários países participam de programa de startups no Chile

50 Arqueogenética DNA antigo revela colonização humana rápida há 14 mil anos nas Américas

42 Indicadores FAPESP ampliou apoio a pesquisas ousadas e parcerias com empresas em 2017

54 Biologia Plantas e animais de aparência similar nem sempre são aparentados 58 Filosofia da ciência Novas edições de A origem das espécies contextualizam construção da teoria evolutiva 61 Patrimônio Meteorito raro e partes do fóssil de Luzia são achados no Museu Nacional

62 Acervos Fundação Zoobotânica gaúcha luta pela sobrevivência 64 Física Instituição pretende reunir pesquisadores do Brasil e do exterior em projetos de curta duração 66 Entrevista Francis Halzen, do observatório IceCube, comenta descoberta de partículas de alta energia TECNOLOGIA 68 P&D Institutos mantidos pelo Senai viabilizam soluções para o setor produtivo


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vídeo  youtube.com/user/pesquisafapesp SEÇÕES 3 Fotolab 6 Comentários 7 Carta da editora

p. 58

73 Nova unidade do Cimatec na Bahia permitirá montagem de plantas-piloto 77 Engenharia metalúrgica Siderúrgica pioneira representou o início da Primeira Revolução Industrial no país

8 Boas práticas Especialistas discutem se má conduta científica deve ser tratada como crime 11 Dados Estudantes, ocupados e aqueles que nem estudam nem estão ocupados

bit.ly/vTipografiaPta

12 Notas 90 Memória Aos 120 anos, Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP é referência em medicamentos

78 Linguística Tecnologia ajuda a evitar desaparecimento de idiomas nativos

94 Resenhas Além do visível: Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII), de Marina de Mello e Souza. Por Keila Grinberg

83 Música Estudo discute a presença de figuras marginais em letras de samba e tango

Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, de José Miguel Wisnik. Por Wilton José Marques

86 Comunicação Plataformas digitais rompem bolha social ao democratizar experiências

96 Carreiras Ambiente hostil contribui para baixa adesão de mulheres às áreas Stem

HUMANIDADES

Memória das letras Pesquisadora da FAU-USP aborda a influência da tipografia no design

O futuro do Museu do Ipiranga Os planos para proteger o acervo da instituição e reabrir suas portas em 2022 bit.ly/vMuseuPta

podcast  bit.ly/PesquisaBr Especial vacinas Pediatras discutem as razões da queda na vacinação e suas consequências bit.ly/igPBr26out18

Foto de capa  DR HUNTINGTON POTTER / SCIENCE PHOTO LIBRARY Emaranhado de proteínas que se forma no cérebro na doença de Alzheimer

p. 86


Conteúdo a que a mensagem se refere:

comentários

cartas@fapesp.br

Nascimento precoce

Revista impressa

O parto cirúrgico virou uma comodidade, com pouca preocupação em relação à mãe e ao bebê (“Um batalhão de nascimentos precoces”, edição 271).

Reportagem on-line Galeria de imagens Vídeo

Maria Imaculada Cardoso Sampaio Rádio

O que dá medo no Brasil é o despreparo para o parto normal. É melhor ter um prematuro, mas com o filho vivo.

contatos

Sandra Rodrigues

redacao@fapesp.br

Museus

Vídeo

pesquisa_fapesp

Pesquisa FAPESP é sempre excelente, mas a edição de outubro (“Museus em crise”) está espetacular, para guardar para o resto da vida.

Eduardo Góes Neves

Paulo Dédalo

PesquisaFapesp PesquisaFapesp

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6 | novembro DE 2018

Fantástico o trabalho de resgate dos tipos, do tipógrafo e das tipografias para a compreensão do design (“Memória das letras”).

Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo

Que nossa história seja recuperada, cuidada e preservada (“Patrimônio em recomposição”). Glauci Silva

Aniversário

Parabéns à equipe de Pesquisa FAPESP pelos 19 anos de história! Desejamos que continuem com a trajetória de sucesso, tão importante para a divulgação científica. Aracélia Lúcia Costa

Antonio Petrilli

Terminei de ler a entrevista concedida por Antonio Sérgio Petrilli (edição 271) e foi impossível não registrar a alegria e o ânimo que a leitura me trouxe. Estou emocionada com a garra desse médico, com seu trabalho brilhante, tão necessário para tantas famílias brasileiras. Precisamos de pessoas como ele no nosso país, para que o cuidado com a saúde siga em frente e enfrente todas as barreiras existentes. Amélia Borba C. Reis Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Apae de São Paulo

Correção

Na reportagem “Estratégias para manter museus saudáveis” (edição 272), a foto da página 29 identificada como sendo do Museu Pitt Rivers da Universidade de Oxford, na Inglaterra, corresponde, na verdade, ao Museu de História Natural da mesma instituição.

Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

A mais lida de outubro no Facebook saúde

Um batalhão de nascimentos precoces

bit.ly/2qnc8yC

23.273 pessoas alcançadas 193 reações 15 comentários 120 compartilhamentos

léo ramos chaves

revistapesquisa.fapesp.br


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

carta da editora

Marco Antonio zago Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, Ignacio Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira, José de Souza Martins, Marco Antonio Zago, Marilza Vieira Cunha Rudge, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Ronaldo Aloise Pilli e Vanderlan da Silva Bolzani Conselho Técnico-Administrativo

Avanço no estudo sobre Alzheimer Alexandra Ozorio de Almeida |

diretora de redação

Carlos américo pacheco Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico fernando menezes de almeida Diretor administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, Hernan Chaimovich, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais), Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro e Yuri Vasconcelos (Editores-assistentes) repórteres Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira do Prado (Mídias Sociais) arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Felipe Braz (Designer digital), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafo Léo Ramos Chaves banco de imagens Valter Rodrigues Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro Colaboradores Anita Prades, Arthur Vergani, Carla Aranha, Catarina Bessel, Domingos Zaparolli, Luisa Destri, Keila Grinberg, Marília Carrera, Renato Pedrosa, Valéria França, Veridiana Scarpelli, Visca, Wilton José Marques Revisão técnica Francisco Laurindo, Luiz Nunes de Oliveira, Luiz Augusto Toledo Machado, Sérgio Queiroz, Rafael Silva Oliveira, Walter Colli

É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização Tiragem  30.300 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e inovação Governo do Estado de São Paulo

E

ntre os benefícios resultantes da vinculação do Serviço de Verificação de Óbitos da capital paulista à Universidade de São Paulo, destaca-se a coleção de cérebros do Biobanco para Estudos do Envelhecimento. Os 3 mil exemplares, doados por familiares de pessoas que passaram por autópsia, são uma contribuição valiosa para a pesquisa, possibilitando avanços no estudo de males como a doença de Alzheimer. A análise de 455 peças do banco permitiu mostrar que distúrbios psiquiátricos frequentemente associados ao Alzheimer podem resultar de danos neurológicos típicos dos estágios iniciais da doença. Antes, pensava-se que a depressão e a ansiedade, que muitas vezes acompanham o envelhecimento, aumentariam o risco de desenvolver esse problema degenerativo crônico. Como os sintomas mais comuns do Alzheimer – perda de memória, demência – só se manifestam anos depois do início das lesões neurológicas, essa associação com distúrbios psiquiátricos pode ser útil para a medicina. Se forem diagnosticados precocemente, pacientes possivelmente se beneficiarão mais dos tratamentos existentes e poderão contribuir com a avaliação de novos medicamentos, como mostra a reportagem de capa desta edição (página 18). ** O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), gigante da educação profissional, implementou em 2013 uma oportuna iniciativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os Institutos Senai de Inovação (ISIs) foram criados para promover a pesquisa e o desenvolvimento de soluções para desafios tecnológicos do sistema industrial brasileiro. Inspirados nos institutos alemães Fraunhofer, são hoje 21 ISIs espalhados pelo país: empregam 550 pesquisadores, dos

quais 40% com mestrado ou doutorado, e já desenvolveram mais de 500 projetos para o setor (página 68). Anterior aos ISIs, o Cimatec (Campus Integrado de Manufaturas e Tecnologia), inaugurado em 2002 na Bahia, destaca-se entre as iniciativas do Senai pela atuação abrangente e pelos vínculos dinâmicos com empresas de várias áreas (página 73). O complexo engloba a formação de recursos humanos – com cursos técnicos, de graduação e pós-graduação em temas de interesse da indústria – e pesquisa, com um centro tecnológico e três ISIs, além de contar com o supercomputador Yemoja (ver reportagem na edição 249). Esta edição reporta ainda duas iniciativas de fomento a empresas nascentes. Em São Paulo, o Fundo de Inovação Paulista (FIP) encerrou a etapa de análise de 1,6 mil oportunidades de negócios e montou um portfólio de 20 empresas (página 32). Com R$ 105 milhões oriundos do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), Sebrae, Agência Desenvolve SP, Finep, Fapesp e Jive Investments, o FIP agora ajuda na administração e no estímulo ao crescimento das companhias, com o objetivo de vendê-las até 2021, quando encerrará sua operação. Em Santiago, uma iniciativa do governo chileno atrai empreendedores locais e de fora para seus programas de aceleração para novos negócios. Desde 2010 a Start-up Chile apoiou 1.400 iniciativas, das quais mais da metade segue no mercado, tendo criado 1,5 mil empregos locais e outros 5 mil fora. Empreendedores de quase 80 países já passaram pela aceleradora, que investiu US$ 30 milhões (página 38). Para fechar, uma boa notícia: o Museu Nacional recuperou dos escombros boa parte da ossada de Luzia, um dos fósseis humanos mais antigos das Américas, e o valioso meteorito Angra dos Reis (página 61). PESQUISA FAPESP 273 | 7


Boas práticas

O peso da Justiça

P

esquisadores que cometem desvios éticos, como fabricação de dados e plágio, em geral são punidos administrativamente com suspensão do financiamento a projetos, proibição de supervisionar alunos ou demissão. Os casos raros de condenação criminal quase sempre se relacionam a práticas cujos efeitos não se limitam ao ambiente acadêmico. Em 2015, por exemplo, o biomédico Dong-Pyou Han, ex-pesquisador da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, foi condenado a quatro anos e meio de prisão pela fabricação e falsificação de dados em ensaios clínicos de uma vacina contra o vírus HIV. A pena resultou principalmente das ameaças à saúde pública e à sociedade que a fraude produziu. A ideia de que a má conduta científica deve ser tratada como crime ganhou força nos últimos anos com a publicação de trabalhos que discutem a necessidade de abordagens mais incisivas para coibir 8 | novembro DE 2018

o crescimento dos casos. Um estudo divulgado em agosto na revista Medicine, Health Care and Philosophy analisou possíveis benefícios e limitações de criminalizar deslizes éticos na ciência. Uma das vantagens, aponta o artigo, seria tornar mais equânime e homogênea a aplicação de penalidades. “No sistema atual, as universidades decidem o que deve ser feito quando é detectado um caso de má conduta”, avalia um dos autores, William Bülow, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Estocolmo, na Suécia. “Esse processo corre o risco de ser arbitrário e imprevisível, pois permite que os pesquisadores que cometeram um mesmo tipo de deslize sejam tratados de maneira diferente dependendo da instituição em que trabalham.” Uma limitação apontada por Bülow é a dificuldade de determinar quais casos merecem ser punidos

ilustração  visca

A ideia de que má conduta científica deva ser tratada como crime suscita debate entre pesquisadores


criminalmente. “É importante ressaltar que nem todas as ocorrências de falsificação, por exemplo, são prejudiciais a ponto de configurar crime”, diz. Segundo ele, o principal risco é atribuir culpa a pessoas que cometeram erros mas não agiram de má-fé. “Precisamos ser céticos em relação à quantidade de problemas que deveriam ser tratados como crime”, pondera Bülow. fraudes graves

Na última década, vários autores, como Benjamin Sovacool, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, e Julian Crane, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, defenderam a necessidade de criminalizar pelo menos as formas mais graves de fraudes científicas, especialmente a fabricação e a falsificação de dados e o plágio. Bülow, no entanto, sustenta que restringir a criminalização a apenas alguns tipos de má conduta desconsidera a complexidade e a diversidade dos desvios éticos. “Outras formas de deslize, como apresentação seletiva de resultados, negligência e uso inadequado de estatísticas, costumam ser excluídas das propostas de criminalização”, salienta. Na opinião do pesquisador sueco, essas práticas dúbias também são graves e não podem ser toleradas. Um dos principais argumentos em favor da criminalização da má conduta

científica é que penalidades mais rigorosas poderiam ajudar a coibir fraudes intencionais. Rita Faria, professora da Escola de Criminologia da Universidade do Porto, em Portugal, vê fragilidades nesse raciocínio. “Na sociedade, delitos não deixam de ser cometidos só porque são criminalizados”, afirma. De acordo com ela, a punição individual pode deixar em segundo plano a responsabilidade das instituições científicas de prevenir a má conduta, criando programas educativos para promover a integridade na pesquisa. Rita, no entanto, defende que o conhecimento na área de criminologia seja aplicado em estudos que analisam desvios de conduta na ciência. Em um capítulo de livro publicado em setembro, ela traça um paralelo entre a má conduta científica e o crime de colarinho-branco, que normalmente é cometido dentro de empresas ou órgãos públicos. “Crimes do colarinho-branco, como falsificação e lavagem de dinheiro, têm como objetivo o lucro. Comparativamente, cientistas que falsificam dados buscam forjar resultados que garantam a continuidade do financiamento de sua pesquisa. Além disso, tanto em um caso como no outro, verifica-se que as fraudes são cometidas majoritariamente por homens de meia-idade e que estão no topo da carreira”, observa. n Bruno de Pierro

Sanções raras Um estudo publicado em 2017 mostrou que casos de má conduta científica punidos criminalmente ainda são raros. O jornalista Ivan Oransky, fundador do site Retraction Watch, identificou 39 pesquisadores de sete países que foram condenados pela Justiça comum entre 1979 e 2015. As sanções variaram entre restituições de dinheiro, multas e prisões. Os casos foram identificados a partir de buscas realizadas no Google e no Retraction Watch utilizando palavraschave como “cientista” e “condenado”. “Dos 39 cientistas condenados, 14 foram punidos criminalmente por problemas que envolveram diretamente suas pesquisas”, diz Oransky. Desse total, três tinham acusações criminais relacionadas exclusivamente à atividade científica, enquanto os outros 11 também haviam cometido deslizes de outra ordem, como desvios de fundos de pesquisa ou suborno. Duas investigações resultaram em acusações para múltiplos pesquisadores – sete pesquisadores na China acusados de peculato e quatro nos Estados Unidos condenados por suborno. Apenas cinco dos mais de 250 casos de má conduta científica punidos pelo Escritório de Integridade Científica dos Estados Unidos (ORI) no mesmo período também geraram sanções penais.

Cinco condenações Eric Poehlman / Universidade

publicar estudos na área

mais de US$ 3 milhões

Steven Eaton /

de Vermont, Estados Unidos

de anestesiologia sem ter

em financiamento

Edimburgo, Reino Unido

› Condenado a um ano

realizado os ensaios clínicos

do governo federal

› Funcionário da Aptuit,

de prisão por mentir

nos quais suas conclusões

em uma solicitação de

haviam sido baseadas

Fonte  Retraction Watch

financiamento ao governo

uma companhia Milena Penkowa /

farmacêutica, o

Universidade de Copenhagen,

pesquisador foi condenado

e ter inventado

Sean Darin Kinion /

Dinamarca

a três meses de prisão

dados em artigos sobre

Laboratório

› A neurocientista

por alterar dados

obesidade, menopausa

Nacional Lawrence Livermore

foi condenada a nove meses

que determinariam

e envelhecimento

› O físico foi condenado

de prisão em 2015 por

a concentração

a 18 meses de prisão em

fabricar dados e descrever

de medicamento

Scott Reuben / Universidade

2016 por produzir dados

experimentos nunca

aser ministrada a

de Tufts, Estados Unidos

e relatórios falsos em

realizados por ela em sua

pacientes com câncer

› Condenado a seis meses

um estudo sobre computação

tese de doutorado

que participaram de

de prisão em 2009 por

quântica que recebeu

defendida em 2003

um teste clínico PESQUISA FAPESP 273 | 9


ilustração visca

A sombra da fraude em pesquisa sobre células-tronco Principal organização de apoio à pesquisa biomédica dos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) determinaram a interrupção temporária dos testes de uma terapia com células-tronco em pacientes com insuficiência cardíaca enquanto se reavalia a base científica do tratamento. Isso porque investigação feita na Escola de Medicina da Universidade Harvard e no Hospital Brigham and Women, em Boston, concluiu que um de seus pesquisadores, o médico ítalo-americano Piero Anversa, falsificou e/ou inventou dados publicados em 31 artigos científicos relacionados à terapia. Em abril de 2017, o hospital já havia feito um acordo e pago US$ 10 milhões ao governo federal, dobrando-se às evidências de que Anversa enviou informações fraudulentas para pedir financiamento, como imagens obtidas por microscopia confocal adulteradas e dados falsos sobre a idade de células. Anversa ganhou notoriedade no início dos anos 2000 ao propor que o coração poderia se regenerar a partir de células-troncos sanguíneas. Sua linha de investigação repercutiu fortemente e motivou médicos de várias instituições a testar sua viabilidade. O Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue dos Estados Unidos (NHLBI), responsável pela pesquisa paralisada pelos NIH, esclareceu que o experimento envolve cientistas de outros laboratórios e não apenas o grupo da Universidade Harvard ao qual Anversa foi vinculado. “A pausa, no entanto, permitirá que a comissão examine o estudo e assegure que ele continue atendendo aos mais altos níveis de adesão à segurança e à integridade dos participantes”, disse ao jornal The Washington Post David Goff, 10 | novembro DE 2018

diretor da divisão de ciências cardiovasculares do NHLBI. Nos últimos anos, vários grupos fracassaram em replicar resultados de Anversa, o que suscitou as suspeitas de que havia algo errado em suas práticas. Charles Murry, da Universidade de Washington, e Loren Field, da Universidade de Indiana, publicaram em 2004 na revista Nature um artigo mostrando que, diferentemente do que Anversa teria observado, células-tronco da medula óssea não se transformavam em células cardíacas. Em seus artigos, Anversa descreveu experimentos indicando que células-tronco adultas da medula óssea, injetadas no coração de camundongos, teriam originado, além de vasos, células cardíacas que repovoaram 70% da área danificada no infarto (ver Pesquisa FAPESP nº 260). A desconfiança sobre os trabalhos do médico levou a Universidade Harvard, para onde o pesquisador se transferiu em 2007, a abrir uma investigação sobre alguns estudos e a pedir a retratação de alguns

papers. Anversa se diz inocente e acusa um colaborador de tê-lo traído, alterando dados de pesquisa. “Sou um homem de 80 anos que trabalhou toda a sua vida tentando produzir estudos de impacto contra a insuficiência cardíaca”, disse o pesquisador, em entrevista ao jornal The New York Times. “Agora estou isolado.”

Lista controversa Setores da comunidade científica da China receberam com críticas a proposta do governo de criar uma lista de revistas acadêmicas nacionais de má qualidade. A iniciativa faz parte de uma reforma anunciada em julho para melhorar a qualidade da ciência chinesa e baseada no combate radical à má conduta na pesquisa. De acordo com o Partido Comunista e o Conselho de Estado da China, os artigos publicados nos periódicos da lista não contarão pontos em seleções para bolsas e empregos ou em processos de avaliação de agências de fomento do país. Especialistas ouvidos pela revista

Nature argumentam que a divulgação de uma lista não é a melhor maneira de coibir a publicação de trabalhos de baixa qualidade. “Divulgar uma lista de periódicos recomendados seria mais eficiente para promover boas práticas de publicação em revistas científicas”, disse Yu Liping, especialista em avaliação da produção acadêmica. Em 2016, a China tentou criar uma lista nacional de revistas qualificadas, mas o Ministério da Educação do país abandonou a ideia sem conseguir entrar em acordo com a comunidade científica em relação aos critérios de seleção da lista.


Dados

Jovens adultos

estudantes, ocupados e aqueles que nem estudam nem estão ocupados

Jovens adultos brasileiros em idade universitária (18-24 anos) que nem estudam nem estavam ocupados1, em 2016; eram 30% do total, acima dos 27% de 20152. A proporção cresce desde 2005, quando era de 23%2. Distribuição de jovens adultos (18-24 anos) segundo grupo de atividade – Brasil e UFs em 2016 100 90 80

19 21 22 24 24 27 27 27 27 28 29 30 30 30 31 33 33 33 33 34 34 35 36 36 38 39 41 42

70 60 50

48 42 44 44 43 34 27 43 42 40 41 38 35 38 38 34 34 32 30 33 30 36 32 33

40 30 20 10

21

18

19 17 16

16

11 12 12 13 12 13 15 14 13 15 14 16 16

23 20 18 18 24 21 20 22 22 16 16 17 16 20 13 19 15 15 17

9

36 34 30 28

12 13 8 10

30

8

8

9

9

22 23 23 24 18 18 21 22 L A

A

PE

CE

M

PB

AC

RN

P

BA

PA

A

PI

SE A M

RJ

ES

RR

SI L

n Não estuda e não está ocupado n Só está ocupado n Estuda e está ocupado n Só estuda

BR

A

SP

TO

GO

MG

D F RO

MT

RS

PR

SC M S

0

As regiões Centro-oeste e Sul têm os menores índices de jovens que nem estudavam nem estavam ocupados, o Nordeste, os maiores. Os estados mais populosos (SP, MG, RJ) estão próximos da média nacional (de 30%).

Distribuição de jovens adultos (18-24 anos) por sexo e cor/raça, segundo grupo de atividade – 2016

Homens brancos apresentam o menor índice de jovens fora da escola e que não estavam ocupados (20%), enquanto as mulheres pretas e pardas têm o maior (42%). Entre os que estudam, mulheres brancas são a maior proporção (39%), das quais 22% só estudam. Homens pretos ou pardos apresentam a maior proporção dos que apenas trabalham (47%), e a menor dos que estudam (28%).

100

20

80 60

45

26

29

47

32

16

12 16

22

19

0

n Não estuda e não está ocupado n Só está ocupado n Estuda e está ocupado n Só estuda

28

40 20

42

17

Homem Homem branco preto ou pardo

11 19

Mulher branca

Mulher preta ou parda

Distribuição de jovens (18-24 anos) segundo grupo de atividade – Brasil e países escolhidos em 2016

28

65

Holanda Suécia Reino Unido Estados Unidos Média OCDE Federação Russa México Colômbia Itália BRASIL Turquia

43 38 32

43 47 52

40

44

38 28

40 10%

20%

23 25 28 30 33

19

53 32 30%

40%

50%

60%

O Brasil apresenta proporção de jovens adultos que estudam (32%) bem abaixo da média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 53%, e proporção bem acima da média daqueles que nem estudam nem estão ocupados (30% contra 15%).

16

41 44

36 32

0%

8 10 15 15 15

37

53

70%

80%

90%

100%

n Estudando  n Não estuda, mas ocupado  n Nem estudando nem ocupado 1 Um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ONU, com metas de redução para 2030. https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/  2 http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/11/24/jovens-adultoseducacao-e-emprego/?cat=dados  Fontes  Síntese dos Indicadores Sociais 2017, Trabalho, Tabelas 1.18, 1.19. IBGE. https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9221-sintese-deindicadores-sociais.html?=&t=downloads. Education at a Glance 2017, Tabela C5.1. OCDE, Paris. https://www.oecd-ilibrary.org/education/education-at-a-glance-2017_eag-2017-en

PESQUISA FAPESP 273 | 11


Notas Esperança para a Mata Atlântica A situação da Mata Atlântica, um dos ambientes com

grandes áreas de floresta secundária que não haviam

maior biodiversidade e também mais ameaçados do

sido mapeadas até então. Também se verificou que

mundo, pode estar melhor do que se imaginava até

existem quase 7 milhões de ha de áreas degradadas

pouco tempo atrás. Dados obtidos por sensoriamento

às margens de lagos, rios e nascentes, dos quais ao

remoto de alta resolução indicam que sua vegetação

menos 5,2 milhões de ha devem ser recuperados para

se espalha por 28% da área que ocupava antes da

os proprietários ajustarem a situação de suas terras às

chegada do colonizador europeu (Perspectives in Eco-

exigências da legislação atual. “Alcançar a conformi-

logy and Conservation, 22 de outubro). Segundo essa

dade legal para áreas ripárias [zonas ribeirinhas], por

estimativa, restam aproximadamente 32 milhões de

meio da recuperação da cobertura vegetal nativa ao

hectares (ha) de Mata Atlântica, o dobro dos cálculos

longo dos cursos d’água, é fundamental para nossa

anteriores. O novo levantamento foi conduzido por

segurança hídrica”, destaca a bióloga Camila Rezende,

pesquisadores do Rio de Janeiro, de Pernambuco e de

pesquisadora da Fundação Brasileira para o Desen-

São Paulo, entre estes, Carlos Alfredo Joly, professor

volvimento Sustentável e coordenadora do estudo.

da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e

Segundo Camila, se a recomposição dessas áreas seguir

coordenador do Programa Biota-FAPESP. No traba-

as determinações do código florestal em vigor, a Mata

lho publicado agora, os pesquisadores analisaram os

Atlântica poderia alcançar em duas décadas 33% de

dados obtidos em 2013 pelo RapidEye, satélite que

sua cobertura original. Mesmo com a perspectiva de

produz imagens em alta resolução da superfície da

que a área preservada seja maior do que se pensava,

Terra. Enquanto os satélites tradicionalmente usados

a Mata Atlântica ainda é um dos hotspots de biodiver-

para o monitoramento do bioma geram imagens com

sidade no mundo – áreas com alta concentração de

resolução de 30 metros (m), as do RapidEye têm uma

espécies endêmicas que perderam ao menos 70% de

precisão de 5 m. Desse modo, conseguiu-se identificar

sua cobertura vegetal original.

Reserva no município de Camacan, sul da Bahia

1

12 | novembro DE 2018


Homenagem a Henrietta Lacks e suas células

e garrafas da cultura Mayo-Chinchipe continham grãos microscópicos de amido

fotos 1 Renato Augusto Martins / wikimedia Commons 2 léo ramos chaves 3 eduardo cesar

de cacau, além de A Universidade Johns

teobromina, composto

Hopkins, nos Estados

encontrado nas sementes

Unidos, nomeará seu novo

maduras. Testes de DNA

prédio de pesquisa sobre

mostraram que o

ética em homenagem a

material genético achado

Henrietta Lacks. Negra e

nos recipientes era

dona de casa, ela foi

compatível com o dos

levada ao hospital da

modernos cacaueiros

Johns Hopkins em meados

(Theobroma cacao).

de 1951 com um

O trabalho, feito por um

sangramento vaginal

grupo internacional,

intenso. Os médicos

sugere que a

detectaram câncer de

domesticação e o uso

colo do útero e coletaram

do cacau ocorreram na

amostras do tecido

América do Sul, e não na

Está em teste uma ferramenta para verificar se são

tumoral, sem seu

América Central, 1.500

verdadeiros ou falsos os textos difundidos pela inter-

consentimento, como era

anos antes do que se

net ou por aplicativos de mensagens. Desenvolvido

hábito à época. Também

imaginava (Nature

por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP)

sem o conhecimento dela,

Ecology and Evolution,

e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o

multiplicaram as células

29 de outubro). Em outro

detector de fake news está disponível para consulta no

em laboratório, gerando

estudo, as equipes dos

site nilc-fakenews.herokuapp.com ou no perfil do pro-

a primeira linhagem

brasileiros Gonçalo

jeto no WhatsApp. Para checar a veracidade de uma

de células imortais. Essa

Pereira, da Universidade

informação, basta acessar o site e inserir o conteúdo

linhagem celular, conhecida

Estadual de Campinas,

duvidoso no espaço indicado. Em segundos, o sistema

pela sigla HeLa,

e Paulo Teixeira, da

indica se a notícia pode ser falsa ou verdadeira. A

contribuiu para o estudo

Universidade da Carolina

equipe coordenada pelo cientista da computação

de genes ligados ao câncer,

do Norte, Estados Unidos,

Thiago Pardo, da USP em São Carlos, desenvolveu a

para o desenvolvimento

verificaram que duas

plataforma Detecção Automática de Notícias Falsas

da vacina contra a

espécies de fungo que

para o Português a partir do aprimoramento de uma

poliomielite e para

atacam o cacaueiro

estratégia criada em 2015 por pesquisadores da

entender o efeito de

despistam o sistema de

Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Além

toxinas, vírus e radiação

defesa da planta. Os

de aperfeiçoá-la, os brasileiros também a adaptaram

sobre células humanas.

fungos Moniliophtora

para o português. “Existem outras ferramentas que

Henrietta morreu em

perniciosa, causador da

tentam educar o usuário diante das fake news, mas o

outubro de 1951, mas

vassoura-de-bruxa, e

nosso sistema é o primeiro a classificar notícias falsas

suas células continuam

M. roreri, responsável

e verdadeiras automaticamente em português”, afir-

vivas em laboratórios

pela monilíase, produzem

ma. O sistema usa técnicas de inteligência artificial,

do mundo todo.

uma proteína defeituosa

em especial aprendizado de máquinas. A partir de

que funciona como

uma base de 3,6 mil notícias verdadeiras, extraídas

Programa analisa características gramaticais para averiguar a veracidade da informação

Ferramenta on-line tenta identificar fake news

da grande imprensa, e o mesmo número de textos

camuflagem bioquímica

A origem do chocolate e o fungo camuflado

e evita a detecção do invasor pelo sistema de defesa da planta (Current Biology, 13 de setembro).

2

Domesticado na Amazônia, o cacau é utilizado há 5.300 anos em bebidas e alimentos

falsos, o programa identificou um padrão para cada tipo de texto (verdadeiro ou falso) levando em conta as classes gramaticais (verbo, substantivo, adjetivo e advérbio), a riqueza do vocabulário, o tamanho das frases e a quantidade de erros ortográficos. O sistema analisa ainda a pontuação, a emotividade e a incerteza

Artefatos de um povo

expressa nos textos (Computational Processing of the

nativo das Américas que

Portuguese Language, 26 de agosto). Segundo os

viveu entre 5.300 e 2.100

pesquisadores, quem escreve uma notícia falsa deixa

anos atrás onde hoje é o

rastros no estilo do texto. Uma característica das fake

Equador guardam os

news é a frequência elevada de erros ortográficos. A

vestígios mais antigos

ferramenta, por ora, não identifica partes falsas na informação – só é capaz de dizer se uma notícia é

de uso e domesticação do cacau. Resíduos em potes

3

totalmente verdadeira ou falsa. PESQUISA FAPESP 273 | 13


Hábitos gregários de um réptil herbívoro Sempre se especulou que Dinodontosaurus, um dos

rical Biology, 15 de outubro). Esses répteis mediam

maiores répteis herbívoros que viveram no Triássico,

aproximadamente 2,5 metros de comprimento

entre 250 e 200 milhões de anos atrás, andavam em

e podiam pesar até 500 quilos. Também tinham

grandes bandos para se proteger do ataque de preda-

presas semelhantes às do icônico tigre-dentes-

dores, como os répteis Prestosuchus e Decuriasuchus,

-de-sabre. Ainda assim, esses grandalhões eram

parentes dos atuais crocodilos e jacarés. A suspeita

bastante vulneráveis ao ataque de predadores,

ganha força agora com uma descoberta recente de

daí a importância de viver em manadas, um hábito

pesquisadores do Rio Grande do Sul. Em escavações

comum entre os herbívoros atuais. A aglomeração

em sítios paleontológicos próximos à cidade de Santa

possivelmente contribuía para a proteção dos

Maria, no centro do estado, eles encontraram rema-

adultos do bando e favorecia a sobrevivência dos

nescentes fósseis de pelo menos seis filhotes de Dino-

filhotes. Segundo os pesquisadores, os fósseis

dontosaurus aglomerados uns sobre os outros. Havia

encontrados reforçam a suspeita de que esse com-

crânios e pedaços de mandíbulas misturados com os

portamento social teria surgido entre os répteis,

ossos das patas, além de vértebras e costelas (Histo-

muito antes da origem dos mamíferos.

Concepção artística de um bando de Dinodontosaurus filhotes

1

US$ 254

A China na cola dos Estados Unidos

Com o incremento do

apoio social e

houve um aumento de

ano passado, a diferença

governamental para

12,5% no investimento

de valores aplicados

transformar a China em

feito por empresas

pelas duas maiores

uma potência científica”,

privadas (US$ 196,4

bilhões

Em 2017, o governo

economias mundiais –

contou a especialista em

bilhões em 2017) e de

foi o valor aproximado

chinês aumentou em

excetuada a União

inovação econômica

18,5% nos valores

investido pelos chineses em

12,3% os valores

Europeia – continua

Xie Xuemei, da

despendidos em ciência

atividades de P&D em 2017

despendidos em pesquisa

diminuindo. Em valores

Universidade de Xangai,

básica (US$ 14,1 bilhões).

e desenvolvimento (P&D),

ajustados por paridade

em entrevista ao site da

Em 2016, os Estados

que alcançaram cerca de

de poder de compra, o

revista Science. Segundo

Unidos aplicaram

US$ 254 bilhões, segundo

governo do gigante

a pesquisadora, “há,

US$ 86,3 bilhões em

relatório oficial divulgado

oriental aplicou em P&D

no entanto, um longo

ciência básica. O

em outubro. A China é o

o equivalente a 88% do

caminho a percorrer”

governo chinês tem

segundo país que mais

investido pelos Estados

para a China atingir a

como meta aumentar

investe em P&D no

Unidos. “O crescimento

capacidade de pesquisa

os investimentos em P&D

mundo, perdendo apenas

anual dos gastos em

de países desenvolvidos.

de 2,13% do PIB em

para os Estados Unidos.

P&D indicam um firme

Segundo o relatório,

2017 para 2,5% em 2020.

14 | novembro DE 2018


Um possível ciclo silvestre de zika no Brasil Pesquisadores brasileiros identificaram o vírus zika em carcaças de macacos encontradas em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, e em Belo Horizonte, Minas Gerais. Os saguis e macacos-prego haviam sido mortos a tiros e pauladas pela população por

2

Homem vitruviano, desenho no qual o artista teria se autorretratado

receio de que estivessem

O estrabismo de Da Vinci

infectados com o vírus

fotos 1 márcio l. castro 2 Luc Viatour / wikimedia commons  3 rufus46 / wikimedia commons

da febre amarela. Os animais, na verdade,

Inventor das ilusões de óptica tridimensionais da

estavam infectados com

popular série de livros Magic Eye, o neurocientista

o vírus zika, assim como

britânico Christopher Tyler tem sido um pioneiro

os mosquitos coletados

na pesquisa de percepção visual desde os anos

na região. As análises

1970. Nos últimos anos, Tyler tem se dedicado a

também mostraram que

analisar a obra de Leonardo da Vinci. Sua mais

o vírus dos macacos era

recente descoberta é que o criador da Mona Lisa

o mesmo que causa a

seria estrábico e teria sabido usar essa limitação

doença em seres

a seu favor. A conclusão saiu da análise de seis

humanos. Em laboratório,

obras. Quatro são de autoria do próprio Da Vinci:

os pesquisadores

um autorretrato; o Homem vitruviano; o Jesus repre-

injetaram as amostras do

sentado no quadro Salvator mundi; e o Jovem São

zika em saguis-de-tufos-

João Batista – suspeita-se que todas reproduzam

-pretos e constataram

a feição do próprio artista. As outras duas peças

que o vírus se

analisadas são as esculturas David e Jovem guerrei-

multiplicava. O resultado

ro, de Andrea del Verrocchio, mestre de Da Vinci

sugere que, assim como

que o usava como modelo. Para concluir que Da

os macacos da África,

Vinci era estrábico, Tyler usou círculos e elipses

algumas espécies do

para medir o grau de desalinhamento da pupila nos

Novo Mundo podem

olhos das figuras humanas nessas obras. Um dos

servir de reservatório

olhos de Da Vinci, notou, apontava ligeiramente

para esse agente

para fora (JAMA Ophtalmology, 18 de outubro). Essa

infeccioso (Scientific

característica pode ter ajudado o artista a pintar.

Reports, 30 de outubro).

O estrabismo frequentemente provoca a perda de

“Se for confirmado, isso

estereopsia, a percepção visual tridimensional. Al-

muda completamente a

guns estrábicos não a perdem totalmente e podem

epidemiologia da zika, já

até “desligá-la” voluntariamente. Essa habilidade tornaria mais natural para os pintores estrábicos

que passa a existir aqui um reservatório natural a partir do qual o vírus pode reinfectar a população humana com mais frequência”, contou

observar uma realidade em 3D e transpô-la para o

David, escultura em que Verrocchio teria usado Da Vinci como modelo

espaço bidimensional da tela. Isso ocorreria porque a sensação de tridimensionalidade na pintura plana depende de outros sinais, como sombreamento e perspectiva. Duas técnicas nas quais Da Vinci foi

à Agência FAPESP

pioneiro, talvez não à toa, envolviam sombras: o

Maurício Nogueira,

chiaroscuro (luz e sombra em alto-contraste) e o

coordenador do estudo

sfumato (sombreamento gradual). “O estrabismo

e virologista da

pode ter acentuado a consciência que Da Vinci tinha de sinais particulares de profundidade”, disse

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

3

Tyler a Pesquisa FAPESP. PESQUISA FAPESP 273 | 15


2

Na Holanda, Justiça obriga governo a cortar gases estufa No início de outubro, uma corte de apelação da Holanda determinou que o governo acelere em relação ao planejado o corte nas emissões de gases associados ao efeito estufa. De acordo com a decisão, as emissões no final de 2020 devem ser 25% inferiores aos valores de 1990. Até o ano passado, a Holanda, uma das economias mais poluidoras da União Europeia, havia Hyperion, superaglomerado de galáxias distante da Terra 11,5 bilhões de anos-luz

Os primeiros colossos do Cosmo

anos-luz da Terra e o que

distrital, noticiou a agência Reuters. A ação contra

Há décadas os cosmólogos

anos para chegar aqui. A

o governo foi liderada pela Fundação Urgenda, que

cultivam a noção de que

estrutura recebeu o

apresentou o caso em nome de quase 900 holandeses.

no Universo jovem, com

prefixo “proto” porque as

O processo iniciado em 2015 foi um dos primeiros no

apenas 1 bilhão de anos, a

galáxias contidas ali não

mundo em que os cidadãos de um país atribuem ao

força da gravidade ainda

estão tão próximas umas

seu governo a responsabilidade por contribuir para as

não havia tido tempo

das outras quanto num

mudanças climáticas globais. A meta do governo era

de agrupar estrelas e

aglomerado clássico. Mas

reduzir em 23% as emissões de gases estufa em relação

galáxias em aglomerados.

já estão aprisionadas pela

a valores de 1990 e baixar ainda mais as emissões até

Essa crença nasceu de

gravidade do conjunto e

2030. Na decisão de outubro, a corte afirmou que a

modelos matemáticos que

devem formar um

incerteza em torno do objetivo de 2020 era grande e

simulam a evolução do

aglomerado de massa

havia risco de que a redução ficasse abaixo da meta,

Cosmo a partir do

elevada. Outra estrutura

o que seria inaceitável. Em uma decisão anterior, de

Big Bang, a explosão

aparentemente grande

2015, o Tribunal Distrital de Haia havia determinado

que o teria originado há

demais para sua idade

que governo tomasse medidas imediatas para atingir

13,8 bilhões de anos.

foi descoberta pela

o valor estipulado. Apesar do apelo de pesquisadores,

Dois achados recentes

astrônoma italiana Olga

advogados, empresas e cidadãos, o governo recorreu,

mostram, porém, que

Cucciati, do Instituto

algumas estruturas de

Nacional de Física, de

dimensões colossais

Bolonha. Usando o VLT,

já existiam naquela época.

o maior telescópio do

O mais antigo aglomerado

mundo, instalado no Chile,

cósmico em formação

ela enxergou o processo

foi descoberto pelo grupo

de formação de um

do astrônomo Linhua

superaglomerado – ou

Jiang, da Universidade de

um aglomerado de

Pequim, China (Nature

aglomerados – de galáxias

Astronomy, 15 de outubro).

a 11,5 bilhões de anos-luz:

Usando um par de

o Hyperion. Com massa

telescópios de 6,5 metros

1 quatrilhão de vezes

de diâmetro no Chile, ele

maior que a do Sol, ele

e sua equipe encontraram

desafia as previsões

um protoaglomerado

dos modelos

de galáxias com um

cosmológicos para a

volume maior que o de um

região. Resta uma dúvida:

cubo com 100 milhões

se essas estruturas não

de anos-luz de aresta.

forem tão raras

Esse colosso, conhecido

quanto se pensa, será

pela sigla SXDX_gPC,

preciso alterar os modelos

está a 12,7 bilhões de

de formação de galáxias.

da de 27 anos atrás. “O governo fez muito pouco para evitar os perigos das mudanças climáticas e está fazendo muito pouco para recuperar o atraso”, afirmou o tribunal, ao apoiar a decisão de 2015 de um tribunal

embora já estivesse trabalhando para cumprir a meta do tribunal. O recurso foi apresentado em maio deste ano e, em outubro, o tribunal reafirmou a decisão em favor da Urgenda. O governo acatou-a e diz que a meta está ao alcance, mas considera recorrer outra vez.

Marjan Minnesma, diretora da ONG Urgenda, em entrevista após a decisão judicial 1

16 | novembro DE 2018

se vê é uma estrutura antiga, pois sua luz demorou 12,7 bilhões de

fotos 1 Chantal Bekker / Urgenda 2 eso  3 RELAMPAGO / CACTI

alcançado uma taxa de emissão apenas 13% abaixo


Para entender as tempestades extremas

3

Brasil

Uma vasta faixa do Pampa no norte da Argentina

Espaciais (Inpe). Para conhecer como essas

é a região onde se formam algumas das mais

tempestades se originam e ganham escala em

intensas e devastadoras tempestades do planeta.

tão pouco tempo, uma equipe internacional de

Sobre as províncias de Mendoza e Córdoba, o

quase 150 pesquisadores, entre eles, brasileiros,

vapor-d’água que vem da Amazônia costeando

deve monitorar o surgimento e a evolução do

os Andes se adensa em nuvens que se agigan-

fenômeno de 1º de novembro a 15 de dezembro,

Uruguai

tam rapidamente. Com poucos quilômetros de

quando é mais frequente. No lado argentino,

PAMPA

extensão no início, elas podem, em questão de

equipamentos fixos em solo e instalados em

hora, atingir quase mil quilômetros de diâmetro.

caminhões, além de balões, medirão a pressão, a

Conhecidas pelo nome técnico de complexo con-

temperatura e a umidade do ar e acompanharão

vectivo de mesoescala, essas nuvens provocam

a formação das nuvens. Instalada em São Borja,

grandes estragos. Despejam chuvas torrenciais,

no Rio Grande do Sul, a equipe brasileira espera

podem gerar tornados e são acompanhadas por

observar as nuvens maduras. “O conhecimento

muitos raios e queda de granizo com o tamanho

gerado nesse projeto deve aprimorar nossa

de bolas de golfe. Da Argentina, elas entram no

capacidade de criar modelos para previsões

Brasil pelo Rio Grande do Sul ou Mato Grosso

meteorológicas de curto prazo, importantes

do Sul. “Quase nada sabemos sobre a formação

para reduzir os danos à agricultura e às pes-

dessas nuvens, que são a causa de algumas das

soas”, conta Machado. Conhecido pela sigla

tempestades mais intensas que se conhece”,

Relampago, o projeto, apoiado pela FAPESP,

conta o meteorologista Luiz Augusto Toledo

é o maior experimento de campo em ciências

Machado, do Instituto Nacional de Pesquisas

atmosféricas realizado fora dos Estados Unidos.

Argentina

Nuvem de tempestade (foto) em formação sobre o Pampa argentino (acima)

PESQUISA FAPESP 273 | 17


Amostra de áreas cerebrais associadas à memória, atingidas por lesões microscópicas (faixa marrom) típicas de Alzheimer

18 | novembro DE 2018


capa

antes do esquecimento Problemas psiquiátricos podem representar os primeiros sinais da doença de Alzheimer

Ricardo Zorzetto

léo ramos chaves

A

dificuldade de encontrar as chaves do carro, distraidamente guardadas na gaveta de meias em vez do habitual porta-chaves, ou o terror de não lembrar o caminho de casa após uma corrida pelo bairro, como o vivido pela professora universitária no filme Para sempre Alice, de 2014, podem não ser os primeiros sinais da doença de Alzheimer. Descrita há pouco mais de um século pelo psiquiatra e neuroanatomista alemão Alois Alzheimer e, quase simultaneamente, pelo também psiquiatra e neuroanatomista checo Oskar Fischer, essa enfermidade que elimina progressivamente as células cerebrais tornou-se conhecida por apagar a memória e reduzir a capacidade de planejar e realizar as tarefas do dia a dia, como fazer a lista do mercado. Esses sinais, no entanto, são típicos dos estágios avançados da doença. Muito antes, ela pode se manifestar de modo dissimulado, fazendo-se confundir com problemas mais comuns na população, como a depressão, a ansiedade ou alterações súbitas no padrão de sono e apetite.

Há algum tempo se sabe que esses distúrbios psiquiátricos são mais frequentes nas pessoas que desenvolvem Alzheimer ao envelhecer do que na população idosa saudável. Parte dos neurologistas e especialistas em saúde mental defende, com base em estudos populacionais, que a depressão e a ansiedade surgiriam primeiro, em decorrência de isolamento e outras dificuldades impostas pelo envelhecimento, e, se não tratadas, aumentariam o risco de Alzheimer. Começam agora a surgir evidências de que, ao menos em parte dos casos, o oposto pode acontecer: as manifestações psiquiátricas surgiriam em consequência de danos neurológicos dos estágios iniciais do Alzheimer. Indicações sólidas de que os problemas psiquiátricos precederiam a perda de memória e a demência, que se manifestam de duas a três décadas depois das primeiras lesões neurológicas do Alzheimer, vêm de um trabalho conduzido pela neuropatologista brasileira Lea Tenenholz Grinberg. Professora da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), Estados Unidos, Lea e colaboradores PESQUISA FAPESP 273 | 19


brasileiros e norte-americanos observaram que, após surgirem as primeiras lesões, aumenta o risco de problemas psiquiátricos. A probabilidade de desenvolver ansiedade e alterações (aumento ou diminuição) de apetite e sono é três vezes mais alta em quem tem as lesões iniciais do que nas pessoas sem elas. Também o risco de depressão é quase quatro vezes mais elevado e o de agitação seis vezes maior. “Esses resultados indicam que, em parte desses casos, a doença de Alzheimer já está instalada em áreas que modulam a atividade cerebral quando as primeiras manifestações psiquiátricas surgem”, afirma Lea.

O

s pesquisadores chegaram a essa conclusão ao analisar o cérebro de 455 pessoas com idade entre 58 e 82 anos armazenados no Biobanco para Estudos do Envelhecimento, da USP, um dos maiores acervos de cérebro do mundo. Ali estão 3 mil exemplares, doados por familiares de pessoas que passaram por autopsia no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital, em São Paulo. Na realidade, os autores do estudo não analisaram só o cérebro. Inspecionaram também o tronco encefálico, que, com o cerebelo e o cérebro, compõe o encéfalo, conjunto de estruturas abrigadas no crânio. Em 2009, Lea e as equipes do neuroanatomista alemão Helmut Heinsen, à época na Universidade de Würzburg, Alemanha, e do neurologista Ricardo Nitrini e do geriatra Wilson Jacob Filho, ambos da USP, haviam confirmado que uma das primeiras estruturas danificadas na doença de Alzheimer estava no tronco encefálico, e não no cérebro (ver Pesquisa FAPESP nº 153).

No artigo atual, publicado em outubro deste ano no Journal of Alzheimer’s Disease, os pesquisadores agruparam os casos de acordo com a classificação proposta pelo casal alemão de neuroanatomistas Heiko Braak e Eva Braak (1939-2000). Apresentada em 1991, a escala reúne os casos de Alzheimer em seis estágios, que aumentam de gravidade à medida que cresce o número de lesões e o de áreas afetadas do encéfalo. A escala foi revisada em 2011 por Heiko Braak para levar em conta evidências de que as primeiras regiões afetadas no Alzheimer estão no tronco encefálico. A indicação de que os distúrbios psiquiátricos antecedem o declínio da memória se tornou evidente quando o grupo da USP e da UCSF confrontou a evolução dos danos no encéfalo observados ao microscópio com os problemas psiquiátricos e sinais clínicos de Alzheimer apresentados por pacientes meses antes de morrer. Já nos estágios 1 e 2, quando as lesões são poucas e se concentram em estruturas do tronco encefálico, como o núcleo dorsal da rafe e o locus coeruleus, os sinais de depressão, ansiedade, agitação e alterações do apetite e do sono eram mais frequentes. Considerado uma das regiões mais primitivas do encéfalo, o tronco encefálico conecta a medula espinhal ao cérebro. Na história evolutiva dos seres vivos, ele surge nos anfíbios e, nos seres humanos, assume a forma de um cone invertido de uns 10 centímetros de comprimento. O tronco encefálico tem menos de 1% dos 86 bilhões de neurônios do encéfalo – os neurônios são as células que transmitem, processam e armazenam informações. Ele abriga, no entanto, várias pequenas estruturas que

Amostras de tecido cerebral armazenadas no Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP

20 | novembro DE 2018


lenta progressão Gravidade das lesões

Risco de apresentar problemas psiquiátricos aumenta com o acúmulo de lesões no cérebro

No estágio mais inicial, classificado de 0 na escala de Braak, surgem as primeiras lesões (áreas rosa) no tronco encefálico. Não há sintomas

As lesões se intensificam em um núcleo (seta) do tronco encefálico e iniciam no córtex (círculo) nos estágios 1 e 2. Cresce o risco de depressão, ansiedade e agitação

Fontes  lea t. grinberg lab / ucsf

desempenham funções fundamentais para a vida. Elas participam do controle da respiração, da fome, dos batimentos cardíacos, da pressão sanguínea e da temperatura corporal, além da regulação dos ciclos de sono e vigília. Também se conectam a regiões do cérebro que regulam o humor, a ansiedade e a formação e recuperação da memória.

foto  léo ramos chaves imagem lea t. grinberg lab / ucsf

A

lgumas dessas estruturas contêm neurônios especiais, produtores de mais de um neurotransmissor, composto responsável pela comunicação entre as células cerebrais. “Por meio de seus neurotransmissores, essas estruturas aumentam ou reduzem a atividade de muitas áreas cerebrais”, explica Nitrini, coautor do estudo atual e especialista em demências. Os novos achados podem representar dois avanços, ainda que não imediatos, para a pesquisa e o tratamento do Alzheimer. O primeiro é que a identificação precoce de sinais psiquiátricos pode auxiliar no teste de novos medicamentos, permitindo avaliar em fases iniciais da doença o desempenho de compostos em desenvolvimento para evitar ou retardar a progressão do Alzheimer – hoje a maior parte dos ensaios clínicos é feita com pessoas em estágio avançado, sem resultados animadores. Além disso, para alguns pesquisadores, a manifestação psiquiátrica do Alzheimer talvez torne possível iniciar mais cedo o uso de medicações já disponíveis. Em um artigo publicado em 2015 na revista Neurobiology of Stress, o grupo da bióloga Elisabeth Van Bockstaele, da Universidade Drexel, Estados Unidos, sugere que

Agravam-se as lesões no tronco encefálico nos estágios 3 e 4. Elas também avançam pelo córtex. O risco de depressão, ansiedade e agitação continua alto. Surgem falhas de memória

Nos estágios 5 e 6, há morte celular (áreas escuras) no tronco encefálico e as lesões tomam o córtex. Memória, coordenação e percepção do ambiente são comprometidas. Há delírios e alucinações

o uso de antidepressivos talvez possa proteger estruturas do tronco encefálico das lesões ou restabelecer a função dessas estruturas. “Uma importância do estudo coordenado por Lea é mostrar que a depressão no idoso pode não ser de origem primária, causada por fatores sociais ou ambientais, mas resultado de degeneração de regiões cerebrais”, afirma a psiquiatra Paula Villela Nunes, professora da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Isso não significa que seria mais fácil tratar essas pessoas. Especializada em psiquiatria geriátrica e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, Paula investiga a ação de compostos produzidos pelo sistema nervoso que protegem o cérebro. Ela suspeita, porém, que a depressão decorrente do Alzheimer responda pior aos antidepressivos por causa das lesões degenerativas no cérebro. “Tratar esses casos de depressão talvez seja tão desafiador quanto tratar as demências”, diz Paula. Uma das primeiras estruturas do tronco encefálico afetada no Alzheimer é o locus coeruleus. Essa área contém neurônios produtores de noradrenalina, neurotransmissor que controla o interesse, a atenção, o estresse e outras reações ao ambiente. Alterações em seu funcionamento podem levar a distúrbios de sono, ansiedade e depressão, além de alterações na memória e inflamações associadas a lesões neurológicas do Alzheimer. Outra estrutura afetada nos estágios iniciais da doença, identificada por Lea e seus colaboradores em 2009, é o núcleo dorsal da rafe, centro importante de síntese de serotonina. MuPESQUISA FAPESP 273 | 21


A

nálises recentes de cérebros post mortem e experimentos com ratos geneticamente alterados para desenvolver as lesões do Alzheimer sugerem que os emaranhados da proteína tau são os primeiros danos a aparecer no tronco encefálico. Em condições normais, essa proteína desempenha no interior das células o papel de um arame que mantém unido um feixe de gravetos: ela envolve e estabiliza conjuntos de tubos proteicos que definem a arquitetura celular. No Alzheimer, porém, ela sofre uma alteração química que a deforma e liberta os gravetos. Soltos, eles se acumulam de modo desordenado, prejudicando o funcionamento da célula e, por vezes, matando-a. “Os emaranhados são as primeiras lesões que os patologistas conseguem observar, mas suspeito que não sejam os desencadeadores do problema”, afirma o bioquímico Sergio Teixeira Ferreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudioso das causas do Alzheimer. Assim como outros especialistas, Ferreira vê a origem do problema na superfície externa das células, na degradação anormal da proteína precursora do beta-amiloide, essencial para a sobrevivência dos neurônios. Fatores ambientais diversos – como tabagismo, estresse prolongado ou privação de sono – parecem favorecer o desmonte inadequado dessa proteína, gerando fragmentos chamados peptídeos beta-amiloide. Esses peptídeos tendem a aderir uns aos outros e formar longas fibras que, por sua vez, se aglomeram nas placas de beta-amiloide observadas por Alzheimer no cérebro de Auguste Deter. Em meados dos anos 1990 propôs-se que essas placas que se acumulam fora das células causariam a morte em massa dos neurônios. Não demorou, no entanto, para surgirem dúvidas. Havia pessoas com o cérebro tomado por placas e sem demência, e também o oposto. Nos últimos 20 anos aumentaram as evidências de que o efeito 22 | novembro DE 2018

A estrutura em forma de teia (centro da imagem) é um aglomerado de placas beta-amiloide; as estruturas em forma de chama de vela são emaranhados neurofibrilares

mais tóxico é causado por aglomerados menores: os oligômeros beta-amiloides, que produziriam danos direta e indiretamente. Na primeira situação, eles parecem bloquear as sinapses (conexões entre os neurônios), levando as células a atrofiar e morrer. Os oligômeros também penetram nos neurônios e alteram a proteína tau, favorecendo a formação dos emaranhados neurofibrilares, também letais para as células. Na UFRJ, Ferreira e a neurocientista Fernanda De Felice vêm ajudando a desvendar a toxicidade dos oligômeros, que, em parte, pode ser indireta. Em experimentos com células e animais, eles mostraram que os oligômeros causam uma reação inflamatória: estimulam as micróglias, principais células de defesa do sistema nervoso central, a produzir citocinas como o fator de necrose tumoral alfa. Esse mediador inflamatório,

imagem   Cathrine Petersen / lea t. grinberg lab / ucsf

danças nos níveis desse neurotransmissor estão associadas à depressão e à ansiedade. Nas fases iniciais da doença, essas estruturas exibem apenas um dos dois tipos de lesões que Alois Alzheimer descreveu em 1906 – ele só publicou esses achados em 1907, ano em que Oskar Fischer torna público seus dados. Em um congresso psiquiátrico na cidade alemã de Tübingen, Alzheimer relatou o caso de Auguste Deter, uma mulher internada em 1901 com um surto de paranoia, que progressivamente apresentou problemas de sono, perda de memória, agressividade e confusão. Ela morreu cinco anos depois, aos 50 anos, com a camada mais externa (córtex) do cérebro tomada por dois tipos de lesões que se tornariam conhecidas como placas de proteína beta-amiloide e emaranhados neurofibrilares da proteína tau – apenas a última aparece no locus coeruleus dos cérebros avaliados pelo grupo da USP e da UCSF.

o custo da doença Em 2015 foram gastos no mundo US$ 818 bilhões no tratamento de demências; em 2030, o valor deve alcançar US$ 2 trilhões valores (em us$ bilhões) 2.000

1.500

1.000

500

0 2015

2020

fontes  world alzheimer report 2015 / Alzheimer’s disease international

2025

2030


em ritmo acelerado Casos de demência devem crescer mais rapidamente em países de média e baixa renda por causa do aumento da expectativa de vida e do maior risco de doença vascular cerebral 89,28

n países de alta renda n países de média e baixa renda

77,63 66,45

número de casos (em milhões) 27,28

32,30

56,16 38,72

46,74

19,50

21,97

24,73

27,95

31,72

35,71

2015

2020

2025

2030

2035

2040

39,14

42,18

2045

2050

fontes  world alzheimer report 2015 / Alzheimer’s disease international

por sua vez, torna os neurônios mais sensíveis à ação dos oligômeros. Passados 112 anos da caracterização do Alzheimer, dezenas de milhares de estudos já foram publicados e algumas dezenas de compostos foram testados para tentar deter ou retardar a doença. Atualmente, os especialistas apostam que a saída é buscar formas de identificar as lesões no início ou antes de começarem – estão em desenvolvimento exames de imagens para detectar a presença dos oligômeros no cérebro – e usar compostos que evitem os danos antes de surgirem os sinais clínicos da doença.

E

m janeiro deste ano, havia 112 compostos em uma das três fases de testes clínicos em seres humanos pelas quais deve passar um medicamento antes de chegar ao mercado. Desses, 63% são compostos que tentam alterar o curso da doença, segundo avaliação do neurologista Jeffrey Cummings, da Clínica Cleveland, Estados Unidos, publicada na revista Alzheimer’s & Dementia. Em geral, são anticorpos, moléculas de origem biológica que aderem aos peptídeos beta-amiloide, à proteína tau ou a ambos, neutralizando-os. Usados em estágios avançados são pouco eficazes, mas cresce a tentativa de testá-los em pessoas sem sintomas de Alzheimer ou com risco elevado de desenvolver a doença. Um desses estudos está sendo conduzido na Colômbia pelo neurologista Francisco Lopera, professor da Universidade de Antióquia. Ele e seus colaboradores estão tratando com o anticorpo monoclonal crenezumab 100 indivíduos de uma família portadora de uma alteração genética que acelera a produção de beta-amiloide e leva à demência antes dos 50 anos. Esses participantes tomarão a medicação por cinco anos, antes de seus resultados serem comparados com os de quem recebeu placebo – os primeiros dados devem sair em 2022.

“Ao iniciar o tratamento em pessoas assintomáticas, esperamos ter mais sucesso na neutralização do amiloide”, contou Lopera a Pesquisa FAPESP. “Talvez seja preciso usar também anticorpos que bloqueiem a proteína tau.” Há urgência para encontrar tratamentos eficazes contra o Alzheimer. Os compostos usados para retardar a perda de memória agem sobre o neurotransmissor acetilcolina, aumentando a atenção. Eles, no entanto, funcionam por, no máximo, alguns anos. Além disso, a doença vem se tornando mais frequente à medida que as pessoas vivem mais. A Organização Mundial da Saúde calcula que existam quase 50 milhões de pessoas com demência no mundo, de 60% a 80% dos casos provocados por Alzheimer. Esse número deve triplicar até 2050 (ver gráfico acima). Cuidar de pessoas com demência consome US$ 818 bilhões por ano no mundo, segundo o World Alzheimer report 2015, publicado pela organização não governamental Alzheimer’s Disease International. No Brasil, o tratamento de cada indivíduo custa, em média, US$ 16,5 mil por ano, mostram dados publicados este ano por pesquisadores da USP, da Universidade de Taubaté e do Hospital Santa Marcelina na PLOS ONE. Cálculos aproximados sugerem que haveria 1,2 milhão de pessoas com demência no país e que 100 mil novos casos surgiriam a cada ano. n

Projeto Diagnóstico nosológico de demência em população brasileira (nº 06/55318-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ricardo Nitrini (USP); Investimento R$ 123.173,15.

Artigo científico EHRENBERG, A. J. et al. Neuropathologic correlates of psychiatric symptoms in Alzheimer’s disease. Journal of Alzheimer’s Disease. v. 66, n. 1, p. 115-26. 16 out. 2018. Os demais artigos e projetos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 273 | 23


entrevista José Antonio Marengo Orsini

Tempo de

incertezas Climatologista diz que a sociedade percebe as mudanças climáticas, mas tem dificuldade de adotar medidas adaptativas Marcos Pivetta  |

N

retrato

Léo Ramos Chaves

ascido em Lima, o climatologista José Antonio Marengo graduou-se no curso de física e meteorologia no Peru e permaneceu por oito anos nos Estados Unidos, onde fez doutorado e dois estágios de pós-doutorado, antes de se fixar, há mais de duas décadas, na parte paulista do Vale do Paraíba. Trabalhou por 15 anos no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em Cachoeira Paulista, onde chegou a ser o coordenador científico da previsão climática. Em 2011, tornou-se coordenador-geral do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST), também ligado ao Inpe. Especialista em modelagem climática e mudanças climáticas, Marengo contribui com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) desde meados dos anos 1990, quando a entidade divulgou o segundo dos seus cinco famosos relatórios. A grande familiaridade com esses temas levou-o a ser escolhido em 2014 para chefiar o setor de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), sediado em São José dos Campos. Entre outras atividades, o Cemaden vigia 24 horas por dia áreas de risco de 957 municípios brasileiros classificados como vulneráveis a desastres naturais. Em paralelo à atuação no centro, Marengo dá aulas de meteorologia e de ciência do sistema terrestre na pós-graduação do Inpe, participa de grupos de pesquisa nacionais e internacionais e produz trabalhos e relatórios científicos. Nesta entrevista, o climatologista de fala bem-humorada, pontuada pelo sotaque e por palavras em espanhol, diz como, a seu ver, populações e governos percebem as mudanças climáticas e suas possíveis consequências.

24 | novembro DE 2018

idade 60 anos especialidade Modelagem e mudanças do clima formação Graduação em física e meteorologia na Universidade Nacional Agrária, de Lima, Peru (1981), e doutorado em meteorologia na Universidade de Winconsin-Madison, EUA (1991) Instituição Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) produção científica 188 artigos científicos


Marengo na sala de monitoramento de desastres do Cemaden PESQUISA FAPESP 273 | 25


Por que você veio trabalhar no Brasil? Sou formado pela Universidade Nacional Agrária, de Lima, que tem um programa de bacharelado de cinco anos em meteorologia e física. Escolhi essa área porque meu pai era técnico de meteorologia e trabalhava para o Ministério da Agricultura. No Peru, depois dos cinco anos de bacharelado, é preciso escrever uma tese para se tornar engenheiro meteorológico. Fiz a tese sobre a Amazônia. Foi assim que começou meu interesse pela região. A escolha do tema da tese ocorre no último ano da graduação. Naquela época, início dos anos 1980, chegou às minhas mãos um trabalho do Eneas Salati, então professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo, em Piracaba, sobre reciclagem na Amazônia, publicado no final da década de 1970. Isso me chamou a atenção, pois o Peru também é um país amazônico. Fiz mestrado em recursos hídricos na mesma universidade, onde fui professor por quase sete anos. Depois você foi para os Estado Unidos fazer doutorado. Consegui uma bolsa na National Science Foundation, dos Estados Unidos, e fui para a Universidade de Wisconsin-Madison. Fiquei quatro anos lá e escrevi uma tese sobre Amazônia e modelagem climática. Depois, fiz um pós-doutorado de dois anos na Universidade Columbia e no Instituto Goddard da Nasa em Nova York, no qual trabalhei ainda mais com modelagem climática. Em seguida, fiz outro pós-doutorado de dois anos na Universidade Estadual da Flórida sobre clima tropical. Meu foco nesse período foi o clima do Sahel, a parte semiárida da África entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana, ao sul. Depois de oito anos nos Estados Unidos, queria voltar para a América do Sul. Mas, naquela época, meados dos anos 1990, o Peru estava no meio da crise do terrorismo. A Argentina não era uma boa opção para mim, pois não desenvolvia a minha área de pesquisa em modelagem de clima. O Carlos Nobre [climatologista do Inpe] me convidou para vir ao Brasil como bolsista do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Era solteiro, vim e acabei ficando. Casei e tenho um filho brasileiro. Daqui não saio mais. 26 | novembro DE 2018

Chuva intensa não é desastre natural, mas, sim, os impactos causados por ela sobre uma população vulnerável

Você tinha uma conexão específica com o Brasil? Eu não, quem tinha era o Carlos. Em Wisconsin estudei de 1987 a 1991. Em 1988, meu orientador convidou o Carlos para fazer uma palestra lá. Conhecia os artigos dele e ele os meus. Ele me perguntou para onde iria quando terminasse o doutorado e me incentivou a vir para o Brasil. Mas eu não sabia exatamente o que iria fazer. Pensava em ficar nos Estados Unidos, mas sabia que seria complicado arrumar uma posição estável em uma universidade de lá. Mais tarde, quando terminei o pós-doutorado, falei com o Carlos novamente e perguntei se ele lembrava da nossa conversa. Ele me convidou a vir para o Brasil. Vim trabalhar no Cptec, onde fiquei muitos anos. O que fazia no Cptec? Começamos a desenvolver a parte de estudos climáticos, a pesquisar mais o El Niño [aquecimento das águas do oceano Pacífico que provoca alterações climáticas] e trabalhar com modelagem para previsão sazonal de clima. Com o tempo, o governo federal se empolgou com esses temas e percebeu a necessidade de se falar mais dos impactos das mudanças globais. Além disso, o IPCC recebeu em

2007 o Prêmio Nobel da Paz e isso gerou muito interesse pelo tema de mudanças de clima e os seus impactos no Brasil. Fiz parte da equipe de autores do Brasil que elaborou o relatório do IPCC de 2007. Então o Inpe criou o Centro de Ciências do Sistema Terrestre em 2008. Chefiei o centro de 2011 a 2014 e começamos a trabalhar, entre outros temas, com a questão da vulnerabilidade da população a eventos extremos e das possibilidades de adaptação a essas mudanças. Gosto muito dessa temática. Nessa época, começaram a surgir vários estudos sobre os desastres naturais. Em seguida, depois da tragédia na serra fluminense em janeiro de 2011 [chuvas seguidas de deslizamentos de terra que mataram mais de 900 pessoas], o governo federal criou às pressas o Cemaden. Tínhamos supercomputadores no país e algo deveria ser feito para tentar evitar desastres desse tipo. Como havia trabalhado muito com eventos climáticos extremos, poderia ajudar no monitoramento e gerenciamento de riscos de desastres naturais. É correto dizer que os desastres naturais estão sempre associados a eventos climáticos extremos? Um extremo meteorológico, como uma chuva intensa, não é um desastre. Nesse caso, o desastre são os impactos causados pela chuva sobre uma população vulnerável a esse fenômeno extremo. Não há população no meio da Amazônia. Pode cair uma chuva forte nesse lugar que não vai produzir nenhum desastre, pois ali não há pessoas vivendo, ou há pouquíssimas. No Brasil, os desastres de grande impacto, como enchentes, enxurradas e deslizamentos de terra ou secas, ocorrem nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, onde está a maior concentração de pessoas. Precisamos desenvolver mais estudos sobre o risco de desastres em possíveis cenários futuros do clima. Será que a vulnerabilidade a esse tipo de evento daqui a algumas décadas será a mesma ou a situação vai piorar ou melhorar? Temos de trabalhar com cenários de adaptação às mudanças do clima e de diminuição de risco. Essa é nossa agenda com o MCTIC e o Ministério do Meio Ambiente. A sociedade brasileira está convencida da ocorrência das mudanças climáticas e de seus riscos? A natureza está dando sinais aqui e no


arquivo Pessoal

Acre ou Rondônia. Em janeiro de 2014, houve recorde de chuva lá e recorde de seca em São Paulo. Além disso, nessa ocasião, as frentes frias vindas do Sul, que trazem chuvas, também não conseguiram chegar ao Sudeste e ficaram por lá mesmo. Há estudos que tentam enxergar se esse fenômeno meteorológico foi consequência de atividade humana ou não. Até agora não há nada conclusivo. Mas se pode afirmar que a crise hídrica na Região Metropolitana de São Paulo, particularmente em 2014, foi devido à estiagem, agravada por um aumento populacional e do consumo de água em um verão excessivamente mais quente. O climatologista (no destaque) em um curso de física teórica em Trieste, na Itália, em 1985

mundo todo. Os extremos climáticos estão cada vez piores. Basta lembrar da grande seca do Nordeste que começou há seis ou sete anos, das secas e enchentes na Amazônia. As pessoas percebem que o clima está mudando, fazem até piada sobre isso. Tentamos sempre explicar que as mudanças climáticas são um processo natural, mas que está sendo acelerado pela ação humana. Não é o homem que muda o clima. Mas, com o aumento dos gases de efeito estufa e do desmatamento, o papel do homem nesse processo está cada vez maior. Isso as pessoas ainda não entendem direito. Talvez elas não entendam a base teórica por trás das mudanças, a atribuição de causas dessas mudanças que nós, cientistas, adotamos. A mensagem principal, a de que o clima está mudando, é entendida agora. Não é necessário esperar até 2050 para isso ficar claro. Os invernos e os verões estão mais intensos. Os idosos podem morrer em consequência de ondas de calor. Isso já ocorre na Europa onde a população está mais adaptada ao frio. Quais são as grandes vulnerabilidades do Brasil? Só recentemente esses aspectos começaram a ser avaliados. Durante algum tempo, o Brasil lutou pela bandeira da mitigação das mudanças, da redução de emissões de gases de efeito estufa, acreditando que essas medidas gerariam mecanismos de créditos de carbono que trariam mais dinheiro para a pesquisa. Isso não ocorreu. As vulnerabilidades no Brasil dependem de cada região. O

Nordeste tem secas recorrentes e a população ainda não está adaptada a essa situação. Já Israel tem o mesmo clima do Nordeste, mas está adaptado a passar por períodos sem chuva e tem tecnologia avançada de irrigação que lhe permite se adaptar a situações de estiagem. A vulnerabilidade tem base física, mas também social: a população pode ou não estar adaptada e morar em áreas expostas e altamente vulneráveis a deslizamentos de terra ou a enchentes urbanas ou rurais. Ou seja, pode ou não ser vulnerável a desastres naturais. Na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, uma potência econômica com seus 20 milhões de habitantes, houve falta de água entre 2014 e 2016 e começou um racionamento. Nesse caso, os modelos climáticos indicaram que essa seca em São Paulo foi um fenômeno natural, mas que pode se repetir no futuro. Não dá para atribuir a crise hídrica de São Paulo, ainda que parcialmente, a ações humanas? Estudos de atribuição de causas em eventos extremos estão começando a aparecer agora. Eles são muito complicados em termos estatísticos e de modelagem. No Sudeste, tivemos 47 dias sem chuva entre janeiro e fevereiro de 2014. Normalmente essa sequência de dias secos dura entre 11 e 15 dias. Esse é um fenômeno meteorológico que chamamos de bloqueio atmosférico. Ocorre a formação de uma bolha de ar quente e a umidade que vem da Amazônia não consegue entrar na região. Ela se vira e volta para o

A modelagem climática consegue separar o que é natural e o que é influenciado pelo homem? Com um modelo é possível fazer qualquer coisa. Alguns incluem apenas a variabilidade natural do clima e outros abrangem também a variabilidade antrópica ou uma combinação das duas. Se rodamos um modelo apenas com a variabilidade natural e percebemos que ele não explica o que está sendo observado na natureza, partimos para a outra abordagem. Usamos um modelo no qual colocamos os efeitos que atribuímos ao aumento dos gases de efeito estufa e comparamos para ver se o resultado é similar ao efetivamente observado. Se esse modelo consegue explicar a situação, passamos a adotar a visão de que a ação do homem tem algum efeito sobre o evento climático analisado. Claro que fazemos um tratamento estatístico para ver se essa influência humana é significativa. No caso específico da seca do Sudeste, ainda não vi um paper que diga se ela foi natural ou antrópica. Nada mostra que os 47 dias sem chuva gerados pelo bloqueio atmosférico tenha tido uma causa antrópica. Talvez a crise hídrica em si teve causas antrópicas, mas não a falta de chuvas. Em que sentido? A temperatura média do verão de 2014 foi quase 2 graus acima do normal. Os reservatórios se esvaziaram rapidamente e a população de São Paulo não para de aumentar. Num quadro assim, mesmo que tivesse chovido um pouco não teria sido suficiente para acabar com a crise hídrica. Alguns centros de pesquisa dos Estados Unidos e do Reino Unido PESQUISA FAPESP 273 | 27


dizem que as intensas ondas de calor e os verões extremos na Europa, que se repetem nos últimos anos, teriam uma causa humana clara, ligada ao aquecimento global. É muito difícil atribuir um evento particular a uma tendência de longo prazo. Em todo mundo, aparecem estudos de atribuição de causas, uma linha nova de pesquisa. Eles são importantes porque podem convencer os tomadores de decisão de que o que está ocorrendo tem uma contribuição significativa das atividades humanas. Como disse, o processo é natural, mas as atividades humanas o agravam.

Você mencionou o leste da Amazônia. 28 | novembro DE 2018

Desmatamento na Amazônia é prejudicial para o combate às mudanças climáticas

O que os modelos indicam sobre o clima futuro no oeste dessa região? Nos modelos usados no quinto relatório do IPCC, projetou-se um aumento das chuvas extremas no oeste da Amazônia. A representação da floresta está melhor nos atuais modelos do que nos do passado. Isso nos leva a pensar que talvez os modelos estejam melhorando, que eles estariam mais próximos da realidade. É preciso ter cuidado para projetar o clima futuro, pois há incertezas que não podemos eliminar. Temos de lembrar que não existe modelo no mundo que possa representar 100% a realidade. Não existe modelo perfeito. É um erro ver a Amazônia como uma região única do ponto vista climático? Poderíamos falar em três situações diferentes. Temos o leste da região, que está perto da foz do rio Amazonas; o oeste, perto da Colômbia e do Peru, que é mais chuvoso; e o sul da Amazônia, onde está Mato Grosso e o chamado arco do desmatamento. Sobre o sul da Amazônia, o consenso entre os modelos climáticos é menor. Há estudos dizendo que o desmatamento nessa região vai produzir menos chuvas e outros dizendo que vai produzir mais. Por que poderia haver mais chuvas? Quando uma área é desmatada, surgem setores sem floresta ao lado de outros com a mata preservada. O contraste gera um tipo de brisa, que produziria chuva nas bordas. Esse é um detalhe regional que os modelos de grande escala não captam. É por isso que também usamos modelos regionais, que dão mais detalhes.

Qual é a resolução do modelo regional do Inpe? Para toda América do Sul e Central ele consegue prever o clima para área equivalente a um quadrado de 40 por 40 quilômetros (km). Mas, para algumas áreas do Brasil, como o Sudeste, essa resolução pode chegar a um quadrado de 5 por 5 km. Fizemos um estudo com esse nível de detalhe em Santos, no litoral paulista. Vimos que o porto pode não ser afetado pelas mudanças climáticas no futuro, mas a cidade será atingida por mais ressacas, que são consequência de mais ventos, que derivam de tempestades próximas à costa. Nossos estudos indicaram a intensificação das tempestades no local. Não estamos dizendo que o nível do mar vai engolir a cidade, como aparece nos filmes de desastres ambientais. Um pequeno aumento no nível do mar faz com que as ondas entrem mais na cidade. Já vemos imagens da água de ressaca alcançando as calçadas da cidade e penetrando nos estacionamentos subterrâneos dos prédios em Santos. É uma situação que tem impactos graves, ainda mais se virar praxe no futuro. Por isso, as autoridades de Santos estão prestando atenção nos estudos. Esses estudos em Santos são os mais detalhados de possíveis impactos em um lugar do Brasil? Diria que sim. Conseguimos fazer uma projeção para a cidade com e sem a adoção de medidas de adaptação a mudanças no clima. Definimos essas medidas com a população local. Manejar ecossistemas, como revitalizar o mangue da cidade, é

Léo Ramos Chaves

Qual o grau de confiabilidade dos modelos climáticos? Até que ponto é possível extrapolar o clima futuro? Usamos os modelos desenvolvidos pelos centros climáticos de todo o mundo, inclusive do Brasil, que contribuem para os relatórios do IPCC. O modelo é uma representação matemática da realidade. Todo o processo é representado por sistemas de equações que são resolvidas com ajuda de um supercomputador. Mas os diferentes centros de modelagem – da Europa, Ásia, América Latina, Austrália, África do Sul e dos Estados Unidos – têm cada um seu próprio modelo, desenvolvido pelos seus pesquisadores. Todos esses modelos são utilizados para projetar o clima futuro até 2050 e 2100. Sobre algumas áreas, e para algumas variáveis do clima, os modelos convergem. Todos os modelos apontam redução de chuvas para o leste da Amazônia e o Nordeste e aumento de chuvas para o Sul do Brasil e o norte da Argentina e a costa norte do Peru e do Equador. A tendência dos modelos é a mesma, só os valores obtidos são um pouco diferentes. Em áreas como o Centro-Oeste e o Sudeste alguns modelos mostram mais chuvas e outros menos. Nesses casos, surgem incertezas. Se me perguntarem se vai chover mais ou menos em Brasília nas próximas décadas, tenho que responder que depende do modelo adotado. Alguns apontam aumento de chuvas, outros, diminuição. Na questão da temperatura todos os modelos indicam aquecimento global e regional. Todos. Há consenso. Temos um grau maior de certeza sobre temperatura do que sobre chuvas. Por isso, se fala tanto em aquecimento global.


muito mais barato do que investir em infraestrutura, como construir um dique de concreto na praia. O mangue atua com um filtro, uma esponja, e reduz o risco de enchentes decorrentes da elevação do nível do mar. Na Ponta da Praia, um bairro da cidade, a opção de mitigação discutida era construir um dique, mas os moradores não gostaram de ter uma parede na praia. Disseram que iria ficar feio. No entanto, os estudos indicam que ou se faz um dique ali ou se convive com as enchentes. Ainda é possível evitar que a temperatura média do planeta suba pelo menos 2 graus até o fim do século? Se, nesse momento, todos os países zerassem suas emissões de dióxido de carbono, o CO2, o mundo ainda continuaria aquecendo, pois há muito desse gás armazenado na atmosfera. Em um mundo utópico, as florestas e os oceanos poderiam dar conta de absorver esse CO2 e limpar a atmosfera. Mas isso, infelizmente, não está ocorrendo. Estudos indicam que em algumas áreas o oceano está saturado de CO2 e não consegue absorver mais o gás. Além disso, sabemos que as áreas de floresta estão diminuindo. As pessoas cortam árvores de 50 ou 100 anos e dizem que vão compensar fazendo reflorestamento. O efeito dessa compensação é pequeno. As árvores vão demorar a crescer. O ideal é parar de desmatar e aumentar a área de floresta. Se houver medidas de mitigação intensa, talvez seja possível frear o aquecimento global em 1,5 grau ou, no máximo, 2 graus. Com o aquecimento correndo solto, se a temperatura global aumentar mais de 4 graus, entraremos no que chamamos de mudanças climáticas perigosas. Nesse caso, adaptar-se não será mais possível. Em algumas partes do mundo? Diria que em geral. As pessoas dizem que, se esquentar muito, elas ligam o ar-condicionado. Ocorre que o aparelho precisa de energia elétrica, que depende da hidrelétrica, que depende da chuva. Mas, se ficar muito quente, a água evapora e não fica nas usinas. As pessoas ainda não entenderam a questão da adaptação. Usar caminhão-pipa no Nordeste apenas na época de seca não é adaptação. É paliativo. Adaptação é algo preparado e permanente. Nesse sentido, o que pode

Para o clima, não há diferença alguma se uma árvore foi cortada legal ou ilegalmente

ajudar o mundo é um aumento de grande escala na área de floresta, que absorve gases de efeito estufa. Há quem vislumbre que injetar CO2 em buracos no solo seria uma alternativa de mitigação para combater o aquecimento global. Isso poderia resolver o problema atmosférico e criar um geológico. Há pesquisa séria nessa área, denominada geoengenharia, mas não há resultados concretos de estudos que mostrem que a intervenção funciona. É uma área nova. Nos anos 1970, quando a modelagem climática começou, também ninguém acreditava nela. Hoje todo mundo usa modelagem. Talvez isso venha a ocorrer no futuro com a geoengenharia, mas ainda é cedo para se apostar nela. Alguma parte do Brasil está adaptada a eventos extremos? Em certa medida, parece que agora a Região Metropolitana de São Paulo está adaptada à crise hídrica. As autoridades dizem que melhoraram a rede de distribuição de água, que era muito antiga, e passaram a captar também água do rio Paraíba do Sul. Essa medida pode ser considerada um tipo de adaptação. Mas quais setores podem se adaptar a eventos climáticos extremos? Quando chove muito na cidade de São Paulo as pessoas não conseguem se locomover. Carros são perdidos, os caminhões não conseguem transportar alimentos para os supermercados, os ônibus param, as

pessoas não conseguem trabalhar. Isso ocorre todos os verões. Faz 20 anos que estou no Brasil e sempre vi isso. A cidade não está adaptada a chuvas intensas, que estão aumentando. No pior dos casos, quando a adaptação não é possível, as pessoas podem tentar migrar, como ainda ocorre no Nordeste. Que bons casos de adaptação a mudanças climáticas destacaria no mundo? Veneza é um deles, com a cidade convivendo há tempos com a laguna. Talvez o melhor exemplo seja o da Holanda. A cidade de Amsterdã está abaixo do nível do mar. Sem o dique para segurar a água, a população morre. O país cresceu avançando sobre o mar. Hoje, esse processo seria descrito como uma adaptação. Existem projeções que indicam que tempestades mais intensas vindas do mar do Norte podem chegar à Holanda. E se elas ultrapassarem os diques? Nos Estados Unidos, houve o caso do furacão Katrina em 2005. Seus ventos empurraram o rio Mississipi sobre as paredes dos diques que protegiam Nova Orleans. Eles resistiam a furacões da categoria 3, mas o Katrina chegou à categoria 5. A cidade ficou alagada e morreram 1.500 pessoas. Isso ocorreu em um país do chamado Primeiro Mundo. Os países pobres serão os mais afetados pelas mudanças climáticas? As mudanças no clima são democráticas. Afetam pobres e ricos. A agenda ambiental é maravilhosa. Mas, com a crise econômica que houve recentemente na Europa e nos Estados Unidos, ela ficou em segundo plano. A economia baseada no carbono gera muitos empregos e os governos preferem combater a crise recorrendo ao estímulo de atividades que são poluidoras. Foi por isso que os Estados Unidos não ratificaram o protocolo de Kyoto e deixaram o acordo do clima de Paris. No Brasil, não é muito diferente, embora o país continue como signatário dos acordos internacionais sobre clima. O Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento ilegal. Mas, para mim, o mais correto seria simplesmente zerar o desmatamento, qualquer desmatamento, legal ou ilegal. Para o clima, não há diferença alguma se uma árvore foi cortada legal ou ilegalmente. Se ela foi cortada, deixa de ser um agente contrário ao aumento do efeito estufa. n PESQUISA FAPESP 273 | 29


aquecimento global

Metrópoles mais quentes e secas

Simulações indicam aumento na temperatura e redução pela metade da chuva em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Santos até o fim do século Marília Carrera

N

o cenário mais pessimista simulado pelo último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), as emissões de gases de efeito estufa não parariam de aumentar até o fim do século e a temperatura média da atmosfera do planeta seria, em 2100, cerca de 4 °C maior do que a atual. Se esse quadro climático global se materializar nas próximas décadas, as temperaturas máximas poderão aumentar até 9 ºC no verão e a chuva se reduzir pela metade nas duas maiores regiões metropolitanas do país, São Paulo e Rio de Janeiro, e no município paulista de Santos, onde funciona o mais importante porto brasileiro. O valor das temperaturas mínimas nessas áreas também deverá subir aproximadamente 4 ºC até o fim do século, sinalizando a vigência de invernos menos frios. Essas projeções para setores do Sudeste constam de um trabalho publicado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres 30 | novembro DE 2018

Naturais (Cemaden) na edição de abril do periódico Theoretical and Applied Climatology. “Se o cenário atual de emissão de gases de efeito estufa se mantiver, a probabilidade de os dados do estudo se tornarem realidade será provavelmente alta”, comenta o meteorologista André Lyra, que faz estágio de pós-doutorado no Inpe, primeiro autor do estudo. A equipe brasileira realizou simulações do que poderá ocorrer com as temperaturas e os índices de pluviosidade nessas três áreas metropolitanas em duas possíveis conjunturas climáticas globais formuladas pelo IPCC: o cenário mais pessimista, denominado tecnicamente RCP8.5, e o mais otimista, o RCP4.5. Nesse segundo caso, as emissões de gases de efeito estufa parariam de crescer a partir da década de 2040. No entanto, mesmo quando esse quadro futuro menos alarmante é usado como pano de fundo para rodar o modelo climático de escala regional Eta, desenvolvido em parte pelo Inpe, os resultados das projeções não se alteraram substancialmente. Ainda assim, a temperatura máxima em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Santos sobe até 7 ºC

e as chuvas se reduzem pela metade, embora a diminuição de pluviosidade atinja uma fração menor da área das regiões metropolitanas. Esses cenários apresentam algum grau de incerteza, mas sinalizam que mudanças climáticas, mais ou menos intensas, são prováveis. No trabalho, foi usada uma versão aprimorada do Eta com resolução espacial de 25 quilômetros quadrados (km2), equivalente a um quadrado com lados de 5 km de comprimento. A versão anterior do Eta tinha resolução de 400 km2 (quadrado com faces de 20 km). “O novo modelo é importante para entender melhor os impactos do clima sobre alguns aspectos da topografia da América do Sul”, afirma a meteorologista Chou Sin Chan, coautora do trabalho, também do Inpe. “Um estudo com resolução de 5 km possui maior nível de detalhamento que um de 20 km.” Nessa versão do Eta, há menos erros de cálculo para previsões climáticas feitas em áreas de topografia íngreme. Esse aprimoramento é importante quando se trabalha com áreas situadas perto de zonas montanhosas, como as serras do Mar e da Mantiquei-


léo ramos chaves

A capital paulista pode ter ondas de calor de aproximadamente 60 dias até o final do século, segundo algumas projeções

ra, que se encontram nos arredores da área do estudo. As projeções do clima futuro nas três regiões metropolitanas foram confrontadas com dados do período histórico do próprio modelo, de 1961 a 1990, que serviu de base de comparação. As projeções foram divididas em três ciclos, 2011–2040, 2041–2070 e 2071–2100. Além da tendência geral de aumento de temperatura e de redução de chuvas, o trabalho aponta para a intensificação de eventos extremos, como secas prolongadas e tempestades mais intensas. Na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, as ondas de calor podem se estender por mais de 60 dias e as de frio se prolongar por mais de três dias por volta de 2100. O trabalho também aponta a tendência de haver dias e noites mais desconfortáveis nas três áreas analisadas, com alta demanda por equipamentos de resfriamento e elevado consumo de energia, tornando mais frequente um ce-

nário que pode causar riscos potenciais à saúde de populações idosas e pobres. “Os extremos afetam mais as nossas vidas”, considera a meteorologista Claudine Dereczynski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coautora do estudo. “A ocorrência de mais situações desse tipo chama mais a atenção para as mudanças climáticas do que alterações na média da precipitação ou da temperatura.” Também é possível, segundo as simulações, que chuvas extremamente fortes se intensifiquem ao redor de áreas montanhosas e provoquem deslizes de terra frequentes até o final do século XXI. Para Claudine, as projeções futuras apresentam grau de confiabilidade maior no que diz respeito a variações de temperatura do que de pluviosidade. O estudo enfatiza que a alta densidade populacional nas regiões metropolitanas do Rio e de São Paulo, onde vivem 33 milhões de pessoas, gera apropriação indevida e degradação intensa de recursos naturais. “Estudos sobre mudanças climáticas dependem muito da aceitação de diferentes setores econômicos e da conscientização da gestão pública sobre a

importância de se desenvolver ações para mitigar os efeitos da emissão de gases de efeito estufa”, afirma o sociólogo Pedro Roberto Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE- USP). “Observamos que os municípios até podem desenvolver ações de descarbonização em escala local, como o controle da erosão com alterações na legislação do uso do solo ou melhorias na política de resíduos sólidos. Porém, são necessárias medidas em âmbito global, que dependem de acordos entre países, para mitigar as mudanças climáticas.” n

Projeto Uma estrutura integrada para analisar tomada de decisão local e capacidade adaptativa para mudança ambiental de grande escala: Estudos de caso de comunidades no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos (nº 12/51876-0); Modalidade Projeto Temático; Acordo FAPESP-Belmont Forum; Pesquisador responsável José Marengo (Cemaden); Investimento R$ 711.506,53.

Artigo científico LYRA, A. et al. Climate change projections over three metropolitan regions in Southeast Brazil using the non-hydrostatic Eta regional climate model at 5-km resolution. Theoretical and Applied Climatology. v. 132, n. 1-2, p. 663-82. abr. 2018.

PESQUISA FAPESP 273 | 31


Tempo de colher Com ambição de quadruplicar o capital de investidores, fundo paulista busca consolidar 20 empresas inovadoras Fabrício Marques 32  z  novembro DE 2018

ilustração sobre foto de léo ramos chaves

política c&T  Financiamento y


O

Fundo de Inovação Paulista (FIP), que investe capital de risco em empresas nascentes do estado de São Paulo, ingressou em uma segunda etapa de atividade, depois de dedicar seus primeiros anos à análise de mais de 1,6 mil oportunidades de negócios para selecionar um portfólio de 20 companhias. Agora, seus gestores se concentram em estimular o crescimento das startups apoiadas, ajudando a administrá-las, para mais tarde vender sua participação, que é em média 35% do capital das empresas. O fundo vai encerrar sua operação em dezembro de 2021 e tem a meta de quadruplicar o capital. “Estão sendo aplicados R$ 105 milhões. Nosso objetivo é devolver R$ 420 milhões aos investidores”, diz Francisco Jardim, responsável pela SP Ventures, empresa gestora do fundo. A previsão é de que o investimento tenha um retorno médio de 35% ao ano, embora o desempenho não seja homogêneo ao longo do tempo e se concentre na etapa final. Espera-se uma taxa de mortalidade ou insucesso de cerca de um terço das companhias selecionadas. “Um terço das

x

Os investidores A composição do Fundo de Inovação Paulista Agência Desenvolve SP

R$ 25 milhões

Finep

R$ 20 milhões

Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF)

R$ 20 milhões

Jive Investments

R$ 20 milhões

FAPESP

R$ 10 milhões

Sebrae

R$ 10 milhões

TOTAL

R$ 105 milhões

fonte Fundo de Inovação Paulista

pESQUISA FAPESP 273  z  33


O

capital do fundo provém de agências de apoio a ciência, tecnologia e inovação, como a Desenvolve SP, vinculada ao governo do estado de São Paulo, que investiu R$ 25 milhões, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), com R$ 20 milhões, e a FAPESP, com R$ 10 milhões. Também contribuíram para o patrimônio do FIP o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), com R$ 20 milhões, a gestora de fundos privados Jive Investments, com R$ 20 milhões, e o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com R$ 10 milhões. É certo que o objetivo do FIP vai além de multiplicar o investimento. Como há uma grande parcela de recursos públicos em sua composição, existe a preocupação de desenvolver ecossistemas locais de inovação e estimular novos negócios em São Paulo. Em Piracicaba, a SP Ventures criou em colaboração com a Raízen, joint venture entre Cosan e Shell e maior produtora e exportadora de açúcar e etanol do mundo, uma aceleradora de startups do agronegócio, batizada de Pulse Hub. Também se tornou parceira de outra iniciativa desse tipo na cidade, a Usina de Inovação. Cinco empresas financiadas instalaram-se ou se beneficiam desses espaços O FIP foi lançado em 2013 e o principal desafio dos gestores foi escolher as empresas em um ambiente de contínua retração econômica. A atmosfera hostil levou a uma mudança no perfil do fundo. A ideia inicial era de que empresas de tecnologia para agronegócio respondessem por 30% a 50% do portfólio – segmentos como tecnologias de informação e comunicação, saúde e novos materiais complementariam o investimento. Mas em 2016 os gestores decidiram intensificar a aposta na agropecuária e a proporção de recursos direcionados a empresas de tecnologia para o agronegócio alcançou 73% dos investimentos aprovados. “Está havendo uma revolução digital no campo e identificamos no agronegócio o maior potencial de retorno. É um segmento em que o Brasil tem um mercado doméstico enorme e uma tendência agressiva de consumir tecnologia. Em 2017, o agronegócio cresceu 13% no Brasil enquanto os setores industrial e de serviços ficaram patinando. Concluímos que a convergência entre

34  z  novembro DE 2018

o agronegócio e a tecnologia estava relativamente imune às turbulências macroeconômicas do país”, diz Francisco Jardim. Das 477 empresas de tecnologias agropecuárias analisadas, 12 foram selecionadas, ou 2,5% do total (ver quadro). Essa taxa de aproveitamento foi superior à das empresas de tecnologia da saúde (1% das avaliadas) e de tecnologia de informação para empresas (0,75%). Nenhuma das 187 empresas de novos materiais e nanotecnologia analisadas acabou escolhida. As vulnerabilidades das startups rejeitadas estavam relacionadas principalmente à falta de competitividade de suas tecnologias e à saturação do mercado em que atuam. Apesar das dificuldades na economia, o montante investido por fundos de capital de risco em empresas nascentes É O RETORNO do Brasil cresceu significativamente ESPERADO em 2017 em relação ao ano anterior. De acordo com a aceleradora de start­ DO INVESTIMENTO ups ACE, o investimento em Venture FEITO pelo Capital no país alcançou R$ 2,18 bilhões no ano passado, sendo R$ 2,054 bilhões de FUNDO investimentos estrangeiros e R$ 131 milhões nacionais. Em 2016, o total foi de R$ 1,4 bilhão em 2016 e em 2013, de apenas R$ 256 milhões (ver quadro). Os dados foram obtidos na plataforma de informações comerciais Crunchbase. De acordo com Guilherme Lima, gerente de portfólio da ACE, o crescimento recente esteve associado ao surgimento dos primeiros unicórnios brasileiros – empresas com mais de US$ 1 bilhão de valor antes da abertura de capital – que foram o NuBank e a 99 no primeiro trimestre de 2018,

R$

420 MI

Polos tecnológicos A localização das empresas avaliadas pelo FIP

São Paulo

52%

Campinas

8%

Ribeirão Preto-Jaboticabal

4%

Piracicaba

3%

São José dos Campos

3%

São Carlos

2%

Sorocaba

1%

Bauru-Botucatu

1%

São José do Rio Preto

1%

Marília

1%

Outros

24%

fonte Fundo de Inovação Paulista

ilustração sobre foto de léo ramos chaves

empresas deve gerar prejuízo. Outro terço deve dar um retorno baixo e recompensar o capital investido apenas com um resultado incremental. E do outro terço esperamos um desempenho extraordinário, multiplicando o investimento entre 5 e 30 vezes”, explica Jardim. Segundo ele, essa taxa de fracasso é natural e esperada. “O risco gera fracassos, mas também é o que viabiliza o grande sucesso de algumas companhias.” Uma das empresas da carteira do fundo, a SmartBill, que havia sido selecionada em 2014, já foi vendida.


Portfólio de startups As 20 empresas selecionadas e o investimento em cada uma delas até agora

Promip S.A.

Genotyping

Aegro

Sede: Limeira (SP)

Sede: Botucatu (SP)

Sede: Piracicaba (SP) e

Área: defensivos agrícolas biológicos

Área: análises genéticas em

Porto Alegre (RS)

Investimento:

saúde humana e agricultura

Área: software em nuvem para

R$ 13 milhões

Investimento:

planejamento e controle

R$ 4 milhões

financeiro de atividades agrícolas Investimento:

Inprenha Biotecnologia

R$ 6 milhões

Sede: Jaboticabal (SP)

Lupeon

Área: reprodução artificial

Sede: São Paulo (SP)

de animais de criação

Área: software de gestão de

Bom pra crédito

Investimento:

fretes rodoviários

Sede: São Paulo (SP)

R$ 6 milhões

Investimento:

Área: intermediação de

R$ 2,5 milhões

crédito e análise de risco Investimento:

Concil

R$ 1,5 milhão

Sede: São Paulo (SP)

Moneto

Área: software de gestão financeira

Sede: São José dos Campos (SP)

Investimento:

Área: gestão on-line e

Bart Digital

R$ 4 milhões

cobranças e pagamentos para

Sede: Indaiatuba (SP)

pequenas empresas

Área: plataforma de crédito

Nexxto

Investimento:

para compra de insumos agrícolas

Sede: São Paulo (SP)

R$ 2,7 milhões

Investimento: R$ 2,2 milhões

Área: soluções baseadas em internet das coisas

Agrosmart

Investimento:

Sede: Campinas (SP)

Gênica Inovação

R$ 3,5 milhões

Área: monitoramento do

Biotecnológica

clima e do consumo de água

Sede: Piracicaba (SP)

Ventrix

em propriedades agrícolas

Área: defensivos agrícolas biológicos

Sede: Santa Rita do Sapucaí (MG)

Investimento:

Investimento:

Área: equipamentos de

R$ 9,5 milhões

R$ 6 milhões

Investimento:

InCeres

SpecLab

R$ 2,5 milhões

Sede: Piracicaba (SP)

Sede: Sumaré (SP)

Área: software para agricultura

Área: plataforma tecnológica

Smartbill *

de precisão

para análise de solos

Sede: São Paulo (SP)

Investimento:

Investimento:

Área: software de controle

R$ 5 milhões

R$ 4,5 milhões

faturamento

Agronow

JetBov

Investimento:

Sede: São José dos Campos (SP)

Sede: Piracicaba (SP) e Joinville (SC)

R$ 3 milhões

Área: software de produtividade

Área: plataforma em nuvem para

* A empresa foi vendida

agrícola

gestão de pecuária de corte

para o grupo Vindi

Investimento:

Investimento:

R$ 4 milhões

R$ 2,7 milhões

telemedicina em cardiologia

de contrato, cobrança e

Horus Aerial Solutions

Asolum Agricultura

Sede: Piracicaba (SP)

Tecnológica

Área: drones e softwares

Sede: Jundiaí (SP)

de monitoramento agrícola

Área: tecnologia para produção

Investimento:

doméstica de hortaliças

R$ 3 milhões

Investimento: R$ 1 milhão pESQUISA FAPESP 273  z  35


além das ofertas públicas iniciais de ações de empresas de tecnologia como PagSeguro, NetShoes, Banco Inter. “O Brasil lidera, de longe, o caminho dos investimentos VCs na América Latina”, escreveu Lima no site da ACE. Ainda seSTARTUPS gundo dados do Crunchbase, 76% dos investimentos em VC FORAM na América Latina tiveram o SELECIONADAS Brasil como alvo em 2017 – a Colômbia aparece em seEM 2017 gundo lugar, com 14,1%, e o México em terceiro, com 7,5%. Em 2017, foram selecionadas sete novas start­ ups para completar o portfólio do fundo. Elas atuam em negócios como sistemas de gestão em nuvem para fazendas, produtos microbiológicos, análise de solos, gestão e manejo da agropecuária, e também há uma fintech para registrar e gerir o financiamento a empresas agrícolas. Das empresas que já estavam sendo apoiadas, três especialmente promissoras foram alvo de uma nova rodada de investimentos. A Agrosmart, que já recebera R$ 2,5 milhões em 2015, foi contemplada agora com mais R$ 7 milhões. Fundada em 2014, a empresa foi incubada na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, e hoje tem sede em Campinas. Desenvolveu softwares e serviços tecnológicos, baseados na coleta e análise de dados em propriedades rurais, voltados para monitorar o clima de propriedades

7

rurais e recomendar estratégias de irrigação e aplicação de pesticidas, além de apontar o risco de surgimento de pragas. Já conta com grandes clientes como Syngenta, Raízen, Coca-Cola e DuPont. A empresa foi convidada a participar de um programa de transferência de tecnologia da Agência Espacial Norte-americana (Nasa) e participou de programa de aceleração do Google. De acordo com Francisco Jardim, da SP Ventures, o grande desafio da companhia é enfrentar a falta de conectividade no campo. “Mas o potencial desenvolvido pela equipe e a oportunidade de mercado nos convenceram de que existe uma probabilidade positiva de essa empresa se tornar o primeiro grande caso de sucesso da agrotecnologia nacional”, afirma.

A

Promip Manejo Integrado de Pragas, que já havia recebido R$ 4 milhões em 2014, levou mais R$ 9 milhões. O risco do investimento é considerado baixo, porque a empresa já está estruturada – tem sede em Limeira, uma unidade em Conchal e uma fábrica em Engenheiro Coelho, interior paulista, onde trabalham 100 colaboradores –, e atua em um mercado que está em crescimento. A Promip comercializa cinco defensivos agrícolas biológicos. Seus dois primeiros produtos, que contêm ácaros predadores para controle de uma praga de hortaliças, foram desenvolvidos com financiamento do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, quando a Promip ainda estava instalada na incubadora da Esalq-USP. Até hoje, acumula sete projetos financiados pelo programa.

Prospecção de negócios Oportunidades analisadas e empresas contempladas pelo fundo Área

Empresas avaliadas

Tecnologia da informação

Tecnologias

6

202 799

agropecuárias Tecnologias em saúde

2

187

para empresas

Empresas escolhidas

477

12

Novos materiais e nanotecnologia TOTAL 1.665 fonte Fundo de Inovação Paulista

36  z  novembro DE 2018

TOTAL 20


Investimentos de capital de risco no Brasil Evolução da atividade de Venture Capital (em milhões de R$)

88

2.1

58

1.5

01

1.4

6

78

3

35 83

1

6

25

35 2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

fonte ACE/Crunchbase

“Nossa expectativa é dar um retorno de 20 vezes o capital investido, pois estamos trabalhando em duas frentes com alto potencial de crescimento: a venda de produtos biológicos a agricultores e a prestação de serviços a grandes empresas do agronegócio”, explica Marcelo Poletti, que criou a Promip com dois sócios em 2006 depois de concluir um doutorado em entomologia na Esalq-USP. Também fazem parte da carteira de investimentos do FIP outras empresas apoiadas pelo Pipe. Uma delas é a Nexxto, criada em São Paulo em 2010, que produz ferramentas baseadas em internet das coisas, como um sistema capaz de monitorar temperatura e umidade de aparelhos que acondicionam alimentos perecíveis, como freezers, balcões refrigerados e câmaras frias (ver Pesquisa FAPESP nº 271). Outro exemplo é a Inprenha Biotecnologia, de Jaboticabal, empresa de reprodução animal, que desenvolveu um método para elevar a taxa de sucesso das técnicas de reprodução artificial de animais de criação. Já no caso da Aegro, o investimento do FIP. subiu de R$ 2,2 milhões para R$ 6 milhões. A empresa criou um software em nuvem para planejamento e controle financeiro das atividades agrícolas. Fundada por quatro cientistas gaúchos da computação, a empresa tem escritórios em

Porto Alegre e Piracicaba. A ferramenta, que é acessível via internet em computadores e telefones celulares, ajuda a fazer o planejamento de safra, controle orçamentário, aplicação de fertilizantes e defensivos, análise de rentabilidade de cada parte da propriedade, entre outros. A Aegro já dispõe de 500 assinantes do serviço e vê potencial para chegar a 1,5 mil clientes no ano que vem. “As decisões econômicas tomam um tempo enorme de trabalho dos agricultores. Criamos um aplicativo bem mais simples que os softwares de gestão, que permite avaliar o desempenho do negócio agrícola e tomar decisões mais rapidamente”, diz Pedro Martins Dusso, diretor-executivo da Aegro. Para o FIP, a empresa tem um potencial elevado de crescer sem depender de uma força comercial que vá a campo em busca de clientes – as vendas são feitas por telefone. Outras empresas apoiadas pelo fundo também oferecem ferramentas que integram ciência de dados ao agronegócio. A Agronow, com sede em São José dos Campos, criou um algoritmo capaz de indicar ao produtor, com até 95% de certeza, qual será a sua colheita ao final da safra – isso, com meses de antecedência. A metodologia combina dados de um banco de informações, diversas variáveis, imagens de satélite, e já era utilizada pelos sócios da empresa em serviços de consultoria. O aporte total de R$ 4 milhões feito pelo FIP permitiu transformar a ferramenta em produto. “A princípio, pensamos em vender a nossa solução para agricultores, mas logo identificamos outro tipo de público-alvo, como bancos, seguradoras e analistas de crédito, que buscavam novas formas de avaliar os riscos de operação de crédito agrícola”, conta Walkiria Sassaki, sócia da Agronow. Para se dedicar ao aperfeiçoamento do algoritmo, seu criador, o biólogo e mestre em ciências agrárias pela Esalq/USP Antônio Morelli, afastou-se da administração da empresa e trouxe como diretor-geral, o executivo Rafael Coelho, que já era um investidor-anjo da empresa.

O

trabalho do Fundo de Inovação Paulista é apoiado por oito analistas. O tempo de escolher empresas promissoras já passou. O trabalho agora é fazer com que bons resultados surjam e se consolidem. “Hoje, dedicamos nosso tempo para apoiar as startups que estão no nosso portfólio. Participamos do conselho de administração de todas elas, ajudamos a contratar talentos capazes de incentivar o crescimento dos negócios e a levantar mais recursos privados para que elas possam crescer”, explica Francisco Jardim. “Conversamos com os empreendedores o tempo todo via WhatsApp, fazemos visitas quinzenais e reuniões de acompanhamento mensais. Participamos do dia a dia das empresas como sócios.” n pESQUISA FAPESP 273  z  37


Inovação y

Babel de startups Chile atrai empreendedores de países diversos para programa de apoio a empresas nascentes em Santiago

E

m um prédio no centro de Santiago, o entra e sai de pessoas de diferentes nacionalidades se tornou parte da rotina. Pelo menos 50 empreendedores de diversos países distribuem-se pelas estações de trabalho disponíveis em um andar inteiro ocupado pela Start-up Chile, um centro de inovação criado pelo governo chileno em 2010. Cerca de 1.400 novos negócios contaram com apoio do hub de empreendedorismo desde sua fundação. Geralmente, mais de 200 startups passam pelos programas de aceleração todos os anos – ainda que só uma parte delas fique abrigada no prédio. Mais da metade dessas empresas segue em frente e continua ativa – desde 2010, elas foram capazes de criar cerca de 1.500 empregos no Chile e 5 mil no mundo. O principal objetivo da aceleradora é incentivar o ambiente empreendedor e a geração de tecnologia, procurando colocar o país no mapa dos negócios globais de impacto. “Há alguns anos, mal se ouvia falar de startups no Chile, mas hoje o cenário é bem diferente”, conta Sebástian Diaz, diretor-executivo. A Start-up Chile já forneceu mentoria e recursos para empresas de 79 países, com investimentos da ordem de US$ 420 38  z  novembro DE 2018

milhões. “Desde o início estimulamos a criação de um ecossistema internacional, com empreendedores de várias partes do mundo, para facilitar o fluxo de novas ideias.” O governo chileno é apontado como um dos que mais investem em negócios inovadores no mundo atualmente. Um estudo da Gust and Fundacity, rede social que conecta investidores e start­ ups, colocou o Chile como um dos 10 países mais promissores em empreendedorismo em 2015. Há dois anos, o Global Innovation Management Institute, instituição norte-americana sem fins lucrativos, nomeou a Start-up Chile como uma das 10 melhores aceleradoras do mundo. “Cada vez mais, é estratégico criar ferramentas para estimular a inovação e, assim, competir globalmente”, explica Diaz. Cerca de 30% do total de recursos disponíveis para os empreendedores que participam dos programas de aceleração são fornecidos pelo governo chileno. O restante vem de investidores do mundo todo, interessados em apoiar negócios com boas chances de crescimento. Além dos aportes financeiros, a Start-up Chile oferece mentoria e acesso a redes de contatos que auxiliam o

foto Start-up Chile ilustraçãO  veridiana scarpelli

Carla Aranha


Turma de empreendedores selecionados pelo programa Start-up Chile

empresário a levar sua ideia adiante. A entidade tem parceria com mais de 100 universidades e aceleradoras do mundo todo, além de 150 mentores globais, 107 grandes corporações e 43 organizações do campo da inovação. Foram criadas algumas facilidades para empreendedores de outros países terem condição de participar dos programas. Os estrangeiros selecionados pela Start-up Chile usufruem de um visto de trabalho especial, de um ano, e contam com o apoio da aceleradora para abrir uma conta bancária em nome da empresa. Os critérios de participação são os mesmos para quem vem de fora e para chilenos. Eles podem participar de dois tipos de programa. O The S Factory, direcionado a mulheres, proporciona cerca de US$ 15 mil às empreendedoras selecionadas. Um dos principais pré-requisitos é ter uma ideia inovadora, capaz de provocar impacto global. O período de assistência é de quatro meses. O Seed (semente, em inglês), com duração de seis meses e aportes de US$ 40 mil por empresa, é voltado a iniciativas em um estágio mais avançado, que já desenvolveram um protótipo e um plano de negócios. Até 2016, a Start-up Chile oferecia também um módulo para empresas no Chile, o Follow on Funds, que passou a ser administrado por outro órgão do governo chileno. Em 2017, 90 startups passaram pelo The S Factory e o Seed. Uma das participantes foi a administradora de empresas pernambucana Rafaela Cavalcanti. Sua história como empreendedora começou há alguns anos, ao acompanhar de perto a dificuldade de seus pais, donos de uma loja de roupa em Recife, em obter crédito junto ao sistema bancário. “Depois de alguns assaltos em que boa parte do estoque foi roubado, eles precisaram recorrer a agiotas para pagar as dívidas”, conta. “Muitas famílias passam pela mesma situação.” Rafaela fez um curso de pós-graduação em administração de empresas na Holanda e se dedicou a estudar o peso de aspectos culturais no desenvolvimento de empresas inovadoras. Foi quando surgiu a ideia de criar a CloQ, startup especializada na concessão de microcrédito. Rafaela recorreu à aceleradora chilena para dar os primeiros passos no negócio. “Há vários benefícios, como as mentorias internacionais, a rede de conpESQUISA FAPESP 273  z  39


tatos e a possibilidade de obter aportes financeiros para começar a empreitada”, explica Rafaela. “Impressiona a falta de burocracia para conseguir o visto, que sai em menos de um mês, e para abrir uma conta bancária.” Ela conta que os empreendedores da aceleradora só precisam apresentar o passaporte para ter uma conta no banco. “O processo para obter o visto também é simplificado”, diz. “Não é necessário fazer uma tradução juramentada de documentos, como em outros países.”

Impacto econômico Indicadores da Start-up Chile

Empregos gerados

1.562 no Chile Capital investido

mais de

5 mil no mundo

US$ 30,5 milhões

A

CloQ captou aproximadamente US$ 15 mil durante o período de incubação. Os recursos foram utilizados para desenvolver um aplicativo que cruze dados, verifique informações, que vão desde o endereço cadastrado até o número de documentos e do telefone fornecido, e analise o perfil do usuário. “A partir daí é possível prever o quanto a pessoa será uma boa pagadora.” O aplicativo utiliza um sistema de GPS para verificar se o endereço informado está correto. Um programa de identificação facial permite saber se a foto do documento de identidade postada no aplicativo é real. Depois de uma fase de testes, em que foram realizados alguns ajustes, o aplicativo começou a ser utilizado em outubro deste ano. São feitos empréstimos de R$ 150 a R$ 500, por meio de uma parceria com uma instituição bancária brasileira. A empresa não revela o quanto pretende faturar em 2019, mas afirma que há um mercado potencial de mais de 50 milhões de clientes no Brasil. “Esse é o número estimado de pessoas que não possuem conta bancária e, portanto, têm mais dificuldade em obter crédito”, diz. “Muitas vezes, o micro ou nanocrédito, de valores considerados mais baixos, é o que faz diferença na vida de alguém.” A intenção é levar o negócio para outros países da América Latina nos próximos anos. A Nocofio, fundada por um empreendedor de Gana, na África, tem vocação parecida. O engenheiro da computação Lovell Larbie criou recentemente uma plataforma de financiamento coletivo para fornecer capital de giro a pequenos proprietários rurais do país. Geralmente, são arrecadados cerca de US$ 5 mil para cada fazendeiro que tem sua solicitação de crédito aprovada pela empresa. “Esse valor costuma ser suficiente para o agri-

40  z  novembro DE 2018

Vendas obtidas pelas startups

US$ 143 milhões no mundo US$ 42,6 milhões no Chile

cultor comprar os insumos necessários para profissionalizar a produção”, conta Larbie. Em Gana, boa parte dos produtores rurais ainda pratica a agricultura de subsistência. “São propriedades de tamanho reduzido, mas com possibilidades reais de aumentar a produtividade e movimentar a economia”, explica. O empréstimo envolve uma monitoria dos progressos feitos pelo produtor. O objetivo é que 40% do aporte realizado seja devolvido aos credores, somado a uma participação nos lucros. “Acompanhamos de perto os nossos clientes e procuramos oferecer um monitoramento da gestão”, diz Larbie. A empresa fica com uma porcentagem das transações. Em operação desde o início do ano, a Nocofio já atendeu 23 fazendeiros. A receita nos primeiros oito meses de operação foi de US$ 11 mil. “Podemos crescer muito mais”, afirma o idealizador. “É preciso ressaltar que o negócio tem uma forte vertente social e já está gerando um impacto positivo.” Para desenvolver a plataforma, a Nocofio obteve recursos financeiros da ordem de US$ 40 mil por meio de investidores que procuram a

Start-up Chile, onde a empresa ficou incubada no ano passado. “Foi importante também contar com a ajuda de mentores tão competentes e testar a plataforma até termos condições de colocar o negócio para rodar”, conta. “Muitos empreendedores consideram a Start-up Chile o canal ideal para concretizar projetos de alto impacto social e econômico”, diz Sebástian. A Cabify, aplicativo de car sharing fundada por um espanhol em 2011, é uma das empresas que participaram dos programas de aceleração da incubadora. A Start-up Chile é apontada como uma das maiores aceleradoras do mundo, ao


País de origem dos empreendedores

2% 12%

6%

3%

6%

3%

37%

6% 9%

3%

14%

ilustraçãO  veridiana scarpelli

Fonte  Start-up Chile

lado da americana MassChallenge, que tem filiais em Israel, no México e na Suíça, e da Y Combinator, da Califórnia, uma das pioneiras do segmento, que já investiu em cerca de 1.400 startups. Na América Latina, a Wayra da Telefonica, fundada na Colômbia em 2011, já apoiou mais de 70 empresas brasileiras por meio do escritório em São Paulo, com recursos da ordem de US$ 50 mil para cada uma. “A Start-up Chile proporciona programas com amplos recursos e atraímos empreendedores muito capacitados”, diz Sebástian. Um deles é o geólogo chileno Pablo Perez, que fundou a Mapoteca. A startup produz análises topográficas a partir da análise de imagens obtidas por satélites. Os principais clientes são empresas de distribuição de energia. A Mapoteca consegue identificar elementos que podem danificar a rede elétrica, como árvores prestes a cair e problemas na fiação. Também é possível descobrir focos de incêndio. A empresa está desenvolvendo um software que vai fazer uma classificação de risco. Ela participou do programa Seed e conseguiu captar cerca

Cerca de 30% dos recursos disponíveis para o programa são fornecidos pelo governo chileno

de US$ 16 mil para desenvolver os primeiros módulos de análise. Perez trabalhou 10 anos em uma empresa de energia elétrica no Chile e percebeu que havia demanda por tecnologias capazes de detectar falhas na rede de distribuição e evitar perdas. Ele se associou a um amigo dos tempos da faculdade, em Santiago, Cris Hernández, com conhecimentos de TI, para levarem a ideia adiante. “Fazer parte do sistema Start-up Chile é uma espécie de selo de qualidade”, diz Perez. “Esse foi um dos motivos que nos levou a procurar a aceleradora.” A rede de contatos da organização também ajudou o empreendimento

a decolar. “As empresas que podem ser nossos clientes nos recebem de outra maneira”, conta Perez. Este ano, a Mapoteca, que conta com seis funcionários, espera obter uma receita de US$ 80 mil. Em 2019, o faturamento poderá chegar a US$ 300 mil. Boa parte desse resultado virá de contratos assinados com novos clientes no Chile e Peru. Perez afirma que há potencial de crescimento para o negócio em países como Brasil, Uruguai e Argentina. “Especialmente no Brasil, existe um mercado de energia elétrica bastante forte, com perspectivas de expansão.”

C

om uma economia aberta e estável, o Chile vem atraindo empreendedores de outros países. Possui um dos índices mais altos do mundo de acordos de livre comércio – são mais de 20, com 60 nações. As importações e exportações representam quase 60% do PIB chileno. A taxa básica de juros é de 2,5% ao ano, o que torna o crédito atraente. O empreendedor alemão Tilmann Heydgen levou esses elementos em consideração ao decidir criar a Recorrido, site de comparação de preços e venda de passagens de ônibus, junto com três amigos alemães. Em 2012, eles foram passar férias no Chile e tiveram dificuldade de comprar bilhetes pela internet. “Não aceitavam cartão de crédito e exigiam um documento de identidade chileno”, conta Tilmann. Eles trabalhavam em bancos de investimento em Frankfurt e já tinham ouvido falar da Start-up Chile. Depois de um estudo de mercado, decidiram apresentar o projeto da Recorrido para a aceleradora. “Não fomos aceitos na primeira tentativa. Aprimoramos a ideia até sermos aprovados em 2014”, lembra. “Sabíamos que havia um bom potencial de negócios no Chile e o hub de inovação era conhecido mundialmente.” Em duas rodadas de investimentos, a Recorrido foi capaz de levantar cerca de US$ 100 mil para construir o site. A empresa não revela o faturamento. Hoje, está em operação no Chile e no Peru. No ano que vem, pretende adaptar a plataforma para os mercados brasileiro, argentino e colombiano. “Ainda temos muito a crescer, principalmente na América Latina”, diz Tilmann. “Em Santiago, temos uma boa qualidade de vida e perspectiva de desenvolvimento.” n pESQUISA FAPESP 273  z  41


Indicadores y

O retrato de

2017

Relatório de atividades mostra que a FAPESP ampliou apoio a pesquisas ousadas e em parceria com empresas

Fabrício Marques

A

FAPESP investiu, em 2017, R$ 1.058.591.892 em 26.026 projetos de pesquisa científica e tecnológica, dos quais 10.186 foram propostas novas, contratadas ao longo do ano, e o restante em projetos já vigentes. Em termos nominais, o desembolso ficou 6,9% abaixo do registrado em 2016, que foi de R$ 1.137.355.628 aplicados em 26.445 projetos, sendo 10.480 novos contratos. Esse balanço consta do Relatório de atividades FAPESP de 2017, divulgado em agosto, cuja íntegra está disponível em fapesp.br/publicações – neste endereço também é possível consultar as sínteses anuais da Fundação desde 1962, ano em que suas atividades tiveram início. Quando começou a funcionar, a FAPESP recebeu do governo estadual uma dotação de US$ 2,7 milhões para a formação de um patrimônio rentável e passou a contar com um orçamento anual baseado na transferência de 0,5% da receita tributária do estado. Por determinação da Constituição estadual de 1989, o percentual cresceu para 1%, para ser investido 42  z  novembro DE 2018

em pesquisa científica e tecnológica. A receita total da FAPESP em 2017 alcançou R$ 1.338.994.358, ante R$ 1.344.197.902 no ano anterior. O repasse feito pelo Tesouro paulista em 2017 foi de R$ 1.111.410.356, valor 5% superior, em termos nominais, à transferência realizada em 2016, de R$ 1.057.714.553. Esse montante foi responsável por 83% da receita da Fundação em 2017 – a receita foi complementada com R$ 129.959.471, provenientes de recursos da própria FAPESP, que mantém patrimônio rentável para financiar parte de suas atividades. Em 2016, esses recursos patrimoniais da Fundação haviam tido um peso menor na receita e somaram R$ 71.328.947. Uma terceira fonte de recursos provém de acordos e convênios com outras agências, instituições e empresas. Em 2017, eles foram de R$ 97.624.721, menos da metade dos R$ 215.154.402 obtidos em 2016. Apesar da redução dos recursos de convênios com outras instituições, a FAPESP conseguiu ampliar o apoio a pesquisas de caráter mais ousado da comunidade científica e investiu no suporte


A destinação dos recursos O desembolso da FAPESP em 2017 segundo quatro classificações

R$ 1.058.591.892 Desembolso da FAPESP em apoio a projetos de pesquisa (em %) Segundo a natureza da aplicação 5

38

Apoio à infraestrutura de pesquisa

57

Apoio ao avanço do conhecimento

Apoio à pesquisa com vistas a aplicações

Segundo a área do conhecimento 11

12

Ciências humanas e sociais

31

Interdisciplinar

46

Ciências exatas e da Terra e engenharias

Ciências da vida

Segundo o vínculo institucional do pesquisador Outros 0.5 4,5 5,5 Instituições particulares

7

12

12,5

Empresas particulares

Instituições estaduais

Instituições federais

13

45

Unicamp

USP

Unesp

Segundo a linha de fomento 29 Programas

30

41

Auxílios regulares

Bolsas regulares

o crescimento do pipe Evolução do número de auxílios aprovados no programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas*

2012

2013

2014

2015

5

projetos por semana em 2017 * Não inclui bolsas

2016

2017

54 130 124 159 228 269

fonte dos gráficos Relatório de atividades fapesp 2017

à inovação em pequenas empresas e na ampliação de colaborações entre universidades e empresas. Um dos destaques do ano passado foi o programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). “O valor desembolsado em 2017, de R$ 71,9 milhões, foi o maior de toda a existência do Pipe”, afirmou, na apresentação do relatório, o físico José Goldemberg, presidente da FAPESP entre 2016 e setembro de 2018. O programa, que completou 20 anos de existência em 2017, teve o maior número de auxílios contratados em sua trajetória: foram 269 projetos, 18% a mais do que no ano anterior, sem contar as bolsas e auxílios vinculados aos projetos principais. O resultado equivaleu à contratação de um novo projeto a cada dia útil. Em suas duas primeiras décadas, o Pipe apoiou 2.060 projetos em 1.244 empresas distribuídas por 132 cidades do estado de São Paulo. “As pequenas empresas apoiadas se concentram em localidades onde há boas universidades ou institutos de pesquisa, que formam empreendedores capazes de usar resultados modernos em ciência e tecnologia para criar oportunidades de negócios competitivas”, escreveu o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, em uma edição especial de Pesquisa FAPESP sobre os 20 anos do programa, publicada em dezembro de 2017. Outro destaque no apoio a colaborações entre universidades e empresas foi a aprovação de dois novos Centros de Pesquisa em Engenharia, que tiveram sua contratação oficializada em 2018: o Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas, que envolve a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Unicamp, e o Centro de Inovação em Novas Energias (Cine), parceria entre a Shell, a USP, a Unicamp e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). “Como organização, temos falado muito nos últimos anos sobre transição energética e vemos que esse momento está chegando e deve se tornar realidade em breve”, disse André Araújo, presidente da Shell Brasil, no evento de lançamento do Cine. Segundo projeções apresentadas pela empresa, a demanda global de energia em 2060 deverá ser quase 60% maior que a atual, daí a necessidade de investir no desenvolvimento de novas fontes renováveis de energia. pESQUISA FAPESP 273  z  43


Esforço de P&D Fontes dos recursos investidos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em São Paulo

9,6% Institutos de pesquisa

9,7% 54,1% empresas

Agências de fomento

R$ 25,8 bilhões

Total

26,6% Instituições de ensino superior

Nos centros de pesquisa em engenharia, cada R$ 1 investido pela FAPESP mobiliza mais R$ 1 da empresa e R$ 2 da universidade ou instituto de pesquisa que sedia o centro. As duas novas iniciativas se somaram a cinco centros já existentes, que buscam soluções inovadoras em motores a biocombustíveis (Peugeot-Citröen e Unicamp), gás (Shell e USP), química sustentável (GSK e UFSCar), novos alvos moleculares contra doenças inflamatórias (GSK e Instituto Butantan) e conhecimento sobre bem-estar (Natura e USP). Em 2017, foram investidos R$ 14,7 milhões em projetos desenvolvidos nesses cinco centros. Também foram anunciados editais para constituição de centros, dessa vez em parceria com as empresas Koppert do Brasil, Statoil e Grupo São Martinho. A FAPESP também articula com empresas interessadas a criação de centros de pesquisa em engenharia de manufatura avançada.

mento foi influenciado pelo resultado do edital do programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), voltado para criar redes de pesquisadores em áreas estratégicas ou em temas de fronteira, fruto de uma parceria entre o governo federal e fundações estaduais de apoio a pesquisa. A FAPESP financia 50% dos recursos destinados aos institutos paulistas e, no âmbito do programa, contratou 31 projetos temáticos em 2017.

Sem contar esses projetos de INCTs, o número de temáticos contratados no ano foi de 97, nove a mais do que em 2016. No ano passado, estavam em curso 469 projetos temáticos, que tiveram um desembolso de R$ 145.664.720. As áreas do conhecimento mais contempladas foram as da saúde (28,11% do total), biologia (18,87%), engenharia (8,49%), agronomia e veterinária (8,3%), física (8,11) e ciências humanas e sociais (7,17%). Nos últimos 5 anos, foram contratados 60 temáticos em colaboração internacional, vinculados a acordos de cooperação celebrados entre a FAPESP e as agências de outros países e organismos internacionais ou então ao programa São Paulo Excellence Chairs (Spec), que traz para o Brasil cientistas de renome vinculados a instituições de outros países para que coordenem pesquisas em sua área de atuação em universidades e laboratórios paulistas. Em 2017, a FAPESP investiu R$ 429.689.013 em 14.034 bolsas regulares. Pouco mais de três quartos desses recursos foram destinados a bolsas no país e 24% em bolsas no exterior. No caso das bolsas no país, o principal desembolso (45% do total) se deu na modalidade de doutorado, enquanto naquelas desenvolvidas no exterior, 63% do investimento foi destinado a pós-doutorados. Foram contratadas, em 2017, 904 bolsas Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe), número idêntico ao de 2016. O programa

a evolução dos projetos temáticos

2012

Número de projetos contratados

84

2013

75

2014

83

2015

82

Projetos temáticos

Em 2017, 128 novos projetos temáticos foram contratados, um número 45% maior que o de 2016, quando houve 88 contratações, e também acima da média dos últimos anos (ver quadro). Essa modalidade de apoio financia pesquisas com objetivos ousados, desenvolvidas por equipes de pesquisadores em geral de várias instituições, e por um prazo mais extenso, de até cinco anos. O cresci44  z  novembro DE 2018

88

2016

128

2017

97 Temáticos regulares, vinculados a

31 INCTs

programas ou a acordos de cooperação, exceto os do INCTs

fonte dos gráficos Relatório de atividades fapesp 2017


Estágios em outros países américa do norte

europa

357

480

O destino das bolsas Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe) contratadas em 2017

Ásia

14

américa do sul

18

oceania África

32

3 Total

904

é destinado a bolsistas FAPESP de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, que já desenvolvem sua pesquisa em São Paulo, para impulsionar a internacionalização da atividade. O maior número desses estágios, que têm duração de um mês a seis anos, concentrou-se na Europa, com 480 bolsistas, seguida pela América do Norte (357), a América do Sul (18), a Ásia (14), a Oceania (32) e a África (3).

O

relatório também produziu um retrato atualizado do sistema de ciência e tecnologia (C&T) do estado de São Paulo, composto por 15 mil empresas inovadoras, seis universidades públicas, 65 faculdades de tecnologia estaduais e uma federal, 34 institutos de pesquisa e instituições de C&T, 21 institutos de pesquisa privados, entre outros. São Paulo foi responsável por 30% das patentes depositadas no INPI e pelo registro de 32% dos programas de computador. O número de pesquisadores atuando em empresas do estado foi estimado em 39.065, o equivalente a 62% do total do Brasil. O dispêndio de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em São Paulo, de acordo com dados compilados no relatório, alcançou R$ 25,7 bilhões, sendo 54,1% do total, ou R$ 13,9 bilhões, originário de empresas. Instituições de ensino supe-

Há 39.065 pesquisadores atuando em empresas no estado, o equivalente a 62% do total do Brasil

rior, com destaque para as universidades estaduais de São Paulo, responderam por 26,6% desse esforço, seguidas pelas agências de fomento dos governos federal e estadual (9,7%) e institutos de pesquisa federais e estaduais que funcionam em São Paulo (9,6%). A participação de empresas nos esforços de P&D é crescente e supera em São Paulo o desempenho das demais unidades da federação, ainda que isso não tenha resultado em ampliação do espaço das empresas do país no mercado mundial. Segundo dados compilados pela Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inova-

doras (Anpei), antes da crise econômica o setor privado do Brasil investia em P&D um volume de recursos superior e um percentual do PIB do país equivalente aos das empresas da Espanha, mas obtinha um número bem menor de patentes. Um levantamento que comparou patentes concedidas nos Estados Unidos mostra que as empresas brasileiras obtiveram 197 registros por ano entre 2011 e 2015, enquanto as espanholas conseguiram uma média anual de 524 no mesmo período. Números mostrando essa mesma tendência foram publicados na seção Dados de Pesquisa FAPESP em julho de 2016 (bit.ly/2Ow2PG9). O sistema de pós-graduação instalado em São Paulo formou 7.288 doutores em 2017, o equivalente a 34% do Brasil, e 11.384 mestres (23% do total nacional). A USP liderou entre as instituições, com 3.006 doutores e 3.467 mestres titulados. O relatório também apresenta a evolução do impacto da produção científica. Em 2016, os artigos que têm autores de instituições de São Paulo tiveram um impacto médio de 1,04, ante 0,91 em 2015. É a primeira vez que esse valor passa de 1. Isso significa dizer que, em média, cada artigo produzido foi mencionado ao menos uma vez em outros trabalhos. O impacto relativo das publicações de autores do Brasil foi de 0,89 em 2016. n pESQUISA FAPESP 273  z  45


infraestrutura y

Laboratório

flutuante Acordo prevê aporte de R$ 75 milhões para navio de pesquisa da Marinha Bruno de Pierro

46  z  novembro DE 2018

E

m agosto foi firmado um acordo que permitirá a continuidade da operação do Navio de Pesquisa Hidroceanográfico Vital de Oliveira, em atividade desde 2015. O documento, assinado no Rio de Janeiro, garante por três anos o custeio e a manutenção da embarcação da Marinha brasileira, adquirida por R$ 174 milhões pelo governo federal em parceria com a mineradora Vale e a estatal Petrobras para dar suporte a pesquisas sobre clima, correntes marinhas, sedimentos e biodiversidade em áreas oceânicas do Atlântico Tropical. O convênio prevê um investimento no navio de aproximadamente R$ 75 milhões. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), a Marinha e a Petrobras farão um aporte de R$ 18,7 milhões, cada um. A Vale deverá repassar R$ 1,45 milhão e a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, destinará R$ 17,2 milhões no mesmo período. “Até então, o Vital de Oliveira, como é chamado, era mantido por meio do orçamento da Marinha e de contribuições esporádicas das instituições participantes”, diz Edmar Rodrigues Alves, capitão de fragata e chefe da seção de operações do Grupamento de Navios Hidroceanográficos da Marinha.


vital de oliveira Capacidade  90 tripulantes e 40 pesquisadores

Infraestrutura  5 laboratórios de pesquisa e 28 equipamentos científicos

Comprimento  78 metros

Largura  20 metros Autonomia  30 dias Velocidade máxima  12 nós

marinha do brasil

(aproximadamente 22 km/h)

pESQUISA FAPESP 273  z  47


Amazônia Azul

n Mar Territorial Faixa de mar costeira que alcança 22 km a partir da costa brasileira

arquipélago de Fernando de Noronha

Ama

n

ia

a

zu

l

O termo se refere à área marítima sob jurisdição do Brasil e foi criado pela Marinha para valorizar a costa brasileira. Corresponde a 52% do território continental

atol das rocas arquipélago de São pedro e São paulo

n Zona Contígua Área adicional de 22 km, na qual o país pode fiscalizar embarcações e impor sua legislação n Zona Econômica Exclusiva (ZEE) Área marítima de 370 km de extensão que confere ao país direito exclusivo de pesquisa e exploração comercial de recursos naturais

Ilhas de Trindade e Martim Vaz Ama

zô n

ia

az

ul

O acordo também estabelece o regimento interno do navio, que institui os comitês gestor e tecnocientífico – responsáveis, entre outras atribuições, por definir as missões científicas e os projetos prioritários que poderão utilizar a infraestrutura do Vital de Oliveira. Serão criadas regras para formalizar a seleção de projetos. “Por enquanto, as propostas de pesquisa são selecionadas informalmente pelos próprios parceiros, como a Petrobras e o MCTIC. Em breve, essa tarefa será desempenhada pelo comitê tecnocientífico”, explica Alves. De acordo com ele, existe atualmente uma demanda reprimida por conhecimento sobre a chamada Amazônia Azul, uma área marítima de 4,5 milhões de quilômetros quadrados (km2) abrangendo a zona econômica exclusiva e a extensão da plataforma continental brasileira. Essa região do oceano Atlântico abriga diversas riquezas naturais e minerais, como os campos de petróleo do pré-sal, e, por essa razão, empresas como Petrobras e Vale têm interesse no uso da embarcação. Com 78 metros de comprimento e mais de 4 mil toneladas, o Vital de Oli48  z  novembro DE 2018

n Plataforma Continental É uma área de 900 mil km2 que o Brasil reivindica na ONU desde 2004 Fonte marinha do brasil

O Vital de Oliveira permite a interação entre pesquisadores de várias áreas do conhecimento, diz Paulo Nobre

veira tem capacidade para acomodar 40 pesquisadores e 90 tripulantes em viagens com duração superior a 15 dias. Conta com cinco laboratórios e 28 equipamentos científicos utilizados no monitoramento e na caracterização ambien-

tal, geológica e físico-química de regiões oceânicas. Construído por uma empresa norueguesa em um estaleiro na China, o navio vem sendo utilizado pela Petrobras em pesquisas ambientais, levantamentos geológicos do leito marinho e investigações na área de estratigrafia, o estudo das diferentes camadas sobrepostas de um solo. Um dos equipamentos usados por pesquisadores da companhia é um veículo de operação remota, que pode operar a uma profundidade de até 4 mil metros. “O Vital de Oliveira tem uma estrutura científica diferenciada, com modernos laboratórios e equipamentos de última geração para coleta e análise de dados. O navio contribuirá para o aumento da presença brasileira no Atlântico Sul e Equatorial e propiciará às futuras gerações de brasileiros a possibilidade de receber os benefícios que advirão do aproveitamento dos recursos naturais dessa região do oceano”, informou a Petrobras em comunicado à Pesquisa FAPESP. programas de pesquisa

O navio, no entanto, não está à serviço apenas das empresas que participam do acordo. Em novembro de 2015, pouco mais de duas semanas após o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG), o governo federal solicitou à Marinha que deslocasse a embarcação para a costa do Espírito Santo, para coletar dados da água e do solo do mar, na foz do rio Doce, e analisar os danos causados pelos rejeitos de mineração. “O Vital de Oliveira conta com militares preparados e qualificados para coletar dados e operar o navio e todos os seus equipamentos científicos”, ressalta Alves. O navio também realiza missões de apoio a programas de pesquisa voltados para temas como variabilidade e mudanças climáticas. Um deles é o programa Prediction and Research Moored Array in the Tropical Atlantic, também conhecido como Projeto Pirata. Fruto de um convênio firmado em 1997 entre instituições de pesquisa de Brasil (Inpe-DHN), Estados Unidos (Noaa) e França (IRD-MeteoFrance), a iniciativa tem como finalidade estudar as interações entre o oceano e a atmosfera do Atlântico Tropical entre as Américas e a África, da latitude 20° Sul (mais ou menos na altura de Vitória, no Espírito Santo) até a latitude 20° Norte, na região


fotos  marinha do brasil

O navio é equipado com um veículo de operação remota (à esq.) e um CTD-Rosette, que mede características físico-químicas da água do mar

do Caribe. Nesse espaço, foram ancoradas em alto-mar 18 boias que servem como pequenas estações oceanográficas equipadas com sensores. Elas medem a velocidade dos ventos, quantidade de chuvas, umidade relativa do ar, radiação solar, pressão atmosférica, temperatura do ar e da água, salinidade, correntes e concentração de dióxido de carbono (CO2) marinho. Desde quando a primeira boia foi colocada no mar, há mais de 20 anos, a noção de que a saúde dos oceanos se relaciona com as mudanças climáticas ficou mais evidente na literatura científica, observa o meteorologista Paulo Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e presidente do comitê nacional do Pirata. “Por exemplo, o aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera acelera o processo de acidificação dos oceanos, ameaçando espécies que vivem no fundo do mar”, explica. Em duas décadas, o projeto foi responsável pela publicação de mais de 300 artigos em revistas científicas e pela produção de milhares de dados oceanográficos.

Antes do Vital de Oliveira, os pesquisadores do Pirata navegaram a bordo de outras duas embarcações da Marinha: o Navio Oceanográfico Antares e o Navio Balizador Amorim do Valle, adquiridos nas décadas de 1980 e 1990. “No Antares havia apenas sete vagas para pesquisadores. Ao poder abrigar dezenas de cientistas, o Vital de Oliveira propicia um ambiente fértil para a interação entre estudiosos de várias áreas do conhecimento”, avalia Nobre. Em 2017, a equipe do Projeto Pirata embarcou no Vital de Oliveira com 10 projetos em execução. Eles envolveram 68 pesquisadores e alunos de instituições científicas brasileiras. Neste ano, um dos projetos em andamento busca analisar, no Atlântico Sul, o acúmulo de microplásticos – fragmentos com menos de 5 milímetros (mm), em geral invisíveis a olho nu quando flutuam nos oceanos ou se misturam na areia. Segundo Nobre, um dos equipamentos do Vital de Oliveira mais utilizados nas pesquisas do Pirata é o CTD-Rosette, um conjunto de sensores que medem os principais parâmetros físico-químicos da água do mar, como temperatura, salinidade, pres-

são hidrostática e oxigênio dissolvido. Os sensores descem a profundidades de até 5 mil metros e realizam as medidas ao longo das trajetórias de descida e subida. O equipamento está sendo útil para os pesquisadores que embarcaram no início do ano no Vital de Oliveira para estudar a Elevação do Rio Grande, uma cadeia de montanhas submersas a cerca de 1.300 quilômetros do litoral do Rio Grande do Sul. O projeto é resultado de um acordo feito entre a CPRM e a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), que concedeu ao Brasil o direito de pesquisar, por 15 anos, o potencial mineral da região. “O projeto inclui estudos ambientais e oceanográficos necessários para avaliar a viabilidade de exploração mineral na região”, diz o oceanógrafo José Angel Alvarez Perez, pesquisador da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina. Criada nos anos 1970 para gerar e difundir conhecimento geológico e subsidiar políticas públicas, a CPRM explora a Elevação do Rio Grande desde 2009, por meio de expedições realizadas em parceria com instituições de pesquisa, identificando as áreas de maior interesse econômico para exploração mineral. Os estudos vêm mostrando que o local tem áreas ricas em cobalto, níquel, manganês e até elementos chamados de terras-raras, utilizados na indústria de alta tecnologia. n pESQUISA FAPESP 273  z  49


ciência  Arqueogenética y

Quando havia índios

em Lagoa Santa DNA antigo revela colonização humana rápida na América do Sul por volta de 14 mil anos atrás Maria Guimarães

V

ivendo há cerca de 11 mil anos em alguma caverna da atual Lagoa Santa, Minas Gerais, a moça que na posteridade viria a ser conhecida como Luzia não podia imaginar que no século XXI sua aparência e ascendência seriam mistérios perseguidos por especialistas (ver reportagem à página 61). O sequenciamento do material genético de seus conterrâneos e contemporâneos – não dela – agora sugere que o rosto de lábios grossos e nariz alargado com que entrou para a narrativa sobre a ocupação humana da América provavelmente não representa a realidade. “Luzia era uma índia, não tinha ancestralidade africana”, afirma a geneticista Tábita Hünemeier, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). “Os dados genéticos mostram

50  z  novembro DE 2018

que a ancestralidade do povo de Lagoa Santa é 100% ameríndia, com a possível exceção de um indivíduo cujo genoma apresenta uma taxa de 3% com origem em outra população”, completa o arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, sobre o período por volta de 10 mil anos atrás. Ele e Hünemeier são coautores de um estudo publicado na revista Cell, e ele participa de outro na Science, ambos publicados em 8 de novembro e que escrevem uma nova página na descrição da colonização da América. O povo de Lagoa Santa tem muito a contar. Essas conclusões são um sacolejo na arqueologia brasileira, já que o povo de Luzia foi, há cerca de 30 anos, a base para a proposta feita pelo bioantropólogo Walter Neves, recentemente aposentado pelo IB-USP, sobre o povoamento


Sucessivas levas de migrantes Dados genômicos indicam que a colonização inicial da América do Sul se expandiu rapidamente e substituiu grupo posterior

anc

a n

ce

e st

r al

b

st r al

Beringianos antigos

A

Sul de Ontário

anzick-1

Ilhas do canal da Califórnia Belize

andes central

Lapa do Santo

Los Rieles

Cone Sul

Continuidade populacional ✖  Linhagem substituída n  Migração inicial: 16 mil anos n Migração Anzick: 13 mil – 9 mil anos n  Migração tardia: 4.400 anos

léo ramos chaves

fontes posth et al./cell

da América (ver Pesquisa FAPESP nº 195). Observando, a partir de medições, que os crânios coletados na região eram diferentes dos encontrados em outros lugares, ele propôs que uma primeira leva de migrantes com características físicas das populações atuais da Austrália e da África deu origem àquela população, sem deixar descendentes. Baseado nessa interpretação, nos anos 1990 o especialista forense britânico Richard Neave, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, reconstruiu o que seria o rosto de Luzia. Os nativos americanos (ou ameríndios) que depois se tornaram típicos do continente descenderiam de uma onda migratória posterior, com aparência típica do leste asiático: olhos puxados, cabelos lisos e escuros. De acordo com o antropólogo brasileiro Mark Hubbe, da Universidade

Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, e um dos autores do artigo da Cell, essa visão não é necessariamente desbancada pelos novos estudos. “A morfologia de Lagoa Santa é generalizada, similar a grupos do final do Pleistoceno, e se mantém em populações de origem africana”, afirma. “Mesmo que o povoamento da América do Norte tenha resultado de uma única expansão demográfica, o modelo do Walter se sustenta na América do Sul, que passou por um processo mais complexo.” Mas essa complexidade tem nuances, agora reveladas pelo genoma completo de representantes desses povos a partir de DNA antigo, o que permite reconstruir sua história com mais detalhe. Desde 2012, durante o doutorado no Instituto Max Planck, na Alemanha, Strauss deu início ao projeto de sequenciar o DNA de ossadas encon-

Paredão da Lapa do Santo (MG): abrigo para grupos humanos por volta de 10 mil anos atrás pESQUISA FAPESP 273  z  51


são muito próximas, com integrantes muito aparentados”, explica Hünemeier. Uma amostragem mais bem distribuída, à época, indicou uma contribuição ao povoamento sul-americano de povos originários da Austrália e da Melanésia, na Oceania, chegando pela Beríngia, que ligava a Sibéria ao Alasca. Uma leva posterior, mestiça entre nativos da Oceania e da Ásia, ficou conhecida como população Y (ver Pesquisa FAPESP nº 234). Sua existência não se sustenta, porém, no estudo deste mês na Cell – coordenado por Reich.

E

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A escavação de esqueletos humanos, como no sítio em Minas Gerais, envolve um processo meticuloso

52  z  novembro DE 2018

tradas na Lapa do Santo, uma caverna da região de Lagoa Santa (ver Pesquisa FAPESP nº 247). O trabalho foi feito pelo bioquímico alemão Johannes Krause, que também assina o trabalho da Cell e atualmente dirige o Instituto Max Planck de Ciência da História Humana. “No começo não tínhamos muito sucesso”, lembra Strauss. Até que outros pesquisadores demonstraram que o osso petroso, na região do ouvido, era uma fonte melhor de DNA. O problema é a necessidade de retirar esse osso denso, um procedimento destrutivo dificilmente permitido em uma peça importante como o crânio de Luzia, que o grupo de Strauss minimiza gerando imagens tridimensionais de alta definição. O trabalho inclui DNA antigo de 49 indivíduos de 16 localidades na América Central e do Sul (sete da Lapa do Santo e oito de mais três localidades no Brasil) e propõe um sacolejo no modelo de Neves. Em 2015, o estatístico e bioinformata norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, procurou os geneticistas Francisco Salzano (1928-2018) e Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), porque tinha feito uma análise exploratória com DNA dos povos amazônicos Suruí e Karitiana a partir de DNA de células cultivadas in vitro, mas faltava conhecimento das populações indígenas para interpretar os dados. “As duas populações

le indica que o povo de Luzia era semelhante à cultura Clóvis, que teve início na atual América do Norte e no estudo representada por ossos de 12.800 anos encontrados no sítio arqueológico Anzick, nos Estados Unidos. Essa ancestralidade também aparece nos crânios mais antigos examinados em Belize, na América Central, e Los Rieles, no Chile. De 9 mil anos para cá, o quadro muda. “A linhagem foi completamente substituída por uma leva migratória que se espalhou rapidamente, o ramo de Luzia foi desaparecendo”, diz Hünemeier (ver mapa na página 51). A semelhança é genética, mas não é possível estimar a aparência dos representantes de Clóvis. “Existe apenas a calota craniana do homem de Anzick, um indivíduo juvenil”, afirma a arqueóloga Mercedes Okumura, do IB-USP, que não participou dos estudos e é a atual coordenadora do laboratório montado por Walter Neves. Faltam mais crânios e esqueletos para se ter uma ideia sólida de como era a população Clóvis, mas para Lagoa Santa a especialista britânica em reconstrução forense Caroline Wilkinson, da Universidade John Moores de Liverpool, na Inglaterra, propôs – em parceria com Strauss – uma nova fisionomia, a partir do crânio digitalizado e com base na ancestralidade não austromelanésia. Uma história bastante parecida da colonização da América do Sul está descrita no artigo da Science, coordenado pelo geneticista Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague. A partir de DNA extraído de 15 esqueletos encontrados em localidades que vão do Alasca à Patagônia, seis deles com mais de 10 mil anos de idade, ficou claro que assim que conseguiram transpor a área glacial na América do Norte, antes de 14 mil anos atrás, as populações humanas se espalharam rapidamente pela América do Sul. Essa rapidez fica evidente graças ao DNA de cinco ossadas de Lagoa Santa coletadas no século XIX pelo dinamarquês Peter Lund na gruta do Sumidouro e mantidas no Museu de História Natural da Dinamarca, a mesma coleção que Neves examinou e que inspirou seu modelo. O genoma desses esqueletos é muito semelhante ao do homem de Spirit Cave, no sudoeste dos Estados Unidos, contemporâneo da amostra mais antiga de Lagoa Santa.


Povo de Lagoa Santa: reconstruções faciais de Luzia (à esq.) e de homem que viveu há 9 mil anos (à dir.)

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fotos 1 léo ramos chaves  2 richard neave / universidade de manchester  3 caroline wilkinson / universidade john moores

Luzia era uma índia, não tinha ancestralidade africana, diz Tábita Hünemeier

“Os dois artigos concordam sobre a expansão rápida e a percepção de uma segunda onda migratória para a América do Sul”, resume o geneticista mexicano Víctor Moreno-Mayar, em estágio de pós-doutorado no Centro de GeoGenética, em Copenhague, e primeiro autor do estudo. “Uma população estabelecida na Mesoamérica, provavelmente no México, também contribuiu por meio de movimentação tanto para o sul quanto para o norte, por volta de 8 mil anos atrás”, completa, destacando ser um resultado diferente do que foi visto pelo outro grupo. Ele explica que o modelo clássico descreve um movimento de norte para sul, em que as pessoas colonizavam um local e ali ficavam. A história parece ter sido mais movimentada. “Essa ocupação provavelmente se deu por uma rota costeira no Pacífico que teria dado origem tanto ao povo que ocupou Monte Verde [sítio arqueológico no Chile] como também ao povo de Lagoa Santa”, diz o geneticista Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais, coautor do estudo. “Eles estavam ocupando um continente sem competidores humanos.” Santos destaca a importância histórica de se analisar o material de Lund. “Hoje sabemos que todos esses povos antigos, antes de 8 mil anos nas Américas, apresentavam uma morfologia indiferenciada, sem muitos traços mongólicos”, diz. Mesmo assim, todos os paleoamericanos

analisados – termo usado para os habitantes mais antigos do continente, com aparência distinta dos subsequentes – são geneticamente mais parecidos com populações indígenas atuais do que com qualquer outro grupo humano atual ou do passado. Em um dos indivíduos da gruta do Sumidouro o DNA revelou trechos similares aos encontrados em populações da Austrália e da Ásia, aquela população Y descrita por Reich em 2015. Ainda não está claro o que o achado significa, já que nada semelhante foi detectado nas amostras norte-americanas, por onde a migração teria passado. Nem mesmo em Spirit Cave. “De qualquer forma, inexiste qualquer relação entre a morfologia craniana do povo de Luzia e esse sinal da população Y”, afirma Strauss. Um aspecto importante nos dois estudos foi reunir estatística, genética, arqueologia e bioantropologia – áreas tradicionalmente dissonantes. Mercedes Okumura reforça a importância do trabalho interdisciplinar: “As análises genômicas do DNA antigo abrem uma janela para algo que há 20 anos era ficção científica, mas os resultados precisam ser interpretados à luz do que já existe, como estudos em arqueologia e morfologia”. É normal, para ela, que fontes diferentes de informação tragam pistas discordantes. O desafio é descobrir como as peças se encaixam para elucidar a história dos povos como um todo. n

Artigos científicos POSTH, C. et al. Reconstructing the deep population history of Central and South America. Cell. On-line. 8 nov. 2018. MORENO-MAYAR, J. V. et al. Early human dispersals within the Americas. Science. On-line. 8 nov. 2018. Os projetos mencionados nesta reportagem estão listados na versão on-line

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Biologia y

Semelhança enganosa entre as

espécies Seres com aspecto similar nem sempre têm uma história evolutiva próxima

botânico Fábio Pinheiro apresenta duas orquídeas bastante diferentes entre si mantidas no jardim experimental do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp). As duas exibem cachos de flores rosa e são classificadas como Epidendrum secundum, espécie que cresce em uma longa faixa de terra entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, na cordilheira dos Andes e no Caribe. Uma delas, coletada no alto de uma serra de Minas Gerais, tem cerca de 20 centímetros de altura e três ramos. A outra, trazida das terras tórridas da Paraíba, tem quase o triplo da altura e o dobro de ramos. “Não sabemos se ainda são da mesma espécie ou se já se diferenciaram tanto que não são mais

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capazes de cruzar e gerar descendentes férteis”, diz Pinheiro. Sua equipe identificou diferenças genéticas entre as plantas: a variedade da serra tem 56 cromossomos e a da Caatinga 82. “Mas talvez a incompatibilidade reprodutiva entre elas não tenha se completado e ainda não possam ser consideradas espécies distintas.” As duas orquídeas formam o que os biólogos denominam complexo de espécies. O conceito abriga um grupo de espécies relacionadas do ponto de vista genealógico, que podem ser muito parecidas ou até mesmo bastante distintas na aparência. Sua classificação como uma ou várias espécies desafia os conhecimentos dos especialistas. Organismos com variação da aparência externa (morfologia) tendem a ser classificados como sendo

Léo Ramos Chaves

O

Carlos Fioravanti


Orquídeas do gênero Epidendrum. Quando a espécie amarela cruza com a rosa, a flor resultante é um híbrido alaranjado

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O estudo de borboletas marrons do gênero Praepedaliodes, que era composto inicialmente por quatro espécies (acima), levou à identificação de seis outras (ao lado)

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várias espécies, embora também possam ser classificados como apenas uma. O inverso também ocorre: seres vistos como membros de uma só espécie podem, na verdade, esconder várias. Espécies com formas muito diversas podem apresentar relações de parentesco desnorteantes, como indicado por outras orquídeas do herbário. E. secundum é geneticamente mais próxima de uma espécie com flores amarelas, E. xanthinum, do que de outra com flores rosa, E. denticulatum. “A cor é muito volúvel e enganadora para ser usada como característica identificadora de espécies”, comenta a bióloga molecular Clarisse Palma da Silva, também professora do IB-Unicamp.

O emprego conjunto de mais de um método de análise aumenta a probabilidade de novos achados

integração de áreas

As incertezas sobre a classificação exata de um organismo poderiam ser reduzidas se houvesse maior integração entre diferentes áreas de conhecimento e emprego simultâneo de vários métodos de classificação das espécies, argumentam Pinheiro, Clarisse e Marcos Vinicius Dantas-Queiroz, aluno de doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, em um artigo publicado em maio de 2018 na revista científica Critical Reviews in Plant Sciences. O trio de botânicos examinou 129 artigos publicados entre 1900 e junho de 2016 na América do Sul que mencionavam as abordagens adotadas para anali56  z  novembro DE 2018

sar e diferenciar complexos de espécies pertencentes a 44 famílias e 84 gêneros de plantas. Segundo o estudo, o uso de marcadores moleculares – trechos de DNA – foi o método mais utilizado para tentar distinguir as espécies de um complexo. Essa abordagem foi adotada em quase metade (43%) dos artigos. Em segundo lugar, apareceu a morfometria, técnica que emprega a coleta e a comparação das medidas de partes das plantas, que foi empregada em 38% dos estudos. A taxonomia tradicional, que se apoia na descrição das características mor-

fológicas dos seres vivos, foi usada em 36% dos artigos examinados, e as análises citogenéticas, como a contagem do número de cromossomos nas plantas, em 22% dos trabalhos. Dados sobre a ecologia, a anatomia e a reprodução das plantas figuraram em cerca de 10% dos trabalhos. Menos da metade dos estudos examinados (43%) se valeu de mais de uma abordagem para estudar os complexos de espécies, índice considerado baixo pelos pesquisadores.“Precisamos ser mais multidisciplinares”, sugere Pinheiro. O emprego de marcadores moleculares ocorreu com maior frequência ao lado do uso de dados de morfometria e menos intensamente com análises taxonômicas e ecológicas. Essas três metodologias de análise, por sua vez, foram pouco utilizadas conjuntamente com técnicas de anatomia, de citogenética e de biologia reprodutiva, que também poderiam ser úteis para entender os limites de cada espécie e identificar os possíveis mecanismos de diferenciação de espécies. “Nenhum método sozinho resolve com precisão todos os problemas”, enfatiza Clarisse. híbridos férteis

Em seu doutorado, concluído em 2016 sob orientação da botânica Tânia Wendt, do programa de Pós-graduação em Botânica do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), e de Clarisse, Jordana Neri examinou a


Apenas cores iguais Orquídeas E. secundum e E. denticulatum têm flores rosa, mas não são consideradas espécies irmãs. A primeira é mais próxima do ponto de vista genealógico da amarela E. xanthinum e a segunda da alaranjada E. flammeus

espécies irmãs

espécies irmãs

Epidendrum secundum

Epidendrum xanthinum

Epidendrum denticulatum

Epidendrum flammeus

fotos 1 André Freitas 2 léo ramos chaves

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morfologia, a genética e a biologia reprodutiva de duas espécies de bromélias, Vriesea simplex e V. scalaris. Uma das conclusões é que, quando as duas espécies vivem no mesmo ambiente, as serras do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, podem formar híbridos férteis. Hoje o termo híbrido não define somente seres estéreis como a mula, resultado do cruzamento de jumento com égua, mas também férteis, que podem originar novas espécies. Com sua equipe, Clarisse está novamente combinando diferentes métodos de análise para examinar um gênero de bromélias que inclui as chamadas espécies crípticas – morfologicamente iguais, mas geneticamente diferentes – ainda vistas como uma única espécie. “Principalmente com as espécies crípticas, o emprego de apenas um método, como a taxonomia clássica, com base na morfologia, ou as análises de DNA, não leva a conclusões consistentes”, comenta o biólogo André Freitas, também professor da Unicamp. Ele participou de um estudo

que ampliou o número de integrantes do complexo de espécies de Praepedaliodes, borboletas marrons das serras do Sudeste e Sul do Brasil. As quatro espécies inicialmente descritas foram desmembradas em 10. As seis novas espécies foram diferenciadas das outras por meio de estudos morfológicos, moleculares e ecológicos que constaram de um artigo publicado em abril de 2018 na Neotropical Enthomology. Segundo Freitas, as agora 10 espécies vivem em diferentes altitudes, embora também possam dividir o mesmo espaço. Não há estimativas sobre a ocorrência de complexos de espécies entre microrganismos, animais e plantas. É possível que a adoção de análises mais sofisticadas leve ao desmembramento de uma espécie em várias e provoque um aumento no número de novas espécies descritas na literatura científica. Mas, em certos casos, a revisão dos complexos de espécies pode levar ao processo inverso. A equipe de Freitas, por exemplo, trabalha nas análises genéticas de um grupo

de cinco espécies de borboletas que, na verdade, deve passar a ser considerada apenas uma. “Por enquanto, não encontramos evidências de que sejam mesmo espécies diferentes, mas apenas uma espécie com uma grande variação morfológica”, diz ele. n

Projetos 1. Filogeografia, genômica populacional e variação adaptativa do complexo Pitcairnia lanuginosa (Bromeliaceae) (nº 14/15588-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Clarisse Palma da Silva (Unicamp); Investimento R$ 312.631,44. 2. O papel da seleção por hábitats distintos na manutenção da integridade de espécies em zonas de hibridação natural (nº16/22785-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Biota-FAPESP; Pesquisador responsável Fabio Pinheiro (Unicamp); Investimento R$ 220.894,63.

Artigos científicos PINHEIRO, F.; DANTAS-QUEIROZ, M. V.; PALMA-SILVA, C. Plant species complexes as models to understand speciation and evolution: A review of South American studies. Critical Reviews in Plant Sciences. v. 37, n. 1, p. 54-80. mai. 2018 Os demais artigos mencionados estão listados na versão on-line desta reportagem.

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filosofia da ciência y

Novas

origens Edições brasileiras do clássico de Charles Darwin põem em contexto a construção da teoria evolutiva

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e um grupo de evolucionistas for trancado em uma sala até chegarem a um acordo sobre a melhor definição de espécie, é possível que fiquem lá para sempre. Em meio a ferramentas e conceitos das diversas áreas da biologia – genética, anatomia, fisiologia, ecologia – é difícil priorizar e decidir qual é determinante na fronteira entre um organismo e outro. Há quem diga que espécies não existem propriamente, já que cada organismo é um momento transitório de uma linhagem. A discussão pode ser moderna e cheia de detalhes que dependem de descobertas das últimas décadas, mas está enraizada no que o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) publicou há quase 160 anos em A origem das espécies. Não à toa, uma publicação revolucionária em seu contexto. Leitores brasileiros ganharam este ano duas belas edições do clássico, a mais recente pela editora Ubu, com tradução e organização do filósofo Pedro Paulo Pimenta, profes-

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sor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). “A espécie é a variedade que dura enquanto a gente está olhando”, resume. A visão evolutiva acaba tornando essa categoria de classificação um tanto artificial, pouco mais do que um nome. Pimenta iniciou a coordenação do volume planejando o aparato crítico. Além da apresentação direcionada a um público amplo, na qual discute o contexto de pensamento da época, o conjunto abrange os textos de Darwin e de seu conterrâneo Alfred Russel Wallace (18231913), apresentados na Linnean Society de Londres como coautoria da teoria da modificação das espécies por seleção natural, três resenhas da época, dois capítulos incluídos por Darwin em edições subsequentes de A origem das espécies e um providencial glossário de quem é quem nessa evolução do conhecimento. O filósofo acabou por também assumir a tradução do livro, com a prioridade de

produzir um texto que funcionasse bem em português, sem perder o sabor do século XIX. “Mantive o estilo, a sintaxe e a terminologia fiéis ao original”, conta. O esboço histórico, capítulo que Darwin acrescentou à terceira edição, presta contas de maneira algo protocolar aos antecessores que contribuíram para as suas conclusões. Logo no início, Pimenta chama a atenção para uma imprecisão na menção ao filósofo da Grécia Antiga Aristóteles, como se ele fosse de certa maneira precursor das ideias transformistas ou evolutivas. Uma nota de rodapé explica que o britânico recebeu de um amigo uma tradução falha do ensaio Das partes dos animais. O biólogo Nélio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da USP e especialista na obra e no pensamento de Darwin, detalha que Aristóteles tinha o costume de redigir o trecho de outro autor que pretendia comentar, para em seguida tecer sua crítica. O colaborador de Darwin teria enviado a tradução dessa primeira parte.

ilustrações  alex cerveny / ubu

Versão atualizada em 20/02/2019


“Na verdade, tratava-se de Empédocles e não Aristóteles”, afirma Bizzo, responsável pela organização e revisão técnica da edição de A origem das espécies publicada também este ano pela Edipro. Entre os antecessores está o naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), que, em sua Filosofia zoológica de 1809, mostrou formas dos seres vivos em constante transformação em consequência de relações com o meio. Também o geólogo britânico Charles Lyell (1797-1885), considerado fundador da geologia moderna, que contribuiu com a noção de que os processos geológicos que conduziram à configuração atual do mundo resultam de um processo lentíssimo ao longo de milhões de anos, permitindo entender que registros fósseis seriam testemunhos de organismos que fazem parte dessa narrativa da vida. Em um momento no qual continentes eram vistos como fixos, era difícil explicar semelhanças biológicas observadas entre continentes distintos, e em alguns momentos Darwin invocou eras glaciais (controversas à época) que teriam formado pontes transitáveis. Eram soluções criativas de uma mente que se apoiava em fatos, mas podia transcendê-los fazendo conexões inusitadas. Esse olhar histórico sugere que o século XIX estava preparado, em certa me-

dida, para aceitar a descendência com modificação por seleção natural como explicação de como surge a diversidade biológica. A maior prova disso foram as conclusões semelhantes atingidas por Alfred Russel Wallace praticamente ao mesmo tempo. Darwin teria, porém, chegado antes e ido mais longe em suas explicações, e por isso ganhou a primazia na apresentação conjunta organizada por Lyell e o botânico Joseph Hooker (1817-1911) em Londres.

À

primeira vista surpreende que a leitura de um tratado de economia política, An essay on the principle of population, publicado em 1798 pelo economista britânico Thomas Malthus (1766-1834), tenha precipitado a compreensão por Darwin de que nem todos os que nascem podem sobreviver, que algo no ambiente aponta os sobreviventes mais prováveis e que isso pode estar por trás de como as espécies se modificam ao longo de um horizon-

te temporal mais amplo do que parece possível a olhos criacionistas. Mas de certa maneira esse cruzamento de áreas do conhecimento não parecia tão inusitado – era comum a economia tomar emprestada a terminologia da fisiologia, por exemplo. As resenhas publicadas à época destacam o caráter controverso da publicação e parecem ter sido resultado de uma estratégia comercial, de acordo com Bizzo. Ele conta que, antes do lançamento do livro, exemplares foram enviados para pessoas influentes em diferentes países – com destaque para Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos – na expectativa de repercussão qualificada. “Foi uma estratégia de marketing global, pensando também na possibilidade de reimpressão nos Estados Unidos.” Uma das resenhas incluídas no volume organizado por Pimenta é do paleontólogo britânico Richard Owen (1804-1892), adversário da teoria de Darwin. Concentrado no conhecimento paleontológico, ele rejeita o que vê como especulações que não podem ser comprovadas, sobretudo a noção do ser humano como um macaco transmutado. O botânico norte-americano Asa Gray (1810-1888), pESQUISA FAPESP 273  z  59


A

estratégia para atingir públicos ampliados também aparece no texto em si. “Por que um tratado sobre o surgimento de espécies começa falando de variedades de pombos?”, questiona Pimenta sobre o primeiro capítulo, “Variação sob domesticação”. Parece um contrassenso, mas o objetivo rapidamente fica claro: entender a seleção artificial que segue os desígnios do criador (com minúscula) na escala de tempo humana, e dá origem a pombos com inusitadas configurações de penas (criar essas aves era um sucesso na Inglaterra da época), torna menos inatingível ao leitor a seleção natural apresentada em seguida – que nem por isso se torna prosaica. “O livro é impalatável sob muitos aspectos”, ressalta o filósofo. Tem destaque o fato de a seleção natural ser cega em relação à possibilidade de sobrevivência, em vez de seguir um propósito direcionado. Ao contrário do rumo deliberado da seleção artificial feita por criadores, os efeitos naturais são desvinculados de intencionalidade. Essa visão, de um ateísmo intrínseco, gerava um desconforto por oposição à previsível ordem divina. “O gênio de Darwin foi perceber que o mais adaptado sobrevive, mas o organismo não tem como prever o próximo passo”, diz Pimenta, ressaltando que o próprio britânico teve dificuldades em aceitar a insegurança dessa visão.

Muito da ciência envolvida em A origem das espécies já caducou, mas o pensamento que ela suscita ainda vale

Parte da dificuldade está no lento andamento da seleção natural. Pimenta exemplifica com a extinção da fauna do Pleistoceno, cerca de 11 mil anos atrás, que se precipitou devido à ação humana. Mesmo assim, o declínio não aconteceu de um dia para o outro e, a rigor, não terminou. “Estamos acabando com o elefante há 30 mil anos”, diz. “Vencemos, mas não se sabe por quanto tempo.” Outra visão sagrada abalada por A origem das espécies é a de que o ser humano seria o ápice evolutivo, como se tudo o que veio antes tivesse como único objetivo a nossa criação. A ideia não é estranha mesmo nos dias de hoje, em que ainda é difícil vislumbrar um mundo sem pessoas. “Darwin ia no caminho de aniquilar a primazia do homem, mas deu um passo atrás”, ressalva Pimenta: as características morais magníficas do cérebro humano seriam um componente evolutivo como qualquer outro.

“A teoria de Darwin tem impacto porque é muito forte do ponto de vista da estruturação”, avalia Pimenta. Muito da ciência envolvida ali já caducou – os conceitos de estrutura anatômica, de embriologia e de hereditariedade, por exemplo – mas o pensamento que ela suscita ainda vale. “Chega a ser subversivo, quando a pessoa senta e lê.” Por outro lado, Bizzo defende que essa leitura deve vir em uma segunda etapa do estudo, com a visão moderna já sedimentada. “Ler Darwin para alcançar uma compreensão atual sobre evolução é um equívoco.” Isso posto, afirma que entender como se chegou ao conhecimento e como isso mudou radicalmente é combustível para um pensamento criativo. Hoje o leitor pode escolher entre uma edição contextualizada pela fortuna crítica organizada por Pimenta, e o texto original de Darwin comentado em detalhe pela revisão técnica de Bizzo – ou ler ambos. Em 2019, aniversário de 160 anos de A origem das espécies, a publicação da Filosofia natural de Lamarck pela Edusp enriquecerá o contexto e pode render bons debates em fevereiro, quando tradicionalmente se comemora o “dia de Darwin” por ocasião de seu aniversário. n Maria Guimarães

Livros DARWIN, C. A origem das espécies. 1859. São Paulo: Ubu e Edipro, 2018.

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ilustrações  alex cerveny / ubu

um dos fundadores da história natural nos Estados Unidos e um dos primeiros convertidos à nova ideia, defendeu a publicação apesar de denotar dificuldade com o conflito em relação à ótica religiosa. O zoólogo Thomas Huxley (18251895), outro aliado de Darwin, destacou a impossibilidade de se comprovar a teoria – algo que vem sendo feito aos poucos até hoje.


patrimônio y

Prelúdio do resgate Meteorito raro e

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fragmentos do fóssil humano mais antigo do Brasil são identificados nos escombros

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O meteorito Angra dos Reis (à esq.) e seu resgate: medo de que fosse confundido com destroços

do Museu Nacional

fotos 1 museu Nacional 2 museu nacional / TV Globo  3 Cicero Moraes / wikimedia commons  4 Raphael Pizzino

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écnicos do Museu Nacional conseguiram identificar e resgatar as primeiras peças do acervo de cerca de 20 milhões de itens atingido por um grande incêndio no dia 2 de setembro. Entre os objetos recuperados, os mais comemorados foram fragmentos do fêmur e pelo menos 80% do crânio de Luzia, de cerca de 11 mil anos, o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil e um dos mais antigos das Américas. Foram apresentados seis pedaços maiores do crânio, além do fragmento do fêmur, mas ainda há outras partes menores de ossos que estão sendo analisadas e podem pertencer a Luzia. “Imaginávamos que a situação fosse pior. Há danos, mas deverá ser possível fazer uma reconstituição razoável do crânio”, afirmou a arqueóloga Claudia Rodrigues-Carvalho, chefe do setor de antropologia biológica do museu. O crânio de Luzia estava guardado em uma caixa de metal no térreo do prédio. De acordo com o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, o trabalho oficial de resgate ainda não começou. Ele só poderá ser feito de modo seguro quando todo o prédio for escorado e coberto, o que ainda deve levar cinco meses. Mas, à medida que o trabalho de estabilização avança, tornam-se

possíveis o acesso a algumas áreas e o resgate de peças significativas cuja provável localização é conhecida. “Tivemos certeza de que se trata de Luzia porque a encontramos exatamente onde ela deveria estar”, disse Kellner. “Normalmente, esperaríamos mais tempo para divulgar algo assim. Por se tratar de Luzia, decidimos tornar logo pública a descoberta.” A geóloga Maria Elizabeth Zucolotto, que acompanhava as obras de escoramento, conseguiu encontrar em um armário de ferro que resistiu ao incêndio o meteorito Angra dos Reis – de 65 gramas e 4 centímetros de comprimento. A peça é uma das mais valiosas da coleção de mais de 400 meteoritos da instituição.

Por mais de um século, foi o único exemplo identificado de uma nova classe de rochas, os angritos, apontados como os mais antigos do Sistema Solar. Também é relevante por ter sido avistado quando caiu e resgatado imediatamente após a queda, em frente a uma igreja em Angra dos Reis, em 1869, sem sofrer com as intempéries do tempo. A preocupação em recuperá-lo rapidamente era grande. Não havia dúvidas de que resistira ao fogo porque quando entrou na atmosfera terrestre passou por temperaturas muito maiores. Havia o temor de ser confundido com algum destroço do desabamento ou mesmo que fosse roubado – por sua raridade, a peça é avaliada em R$ 3 milhões. n

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Imagem digitalizada do crânio de Luzia e o conjunto de fragmentos recuperados do fóssil pESQUISA FAPESP 273  z  61


Acervos y

Fachada da fundação, que abriga museu, jardim botânico e zoológico 1

Com coleções científicas que somam 600 mil peças, Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul luta pela sobrevivência

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á mais de três anos, a Fundação Zoobotânica (FZB) do Rio Grande do Sul está na iminência de ser extinta, envolta em um clima de incerteza sobre o prosseguimento de suas pesquisas e serviços e o destino de suas coleções biológicas e paleontológicas, que reúnem cerca de 600 mil amostras de animais e plantas, do presente e do passado remoto. Responsável pela administração do Jardim Botânico, do Museu de Ciências Naturais e do Parque Zoológico, a FZB faz parte, ao

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lado de outras nove fundações gaúchas, da lista de instituições a serem fechadas em razão de um corte de despesas anunciado pelo governador gaúcho José Ivo Sartori em agosto de 2015. A medida foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em dezembro de 2016. Desde então, a instituição, que foi criada em 1972 e tem um orçamento anual da ordem de R$ 30 milhões, luta na Justiça para não ser fechada, em um processo cheio de idas e vindas. Em 11 de outubro, a batalha parecia ter chegado ao fim: o

governo gaúcho oficialmente extinguiu a FZB por meio do Decreto Estadual nº 54.268/2018. No entanto, oito dias mais tarde o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul revogou o decreto em atendimento a um pedido de tutela provisória de urgência do Ministério Público Estadual. A suspensão vale até o julgamento definitivo de agravo de instrumento em que o ministério público pleiteia que o governo gaúcho apresente um plano de extinção da FZB capaz de garantir a continuidade das atividades do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais (a proposta é que o zoológico seja cedido à iniciativa privada). O decreto do governo gaúcho prevê que as atividades e os 180 funcionários da FZB, dos quais 25 são pesquisadores, sejam incorporados pela Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema). “As pesquisas da fundação eram

fotos 1 FÉLIX ZUCCO / AGÊNCIA RBS 2 Mariano Pairet  3 Ana Maria Ribeiro

Ameaçada de extinção


boas e independentes, mas descoladas da Sema. Não sei se a extinção da FZB é a melhor solução, mas o que a motivou foi a reforma administrativa para reduzir os gastos”, explica Ana Pellini, secretária do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. “Minha vontade é aproveitar todas as pessoas. Porém, com a nova administração, não tenho como garantir a permanência de todos.” No ano passado, o governo gaúcho apresentou um déficit de R$ 1,67 bilhão. Segundo o biólogo Jan Karel Felix Mahler Junior, da seção de Conservação e Manejo do museu, a Sema não tem mão de obra qualificada e treinada especificamente para tomar conta das 18 coleções de fauna e de flora atual e fossil da FZB ou conduzir suas pesquisas. A coleção de répteis do museu, por exemplo, é a mais importante do Sul, com cerca de 17 mil amostras, das quais 15 são espécimes-tipo (que servem como modelo de uma espécie) ou parátipos (que representam um pouco da variação dentro da espécie). “Não basta designar um biólogo para cuidar das coleções. As funções da fundação e da secretaria são diferentes”, comenta Mahler. Em sua coleção paleontológica, a fundação também abriga fósseis de alguns dos dinossauros mais antigos do Brasil e do mundo, como Guaibasaurus candelariensis e Sacisaurus agudoensis, ambos encontrados em terras gaúchas e que viveram há cerca de 220 milhões de anos. Para o diretor-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), Odir Antônio 2

3

Ossos da pata do dinossauro Guaibasaurus candelariensis, parte da coleção paleontológica do Museu de Ciências Naturais

Dellagostin, a incorporação do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais à Sema pode ajudar a manter os acervos, porém as perspectivas para as pesquisas são menos otimistas. “A contratação de novos pesquisadores provavelmente deixará de existir”, diz Dellagostin. Pesquisa Básica e aplicada

Alguns pesquisadores temem que a incorporação da FZB à secretaria leve à perda de liberdade na escolha dos temas e enfoques de seus estudos porque a Sema está diretamente ligada ao Poder Executivo. “O que a secretaria entende como pesquisa é a pesquisa aplicada. Ela não entende que a pesquisa básica fornece subsídios para a aplicada”, ressalta Ana Maria Ribeiro, curadora do acervo de paleontologia do museu, composto de 18 mil de peças. “O Museu Nacional chamou a atenção do público pelo seu incêndio repentino. Aqui estão acabando com nosso museu a fogo lento.” Hoje a

Fundação não renovou parceria com o Instituto Vital Brazil para produção de soro antiofídico

FZB toca 148 projetos e subprojetos, dos quais 41% são vinculados à secretaria, 36% a demandas externas e 23% a demandas internas. Outro ponto levantado pelos pesquisadores é que a fundação, por dispor de um CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) próprio, tem mais flexibilidade para captar recursos, uma vantagem que seria perdida com sua incorporação à Sema. A fim de tentar manter suas pesquisas e atividades acadêmicas, a FZB tem procurado firmar parcerias com instituições de ensino superior e estimular a pós-graduação. Em setembro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) aprovou, por exemplo, a criação do primeiro mestrado acadêmico da fundação, na área de sistemática e conservação da diversidade biológica, a ser ministrado conjuntamente com a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs). Porém, com a possível extinção da FZB, o programa tende a não ser implementado. As dúvidas sobre o futuro da fundação também têm afetado a área de prestação de serviços. Entre as atividades impactadas está a interrupção dos programas Ciência na Praça e Museu vai à Escola. “A parceria entre a FZB e o Instituto Vital Brazil não foi renovada no ano passado”, afirma o biólogo Marco Aurélio Azevedo, do Museu de Ciências Naturais. A colaboração envolvia o uso do veneno de serpentes nativas na produção de soro antiofídico e a realização de pesquisas sobre a peçonha. Se a situação da FZB não chegar a um bom termo até o fim do ano, seu destino será decidido depois da posse da nova administração estadual, em janeiro de 2019. n Marília Carrera pESQUISA FAPESP 273  z  63


Física y

Ponto de encontro internacional Instituto Principia pretende reunir pesquisadores do Brasil e do exterior em torno de projetos com duração máxima de seis meses

fotos  léo ramos chaves

Marcos Pivetta

O

número 145 da rua Pamplona, no bairro paulistano da Bela Vista, a 500 metros da avenida Paulista, deverá voltar a abrigar pesquisas na área de física nos próximos meses. Nesse endereço, onde funcionou em um casarão histórico entre 1952 e 2009 o Instituto de Física Teórica (IFT), atualmente uma unidade da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um novo centro de produção e difusão de conhecimento científico está previsto para ser inaugurado em 2019: o Instituto Principia. Inspirado no Instituto Isaac Newton para Ciências Matemáticas, cuja sede se situa dentro do campus da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, o Principia terá três áreas centrais de atuação: a promoção de pesquisa colaborativa entre físicos do Brasil e do exterior, a divulgação de ciência para o público leigo e um trabalho de mentoria com alunos da rede pública do ensino médio em que for identificada forte aptidão para seguir a carreira de cientista nas áreas de física e matemática.

64  z  novembro DE 2018


O nome do novo instituto é uma referência ao famoso livro de Newton (16431727) denominado Princípios matemáticos da filosofia natural, ou simplesmente Principia em latim. “Nossa ideia não é competir com as universidades por fundos públicos para a pesquisa nem ser uma agência de fomento”, explica a física Renata Zukanovich Funchal, diretora científica do Instituto Principia e professora do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). “Queremos ser um centro autossuficiente e captar dinheiro privado para nossas atividades.” A mantenedora do Principia é a Fundação Instituto de Física Teórica, entidade de direito privado sem fins lucrativos que criou o IFT em 1951. A fundação foi responsável pela gestão do IFT até 1987, quando a Unesp assumiu o instituto. Mesmo depois de ter sido encampado pela universidade, o IFT funcionou na Bela Vista até 2009, quando foi transferido para um prédio no bairro da Barra Funda. Um projeto por vez

Com a saída do IFT de sua sede, a fundação vendeu o terreno de 6.500 metros quadrados (m2) onde se situa o casarão para uma incorporadora imobiliária em um arranjo que possibilitou a gestação e a montagem do Principia. O negócio rendeu à fundação a propriedade de novos imóveis que foram edificados pela construtora no endereço da Pamplona: um pequeno prédio de 1.300 m2 que será usado para abrigar cerca de 25 pesquisadores, um teatro-planetário de 140 lugares, chamado Domo Digital, e quase cinco dos 20 andares de uma torre comercial de escritórios. Atualmente, 94% dos escritórios pertencentes à fundação, que totalizam pouco mais de 4 mil m2, estão alugados. Reformado, o antigo casarão também permaneceu com a fundação. Seu térreo virou um café-restaurante, alugado e administrado por terceiros, e a parte superior abriga um espaço a ser

Do interior do Principia, avista-se o domo do teatro-planetário e a torre comercial de escritórios, cujo aluguel custeia o instituto

O Domo Digital ainda precisa de um investimento de R$ 2 milhões para ser concluído

usado pela escola de jovens talentos do Principia. “O aluguel dos escritórios e do restaurante nos rende cerca de R$ 3,6 milhões por ano”, afirma Gerson Francisco, diretor-presidente da fundação. “Nosso compromisso é arcar com os custos fixos do Principia.” O centro de pesquisas está quase pronto. Falta instalar o piso e mobiliá-lo. O teatro que abriga o planetário ainda precisa de cerca de R$ 2 milhões para ser terminado, mas já pode ser usado para palestras e eventos menores. “Queremos vender os naming rights do Domo Digital para uma empresa e buscar apoio no setor privado”, diz Renato Vicente, professor do Instituto de Matemática da USP e vice-presidente do conselho curador do Principia. O primeiro evento no teatro ocorreu no mês passado. O físico Francis Halzen, da Universidade de Wisconsin-Madison, dos Estados Unidos, falou sobre as pesquisas e descobertas feitas no Observatório de Neutrinos IceCube, construído próximo ao polo Sul, na Antártida. Em julho passado, o experimento, do qual Halzen é o cientista-chefe, identificou a primeira fonte documentada de neutrinos e de raios cósmicos de alta energia, as partículas mais potentes do Universo (ver entrevista na página 66).

O físico do IceCube é o primeiro nome a fazer parte do comitê de especialistas do exterior encarregado de selecionar os projetos científicos que serão apoiados pelo Principia. O grupo de pesquisadores internacionais terá entre cinco e sete membros e receberá para análise final as melhores propostas pré-escolhidas pelo comitê científico do instituto, formado por cientistas das três universidades estaduais de São Paulo. O Principia não terá um corpo permanente de pesquisadores. Seu prédio dedicado à ciência será ocupado temporariamente por equipes de físicos do Brasil e do exterior que deverão passar uma temporada de três a seis meses trabalhando conjuntamente em torno de alguma questão científica importante. “Queremos que o instituto funcione como um hub internacional de pesquisadores, que ficarão algum tempo aqui debruçados sobre um tema fundamental da física e produzirão trabalhos científicos conjuntos”, comenta Renata. “Vamos abrigar em nossa estrutura apenas um projeto por vez.” Não há uma data marcada para que o centro de pesquisas receba sua primeira leva de pesquisadores-visitantes, mas a meta é que isso ocorra em 2019. n pESQUISA FAPESP 273  z  65


Entrevista Francis Halzen y

Na cola dos

neutrinos e raios cósmicos Cientista chefe do observatório IceCube comenta a descoberta recente de partículas de alta energia

T

eórico de formação, com atuação na interface entre a física de partículas, a astrofísica e a cosmologia, o belga-americano Francis Halzen, de 74 anos, professor na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, participa há mais de 30 anos de experimentos no polo Sul geográfico, na Antártida, montados para registrar a passagem de neutrinos de alta energia pela Terra. Em 1987, começou a trabalhar na equipe do Amanda, um telescópio de neutrinos de primeira geração, que foi sucedido pelo Observatório de Neutrinos IceCube. Operacional desde 2003, o IceCube é formado por uma rede de 5.160 detectores instalados entre 1,5 e 2,5 quilômetros de profundidade, sob 1 bilhão de toneladas de gelo nos arredores da estação norte-americana Amundsen-Scott. Como cientista-chefe do observatório, um projeto de US$ 279 milhões, Halzen coordenou o grupo de 300 pesquisadores 66  z  novembro DE 2018

de 12 países que, em agosto deste ano, fez a maior descoberta do IceCube: a identificação da primeira fonte de neutrinos de alta energia e, por conseguinte, também de raios cósmicos de alta energia, as partículas mais potentes do Universo. A fonte se situava fora da Via Láctea e era um blazar, um tipo específico de galáxia elíptica gigante, com um buraco negro ativo em seu centro, denominado TXS 0506+056, distante cerca de 4 bilhões de anos-luz da Terra. O físico esteve em outubro em um evento promovido pelo Instituto Principia, em São Paulo (ver reportagem na página 64), e, nesta entrevista, comenta alguns detalhes do achado e fala dos planos de expansão do IceCube. Qual a relação entre a produção de neutrinos de alta energia e a presença de raios cósmicos de alta energia? Não se pode acelerar raios cósmicos perto de buracos negros ou em qualquer lugar do Universo sem produzir neu-

trinos. Como os raios cósmicos não revelam sua origem [pois são partículas eletricamente carregadas e não viajam em linha reta], somos obrigados a procurar neutrinos no lugar deles. Os neutrinos se movem quase à velocidade da luz, são eletricamente neutros e não são absorvidos pela matéria nem defletidos por campos magnéticos. Então um mapa com a localização de neutrinos de alta energia é também um mapa das fontes de raios cósmicos altamente energéticos. Há tempos sabíamos disso e agora conseguimos determinar a primeira fonte dessas partículas. Nossos dados apontavam a região de origem do neutrino que medimos em setembro de 2017 com erro de 0,1 grau. É uma ótima resolução. Mas, em um catálogo astronômico, há literalmente centenas de milhares de objetos em uma área de 0,1 grau. Sozinhos, não conseguiríamos ter descoberto, dentro dessa região maior, qual era exatamente a fonte do neutrino de alta energia. As medições multimensageiras, como as do satélite Fermi, vieram nos salvar. O Fermi registrou, no mesmo período que nós, uma fonte de raios gama com brilho sete vezes aumentado dentro da área maior que havíamos apontado como sendo a direção de origem do neutrino de alta energia [a astronomia multimensageira alia as observações de radiação eletromagnética de várias energias com a detecção de outras partículas e ondas emitidas pelos corpos celestes]. Mandar essas coordenadas para os astrônomos foi um ato de desespero. A descoberta do blazar TXS 0506+056 foi um golpe de sorte? A galáxia que foi identificada como fonte era conhecida, mas ninguém tinha visto algo de especial nela. Mesmo que alguém tivesse me dito que a fonte seria uma galáxia com um buraco supermassivo, ninguém pensaria nessa galáxia especificamente. Olhamos para ela no dia certo, tanto que nem todos os telescópios mediram o aumento exagerado de produção de raios gama nessa galáxia. Alguns mediram, outros, não. Essa fonte em particular produziu neutrinos de alta energia de forma significativa uma vez em 10 anos. E o pico de produção não foi esse evento em 2017, quando o IceCube registrou apenas um neutrino de alta energia. Foi em 2014. Por que não vimos essa produção de quatro anos atrás? Na


Para o físico, a descoberta dos raios cósmicos só foi possível em razão da astronomia multimensageira

Léo ramos chaves

verdade, vimos. Um estudante de pós-graduação da Universidade de Genebra [Asen Christov], ligado ao IceCube, escreveu sobre esse registro anterior em sua tese. Mas não publicamos nenhum paper sobre esse sinal justamente porque não tínhamos como determinar a fonte de onde vinham os neutrinos. Como disse, nossa resolução para determinar a origem desses neutrinos era de 0,1 grau, uma região do céu onde pode haver de tudo. Há cerca de 5 mil blazares conhecidos. O senhor acredita que todos eles produzem neutrinos e raios cósmicos de alta energia?

Se 5% ou 10% se comportarem como a fonte que identificamos, podemos explicar todos os neutrinos e raios cósmicos de alta energia. Se não for esse o caso, as coisas se tornam mais complicadas. Não imagino que o céu esteja cheio de outros objetos tão energéticos. Esse é meu palpite. Mas, no fundo, não sabemos. Então descarta a hipótese de que estrelas supernovas de dentro de nossa galáxia também possam ser fonte dessas partículas? Na verdade, não. Analisamos dados regularmente de supernovas. Aposto que, mais dia, menos dia, vamos descobrir alguma fonte de neutrinos de supernovas. As supernovas devem funcionar como aceleradores de partículas por um tempo muito curto. Sua produção de energia é de uma a duas ordens menor do que nos blazares. Estamos chegando perto desse tipo de descoberta. Quando fizermos uma ampliação do IceCube, vamos fazer des-

cobertas com muito mais rapidez. Devemos começar a instalar novos sensores em 2022 e, cinco anos mais tarde, tudo deverá estar funcionando. Vamos fazer o upgrade com o IceCube em funcionamento. Não será preciso parar o experimento. Como isso é possível? Conhecemos hoje como funciona a óptica do gelo tão bem que podemos aumentar a distância entre os sensores do IceCube sem perda de informação para o experimento. Podemos dobrar a distância dos sensores e colher dados sobre um volume de gelo 10 vezes maior. Dos 5 mil sensores instalados no IceCube, até hoje perdemos só um. Não tínhamos ideia de que tudo funcionaria tão bem a -15 graus centígrados. Os sensores estão em um ambiente estável, onde a temperatura é constante e não há movimentos. É um ambiente muito melhor do que o de experimentos similares com sensores instalados dentro da água. n Marcos Pivetta pESQUISA FAPESP 273  z  67


tecnologia  P&D y

Novas perspectivas para a indústria

17

Rede de 21 institutos de pesquisa aplicada mantidos pelo Senai viabilizou mais de 500 projetos de interesse do setor produtivo Domingos Zaparolli

U

ma iniciativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) implementada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) está criando novas perspectivas para a pesquisa e a inovação nas atividades produtivas no Brasil. Trata-se da constituição da rede Institutos Senai de Inovação (ISIs). Atualmente são 21 unidades em operação onde trabalham 550 pesquisadores, 40% deles com mestrado ou doutorado, que geraram mais de 500 projetos de pesquisa de interesse da indústria desde 2013, quando começaram a operar as primeiras unidades. Mais cinco estão previstas até 2021. Os ISIs foram concebidos em 2011 e começaram a ser implantados em 2013. A ideia surgiu de um grupo coordenado pela CNI denominado Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI),

68  z  novembro DE 2018

que reúne cerca de 200 executivos de grandes empresas que atuam no país (ver Pesquisa FAPESP nº 266). O objetivo era criar centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) aptos a apoiar a indústria na tarefa de buscar inovações em produtos e processos produtivos e, assim, ganhar competitividade. “O Brasil já teve um parque fabril relevante. Desde a crise da dívida externa dos anos 1980 deixou de investir e perdeu terreno. China, Índia e Coreia do Sul investiram em desenvolvimento industrial e se tornaram potências. Precisávamos reagir”, diz Rafael Lucchesi, diretor-geral do Senai. Para Lucchesi, o momento global da indústria, com a revolução 4.0, pode ser fatal para as empresas que não inovem e não estejam sintonizadas com os modelos atuais de produção. No entanto, indústrias com baixa escala global,

fotos  JosÉ Paulo Lacerda / CNI

12


Pontos conectados Quais são e onde estão os laboratórios em operação

15

8

20

1

Automação (Salvador-BA): gerenciamento e controle de plantas industriais

2

Biomassa (Três Lagoas-MS): energia e sustentabilidade da biomassa

3 4

Biossintéticos (Rio de Janeiro-RJ): biologia sintética

5

Eletroquímica (Curitiba-PR): soluções contra a corrosão

6

Engenharia de estruturas (MaringáPR): novos materiais estruturais leves

7

Engenharia de polímeros (São Leopoldo-RS): borracha, blenda e compósitos, plásticos, tintas, síntese de polímeros

8

Engenharia de superfície (Belo Horizonte-MG): química molhada e tecnologia do plasma e tribologia

9

Sistema de manufatura (Joinville-SC): processo de usinagem e manufatura aditiva a laser

10

Logística (Salvador-BA): logística empresarial

11

Manufatura avançada e microfabricação (São Paulo-SP): design e desenvolvimento de produtos e processos e tecnologia para microfabricação

12

Materiais avançados (São Bernardo do Campo-SP): metodologias de design computacional, simulação, caracterização, análise e prototipagem de novos materiais

13

Soluções integradas de metalmecânica (São Leopoldo-RS): tecnologia de usinagem e manufatura aditiva e soluções de manufatura digital

14

Metalurgia e ligas especiais (Belo Horizonte-MG): desenvolvimento de ligas metálicas e processos metalúrgicos

15

Microeletrônica (Manaus-AM): projetos de sistemas e sensores

16

Processamento mineral (Belo Horizonte-MG): diagnóstico mineral e otimização de processos

17

Química verde (Rio de Janeiro-RJ): extração de matérias-primas de fontes renováveis

18

Sistemas embarcados (Florianópolis-SC): sistemas de comunicação, processamento de sinais e controle e otimização

19

Sistemas virtuais de produção (Rio de Janeiro-RJ): sistemas interativos para realidade virtual

20

Tecnologia de informação e comunicação (Recife-PE): pesquisa prospectiva em novas tecnologias de informação

13

21

15

20 1 4 10

7

Laboratórios de alguns dos 21 institutos espalhados pelo país: foco dirigido para o mercado

2

8 14 16

11 12 3 17 19 5 6 9 18 7 13

Conformação e união (Salvador-BA): tecnologia de materiais

21

Tecnologias minerais (Belém-PA): tecnologias limpas para a produção mineral, segurança da indústria e infraestrutura e logística pESQUISA FAPESP 273  z  69


como a brasileira, têm dificuldade em manter internamente um corpo técnico e uma adequada infraestrutura dedicados à inovação. Os ISIs surgiram para preencher essa lacuna, conta Lucchesi. O modelo adotado nos institutos foi inspirado na Sociedade Fraunhofer, da Alemanha, organização referência em pesquisa aplicada da Europa. Especialistas da Fraunhofer IPK de Berlim estiveram no Brasil para ajudar no planejamento e implementação de cada unidade ISI com foco na orientação para o mercado e hoje acompanham o desempenho. O Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) foi contratado para analisar o ecossistema de inovação brasileiro. Cada instituto do Senai é especializado em um tema que reflete uma tendência produtiva global, como automação, manufatura avançada, sistemas embarcados, logística, química verde, tecnologia da informação e comunicação (ver lista completa na página 69),

Os desafios propostos pelas empresas são analisados por uma rede de pesquisadores e laboratórios

e está localizado próximo de complexos industriais e universitários. Os institutos oferecem soluções para demandas locais e nacionais e, apesar de distantes geograficamente, foram concebidos para atuar de forma integrada. Os desafios propostos pelas empresas são atendidos de forma multidisciplinar, por uma rede de pesquisadores e laboratórios. Na escala de maturidade tecnológica em projetos, a Technology Readiness Level (TRL), que vai de 1 (pesquisa básica) até 9 (produto no mercado), o foco dos ISIs é trabalhar nas etapas intermediárias, desde a concepção de conceitos de novos produtos e aplicações, as experimentações e validações, até a fase de prototipagem e produção-piloto do novo produto. Os investimentos nos 21 institutos em operação somam R$ 2,5 bilhões; outros R$ 500 milhões estão programados para as cinco novas unidades que devem ser inauguradas até 2021, totalizando R$ 3 bilhões. Metade, R$ 1,5 bilhão, é resulta-

Um complexo com foco no futuro Senai e Sesi planejam erguer em Brasília uma estrutura para coordenar os Institutos de Inovação

O Serviço Nacional de

que desenvolvem soluções de

construindo novas unidades se

como segurança pública,

Aprendizagem Industrial (Senai)

saúde e segurança do trabalho.

for necessário”, afirma Leal.

mobilidade urbana e

e o Serviço Social da Indústria

Gustavo Leal, diretor de

(Sesi) programam construir

operações do Senai Nacional,

coordenação seja capaz de

um complexo voltado à

explica que a coordenação

atender aos desafios

também contará com um centro

inovação em Brasília (DF).

da rede ISI terá a incumbência

apresentados pelas lideranças

de desenvolvimento de novas

A ideia é reunir em uma área

de estabelecer o diálogo com

empresariais. Para isso, Sesi e

tecnologias educacionais a

de 85 mil metros quadrados

cada um dos 28 setores que

Senai estão em busca de

serem empregadas nas redes

ambientes voltados para o

compõem a indústria nacional

parcerias para desenvolver

Sesi e Senai e uma Universidade

apoio e a disseminação da

com o objetivo de mapear

sua metodologia de trabalho.

Corporativa, responsável

cultura da pesquisa e do

as demandas setoriais imediatas,

Há conversas com o Instituto

por formar talentos para as duas

desenvolvimento tecnológico

para um prazo de três a cinco

para o Futuro, de Palo Alto,

instituições, a Confederação

com foco nas atividades

anos, e as tecnologias que

Califórnia, um think tank cuja

Nacional da Indústria (CNI)

manufatureiras. Batizado de

podem atender essas

missão é apoiar as organizações

e as federações estaduais.

Complexo SE – Sesi Senai, ele

necessidades.

a planejar seu futuro, e o

Também abrigará um centro

Instituto de Tecnologia de

de convenções e um museu

Massachusetts (MIT).

interativo, que permitirá aos

deverá entrar em atividade no

Na sequência, a tarefa da

A proposta é de que a

saneamento. O Complexo SE – Sesi Senai

segundo semestre de 2021.

coordenação será averiguar

A estimativa de investimento é

quais Institutos de Inovação

de R$ 500 milhões.

satisfazem às demandas

será utilizar as competências

formas de explorar o

detectadas e estabelecer um

acumuladas no diálogo e na

conhecimento científico

que serão abrigadas no

plano de atendimento setorial.

busca de soluções tecnológicas

e artístico. “Será

complexo é a coordenação

“Vamos ter agilidade para

para a indústria para estabelecer

um museu que substituirá as

nacional dos 26 Institutos Senai

visualizar as necessidades e

conversações com a sociedade

placas de ‘proibido tocar’

de Inovação (ISIs) e dos oito

adaptar as habilidades da rede

e, assim, encaminhar propostas

por ‘mexa nas coisas, por favor’”,

Centros de Inovação Sesi

ISI, estimulando sinergias ou

para problemas nacionais

brinca Leal.

Uma das principais atividades

70  z  novembro DE 2018

Uma segunda fase do projeto

visitantes experimentar várias


léo ramos chaves

do de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a outra metade tem origem em recursos do sistema CNI/Senai. No caso do BNDES, é feito empréstimo para o Senai com três anos de carência e 12 anos de amortização. Entre os novos institutos, dois devem entrar em operação em 2019. São os de engenharia e estruturas, no Paraná, e de energias renováveis, no Rio Grande do Norte. Outros três – de biotecnologia, em São Paulo, de inspeção e integridade, no Rio de Janeiro, e de elétrica e eletrônica, em Itajubá (MG) – estão previstos para começar até 2021. Marcelo Prim, gerente-executivo de Inovação e Tecnologia do Senai, relata que 25% dos 500 projetos já contratados aos ISIs foram desenvolvidos em parcerias com universidades. As mais atuantes são a Estadual de Campinas (Unicamp), a de São Paulo (USP), as federais de Pernambuco (UFPE), de Santa Catarina (UFSC) e do Rio de Janeiro (UFRJ), o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Os ISIs possuem corpo técnico e infraestrutura em um patamar avançado e, quando necessário, têm a confiança de instituições de pesquisa reconhecidas para a cooperação tecnológica. Eles têm demonstrado capacidade de apresentar soluções para as empresas”, diz Ricardo Alban, presidente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb). Os investimentos nos projetos já contratados aos ISIs superam R$ 500 milhões, sendo que a metade dos recursos é proveniente de empresas de grande porte que estão envolvidas em 30% dos desenvolvimentos de inovações. As empresas de médio porte respondem por 20% dos projetos e 30% dos recursos, enquanto as pequenas empresas e startups são responsáveis por 50% dos projetos e 20% dos recursos. Onze dos 21 institutos são credenciados como unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Para isso, comprovaram capacidade de captar mais de R$ 25 milhões por ano em projetos. O apoio da Embrapii resulta em um financiamento compartilhado, sendo um terço pela agência federal, o valor equivalente pela empresa e o terço restante pelo ISI, que, por sua vez, normalmente não entra com um valor financeiro, mas o equivalente em horas de laboratório e pessoal.

Embalagens da Reciclapac, de São Paulo: auxílio de dois ISIs para desenvolvimento de tecnologia

Segundo Marcelo Prim, os projetos de inovação chegam aos ISIs por dois caminhos principais. Um como demanda de uma grande ou média empresa, que apresenta um problema e espera sugestão de soluções. O outro caminho, que responde por 50% dos projetos, são ideias que surgiram em startups e pequenas empresas e precisam de apoio tanto para o desenvolvimento da solução como para encontrar mercado para as inovações. “É comum nossos pesquisadores fazerem a ponte com grandes empresas que são potenciais clientes da solução”, diz. Embalagens e nanossatélite

Rogério Junqueira Machado criou a start­up Reciclapac, incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec-USP), em São Paulo,

com o objetivo de desenvolver embalagens retornáveis e rastreáveis para o transporte de peças entre as indústrias e seus fornecedores. “Muitas embalagens são descartadas por causa do desgaste do material empregado ou simplesmente porque as empresas não possuem um processo adequado para gerenciar o reúso”, diz. A ideia de Machado foi incorporada por dois institutos do Senai. O ISI Materiais Avançados e Nanocompósitos, de São Bernardo do Campo (SP), ajudou-o a desenvolver uma embalagem resistente feita com plástico reciclável. O ISI Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), do Recife, apoiou Machado no desenvolvimento de uma solução inteligente de rastreamento, por meio de uma plataforma de internet das coisas (IoT). “É um sistema que permite acompanhar toda a cadeia de fornecimento, com informações precisas para auxiliar o planejamento da produção”, diz Sérgio Soares, diretor do ISI-TIC. A embalagem inteligente da Reciclapac foi lançada em janeiro de 2018 e está em teste de conceito em empresas como General Motors, Cebrace (do grupo Saint-Gobain), Nissan e Júlio Simões Logística. “É uma inovação global, que pESQUISA FAPESP 273  z  71


Ciência e indústria

está sendo muito bem-aceita, inclusive em apresentações que fizemos na Alemanha”, diz Machado. A Reciclapac também recebeu apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP. Em Santa Catarina, o ISI Sistemas Embarcados foi escolhido como parceiro da Visiona Tecnologia Espacial no desenvolvimento de tecnologias e testes para o primeiro nanossatélite brasileiro – um equipamento com dimensões contadas em centímetros, de 10x20x30 e peso de 10 quilos, enquanto os tradicionais podem chegar a algumas toneladas. O projeto está orçado em R$ 7 milhões e terá um terço dos recursos financiado pela Embrapii. A Visiona é uma integradora de sistemas espaciais, resultado de uma joint venture entre a Embraer Defesa e Segurança e a Telebras. João Paulo Campos, presidente da empresa, conta que a companhia está empenhada em dominar todo o software embarcado de um satélite, com destaque para o sistema de controle de órbita e atitude do aparelho. “É a tecnologia espacial mais protegida no mundo e os satélites brasileiros sempre foram dotados com equipamentos importados”, diz. Três sistemas são fundamentais para isso: um de controle de órbita e atitude; o de gestão de dados de bordo; e o sistema de controle de solo. “Vamos validar o desenvolvimento dos softwares, em bancada, durante a integração dos subsistemas do satélite e também, em voo, 72  z  novembro DE 2018

O Brasil investe cerca de 1,2% do PIB em P&D, metade do que é despendido por nações desenvolvidas

por intermédio de Plataformas de Coletas de Dados que serão desenvolvidas e espalhadas pelo território nacional. E, por último, o desenvolvimento e construção da estação de solo de controle e rastreio do satélite”, explica Herivaldo Maia, pesquisador-chefe do projeto do ISI Sistemas Embarcados. Segundo Campos, o nanossatélite vai validar as tecnologias desenvolvidas e gerar a segurança necessária para o uso em satélites de grande porte. O nanossatélite deverá ser lançado no primeiro semestre de 2020.

Um estudo divulgado em março deste ano realizado pelo MIT, por encomenda do Senai, mostrou que o Brasil investe por volta de 1,2% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em P&D. A metade dos recursos é pública e a outra metade – executada por empresas privadas – se refere a despesas em grande parte subsidiadas pelo governo. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as nações mais desenvolvidas reunidas na entidade apresentam um dispêndio total médio em P&D de 2,4% do PIB, sendo que 1,65% tem origem nas empresas e 0,75% no governo. Marcelo Prim avalia que o ambiente de inovação no Brasil é historicamente rodeado de incertezas em relação à continuidade de políticas públicas e à disponibilidade de recursos de incentivos. “Inovação industrial é investimento de longo prazo. No Brasil não há previsibilidade e a indústria se retrai, não investe”, afirma. Prim diz que a proposta da CNI é oferecer programas estáveis, abrangentes, de longo alcance e que incentivem a inovação de interesse do setor produtivo. Um exemplo é o Edital de Inovação para a Indústria, realizado ininterruptamente desde 2004. Os editais já apoiaram 947 projetos, sendo que 42% deles resultaram em produtos ou serviços inseridos no mercado. Para Prim, o desempenho é muito positivo, uma vez que a média mundial do impacto de programas semelhantes está entre 30% e 40%. Em 2018, o edital está sendo realizado pelo Senai em parceria com o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). No início de 2019 serão conhecidos os cerca de 120 projetos que receberão um total de R$ 55 milhões. Os escolhidos recebem um aporte variável, que pode chegar a R$ 600 mil. n

JosÉ Paulo Lacerda / CNI

Pesquisador do ISI Sistemas Embarcados, em Florianópolis, que desenvolve tecnologias para um nanossatélite brasileiro


Testes em escala natural Nova estrutura do Cimatec em Camaçari, na Bahia, permitirá montagem de plantas-piloto e impulsionará pesquisas de

Senai Cimatec

âmbito nacional

U

m centro de pesquisa e desenvolvimento que entrará em operação no início de 2019 no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia, tem o potencial de gerar uma nova dinâmica à inovação da indústria brasileira. O Cimatec Industrial, unidade do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), foi concebido para ser o primeiro centro multidisciplinar do país capaz de dar suporte para a fabricação de grandes protótipos, realizar testes em escala natural, permitir a montagem de plantas industriais piloto e ainda oferecer infraestrutura para pesquisas e ensaios em atividades de alto risco, como produtos químicos ou processos produtivos que envolvem resíduos tóxicos. Daniel Motta, gerente de Tecnologia e Inovação do Campus Integrado de Manufatura e Tecnologias (Cimatec), diz que hoje existe uma lacuna na área de pesquisa e desenvolvimento (P&D). “Não existe um espaço para desenvolver protótipos em escala real, que é algo difícil de ser realizado em ambientes urbanos

Robô submarino autônomo fará inspeção visual de dutos de petróleo e gás

onde estão inseridos os centros de pesquisa. Por outro lado, no ambiente industrial, testar e validar inovações muitas vezes representa interromper os atuais processos produtivos”, afirma. A estrutura em Camaçari conta com uma área de 4 milhões de metros quadrados (m2) e o complexo de laboratórios e plantas-piloto será implementado em três grandes etapas ao longo de 30 anos. A primeira fase, que será concluída neste ano, soma 62 mil m2 e abrange 11 edificações, sendo um prédio de administração e 10 laboratórios em áreas diversas, como indústria automobilística, óleo e gás, construção civil, processos químicos, química fina, conformação e união de materiais, metrologia e projetos de engenharia. O investimento na primeira fase é de R$ 80 milhões. Nas etapas futuras o complexo será dotado de estruturas como pistas de testes automobilísticos e aeronáuticos. Contará ainda com um tanque para testes de equipamentos submersos, laboratórios de grande porte que ainda serão defipESQUISA FAPESP 273  z  73


nidos e um túnel de vento – instalação utilizada para simular o efeito do ar em protótipos industriais, como projetos de aviões, automóveis, pás eólicas, aerogeradores, e pela indústria da construção civil. “A infraestrutura será um importante vetor de inovação e crescimento para diversos setores da economia, que contribuirá para a atração de novos empreendimentos para a Bahia, permitindo a diversificação da matriz industrial do estado”, diz Ricardo Alban, presidente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb), principal investidora no projeto. O Cimatec Industrial será uma extensão do Cimatec de Salvador. Essa unidade do Senai, inaugurada em 2002, é um complexo que abriga um centro universitário com nove cursos de engenharia e 2 mil alunos inscritos, oferece pós-graduação lato sensu, com especializações e MBAs, e stricto sensu, com mestrados e doutorados, além de uma escola técnica, com 1,6 mil alunos, um centro tecnológico e três Institutos Senai de Inovação (ISIs): automação, logística e conformação e união de materiais. Ao todo, são 700 profissionais de ensino e pesquisa, sendo 50 doutores. O Cimatec tem 56 laboratórios e os trabalhos de pesquisa no campus contam

Complexo em Salvador: cursos de graduação e pós-graduação, centro tecnológico e três Institutos Senai de Inovação

com o apoio de um Centro de Supercomputação para a Inovação Industrial, inaugurado em 2015 com a aquisição, em parceria com a Shell, do Yemoja (Yemanjá, na língua iorubá), o segundo mais potente supercomputador da América Latina, com capacidade equivalente a 20 mil computadores convencionais. “O Yemoja viabiliza a execução de problemas complexos e com grande volume de dados de imageamento sísmico, como poços de petróleo, que necessitam da capacidade de processamento e armazenamento de alta velocidade”, diz Leone Andrade, diretor de Tecnologia e Inovação do Cimatec. Segundo Daniel Motta, os trabalhos de pesquisa do Senai Cimatec já renderam mais de 100 registros de propriedade intelectual, entre depósitos de patentes e registros de softwares. Não existe um padrão predefinido para a comerciali-

Supercomputador Yemoja, que tem capacidade de 20 mil computadores convencionais 74  z  novembro DE 2018


Projetos do ISI Automação, no campus do Cimatec, avançam em direção à confecção 4.0

zação dos produtos desenvolvidos, com as negociações sendo feitas caso a caso. Em 2018 são 72 projetos de pesquisa em desenvolvimento. O plano de ação das unidades no período de 2014 a 2018 somou projetos orçados em R$ 218 milhões, sendo 33% financiados com recursos da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) e 42% das empresas conveniadas. O Cimatec complementa os 25% restantes, mas não com recursos financeiros, e sim com uma contrapartida econômica que se materializa principalmente na forma de horas empregadas de pessoal e laboratórios. No novo plano de ação, até 2024 estão previstos mais R$ 246 milhões em investimentos distribuídos na mesma proporção.

fotos  Senai Cimatec

Robô autônomo

Um dos principais projetos de inovação desenvolvidos no Cimatec é o FlatFish, um robô submarino completamente autônomo que fará a inspeção visual em 3D de alta resolução em dutos submersos de petróleo e gás (ver Pesquisa FAPESP nº 244). O robô é capaz de ficar em uma estação submarina sem necessidade de emergir em período estimado de até seis meses. Equipado com sonares, a máquina planeja e executa missões, coleta dados de inspeção e os envia a equipamentos operados na superfície. O pro-

jeto foi realizado pelo ISI Automação em parceria com a Shell e o Instituto Alemão de Pesquisa em Inteligência Artificial (DFKI). O investimento foi de R$ 30 milhões, 33% desse valor financiado pela Embrapii. “A parceria nos permitiu utilizar o estado da arte na academia para desenvolver uma tecnologia que vai reduzir custos e aumentar a segurança das nossas operações”, diz Rosane Zagatti, gerente de Tecnologia Submarina da Shell. Segundo Rosane, hoje a inspeção de unidade de produção offshore se dá por meio de veículos operados remotamente por especialistas, com barcos de apoio, cujo uso custa diariamente de US$ 100 mil a US$ 300 mil. As unidades autônomas existentes no mercado têm capacidade de realizar batimetria acústica e inspeção de tubulações, mas não de navegar de forma estável próximo às instalações e executar inspeção visual de forma autônoma. Além disso, requerem também um barco de apoio para sua operação. “Com o FlatFish esperamos reduzir os custos das inspeções submarinas em cerca de 50%, aumentar a segurança ambiental e a da integridade dos ativos e eliminar o risco de segurança do trabalho associado às tarefas com embarcações de apoio em alto-mar”, diz.

A Shell assinou acordo com a empresa petrolífera italiana Saipem para industrialização e comercialização do robô – o FlatFish deve estar disponível no mercado a partir de 2020. Esse robô submarino é um dos 32 projetos já concluídos pelo ISI Automação, que tem uma equipe de 58 pesquisadores, sendo 27 mestres e quatro doutores. No momento, o grupo trabalha em outros 31 projetos, orçados em R$ 116 milhões. A automação está cada vez mais presente nos processos comerciais e industriais, permitindo novos modelos de abordagem ao consumidor. A indústria têxtil, por exemplo, avança na direção da confecção 4.0, que permite a produção sob demanda de forma automatizada de produtos personalizados, entregues da forma mais rápida possível. “Atender as demandas desse novo modelo produtivo é hoje o grande desafio dos operadores logísticos”, afirma o engenheiro Herman Lepikson, pesquisador-chefe do ISI Logística. No final de 2017, uma parceria entre os ISIs Automação e Logística, ambos do Cimatec, com o Senai Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil, do Rio de Janeiro, desenvolveu uma unidade-modelo de confecção 4.0, que vem sendo analisada por varejistas do país. Nela, a linha de produção funciopESQUISA FAPESP 273  z  75


embraer

Jato E175, da Embraer: empresa firmou contrato com o Cimatec para melhorar a aeronavegabilidade de seus aviões

na a partir da intenção de compra do cliente, com a escolha da peça de roupa e a visualização por meio de um espelho virtual que capta a imagem do consumidor e o veste virtualmente com o modelo escolhido. O sistema realiza, automaticamente, um estudo antropométrico do usuário. O cliente escolhe a estampa e o modelo. Em seguida, com autorização do usuário, o sistema, por meio de robô colaborativo, afere a densidade de gordura corpórea. Após esse procedimento, o cliente insere seus dados pessoais e de contato no tablet ao lado do espelho para ser notificado quando a peça estiver pronta. Depois da aprovação da compra, ele recebe um e-mail com um QR Code e um equipamento imprime a peça no papel. A costureira recebe o molde e faz a sequência de montagem. Após a finalização, o sistema envia um e-mail ao consumidor com sua foto vestindo a peça acabada e avisando que ela está pronta para ser retirada. É uma mudança significativa do modelo de produção atual baseada na confecção de peças em massa, em que as matérias-primas são entregues em uma unidade produtiva de grande porte e a mercadoria pronta segue em grandes lotes para os varejistas. Lepikson diz que centros de tecnologia logística em todo o mundo hoje se concentram em prover soluções capazes de disponibilizar 76  z  novembro DE 2018

Pesquisas do Cimatec resultaram em mais de 100 registros de propriedade industrial

insumos em pequenas quantidades de forma descentralizada e rápida sem impacto significativo nos custos. Para isso, a análise de técnicas de produção aditiva, com impressoras 3D, estão sendo analisadas. “No futuro próximo, a produção de vários bens de consumo será personalizada e descentralizada. Viabilizar essa estratégia é nossa prioridade hoje”, diz.

O ISI Conformação e União de Materiais, do Cimatec, tem uma equipe de 70 pessoas, 30 delas engenheiros especialistas, destes, cinco com doutorado. Participa em mais de 20 projetos, 10 como líder, somando pouco mais de R$ 50 milhões contratados. Como explica Rodrigo Coelho, pesquisador-chefe da unidade, um dos principais desafios dos processos de construção e manutenção de grandes estruturas, como equipamentos industriais, aviões, veículos e torres eólicas, é garantir a qualidade da união de diferentes materiais por meio de técnicas como solda, adesivagem ou conformação mecânica, por exemplo. Uma tarefa do ISI Conformação e União de Materiais é garantir a qualidade da confecção da estrutura e desenvolver técnicas de inspeção e monitoramento eficientes e acuradas, proporcionando planos de manutenção mais seguros e menos custosos para as indústrias. Um dos contratos atualmente em execução por essa unidade do ISI é uma parceria com a fabricante Embraer para melhorar a aeronavegabilidade de seus aviões, ampliando a segurança e diminuindo o tempo de reparo de eventuais danos. O projeto propõe o desenvolvimento de um sistema de monitoramento de juntas estruturais com uma nova técnica de Monitoramento da Saúde Estrutural (SHM), ainda inédita no Brasil. n Domingos Zaparolli


ENGENHARIA METALúRGICA y

Dois séculos de Ipanema Siderúrgica pioneira representou o início da Primeira Revolução Industrial no país Yuri Vasconcelos

Léo Ramos Chaves

H

á 200 anos, ainda durante o período colonial brasileiro, uma siderúrgica erguida na região de Sorocaba, no interior paulista, conseguia correr gusa pela primeira vez no país. Símbolo da Primeira Revolução Industrial, correr gusa significa transformar, em altos-fornos aquecidos por carvão, o minério de ferro em ferro fundido. Em estágio líquido, o material é vazado em moldes para produção de máquinas e equipamentos diversos. A efeméride foi celebrada com uma aula no anfiteatro do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) no dia 31 de outubro, e uma solenidade no dia seguinte nas instalações da antiga Fábrica de Ferro Ipanema. Uma maquete da siderúrgica feita por impressão 3D por Gabriel Faria, aluno da escola, marcou as comemorações.

Criada por dom João VI em 1810 juntamente com duas outras fundições em Minas Gerais – a Patriótica e a Morro do Pilar –, Ipanema teve importância não apenas no desenvolvimento da siderurgia e metalurgia do país, mas na história do Brasil (ver Pesquisa Fapesp nos 202 e 209). “Ela representou o início da Primeira Revolução Industrial no país. Forneceu moendas e engrenagens de ferro fundido para mais de 200 engenhos de cana de São Paulo. A produção de açúcar era a principal atividade econômica do estado naquela época”, lembra Fernando Landgraf, professor da Poli-USP e diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) entre 2012 e 2018. A fábrica era uma unidade siderúrgica complexa e atraiu a atenção internacional em sua época. Dotada de dois altos-fornos, funcionou de maneira intermitente por pouco mais de 100 anos e

produziu milhares de toneladas de ferro fundido durante o século XIX. Sua última operação ocorreu por volta de 1920. A unidade foi a mais bem-sucedida das três instalações siderúrgicas inauguradas no Brasil colônia. Patriótica funcionou por apenas 20 anos, numa escala de produção muito menor e sem fazer ferro-gusa, e Morro do Pilar fundiu ferro apenas uma única vez, pois o forno travou – depois, passou a produzir por outros métodos, menos produtivos. Outra contribuição relevante de Ipanema e das unidades mineiras foi a formação de mão de obra especializada para um setor industrial nascente no país. “As três fábricas funcionaram como escolas. Formaram um grande número de técnicos em siderurgia e metalurgia, responsáveis por levar adiante a indústria de ferro no país. Ipanema cumpriu o papel que se esperava dela”, conclui Landgraf. n

Instalações remanescentes da Fábrica de Ferro Ipanema, no interior paulista

pESQUISA FAPESP 273  z  77


humanidades  Linguística y

Pela sobrevivência das

línguas indígenas


Com auxílio de tecnologia, pesquisadores atuam para evitar desaparecimento de idiomas nativos existentes no Brasil

Luisa Destri

ilustraçãO Arthur Vergani

A

s cerca de 170 línguas indígenas faladas no país constituem hoje importante objeto de pesquisa na área da linguística. Trata-se de uma luta contra o tempo. Diante da estimativa de que esses idiomas possam desaparecer em 50 ou 100 anos, linguistas dedicam-se não apenas a registrá-los, mas também a trabalhar por sua sobrevivência. De livros escolares a dicionários, de sites em idiomas indígenas a corpus linguísticos digitais, uma geração de pesquisadores que iniciou seus estudos junto às comunidades na década de 1990 propõe contribuições que atendem, ao mesmo tempo, exigências científicas da área e propósitos sociais. “Nós perdemos uma grande diversidade e vamos perder mais ainda”, afirma Luciana Storto, professora do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), lembrando estimativa de que, antes da colonização, eram mais de mil os idiomas nativos falados no país. Ainda

assim, o Brasil é reconhecido mundialmente pela multiplicidade de suas línguas: são 37 famílias ou subfamílias linguísticas (macro-jê e tupi são os maiores agrupamentos), além de outras oito línguas isoladas – ou seja, não relacionadas a nenhuma outra. A população indígena no país tem crescido, chegando atualmente a 896.917 indivíduos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas há cada vez menos falantes dessas línguas – são hoje 434.664 as pessoas aptas a utilizá-las. Embora muitos povos não vivam em terras indígenas, a maior parte desses falantes se concentra em áreas demarcadas, que ocupam 13% do território do país e favorecem a preservação da língua e da cultura dessas etnias. No livro Línguas indígenas: Tradição, universais e diversidade, com lançamento previsto para 2019, Storto

explica que, enquanto o atendimento à saúde e à alimentação tem melhorado entre os povos indígenas, o “preconceito histórico” faz com que muitos abandonem suas línguas, acreditando ser esse o caminho mais adequado para obtenção de fluência na língua portuguesa. Para idiomas de transmissão oral, as consequências desse processo são desastrosas. “O conhecimento é passado de geração a geração principalmente através de narrativas contadas pelos mais velhos e experientes aos mais novos”, esclarece Storto. Quando os mais velhos deixam de utilizar determinada língua e as crianças de aprender, o resultado é o desaparecimento do idioma. A escola, que poderia interferir nesse processo, nem sempre é capaz de fazê-lo. Embora o ensino indígena tenha sua autonomia legalmente garantida desde 1999, não há um projeto educacional estruturado – cada etnia deve se encarregar de conceber o próprio. Com poucos profissionais nativos formados para isso, as comunidades dependem de colaboração especializada para desenvolver materiais específicos de ensino do próprio idioma. O trabalho do linguista junto às comunidades indígenas é extenso e tem início, quase sempre, com a descrição da língua em seus inúmeros aspectos – os sons e suas combinações, as palavras e sua composição, as sentenças e suas formações, a língua em uso. Uma primeira síntese desses conhecimentos se dá em trabalhos teóricos, que podem assumir a pESQUISA FAPESP 273  z  79


forma, por exemplo, de uma gramática. Foi o caso de Storto, que em sua tese de doutorado, defendida no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, dedicou-se ao karitiana, idioma de uma comunidade que vive em uma área localizada em Porto Velho, Rondônia. “É comum que essa seja a primeira abordagem, porque toda língua tem uma lógica, e os linguistas têm técnicas para extrair essa lógica e escrever gramáticas”, explica Filomena Sandalo, professora do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp). Pesquisadora do tema há mais de 25 anos, em sua tese de doutorado, defendida na Universidade

A produção de material para uso nas comunidades é uma maneira de retribuir a contribuição dos indígenas

de Pittsburgh, nos Estados Unidos, ela também propôs uma gramática, no caso do kadiwéu, idioma falado pela comunidade indígena homônima, cujas terras se situam no Mato Grosso do Sul. A partir da descrição, que é também uma maneira de conhecer e dominar a língua, o trabalho pode se desenvolver em distintas direções. O de Sandalo tem trajetória pouco comum, porque se subordina a discussões teóricas no campo do gerativismo. Apresentado pelo linguista e filósofo estadunidense Noam Chomsky no fim da década de 1950, tal campo descreve e explica abstratamente a linguagem, entendida como uma capacidade inata do cérebro humano. “Fiz uma gramática atípica entre aqueles que trabalham na documentação de línguas indígenas”, afirma a pesquisadora da Unicamp. “O tema que busco são os universais da linguagem. Aquilo que caracteriza a linguagem humana independentemente de cultura e sociedade.” Corpus digital e website

Preservação desde a infância Quando foi convidada pelos Juruna

tradição da comunidade indígena,

para registrar suas cantigas de

está em Fala de bicho, fala de

ninar, Cristina Fargetti ficou

gente – Cantigas de ninar do povo

surpresa: alguns anos antes, havia

juruna (Edições Sesc). O livro traz

perguntado a integrantes da

um estudo completo do gênero,

comunidade se havia a tradição de

comparando-o a cantigas

mulheres cantarem, à noite, para

portuguesas e brasileiras,

seus filhos. Não havia. “Quem faz a

discutindo seu significado entre os

pergunta errada recebe a resposta

Juruna e apresentando transcrição

errada”, constata hoje, depois de

e tradução contextualizada de

descobrir que a tradição existe,

49 cantigas. O rico repertório

mas que as cantigas de ninar

musical dessa etnia é objeto ainda

podem ser entoadas apenas

de um estudo da pesquisadora e

durante o dia, até por volta das

compositora Marlui Miranda, que

16 horas. Os Juruna acreditam que

assina a transcrição das cantigas

o sono leva temporariamente a

recolhidas por Fargetti e

alma das pessoas para longe do

reproduzidas em um CD que

corpo. Se entoadas à noite, essas

acompanha o volume. Há também

cantigas afastariam a alma com

discussões sobre o humor entre os

rapidez. Puxada para o escuro,

Juruna e o modo como entendem as

ficaria impedida de voltar. Isso

diferenças entre humanos e animais

provocaria o adoecimento ou,

– aspectos importantes para a

até mesmo, a morte da criança.

compreensão das cantigas e que

O resultado da pesquisa, que tinha como objetivo revitalizar essa

80  z  novembro DE 2018

evocam conhecimentos específicos da linguística e da antropologia.

Como parte do projeto “Fronteiras e assimetrias em fonologia e morfologia”, que propôs experimentos com o português e o kadiwéu a fim de discutir teoria linguística, Sandalo coordenou a criação de um corpus digital dessa língua indígena. Disponível para consulta no site do Projeto Tycho Brahe, da Unicamp, reúne algumas narrativas desse povo, em arquivos sonoros e de texto, trazendo tradução de cada uma das palavras (as anotações de um texto para explicar, por exemplo, o sentido de uma palavra são chamadas pelos linguistas de “glosas”) e análise morfológica. O objetivo é duplo: servir tanto para as pesquisas linguísticas como para o uso escolar. “O corpus é também um mecanismo de preservação de línguas”, afirma a coordenadora do projeto. No campo das pesquisas teóricas, a produção de material para uso nas comunidades é vista como uma maneira de retribuir a contribuição dos indígenas. “Nós fazemos um trabalho pesado documentando textos, sentenças, e precisamos que eles nos ajudem o tempo todo com traduções. Em troca, produzimos material didático, uma ortografia, um projeto de documentação”, afirma Storto. Tais projetos, ela explica, têm importante valor para as comunidades. “Se exibido na escola, o


34.470

As línguas e seus falantes Número de indígenas que dominam seus idiomas nativos

8.596

19.905

4.887 Falantes População atual

1.240 229 311

Povo

Karitiana

Família linguística

Subfamília linguística

271 Nhandewa-guarani

Juruna

Tupi

Arikém

Tupi-guarani

1.575 594

649

Kadiwéu

205 Kaingang

macro-jê

guaicuru

Juruna

Kadiwéu

Krenak

Krenak

ilustraçãO Arthur Vergani

Fonte Luciana Storto e Felipe Ferreira Vander Velden (Karitiana), Mônica Thereza Soares Pechincha (Kadiwéu), Kimiye Tommasino e Ricardo Cid Fernandes (Kaingang), Rubem Ferreira Thomaz de Almeida e Fabio Mura (Nhandewa-guarani), Maria Hilda Baqueiro Paraiso (Krenak), Tânia Stolze Lima (Juruna) – Povos indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental; Censo Demográfico 2010: Características Gerais dos Indígenas, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

vídeo de antepassados falando o idioma, por exemplo, é útil como memória do conhecimento tradicional.” Diante da importância da escrita para a cultura ocidental, o fato de as línguas indígenas serem ágrafas contribui para sua vulnerabilidade. Por isso, a proposta da ortografia faz parte, com frequência, do trabalho do linguista, que estabelece o alfabeto e as regras para a sua utilização. Foi o que fez Wilmar D’Angelis, no início dos anos 2000, em um trabalho conjunto com os Kaingang do oeste paulista – etnia junto à qual atua há quase quatro décadas, inicialmente como indigenista e, mais tarde, como linguista. Em um processo participativo, comunidade e pesquisador adaptaram uma ortografia elaborada na década de 1960 para os Kaingang do Sul do país. Defensor e criador de projetos inclusivos, D’Angelis destaca também a importância da visibilidade da língua indígena em comunidades onde a tecnologia está presente: não ver o próprio idioma na internet, “naquilo que aos indígenas parecerá o maior espaço de divulgação e circulação de ideias e informações”, pode gerar a convicção de que as línguas

nativas têm valor apenas como folclore, sem função no mundo real. Por isso, o pesquisador considera fundamental a criação de contextos em que o idioma seja de fato utilizado. Foi esse pensamento que norteou a criação, em 2008, do Kanhgág Jógo, primeiro website totalmente em língua indígena no Brasil, resultado da colaboração de seu grupo de pesquisa com integrantes de comunidades Kaingang do Rio Grande do Sul, depois repetida com outras etnias. Para D’Angelis, impossibilitar o uso da tecnologia como ferramenta a serviço da língua indígena seria como levar uma geladeira para a aldeia e permitir apenas o armazenamento de alimentos trazidos da cidade, deixando de fora aqueles produzidos localmente. Recuperação de informações

Com alunos reunidos no grupo de pes­q uisa InDIOMAS, o professor da Unicamp realiza projetos com a participação de integrantes de diversas comunidades indígenas. Por envolver idiomas prestes a sair de uso, com os nhandewa-guarani, os krenak e os kaingang paulistas, por exemplo, os pesquisadores

trabalham na recuperação da informação linguística, realizando oficinas de formação de professores e produzindo material para o ensino da língua. O grupo está finalizando o segundo volume do livro Lições de gramática nhandewa-guarani e, como demanda da própria comunidade, em 2019 deverá publicar um dicionário escolar do kaingang paulista. Diferente de obras que apontam termos correspondentes em português e no respectivo idioma nativo – e que, segundo estima D’Angelis, teriam uma consulta de indígena para cada 100 consultas de não índios –, o dicionário propõe mostrar o que os termos significam na cultura Kaingang. Entre os desafios para sua realização está a tarefa de estimular, nos poucos falantes remanescentes, a memória de termos que não usam mais, porque ligados a situações ou elementos agora inexistentes, como animais que já não são vistos ou costumes não mais praticados. Também na contramão de propostas que apresentam a cultura indígena a partir do olhar ocidental, Cristina Fargetti, professora de linguística da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade pESQUISA FAPESP 273  z  81


Índios de Cacoal (RO) das etnias Suruí, Cinta-Larga e Karitiana participam da solenidade de entrega de tablets

Produção literária

O trabalho de Fargetti junto a essa comunidade do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, teve início há cerca de 30 anos, nas pesquisas para o mestrado, dedicadas à língua juruna. Naquela época, a língua não tinha registro escrito – com exceção de listas de palavras assinaladas por viajantes e alguns cientistas. Poucos anos depois, a participação em um projeto de formação de professores indígenas levou à proposta de uma ortografia juruna, em que integrantes da própria comunidade discutiram soluções para uma escrita que facilitasse seu uso. “Hoje há muitos jovens teclando em sua própria língua, e teclando muito rápido. Isso é sinal de que a língua faz sentido, tem funções, e de que preferem usar o juruna ao português”, observa Cristina, hoje coordenadora do Linbra (Grupo de Pesquisa de Línguas Indígenas Brasileiras), que reúne alunos em torno do estudo da língua indígena. 82  z  novembro DE 2018

A produção de literatura indica a vitalidade da língua e é motivo de comemoração

A valorização da própria cultura é, entre os Juruna, uma realidade baseada na importância conferida ao idioma [veja box]. Se no final da década de 1960, eles eram em torno de 50, atualmente são mais de 500, todos falantes da língua nativa. O português é utilizado apenas com não índios ou visitantes de outras etnias. Segundo a professora da Unesp, com o aprendizado da escrita juruna, os mais jovens passaram a demonstrar mais interesse pelas histórias e mitos contados pelos mais velhos. “Descobriram que as histórias escritas eram sempre reduções, adaptações daquilo que é vivo e dinâmico na fala e com isso valorizou-se a fala também”, explica Fargetti. Há também uma literatura sendo produzida

em juruna, especialmente em versos. Tal fato constitui, para a pesquisadora, motivo de comemoração: “Poetas jamais anunciam a morte de sua língua, mas, sim, a sua plena vitalidade”, ela afirma. Entre os Karitiana as últimas décadas também têm sido de valorização da própria cultura, com a gradativa ascensão de lideranças formadas na comunidade, observa Luciana Storto. Conforme ela, desde pelo menos 1991 líderes e professores têm sido substituídos por integrantes da comunidade, que se tornou autogerida e está lutando para oferecer, na própria aldeia, todo ensino fundamental. “A tendência é que se tornem autossuficientes, mas sem isolamento”, observa. “As pessoas estão na internet, estão estudando, querendo emprego. Não é possível parar o tempo. O ideal é que levem a diversidade e as especificidades, próprias de suas culturas, para as profissões que irão exercer”, analisa. n

Projetos 1. Contato e mudança linguística no Alto Rio Negro (nº 14/50764-0). Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Luciana Raccanello Storto; Investimento R$ 66.326,29. 2. Fronteiras e assimetrias em fonologia e morfologia (nº 12/17869-7). Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Maria Filomena Spatti Sandalo; Investimento R$ 422.423,59.

Artigos científicos D’ANGELIS, W. da R. Do índio na web à web indígena. In: D’ANGELIS, W. da R.; VASCONCELOS, E. A. (Org.). Conflito linguístico e direitos das minorias indígenas. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, p. 111-21. 2011. Disponível em: bit.ly/webindio. FARGETTI, C. M. Breve história da ortografia da língua juruna. Estudos da Língua(gem). v. junho, p. 123-42. 2006. Disponível em: bit.ly/OrtogJuruna.

foto Valter Campanato / ABr ilustraçãO Arthur Vergani

Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCL-Unesp), campus Araraquara, vem desenvolvendo desde 2010 um vocabulário juruna. Ela explica que, em vez de traduzir termos como “neve” para uma cultura que não tem esse conceito, seu objetivo é perguntar como os Juruna veem a própria realidade. Para um verbete sobre determinado pássaro, por exemplo, além da tradução para o português, importa conhecer aspectos como sua associação a algum mito ou canção e as conotações de seu canto.


música y

Estudo discute a presença

O

de figuras marginais em letras de samba e

fotos  reprodução

B

décadas do século XX

o

batuque,

tango das primeiras

rasil, década de 1930. Argentina, década de 1920. Em busca de modernização e de um novo pacto social, os governos dos dois países instituem programas nacionalistas, baseados na disciplina pelo trabalho e em uma identidade coletiva comum. Nas rádios, um samba-exaltação canta a imensidão da natureza brasileira; um tango figura a pátria como a terna companheira de um valente portenho. Mas há ruídos: na voz de Carmen Miranda (1909-1955), um malandro se queixa de que precisa trabalhar. Na de Carlos Gardel (1890-1935), um rapaz acusa outro de não ser suficientemente marginal. Esse quadro e sua “aparente incongruência” constituem o ponto de partida do recém-lançado Pandeiros e bandoneones: Vozes disciplinadoras e marginais no samba e no tango (editora Unifesp), de Andreia dos Santos Menezes, professora no Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A partir da análise de suas letras, o trabalho investiga como esses gêneros musicais, notabilizados em um período de intenso nacionalismo, responderam aos conflitos da época e foram moldados por eles. “Não é uma contradição que, em músicas vistas como símbolo nacional, apareçam tantos marginais? Que falem de um estilo de vida tão diferente do cidadão ideal?”, questiona, resumindo a questão central da pesquisa. O corpus conta com mais de 80 canções de cada gênero e cobre um período de cerca de 30 anos que tem como marcos “Mi noche triste” (1916), de Pascual Contursi (1888-1932), vista como o primeiro tango-canção, e “Se você jurar” (1930), de Ismael Silva (1905-1978)

bandoneon

e os inimigos do batente

e Nilton Bastos (1899-1931), considerada o início de um samba moderno, carioca e urbano. No momento em que esses gêneros musicais se consolidaram, Brasil e Argentina experimentavam crescimento demográfico, principalmente urbano, políticas de imigração e emergente industrialização. Em 1912, a Argentina promulgou a Lei Sáenz Peña, introduzindo o voto obrigatório para todos os homens com mais de 18 anos, o que possibilitou, quatro anos depois, a eleição de Hipólito Yrigoyen (1852-1933), da União Cívica Radical, para a Presidência da República. No Brasil, Getúlio Vargas (18821954) chegou ao poder em 1930, com um projeto de reorganização da nação que se radicalizaria, entre 1937 e 1945, no Estado Novo. Nos dois países, os meios pESQUISA FAPESP 273  z  83


A música de Ary Barroso se tornaria “carro-chefe” de sambas-exaltação afinados com a ideologia governista de comunicação exerciam função estratégica, de constituição de um sentimento de pertencimento à nação. O tango e o samba se tornaram fenômenos nacionais. Nascido nas periferias de Buenos Aires e também em Montevidéu, no Uruguai, o tango se afirmou como uma síntese de aspectos da vida rural e da cidade cosmopolita. A figura do compadrito é central nesse contexto: descendente do gaucho, símbolo cultural argentino, caracteriza-se pela recusa em se submeter à disciplina – representada pela família, a escola, a igreja, a política e o Exército. Baseado em personagens populares reais, que pertenciam ao passado quando o gênero musical se popularizou, o tango pode ser cantado de diversas maneiras, como mostra a pesquisadora. “No aflojés”, composto em 1933 por Pedro Maffia (1899-1967), Sebastián Piana (1903-1994) e Mario Battistella (18931968), por exemplo, dirige-se a um compadrito de tempos antigos, elogiando sua coragem e seus feitos e lamentando que tenha sido maltratado pelo tempo traiçoeiro. “Mais que lamento, esse tango é uma súplica ao compadrito para que este, caracterizado por sua valentia, resista e não desapareça”, escreve Andreia. A autora de Pandeiros e bandoneones ressalta que o desaparecimento do personagem é consequência da modernização do país – e esta acaba sendo criticada na canção. Há também tangos com perspectiva inversa: “Mala entraña”, composto em 1927 por Enrique Maciel (1897-1962) e Celedonio Flores (1896-1947), inicialmente parece elogiar o compadrito, mas termina por responsabilizá-lo pelos problemas que causa. Segundo a pesquisadora, a visão negativa dessa figura se identifica a “vozes que se filiam à perspectiva disciplinadora do Estado”. Antes afirmação 84  z  novembro DE 2018

de um grupo marginal, a representação do compadrito se enfraquece como discurso quando o tango se torna um fenômeno de massa. Símbolos nacionais

Tanto o tango quanto o samba são, originalmente, expressão de uma população marginalizada. Na Argentina, o gênero se tornou símbolo nacional depois que as elites, tendo notícia de seu sucesso na Europa, passaram também a valorizá-lo em um processo para o qual contribuiu fortemente Carlos Gardel, que se estabeleceu inicialmente na França. Já o samba teve inclusive apoio do Estado para que se consolidasse como símbolo nacional. O historiador Alessander Kerber, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), destaca o caso da portuguesa Carmen Miranda: “Um de seus primeiros discos, de 1930, em que gravou a música “Ta-hí”, vendeu mais de 30 mil cópias, em uma época em que um grande sucesso de Carnaval vendia 5 mil cópias”. Autor de Carlos Gardel e Carmen Miranda: representa-

ções da Argentina e do Brasil, ele lembra ainda que, em uma das excursões da artista aos Estados Unidos, o governo de Getúlio Vargas financiou a viagem de sua banda, Bando da Lua. O objetivo era garantir, com o acompanhamento do grupo, que as execuções musicais não seriam americanizadas – diferentemente do que ocorreria em Serenata tropical (Down Argentine Way, no original), filme dirigido por Irving Cummings, que, sem nenhuma contextualização, apresentava uma artista considerada símbolo brasileiro em trama e cenário argentinos. “Interpretações como essa desagradaram uma elite que gostaria de ver o Brasil representado de forma mais nacionalista”, explica Kerber. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) desempenhou papel fundamental na constituição de uma identidade nacional a partir do samba. Criado em 1939 pelo Estado Novo, o órgão não demorou a pressionar compositores para que deixassem de lado elementos tidos como indesejáveis ao desenvolvimento do país, censurando letras com conteúdo avesso ao trabalho, principalmente as associadas à malandragem. Ao referir-se à composição em que Wilson Batista canta “eu tenho orgulho de ser tão vadio”, Adalberto Paranhos, professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e autor de Os desafinados: Sambas e bambas no “Estado Novo”, afirma: “O samba deveria se ocupar de outras coisas e não, como no caso de “Lenço no pescoço” [1933], da exaltação da figura do malandro. Deveria tratar de um outro tipo de Brasil, como em “Aquarela do Brasil” [1939], que desfiava o rosário de nossas grandezas, belezas naturais, tipos característicos”. O samba de Ary Barroso (1903-1964) se tornaria “carro-chefe” de sambas-exaltação afinados com a ideologia governista, observa o historiador. Como Andreia, Paranhos se dedica a estudar a persistência da figura do malandro nos sambas até 1945. “Nós temos uma quantidade considerável de composições que rompem com o aparente coro da unanimidade em torno do culto ao trabalho que supostamente se faria ouvir no período da ditadura varguista”, afirma, justificando que a presença de discursos destoantes do oficial é exemplo de que nenhum regime ditatorial consegue silenciar totalmente as vozes dissonantes. E lembra que canções como “Sete e meia


Y la lámpara del cuarto también tu ausencia ha sentido porque su luz no ha querido mi noche triste alumbrar

fotos  wikipedia

Mi noche triste, Pascual Contursi

da manhã”, composta em 1945 por Pedro Caetano (1901-1992) e Claudionor Cruz (1910-1995), “Não admito”, composta por Ciro de Souza (1911-1995) e Augusto Garcez em 1940, e, dois anos depois, “Vai trabalhar”, de Ciro de Souza, mostram o trabalho como sacrifício. Em comum, há vozes de mulheres se queixando de companheiros que não trabalham. Na última delas, por exemplo, Aracy de Almeida (1914-1988) canta: “Isso não me convém/ E não fica bem/ Eu no lesco-lesco/ Na beira do tanque/ Pra ganhar dinheiro/ E você no samba o dia inteiro”. Paranhos ressalta a ambiguidade de canções como essas, que retratam ao mesmo tempo a crítica ao malandro e a sua sobrevivência, como inimigo do batente. Na opinião do historiador, além disso, a mulher, ao acusar o companheiro de se entregar apenas ao samba, não estaria fazendo uma apologia do trabalho. “Pelo contrário”, ele afirma, “elas apelam para que os seus companheiros se entreguem também ao batente para pelo menos dividir essa cota de sacrifício e mortificação dos corpos representada pelo trabalho. É algo muito distinto da fala oficial do trabalhismo, que exalta o trabalho como uma forma de realização das pessoas”. Já para Andreia, que dedica uma seção de seu Pandeiros e bandoneones a canções desse tipo, a voz da mulher que se queixa do marido vadio coincide com a “perspectiva disciplinadora” do Estado. Isso porque, analisa ela, seu ócio é condenado justamente no momento em que “o vagabundo e o malandro eram vis-

Na montagem, Carlos Gardel e Carmen Miranda

tos como as figuras que encarnavam a postura que o brasileiro deveria evitar”. Uma composição famosa, com várias possibilidades de leitura, é “Recenseamento”. Composta em 1940 por Assis Valente (1911-1958), nela uma mulher pobre, vivendo no morro, conta que recebeu a visita de um agente recenseador. Notando o olhar de censura do visitante que lhe pergunta se “seu moreno” é do “batente” ou da “folia”, ela canta: “O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,/ é o que sai com a bandeira do seu batalhão!”. E prossegue, entoando exemplos

de alegria, apesar da penúria. Segundo Andreia, a interpretação de Carmen Miranda, uma das versões mais populares, sugere haver ironia por parte da locutora, que simula elogiar as Forças Armadas ao mesmo tempo que se queixa, de forma velada, da pobreza. Para Paranhos, ao contrário, o “moreno” seria mestre-sala de escola de samba, e a imagem de que tudo falta no barraco contrastaria com a suposta pujança nacional. Já Kerber vê, especialmente nos versos finais da canção, filiação ao discurso oficial que faria a apologia de uma suposta harmonização nacional. O malandro de que se fala parece ter ainda muito a contribuir para os debates sobre a história nacional. n Luisa Destri pESQUISA FAPESP 273  z  85


comunicação y

Mídias sociais

ampliam

oportunidades Pesquisa internacional mostra que plataformas digitais rompem bolha social ao democratizar experiências, compartilhar dicas práticas e conteúdo acadêmico

Valéria França

N

as ruas dos grandes centros urbanos, a cena se repete. No metrô, no ônibus, nos carros, os brasileiros transitam meio zumbis, olhos pregados na tela do celular, sem prestar muita atenção ao que acontece ao redor. Hoje 64,7% da população brasileira acima de 10 anos está conectada à internet, segundo a última Pesquisa por Amostra Nacional de Domicílios Contínua (PNAD). E 62% têm um smartphone, de acordo com estudo do Google Consumer Barometer, de 2017. Houve um boom de conectividade via celular nos últimos seis anos – em 2012, apenas 14% dos brasileiros possuíam telefones desse tipo. “No passado, só tinham acesso à internet as classes A e B. Nos anos 1990, por exemplo, isso era coisa de jovem, estudante, branco, nerd e geralmente 86  z  novembro DE 2018

homem”, conta o antropólogo Juliano Spyer, autor de estudo realizado para a University College London (UCL), no Reino Unido, recém-publicado no livro Mídias sociais no Brasil emergente – Como a internet afeta a mobilidade social (Educ/UCL Press). “Foi a partir de mea­ dos dos anos 2000, por intermédio do Orkut, que a rede se popularizou.” No caso do Brasil, a estabilidade política e o desenvolvimento econômico experimentados nos últimos 20 anos propiciaram o acesso da população a computadores domésticos e dispositivos móveis, como tablets e smartphones. Intrigado com a popularização de ferramentas de acesso à internet, Spyer dedicou-se a compreender esse processo. Em abril de 2013, fechou sua casa, em São Paulo, e se mudou para uma vila-dormitório para trabalhadores de baixa

renda, com 15 mil habitantes, na Bahia, onde morou até maio de 2014. Para resguardar a identidade dos entrevistados, o pesquisador deu ao local o nome fictício de Balduíno. Antes de iniciar a pesquisa de campo, Spyer e outros oito antropólogos passaram sete meses se preparando, sob a orientação do antropólogo e arqueólogo Daniel Miller, da UCL. Após revisar a bibliografia correlata ao tema, estabeleceram as principais questões a serem abordadas na investigação: a razão do uso das redes sociais, sua utilidade prática, o grau de interferência na educação, o papel político que desempenham e o quão aproximam – ou distanciam – as pessoas. “Depois de seis meses em Balduíno, eu já estava integrado ao local”, conta Spyer. A partir daí, o antropólogo passou a acompanhar, via Facebook, WhatsApp


ilustrações catarina bessel

e também fora da internet a vida de 250 pessoas, que espontaneamente se tornaram suas “amigas” na rede social. Para aprofundar a pesquisa, 50 delas, de distintos perfis sociais e idades, foram selecionadas de modo a refletir a população local. “Não quisemos uma pesquisa só com adolescentes porque o uso da internet por quem tem menos experiência on-line não é menos relevante”, diz Spyer. Em Balduíno, as pessoas ganham a vida trabalhando como faxineiras, motoristas, jardineiras e cozinheiras, principalmente em hotéis e em outros negócios do polo turístico ao norte da cidade de Salvador. “Suas aspirações de consumo incluem roupas de grifes internacionais, motocicleta, carro e computador. Aliás, hoje o computador ocupa, na sala, o lugar físico e simbólico ocupado antes pela TV, para ser exibido aos amigos e vizinhos”,

diz Spyer. “A pesquisa constatou que, na população de baixa renda, saber usar a internet indica que a pessoa faz parte da modernidade e tem uma capacidade de comunicação mais avançada, característica de alguém que teve alguma formação”, explica. “Mas, paradoxalmente, a comunicação digital também fortalece redes tradicionais de ajuda mútua que estavam se diluindo por causa da urbanização.” A investigação levou Spyer a descontruir alguns estereótipos sobre o comportamento de usuários da internet que habitam as periferias das cidades brasileiras. Entre eles, o de que viveriam em realidades distintas, uma virtual e outra real. “Em meados dos anos 2000, recebia pacientes no consultório que criavam perfis falsos, completamente diferentes do que eles eram off-line”, recorda a psica-

nalista Patrícia Ferreira, pós-doutoranda em psicologia clínica na Universidade de São Paulo (USP). “Hoje, as postagens mudaram e surgem como a confirmação do ‘eu’ que se idealiza ser, a selfie perfeita.” Patrícia pesquisa a apropriação política exteriorizada na retórica das mídias sociais a partir das manifestações de junho de 2013, quando explodiram protestos em todas as capitais do país, inicialmente contra o aumento das tarifas de transporte público. Utilizando ferramentas da psicanálise, ela realiza o que define como “escuta do coletivo” com informações publicadas em perfis e discussões em grupos com posições opostas. Apesar de ainda não estar concluído, o estudo tem evidenciado a função “protetora” da tela, que encoraja os usuários a dizerem o que pensam, quase sempre ignorando a responsabilidade e o efeito das palavras. pESQUISA FAPESP 273  z  87


Na localidade pesquisada por Spyer, os jovens indicavam encontrar nas mídias sociais um meio de se expressar com mais liberdade. “O ambiente virtual é pouco monitorado pelos mais velhos. Em geral, os jovens possuem maior escolaridade e sabem usar melhor as mídias sociais do que seus pais”, diz o pesquisador. “Pessoas de todas as idades se encontram no Facebook, mas os mais jovens usam sua maior escolaridade e conhecimento técnico para evitar que sua presença seja monitorada pelos adultos.” Incentivo à educação

Embora o senso comum considere as mídias sociais como uma grande distração, Spyer descobriu que elas podem funcionar como incentivo ao aprendizado. “Durante a pesquisa, constatei, por exemplo, que ninguém quer passar o vexame de escrever errado em uma postagem no Facebook, para não ser ridicularizado e chamado de ‘ignorante’”, diz o pesquisador. A partir daí, todo esforço é válido, desde utilizar corretor ortográfico até consultar o Google antes de postar. Professor do programa de pós-gradua­ ção em educação brasileira na Universidade Federal do Ceará e coordenador do Grupo LER (Linguagens e Educação em Rede), Eduardo Santos Junqueira

ressalta que a internet reúne muita informação útil. “Com a ajuda do filho ou do neto, os adultos de baixa renda podem acessar conteúdos de qualidade que de outra forma não entrariam em contato.” Junqueira estuda a problemática do uso e a compreensão de novas linguagens em rede. “Há vídeos do YouTube, por exemplo, que ensinam a resolver problemas de forma muito concreta, desde como se conserta um computador até como se levanta uma casa”, avalia. Junqueira mapeou práticas nas quais muitos estudantes de baixa renda, da modalidade educação a distância (EaD), acessam, consultam e compartilham diversos conteúdos audiovisuais disponibilizados na internet que são fundamentais para a aprendizagem e o sucesso deles nas disciplinas cursadas. “Não se trata, portanto, de uma mera atividade de socialização ou de fruição cultural de conteúdos, mas de um uso pragmático e que traz benesses às vidas profissionais e acadêmicas dessas populações”, informa Junqueira. Os grupos formados por integrantes que não se conhecem muito bem, mas estão conectados porque possuem algum ponto em comum – como trabalho, vizinhança ou colégio –, são importantes para ampliar a visão de mundo e as

Inclusão digital, mas só para alguns A falta de infraestrutura nas escolas

Com dados de 2017, o estudo é uma

“Além de problemas de conectividade

brasileiras ainda é um dos grandes

radiografia da conectividade no

no ambiente de ensino, os professores

obstáculos à utilização da informação

universo escolar brasileiro.

necessitam formação específica para a

disponível na rede como fonte

Desde 2010, o Cetic.br entrevista

utilização de conteúdos digitais”, diz

complementar ao conhecimento oferecido

alunos, professores, coordenadores

Senne. “Para serem efetivas, as políticas

em livros e apostilas. Praticamente todas

pedagógicos e diretores para rastrear

de uso das tecnologias precisam adotar

as escolas urbanas possuem alguma

o uso das tecnologias de informação e

estratégias adequadas de treinamento

conexão, mas quase sempre ela se destina

comunicação, em escolas particulares e

dos docentes e acesso a recursos

às atividades de gestão. Dificilmente

públicas do país. Este ano, pela primeira

educacionais digitais”, avalia.

a internet consegue ser usada

vez os centros de ensino localizados

pedagogicamente. “Em grande parte das

em áreas rurais foram incluídos.

apenas 36% das escolas têm conexão e

escolas a velocidade da rede é baixa,

A pesquisa ouviu 10.866 alunos do

43% computadores. As discrepâncias

de apenas 2 megabytes por segundo”,

5º ao 9º ano do ensino fundamental

regionais também são grandes. No Sul,

diz Fábio Senne, coordenador de

e do 2º ano do ensino médio, além

81% das escolas rurais possuem ao menos

pesquisas do Centro Regional de Estudos

de 957 diretores, 884 coordenadores

um computador conectado, enquanto

para o Desenvolvimento da Sociedade

pedagógicos e 1.015 professores.

na região Norte essa porcentagem cai

de Informação (Cetic.br), que publicou

De acordo com o estudo, atualmente

Na zona rural, o problema é mais grave:

para 18%. Entre as escolas sem conexão,

recentemente a 8ª edição da pesquisa

86% dos alunos usam a rede para

28% dos diretores justificam que os altos

Tecnologias de Informação e Comunicação

pesquisas de trabalhos escolares. Mas

custos dos equipamentos tornam a

na área de educação, a TIC Educação.

apenas 39% fazem esse uso na escola.

tecnologia proibitiva.


oportunidades, principalmente para as classes menos abastadas. “Ao acessar uma rede social existe a possibilidade de se estabelecer conexões com pessoas de universos diferentes”, observa o educador. “Apesar de não ser uma amizade tradicional, essa relação pode gerar capital social e possibilitar o contato com novas ideias, difundindo experiências e referências.” Em outras palavras, rompe a bolha de restritos grupos de amizade. “Estamos em um processo de digitalização das coisas que estão nas ruas”, observa o economista Gilson Schwartz, professor do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicação e Artes da USP. Para auxiliar na compreensão desse fenômeno, ele criou as disciplinas de gradua­ ção introdução à iconomia (a economia política dos ícones) e economia do audiovisual internacional. “A educação informal tem de ser encarada como complementar à formal”, afirma Schwartz. Encurtando distâncias

Ao contrário do que muitos receavam, estudos indicam que as redes sociais aproximam as pessoas. “Falar, postar ou enviar vídeos são formas econômicas de manter contato. Basta ter um smart­ phone e um sinal, muitas vezes compartilhado ou pirateado”, diz Spyer. “Não é raro, sobretudo no Nordeste, a migração para cidades distantes, onde existe maior oportunidade de emprego. Nesses casos, a internet ajuda a manter a ligação com a família, que antes acontecia por cartas ou por telefonemas de longa distância.” A ferramenta também leva um pouco de tranquilidade às mães que passam o dia fora de casa, trabalhando. Na pesquisa, evidenciou-se que mídias sociais como o WhatsApp ajudam os pais a acompanhar e orientar os filhos a distância. Em regiões onde os serviços públicos são insuficientes, o apoio de amigos, vizinhos e parentes, conectados via redes sociais, também pode ajudar a suprir carências nas áreas da saúde, segurança e educação, constatou Spyer. “Todos precisam do apoio da comunidade. ‘Perdi meu emprego’, ‘não tenho comida para dar para a família’, ‘meu filho está metido com drogas’, ‘preciso ir ao hospital’. Esses são alguns dos problemas que, muitas vezes, estados e municípios não conseguem resolver. Por isso, as tradicionais redes de ajuda mútua, fundadas no relacionamento de familiares e vizinhos,

Diferenças culturais não impedem repetição de padrões de comportamento foram fortalecidas pela possibilidade de comunicação rápida e barata”, observa. Para investigar a forma como os internautas enxergam as mídias sociais, além de Spyer, que estudou o caso brasileiro, os outros oito antropólogos seguiram para temporadas em localidades na Índia, Turquia, Inglaterra, Itália, Trinidad, Chile e China – onde a pesquisa se desenvolveu em duas localidades, uma mais industrializada e outra rural. Todos integravam o projeto de pesquisa denominado Why we post. As diferenças culturais não impediram que padrões de comportamento se repetissem em distintos países. Em todas as localidades observou-se, por exemplo, que as mídias sociais criaram formas mais flexíveis de comunicação. Se, antes, as relações eram privadas – uma mensagem endereçada a um destinatário – ou públicas, postadas nas páginas abertas das redes sociais, agora se tornou possível ter um modelo híbrido, de relativa privacidade dentro de um grupo controlado por um ou mais moderadores. No período analisado, plataformas mais públicas, como as timelines do Facebook, por exemplo, mostraram-se conservadoras, com as pessoas evitando assuntos políticos. Em mídias mais exclusivas, como o WhatsApp, essa função foi mais exercida, justamente pela possibilidade de manter a discussão dentro de um grupo cuidadosamente constituído.

Os resultados da pesquisa estão detalhados em 11 livros no site do projeto (www.ucl.ac.uk/why-we-post). Estruturados de forma semelhante, evidenciam para o leitor peculiaridades regionais. Na Índia, integrantes das castas mais baixas preferem as compras pela internet do que no comércio de rua, onde sofrem discriminação de vendedores das castas mais altas. Nos centros industriais da China, em que as mulheres constituem a principal força de trabalho, mídias sociais masculinas revelam homens mais sensíveis do que o esperado pela sociedade chinesa. Por enxergarem a internet como um meio democrático de acesso a conteúdos, os pesquisadores do Why we post disponibilizaram todos os livros para down­load gratuito. “No contexto acadêmico, hoje isso é superimportante. Há um grande debate sobre a quem pertencem os resultados das pesquisas realizadas com dinheiro público. Todos os nossos livros estão licenciados pela Creative Commons. São vendidos em papel, mas estão integralmente disponíveis no formato PDF para serem baixados”, diz Spyer. n Projeto A apropriação política após os movimentos das ruas: Retóricas do discurso sociopolítico-digital (2016-2019) (nº 15/15215-8); Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Pesquisadora responsável Miriam Debieux Rosa (USP); Bolsista Patrícia do Prado Ferreira; Investimento R$ 208.194,17.

pESQUISA FAPESP 273  z  89


memória

Laboratório de Farmacognosia, à época em que a escola ficava no bairro paulistano do Bom Retiro 1

A química

do sucesso Aos 120 anos, Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP é referência em medicamentos, análises clínicas e toxicológicas e alimentos

Rodrigo de Oliveira Andrade

A

Faculdade de Ciências Farmacêuticas completou em outubro 120 anos como uma das mais pulsantes das 42 unidades da Universidade de São Paulo (USP). Nos últimos seis anos, a instituição vem superando dificuldades orçamentárias e mantendo o investimento na formação de recursos humanos, em novas parcerias de pesquisa com empresas e instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior, e em sua infraestrutura, reformando laboratórios e construindo novas instalações. “Cerca de 80% dos alunos da graduação ingressam em estágios em multinacionais da indústria farmacêutica tão logo iniciem o segundo ano do curso”, destaca Primavera Borelli, diretora da faculdade. “Isso transformou a instituição em uma das mais renomadas faculdades de ciências farmacêuticas da América Latina”, diz. Nem sempre foi assim. Por pouco o curso não fechou no início da década de 1920. A concorrência com outras escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento federal da faculdade fizeram com que os alunos debandassem e


fotos  centro de memória da fcf-USP

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os professores pedissem demissão, desinteressados de trabalhar em uma instituição sem licença para funcionar. O governo federal restabeleceu o credenciamento em 1933, e a instituição, em seguida, foi incorporada ao projeto de criação da Universidade de São Paulo, então como Faculdade de Farmácia e Odontologia. A Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) foi fundada em 12 de outubro de 1898, então como Escola Livre de Pharmacia de São Paulo. Sua criação é resultado de um processo que há muito vinha sendo gestado na província. Em Memória econômico-política da capitania de São Paulo, publicado em 1800 pelo capitão-general Antônio de Melo Castro e Mendonça, governador da capitania de São Paulo, encontra-se a proposta de criação de aulas de cirurgia, farmácia, história natural, botânica e química, que constituiriam a Academia Fármaco-cirúrgica. A ideia não avançou. Quase 80 anos mais tarde, em 1878, os deputados Cesário Motta Magalhães, Prudente de Moraes e Martinho Prado Júnior apresentaram outro projeto sugerindo a criação do Instituto Paulista de Ciências Naturais, composto por dois cursos

Gravura do casarão da rua Brigadeiro Tobias de Aguiar, primeira sede da instituição

Cenas de uma aula prática de química industrial em meados de 1908

especiais, um agrícola e outro farmacêutico. Tampouco se concretizou. A partir da segunda metade do século XIX começaram a surgir as primeiras boticas na província de São Paulo. Na ausência de uma escola de farmácia, os donos desses estabelecimentos na capital paulista precisavam recorrer a profissionais formados em instituições de outras partes do país para poderem manter seus negócios. “O ensino farmacêutico oficial no Brasil à época se resumia às faculdades de medicina e farmácia do Rio de Janeiro e da Bahia, além da Escola de Farmácia de Ouro Preto, em Minas Gerais, criada em 1839 como única instituição de ensino farmacêutico desvinculada de curso médico no Brasil. Somente em 1891, com a reforma educacional empreendida por Benjamin Constant (1833-1891), a primeira do regime republicano, que o projeto de uma escola de farmácia ganhou força em São Paulo. A lei eximia o Estado do monopólio de criar e fiscalizar instituições de ensino, permitindo que as entidades não estatais

fundassem suas próprias escolas. Foi o que aconteceu. Com o surgimento da Sociedade Farmacêutica Paulista, em 1894, primeira agremiação da classe no estado, foi proposta em janeiro de 1897 a criação de uma cooperativa farmacêutica, incluindo entre seus estatutos a fundação de uma escola livre de farmácia. O projeto da cooperativa não se concretizou, mas o da criação da escola, sim. a criação

Encabeçada pelo médico Bráulio Joaquim Gomes (1854-1903) e pelo farmacêutico Pedro Baptista de Andrade (1848-1937), a ideia ganhou corpo com apoio da recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e de sua publicação oficial, a Revista Médica de São Paulo. “A Escola Livre de Pharmacia de São Paulo seguiu o modelo mineiro do curso de farmácia, já que se tratava de uma faculdade de iniciativa privada, sem vínculos com o curso de medicina, como nos casos das faculdades do Rio e da Bahia”, explica o historiador José Luiz Santos Pereira Filho, da Faculdade de

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PESQUISA FAPESP 273 | 91


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Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que estuda a história da FCF. Desde o início, a unidade não se restringiu apenas ao ensino, desenvolvendo importantes pesquisas no seu campo. O próprio Baptista de Andrade foi autor de notáveis investigações sobre substâncias como a caioponina e a abruzina. “A história da faculdade sempre foi marcada pelo compromisso com a saúde pública e o desenvolvimento de pesquisas”, comenta a farmacêutica-bioquímica Maria Inês Rocha Miritello Santoro, diretora da unidade entre 1992 e 1996. A faculdade funcionava em um casarão alugado na rua Brigadeiro Tobias, na região central da cidade. Em abril de 1900 o governo do estado a incumbiu de realizar os exames de habilitação de dentistas e parteiras, enquanto não existissem cursos especiais nessas áreas na região. Quase um ano depois, os cursos de odontologia e obstetrícia foram anexados oficialmente à instituição, que passou a se chamar Escola de Farmácia, 92 | novembro DE 2018

Odontologia e Obstetrícia de São Paulo. As duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do tempo. A obstetrícia desgarrou-se em 1911, com a criação da Escola de Parteiras de São Paulo. Em 1962 foi a vez da odontologia, que se transformou na atual Faculdade de Odontologia da USP. Em 1905 a escola foi transferida para um edifício próprio na rua Marquês de Três Rios, no bairro do Bom Retiro. A situação financeira da instituição

Professores e estudantes realizam análises bacteriológicas em meados dos anos 1950

era bastante precária à época. Apenas 11 alunos haviam se matriculado no curso no primeiro ano de funcionamento da escola, em 1899. No ano seguinte, esse número caiu para seis. Os professores, além de trabalharem de graça, não raro contribuíam do próprio bolso para sua manutenção. Nessa mesma época a escola teve de enfrentar uma série de imbróglios burocráticos e quase fechou. A escola permaneceu cerca de 15 anos sem um diretor até que, em 1932, o médico Benedicto Augusto de Freitas Montenegro foi designado como depositário do estabelecimento, restabelecendo seu credenciamento com o governo federal e, ao mesmo tempo, articulando-se com o governo paulista para que ela fosse incorporada ao projeto da USP, passando a se chamar Faculdade de Farmácia e Odontologia. inovação

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A Escola Livre de Pharmacia de São Paulo contava com a presença de muitas mulheres

Desde que sua trajetória se vinculou à da USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas se consolidou como referência nacional em ensino e pesquisa. A unidade ocupa hoje uma área de mais de 23 mil metros quadrados no conjunto das Químicas da Cidade Universitária. Com 84 professores, já graduou mais de 7 mil farmacêuticos e formou mais de 1.880 mestres e 1.125 doutores, contribuindo para o surgimento de uma geração de profissionais que depois atuaram como professores e pesquisadores nas áreas de medicamentos, análises clínicas e toxicológicas, e alimentos na própria USP e em outras instituições


fotos 1 e 2 centro de memória da fcf-usp  3 e 4 Léo Ramos Chaves

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de ensino e pesquisa do Brasil e exterior. A FCF é hoje a terceira unidade da USP com o maior número de patentes. A principal diz respeito a um medicamento para o controle de náuseas e vômitos, o Vonau Flash, criação do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica da FCF, em parceria com a empresa Biolab Sanus. O contrato de licenciamento foi assinado em 2005 e representa a maior fonte de royalties da universidade. Uma das principais linhas de pesquisa da unidade hoje envolve o trabalho da bióloga Silvya Stuchi Maria-Engler. Trata-se do desenvolvimento de um modelo de pele artificial para estudar doenças e substituir testes de cosméticos e medicamentos em animais. Entre seus trabalhos mais recentes, destacam-se a criação de uma pele envelhecida para uso em testes de cosméticos antienvelhecimento, a criação de uma epiderme semelhante aos modelos comerciais e a produção de uma versão 3D para estudos sobre câncer de pele (ver Pesquisa FAPESP nº 245). No Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica, o grupo do engenheiro

Instalações do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica

de alimentos Adalberto Pessoa Junior trabalha na viabilização da produção nacional da L-Asparaginase, enzima usada no tratamento de leucemias linfoides agudas, um tipo de câncer da medula óssea que afeta os glóbulos brancos. O projeto-piloto está em andamento, com o desenvolvimento da molécula e os primeiros testes em escala laboratorial. No Departamento de Farmácia, a equipe da farmacêutica-bioquímica Elizabeth Igne Ferreira investe em estudos de novas formulações de medicamentos usados no tratamento das chamadas doenças negligenciadas, causadas por agentes infecciosos ou parasitas e consideradas endêmicas em populações de baixa renda. A unidade também abriga no Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental o Centro de Pesquisa em Alimentos (Forc), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Outra inovação é a criação do primeiro curso de

residência em farmácia clínica e atenção farmacêutica de São Paulo, em parceria com o Hospital Universitário. “Consiste em um programa de dois anos, no qual o profissional tem a oportunidade de passar por diferentes clínicas e Unidades Básicas de Saúde [UBS], podendo depois escolher uma especialidade.” Outra novidade no âmbito da graduação e pós-graduação foi a criação da Farmácia Universitária (FarmUSP), que se propõe a dar seguimento à atenção farmacêutica. “O médico faz o diagnóstico e prescreve o medicamento, mas é no consultório farmacêutico que o indivíduo receberá a orientação do profissional de farmácia em relação ao uso da medicação e sua evolução terapêutica”, explica Primavera. “Há um novo modelo de farmacêutico, mais atento ao paciente e mais ativo nas equipes multidisciplinares de saúde, e o curso de farmácia está se adequando a isso.” n 4

Laboratório de Análises Toxicológicas, um dos carros-chefe da faculdade PESQUISA FAPESP 273 | 93


resenhas

O catolicismo na África portuguesa Keila Grinberg

F

Além do visível: Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII) Marina de Mello e Souza Edusp 320 páginas | R$ 38,40

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oi por engano que Parati: A cidade e as festas caiu em minhas mãos. De férias, procurava uma leitura de verão. Mirei no que vi, acertei no que não vi. O primeiro livro de Marina de Mello e Souza tratava das festas populares religiosas da cidade, de suas permanências e mudanças ao longo do século XX, interrogando-se sobre suas origens e sobre seus significados mais amplos. Quais os sentidos do catolicismo popular brasileiro? Quais festas permanecem, quais desaparecem nas tradições brasileiras? Marina aprofundou essas questões em Reis negros no Brasil escravista, seu segundo livro: sempre interessada nas festas religiosas populares, ela se dedica a analisar, no Congo, a origem das festas de coroação dos reis negros, as congadas, comuns a todas as regiões brasileiras habitadas por africanos escravizados nos séculos XVIII e XIX (mas desaparecidas na Paraty do século XX). Começo assim porque o lançamento de seu mais recente trabalho, Além do visível: Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola, é uma ótima novidade que, agora, já não causa nenhuma surpresa. Consolidando sua trajetória como africanista, Marina retrocede ainda mais no tempo em busca de respostas para as perguntas que marcam o conjunto de sua obra: a constituição do catolicismo na África portuguesa, suas articulações com as dinâmicas do poder colonial, com a formação das identidades e da religiosidade popular. Organizando sua análise em três eixos articulados – o comércio, o poder e o catolicismo –, ela orienta sua narrativa para os reinos do Congo, Dongo, Dembo e de Matamba nos séculos XVI e XVII, quando as populações centro-africanas foram alvo de intensa expansão missionária. Em linhas gerais, esse é um tema bastante conhecido da historiografia especializada; mas a perspectiva adotada pela autora é menos trabalhada, e por isso mais relevante: interessada no olhar dos africanos e em seus próprios interesses em estabelecer alianças e relações comerciais com os portugueses, ela quer entender a maneira como os centro-africanos viram os brancos a partir de seus próprios referenciais cognitivos. Nesse sentido, é exemplar sua leitura do lugar que a cruz, símbolo máximo do projeto evangelizador católico, ocupa nos próprios ritos centro-

-africanos, realizada no primeiro capítulo, que trata dos contatos iniciais entre a sociedade congolesa e os portugueses, quando o catolicismo foi adotado como religião oficial no Congo. Se, naquele país, o catolicismo marcou o fortalecimento do poder central, no território que veio a ser denominado Angola, objeto do segundo capítulo, o contexto era radicalmente distinto: nesse caso, religião e conquista foram duas expressões de um projeto colonial que, após muitos conflitos, logrou consolidar o primeiro sistema moderno de comércio de escravos que contava, além dos portugueses, com a fundamental participação de agentes locais. O livro não tem uma protagonista principal. Caso houvesse, certamente seria Njinga, a rainha de Matamba, foco do terceiro capítulo e famosa pela maneira como lidou com seus subordinados e com missionários holandeses e portugueses. Antes de virar mito, Njinga foi personagem real, fundamental na relação entre jagas, ambundos e portugueses no século XVII. Convertida ao catolicismo sucessivas vezes, foi provavelmente a melhor expressão da centralidade desempenhada pela religião nas disputas locais por prestígio e poder. No quarto capítulo, o seu mais difícil – porque dispõe de menos fontes –, a autora tenta compreender justamente o aspecto que vem a conferir o título do livro: o envolvimento das populações locais na tarefa missionária, a princípio pouco visível nos estudos sobre a expansão do catolicismo na região. Não à toa, a conclusão enfatiza as múltiplas formas como os africanos-centrais abraçaram a religião dos europeus ao longo do século XVII: sem deixar de atestar a força da presença portuguesa, Marina conclui que é impossível entender qualquer projeto de conquista e colonização sem levar em conta a perspectiva daqueles que acabaram por ser dominados. Além do visível é um livro didático no melhor sentido do termo. Os especialistas certamente o lerão; os iniciantes e os interessados em geral encontrarão, na prosa de Marina, um convite ao aprendizado e à reflexão. É tudo o que se quer de um livro de história. Keila Grinberg é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).


A nova (velha) face do poeta de sete faces Wilton José Marques

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Maquinação do mundo: Drummond e a mineração José Miguel Wisnik Companhia das Letras 328 páginas | R$ 64,90

or causa da inerente pluralidade (segredo nem sempre visível), uma das principais características da grande obra literária é justamente a de possibilitar que, ao longo do tempo, olhares críticos enxerguem detalhes ainda não revelados, embora, é certo, sempre disponíveis nos textos. Assim, quando o leitor experimentado, alumbrado – às vezes – pelo acaso, atenta ao não visto, outro viés analítico pode vir à tona, com chances, inclusive, de ser incorporado de imediato à fortuna crítica de tal obra. É esse o caso do recente livro de José Miguel Wisnik – Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. Em leitura original, nascida da viagem ocasional a Itabira e do impacto do lugar, o crítico acrescenta uma nova (velha) face ao poeta de sete faces, sobretudo ao focalizar a relação profunda e muitas vezes sibilina que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) estabeleceu em sua obra com a mineração e a maquinação do mundo. Metaforizado numa espécie cifrada de terza rima sem rima, aliás, a mesma que, como se sabe, permeia “A máquina do mundo” drummondiana, o livro de Wisnik se articula em três partes que, ajustadas com precisão algo poética, compõem uma visada analítica singular. Na primeira, “O espírito do lugar”, o autor revisita Itabira, a cidade da infância do poeta mineiro e “entidade poética” conhecida de todos, sobretudo pela “fotografia na parede”, que ainda dói, e pelo sino que, “inscrito na memória mais recôndita”, não cessa de bater, ambos já tão perenizados em poemas. É nessa Itabira, quase mitológica, que o crítico (re)encontra “o cruzamento subterrâneo da fantasia provincial do sujeito, entranhada no mundo das relações patriarcais, com a realidade implicada na exploração mundial do ferro”. Concomitante à nascente consciência do “sentimento do mundo”, a destruição progressiva do pico do Cauê, retirado a fórceps da paisagem natural, é transformada em mote recorrente, em gesto de resistência (aparentemente inútil) ao progresso devastador da atividade mineradora que pulverizou a montanha. Para o poeta, no entanto, sempre ficou a certeza de que “cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”.

Na segunda, “Maquinações minerais”, Wisnik radiografa tanto o processo histórico da montagem da máquina extrativista moderna, da chegada dos estrangeiros e a avidez com que compraram aquela “terra só de ferro” até a instalação do Projeto Cauê pela Companhia Vale do Rio Doce, como as repercussões em prosa e em verso do poeta mineiro, “que vão desde a notação fina, a rememoração lírica, a resistência sintomática e a intervenção de protesto até o enigma, a alegoria e a cifra interrogante sobre o destino humano”. Apesar da “derrota incomparável”, o poeta, sempre ciente do “destino mineral” do lugar, reclamou em vários momentos, às vezes com corrosiva ironia, que ao menos parte do lucro do negócio minerador também beneficiasse sua “cidadezinha qualquer”. Já na terceira e última parte do livro, “A máquina poética”, e dialogando – entre outras – com as leituras de “A máquina do mundo” feitas por Alfredo Bosi e Alcides Villaça, mas, ao mesmo tempo, apresentando outra saída para o duplo problema fulcral do poema, isto é, o do convite e o da recusa a “tudo [que] se apresentou nesse relance / [...] afinal submetido à vista humana”, Wisnik salienta como novidade analítica a visão contemporânea da própria “máquina do mundo” que desemboca no “sono rancoroso dos minérios”, desvelando – em suas palavras – tanto “a tecnociência contemporânea” quanto “os dispositivos de dominação e exploração do mundo agindo sobre todas as esferas objetivas e subjetivas da existência”. Ou seja, ao realçar no poema a força da “máquina capitalista”, que transforma e destrói tudo, o crítico acrescentou mais um motivo à recusa do sujeito poético. Enfim, além da leitura de “A máquina do mundo” e de abrir outras possibilidades para a leitura de Boitempo, José Miguel Wisnik, como se palmilhasse vagamente a estrada poética de Carlos Drummond de Andrade, devolveu ao poeta – como nova – uma velha face que, no fundo, sempre esteve ali, entranhada no tecido mais íntimo dos poemas. Precisava apenas ser (re)vista, e foi. Wilton José Marques é professor de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

PESQUISA FAPESP 273 | 95


carreiras

Gênero

Onde as cientistas não têm vez Falta de apoio e ambiente hostil contribuem para baixa adesão de mulheres às áreas Stem

A

s mulheres que iniciam um doutorado em áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem, em inglês) são 12% menos propensas a terminar suas pesquisas, em comparação com os homens. A conclusão é de um estudo do Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos (NBER) e envolveu a avaliação dos dados de 2.541 estudantes que ingressaram em 33 programas de pós-graduação em seis universidades do estado de Ohio, entre 2005 e 2009. Os resultados também indicam que a probabilidade de elas concluírem a pós-graduação aumenta até 1 ponto percentual para cada acréscimo de 10% na proporção 96 | novembro DE 2018

de mulheres que iniciam o doutorado em alguma dessas áreas. Os achados parecem estar alinhados a outros dados, como os divulgados em 2017 pela ONU Mulheres, entidade das Nações Unidas para a igualdade de gênero e o empoderamento feminino. No estudo Cracking the code: Girls’ and women’s education in science, technology, engineering and mathematics, verificou-se que 74% das mulheres se interessam por ciência, tecnologia, engenharia e matemática. No entanto, apenas 30% delas se tornam pesquisadoras nessas áreas. Para as que ingressaram no mercado de trabalho, os dados indicam que 27% sentem que não estão evoluindo

em suas carreiras, enquanto 32% desistem em até um ano depois de concluída a graduação. Na Austrália, um levantamento feito em 2016 pelo Departamento de Inovação, Indústria, Ciência e Pesquisa do governo constatou que apenas 16% dos profissionais que atuam nas áreas Stem são mulheres, das quais 31% esperam deixar seu trabalho em até cinco anos. De acordo com dados da Sociedade de Engenheiras Mulheres do país, mais da metade das mulheres que ingressam nessas áreas abre mão de suas carreiras em até uma década. As áreas Stem representam um dos setores da economia e do mercado de trabalho que mais


ilustração  anita prades

cresce no mundo, segundo a física Márcia Cristina Bernardes Barbosa, professora titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IF-UFRGS), que há pelo menos 15 anos estuda a sub-representatividade das mulheres nessas áreas. No Brasil, ainda que sejam maioria nas universidades, a atuação das mulheres é incipiente. As diferenças de gênero na educação, visíveis desde o ensino básico, tornam-se mais evidentes nos níveis mais altos de ensino. O relatório da ONU destaca que as meninas começam a perder o interesse pelas áreas Stem tão logo ingressam nas escolas. A tendência se acentua no ensino médio, de modo que, atualmente, na educação superior, as mulheres representam apenas 35% dos matriculados em cursos Stem no mundo. Na investigação recém-divulgada pelo NBER, avaliou-se o ambiente dos programas de doutorado em áreas Stem e sua contribuição para a desigualdade de gênero. Não foram identificadas evidências de que o desempenho acadêmico das estudantes ou dificuldades financeiras contribuam para a manutenção da sub-representação das mulheres nesses cursos. Para Bruce Weinberg, professor de economia na Universidade Estadual de Ohio, em Columbus, e um dos autores do trabalho, o problema parece residir no fato de os cursos serem compostos majoritariamente por homens, o que contribuiria para o estabelecimento de um ambiente hostil às mulheres, envolvendo, muitas vezes, assédio sexual, humilhação, menosprezo ou rejeição de ideias manifestadas, por exemplo, em reuniões de laboratório. Segundo disse à Science, tais situações, não raro, contribuem para que as estudantes se isolem do convívio social. Susan Gardner, diretora do Programa de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade na Universidade do Maine, nos Estados Unidos, que não participou do estudo produzido pelo NBER, vai na mesma linha. Ao comentar

As mulheres ainda são consideradas desprovidas das habilidades tidas como necessárias para a produção de conhecimento científico, diz Marcia Barbosa

os resultados do trabalho em entrevista à Science, ela explica que as estudantes abandonam os cursos por fatores não relacionados à capacidade intelectual, mas por discriminação e falta de apoio, confiança e escassez de modelos femininos em áreas com baixa representatividade de mulheres. No Brasil, a discussão sobre a participação das mulheres nas áreas Stem também desperta a atenção de pesquisadores. É o caso de Márcia Cristina Bernardes Barbosa, da IF-UFRGS. Há quase duas décadas ela desenvolve estudos com o propósito de analisar obstáculos que dificultam, ou mesmo impedem, maior participação das mulheres nessas

áreas do conhecimento. Em um de seus trabalhos, desenvolvido em parceria com a cientista social Betina Stefanello Lima, analista de coordenação de programas acadêmicos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), depois de analisados dados do Censo da Educação Superior de 2010, constatou-se que as mulheres são maioria em 15 das 20 carreiras de graduação com maior número de recém-formados. “Além disso, também são maioria entre os discentes nas universidades brasileiras e já compõem cerca de 50% dos docentes nas instituições públicas, segundo o mesmo censo”, destaca Márcia. “No entanto”, ela explica, “este crescimento não está homogeneamente distribuído entre as disciplinas. O percentual de mulheres nas áreas de Stem é muito pequeno e diminui desproporcionalmente à medida que se avança na carreira”. Ao avaliar os bolsistas de produtividade em pesquisa (PQ) do CNPq entre 2001 e 2011, nas disciplinas de física e medicina, elas observaram que o percentual de mulheres em física no nível mais básico, PQ-2, é de 10%. Esse número cai para 5% no nível PQ-1A, reservado a pesquisadores que demonstram excelência continuada na produção científica e na formação de recursos humanos. O mesmo se aplica para o caso da medicina. O percentual de mulheres chega a quase 40% na categoria PQ-2, mas também cai pela metade (20%) na PQ-1A. Primeira e até hoje única mulher a coordenar o comitê de física e astronomia do CNPq, Márcia conta que desde cedo se acostumou a ser minoria na sala de aula. “Em uma turma de 40 alunos, éramos apenas quatro mulheres. Ao final do curso, em 1981, apenas eu me formei.” Foi o que a motivou a desenvolver pesquisas sobre disparidades de gênero. Em um de seus estudos mais recentes, publicado em agosto na Anais da Academia Brasileira de Ciências, ela e outras pesquisadoras do IF e da Escola de Engenharia da PESQUISA FAPESP 273 | 97


Rodrigo de Oliveira Andrade 98 | novembro DE 2018

perfil

De olho no Brasil Carioca alinha interesses em economia e administração pública para estudar sistemas tributários em instituição de pesquisa do Reino Unido Joana Naritomi sempre se sentiu dividida entre as letras e os números. Em 1999, prestou vestibular para jornalismo, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e economia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Passei em ambos os processos seletivos”, conta. “Tentei conciliar os dois cursos, mas uma hora a rotina de trabalho e estudos se tornou inviável.” Optou por seguir na economia, em parte porque oferecia disciplinas como história e sociologia. Joana concluiu a graduação em 2004, sem saber se seguiria a carreira acadêmica ou se iria para a iniciativa privada. Resolveu experimentar um pouco dos dois. Ingressou em um estágio em um conglomerado de comunicação para trabalhar nas áreas de administração e gestão estratégica. “Ao mesmo tempo, dava monitoria em matemática para alunos de graduação em economia da UFRJ”, conta. À época, ela soube de uma prova da Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia (Anpec), cujo processo seletivo funciona como porta de entrada para cursos em economia de várias instituições de ensino e pesquisa do país.

arquivo pessoal

UFRGS analisaram o perfil dos titulares da Academia Brasileira de Ciências. Constataram que, dos 518 membros, 449 são homens. No campo da física e astronomia, as mulheres compõem apenas 6% dos participantes, ao passo que entre os pesquisadores no topo da carreira elas representam por volta de 5%. “As mulheres ainda são consideradas desprovidas das habilidades tidas como necessárias para a produção de conhecimento científico”, comenta Márcia. “Não raro, enfrentam preconceitos pautados em rótulos que as definem como sensíveis, emocionais, sem aptidão para o cálculo ou para a abstração.” Alguns países começaram a investir no desenvolvimento de estratégias de inclusão. O Ministério da Ciência do Canadá, por exemplo, lançou em fevereiro de 2017 a campanha Choose Science. O objetivo é incentivar as mulheres a conhecer melhor e optar por áreas Stem. Também a Academia Australiana de Ciências começou a desenvolver um plano para, em uma década, aumentar o engajamento e a participação das mulheres. Organizações como Girls Who Code, Engineer Girl, Girls Can Code e @IndianGirlsCode, são alguns exemplos de iniciativas para encorajar meninas e mulheres a explorar essas áreas do conhecimento. No Brasil, o movimento ainda é tímido. Um dos casos mais conhecidos é o do projeto Meninas na Ciência (ufrgs.br/ meninasnaciencia), uma ação de extensão do IF-UFRGS lançado há cinco anos, com o objetivo de atrair jovens para as carreiras em Stem e estimular as mulheres que já escolheram essas carreiras a persistirem e se tornarem agentes no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil. n

Prestou e foi selecionada para o mestrado da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio. “Estudei como a experiência colonial e os distintos ciclos econômicos afetaram o desenvolvimento e o modelo de gestão dos municípios brasileiros”, explica. Com o título de mestre em mãos, candidatou-se a uma vaga de assistente de pesquisa no Banco Mundial, nos Estados Unidos. Foi aceita e se mudou para Washington em 2007. “Estudava os desafios para o desenvolvimento socioeconômico da América Latina.” Pouco depois foi aprovada no Programa de Pós-graduação em Economia Política e de Governo, em Harvard. Antes de definir o objeto de seu doutorado, cursou disciplinas sobre relações econômicas internacionais, desenvolvimento político, entre outras. Foi quando conheceu o economista Raj Chetty, especialista em finanças públicas. “Com o apoio dele, decidi analisar o sistema tributário brasileiro a partir de um estudo da Nota Fiscal Paulista.” Joana avaliou como esse sistema contribuiu para diminuir a sonegação de impostos ao oferecer, aos consumidores que solicitavam nota fiscal, uma recompensa monetária. “Em quatro anos, o programa aumentou em 21% a receita reportada nos setores de varejo”, diz, ao ressaltar como o engajamento dos cidadãos pode se transformar em ferramenta de monitoramento fiscal. A experiência a fez aceitar, em 2014, um convite para trabalhar no Departamento de Desenvolvimento Internacional da London School of Economics and Political Science. Na Inglaterra desde então, hoje, aos 36 anos, dá aula para alunos de mestrado e desenvolve pesquisas sobre políticas públicas para o aperfeiçoamento dos sistemas de tributação e seguridade social em contextos de informalidade e sonegação, característicos da realidade brasileira. n R.O.A.


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FAPESP recebe propostas para o

1º Ciclo de Análises de 2019 do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas – PIPE

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> R$ 15 milhões estão reservados para o atendimento das propostas selecionadas As propostas de financiamento devem conter projetos de pesquisa que possam ser desenvolvidos em duas fases: Fase 1 Demonstração da viabilidade tecnológica de produto ou processo, com duração máxima de nove meses e recursos de até R$ 200 mil. Fase 2 Desenvolvimento do produto ou processo inovador, com duração máxima de 24 meses e recursos de até R$ 1 milhão. Os proponentes que já realizaram as atividades tecnológicas que demonstrem a viabilidade do projeto podem submetê-lo diretamente à Fase 2. Podem apresentar propostas pesquisadores vinculados a empresas de pequeno porte (com até 250 empregados) com unidade de pesquisa e desenvolvimento no Estado de São Paulo.

Tire suas dúvidas > Participe do “Diálogo sobre Apoio à Pesquisa para Inovação na Pequena Empresa”, evento realizado pela FAPESP em parceria com CIESP e SIMPI para esclarecimentos às empresas que irão apresentar propostas.  12 de dezembro de 2018 das 9h às 12h

mais Informações

www.fapesp.br/pipe/chamada-1-2019 fapesp.br/pipe/normas

Data-limite para apresentação das propostas

Anúncio dos projetos selecionados

28 de janeiro de 2019

a partir de 15 de junho de 2019

FAPESP Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa São Paulo, SP ­– CEP. 05468-901 (11) 3838-4000 www.fapesp.br


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