Os ancestrais dos mamíferos

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Junho 2002 Nº 76

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VENDA PROÍBIDA

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EXEMPLAR DE

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ASSINANTE

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GENOMA DA BACTÉRIA XANTHOMONAS É DESTAQUE INTERNACIONAL

GRUPO DE SÃO PAULO APERFEIÇOA MATERIAIS SOFISTICADOS DERIVADOS DO VIDRO

OS ANCESTRAIS DOS MAMIFEROS Paleontólogos descobrem no Rio Grande do Sul fósseis que preenchem lacuna na evolução dos vertebrados


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Junho 2002 Nº 76

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VENDA PROÍBIDA

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EXEMPLAR DE

5/27/02

ASSINANTE

76-capa pesquisaASSINANTE.qx

GENOMA DA BACTÉRIA XANTHOMONAS É DESTAQUE INTERNACIONAL

GRUPO DE SÃO PAULO APERFEIÇOA MATERIAIS SOFISTICADOS DERIVADOS DO VIDRO

OS ANCESTRAIS DOS MAMIFEROS Paleontólogos descobrem no Rio Grande do Sul fósseis que preenchem lacuna na evolução dos vertebrados


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MIGUEL BOYAYAN

ÍNDICE

28 Equipe da UFRGS descobre fósseis de duas espécies de antecessores de mamíferos na região gaúcha de Santa Maria CARTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 MEMÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

14 Organização Mundial da Propriedade Intelectual busca formas de proteger o conhecimento tradicional da biopirataria FUNDECITRUS

CIÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 LABORATÓRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 AS PREGUIÇAS TERRÍCOLAS . . . . . . . 35 O MAPA DO NORDESTE FEITO POR SATÉLITE . . . . . . . . . . . . . 36 VIDA MODERNA TRAZ NOVAS BACTÉRIAS . . . . . . . . . . . . . . 43 TRIPANOSSOMA CONTRA CHAGAS . . . 46 CLONE BOVINO DE CÉLULAS DE FETO . . . . . . . . . . . . . . . 48 O PRIMEIRO MAPA DE DOWN . . . . . . 50 MAIS 19 GENES NO CROMOSSOMO 21 . . . . . . . . . . . . . 53 JOGADORES PATOLÓGICOS . . . . . . . . . 54 MOLÉCULAS EM INTERAÇÃO COM A ÁGUA . . . . . . . . . 56 COMO FUNCIONAM AS MEMÓRIAS DOS COMPUTADORES . . . . . . . . . . . . 60

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TECNOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . 62 MICROPEÇAS DO LNLS . . . . . . . . . . . . 70 CHAPAS ANTI-RUÍDO . . . . . . . . . . . . . 74 VÍDEOS DIGITAIS . . . . . . . . . . . . . . . . 76 MINIUSINAS INTEGRADAS . . . . . . . . 78 SUBPRODUTOS DA LEVEDURA . . . . . . 80 SEM QUEIMADAS, CAPOEIRA É INCORPORADA AO SOLO . . . . . . . . . . . 82 HUMANIDADES . . . . . . . . . . . . . . . . 84 A MISSÃO CULTURAL DE MÁRIO DE ANDRADE REFEITA . . . . . . . . . . . . 89 A CIDADE DE SÃO PAULO QUE A GLOBALIZAÇÃO CRIOU . . . . . . 92 BANCO DE DADOS DAS POLÍTICAS EM EDUCAÇÃO . . . . . . . . . 94 LIVROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 LANÇAMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 ARTE FINAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 Capa: Hélio de Almeida Foto: Miguel Boyayan

MIGUEL BOYAYAN

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA . . . . . . . . . . . . . . . 10 ESTRATÉGIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 PERSPECTIVAS DA GENÔMICA . . . . . 18 FÓRUM DAS FAPs . . . . . . . . . . . . . . . . 21 ACIDENTES DE TRABALHO . . . . . . . . . 22

Pesquisadores da UFSCar avançam no conhecimento das vitrocerâmicas, material originário do vidro que pode ser usado em fogões, espelhos de telescópios e ossos artificiais

40 Seqüenciamento de duas linhagens da bactéria Xanthomonas indica rotas de combate ao cancro cítrico

84 Arte e ciência já não habitam mundos distintos e cada vez mais as obras de arte ajudam os cientistas em suas análises, enquanto os artistas lançam mão da ciência em suas criações PESQUISA FAPESP

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CARTAS cartas@trieste.fapesp.br

Agricultura orgânica Parabéns à revista Pesquisa FAPESP pela reportagem sobre a pesquisa que está sendo realizada pelo Cena da Esalq/USP, em Piracicaba. Como vice-presidente da Associação de Agricultura Orgânica (AAO) e pesquisador científico do Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo/APTA, fico feliz em ver que a agricultura orgânica finalmente está sendo levada a sério e começa ser pesquisada pela ciência agrícola brasileira. A análise de resíduos em alimentos não foi feita até o presente pelo seu elevado custo, mas deve-se esclarecer que esse método científico, embora importantíssimo, não substitui totalmente a atual estrutura de inspecção e fiscalização das Certificadoras, cuja responsabilidade é acompanhar rigorosamente todo o processo de produção e evitar que produtos irregulares cheguem ao mercado e enganem o consumidor. Discordamos, portanto, da afirmativa de que esse processo represente “...o fim das incertezas”, pois consideramos que hoje já há uma certeza, ainda que relativa, como tudo neste mundo, mas que é construída e defendida rigorosamente por todas as Certificadoras, agricultores, comerciantes e consumidores de produtos orgânicos. A realização de exames de presença de resíduos deveria ser feita especialmente nos produtos agrícolas convencionais, cujo processo de produção não é fiscalizado nem há penas que possam ser impostas a ninguém, ao passo que os produtores orgânicos podem sofrer punições, que vão desde advertência até a eliminação da sua certificação (que é o que lhe dá acesso a um mercado que apresenta preços diferenciados para mais), caso seja flagrado desrespeitando as normas. RICHARD DOMINGUES DULLEY Instituto de Economia Agrícola São Paulo, SP 4

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as mitocôndrias são sempre de origem materna e, portanto, diferentes do pai. No meu entender, o conceito de clonagem reprodutiva continua no caso da Dolly.

Árabes e judeus

Clonagem Estive lendo a reportagem especial sobre clonagem na revista de Março deste ano e surgiu-me uma dúvida referente à página 4. Pegando como exemplo o caso da clonagem da ovelha Dolly e considerando-se que as mitocôndrias se autoreproduzem, é possível concluir, então, que elas pertencem e originam da ovelha escura. Se esta afirmativa for correta, diretamente a clonagem passa a ser desconsiderada? MARILIA MIGUEL DE CASTRO FERREIRA Campinas, SP

A professora Mayana Zatz, titular de Genética do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, responde: No caso da clonagem da Dolly, realmente as mitocôndrias são aquelas do óvulo que recebeu a transferência de núcleo e, portanto, diferentes da Dolly. Um clone 100% idêntico do ponto de vista genético seria aquele que tivesse o mesmo DNA nuclear e mitocondrial. Entretanto, as mitocôndrias, apesar de ter um papel importante no metabolismo energético da célula, têm pouca influência nas características genéticas, já que mais de 99% do nosso DNA está no núcleo. Além disso, devemos lembrar que existem muito poucas mitocôndrias no espermatozóide; assim, na reprodução sexuada

Li, com muito agrado, o número de maio de 2002 da revista Pesquisa FAPESP, toda ela graficamente muito bem feita e de conteúdos muito interessantes. A entrevista do físico Luiz Davidovitch foi brilhante e sua conclusão merece reflexão. Entretanto, a matéria da página 11, “Renascimento no Deserto”, emprega duas expressões que merecem reparo (grifos meus). A primeira é: “o melhor exemplo vem dos judeus, OPONENTES HISTÓRICOS DOS ÁRABES”. A segunda: “A ASTF terá muito a ganhar se convencer árabes norteamericanos endinheirados a fazer como SEUS RIVAIS JUDEUS E APOIAR a pesquisa”. Ambas as frases são incorrretas. Nem árabes e judeus são historicamente oponentes, nem os separa rivalidade. Não se deve confundir episódios pontuais de natureza política e efêmera com destinos inexoráveis. Os dois povos provêm da mesma origem, o patriarca Abraão. Por isso, anteponho aos textos criticados dois versículos do Pentateuco, livro sagrado de cristãos, judeus e muçulmanos: O primeiro: Disse Abrão a Lot: “Não haja, te rogo, briga entre mim e ti, e entre meus pastores e teus pastores; porque homens irmãos somos nós” (Gênesis 13.8); O segundo: “Não é um mesmo o Pai de todos nós? Não foi um mesmo Deus que nos criou? Por que seremos desleais uns para com os outros, profanando a aliança de nossos pais? (Malaquias 2.10)”. MOYSES SZAJNBOK Escola Politécnica da USP São Paulo, SP


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Revista

ções de “abstracts” e “e-tocs”, divulgação de sites de publicações diversas como Nature, Neuroscience, os Archieves, os Journals. Como a revista prima por uma grande mescla de assuntos, acho que ampliaria ainda mais a abrangência, usando poucas páginas. A terceira e última é que haja uma seção para as informações sobre bolsas, fundos, fundações de apoio a pesquisadores, que vá além da própria FAPESP. Uma seção para pessoas que, como eu, não formalmente ligado à academia, possam ter acesso a esse tipo de informação, que não é muito simples de se obter. Por fim, peço que persistam, divulguem e vendam muita publicidade e ponham esta revista única, insubstituível, em todas as bancas do estado e do país. Só com ela, estarão dando um imenso amparo ao futuro da ciência neste país, formando o mais difícil: gente interessada por ciência interessante.

Vocês estão fazendo da Pesquisa FAPESP uma senhora revista de divulgação científica e que em muitos casos já pode entrar na Literatura Citada (ou Bibliografia Citada, ou References) de artigos científicos originais. Não sei como é a distribuição no Norte pobre, porém eu sugeriria enviá-la para as Bibliotecas seguinte: Inpa, Universidade do Amazonas, Universidade Estadual do Amazonas, Embrapa, Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, Fiocruz, Sebrae, Universidade Luterana da Amazônia, Governo do Estado do Amazonas, Funai e Ibama. Agora um pedido pessoal. Um médico ficou entusiasmado quando viu que eu estava lendo suplemento especial sobre clonagem. Não tive outra alternativa a não ser dar-lhe o meu exemplar. Gostaria de ser presentado com um outro. WARWICK ESTEVAM KERR Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Manaus, AM

Da redação: agradecemos os elogios e anotamos as sugestões para envio da revista àquelas instituições. Quanto ao seu exemplar, já está a caminho. Como bolsista da FAPESP, foi uma enorme satisfação receber a revista Pesquisa e verificar que ela cobre projetos de várias áreas do conhecimento, consolidando-se como um importante órgão de divulgação científica. Ao produzir uma revista de alta qualidade e distribui-la em bancas, a FAPESP proporciona à população a certeza de que os seus recursos estão sendo muito bem empregados para a formação de pesquisadores cujos trabalhos trarão benefícios a todos. Eu gostaria de mencionar meu apreço pela seção “Memória”, dedicada a momentos decisivos da história da ciência. Muitas vezes atentos às novas descobertas, perdemos de vista o processo que fez da ciência o que ela é hoje, através de vertiginosas mudanças de paradigmas e visões de mundo.

SÉRGIO BARBOSA DE BARROS São Paulo, SP

Espero que Pesquisa consiga formar um público de leitores interessados e que mantenha sempre o alto nível que atingiu. JOSÉ BENTO MACHADO FERREIRA, Mestrando em Filosofia pela USP

Sou um leitor recente desta revista – apenas após sua chegada às bancas. Gostaria de cumprimentar a todos pela excepcional qualidade da revista, no seu conteúdo e apresentação. Sem dúvida, uma inestimável contribuição à divulgação científica e à indução de novos talentos. Como médico, descubro-me interessado em assuntos que nunca li, tecnologias que não conhecia, feitas aqui no nosso país, e isto é um grande “anabolizante” mental. Gostaria de fazer algumas sugestões. Já que a revista chega agora ao grande público, sugiro a publicação mensal de artigos temáticos, independente de pesquisa, que sirvam como base de conhecimento (por exemplo, como está o conhecimento da Imunologia Humana), escrito por especialistas da área e que nos traga até o que se pesquisa hoje, a fronteira. A segunda sugestão é que haja mais se-

Cobaias sob medida A reportagem Cobaias sob medida saiu com um erro na coordenadoria do projeto multiusuários. Apesar de eu ser o coordenador do projeto que originou a cobaia, a coordenação do projeto multiusuários é do Professor Aron Jurkiewicz. JOÃO BOSCO PESQUERO Departamento de Biofísica da Unifesp São Paulo, SP

Infra-Estrutura Houve um erro no suplemento especial da revista número 72, de fevereiro de 2002, Infra-Estrutura 4, na reportagem “Apoio estratégico para a indústria nacional”. A foto, cuja legenda é Destiladores de resíduos no LEI, refere-se ao Laboratório de Resíduos Químicos (LRQ) do campus de São Carlos. O LRQ foi modernizado graças ao financiamento dessa Fundação no Infra 5 – Resíduos Químicos. MARIA OLÍMPIA DE OLIVEIRA REZENDE Inst. de Química de São Carlos, USP, São Carlos, SP PESQUISA FAPESP

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EDITORIAL

Dos fósseis à Xanthomonas ANOS R EA L I Z A N D O O FUTURO

FAPESP CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ PRESIDENTE PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU ALAIN FLORENT STEMPFER CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ CARLOS VOGT FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO HERMANN WEVER JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA MARCOS MACARI NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO RICARDO RENZO BRENTANI VAHAN AGOPYAN CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL ANTONIO CECHELLI DE MATOS PAIVA, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUÍS NUNES DE OLIVEIRA, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS, PAULA MONTERO, ROGÉRIO MENEGHINI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITORES SENIORES MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS NELDSON MARCOLIN EDITOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA) CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T) MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON LINE) REPÓRTER ESPECIAL MARCOS PIVETTA EDITORES-ASSISTENTES ADILSON AUGUSTO, DINORAH ERENO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALEXANDRE AGABITI FERNANDES, CAROLINA JULIANO, FRANCISCO BICUDO, ROBINSON BORGES, SILVIA MENDES, SIMONE BIEHLER MATEOS, SUZEL TUNES, WANDA JORGE, YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418

e-mail: fapesp@teletarget.com.br PUBLICIDADE EDUARDO AIDAR NEGÓCIOS & MARKETING TEL/FAX: (11) 3167-7770 - ramal 255 e-mail: rscola@eanm.com.br PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PROL EDITORA GRÁFICA TIRAGEM: 35.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO FERNANDO CHINAGLIA FAPESP RUA PIO XI, Nº 1500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP TEL. (11) 3838-4000 – FAX: (11) 3838-4181

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

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PESQUISA FAPESP

A

descoberta de fósseis que ajudam a desvendar uma das transições mais importantes na longa evolução do reino animal sobre a terra, ocorrida há cerca de 210 milhões de anos, costuma deixar excitados paleontólogos de qualquer lugar do mundo. Estamos falando da transição dos répteis aos mamíferos, entre os quais estamos nós, espécie humana – e daí, talvez, parte do enorme fascínio dessa passagem até para além do campo dos especialistas, já que ela nos acena com explicações sobre nossa própria origem. Pois bem: uma nova razão para deixar agitados os paleontólogos, e interessados os que gostam de novas pistas sobre a origem das diferentes classes do reino animal, surge agora do Brasil, mais precisamente de sua região sul: foi ali que pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Museu Argentino de Ciências Naturais identificaram dois novos cinodontes com características anatômicas para serem apontados como os ancestrais mais próximos dos mamíferos primordiais. Seus nomes provisórios: Brasilitério, que significa mamífero do Brasil, e Brasilodonte, palavra que resulta da articulação entre dente (odon) e, claro, Brasil. Não, eles ainda não eram rigorosamente mamíferos, mas sua evolução estava claramente orientada nessa direção, daí esse batismo. Os cinodontes brasileiros, conforme relata o jornalista Marcos Pivetta, na bela reportagem de capa desta edição (página 28), foram identificados a partir da análise de fragmentos fósseis de pequenos répteis, não maiores que uma caneta, resgatados nos dois últimos anos da região gaúcha de Santa Maria. E se algum deles não é um exemplar da espécie que deu o último passo para inaugurar o reino dos mamíferos, seus descobridores estão convencidos de que ambos são peças importantes do desafiador quebra-cabeça filogenético sobre o qual estão debruçados. Outra boa notícia da pesquisa científica no Brasil, divulgada recentemente na imprensa nacional, mas que merece,

por sua importância, destaque nesta edição, tem origem em São Paulo: pesquisadores que integram a rede de laboratórios ONSA (Organization for Nucleotides Sequencing and Analysis) – formada a partir do projeto de seqüenciamento da Xylella fastidiosa que, em 1997, deu origem ao programa Genoma-FAPESP e projetou internacionalmente, três anos depois, a pesquisa genômica brasileira –, apontaram, em artigo publicado na edição de 23 de maio da respeitada revista científica Nature, caminhos para o combate à Xanthomonas citri e, ainda, apresentaram os resultados do seqüenciamento da Xanthomonas campestri. O que é preciso aqui ressaltar é que esse novo trabalho, apresentado quase um ano e meio depois da conclusão do seqüenciamento da X. citri pelo mesmo grupo (Pesquisa FAPESP 60, dezembro de 2000), poderá ter impacto sobre todas as pesquisas de patógenos agrícolas, porque o estudo detalhado de cem genes da citri para definir caminhos de combatê-la na citricultura, onde ela provoca o cancro cítrico, foi feita em comparação com sua prima X. campestri, que tem uma característica muito favorável para a pesquisa, que é a de infectar a Arabdopsis thaliana, planta-modelo para estudos genéticos. Na verdade, o conhecimento gerado com esse trabalho poderá beneficiar não só a citricultura, como as principais plantas que servem de alimento para o ser humano, porque o gênero Xanthomonas é constituído por 20 espécies que atacam 392 vegetais, entre eles, feijão, arroz, mandioca, algodão, milho, cana, trigo e soja. Em tecnologia, vale destacar os avanços obtidos por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) na pesquisa dos materiais vitrocerâmicos, com possibilidades extraordinariamente amplas de uso, dos telescópios aos ossos artificiais. Mas há muito mais para descobrir nesta edição que se faz acompanhar de uma cuidada edição especial pelos 40 anos de fertilíssima vida da FAPESP. Boa leitura.


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Iniciado em 1997, SciELO é produto de projeto cooperativo entre a FAPESP, a BIREME/OPAS/OMS e editores científicos. A partir de 2002 conta também com o apoio do CNPq Adote a SciELO como sua biblioteca científica


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MEMÓRIA

Patinho Feio completa 30 anos Primeiro minicomputador brasileiro foi projetado e construído na Escola Politécnica da USP como tarefa de curso de pós-gradução N ELDSON M ARCOLIN

Bispo benze a máquina, com o governador Laudo Natel ao lado (esq.) e o reitor Miguel Reali ao fundo: fotógrafo quase estraga a festa

E

m torno de uma caixa metálica de 1 metro de comprimento por 1 metro de altura e 80 centímetros de largura, pesando 100 quilos, reuniram-se o bispo, o governador e o reitor. Era julho de 1972 e todos estavam ansiosos para ver funcionar o primeiro minicomputador brasileiro, apelidado de Patinho Feio, uma máquina que representou uma vitória importante para os pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). Quando o então governador de São Paulo Laudo Natel foi apertar o botão para ligar o equipamento, um fotógrafo mais afoito tropeçou em um fio e o desconectou da tomada. O acidente

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descarregou a memória e não houve a esperada demonstração – ligado, o computador iria realizar uma série de funções simultaneamente, acionando várias máquinas ao seu redor. Restou ao bispo d. Ernesto de Paula, que representava a Igreja de São Paulo em algumas solenidades, abençoar a máquina. Os autores do computador, no entanto, pouco se frustraram com o malogro da experiência pública. Todos estavam felizes por ter participado da façanha que começou a tomar forma alguns anos antes, em 1968. Naquele ano, a Escola Politécnica de São Paulo, da USP, criou o Laboratório de Sistemas Digitais (LSD) e reformou o currículo do

curso de Engenharia Elétrica desmembrando em dois: telecomunicações e digital. Ocorre que não havia um professor que tivesse conhecimento suficiente para montar um curso sobre máquinas digitais em geral. Para cumprir bem a missão, foi convidado um funcionário da IBM que já havia morado no Brasil, o norte-americano Glen Langdon Jr., especialista em protótipos de computador. O diretor da escola, Oswaldo Fadigas, tratou de conseguir recursos nas agências de fomento e o curso só foi começar para valer em fevereiro de 1971 com 18 pessoas, entre professores, alunos de pós-graduação e estagiários. “Como


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MARA/AGÊNCIA O GLOBO

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Visão dos componentes do computador: 450 pastilhas de circuitos integrados e 3 mil blocos lógicos

tarefa, Langdon pediu a construção de uma máquina digital”, conta o professor Antônio Massola, então aluno de mestrado e um dos que trabalhavam na criação do software. Com a orientação de Langdon, o grupo completou a parte teórica e partiu para a construção dos componentes da máquina. Como tudo era novo, foi preciso montar uma oficina para fabricação de circuitos impressos de precisão e, para fazer a memória, os professores Edith Ranzin e Paulo Patullo usaram um modelo Philips. Depois dessa fase, os pesquisadores adequaram e montaram todas as partes e o computador começou a dar sinais de vida, isto é, a dar ciclo.

No final, o que começou como uma mera tarefa de curso resultou em uma máquina digital com 450 pastilhas de circuitos integrados, com cerca de 3 mil blocos lógicos, distribuídos em 45 placas de circuito impresso e 5 mil pinos interligados. A memória principal foi feita com núcleos de ferrita, com capacidade para 4.096 palavras de 8 bits (ou 32 mil bits). “O Patinho Feio serviu para desenvolvimento de software, treinamento de estagiários e proporcionou teses de mestrado e doutorado”, diz Massola. Cumprida sua missão, o minicomputador virou peça de exposição: está à mostra no principal corredor que dá acesso à diretoria da Escola Politécnica.

Patinho Feio hoje, no corredor da Escola Politécnica ao lado de fotos antigas: lembrança do pioneirismo

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

E S T R AT É G I A S

LAURABEATRIZ

Remédio para curar a vida moderna

■ Acordo

de silêncio Oficialmente, Vietnã e Estados Unidos acabam de firmar um acordo para participação de um programa internacional de pesquisa que investigará os efeitos causados pelo desfoliante Agente Laranja, usado pelos militares norte-americanos como arma de guerra. Na prática, porém, tanto as autoridades norte-americanas quanto as vietnamitas parecem ter firmado um acordo tácito de silêncio: ambas têm informações a esconder. No último mês de março, epidemiologistas, toxicologistas e cientistas ambientais de 13 países estiveram em Hanói para dar início às pesquisas que investigarão os casos de câncer, 10

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gueira pedindo a 570 médicos, via Internet, que listassem dez “condições”que melhor se encaixassem numa irônica definição de “nãodoença”: “um processo ou problema humano que alguém definiu como uma condição médica, mas na qual as pessoas poderiam ter melhores resultados se não o encarassem dessa maneira”.

desordens imunológicas e defeitos congênitos associados à dioxina, poluente resultante do Agente Laranja. O acordo estabelece a formação de um comitê consultivo para organizar as visitas de pesquisadores, reuniões e intercâmbios entre estudantes de graduação. Sobra boa vontade.

PESQUISA FAPESP

A lista das 20 “não-doenças” relacionadas pelos médicos é encabeçada pelo envelhecimento, e também inclui calvície, alergia à vida moderna, celulite e ansiedade a respeito do tamanho do pênis. E mais: 13% dos entrevistados incluíram síndrome da fadiga crônica, 12% o fumo, e 8% obesidade e hiperatividade. Segundo Richard Smith, edi-

tor da revista, a identificação de “não-doenças” não significa um desprezo a condições que provocam sofrimento real, mas, apenas, um alerta sobre a crescente tendência da sociedade ocidental em tratar problemas de estilo de vida como se fossem doenças. Na origem de todos esses males estaria apenas a excessiva carga de trabalho.

teme que o monitoramento dos níveis de dioxina nos peixes e frutos do mar da costa do Vietnã possa causar prejuízos às exportações.

Porém, o projeto não recebeu nenhum financiamento especial e, sem dinheiro, é difícil acreditar no sucesso da empreitada. Os pesquisadores envolvidos no projeto também reclamam da carência de dados. Além do governo norteamericano, o governo vietnamita também está reticente:

■ Menor procura

pelas ciências exatas AFP

Os consultórios médicos e as farmácias estão cada vez mais cheios de gente procurando cura para males como menopausa, stress e calvície. Mas será que todos eles necessitam de remédio? A comunidade médica está começando a se preocupar com a excessiva “medicalização” da vida. E a publicação British Medical Journal jogou lenha na fo-

Embora tenha crescido o número de graduados nas universidades britânicas entre 1995 e 2000, caíram significativamente as graduações nos cursos de física, engenharia e química: 7% em física e engenharia e 16% em química, nos últimos cinco anos. A revelação faz parte de um relatório elaborado pelo governo

Efeitos do Agente Laranja usado no Vietnã: doenças, e contaminação ambiental


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Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

www.elsevier.com.br

www.endofpolio.org

www.prossiga.br/pacc/bvl

Ferramenta de busca para literatura científica com acesso ao texto de mais de 1.200 periódicos. O serviço é pago.

O site da campanha mundial para erradicação da pólio até 2005 traz fotos de Sebastião Salgado.

Site da Biblioteca Virtual de Literatura, serviço que reúne informações sobre o universo das letras.

■ Link entre a SciELO

de alunos de física caiu 46%, desde 1995, e o de Ciências da Vida, 27%. A questão se torna mais grave no país porque se prevê que cerca de metade dos pesquisadores em atividade deverão aposentar-se nos próximos dez anos.

e a Web of Science

LAURABEATRIZ

inglês noticiado na revista Science, em sua edição de 19 de abril. O declínio na formação de recursos humanos naquelas áreas já se reflete nos colégios britânicos, onde cerca de 2/3 dos professores de física não têm formação na área, e nas universidades e empresas, onde escasseiam os novos talentos para pesquisa. De acordo com Peter Cotgreave, do grupo de pressão Save British Science, há o risco de, dentro de algum tempo, a Grã-Bretanha não conseguir manter o seu padrão de produção científica de Primeiro Mundo. O relatório chama atenção para a necessidade de revisar o sistema educacional do Reino Unido e recomenda que as escolas recrutem estudantes de universidades locais como professores assistentes. Recomenda ainda uma melhor remuneração para os pesquisadores que permanecem nas academias. O problema, entretanto, parece não se limitar à Grã-Bretanha. Segundo informa a Nature, edição de 2 de maio, novos dados na França revelam uma dramática queda do número de estudantes universitários em algumas áreas das ciências. O número

■ Mais dólares para

pesquisa genética

Os usuários da Web of Science, base de dados do Institute for Scientific Information (ISI) que reúne artigos de 8.400 publicações especializadas de todo o mundo, já podem acessar, por meio de links, os textos completos dos artigos de periódicos da coleção SciELO Brasil. Estarão ao alcance da comunidade científica internacional o conteúdo de 17 títulos de periódicos brasileiros indexados, dando maior visibilidade à produção científica brasileira. A SciELO – Scientific Electronic Library Online é um projeto mantido pela FAPESP em convênio com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (Bireme): uma biblioteca eletrônica virtual de revistas científicas brasileiras que, hoje, tem disponíveis 75 publicações. O modelo foi adotado pelo Chile, que já tem 20 publicações indexadas, e está sendo implantado na Costa Rica, Cuba e Venezuela. A SciELO já mantém conexões com outras bases de dados como a PubMED, LILACS e Currículo Lattes.

Um dos mais amplos estudos mundiais das relações entre genes e doenças, o projeto BioBank deverá receber um suporte inicial de recursos de US$ 65 milhões do governo britânico e da Wellcome Trust, informa o Financial Times. O projeto analisará amostras do DNA de 500 mil voluntários de meia-idade procurando relacionar sua herança genética com seus registros médicos. O anúncio dos recursos para o BioBank veio depois de quase três anos de discussão sobre o projeto. Enfermeiras voluntárias retirarão amostras do DNA dos voluntários, encaminharão para exame médico e para elaboração de um relatório completo de sua saúde e estilo de vida, como dieta, exercício, fumo. A National Health Service e outros bancos de dados de saúde serão usados para acompanhar os voluntários por pelo menos dez anos. O objetivo do projeto é descobrir a complexa inter-relação entre genes, ambiente e estilo de vida que ocasionam doenças como câncer, diabetes e distúrbios coronários.

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Como está ciência & tecnologia em São Paulo

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Publicação deverá subsidiar a formulação da política de C&T no Estado

crescimento de 60% no número de alunos matriculados nos cursos de mestrado, no Brasil, e de 200% nos cursos de doutorado. Ainda neste bloco, os indicadores mostram que, enquanto o governo federal sustenta a maior parcela de pesquisadores ativos nas demais regiões do país, em São Paulo esse papel é desempenhado pelo segmento estadual e que igualmente vem caindo a participação financeira do governo

pação relativa do segmento privado no conjunto de vagas oferecidas passou de 68%, em 1989, para 74%, em 1998, no Brasil. Em São Paulo, esse porcentual passou de 84% para 89%. Na pós-graduação, o estudo destaca um aumento significativo do número de professores com título de mestre e doutor e a expansão dos cursos e das matrículas em São Paulo e, sobretudo, no Brasil: entre 1989 e 1998, houve um

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Crescimento na universidade Evolução do número de pesquisadores no segmento acadêmico, por área de conhecimento _ Estado de São Paulo 5.000 1999 1996

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Fonte: Indicadores de CT&I em São Paulo - 2001, FAPESP

SIRIO J. B. CANÇADO

A FAPESP lançou, no dia 7 de maio, o segundo volume da série Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo. A publicação, de cuja elaboração participaram cerca de 50 estudiosos, deve constituir-se em um importante instrumento para subsidiar a formulação da política de ciência e tecnologia no Estado e no país. Afinal, seus 11 capítulos trazem dados e indicadores abrangentes de temas que vão da educação ao impacto econômico da ciência e tecnologia. Coordenado por Ruy de Quadros Carvalho e Sandra Negraes Brisolla, professores do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o volume foi concebido de forma a abranger três grandes blocos: indicadores de insumos para a produção científica e tecnológica, indicadores de resultados, traduzidos em produção científica e inovação tecnológica, e indicadores de impactos econômicos e sociais da pesquisa científica e tecnológica. O primeiro bloco reúne dados sobre educação básica e superior e faz um balanço dos recursos humanos e financeiros existentes e disponibilizados no Estado para a pesquisa e desenvolvimento. Registra aumento das taxas de escolaridade média da população e crescimento de matrículas no ensino básico, cuja qualidade, entretanto, é preocupante. Quanto ao ensino superior, os indicadores apontam retomada da sua expansão, a partir de 1995, graças sobretudo à iniciativa privada. A partici-

federal no esforço de pesquisa paulista. O segundo bloco trata da produção científica e da inovação tecnológica. A produção científica é medida pela publicação de artigos de pesquisadores brasileiros em periódicos científicos internacionais: a produção nacional corresponde a 1,1% da produção científica mundial. Quanto à produção tecnológica, ela é analisada tanto pelo balanço de pagamentos tecnológico quanto pelas inovações introduzidas na indústria paulista. Os indicadores revelam que, em São Paulo, em dez anos, os produtos intensivos em P&D dobraram sua participação na pauta de importação e triplicaram o seu valor. No que se refere às exportações, os resultados não foram positivos. Constatou-se, no entanto, que cerca de um quarto das empresas introduziram, no período 1994-1996, pelo menos uma inovação tecnológica de produto ou processo. Mesmo assim, o número de patentes de invenções no país, de empresas nacionais, é bastante pequeno. O terceiro bloco traz dados sobre o impacto econômico da pesquisa e o impacto social da pesquisa em saúde, além de um levantamento sobre a ciência e tecnologia na mídia. No primeiro, são examinados estudos de impacto econômico do programa de capacitação tecnológica para exploração de petróleo em águas profundas (Procap), da Petrobras, e de impacto econômico da pesquisa agrícola, traduzida em aumento de produtividade e redução dos preços dos alimentos.


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■ O salto

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■ O novo ciclo

da borracha A Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, está pesquisando o cultivo da seringueira no Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é estratégico: o governo quer se preparar para um futuro cenário internacional de crise de petróleo. E quer usar a ciência para vencer seu competidor mais perigoso, a Malásia. A pesquisadora Ciríaca do Carmo, da Embrapa Solos, acredita que isso é possível. Baseando-se DAMARIS FARIAS

De 2000 para 2001, saltou de 303,5 mil para 2,2 milhões o número de usuários que entraram no sistema do Programa Biblioteca Eletrônica (ProBE), da FAPESP, fizeram a busca de um artigo nas editoras científicas internacionais que integram o sistema e, em seguida, fizeram o download do texto completo. O incremento foi de 625% e reflete a necessidade e o interesse dos pesquisadores em acompanhar a produção científica internacional e a importância da democratização do acesso às publicações especializadas. O ProBE foi criado em 1999 como um consórcio entre a FAPESP, o Centro LatinoAmericano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (Bireme) e as universidades públicas no Estado – Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Posteriormente, incorporaram-se ao programa institutos de pesquisa estaduais e federais no Estado. Todos os professores, pesquisadores e estudantes dessas instituições têm acesso aos textos científicos das editoras Academic Press (178 títulos), Gale Group (505 títulos), HighWire Press (36 títulos), Elsevier Science (829 títulos), Ebsco Online (512 títulos), aos 498 títulos das editoras MIT Press, Blackwell Science e Blackwell Publisher e aos 71 da SciELO. Para efeitos comparativos, foram consideradas apenas as quatro primeiras editoras, cujos títulos estavam disponíveis nos dois anos.

Acesso ao texto integral por instituições

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em estudos anteriores feitos na Zona da Mata mineira, ela aposta no potencial produtivo de borracha vegetal no sudeste do Rio de Janeiro e prevê uma produção de 2.400 quilos de borracha seca por hectare ao ano. Contando apenas com o sol e a água da chuva, o solo fluminense teria condições de produzir látex o ano todo. Além do retorno financeiro, o país ainda teria lucros ambientais, com o plantio das árvores, e sociais, pois a vida útil da planta,de 30 anos, ajuda a fixar o trabalhador no campo.

■ Sérgio Ferreira na

Academia dos EUA O professor de farmacologia da Faculdade de Medicina da Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP) Sérgio Ferreira foi eleito membro associado da Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos. Sérgio Ferreira, que foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tem importantes pesquisas relacionadas com os mecanismos de processos inflamatórios e foi o descobridor, na década de 60, dos peptídeos potenciadores de bradicinina (PPBs), toxinas encontradas em grande quantidade no veneno da jararaca (Bothrops jararaca) e que potencializam a ação hipotensora da bradicinina.A descoberta permitiu que o cientista inglês John Vane (ganhador do Prêmio Nobel) chegasse ao protótipo molecular que daria origem ao primeiro de uma série de medicamentos anti-hipertensivos no mundo. Ferreira veio juntar-se aos outros três brasileiros membros da academia: os geneticistas Warwick Kerr e Francisco Mauro Salzano e o físico Jacob Palis.

■ Secretaria

Cultivo da seringueira no Rio de Janeiro tem objetivo estratégico

incorpora turismo A Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo incorporou a antiga Secretaria de Turismo. Na opinião do secretário Ruy Martins Altenfelder Silva, a medida demonstra a disposição do governo em fazer o turismo ter maior participação, como a indústria e o comércio, no desenvolvimento econômico.No ano de 2001, o Estado de São Paulo recebeu 1,5 milhão de turistas internacionais e 7,2 milhões de turistas brasileiros.

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Ações contra a biopirataria Ompi estuda medidas para proteger culturas e recursos genéticos C LAUDIA I ZIQUE

O

avanço da biotecnologia e a fragilidade dos marcos legais de proteção da biodiversidade expõem perigosamente o conhecimento tradicional a ações de biopirataria. O Brasil, cujo território abriga 23% da biodiversidade do planeta, é um dos seus principais alvos. A ayahusca, por exemplo, planta medicinal amazônica utilizada por diferentes comunidades indígenas em rituais e usada pela seita Santo Daime, foi patenteada por um laboratório multinacional que ainda conseguiu autorização para utilizá-la comercialmente. O curare, extrato vegetal conhecido de várias tribos brasileiras, teve a patente depositada por uma multinacional virou base para relaxantes musculares hoje produzidos por três laboratórios, e é vendido livremente nos Estados Unidos. Os exemplos se multiplicam na Ásia, na África, no Caribe e na América Latina. No caso do Brasil, cuja biodiversidade tem valor potencial estimado de US$ 2 trilhões, de acordo com os cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o prejuízo é grande. Isso sem falar que a biopirataria ainda dilapida o patrimônio cultural da nação. É bom que se ressalve que proteger o conhecimento tradicional não significa reivindicar para o pajé a condição de co-inventor na descoberta de uma molécula. Trata-se, na verdade, de buscar meios e modos de viabilizar a repartição de benefícios que resultam da exploração desses recursos por laboratórios e multinacionais com as comunidades que, ao longo de várias gerações, acumularam conhecimento sobre espécies de plantas e animais com propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas. O Brasil, assim como grande parte dos países em desenvolvimento, ainda não dispõe de um sistema de proteção legal dos direitos de propriedade intelectual de comunidades tradicionais. “O sistema de patentes, hoje, protege o que inova, que desenvolve novas tecnologias.

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O curare, utilizado como veneno, foi patenteado por multinacional


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Não protege aquele que detém a biodiversidade ou o conhecimento tradicional”, diz José Graça Aranha, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). “Temos que encontrar mecanismos que venham a cobrir, por meio da legislação existente ou de um sistema sui generis de proteção, esses detentores da biodiversidade.” Vedas Upanishads - O desafio de bus-

car a forma mais adequada de proteger os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais levou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) a criar, em 2000, um comitê especial intergovernamental formado por representantes dos 175 países membros e de entidades como a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e organizações não-governamentais (ONGs) de todo o mundo, na tentativa de encontrar uma solução para esse problema. Ainda que não haja consenso sobre a eficácia da legislação existente, a Ompi tem recomendado às nações que registrem, num banco de dados, por exemplo, as informações sobre o conhecimento tradicional de domínio público, incluindo, se possível, as indicações de uso. “Grande parte do conhecimento tradicional é oral, não documentado e não há como apresentar provas para contestar o depósito de uma patente considerada irregular”, justifica Nuno Carvalho, diretor da Ompi. A lei norteamericana, por exemplo, não autoriza a impugnação de patentes depositadas naquele país com base na tradição oral de países estrangeiros. Ele lembra o caso de dois cientistas da Universidade de Wisconsin que patentearam o princípio ativo da turmérica, uma raiz milenarmente conhecida na Índia por suas propriedades cicatrizantes. O registro foi contestado, mas mantido, até que a Índia apresentou uma prova documental: uma passagem dos Vedas Upanishads, escritura hindu provavelmente na virada do século 16, onde está descrito o uso medicinal da turmérica. “A patente foi derrubada”, conta Carvalho. O direito de dizer não - A despeito da

indefinição legal, alguns países já adotaram medidas para proteger seu pa-

trimônio cultural. O escritório de patentes da China coleta informações sobre usos, tradições e costumes nas áreas de medicina e agricultura e sugere às comunidades que solicitem patentes para os conhecimentos mais inovadores. A Índia, que quase perdeu a turmérica, desenvolve uma base de dados em que está sendo compilado todo o conhecimento tradicional disponível. Todos esses dados recebem classificação segundo seu uso e são disponibilizados para os examinadores de patentes. “Isso é prevenção”, ressalva Carvalho.

A

Venezuela adotou medida distinta. Ali, há três anos, o Serviço Autônomo da Propriedade Intelectual, ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Indústria, criou um portal com mais de 15 mil referências catalogadas nas áreas de química, farmacêutica, artesanato, entre outras, com indicação para aplicações e até recomendações do pajé para o risco de interação com outros produtos. Os interessados têm acesso a essas informações mediante pagamento de uma taxa ao Estado, posteriormente repartida entre as comunidades locais. Esses diferentes sistemas de proteção ao conhecimento serão divulgados este mês, na terceira reunião do comitê interministerial da Ompi, em Genebra, com a intenção de fornecer subsídio para os demais países. “Vamos divulgar dois ou três exemplos, com autorização dos governos”, adianta Carvalho. Ele reconhece, no entanto, tratar-se de medidas “defensivas”, que não garantem às comunidades o exercício pleno do direito de dizer não.

Advogados indígenas - Nesse interregno legal, a Ompi tem procurado colocar à disposição dos países membros informações sobre jurisprudência e modelos de contratos padrão de utilização da biodiversidade e conhecimentos firmados entre comunidades tradicionais e empresas, como o que consolidou a parceria entre os aguarunas, do Peru, e a Monsanto-Searle. E as comunidades começam a se preparar para defender seu patrimônio. O INPI realizou, no início de maio, o primeiro curso sobre propriedade intelectual de advogados de comunidades indígenas PESQUISA FAPESP

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brasileiras, com o apoio da Ompi. O curso teve 20 participantes, sendo 13 índios, que receberam treinamento sobre marcas, patentes e direitos autorais. “Não é mais a luta de arco e flecha, mas de apropriação de novos conhecimentos que podem ser usados em benefício das comunidades, seja pela proteção de nossos conhecimentos tradicionais, seja pelo patenteamento de fitoterápicos, de forma a reverter para a comunidade uma parte dos lucros auferidos”, afirma Lucia Fernanda, assessora jurídica da comunidade caingangue-guarani, do Rio Grande do Sul, que participou do curso. O grupo decidiu criar, ao final do curso, uma comissão permanente de estudos sobre a propriedade intelectual, preparando-se assim para acompanhar os entendimentos e a confecção de contratos de exploração da biodiversidade local que venham a ser negociados entre as comunidades e laboratórios.

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Noutra frente, a Ompi buscar harmonizar o acordo sobre a propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio (OMC), conhecido como Trips (Trade Related Intelectual Property Rights), e a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), assinada no Rio de Janeiro durante a Eco92, que definiu como objetivos básicos a conservação, a utilização sustentável e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos do uso dos recursos genéticos. O Trips, concluído em 1994,

os dois acordos. “Mas esse é um debate para vários anos”, prevê Carvalho. Lei sui generis - O avanço da biotec-

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nologia e da engenharia genética só fez esquentar o debate sobre a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, que, na verdade, teve início na Eco-92, quando foi assinada a CDB, lembra Graça Aranha. A convenção recomendou que a FAO e os países participantes elaborassem um Plano Global de Ação para Recursos Genéticos em Alimentação e Agricultura (PGA), que foi aprovado na Conferência Internacional de Recursos Genéticos realizada em Leipizig, em 1996. O PGA foi adotado por todos os países que compõem a Comissão de Recursos genéticos, inclusive o Brasil. “No âmbito da FAO, será relevante definir como fazer para que toda essa riqueza, uma vez protegida, se transforme em melhoria efetiva das condições de vida da nossa população, diminuindo carênCDB X Trips - A Ompi, no cias, principalmente nos entanto, considera que países tão ricos em biodimedidas como essas que versidade quanto em deestão sendo adotadas pelo Laboratório busca autorização para comercializar a ayahuasca sigualdades sociais”, diz Brasil são estratégias deGraça Aranha. O outro fofensivas, e busca ações co de discussão, da qual o Brasil tem mais eficazes: criou um comitê técnico não é específico e, em relação à biodiparticipado ativamente, é a compatide peritos para ver se há possibilidades versidade, permite o direito de probilização do acordo Trips. de classificar o conhecimento tradiciopriedade intelectual sobre microrgaO Brasil também se alinha aos que nal utilizando os mesmos critérios da nismos, processos não-biológicos e defendem a idéia de um novo marco classificação internacional de patentes. microbiológicos. A compatibilização jurídico que proteja e preserve a biodiO objetivo é tentar criar um mecanisentre os dois acordos exige que seja versidade. “Hoje isso é tão fundamenmo que permita que essas informações incluído no Trips um dispositivo que tal como os direitos de propriedade inestejam disponíveis aos examinadores contemple a proteção dos conhecitelectual o foram no final do século 19, de patente. Eles não podem recusar o mentos tradicionais e dos recursos gecom a Convenção de Paris”, compara registro por não saberem tratar-se de néticos. “O Brasil defende uma emenGraça Aranha, referindo-se ao tratado um saber comunitário, já que esse coda ao Trips no sentido de incorporar internacional que até hoje regula o renhecimento não está classificado e os requisitos de identificação do mategistro de patentes e é base para a defeporque não há mecanismos de buscas. rial genético utilizado na invenção, de sa de marcas e segredos industriais. Mas a idéia, para muitos, é arriscada, já repartição dos benefícios com os deEssa também é a disposição de 25 que pressupõe a exposição pública de tentores de recursos genéticos, de nações indígenas, cujos representantes um conhecimento que se confunde com consentimento prévio fornecido pelos se reuniram em dezembro do ano pasa identidade das comunidades tradiciodetentores e dos conhecimentos tradisado, em São Luís, no Maranhão, num nais. “Algumas coisas podem ser publicionais associados à invenção”, explica encontro promovido pelo INPI. No docadas, mas existem características de Graça Aranha, presidente do INPI. Na cumento, batizado de Carta de São Luiz, nosso patrimônio cultural que estão até conferência ministerial da OMC em propõem a adoção de “um instrumenhoje protegidas e que devemos preserDoha, no Catar, realizada em novemto universal de proteção jurídica dos var por serem intrínsecas à nossa cultubro último, já foram apresentadas alconhecimentos tradicionais, um sistema ra”, argumenta a caingangue Fernanda. gumas propostas para compatibilizar


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EDUARDO CESAR LEO RAMOS

LEO RAMOS

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O Equador aprovou, em 1996, uma alternativo, sui generis, distinto dos reploração comercial desse conhecimenpequena lei de proteção da biodiversigimes de proteção dos direitos de proto, e fixar um porcentual sobre os ludade que se limita a declarar que o “Espriedade intelectual”, e que o governo cros gerados por processos ou produtos tado equatoriano é o titular dos direitos brasileiro “adote uma política de prodesenvolvidos com base em conhecide propriedade sobre as espécies que teção da biodiversidade e sociodivermentos tradicionais. Esses recursos forintegram a biodiversidade no país”. A sidade destinada ao desenvolvimento marão o Fundo de Desenvolvimento dos exploração comercial estaria sujeita a econômico sustentável dos povos inPovos Indígenas do Peru. uma regulamentação especial, mas desdígenas”. Reivindicam que o governo No Brasil, a biodiversidade e os code que ficassem garantidos os direitos reconheça os conhecimentos tradicionhecimentos tradicionais são protegidos ancestrais das comunidades indígenas nais como saber e ciência,“conferindopela Medida Provisória 2.186 de 2001, sobre os conhecimentos e os compolhes tratamento eqüitativo em relação que condiciona o acesso a recursos natunentes intangíveis da biodiversidade. ao conhecimento científico ocidental” , rais à autorização da União, prevê a reEstá em debate uma proposta de reguestabelecendo uma política de ciência e partição de benefícios, se houver uso e tecnologia que recocomercialização, e renheça a sua importânconhece o direito das cia, que crie um banco comunidades indígede dados e registro nas e locais de decididesses conhecimentos rem sobre o uso de seus e um fundo – financiaconhecimentos assodo pelos governos e ciados a recursos genégerido por uma orgaticos. Outros tantos nização indígena – que projetos de lei sobre o tenha como objetivo assunto tramitam no subsidiar pesquisas reaCongresso Nacional, lizadas por membros entre eles o da senadora das comunidades. Na Marina Silva (PT-AC), avaliação de Marcos já aprovado pelo SenaTerena, coordenador do, que estabelece as Lucia Fernanda: a luta agora é pela Graça Aranha: Brasil de direitos indígenas apropriação de novos conhecimentos quer revisão do Trips condições para autorida Fundação Nacional zação de acesso a recurdo Índio (Funai), “é a sos genéticos nacionais fragilidade de protee determina a criação ção aos conhecimende uma Comissão de tos tradicionais que Recursos Genéticos gera a biopirataria”. composta por representantes do governo, cienMarco legal - No platistas, comunidades inno nacional, alguns dígenas e locais. países têm regras muiO Brasil também to claras de proteção estuda a sugestão da do conhecimento traOmpi, já adotada por dicional. A Costa Rivários países, de criar ca, por exemplo, dediMarcos Terena: fragilidade da um banco de dados dos Nuno Carvalho: escritura sagrada cou um capítulo de proteção gera a biopirataria derruba patente da turmérica conhecimentos tradisua Lei da Biodiversicionais. Graça Aranha dade, aprovada em 1998, à “proteção do lamentação dos direitos coletivos em avalia que a catalogação das informadireito de propriedade intelectual e inrelação à biodiversidade, elaborada ções é “uma forma clara de cobrar.” dustrial” e reconhece a existência e vapela Confederação Nacional Indígena Ressalva, no entanto, que o Brasil já lidade das formas de conhecimento e do Equador e a ONG Acción Ecológica. tem algumas iniciativas de proteção inovação e a responsabilidade do EsNo Peru, um grupo formado por desse conhecimento – “a medida protado de outorgar essa proteção. O representantes de comunidades indígevisória é exemplo disso”, sublinha – e a Registro de Propriedade Intelectual e nas, ONGs e representantes de vários criação de um banco de dados dessa Industrial, por exemplo, deve, obrigaministérios do governo está elaborannatureza é uma medida difícil de ser toriamente, consultar a Oficina Técnido um projeto de lei para regular o implementada, já que muitos conhecica da Comissão Nacional para a Gestão acesso a recursos genéticos e proteger mentos “não são apenas de uma mesma da Biodiversidade antes de conceder os conhecimentos tradicionais. O protribo”. Pergunta: “Quem vai receber registro de propriedade intelectual ou jeto deverá estabelecer regras para a esse benefício?”. E ele mesmo responindustrial a inovações que envolvam realização de contratos entre comunide: “A única forma de superar essas direcursos da biodiversidade. dades e empresas interessadas na exficuldades é ampliando o debate”. • PESQUISA FAPESP

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

RELATÓRIO

Genômica para a saúde OMS prevê avanços na luta contra doenças mórbidas e genéticas

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pesquisa genômica, se manipulada corretamente, pode mudar os sistemas de saúde em todo o mundo e abrir caminho para a prevenção e o tratamento de doenças que dizimam milhões de pessoas, principalmente nos países em desenvolvimento. Mas há que se evitar o risco de os conhecimentos gerados aprofundarem a diferença da qualidade de assistência médica entre os países. Essa foi uma das principais conclusões do relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), Genômica e Saúde Mundial, divulgado no dia 30 de abril. O relatório reúne informações sobre as pesquisas genômicas em todo o mundo, avalia perspectivas e elabora cenários para uso futuro da genética. A OMS começou a investigar os possíveis impactos da revolução genômica na saúde e suas implicações para os países em desenvolvimento, tão logo foi anunciado o seqüenciamento do genoma humano, no início de 2001, com o objetivo de definir suas estratégias de atuação em relação ao novo campo de pesquisa. Ao longo de 13 meses, um grupo de 14 médicos, pesquisadores e especialistas em ética, coordenado por

Tikki Pang, diretor da OMS para Política de Pesquisa e Cooperação (veja box na página 19), realizou um levantamento detalhado, com 241 páginas, sobre o estágio e perspectivas de desenvolvimento das pesquisas nos diversos países. Eles constataram que as informações geradas pela genômica podem ser utilizadas para produzir, nos próximos anos, um espetacular avanço na luta contra doenças mórbidas como a malária, a tuberculose e a Aids, de alta morbidade nos países em desenvolvimento. Também oferecerão pistas importantes para a prevenção, o diagnóstico e tratamento de doenças de origem genética ou crônicas, como as cardiovasculares, o câncer, o diabetes, entre outras. “A investigação do genoma de agentes patógenos nos ajudará a compreender melhor a transmissão de doenças e os mecanismos de sua virulência, assim como a maneira pela qual os agentes infecciosos destroem as defesas do portador. Essas informações deveriam possibilitar o desenvolvimento de novas classes de diagnóstico, vacinas e agentes terapêuticos”, indica o relatório. A OMS constatou, no entanto, que a maioria das pesquisas em genômica e


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biotecnologia está sendo desenvolvida no mundo industrializado e sempre dirigida ao mercado. O relatório aponta algumas exceções e cita os casos da China, Índia, Cuba e Brasil, que estão utilizando as possibilidades abertas pela genética para desenvolver pesquisas de doenças locais (veja box na página 20). “Existe o perigo de que esses avanços acentuem a disparidade na assistência médica dentro de cada país e entre países”, adverte o relatório.

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situação se agrava quando se leva em conta a falta de incentivos para que a indústria farmacêutica realize investigações com o objetivo de combater doenças não-assistidas, que dizimam a população dos países mais pobres. “O potencial da genômica para combater essas enfermidades não se consumará e as desigualdades de saúde se agravarão se esses países não aumentarem sua capacidade biotecnológica ou se não fomentarem mecanismos que estimulem investimentos por parte de instituições públicas ou privadas, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento”, recomenda a OMS. Para evitar esse risco, o relatório endossa “fortemente” a recomendação da Comissão de Macroeconomia e Saúde da OMS de criar um Fundo Global de Pesquisa em Saúde, com um capital inicial de US$ 1,5 bilhão, para o financiamento de P&D de países em desenvolvimento. E defende que valor idêntico seja disponibilizado para países e instituições que estejam trabalhando em novas vacinas e no desenvolvimento de drogas contra a Aids, tuberculose e malária.

Ética e genética - O relatório também examina o papel da ética nas pesquisas e na medicina genética. As práticas éticas habituais, como o consentimento informado ou a confidencialidade, têm que ser revistas, em função da natureza da informação genética. Cada país deveria estabelecer o seu próprio marco ético e criar legislação baseada em princípios definidos internacionalmente, indica o relatório. A OMS adverte, ainda, para o fato de algumas características da tecnologia do DNA recombinante, particularmente quando utilizada na manipulação de

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Descompasso nas pesquisas Países que financiam pesquisa genômica se encontram numa posição privilegiada para entender e debater as implicações clínicas, éticas e legais resultantes de avanços obtidos nessa área de conhecimento. A opinião é do médico Tikki Pang, diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Política de Pesquisa e Cooperação que coordenou os trabalhos do relatório Genômica e Saúde Mundial. “Não concordamos com a idéia de que somente as nações ricas devem fazer pesquisa genômica, que é, por natureza, cara”, diz Pang, em entrevista a Pesquisa FAPESP. Ele não considera que os investimentos nacionais em biotecnologia e genômica seja um luxo. “Países em desenvolvimento também devem fazer isso.” Para o diretor da OMS, as sociedades que tiverem uma melhor compreensão dos profundos impactos da genômica poderão se beneficiar de forma mais efetiva das descobertas e tecnologias criadas por esse ramo da ciência. “As nações que entenderem de forma mais clara o impacto da genômica e investirem nesse setor poderão maximizar seus ganhos”, afirma Pang. Na maior parte do mundo em desenvolvimento, quase não há pesquisa genômica. Esse quadro, de reduzidos investimentos em ciência nas regiões mais pobres do planeta, preocupa a OMS, pois muitos cantos do globo correm o risco de ficar à margem das novidades produzidas por essa linha de pesquisa. Quatro nações periféricas, no entanto, figuram como exceções à essa regra: China, Índia, Cuba e Brasil, que têm investido no setor. Entre esses quatro países, o Brasil tem uma posição de destaque. “Em termos de pesquisa genômica aplicada à área agrícola, o Brasil não está atrás de ninguém, nem dos países ricos. Já a China parece ter centrado mais seus esforços na área de saúde”, comenta Pang.

Para reduzir a distância entre o nível das pesquisas feitas em países ricos e pobres, o OMS defende o estabelecimento de formas alternativas de financiamento da pesquisa genômica em países não-desenvolvidos. Segundo Pang, a criação do Fundo Global de Pesquisa em Saúde – um mecanismo para financiamento de estudos científicos (genômicos também) em países em desenvolvimento, que contaria com uma verba inicial de US$ 1,5 bilhão – dependerá da captação de recursos em duas fontes: os países desenvolvidos e a indústria farmacêutica. “Não é fácil convencer os contribuintes desses países, que é quem paga a conta no final, a dar esse dinheiro”, comenta Pang. “É mais difícil ainda dobrar a indústria farmacêutica, que está mais interessada em ter lucros e em produzir para os grandes mercados.” De acordo com o diretor da OMS, o Brasil, por sua posição de liderança na ciência da América Latina, é uma das nações que podem vir a receber parte dos recursos do fundo. “O Brasil possui centros de excelência em pesquisa, o governo tem investido em ciência e o país reúne condições de ser um centro irradiador de conhecimento para seus vizinhos da região”, afirma Pang. A despeito do maior ou menor grau de investimento em pesquisa genômica, todo e qualquer país padece de um problema universal, na visão do diretor de OMS: há sempre um descompasso entre os últimos avanços da pesquisa e a legislação que regula a prática científica. “As mudanças geradas pelas novas descobertas são muito rápidas e as sociedades se movem lentamente para criar mecanismos de regulação”, diz Pang. Para ele, esse problema afeta indiscriminadamente tanto países ricos e industrializados como nações em desenvolvimento. M ARCOS P IVET TA

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genomas humanos e animais, exigirem regulamentação em termos de segurança pública, saúde do investigador, riscos para o meio ambiente e contra a possibilidade de usos sociais e políticos inadequados.

O bom exemplo do Brasil

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the National Academy of Science, nos Estados Unidos, a identificação de 700 mil fragmentos ativos em 24 tecidos normais e com câncer. “Esse trabalho sugere que as estimativas iniciais do número total de genes humanos pode estar subestimado”, ressalva o relatório. O Brasil agora está, ao lado dos Estados Unidos e do Reino Unido, na condição de líder mundial em pesquisa genômica do câncer. Cita

Seqüenciamento da Xylella foi notícia no Brasil e no mundo

ainda os projetos de seqüenciamento dos genomas do Schistosoma manzoni e da cana-de-açúcar, este já finalizado. O relatório menciona, ainda, que o Ministério da Ciência e Tecnologia lançou um programa nacional de pesquisa genômica em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que reúne uma rede de 25 laboratórios em todo o país. A rede já seqüenciou o genoma da Chromobacterium violaceum. E conclui que não há dúvidas de que outros países podem aprender muito com a capacidade brasileira de construir estratégias bem-sucedidas de pesquisa.

O FOTOS (FOLHA) MIGUEL BOYAYAN / (XYLELLA) FUNDECITRUS

O relatório Genômica e Saúde Mundial dedica a página 95 e parte da 96 ao relato das estratégias de desenvolvimento das pesquisas genômicas no Brasil, que, nos últimos cinco anos, passou a integrar o primeiro escalão entre os países que desenvolvem pesquisa em genômica, utilizando o modelo de pesquisa em rede, um exemplo para as outras nações. Lembra que, em 1997, a FAPESP tomou a “decisão estratégica” de iniciar um grande programa de pesquisa que começou com o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa. Em vez de construir um centro para a realização do trabalho, a FAPESP iniciou um “instituto virtual de genômica” – a rede Onsa (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis) –, com aproximadamente 200 pesquisadores baseados em 30 laboratórios no Estado de São Paulo, mantido com recursos iniciais da ordem de US$ 13 milhões. A rede seqüenciou, em menos de um ano, sublinha o relatório, 90% dos 3 milhões de genomas da Xylella, e publicou a seqüência completa na revista Nature, em julho de 2000. Esse feito recebeu considerável atenção da mídia, tanto no Brasil como em todo o mundo, afirma o relatório. O segundo grande programa da rede Onsa, avalia, foi o projeto do Genoma do Câncer, que contou com US$ 10 milhões da FAPESP e do Instituto Ludwig de Pesquisa, utilizando a Orestes, uma técnica pioneira para o seqüenciamento. “O projeto teve um sucesso fenomenal: uma semana depois do anúncio do seqüenciamento da Xylella, o Projeto do Câncer anunciou que tinha mapeado 500 milhões de ESTs”, segundo consta no relatório. Em outubro de 2001, o grupo publicou no Proceeding of

s países precisam estar preparados para adotar perspectivas radicalmente novas em relação à pesquisa e à prática médica, recomenda a OMS, e avaliar a sua capacidade biotecnológica e de bioinformática atuais para estabelecer prioridades estratégicas. A OMS se dispõe a apoiar as nações que queiram ampliar esse campo de investigação, por meio da prestação de assistência técnica e apoio à criação de centros de genética clínica e programas de investigação genética voltados para problemas de saúde específicos. Também poderá facilitar a transferência de tecnologias, a criação de programas de formação entre o norte e o sul e o desenvolvimento de redes regionais de pesquisa. A tecnologia genômica poderá auxiliar no combate a enfermidades transmissíveis, comuns em países em desenvolvimento. Essa área de pesquisa, afirma o relatório, deveria reunir universidades, instituições de pesquisa públicas e empresas em programas de P&D que permitam obter novos produtos de assistência à saúde. Mas essa estratégia exigiria o estabelecimento de acordos entre os parceiros, além de incentivos fiscais e uma ampla rede de pesquisa. A OMS recomenda ainda que os países invistam na acumulação de massa crítica de conhecimentos especializados, para que possam participar das investigações e ter acesso aos bancos de dados genômicos, parte dos quais oferecidos gratuitamente ao público. A OMS está disposta a oferecer assistência técnica aos Estados para, por exemplo, a implementação de cursos de curta duração. Dispõe-se, ainda, a assumir um “papel crucial na vanguarda da bioética”, particularmente no que se refere à genômica e à saúde mundial, e a assessorar os governos sobre a melhor maneira de estabelecer sistemas de regulamentação para a ampla gama de tecnologias que estão sendo geradas pelas pesquisas. •


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LAURABEATRIZ

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

FAPs

Indicadores estaduais Fundações participarão do Sistema Nacional de informação em C&T

O

Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) quer criar um sistema nacional de informação em Ciência, Tecnologia e Inovação em todos os Estados brasileiros, com o objetivo de criar uma base de dados semelhante àquela reunida nos documentos Indicadores, da FAPESP, publicados em 1998 e 2002 (veja página 12). A proposta, apresentada aos participantes dos fóruns das Fundações e Entidades de Amparo à Pesquisa dos Estados e Distrito Federal (FAPs) e dos secretários Estaduais de Ciência e Tecnologia, reunidos nos dias 16 e 17 de maio, em Brasília, foi imediatamente encampada. Já está criada uma comissão de trabalho, formada por representantes dos dois fóruns e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que terá prazo de dois meses para formular metodologias de trabalho e apresentar um plano de atuação. “A base de dados terá padrões internacionais e sua implementação deverá estimular o atual sistema de coleta de dados em cada Estado”, afirma Francisco Romeu Landi, diretorpresidente da FAPESP e presidente do Fórum das FAPs. As primeiras informações, ele prevê, poderão estar disponíveis nos próximos dois ou três anos. No encontro, também esteve em pauta o pleito das FAPs e do Fórum de

Secretários de consolidar o Sistema Nacional de Inovação a partir do fortalecimento dos sistemas estaduais de C&T. As FAPs pleiteiam maior participação na definição das políticas de C&T e na repartição de recursos dos Fundos Setoriais. “Essa será uma estratégia importante para a consolidação das pequenas fundações”, justifica Landi. Um grupo de trabalho integrado por representantes dos dois fóruns deverá definir, junto com o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE), os contornos dessa parceria com o governo federal. Fórum de municípios - Na reunião em

Brasília foi formalizada a constituição do Fórum Nacional de Secretários Municipais de C&T, criado em dezembro do ano passado, em Vitória, com o objetivo de estreitar as relações entre as diversas secretarias municipais envolvidas com a área e promover maior aproximação com os órgãos dos governos federal e estaduais. Integram o fórum 12 secretarias municipais de Ciência e Tecnologia, entre elas, além de Vitória, as de capitais como Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Aracaju e municípios como, São Carlos, no Estado de São Paulo, e Itajubá, em Minas Gerais. • PESQUISA FAPESP

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

SAÚDE DO TRABALHADOR

Subdiagnóstico compromete políticas públicas Projeto vai dimensionar real incidência de acidentes de trabalho em Piracicaba

A

s estatísticas oficiais têm registrado queda no número de acidentes de trabalho no Brasil. Em 1998, por exemplo, foram notificados 414 mil casos, caindo para 387 mil em 1999 e 343 mil em 2000. Mas esse quadro, aparentemente otimista, é contestado por técnicos e especialistas que atuam na área de Saúde do Trabalhador. Eles avaliam que esse declínio das ocorrências é resultado do aumento da subnotificação porque o sistema oficial de coleta de dados é inadequado. Os técnicos garantem que a ocorrência de acidentes tem registrado forte crescimento, sobretudo no mercado informal de trabalho, e calculam que, para cada dez acidentes, apenas um é notificado. As estatísticas oficiais se apóiam em informações coletadas no documento denominado Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), do Instituto Nacional de Seguridade Social, utilizado para fins de pagamento de benefício. O resultado, argumentam esses especialistas, é que os funcionários públicos, autônomos, empregados domésticos, proprietários e trabalhadores do setor informal da economia – que representam pelo menos metade do contingente de trabalhadores – ficam fora desse sistema de coleta de dados por não estarem incluídos no plano de benefícios da Previdência Social.

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A subnotificação, no entanto, ressalvam, ocorre mesmo no caso de trabalhadores com direito a benefício, já que a comunicação é feita pelas empresas, que, em grande parte das vezes, omitem a informação e não são fiscalizadas. Estimam que apenas um quinto dos acidentes com trabalhadores regulamentados seja notificado. “Dados incongruentes induzem a um subdiagnóstico e podem comprometer a eficácia de políticas públicas implementadas nos diversos níveis de governo com o objetivo de prevenir acidentes e garantir condições adequadas para o trabalho”, adverte Ricardo Cordeiro, do Departamento de Saúde Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Ele coordena o projeto Diagnóstico e Controle de Acidentes de Trabalho em Piracicaba, um amplo levantamento que pretende dimensionar e registrar a real incidência de acidentes de trabalho no município para propor uma política de monitoramento das ocorrências e, ao mesmo tempo, fornecer subsídios para a implementação de um sistema nacional de notificação mais adequado. A pesquisa, que também conta com a participação da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), é financiada pelo Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP e tem suporte do Ministério do Trabalho e Emprego.

Vigilância Sanitária - A iniciativa da pesquisa foi da prefeitura de Piracicaba, um município com 318 mil habitantes, no interior de São Paulo. Com 56.487 trabalhadores com emprego formal, a grande maioria ocupada na indústria (44,5%) e no setor de serviços (56,7%), a média de acidentes oficialmente notificados era de 51 para cada grupo de mil trabalhadores segurados, em 1997, bem acima da média nacional registrada no mesmo período, de 16 acidentes para cada grupo de mil trabalhadores segurados. Por conta da alta incidência de acidentes, a prefeitura implantou o Programa Municipal de Saúde do Trabalhador para monitorar as ocorrências e desenvolver programas de vigilância sanitária. “Havia casos de empresas com uma média de 40 acidentes para cada cem funcionários”, conta Rodolfo Vilela, coordenador do programa. Mas a subnotificação, a falta de informações sistematizadas so-


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A estimativa é que apenas um quinto dos acidentes com trabalhadores formais seja notificado pelas empresas

não foram, portanto, notificadas. Em Piracicaba, estima-se que apenas a metade da População Economicamente Ativa (PEA) do município tem carteira assinada e faz parte da população segurada pelo INSS, via Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). “Não temos qualquer informação sobre o mercado informal de trabalho”, afirma Vilela.

EDUARDO CESAR

Pesquisa domiciliar - Em Piracicaba, a

bre a distribuição e as características dos acidentes de trabalho e, sobretudo, a ausência de dados sobre os acidentes na economia informal comprometiam o bom andamento do projeto. “Procuramos a Unimep e a Unesp de Botucatu, município onde Cordeiro já tinha desenvolvido pesquisa semelhante”, diz Vilela. A pesquisa Acidentes de Trabalho em Botucatu, coordenada por Cordeiro e também financiada pela FAPESP, em 1997, constatou que os registros previdenciários captaram apenas 22,4% dos acidentes de trabalho. “O próprio sistema, no entanto, subnotifica 80% dos acidentes. Só são comunicados os de maior gravidade”, afirma Cordeiro. Essa situação, ele avalia, que deve se reproduzir em Piracicaba, é fortemente influenciada por modificações na legislação previdenciária, como o aumento da carência do seguro de dois para 15 dias, o que acarretou o incremento do

sub-registro de acidentes leves, ou da exclusão de autônomos e empregados domésticos do seguro-acidente. O levantamento realizado em Botucatu revelou que 51,3% dos acidentados eram funcionários públicos, autônomos, assalariados e empregados sem registro em carteira, e as ocorrências

O PROJETO Trabalho Informal e Acidentes de Trabalho em Piracicaba MODALIDADE

Programa de Pesquisa em Políticas Públicas COORDENADOR

RICARDO CARLOS CORDEIRO – Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp INVESTIMENTO

R$ 29.330,00

pesquisa de campo começou no dia 15 de maio. Serão consultados todos os moradores acima de 10 anos de um total de 3.521 domicílios distribuídos em 450 pontos na zona urbana do município. Em todos os casos, serão identificados local de trabalho, ocupação, tipo de regulamentação de trabalho, entre outras informações cruciais para identificar os tipos de acidentes mais prevalecentes na economia formal e informal. Nas entrevistas, também serão levantadas informações pormenorizadas sobre acidentes de trabalho de qualquer natureza – acidente do trabalho típico ou do trajeto, acidente doméstico, acidente em atividade de esporte ou lazer, etc. – ocorridos nos últimos 90 dias. Todos os acidentes de trabalho de notificação compulsória identificados serão cotejados com os registros do INSS, de forma a permitir a observação da incidência de sub-registros entre os trabalhadores com direito a benefícios. Ao final dos três primeiros meses de pesquisa, o projeto será avaliado pelo comitê de Políticas Públicas da FAPESP. Se aprovado, o grupo de pesquisadores terá prazo de dois anos para concluir o trabalho. Além de identificar os acidentes de trabalho com maior incidência entre os trabalhadores do mercado formal e informal de trabalho, a pesquisa pretende apontar os ambientes de trabalho onde prioritariamente deverão se centrar as ações de vigilância sanitária, assim como as intervenções necessárias à prevenção. E a identificação da magnitude do sub-registro, outra meta do projeto, fornecerá subsídios para a correção dos indicadores oficiais. • PESQUISA FAPESP

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CIÊNCIA

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Como reduzir a pobreza no Vale do Jequitinhonha O povo que sobrevive nas regiões castigadas pela aridez costuma encarar seu sofrimento como provação divina. Mas uma pesquisa realizada por uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostra que é possível tornar a vida mais fácil com ações relativamente simples. Os pesquisadores, coordenados pelo geólogo Uriel Duarte, da USP, estudaram a fundo a hidrogeologia da região central do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e constataram que, de fato, a natureza não foi das mais pródigas nesse lugar. Falta chuva, o solo não é fértil e as água subterrâneas – alternativa para a carência de recursos hídricos superficiais – têm alto índice de salinidade. Mas há saídas: o estudo sugere

■ Efeitos colaterais

só nas farmácias O tempo parece ser mesmo o melhor juiz. Um em cada cinco medicamentos apresenta sérios efeitos que só aparecem depois que os produtos se encontram há um bom tempo nas prateleiras das farmácias. A conclusão se baseia em um estudo publicado na edição de 1º de maio no Journal of the American Medical Association e realizado com base em 548 drogas aprovadas entre 1975 e 1999. Dessas, 56 foram tiradas do mercado por causa dos inesperados e intensos efeitos 24

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Alternativa: leguminosas podem recuperar a fertilidade do solo e reter a água escassa

a adoção de culturas mais adaptadas ao clima, como a palma e o milheto, e mais resistentes à salinidade da água, como a cevada, o sorgo e o algodão. Também foram consideradas obrigatórias nas pequenas propriedades rurais as leguminosas alga-

colaterais. O número de drogas nessa categoria salta para cerca de 20% quando se consideram os medicamentos liberados já no final do período analisado. A Agência Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA) dos Estados Unidos reconhece que tem reduzido as exigências para aprovação de novos fármacos, mas alerta para os médicos lerem com mais atenção as restrições ao uso listadas nas bulas. Os autores do estudo, coordenado por Karen Lasser, do Escola Médica de Harvard, fazem outra recomendação à classe médica: prescrever medica-

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provou algo que a população já havia percebido empiricamente: após a implantação das monoculturas, houve uma sensível redução do período de fluxo dos rios temporários e a diminuição do volume de água dos rios perenes.

roba e leucena, que ajudam a melhorar a fertilidade do solo. Já as extensas monoculturas de eucalipto localizadas no vale receberam enfática condenação, sobretudo por exigir alta demanda de água, o que diminui a umidade do solo. O estudo com-

mentos mais antigos e comprovadamente seguros, a menos que os novos sejam realmente superiores.

■ Células-tronco

adultas sob suspeita Os avanços mais recentes da genética elegeram as célulastronco embrionárias, matrizes que podem se desenvolver em qualquer tipo de célula do corpo, como a grande esperança para a cura de lesões cardíacas e neurológicas. Mas as pesquisas encontram adversários ferrenhos, pois, após a obtenção dessas células, o

embrião é simplesmente descartado. A solução para o impasse ético seria a utilização de células-tronco adultas. Normalmente, as células-tronco de tecido adulto têm opções limitadas. Assim, por exemplo, certas células da medula óssea só poderiam formar células sangüíneas. Mas pesquisas realizadas nos últimos dois anos indicam que as células precursoras do sangue poderiam formar outros tecidos, se elas forem, primeiro, incubadas com células-tronco embrionárias. Ou seja: as célulastronco adultas seriam quase tão maleáveis quanto as em-


■ Novas espécies dos

rios do Pantanal Em 20 dias, um grupo de 36 biólogos percorreu a bacia de cinco rios do Pantanal mato-grossense (Sepotuba, Jauru, Cabaçal, Juba e Paraguai) e encontrou 36 prováveis espécies novas de animais. Realizada entre fevereiro e março, essa foi a terceira expedição do Programa de Avaliação Rápida de Ecossistemas Aquáticos (AquaRAP), organizada pela Conservation International do Brasil com a finalidade de identificar áreas prioritárias para conservação. Uma das conclusões da equipe, que andou por 600 km de rios e 1.000 km de terra, no norte do Pantanal, ao sul de Mato de Grosso: as áreas de proteção

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lises químicas no organismo dos filhotes e constataram o acúmulo de PCBs, poluentes derivados de óleos isolantes térmicos, e de pesticidas DDTs, Clordanes e HCHs. Os poluentes não provinham de contaminação direta, mas de bioacumulação antiga – provavelmente vieram por meio do leite materno de fêmeas contaminadas há anos. Ainda não se pode dizer que os poluentes tenham sido a causa direta das mortes, mas já se sabe que essas substâncias favorecem o surgimento de infecções oportunistas.

Prioridade: conservar as nascentes, berço da diversidade biológica

■ Futebol e

inteligência

adjacentes às represas da hidrelétrica no rio Juba deveriam ser ampliadas e englobar remanescentes de mata e, sobretudo, as nascentes, que concentram a biodiversidade (dez das 14 prováveis espécies novas de peixes, por exemplo). “Se ainda temos alguma oportunidade de conservação, é na bacia do Sepotuba, a mais conservada”, comenta Reinaldo Lourival, diretor da Conservation International Pantanal. “As outras já estão detonadas.”

■ Massacre no

litoral gaúcho Oito filhotes de lobos-marinhos foram encontrados mortos no litoral do Rio Grande do Sul. Os principais suspeitos da chacina são identificados pela sigla POP – de poluentes orgânicos persistentes. Pesquisadores do Laboratório de Microcontaminantes Orgânicos e Ecotoxicologia da Fundação Universidade do Rio Grande (FURG) fizeram anáMILTON MICHIDA/AE

brionárias. Seriam mesmo? Dois artigos da revista Nature (13 de março) questionam esses resultados. Em vez de estarem, repentinamente, mudando de função – a chamada transdiferenciação, as célulastronco adultas estariam, na realidade, fundindo-se às células embrionárias para formar um tipo de célula totalmente novo. E essas células fundidas seriam demasiadamente anormais para terem utilidade na medicina. Numa conferência realizada no Colorado, Estados Unidos, os pesquisadores que observaram a transdiferenciação se defenderam dizendo que procurariam evidências de fusão, mas que não viam motivos para suspeitar de que ela estivesse por trás de seus resultados. Diane Krause, da Universidade de Yale, afirmou que suas células-tronco transdiferenciadas continham um número normal de cromossomos, enquanto uma célula fundida deveria ter duas vezes o número normal.

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STEFAN KIEFER/AFP

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Bola em campo: sem afetar a capacidade de aprendizado

Jogar futebol não causa danos ao intelecto. Essa era uma preocupação dos pais de craques mirins desde que a Academia Americana de Pediatria afirmou que ainda eram desconhecidos os riscos de se cabecear uma bola de futebol ou de se bater a cabeça contra a de outro jogador – e, por isso, aconselhava os jovens atletas a evitarem jogadas com a cabeça. Mas um novo estudo realizado na Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, publicado no Americal Journal of Sports Medicine, esclarece a questão. Os pesquisadores compararam as capacidades de raciocínio e de aprendizado de jogadores de futebol com outros atletas da universidade e não encontraram nenhuma evidência de redução de performance em testes cognitivos. Em contrapartida, os jogadores de futebol sofrem, realmente, mais concussões cerebrais que outros atletas – nos casos mais graves, o dano cerebral pode pôr fim ao sonho de freqüentar os bancos de uma universidade.

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L A B O R AT Ó R I O rior afastando-se do centro da estrela, astrofísicos belgas, suíços e dinamarqueses descobriram que a estrela se comporta como um gigantesco instrumento ultrabaixo, oscilando a um período de três horas e a uma velocidade de 2 metros por segundo, uma amplitude bastante diferente da do Sol. É a primeira vez que se define o espectro de uma estrela gigante (o som emitido pela xi Hya pode ser ouvido no endereço eletrônico www.eso.org). O estudo, feito por meio do Observatório La Silla, do Chile, permitiu conhecer melhor o que ocorre no interior de uma estrela madura, já que a xi Hya aproxima-se do fim da vida, infla e se torna uma gigante vermelha – um estágio pelo qual o Sol também passará.

■ O verdadeiro

rei Escorpião Enquanto no Brasil o descompromissado filme de pancadaria Escorpião Rei, protagonizado por um astro da luta livre norte-americana, lota as salas de cinema, no Egito um casal de pesquisadores descobre o que pode ser o mais antigo registro escrito humano relatando um feito do lendário rei Escorpião. Só que, lá, a história é séria. O rei Escorpião teria sido um líder guerreiro de grande importância para a unificação dos principados regionais do antigo Egito, numa época anterior à das dinastias faraônicas. A placa calcária com 50 cm de com26

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No espaço: para entender melhor como o clima funciona

pelo qual as nuvem e os processos na superfície da água afetam o clima. O satélite integra o Sistema de Observação da Terra (Earth Observing System), programa da Nasa montado com o objetivo de entender as mudanças climáticas e o ambiente natural do planeta. Esse programa, que reúne instituições de pesquisa e agências espaciais da América do Sul e do Norte, Europa, Ásia e Austrália, consiste de três satélites: o primeiro, Terra, entrou em órbita em 1999, e o terceiro, Aura, ainda será lançado.

clo da água. Durante sua missão de seis meses, vai recolher informações sobre mudanças de circulação nos oceanos e o modo

■ Coqueluche volta

a preocupar

primento encontrada pelo casal de arqueólogos John e Débora Darnell num oásis a 400 km do Cairo pode ser o mais antigo documento histórico conhecido: tem 5.250 anos. Segundo os pesquisadores, os desenhos estilizados da placa estariam relatando o retorno vitorioso do rei Escorpião à cidade de Ábidos, após vencer uma batalha em Naqada. O rei estaria representado pela imagem de um falcão – símbolo do deus Hórus e sinônimo de rei – sobre um escorpião. O que os cientistas querem provar, agora, é que as figuras sobre a placa não são apenas desenhos, mas sinais ideográficos, com interpretação simbólica.

PESQUISA FAPESP

■ O som que vem

das estrelas O estudo das ondas sonoras solares deu um salto com as observações da xi Hya, estrela localizada a 130 anos-luz, com um raio dez vez maior e 60 vezes mais luminosa que o Sol. Acompanhando as freqüências de oscilação das partículas da atmosfera estelar supeESO

O satélite Aqua foi lançado no dia 4 de maio da Base Aérea de Vandenberg, na Califórnia, Estados Unidos. A bordo, leva o sensor HSB (Humidity Sounder for Brazil ou Sensor de Umidade para o Brasil), que faz parte de um avançado sistema operacional de sondagem, constituído por outros cinco instrumentos científicos, quatro norteamericanos e um japonês. Produzido pela Equatorial Sistemas, empresa de São José dos Campos, em parceria com a Matra Marconi Space, da Inglaterra, o HSB resulta de um acordo de cooperação entre a Agência Espacial Brasileira (AEB) e a Nasa, agência espacial norte-americana. O Aqua vai coletar dados sobre chuvas, evaporação e o ci-

NASA/BILL INGALLS

Satélite Aqua leva sensor brasileiro

A xi Hya: amplitudes audíveis

Causada pela bactéria Bordetella pertussis, a coqueluche reapareceu entre adultos na França – e com uma nova forma de transmissão: não mais entre crianças, mas de adultos para crianças. O alerta partiu do Instituto de Vigilância Sanitária, que atribui a situação à redução da proteção vacinal. Em 217 adultos com tosse persistente, o sintoma mais característico, 32% tinham coqueluche e não sabiam. E, entre os pacientes já confirmados, 60% já haviam sido vacinados e 33% tiveram a doença na infância. A recomendação é que os médicos fiquem atentos: um adulto com tosse persistente aguda ou crônica pode estar com coqueluche – e, na dúvida, é melhor manter longe as crianças e os recém-nascidos. Na França, estima-se que 300 mil adultos possam estar com coqueluche.


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FABIO COLOMBINI

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Dendrobates: pesticidas ameaçam sobrevivência de anfíbios

rãs hermafroditas O atrazina, herbicida banido de vários países da Europa, mas de uso corrente nos Estados Unidos, é capaz de mudar o sexo das rãs, tornando hermafroditas os machos de diversas espécies, de acordo com um estudo publicado na Science de 19 de abril. Há mais de dez anos, pesquisadores observam o declínio alarmante da população de anfíbios e mesmo a extinção repentina de algumas espécies. Sugeriram que o fenômeno poderia ter como causas desde o ataque de fungos patógenos fúngicos até o aumento da incidência dos raios ultravioleta, as mudanças climáticas e os resíduos de pesticidas. Toxicologistas se concentraram, então, no herbicida atrazina, do qual 27 milhões de quilos são aplicados anualmente em plantações de milho e outras culturas. Levado pelas águas da chuva, o defensivo químico atinge as águas de superfície e subterrâneas. Descobriu-se que o sistema hormonal dos anfíbios pode ser alterado mesmo com baixa concentração dos componentes do pesticida. Em laboratório, os pesquisadores observaram que os machos desenvolvem uma extragônada e se tornam hermafroditas numa concentração 30 vezes menor que a água, considerada segura de acordo com os

padrões dos órgãos ambientalistas.Outro estudo,relatado na New Scientist de 4 de maio, indicou que pesticidas como DDT e dieldrin, também em pequenas quantidades, reduzem bastante a produção de anticorpos em sapos – um efeito equivalente ao da ciclofosfamina, poderoso imunossupressor. Essa fragilidade dos anfíbios pode estar associada à vulnerabilidade a infecções, a mutações e ao desaparecimento de espécies.

■ Os movimentos da

Serra do Espinhaço Estamos acostumados a ouvir falar da estabilidade tectônica do solo brasileiro – é ela que garante a ausência de terremotos. Mas na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, pode estar acontecendo, nes-

erosão. A erosão, por sua vez, provoca uma necessidade de equilíbrio das massas, razão do soerguimento. “A intensidade dos processos erosivos nos leva a crer que a região possui condicionantes naturais que os favorecem”, explica Valadão. Esses fatores naturais, combinados com ação humana, podem causar um desastre de grandes proporções. Por isso, Valadão assegura que as práticas agrárias tradicionais são contra-indicadas na região.

■ Os soldados

de Napoleão

EDSON SATO/PULSAR

■ Herbicida torna

te instante, um lento e silencioso movimento para cima. Indícios do chamado soerguimento, que consiste na elevação natural das massas continentais, foram detectados nas pesquisas de André Salgado, sob orientação do professor Roberto Valadão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A causa dessa movimentação pode estar diretamente ligada à erosão acelerada que ocorre nesse local. Segundo os pesquisadores, a Depressão do Gouveia, no Espinhaço Meridional, está sofrendo da desnudação geoquímica, perda de massa resultante da retirada de material iônico pela água, que acontece quando a água penetra no solo e reage quimicamente com as rochas. A taxa de material iônico nos rios da região foi considerada superior ao que seria o esperado. Esse processo químico favorece a erosão mecânica, por desagregar o material rochoso em sedimentos cada vez menores, mais fáceis de ser transportados mecanicamente pelo vento ou pela água da chuva. O resultado os pesquisadores já constataram na forma de sulcos, ravinas e voçorocas, marcas de relevo que denunciam o acelerado processo de

Chapadões no norte de Minas: sob o impacto da erosão

A descoberta em Vilnius, capital da Lituânia, de cerca de 2 mil esqueletos de soldados franceses que fizeram parte da Grande Armada de Napoleão Bonaparte e morreram de fome e frio na famosa e malsucedida campanha da Rússia, em 1812, pode jogar luz sobre o estado de saúde dos súditos do imperador – e dos europeus em geral – no início do século 19. Os restos dos militares, encontrados por acaso durante escavações realizadas em novembro por uma empresa de construção, foram enterrados, às pressas, há quase 200 anos pelos russos, que temiam a eclosão de um surto infeccioso se os cadáveres não ganhassem o subsolo rapidamente. Agora, antropólogos e especialistas em medicina legal do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França se dedicam a precisar, a partir dos ossadas resgatadas, quais eram as condições de saúde dos soldados de Napoleão no momento de sua morte. Esperam determinar a altura, estado da dentição, carências alimentares e eventuais doenças desses guerreiros vitimados na campanha.

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CIÊNCIA / CAPA PALEONTOLOGIA

A origem dos mamíferos Fósseis de pequenas espécies descobertas no Rio Grande do Sul podem ser os ancestrais mais próximos dos maiores animais de hoje M ARCOS P IVET TA

Q

ualquer paleontólogo sabe que os mamíferos descendem de alguma forma de cinodonte, vasto grupo de animais – extintos, como os dinossauros – caracterizado por ter crânio e dentes semelhantes aos dos atuais cachorros. Os cinodontes pertenceram ao grupo dos sinápsidos, que serviu de transição entre os répteis e os mamíferos. O que falta é precisar qual linhagem de cinodonte gerou, há cerca de 210 milhões de anos (mais ou menos a época em que os dinossauros surgiram), os primeiros seres com as características ósseas que hoje definem um mamífero: quatro tipos de dentes diferenciados funcional e anatomicamente, ouvido

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médio com três ossículos condutores de som e crânio avantajado. Por reunirem pioneiramente esses traços ósseos e, provavelmente, apresentarem sangue quente, pêlos no corpo e glândulas produtoras de leite para a prole, esses bichos foram os exemplares primordiais dos futuros mamíferos, entre eles o homem. Talvez nunca se determine com precisão que espécie de cinodonte deu o último passo em direção aos mamíferos, mas paleontólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Museu Argentino de Ciências Naturais acreditam ter encontrado importantes peças desse quebracabeça filogenético. A partir da análise de vários fragmentos fósseis de pequenos répteis –

do tamanho de uma caneta e semelhantes a ratos ou esquilos selvagens – resgatados nos dois últimos anos na região gaúcha de Santa Maria, a cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre, centro do Estado, os pesquisadores identificaram dois novos cinodontes – que chamaram provisoriamente de Brasilitério e Brasilodonte – com características anatômicas para serem os ancestrais mais próximos dos mamíferos primordiais. “Esses répteis pré-mamalianos do Brasil podem ser o grupo irmão dos mamíferos”, diz o renomado paleontólogo argentino José Bonaparte, 73 anos, que descobriu os ossos petrificados das duas espécies juntamente com pesquisadores do Instituto de Geociências da UFRGS, onde é pesquisador


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Rochas do período Triássico, com fósseis de animais que viveram há cerca de 210 milhões de anos: irmãos dos mamíferos

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FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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visitante, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).“Esses animais, retirados de rochas do período Triássico Superior – com idade geológica estimada entre 230 e 205 milhões de anos atrás –, não eram mamíferos, mas sua evolução estava claramente orientada nessa direção.” Por isso receberam nomes que remetem a esse grupo animal. Brasilitério quer dizer “mamífero do Brasil”, enquanto o Brasilodonte tem dentes (odon) de mamífero e seus póscaninos, usados para triturar, formam quatro ângulos retos.

A

maioria dos fósseis encontrados são crânios completos ou parciais, com mandíbulas e dentes preservados. Foram resgatados outros ossos, mas nenhum esqueleto inteiro. Ainda este mês, pesquisadores da UFRGS e técnicos do museu argentino voltariam à região de Santa Maria em busca de mais fósseis. O confronto das formas do crânio, mandíbula e dentes desses animais com os do Morganucodon – um dos mamíferos mais antigos (cerca de 200 milhões de anos) com material fóssil de 30

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boa qualidade e que tinha O passado desenterrado 15 centímetros de comprimento e se parecia com SANTA CATARINA um rato selvagem – torna ARGENTINA Santa os achados gaúchos fortes Maria Faxinal do candidatos a serem os meSoturno Camobi lhores representantes da Agudo linhagem de cinodontes Candelária que desembocou nos mamíferos. “Os cinodontes PORTO ALEGRE do Rio Grande do Sul apresentam um tipo de dentiOCEANO Lagoa ATLÂNTICO dos Santana ção carnívoro-insetívora, Patos do Livramento sobretudo na mandíbula, URUGUAI comparável à dos primeiros mamíferos”, afirma BoLagoa Região dos fósseis Mirim de pré-mamíferos naparte. Ele acredita que Formação Santa Maria o Brasilitério produziu 0 100 KM Fonte: UFRGS descendentes que, gerações mais tarde, podem ter levado tanto ao mamífero primordial Morganucodon como lises tão aprofundadas quanto os do ao Brasilodonte, animal com maior núBrasilodonte, e os pesquisadores não mero de características de mamífero. Em chegam a rotular os minicinodontes outras palavras, a linhagem do Brasiligaúchos como pais de todos os mamítério pode ter sido ancestral tanto de siferos. Em vez de enfatizar a noção de linápsidos muito parecidos com mamínhagem paterna e filial, preferem um feros quanto dos primeiros mamíferos. conceito mais preciso do ponto de vista científico: o de grupo irmão. Se suas teoGrupo irmão - Por ora, os fósseis do Brarias se mostrarem corretas, o Brasilosilitério não parecem passíveis de anádonte e o Brasilitério deverão tomar o

SIRIO J. B. CANÇADO

Brasilodonte: acima, mandíbula esquerda e, ao lado, maxila esquerda com dentes


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Rocha com dentes do Brasilitério: manchas brancas à direita

MARK A. KLINGER/CMNH

Crânio e mandíbula do Brasilitério: segunda espécie descoberta

Hadrocodium e seu crânio: o mais antigo representante dos mamíferos de hoje

lugar de duas famílias de pequenos cinodontes, os tritylodontídeos e os trithelodontídeos (também chamados ictidossauros), encontrados em várias partes do mundo e que disputam há tempos a primazia de ser o grupo irmão mais próximo dos animais de pêlo e sangue quente. “Nossos achados podem ajudar a entender melhor a origem dos mamíferos e mostrar quais linhagens de cinodontes participaram do processo de transição dos sinápsidos em direção a esse tipo de animal”, comenta o paleontólogo Cesar Schultz, da UFRGS, co-autor dos estudos de Bonaparte sobre os minissinápsidos prémamalianos gaúchos. Com aparência e dimensões similares às do Morganucodon, os novos cinodontes mediam de 9 a 15 centímetros da cabeça à ponta da cauda, e o comprimento de seu crânio variava de 18 a 22 milímetros. O peso não devia passar de algumas dezenas de gramas. O Brasilodonte era cerca de 40% maior do que o Brasilitério.“Esses animais provavelmente comiam insetos e outros bichos menores, viviam em buracos e tinham hábitos noturnos”, afirma Schultz. As patas deles, que já deveriam ter o corpo coberto de pêlos, eram fortes o

bastante para que abrissem tocas na terra, onde se abrigavam de predadores como os primeiros dinossauros e outros répteis. Os restos dessa ainda mal conhecida minifauna foram retirados de rochas em sítios paleontológicos dos municípios gaúchos de Faxinal do Soturno e Candelária, pertencentes à Formação Santa Maria, uma das áreas do Estado com sedimentos do Triássico – agitado período de pouco mais de 40 milhões de anos, entre 250 e 205 milhões de anos atrás. Ancestral chinês - Além de comparar a

anatomia dos cinodontes gaúchos com o mamífero primordial Morganucodon, o grupo confrontou seus achados com a morfologia do mamífero chinês Hadrocodium wui, que viveu há 195 milhões de anos e também era similar a um ratinho. Resultado: a dentição superior do Brasilodonte e do Brasilitério se parece com a desse fóssil chinês, que media ínfimos 2 centímetros de comprimento total. O sentido da comparação vem do fato de que, embora animais do tipo do Morganucodon sejam considerados os primeiros mamíferos, não se sabe com segurança se seus descendentes geraram as linhagens atualmen-

te existentes. Essa origem, ao que parece, está mais provavelmente relacionada a um mamífero do tipo do Hadrocodium. Objeto de um artigo de capa da revista norte-americana Science em maio do ano passado, esse bichinho asiático é considerado o potencial ancestral comum dos três grupos atuais de mamíferos (um quarto grupo, o dos multituberculados, está extinto há 40 milhões de anos): os monotremados, que botam ovos e são representados pelo ornitorrinco e por duas espécies de equidna, semelhante a um ouriço; os marsupiais, como o gambá, o canguru e o coala, que abrigam e amamentam os filhotes numa bolsa de pele; e os placentários, mais numerosos, que incluem de roedores a elefantes, passando pelos primatas, entre os quais o homem. Confrontar os novos fósseis gaúchos com o Hadrocodium, ascendente mais distante de todos os mamíferos vivos até agora localizado, é um modo de averiguar se o Brasilitério e o Brasilodonte também não guardariam alguma relação, ainda que remotíssima, com os atuais animais de pêlo e sangue quente.

A

s descobertas ainda não foram publicadas formalmente, o que deverá ocorrer ainda este ano. Em abril de 2001, num encontro informal com pesquisadores da América do Norte no Museu de Zoologia Comparada de Harvard, Bonaparte expôs alguns dos fósseis e discutiu as peculiaridades e a importância das novas espécies. Ele diz que a receptividade dos colegas foi muito boa. A proposta de que os minicinodontes gaúchos sejam os mais próximos parentes conhecidos dos mamíferos pode parecer ousada, mas Bonaparte, que há 17 anos tem apoio financeiro da instituição norte-americana National Geographic Society para seus trabalhos de campo e pesquisas, tem credenciais para defendê-la. Com mais de quatro décadas de pesquisa, Bonaparte é um dos maiores especialistas em dinossauros do mundo. Graças a seu trabalho, sobretudo na Patagônia argentina, mais de 20 espécies de dinossauros típicos do hemisfério sul foram descobertos, entre eles o Amargasaurus, o Argentinosaurus (talvez o maior do mundo, com até 12 PESQUISA FAPESP

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Schultz (à esq.) e Bonaparte (de gravata) com paleontólogos da UFRGS: terreno fértil

metros de altura), o Saltasaurus e o Carnotaurus. Este último, um carnívoro de 3,5 metros de altura, 7,5 metros de comprimento e dois chifres, transformou-se até em personagem de desenho animado – no filme infantil Dinossauro, lançado em 2000 pela Disney.

M

ais recentemente, sem abandonar os dinossauros, Bonaparte começou a estudar os ancestrais dos mamíferos, que surgiram na mesma época desses grandes répteis e viveram discretamente à sombra deles por 160 milhões de anos. Na Argentina, encontrou fósseis de pequenos sinápsidos com traços mamiferóides, que poderiam ser rotulados de primos mais distantes do Morganucodon. “Mas esses fósseis eram do Triássico Inferior e Médio, entre 250 e 230 milhões de anos atrás”, pondera. Sua esperança de encontrar cinodontes avançados, que fossem o elo entre répteis e mamíferos, deslocou-se então para o Sul do Brasil, mais especificamente para as rochas gaúchas do Triássico Superior. Em meados de 1997, Bonaparte veio trabalhar no Museu de Ciências Natu-

rais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, conhecida pelas pesquisas na área paleontológica. Um ano depois, ao lado de dois pesquisadores da fundação, Jorge Ferigolo e Ana Maria Ribeiro, resgatou numerosos fragmentos fósseis de um novo cinodonte avançado, o Riograndia guaibensis, em afloramentos rochosos de Candelária, e descreveu o animal num artigo publicado em 2001 na revista britânica Palaeontology. Possível ancestral do Brasilitério e do Brasilodonte, o Riograndia não poderia ter descendentes mamíferos.“Seus

O tecodino de Santa Maria A região de Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul, não fornece apenas fósseis interessantes de minicinodontes que podem ajudar a explicar a origem dos mamíferos. De lá, já saíram outros vestígios ósseos de animais extintos do período Triássico, que habitaram a Terra entre 250 e 205 milhões de anos atrás. Um famoso fóssil retirado de rochas da região, por exemplo, é o Staurikosaurus pricei, um dos mais antigos dinossauros resgatados no mundo, cujo esqueleto, descoberto em 1937, está exposto no Museu de Zoologia Comparada de Harvard, Estados Unidos.

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Mais recentemente, paleontólogos de uma instituição estadual – o Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul – ,que em 1998 já haviam participado da descoberta dos primeiros minicinodontes pré-mamalianos nos arredores de Santa Maria, fizeram outro achado instigante: encontraram rico material fóssil de um misterioso bicho, chamado por ora, informalmente, de tecodino. O que seria essa criatura? O paleontólogo Jorge Ferigolo, da fundação, ainda não sabe precisar se os ossos petrificados resgatados no município de Dona

dentes são diferentes”, diz a paleontóloga Marina Bento Soares, da UFRGS. No entanto, a localização de muitos restos petrificados dessa espécie confirmou os indícios de que valia a pena explorar o solo de Candelária e arredores. “O potencial fossilífero da região é muito grande”, comenta Ana Maria Ribeiro, que continua a estudar os pré-mamíferos do Triássico gaúcho paralelamente ao trabalho de Bonaparte, hoje baseado na UFRGS. Incrustados e por vezes achatados em meio aos sedimentos rochosos avermelhados da Formação Santa Maria, Francisca – um esqueleto completo, dois crânios inteiros, dois crânios parcialmente preservados e quatro colunas vertebrais quase intactas, além de partes do esqueleto do que parece ser um exemplar juvenil do enigmático animal – pertenceram a tecodontes, ancestrais dos dinossauros, ou a dinossauros mesmo. Ou, talvez, a um animal de transição entre esses dois tipos de répteis, hipótese que inspirou o nome provisório de tecodino. “Ainda temos de preparar a maioria dos fósseis – limpar e separar os ossos petrificados incrustados na rocha – e estudá-los com cuidado”, afirma Ferigolo. Embora pouco material tenha sido preparado até agora, os fragmentos fós-


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os vestígios ósseos desses diminutos répteis pré-mamalianos são de difícil localização para olhos não treinados. Lugar privilegiado - A pista

do osso petrificado geralmente não passa de um ponto branco – por conter cálcio, que é dessa cor – do tamanho de uma cabeça de fósforo, na superfície da rocha. “Estávamos acostumados a procurar fósseis de répteis maiores, como dinossauros e mesmo cinodontes de maior porte”, conta Cesar Schultz. “Tivemos Trabalho de limpeza de fóssil: cuidado e paciência de aprender a olhar a rocha de uma forma diferente na busca por estam convenções bem aceitas para trases pequenos pré-mamíferos.” Por ser çar a linha divisória entre as espécies, o único lugar do país com sedimentos dificilmente há unanimidade. “As clascontendo fósseis de vertebrados tersificações refletem mais ou menos as restres do período Triássico, quando preferências de cada autor e são, em alsurgiram tanto os dinossauros como guma medida, arbitrárias”, diz Schultz. os mamíferos, o Rio Grande do Sul é um No Triássico, a terra firme estava terreno privilegiado para prospecção. unificada no supercontinente Pangea, Uma das grandes dificuldades para cuja centro era um imenso deserto. O estudar animais de épocas de transigelo das calotas polares havia derretição é justamente classificar cada fóssil do. Nesse ambiente árido, há cerca de numa dada categoria – cinodonte ou 230 ou 220 milhões de anos, surgiram mamífero, dinossauro ou ave. É coos dinossauros, descendentes de répmum achar nada mais do que dentes teis do grupo dos tecodontes. Até o ou fragmentos do crânio, de difícil fim do Triássico, num movimento de identificação. No caso dos répteis prérenovação da fauna quase simultâneo mamalianos gaúchos, até que os fósseis encontrados são razoavelmente fartos e ricos em detalhes. Ainda que exis-

Placas ósseas da coluna vertebral do tecodino: espécie de transição

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seis já limpos do tecodino reforçam a hipótese de que se trata de uma espécie híbrida, com algumas características de tecodonte e outras de dinossauro. O misterioso animal – que viveu há 235 milhões de anos e devia ser um bípede com cerca de 2,5 metros de comprimento total – revela muitos caracteres da coluna vertebral que são mais ou menos típicos dos dinossauros. Ainda não foi possível determinar, contudo, se sua articulação para o fêmur, na bacia, é perfurada, traço característico dos dinossauros. O lado tecodonte do bicho se manifesta nas placas ósseas que parecem ter existido embaixo de sua pele, mais ou

ao aparecimento dos dinossauros, viriam os primeiros mamíferos, crocodilos e tartarugas, além dos pterossauros, répteis voadores também extintos. A essa altura, fauna e flora eram muito parecidas em todos os lugares, já que havia um só continente. “Animais semelhantes aos minicinodontes do Rio Grande do Sul devem ter existido em outras partes do planeta”, comenta Bonaparte. É nesse mundo perdido do Triássico, há mais de 200 milhões de anos, que os pesquisadores se esforçam para encontrar o lugar mais adequado do Brasilitério e do Brasilodonte na árvore evolutiva. Quão próximos dos primeiros mamíferos estariam esses répteis que lembram ratos? Há dois parâmetros anatômicos nos ossos que ajudam a mostrar a distância de um bicho em relação aos mamíferos: a constituição dos dentes e da mandíbula e a composição óssea do ouvido médio. Mamíferos trocam de dentição uma só vez na vida e têm quatro tipos de dentes bem definidos: incisivos para morder ou roer, caninos para rasgar e molares e pré-molares para mastigar e triturar. Nos répteis, a substituição dos dentes é contínua por toda a vida e é impossível diferenciar molares e pré-molares. “No Brasilodonte e no Brasi-

menos como ocorre hoje nos crocodilos, chamadas de osteodermas. Embora fosse de se esperar que apresentassem essas placas ósseas, por se situarem evolutivamente próximos dos tecodontes, os dinossauros mais antigos, da idade do tecodino, aparentemente não as tinham. As osteodermas se torna-

riam muito comuns em dinossauros posteriores. A região de Santa Maria é tão rica em fósseis que o governo do Rio Grande do Sul, por meio do Programa Pró-Guaíba, que faz um levantamento do potencial dessa bacia hidrográfica, já propôs a criação de um parque paleontológico nos arredores da cidade de Candelária. “A área escolhida já está em fase de desapropriação”, diz a paleontóloga Ana Maria Ribeiro, da fundação.

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Dinossauros da fronteira

litério, a distinção entre molares e prémolares ainda não é clara e a troca de dentes parece obedecer ao padrão dos répteis”, comenta Bonaparte. Apesar disso, as cúspides (pontas) dos caninos se assemelham às de mamíferos primordiais, o que reforça a tese de que tinham potencial para gerar, linhagens à frente, alguma forma de mamífero. O sistema auditivo mostra que estavam a caminho, mas ainda não eram mamíferos. Isso porque nos mamíferos o ouvido médio, uma cavidade interna cheia de ar, é composta por três pequenos ossos interconectados: martelo, bigorna e estribo. O ouvido médio dos cinodontes, entre eles o Brasilitério e o Brasilodonte, não tem esses ossículos. Evolutivamente, o martelo, a bigorna e o estribo do ouvido médio dos mamíferos se constituíram a partir de ossos originalmente situados na mandídula e na região da articulação do crânio de répteis ancestrais. Os mamíferos têm sempre apenas um grande osso na mandíbula e três no ouvido médio. Ao passo que os répteis têm a 34

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de comprimento”, diz Cesar Schultz, da UFRGS, que estuda os vestígios recém-descobertos na fronteira. Outro tipo de pegadas foi feito por patas com três dedos, que podem ter pertencido a dinossauros carnívoros ou ao grupo herbívoro dos hadrossauros: em qualquer dos casos, pelo tamanho das pegadas, seriam dinossauros bípedes com cerca de 3 metros de altura. No Uruguai foram encontrados fósseis de peixes e dinossauros na mes-

ma camada rochosa em que agora afloraram os rastros de répteis do lado brasileiro da divisa. Por isso, os pesquisadores farão viagens exploratórias à região, na esperança de resgatar ossos dos autores das pegadas. A camada rochosa que preserva as pegadas está abaixo do tipo de rocha que forma o arenito Botucatu, cujo topo está datado em 134 milhões de anos, já no Cretáceo, portanto, mas cuja base pode remontar ainda ao final do Jurássico. É possível que se trate de um bloco sedimentar da última etapa do Jurássico ou do início do Cretáceo, período que não tinha camadas conhecidas no Rio Grande do Sul. CLAITON SCHERER

Um novo sítio arqueológico ganha fama no Rio Grande do Sul: o município de Santana do Livramento, no oeste, fronteira com o Uruguai. Ali, a 500 quilômetros de Porto Alegre, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) encontraram em 2001 e em janeiro deste ano vários tipos de pegadas de dinossauro à beira de uma estrada onde se fazia terraplenagem. Pelo formato, pertenceram a duas formas que devem ter vivido entre 144 e 137 milhões de anos atrás, no final do Jurássico ou início do Cretáceo, quando os dinossauros dominavam o cenário. Um tipo de rastro, que chega a formar trilhas, lembra pegadas de elefante, cada uma com 40 centímetros de diâmetro, em média. “Essas pegadas devem ser de um saurópode, grande herbívoro de pescoço longo que podia ter mais de 13 metros

Pegada com marcas de três dedos: provavelmente um terópode (carnívoro) ou um hadrossauro (herbívoro)

mandíbula articulada em cima de vários ossos e o ouvido médio sem martelo, bigorna e estribo. Os cinodontes apresentam justamente um padrão transicional entre esses dois extremos. “Quanto menos ossos possuir a mandíbula de um animal, mais próximo esse bicho está da condição de mamífero”, compara Schultz. Os fósseis gaúchos ainda carregam mais de um osso na mandíbula, denotando seu caráter pré-mamífero. A descoberta gaúcha dos novos irmãos dos animais de sangue quente

também põe em xeque uma idéia comum sobre os bichos que fizeram a ponte entre cinodontes e mamíferos: a de que houve uma miniaturização desse grupo de répteis antes de derivar para os primeiros mamíferos. Embasado nas evidências dos fósseis gaúchos, Bonaparte discorda: a fauna de cinodontes, mesmo antes de originar o Morganucodon e outros mamíferos primordiais, já tinha tamanhos variados, alguns com mais de 1,5 metro de comprimento e outros com poucos centímetros, caso do Brasilodonte e do Brasilitério. Portanto, não tiveram de diminuir de tamanho para virar mamíferos. Para ele, aconteceu algo distinto: havia grandes e pequenos cinodontes, mas só um dos pequenos evoluiu para os mamíferos. “Com os fósseis gaúchos, poderemos conhecer melhor esse processo de transição”, diz Bonaparte. “E, em muitos casos, conhecer melhor é substituir teorias.” •


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CIÊNCIA

PALEONTOLOGIA

Luzia com as preguiças

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CÁSTOR CARTELLE. TEMPO PASSADO: MAMÍFEROS DO PLEISTOCENO EM MINAS GERAIS

Os enormes mamíferos sul-americanos foram contemporâneos do mais antigo fóssil humano da América surgiram cerca de 50 milhões ma velha suspeide anos atrás. Mas não se sabia ta agora foi conexatamente quando se extinguifirmada: Luzia e ram – se antes ou depois da preas enormes presença do homem nessa parte guiças terrícolas, do continente. os “elefantes” sul-americanos, Com o resultado da dataforam contemporâneos e divição, ficou comprovado, de fordiram o mesmo pedaço de terma inequívoca, que as preguiças ra. O nome de mulher é uma ainda andavam pelos cerrados referência ao fragmento de esdo Brasil, seu hábitat, há cerca queleto humano mais antigo de 10 mil anos, portanto, deencontrado na América, o crâpois dos primeiros registros da nio de uma jovem que viveu há presença humana na América. 11 mil anos, encontrado na reLogo, preguiças gigantes e segião mineira de Lagoa Santa, res humanos devem ter tido alrica em sítios pré-históricos. gum grau de convivência por O bicho, versão terrestre e certo tempo. avantajada das atuais preguiças A hipótese de que as preque moram em árvores, é posguiças terrícolas e o homem tesivelmente o mais espetacular nham estado lado a lado em dos animais extintos que comMinas Gerais foi levantada em punham a megafauna da pormeados do século 19 pelo nação sul do continente. A dúvida turalista dinamarquês Peter sobre a coexistência do homem Lund, que fez muitas escavações com esses quadrúpedes peluem Lagoa Santa e encontrou dos – que, dependendo da esfósseis desses grandes bichos. pécie, podiam pesar até 5 toNas últimas décadas, o paneladas e atingir 6 metros de leontólogo Cástor Cartelle, da comprimento total – se desfez Universidade Federal de Minas com a divulgação, em abril, do Preguiça terrícola: ao lado dos humanos há 10 mil anos Gerais (UFMG), também viresultado de um teste de carnha defendendo essa tese, muito antes dara o exame ao laboratório norte-amebono 14 ao qual foi submetido um de a datação ficar pronta. “Temos osricano Beta Analytic. Neves coordena fragmento de costela de uma preguiça sos de preguiças com marcas de cortes um projeto temático da FAPESP que terrícola desenterrada nos arredores que devem ter sido feitos por humapropõe uma nova teoria de ocupação de Lagoa Santa, da espécie Catonyx nos”, diz Cartelle. Em breve, devem fida América. cuvieri, uma das 13 identificadas no car prontos novos testes de carbono Mamíferos da ordem dos Xenarthra, Brasil até agora. 14, feitos com ossos de outras espécies que se originou e se desenvolveu na “O exame mostrou que a preguiça de preguiça resgatados do solo mineiAmérica do Sul e cujos representantes habitou aquela área há 9.990 anos”, diz ro, aumentando assim as evidências hoje se restringem a três grupos de anio bioarqueólogo Walter Neves, do Insdo convívio entre homens e esse pormais – preguiças arborícolas, tatus e tituto de Biociências da Universidade tentoso bicho. tamanduás –, as preguiças terrícolas de São Paulo (IB-USP), que encomen• PESQUISA FAPESP

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CIÊNCIA

AMBIENTE

Cicatrizes da ocupação Mapa do Nordeste por satélite retrata devastação da caatinga e litoral

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epois do retrato da Amazônia apresentado há oito meses (Pesquisa FAPESP nº 67) a Embrapa Monitoramento por Satélite, centro de pesquisa do governo federal sediado em Campinas, desvenda as marcas da ocupação humana do Nordeste: uma nova história da região pode ser contada a partir do colorido mosaico que acaba de ser montado com 123 imagens de satélite, que cobrem nove Estados e mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados. As marcas evidenciam, de um lado, a atual atividade econômica – ligada à irrigação, à expansão agrícola e à modernização da malha viária – e, de outro, sérios problemas ambientais, com riscos de perda do bioma caatinga, de salinização de terras irrigadas, exploração predatória de manguezais e desmatamento de reservas e chapadas. A exemplo do que ocorreu com a Amazônia, os dados do trabalho, coordenado pelo ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda, foram agregados em CDRoms e estão disponíveis também na Internet e em papel fotográfico. Na verdade, já foi feito o levantamento de todo o território nacional, de modo que ainda este ano serão mostrados os mosaicos das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, completando um retrato inédito da atual paisagem brasileira. As imagens servem a estudos comparativos, sobretudo se juntadas à cartografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): pode-se

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superpor uma imagem de satélite em transparência sobre mapa temático da mesma área.“O Nordeste dispõe de uma cartografia bastante rica”, comenta Miranda.“O cruzamento de dados com essa imagem precisa permite que problemas sejam detectados, contornados e corrigidos, além de poder apoiar tecnicamente as decisões”. O sentido das cores - O mosaico nor-

destino revela uma dinâmica muito grande: urbanização crescente, transformações em larga escala no semi-árido – devidas sobretudo a projetos de irrigação, assentamentos e modernização pecuária –, expansão da ocupação agrícola mecanizada nos cerrados e expressivo desenvolvimento da infra-estrutura – estradas e redes elétricas, por exemplo –, resultante da transformação comandada pela expansão das cidades e do setor primário. Há também uma constante: as marcas da destruição de ecossistemas, principalmente ao longo do litoral, da Bahia à Paraíba, pela expansão das atividades de hotelaria e de especulação fundiária. Miranda enfatiza uma utilidade um tanto inesperada: fornecer dados para democratizar o debate sobre transposição das águas do rio São Francisco. Doze pesquisadores trabalharam por um ano e meio no desenvolvimento de programas de produção de mosaicos e na uniformização das cores das imagens do satélite norte-americano Landsat 7. Com aproximação de até 30 metros, as cores dos nove Estados são

traduzidas em dados ambientais. Contrapostas aos tons verdes e azuis, as tonalidades rosas e avermelhadas indicam contrastes ambientais, pois correspondem a áreas desmatadas ou solos preparados para plantio. Cultivos em estágio precoce aparecem nesses tons, em formas geométricas regulares. Cidades e povoados também surgem em rosa, lilás e tons de vermelho. As salinas típicas do Rio Grande do Norte têm tons azulados fortemente contrastantes com seu entorno. Rios, lagos, represas e açudes vão do azulescuro ao preto – quando têm águas claras onde a luz do sol penetra e quase não é refletida. Já o tom azul-claro para áreas de água denuncia excesso de material em suspensão, como argilas ou poluentes. Áreas de aqüicultura para criação de camarões ocupam parte das salinas e de seu entorno, em áreas vizinhas a manguezais. É possível identificá-las pela regularidade geométrica dos tanques, pela presença da água e por sua posição próxima dos mangues. Os projetos de irrigação para fruticultura do médio São Francisco, no pólo Petrolina-Juazeiro, deixam marcas verdes na caatinga. Em contrapartida, a expansão da pecuária por meio de novas tecnologias de manejo da caatinga acende um sinal de alerta para a preservação desse ecossistema. Caatinga em perigo - O sertão pernambucano e o oeste baiano têm manchas preocupantes, referentes à perda de áreas da caatinga – e esse pode ser um dos maiores danos ambientais à região. Na Chapada do Araripe – ilha verde no meio do sertão semi-árido, na divisa do Ceará com Pernambuco, conhecida pela diversidade da flora –, a recente expansão da pecuária provoca desmatamento intenso com graves implicações: rebaixamento da vegetação, excesso de uso do pasto pelo gado e plantio de capim exótico – o buffel, trazido do Texas, Estados Unidos. Para o pesquisador, um manejo ambientalmente aceitável seria: para cada 10 hectares de caatinga, apenas 1 hectare de pasto com capim exótico. No entanto, o desmatamento tem crescido muito e, segundo Miranda, os danos vão muitíssimo além disso: “A alteração no recobrimento do solo e a inten-


FABIO COLOMBINI

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sificação na ocupação da caatinga alteram a dinâmica hídrica: a água da chuva não é interceptada pelas folhas, o solo absorve menos a água – que escorre mais rápido, provoca enchentes e depois o lugar fica mais seco, pois não armazena tanta água”. Também se altera o potencial de uso desse bioma. É a caatinga que normalmente fornece lenha de cozinha, madeira para construção, fibras para artesanato, folhas e frutas (umbu e cajá, por exemplo) para alimento de animais domésticos e selvagens, além de medicamentos tradicionais. É também um reservatório de proteína animal, pois sustenta, sobretudo na seca, os animais domésticos e os selvagens, caçados pelo sertanejo. “Todo esse delicado e encadeado equilíbrio tradicional pode se perder”, alerta Miranda. Outra alteração decorre da expansão da agricultura mecanizada em áreas pioneiras do oeste da Bahia, sul do Piauí e sul do Maranhão: são grandes empresas que cultivam soja, algodão e milho em larga escala. “Essa atividade, ao mesmo tempo que desenvolveu a região e estimulou o surgimento de cen-

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tros urbanos, acarretou um dos mais intensos e concentrados processos de desmatamento recente no país, até agora pouco monitorado”. As extensas plantações de caju para exportação da castanha, no Rio Grande do Norte, Piauí e Ceará também produziram desmatamentos significativos. No sul do Piauí, o desmatamento na Serra da Capivara inclui áreas com 15 quilômetros quadrados de extensão. Em Cariris Novos, fronteira com o Ceará, onde há nascentes de rios, vê-se uma área desmatada ainda maior, de 25 quilômetros quadrados. Na mesma região, a expansão da colonização agrícola no vale do Gurguéia reduz rapidamente a vegetação nativa. Oásis - Na Paraíba, o mosaico evidencia

a urbanização crescente do sertão nas regiões de Souza, Cajazeiras e Pombal. E mostra em que medida o grande projeto de irrigação de São Gonçalo, no centro do Estado, está comprometido pela salinização da terra. O mapa do Rio Grande do Norte revela a nova ocupação econômica da Chapada do Apodi, na divisa com o

Caatinga: destruição da flora desse bioma tira o hábitat dos animais e o sustento dos sertanejos

Ceará, tomada por projetos de irrigação e agricultura intensiva. No litoral, expandiu-se nos últimos dez anos a aqüicultura do camarão, hoje uma das maiores fontes de renda do Nordeste. No sul do Ceará, destaca-se em verde o oásis do Cariri. As dunas do extenso litoral, a Serra do Baturité e Orós – maior açude nordestino, alimentado pelo Jaguaribe – dão tons verdes ao cinza e ao ocre que dominam as imagens. Estrada da Mula - O Maranhão forma um dos mais belos mosaicos, pela combinação de cores. Tem a maior área de reservas indígenas do Nordeste e as imagens não apontam problemas relevantes de preservação, mas retratam uma diversidade ambiental que vai do semi-árido da caatinga à exuberante porção de floresta amazônica a oeste. “É um Estado que no século 19 viveu um desenvolvimento agrícola intenso”, acentua Miranda. A terra gravou marcas dessa atividade: a Estrada da PESQUISA FAPESP

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EMBRAPA MONITORAMENTO POR SATÉLITE

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Retrato de corpo inteiro: de perto, surgem detalhes de 30 metros

Mula, caminho pisado por mais de um século pelos animais de carga, aparece em forma de uma linha esbranquiçada. Ela cruza o Estado de oeste a leste, até o rio Parnaíba, onde a carne-de-sol era embarcada para outros mercados. Outros destaques maranhenses são a hidrovia do Tocantins, a ferrovia de Carajás (que leva minério de ferro ao porto de Itaqui) e um ponto preto que revela a fumaça emitida do pólo industrial de ferro gusa em Açailândia. Mais diversidade - A Bahia precisou de 36 imagens, cada uma com 34 mil quilômetros quadrados. O cenário baiano também é muito diversificado. O oeste, antes ocupado pelo cerrado, abriga culturas mecanizadas numa área de quase 30 mil quilômetros quadrados, com largo uso de irrigação por pivô central – facilmente notada pelos círculos verdes que deixa nas imagens. 38

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Na sub-região do Baixo Irecê, noroeste baiano, vê-se a expansão da cultura do feijão nas últimas décadas e, no além-São Francisco, a consolidação da pequena agricultura de colonização na Serra do Ramalho, às margens do rio. No centro do Estado, nota-se a recente

O PROJETO Expansão da Rede Local da Embrapa Monitoramento por Satélite MODALIDADE

Programa de infra-estrutura COORDENADOR

EVARISTO EDUARDO DE MIRANDA – Embrapa Monitoramento por Satélite INVESTIMENTO

R$ 115.320,00

expansão da cafeicultura em trechos da região da Chapada Diamantina. E, nos mais de 200 quilômetros do litoral norte baiano, aparecem as marcas de uma ocupação urbana organizada e crescente, ligada ao turismo. Foi mais difícil compor o mosaico do Nordeste – em especial o da Bahia – que o da Amazônia, não só pela diversidade de paisagens, mas principalmente pelas características climáticas: uma época do ano é muito chuvosa, outra totalmente seca. E, freqüentemente, a quantidade de nuvens atrapalha a captação de boas imagens no horário em que o Landsat 7 passa sobre a região, por volta das 10 horas da manhã. “No semi-árido, o clima é frio à noite e leva à formação, pela manhã, de pequenas nuvens que se dissipam por volta do meio-dia”, diz Carlos Assis Paniago. “Esses pequenos colchões de nuvens estão presentes em alguns pedaços do mosaico, porque não conseguimos imagens totalmente livres deles.” Paniago sabe que compor o mosaico é bem mais do que colar pedaços: “As emendas devem ser corrigidas, porque as passagens do satélite são diagonais e cada passagem registra um dia, de modo que as condições de luz variam e precisam ser equalizadas”. Além de fazer emendas perfeitas, ele transformou arquivos eletrônicos – tão grandes que só podem ser lidos em estações de trabalho – em páginas da Internet. As imagens foram tratadas com programas de domínio público e outros desenvolvidos na Embrapa. Popularização - O mosaico nordestino custou cerca de R$ 1,1 milhão e foi quase todo financiado pelo Ministério da Agricultura. Os mapas estão disponíveis na Internet (www.cnpm.embrapa.br), em CD-Roms e em mapas impressos em papel fotográfico. Os CDs correspondentes a cada Estado custam R$ 40,00. No endereço da Internet, é possível obter gratuitamente o detalhamento técnico, explicações de como consultar, bem como as imagens – em definição 50% menor que nos CDs, mas com todas as informações levantadas. O formato é auto-explicativo e permite aproximar as imagens em várias escalas. A facilidade de uso estimula o acesso: em um ano e meio, o site foi visitado mais de 800 mil vezes. •


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Programas Jovens Pesquisadores

Programa GENOMA

Programa CEPID

Um dos melhores pós-doutoramentos do mundo fica bem aqui pertinho: em São Paulo. Programa BIOTA

Projetos Temáticos

Bolsas de pós-doutoramento da FAPESP. O sistema brasileiro de pesquisa se expande. A FAPESP está revolucionando sua política de pós-doutoramento, ampliando o prazo de duração das bolsas e possibilitando estágios no exterior dentro de uma concepção que torne o intercâmbio com centros de pesquisa de outros países produtivo para a ciência brasileira. Os bolsistas devem vincular-se aos mais importantes programas de pesquisa financiados pela Fundação. São centenas de projetos, em todas as áreas do conhecimento, que permitem uma sólida formação aos jovens doutores integrados a grupos de excelência. Para mais informações, acesse www.fapesp.br ou ligue (11) 3838 4000. Projetos Temáticos (150 projetos de pesquisa) Grandes equipes formadas por pesquisadores de diferentes instituições em busca de resultados científicos, tecnológicos e socioeconômicos de grande impacto. Programa Genoma (60 laboratórios) Projetos com o objetivo de pesquisar genomas, identificar e analisar genes com impacto sobre o conhecimento genômico, a saúde humana e a produção agropecuária.

Secretaria da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico

Programa CEPID (10 centros de pesquisa) Centros para desenvolver pesquisas inovadoras na fronteira do conhecimento, transferir seus resultados para os setores público e privado e contribuir para a criação de novas tecnologias e empresas.

Programa Biota (25 projetos) Projetos que visam ao levantamento e novos conhecimentos sobre a biodiversidade do Estado de São Paulo e outras regiões do país.

Programas Jovens Pesquisadores (270 projetos) Programa que fomenta a formação de novos grupos de pesquisa em centros emergentes do Estado de São Paulo.

Rua Pio XI, 1500 - Alto da Lapa 05468-901 - São Paulo - SP Tel.: (11) 3838 4000 - www.fapesp.br


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CIÊNCIA

GENÔMICA

FUNDECITRUS

Três novas rotas de ataque à praga Artigo publicado na Nature compara os genomas das Xanthomonas citri e campestri e mostra como evitar o cancro cítrico, que torna os laranjais improdutivos

S IMONE B IEHLER M ATEOS

Laranjeira infectada: a Xanthomonas citri se propaga pela parte externa de frutos e folhas

Q

uase um ano e meio depois de concluir o seqüenciamento que desvendou a identidade genética da bactéria Xanthomonas citri, uma praga dos laranjais, pesquisadores da rede de laboratórios ONSA – formada para o seqüenciamento de outra inimiga dos laranjais, a Xylella fastidiosa – conseguem mais duas conquistas. Primeiro, apontam caminhos para o combate à X. citri a partir da análise de apenas 100 de seus milhares de genes, o que terá impacto sobre todas as pesquisas

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de patógenos agrícolas, já que o estudo da citri foi feito pela comparação com sua prima Xanthomonas campestri. E esta tem uma característica muito favorável: infecta a Arabidopsis thaliana, planta-modelo para estudos genéticos, cujo genoma foi seqüenciado recentemente. A outra conquista, depois do seqüenciamento da citri e juntamente com as sugestões para seu combate, é o seqüenciamento da campestri. O conhecimento gerado não beneficiará somente a citricultura. Poderá estender-se às principais plantas que alimentam o ser humano, já que o gê-

nero Xanthomonas é constituído por 20 espécies que atacam 392 vegetais, entre eles feijão, arroz, mandioca, algodão, milho, cana, trigo e soja. O seqënciamento comparativo das duas bactérias, feito por 69 pesquisadores de 11 dos laboratórios da rede ONSA, ganhou as páginas da edição de 23 de maio da revista Nature. O reconhecimento científico reafirma a liderança nacional na pesquisa de patógenos agrícolas: dos quatro patógenos já seqüenciados no mundo, três o foram no Brasil. “Com os genomas das duas Xanthomonas concluídos, temos um mode-


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FOTOS E. W. KITAJIMA-ESALQ/USP

Na Xanthomonas citri foram identifilo perfeito para estudar a relação baca patogenicidade, mas, no caso da X. cicadas cerca de dez enzimas que resultéria–planta, identificando exatamente os tri, há uma coincidência. O PTHA, que tam num antígeno-O específico. genes envolvidos nessa interação. Isso causa proliferação celular anormal, “Queremos estudar mais as enziservirá de base para entender outras também é gene de avirulência. A transmas e os genes que as sintetizam porpragas agrícolas”, explica Jesus Apareferência desse gene para outra espécie de que acreditamos que, se bloquearmos cido Ferro, da Faculdade de Ciências Xanthomonas tornou a bactéria incapaz sua síntese com alguma substância, a Agrárias e Veterinárias da Universidade de infectar seu hospedeiro habitual, o planta provavelmente passaria a reaEstadual Paulista (FCAV-Unesp), em arroz, porque o PTHA disparou as degir contra a bactéria, tornando-se reJaboticabal. Ferro divide com Ana fesas da planta. sistente”, comenta Ana Cláudia. Essa Cláudia Rasera da Silva, do Instituto de Além do PTHA, o estudo identifisubstância seria aplicada no pomar e Química da Universidade de São Paulo cou, como resultado da ação de genes de poderia funcionar como uma espécie (IQ-USP), a coordenação do projeto avirulência, uma série de proteínas da de vacina. Embora atuasse Genoma Xanthomonas, densobre a bactéria e não sobre tro do Programa Genoma a planta diretamente, o traFAPESP. tamento tornaria os laranO trabalho desenvolve jais resistentes ao cancro com profundidade três rotas por desmascarar o agressor de ataque consideradas mais para o sistema de defesa. promissoras. Uma partiu do A terceira via de ataque gene PTHA, que se sabia reenfoca os mecanismos de lacionado à proliferação aproliferação da citri. A camnormal de células que a X. pestri é sistêmica – espalhacitri provoca. O artigo comse por dentro e causa o apoprova que a X. campestri não drecimento dos tecidos –, tem esse gene, mas identifienquanto a citri conquista cou nessa bactéria um grande áreas na parte externa, na número de enzimas degraqual se dissemina por ação dadoras da parede celular das do vento. A comparação dos plantas (as poligaractoranaXanthomonas campestri (ampliação de 3 mil vezes)... genomas permitiu identifises), o que explica a massiva car especificidades metabólidegradação de tecido que o cas das bactérias relacionapatógeno causa. das às partes da planta onde Vários genes são provácada uma vive. veis codificadores dessas enzimas e os pesquisadores Diferenças - O físico Ronalpreparam um projeto de gedo Bento Quaggio desconoma para provar essa relabriu que a campestri assimição. Esperam que isso abra la nitrogênio de nitratos e caminho para o desenvolnitritos do solo e, em quantivimento de substâncias que dade menor, da seiva do xilebloqueiem as enzimas, imma (sistema circulatório da prescindíveis para a bactéria planta), no qual a bactéria digerir a planta. vive. Já a citri, que vive no esA segunda rota surgiu da paço intercelular, não tem busca do que determina que essa capacidade: consegue nicada espécie de Xanthomonas ...e X. citri: comparação mostra diferenças metabólicas trogênio quebrando proteísó ataque certas plantas. A nas em peptídeos, que são abchave dessa especialização são sorvidos com a ajuda de um os genes de avirulência das transportador, o PPA, que joga os peptíbactérias – eles codificam proteínas casuperfície da bactéria relacionadas à deos para dentro da bactéria. Uma forpazes de acionar o sistema de defesa de síntese do antígeno-O. Acredita-se que ma de combater o cancro cítrico seria alguns vegetais, mas não de outros. Só há esse antígeno engane o sistema de defeum inibidor que impedisse a bactéria infecção quando os genes de avirulência sa. “O gene de resistência fica na superde sintetizar esse PPA: a X. citri ficaria de uma bactéria enganam os genes de fície da planta e o antígeno-O, na suincapaz de obter seu alimento e simresistência da planta. É uma interação perfície da bactéria, numa interação plesmente morreria de inanição. precisa, que restringe bem o número de similar à que ocorre nos animais entre Tanto a Xanthomonas quanto a hospedeiros de cada Xanthomonas. antígeno e anticorpo”, diz Ana Cláudia. Arabidopsis, a planta-modelo nos estuOs genes de avirulência não são neA infecção ocorre se a planta não recodos nessa área, são de fácil manipulacessariamente os mesmos que causam nhece um antígeno-O como estranho. PESQUISA FAPESP

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FUNDECITRUS

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Lesões do cancro nos galhos: gene de bactéria engana o sistema de defesa da planta

ção genética. Segundo os pesquisadores, é simples inibir ou inserir genes no DNA (ácido desoxirribonucléico, portador do código genético presente em cada célula) desses organismos para comprovar a função de cada gene. A pesquisa centrou-se na comparação do genoma da X. citri com o da X. campestri pela combinação de dois fatores contraditórios: a proximidade genética das duas bactérias e o fato de terem hábitos bem distintos. Enquanto a citri se propaga pela parte externa, causando um tipo de cancro (câncer) em folhas e frutos, a campestri provoca a chamada podridão negra das crucíferas, algo como uma lepra, que se instala e alastra pelo sistema circulatório de couves, repolhos, Arabidopsis e similares. O raciocínio que inspirou a comparação foi simples: se duas bactérias tão próximas geneticamente têm mecanismos de proliferação e efeitos tão diversos, bastaria buscar as diferenças de seus DNAs para encontrar os genes responsáveis pela proliferação e patogenicidade de cada uma. A comparação prometia ser esclarecedora, e foi. Em cada Xanthomona foram identificados os genes vitais que as capacitam a digerir os respectivos hospedeiros. O trabalho sugere, como forma eficaz de combater as pragas, desenvolver uma substância que iniba esses genes, matando as bactérias por inanição. A equipe acredita ainda ter descoberto os genes bacterianos responsáveis por ludi42

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briar o sistema de defesa das plantas. Inibi-los poderia tornar as plantas resistentes à doença. Outro caminho, ainda pouco explorado, liga-se à quantidade inusitada de genes de quimiotaxia achados na Xanthomonas. São genes que determinam a atração por certas substâncias químicas – no caso, a serina, aminoácido abundante nas folhas durante a fotossíntese. “Esses genes podem estar relacionados à capacidade de a bactéria penetrar na planta”, diz Ana Cláudia. “Se essa hipótese for comprovada, podemos investigar a melhor forma de inibir esses genes.” O estudo abre perspectivas para vários projetos de genoma que, segundo Ferro, prometem evoluir muito mais rápido que os da Xylella, primeiro ser vivo seqüenciado no Brasil, causadora da praga do amarelinho.

O PROJETO Genoma Xanthomonas MODALIDADE

Projeto do Programa Genoma FAPESP COORDENADORES

JESUS APARECIDO FERRO – Unesp de Jaboticabal; e FERNANDO DE CASTRO REINACH e ANA CLÁUDIA RASERA DA SILVA – USP INVESTIMENTO

US$ 2.210.328,17

“Com a Xylella”, acrescenta Ferro, “tivemos de superar três obstáculos, que não existem na Xanthomonas: a lentidão de crescimento da bactéria, o longo tempo que a infecção leva para instalar-se no hospedeiro e o fato de os métodos de manipulação genética convencionais não funcionarem com a Xylella”. Já a Xanthomonas, além de crescer depressa, tem um hospedeiro alternativo (Arabidopsis) que também desenvolve rapidamente a doença e um DNA facilmente manipulável. Os genomas das duas Xanthomonas foram confrontados com o da Xylella fastidiosa, seu parente mais próximo – estimase que os gêneros Xanthomonas e Xylella tenham se separado evolutivamente há 160 milhões de anos. A comparação mostrou que os cerca de 200 genes da X. campestris que não se encontram na X. citri são a porção de seu genoma mais semelhante ao da Xylella: poderiam estar relacionados à especificidade do hospedeiro, já que ambas atacam cítricos. O estudo evidencia a importância da genômica comparativa. O plano inicial não era seqüenciar toda a campestri, de importância econômica bem menor que a citri. “Mas logo percebemos que, apesar de muito parecidos, os dois genomas tinham grandes pedaços de DNA circular encaixados em locais diferentes, o que tornava a comparação impossível sem seqüenciar tudo”, conta Ana Cláudia. O trabalho cresceu e fez da Xanthomonas o primeiro projeto brasileiro de genoma a exceder o prazo. Olhar ampliado - Foram seqüenciados

os 4.322 genes da X. citri, com seus 5,1 milhões de nucleotídeos, e os 4.079 genes da X. campestri. Na citri, os pesquisadores acreditam conhecer a função de 2.700 genes, dos quais uns 300 são possíveis alvos para o desenvolvimento de formas de combate à bactéria e 100 – entre eles os genes relacionados à adesão e à citotoxicidade das duas bactérias – já foram explorados na Nature. O próximo passo é confrontar os genes da citri com os da Xanthomonas que também provocam cancro, mas em outras espécies vegetais. •


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CIÊNCIA

EPIDEMIOLOGIA

SPL/STOCK PHOTOS

As bactérias da vida moderna O padrão de infestação pela Escherichia coli está mudando no Brasil e traz sérios riscos à saúde pública

L

uiz Rachid Trabulsi, responsável pelo Laboratório Especial de Microbiologia do Instituto Butantan de São Paulo, é um perseguidor implacável da bactéria Escherichia coli, causadora da diarréia infantil. Com a autoridade de quem tem mais de 40 anos dedicados ao estudo desse microrganismo, ele alerta: formas novas e perigosas que se manifestaram primeiro em países desenvolvidos estão sendo cada vez mais identificadas no Brasil. São bactérias do tipo chamado emergente, associado à vida moderna: costumam estar presentes em alimentos industrializados e carnes mal cozidas. Trabulsi, que continua a estudar o assunto em projeto financiado pela FAPESP, não descarta a hipótese de epidemias causada por essas bactérias no Brasil e

Colônia de Escherichia coli: o avanço de linhagens perigosas PESQUISA FAPESP

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revela que novas linhagens podem provocar doenças mortais, se não tratadas adequadamente. “Quando algumas Escherichia se tornam menos freqüentes, outras aparecem e ocupam o espaço. É preciso que o sistema público de saúde dê conta dessa nova situação”, destaca o pesquisador.

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ma das maiores dificuldades para o combate à Escherichia coli é o fato de ser muito diversificada. Alguns tipos já foram estudados com profundidade, enquanto outros – justamente os “emergentes” – apenas começam a ser compreendidos. Há linhagens que vivem em simbiose no intestino dos seres vivos, onde são inclusive sintetizadoras das vitaminas K e B. Contudo, quando saem desse hábitat natural e atingem outros órgãos, podem causar sérios danos, entre eles infecção urinária, meningite infantil e até infecção generalizada (septicemia).

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molítica urêmica. Essa síndrome, caracterizada por anemia, insuficiência renal aguda e diminuição do número de plaquetas, afeta principalmente crianças e idosos e, se não for bem tratada, pode levar à morte. No grupo Stec está o subgrupo Ehec, das bactérias entero-hemorrágicas, que agem da mesma maneira, mas estão em geral associadas às situações mais graves. Primeiro caso - Trabulsi ressalta uma

chave para que se entenda a questão: no caso da Epec típica – o primeiro tipo a ser identificado, ainda na década de 1940 –, o único reservatório possível é o próprio homem. Em todas as outras linhagens citadas, caracteri-

As patogênicas - Outras linhagens não vivem nos intestinos e, quando ali chegam, provocam diarréias e infecções. Entre essas linhagens patogênicas, há três grupos mais comuns e importantes. O primeiro é o das enteropatogênicas, conhecidas pela sigla Epec aderida à parede intestinal: diarréias Epec e responsáveis pela diarréia zadas mais recentemente, tanto os seinfantil. Em maio, numa publicação res humanos como os animais podem especializada em novas doenças infecservir de reservatório. E é justamente ciosas – Emerging Infectious Diseases, por isso que estão associadas a hábitos do Center for Disease Control (CDC, da modernidade, entre eles o do fast centro de controle e prevenção de dofood. “A constituição genética das bacenças, dos Estados Unidos) –, Trabulsi térias é que determina, em grande parte, publicou um artigo sobre as bactérias os reservatórios que elas poderão atinEpec típicas e atípicas, ressaltando as gir”, explica. características que as distinguem – O novo cenário que envolve as como o antígeno, as características geEcherichia coli é conhecido de euronéticas e os mecanismos relacionados peus e norte-americanos desde o final à virulência. da década de 70. A primeira epidemia As enterotoxigênicas, do grupo Etec, provocada pelas Ehec aconteceu em são as que provocam a chamada diar1982 na cidade de Pitsburgh, Estados réia do viajante, resultado do consuUnidos, causada pelo consumo de mo de alimentos que não fazem parte hambúrgueres contaminados. Depois, da dieta habitual do paciente. O terceioutros surtos atingiram Finlândia, ro grupo é o Stec (Escherichia coli proAlemanha, Inglaterra, Escócia, Canadutora de toxina de Shiga), formado dá e Japão. O surgimento das novas por bactérias que causam colites helinhagens começou a chamar a atenmorrágicas (diarréias com sangue) e, ção dos pesquisadores brasileiros no em situações extremas, a síndrome he44

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PESQUISA FAPESP

início dos anos 90 – e, desde então, vários estudos foram publicados sobre o assunto. A edição do mês passado do Emerging Infectious Diseases trouxe também a descrição do primeiro caso registrado no Brasil de Escherichia coli produtora da toxina Shiga, associada à síndrome hemolítica urêmica. O texto é assinado por Beatriz Ernestina Cabilio Guth, do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que relata o caso de um bebê de oito meses que apresentava anemia, micção escassa (diminuição no volume da urina) e um quadro prévio de diarréia. Foi atendido em março de 2001 no Hospital São Paulo, da Unifesp, e a síndrome diagnosticada – os exames laboratoriais apontaram claramente a presença da coli produtora da toxina Shiga. O bebê foi tratado e recuperou-se. Mas, segundo Beatriz, não é fácil esclarecer esses casos. A insuficiência renal, quando aparece, já é uma conseqüência da ação da toxina Shiga, e, na maioria das vezes, não se consegue isolar a Escherichia para fazer o diagnóstico. O uso de antibióticos também pode mascarar a situação. “A descoberta da síndrome no bebê é um alerta importante e reforça os achados de que essas bactérias andam por aqui e podem estar associadas aos casos mais graves”, ressalta a pesquisadora. Outro artigo da edição de abril da mesma revista – resultado de um trabalho feito em parceria pelo grupo da Unifesp e a equipe do Instituto Adolfo Lutz – já citava a identificação, no estado de São Paulo, de três casos pioneiros de diarréia causados por Ehec do mesmo tipo que em 1982 provocou a epidemia de Pitsburgh. As três primeiras situações de diarréia provocada por Stec haviam sido relatadas no início dos anos 90 pelo grupo do Butantan, em conjunto com a equipe da Unifesp. LABORATÓRIO DE MICROBIOLOGIA/INSTITUTO BUTANTAN

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Típicas e atípicas - Aos 74 anos e já

aposentado duas vezes – em 1988 pela Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp) e em 1998 pela Universidade de São Paulo (USP), na qualidade de professor emérito –, Trabulsi continua


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maior a possibilidade de sermos surpreendidos por uma Echerichia emergente. O grande rebanho bovino e a importação de carnes são outros fatores que favorecem a disseminação dessas bactérias no Brasil. Pode ser até que já tenhamos vivido uma epidemia, sem saber. “O problema é que nossas autoridades sanitárias não se preocupam em identificar os agentes causadores das diarréias”, destaca Trabulsi, em cuja homenagem, aliás, pesquisadores do Trabulsi, 40 anos de pesquisa com E. coli: alerta sobre a origem, higiene e cozimento dos alimentos CDC norte-americano deram o nome de Trabulsiella guamensis a uma bactéria cauna ativa, como prova o artigo de maio 1% a 2%. Em compensação, as diarréisadora de infecção hospitalar. no Emerging, em que caracteriza as as em crianças brasileiras causadas por Para Trabulsi, o combate às bactébactérias Epec típicas e atípicas. Epecs atípicas chegam a 7% do total. rias emergentes deve envolver uma A primeira grande distinção que “Existe uma clara tendência de inverpostura mais ativa das autoridades safaz diz respeito ao reservatório que posão no comportamento das bactérias”, nitárias e ações individuais mais responde abrigá-las: só o homem no caso das assegura Trabulsi. sáveis em relação à origem, higiene e típicas e também os animais para as cozimento dos alimentos. Também se atípicas. E os dois tipos são formados Condições ideais - O pesquisador busdeveriam criar condições para os labopor sorotipos ou antígenos diferentes. cou as causas da consolidação desse ratórios analisarem mais rapidamente As típicas têm plasmídeos (elementos novo cenário de infestação e concluiu: as amostras de fezes dos pacientes. Uma genéticos extracromossômicos) que a sociedade moderna conseguiu, em alternativa são as vacinas, algumas já lhes permitem aderir em bloco à paregrande parte, superar os problemas em fase de testes, que permitiriam corde do intestino. de higiene e de saneamento básico que tar o mal pela raiz. favoreciam a transmissão das antigas Para acelerar as descobertas, o potencial de virulênbactérias Epec. Contudo, foram criaButantan mantém parcerias com inscia das bactérias está das condições ideais para que novas tituições do exterior como Instituto associado ao plasmílinhagens se desenvolvessem: quanto Pasteur de Paris (França), Imperial Coldeo. As atípicas, em maior o consumo de alimentos inlege of Science de Londres e Institute que o plasmídeo não dustrializados e carnes mal cozidas, of Child Health de Birmingham (Inse manifesta, atacam o intestino disglaterra), Institute for Vacine Devepersamente e produzem toxinas. GeO PROJETO lopment de Baltimore (Estados Unidos) neticamente, as atípicas estão mais e Robert Koch-Institute (Alemanha). próximas dos grupos Ehec e Stec que Caracterização de Fatores de Virulência e Mecanismos No Brasil, as relações mais estreitas são das típicas do próprio grupo, o Epec. de Patogenicidade com a Unifesp e o Adolfo Lutz, além Por fim, sabe-se que as duas linhagens de Alguns Sorotipos Especiais do Instituto de Microbiologia do Rio produzem tipos variados da proteína de EPEC e EAEC de Janeiro. intimina – mas as conseqüências disso A partir de setembro, Trabulsi preainda precisam ser estudadas. TamMODALIDADE tende concentrar-se na atualização de bém não se sabe ao certo qual das duas Linha regular seus livros Microbiologia (3ª edição, linhagens pode causar mais danos à de auxílio a pesquisa 1996, Editora Ateneu, Rio de Janeiro) saúde humana. COORDENADOR e Microbiologia das Infecções Intestinais No Brasil, as bactérias Epec típicas LUIZ RACHID TRABULSI – Instituto (1982, Ateneu).“Quero deixar uma condominaram a cena até o final da décaButantan tribuição revista e moderna sobre a E. da de 80, quando respondiam por cercoli”, diz. “Mesmo depois de 40 anos ca de 30% dos casos de diarréia infanINVESTIMENTO pesquisando, não me canso desses bitil registrados no país. Hoje, segundo R$ 144.200 e US$ 17.578 chinhos”. o pesquisador, esse índice caíu para •

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Trypanosoma rangeli após implantação da proteína GFP: ciclo de vida desvendado

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Identidades reveladas

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ma equipe da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, caminha para resolver um dos problemas do falso diagnóstico da doença de Chagas: a confusão a respeito do real agente causador do problema. Ainda hoje, um protozoário inofensivo, o Trypanosoma rangeli, pode ser facilmente confundido com o verdadeiro agente do mal de Chagas, o Trypanosoma cruzi, por ser transmitido pelos mes-

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T. cruzi: reações no organismo são idênticas às desencadeadas pelo inofensivo T. rangeli

EDMUNDO GRISARD/UFSC

Catarinenses avançam com tripanossoma fluorescente na luta para reduzir falsos diagnósticos da doença de Chagas

mos insetos e gerar uma resposta semelhante pelo organismo infectado. O falso diagnóstico, originado também pelo uso de reagentes ou técnicas não padronizadas, gera tratamentos desnecessários e amplia os gastos com esse problema de saúde pública: calcula-se que os custos de cada 100 mil infectados, incluídos o tratamento médico e as ausências no trabalho, ultrapassem US$ 50 milhões por ano. Há no Brasil de 8 a 9 milhões de infectados, mas pelas técnicas de exame em uso não

se consegue distinguir quantos teriam sido contaminados pelo T. cruzi e quantos pelo T. rangeli – portanto, quem teria ou não a chance de desenvolver a doença. O equívoco pode se desfazer a partir do tripanossoma fluorescente, que poderá levar a diagnósticos inequívocos. O grupo de pesquisadores coordenado por Edmundo Grisard e Mário Steindel implantou o gene da proteína verde fluorescente ou GFP (do inglês Green Fluorescent Protein) de uma


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ARQUIVO J.PINTO/CASA DE OSWALDO CRUZ/FIOCRUZ

cruzada, que ocorre porque as atuais água-viva, a Aequorea victoria, em um A doença de Chagas, que na forma técnicas rotineiras de exame de sangue T. rangeli. Quando produzida por ougrave ou crônica causa a destruição não diferenciam os dois parasitas. Um tros organismos, a proteína provoca progressiva dos tecidos cardíacos ou didos meios de distinguir as duas espéuma fluorescência verde intensa e esgestivos, atinge cerca de 18 milhões de cies é observar a forma com que elas se tável. Depois, por meio de um microspessoas nas Américas – metade delas apresentam no sangue dos indivíduos cópio de fluorescência, os pesquisadoestão no Brasil. “Seriam todos eles realinfectados, a chamada tripomastigota res rastreiam o percurso do parasita mente chagásicos ou podemos ter um sangüínea: o T. rangeli é maior e mais nos organismos em que se aloja e, pounúmero expressivo de pessoas infectaco a pouco, estabelecem as diferenças longo e tem uma organela chamada cidas pelo T. rangeli?”, questiona Grisard. com o T. cruzi. netoplasto menos volumosa que o T. Segundo ele, a infecção pelo T. rangeli No início de março, o caminho moscruzi. Só que essa forma é muito rara. afeta, de modo ainda não dimensionatrou-se acertado, ao revelar um detalhe O grupo da UFSC concilia a busca do, o grupo dos portadores assintomádesconhecido do ciclo do parasita no de uma metodologia que evite falsos ticos da doença de Chagas (60% do toprincipal inseto transmissor, o barbeiro diagnósticos ao estudo acurado da biotal), em especial os que moram nas (Triatoma infestans, Panstrongylus spp. logia e da epidemiologia do T. rangeli, regiões Norte e Nordeste, áreas de ocordo qual mal se conhece o ciclo de vida e ou Rhodnius spp.). A equipe catarinenrência de barbeiros que podem transa distribuição geográfica precisa – desse observou que uma forma de repromitir o T. rangeli ao homem. A evocrito em 1920 na Venezuela, foi colocadução do T. rangeli sem flagelo (extenlução da doença facilita a confusão. do de lado até as pesquisas evisão da membrana celular que denciarem a superposição com facilita a locomoção) aparente, o T. cruzi. chamada de amastigota, no interior de células dos barbeiros, na verdade são formas flagelaO mar da ciência - A essas linhas das. Os resultados contrastam de pesquisa se soma o trabalho com os obtidos por microscocom marcadores moleculares, pia convencional, que indicava técnicas como a reação em caformas não flageladas nesse deia de polimerase (PCR), sefase do parasita. Nos barbeiros, qüenciamento de ácidos nucléio T. cruzi não passa por estágios cos (DNA e RNA, que definem as características genéticas dos semelhantes. organismos) e análise de enziA proteína verde foi immas, com os quais se buscam alplantada no genoma do T. ranvos específicos – uma enzima, geli por meio de uma técnica proteína, gene, qualquer coisa, chamada transfecção, que coenfim, que seja exclusiva desse meça a ser usada mais intensaparasita e permita sua detecção mente no Brasil no estudo de Carlos Chagas no Rio Negro em 1913: pioneirismo inequívoca. microrganismos nucleado, coO objetivo é chegar, o mais mo os protozoários. Na UFSC, cedo possível, a algo simples como um essa técnica também serviu para imDepois da fase inicial ou aguda, quanplantar, desta vez um T. cruzi, o gene da kit de teste de malária: uma fitinha que, do o diagnóstico é mais fácil, a infecção enzima beta-galactosidase, que produz colocada no soro sangüíneo, assume pelo T. cruzi passa para uma fase crôniuma coloração amarelada, azulada ou uma cor característica se o resultado ca, na qual é muito difícil encontrar o avermelhada, de acordo com a técnica for positivo. É o recurso com que certaparasita. Nessa fase, a chamada forma de detecção empregada. mente sonhou o médico mineiro Carindeterminada da doença, a pessoa poEsse artifício é usado nos testes de los Ribeiro Justiniano Chagas (1878de ficar sem sintomas. Podem correr de compostos naturais contra Chagas pes1934), que em 1909 caracterizou a cinco a 30 anos sem que o portador do quisados na própria universidade: sodoença e participou de uma série de exparasita apresente uma das formas camente os parasitas vivos produzem a pedições científicas pelo interior do país. racterísticas da doença, que ainda não enzima, que indica rapidamente se o “Identificado o alvo, a elaboração de um conta com um tratamento eficaz. candidado a medicamento é ou não kit diagnóstico torna-se uma realidade Quem está infectado pelo T. rangeli eficaz. Dos cerca de 150 compostos tesfactível”, assegura Grisard, catarinense pode ficar esse tempo todo julgando-se tados desde o ano passado, apenas dois acostumado a checar as próprias rotas. atingido por uma doença que na verdaapresentaram efeito contra tripanossoÉ velejador desde os seis anos (hoje de não tem ou tomar medicamentos mas em células de laboratório. Ambos tem 36) e nos raros espaços de folga ascontra um parasita que, embora seja foram extraídas de arbustos, um do gêsume o leme de veleiros oceânicos, de 8 inofensivo para seres humanos, desennero Polygala (família Poligalaceae) e a 30 metros de comprimento. Foi um cadeia uma resposta do sistema imunodos representantes do Brasil na Olimoutro do gênero Trichilia (Meliaceae), e lógico considerada idêntica pelos métopíada de 1984 em Los Angeles, nos Esencontram-se em fase final de caractedos tradicionais à desencadeada contra tados Unidos. rização química. o T. cruzi. É a chamada reação sorológica • PESQUISA FAPESP

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CIÊNCIA

ZOOTECNIA

O boi inesperado Graças a um equívoco, nasce o primeiro clone brasileiro de célula somática de feto

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Marcolino, o clone: desenvolvido por engano, antecipou objetivo de grupo da USP

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exta-feira, 27 de abril de 2002, fazenda Panorama, Campinas. Na sala de parto, todos a postos e grande expectativa. Estava em curso algo mais que uma cesariana: tratava-se de trazer ao mundo a primeira bezerra clonada a partir de uma célula adulta de vaca nelore. Responsável pelo projeto, a equipe de José Antônio Visintin, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), aguardava impaciente. Finalmente nasceu: só que, em vez da esperada bezerra, era Marcolino, um forte e saudável macho. Estavam todos eufóricos com o sucesso e atônitos pela surpresa. “É impossível gerar um clone macho a partir de uma célula adulta de fêmea, pois o sexo já está definido na célula somática”, esclarece Visintin, que coordena duas pesquisas de clonagem bovina: uma de célula adulta e outra de célula de feto. A equipe trabalhou duro por dois anos, revezando-se 24 horas por dia para checar células e fases do processo de clonagem a cada duas horas. Com esse empenho e os dados controlados, Visintin descobriu logo a razão de tudo: “Chequei todos os procedimentos usados nesses dois anos e descobri que, no dia 20 de junho, foram congelados dois grupos de células: um de células adultas de fêmea e outro de células de feto. Apesar de todos os cuidados, provavelmente alguém mais afetado pela rotina estafante do processo embalou células de feto achando que fossem células de adulto.” São ossos do ofício, a ciência exibindo sua realidade. Como a equipe faz fecundação in vitro há seis anos, sem problemas anteriores, só podia ter havido uma troca acidental. Mas era preciso comprovar. Descartada a possibilidade de a vaca ter sido coberta por um touro, fez-se exame de DNA em


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amostras da nelore doadora, da vaca receptora, do recém-nascido, da cultura de células da doadora e da cultura de células de feto. Com o suporte da equipe de José Fernando Garcia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araçatuba, integrante do Projeto Genoma, e os exames feitos pelo laboratório LinkGen, o mapeamento genético confirmou: Marcolino é um clone provindo de célula de feto, o que comprova a troca involuntária. Antecipação - “Nossa idéia era desenvolver primeiro o clone de célula adulta: teríamos até o final de 2002 para fazer isso. Só depois partiríamos para a clonagem da célula somática do feto”, revela Visintin. Assim, o engano inverteu as pesquisas e antecipou objetivos. “O mais importante”, acentua o pesquisador, “é que fizemos o primeiro clone de célula somática no Brasil e provamos que temos tecnologia para produzi-lo. Um resultado diferente do alcançado pela Embrapa de Brasília, que produziu uma fêmea clonada de célula embrionária.” Para ele, o objetivo da clonagem é reproduzir animais em extinção ou de alta produção, além de multiplicar animais transgênicos mais facilmente. Pode-se, por exemplo, reproduzir vacas leiteiras mais produtivas e transgênicos que produzam altas quantidades de componentes de interesse farmacológico – caso dos fatores 8 e 9 de coagulação, muito importantes no tratamento de hemofílicos, e que podem ser produzidos no leite. “Dado que a vaca não tem Aids, esses fatores poderiam ser retirados e fornecidos ao homem sem os riscos das transfusões de sangue.” O processo - O primeiro passo da equi-

pe foi colher e cultivar células da orelha de uma vaca nelore adulta. Paralelamente, foi feita a cultura de células de fetos sem raça definida, com 45 a 60 dias de gestação e de 20 a 30 centímetros de comprimento, recolhidos em matadouros logo depois da retirada das vísceras de vacas abatidas. Os fetos foram postos em solução e recipiente próprios para a conservação das células e levados ao laboratório da Faculdade de Veterinária, no máximo até 3 horas depois da morte da vaca. Depois de limpos e picotados, foram colocados

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em meio de cultura. Os fibroblastos obtidos nas duas culturas foram congelados em separado. Paralelamente, ovários de vacas abatidas foram recolhidos no matadouro e seus oócitos (óvulos), aspirados em laboratório. Dos já amadurecidos, foram retirados os núcleos, obtendo-se células enucleadas (sem DNA nuclear). Um fibroblasto de cultura, privado de soro fetal bovino por dois dias, em estágio G zero (início de desenvolvimento da célula), foi em seguida inserido no óvulo enucleado. Foi dado um estímulo elétrico, o que desencadeou uma reprogramação celular do citoplasma: as células começaram a se dividir. Transcorridos de sete a oito dias de cultura, atingiu-se o estágio de blastocisto, com início de formação das células da placenta e do botão embrionário. Então, o futuro clone foi transferido para o útero da vaca de aluguel, dando seqüência à gestação de nove meses.

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correm perdas em todas as fases desse processo. De cada 100 oócitos recolhidos, por exemplo, só cerca de 80% maturam. Na retirada do núcleo, há uma nova perda de cerca de 50%, restando cerca de 40 óocitos enucleados. Depois da inserção do fibroblasto e do choque elétrico, só metade dos oócitos se funde, o que permite a cultura de 20 deles. Destes, finalmente, apenas uns cinco se desenvol-

OS PROJETOS Maturação e Fertilização de Oócitos e Co-Cultivo de Zigotos Bovinos em Cultura Primária de Células Epiteliais de Oviduto de Bovinos e Linhagens Permanentes INVESTIMENTO

R$ 127.290,00

Clonagem de Embriões Bovinos: Desenvolvimento da Técnica de Transferência Nuclear INVESTIMENTO

R$ 312.716,01 MODALIDADE

Linha regular de auxílio à pesquisa COORDENADOR

JOSÉ ANTÔNIO VISINTIN – Universidade de São Paulo

vem e atingem a fase de blastocisto para implantação nas vacas. Depois de iniciada a gestação, também há perdas. Os períodos mais críticos – com grande incidência de má fixação e abortos – são os primeiros 20 dias de gestação, a fase seguinte entre 20 e 50 dias e aos 90 dias. E às vezes o bezerro morre logo ao nascer, por má formação de órgãos. “O Marcolino é o primeiro sucesso em dois anos de pesquisa”, diz Visintin.“De 16 implantes de blastocistos, conseguimos quatro gestações. Uma delas resultou em um aborto e temos outras duas vacas prenhes de clones produzidos por minha equipe: uma com seis meses e outra com dois meses de gestação.” Ele lembra que o índice de perdas leva a reflexões importantes, já que as pesquisas com humanos sempre resultam de pesquisas com animais: “Se hoje a fecundação humana in vitro está bem desenvolvida, é porque esse processo é corriqueiro em animais há muitos anos”. Com uma diferença essencial: “Na clonagem bovina, ainda em fases iniciais, se algo sai errado, podese sacrificar o animal”. Dois laboratórios - Obtidos os clones de célula adulta e fetal, o grupo vai comparar o desenvolvimento de ambos para responder a certas questões: “O clone originado de célula adulta já nasce velho? Se de uma célula faço duas ou três, essas células clonadas obtidas a cada repique também envelhecem?” Para saber, é preciso obter o mais rapidamente possível o clone de célula adulta. “Vamos disponibilizar os clones para estudos de fisiologia (bioquímica e sexual) e genética.” A equipe de Maria Angélica Miglino, do Departamento de Anatomia da Faculdade de Veterinária, analisará as placentas de cada gestação para verificar forma, composição e função, em relação a placentas de gestação normal, o que deve contribuir para a descoberta das razões dos insucessos. Para garantir que não haja nenhum novo acidente, o pesquisador da USP providenciou a separação total dos laboratórios: um só para clonagem de células adultas e outro para a de células fetais. Ele espera que, com o sucesso da segunda fase antecipado, os artigos sobre Marcolino e seu estudo molecular possam estar prontos para publicação até o fim do ano. • PESQUISA FAPESP

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SÍNDROME

O primeiro mapa de Down Equipe de São Carlos começa a relacionar as origens genéticas às diferentes manifestações da síndrome

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e fosse um time de futebol, o Laboratório de Biologia Molecular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) seria semelhante ao São Caetano: jovem e modesto, mas bem equipado e eficiente, pronto para surpreender as estrelas da genética. Flávio Henrique da Silva, que coordena os 18 pesquisadores do laboratório, deu a saída na formação de um ambicioso banco de dados genéticos: num trabalho inédito no Brasil, concluiu o mapa de expressão gênica de um portador da síndrome de Down, um dos acidentes genéticos mais comuns, que ocorre em um em cada 700 nascimentos. O mapa recém-concluído é o primeiro de uma série de outros, já em andamento, cuja meta é compreender as diferentes manifestações desse problema genético por meio da busca de correlações entre o genótipo (o conjunto de genes) e o fenótipo (como eles se expressam fisicamente – na forma de pessoas baixas ou altas, por exemplo). O retardo mental e a fraqueza muscular são sinais comuns a todos os portadores, mas a síndrome freqüentemente causa problemas endócrinos e gastrointestinais, além de deficiências do sistema imunológico. É elevada a incerteza sobre seus desdobramentos: quase metade dos indivíduos atingidos pode apresentar problemas cardíacos, leucemia, numa probabilidade maior que a da população em geral, e precocemente, entre 30 e 40 anos de idade, o mal de Alzheimer, uma doença neuronal marcada pela crescente perda de memória. 50

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O mapa de expressão gênica – ou transcriptoma –, o modo pelo qual se procura entender as origens dos sintomas, é uma interpretação funcional dos genes, uma avaliação da quantidade de RNA (ácido ribonucléico) que a célula usa na síntese de proteínas a partir das seqüências de DNA (ácido desoxirribonucléico, portador do código genético) de cada gene. “Se um indivíduo tiver menos RNA de um gene específico, vai produzir menos proteína”, resume Silva. Como as proteínas codificadas pelos genes regulam o funcionamento de todas as células do organismo, essa associação indica aquelas envolvidas com a síndrome e permite entender mais claramente a evolução do problema.

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Esse primeiro mapa consistiu no mapeamento de, até agora, 12 mil genes expressos (ativos) em um tipo de células do sangue, os leucócitos, de um paciente de 29 anos, morador de Passos, no Estado de Minas Gerais, a mesma cidade onde o pesquisador nasceu, e escolhido justamente pela possibilidade de elucidar as relações entre a síndrome e o envelhecimento. Um dos resultados mais notáveis desse estudo, feito por meio da técnica Sage (análise serial da expressão gênica), é a indicação de que ocorre uma diminuição da expressão de pelo menos 15 genes que codificam proteínas conhecidas como citocinas, envolvidas na diferenciação celular e resposta imune, e outras, chaEDUARDO CESAR

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madas fatores de transcrição, que regulam a expressão de outros genes. Para confirmar que esses genes apresentam uma expressão diferencial em relação a não-portadores da síndrome e, portanto, sinalizam efetivamente diferentes manifestações da doença, Silva trabalha na análise da expressão gênica de outros 20 portadores de Down residentes em São Carlos. Desta vez, são crianças e adolescentes, como Pedro Pinheiro Fagian, um garoto de 13 anos que estuda, como qualquer um de seus colegas, na sétima série da Escola Oca dos Curumins. A amostra poderá ser ampliada ainda mais por meio da colaboração de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, de modo que no futuro, separando os pacientes por grupos a partir dos genes mais ou menos expressos, se possa estabelecer uma gama de padrões de expressão gênica. O que se pretende, a partir desses padrões, é entender mais acuradamente os mecanismos responsáveis pela síndrome e chegar a novas estratégias terapêuticas. Para realizar seus objetivos, a equipe de São Carlos tem de calcular o número de genes expressos numa célula. Não é nada fácil: além de células diferentes expressarem genes diferentes, a expressão também varia conforme a situação em que a célula está. De qualquer modo, os genes detectados podem ser utilizados para comparar o padrão global de expressão gênica entre portadores da síndrome e com indivíduos não-portadores. Cromossomo triplo - Descrita em 1866 pelo médico inglês John Langdon Down (1828-1896), a síndrome foi inicialmente chamada de mongolismo e seu portador de mongolóide, devido aos traços faciais característicos – termos de conotação racista excluídos em 1965 das publicações da Organização Mundial de Saúde. Suas causas só foram desvendadas em 1959 pelo francês Jérôme Lejeune (1926-1994), que identificou uma anomalia chamada trissomia livre: em vez de 46 cromossomos (23 herda-

Pedro Fagian, um dos doadores de células para estudo, e um de seus colegas da escola: convivência PESQUISA FAPESP

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CEPID GENOMA HUMANO

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Ao estudar a interação dos da mãe e 23 do pai), o da DSCR-1 com outras proportador tem 47, porque há teínas, a equipe de São Carum cromossomo extra do los, em paralelo a grupos do par 21. Ou seja, no lugar de 21 exterior, fez uma descoberta dois, o portador tem três surpreendente: a DSCR-1 cromossomos 21. diminuiu a ação da enzima Nos últimos tempos, um calcineurina. Essa enzima é clima de intensa competiti21 uma fosfatase – retira fosfavidade marca a pesquisa soto de proteínas. Uma dessas bre Down. À frente, destaproteínas, a NFAT (fator cam-se dois craques. Um é o nuclear de células T ativagrego Stylianos Antonaradas), deve perder um fosfakis, da Universidade de Ge21 to para chegar ao núcleo das nebra, Suíça, que coordenou células e ativar os genes que o seqüenciamento compleacionam a produção das cito do cromossomo 21. O tocinas. Pouco a pouco, as outro é Xavier Estivill, do relações se esclarecem. “A Institut de Recerca Oncolocalcineurina é a responsável, gica, de Barcelona, Espanha, por exemplo, pela desfosfoque em 1995 isolou o pririlação da proteína Tau, que meiro gene suspeito de parse acumula hiperfosforilada ticipar do quadro clínico de Trissomia do cromossomo 21: desdobramentos imprevisíveis nos pacientes com AlzheiDown, resultante da somamer”, comenta Silva.“Se a DSCR-1 comtória da ação de um conjunto ainda invocando a vasta gama de manifestações pete com a Tau pela calcineurina, a Tau certo de genes. da síndrome. Para confirmar essa hipóhiperfosforilada pode se acumular no Já a equipe de São Carlos, correndo tese, procura-se desvendar a função das cérebro dos pacientes, contribuindo papor fora, encontrou seu próprio espaço proteínas da DSCR. Os estudos avanra a progressão do Alzheimer.” de reconhecimento na busca dos mecaçam mais na DSCR-1, a primeira pronismos que possam explicar as maniteína da região crítica, expressa prefeEnvelhecimento - A evolução precoce festações da síndrome. O padrão de exrencialmente no cérebro, no coração e do mal de Alzheimer em portadores de pressão gênica de um indivíduo com nos músculos, justamente as áreas mais Down também é tema do grupo de Down já é bem diferente do padrão de afetadas na síndrome. Marília Cardoso Smith, da Universidaum não-portador, mas Silva espera ende Federal de São Paulo (Unifesp). Ela contrar diferenças relevantes também Destinos - Uma pista para confirmar investiga as relações do Alzheimer com entre os pacientes da síndrome. Em uma esses mecanismos é a localização da a perda parcial do cromossomo 21, cuabordagem paralela ao mapa de exproteína, que define seu papel na célula rioso fenômeno que ocorre no procespressão gênica, Silva coordena o estudo – as proteínas envolvidas em regulação so de envelhecimento precoce dos paem profundidade das proteínas suspeigênica, por exemplo, ficam no núcleo. cientes. Com o tempo, explica Marília, tas de envolvimento no quadro clínico Em vista dessa situação, a equipe assode 2% a 4% das células dos portadores de Down. Num trabalho desenvolvido ciou a DSCR-1 a uma proteína verde de Down perdem o cromossomo 21 excom o Centro de Biotecnologia Molefluorescente (GFP ou Green Fluorescent tra. Mas não se tornam normais: ficam cular Estrutural do Instituto de Física Protein) que serve de marcador, insecom dois cromossomos 21 do mesmo da USP em São Carlos, a equipe de Silriu-a em diversos tipos de células e obgenitor (pai ou mãe), quando o normal va analisa atualmente 11 proteínas da servou: é para o núcleo que a DSCR-1 é haver um cromossomo de cada geniRegião Crítica da Síndrome de Down – vai, um indício de seu papel regulador. tor. Supõe-se que esse fenômeno interDSCR, da sigla em inglês –, a parte crofira na expressão dos genes e contribua mossômica considerada suspeita de ser O PROJETO para a degeneração cerebral. a responsável pela produção das proteíExpressão e Localização Intracelular Compreendendo os mecanismos de nas envolvidas na doença. de DSCR-1 – Uma Proteína desenvolvimento da síndrome, os pesO reconhecimento da DSCR surgiu Relacionada com a Síndrome de Down quisadores esperam combater suas mapela constatação de que não é preciso nifestações e melhorar a qualidade de haver um cromossomo 21 inteiro a mais MODALIDADE vida dos portadores. Pretendem tampara que a síndrome se manifeste: alPrograma Jovem Pesquisador bém chegar a informações preciosas guns portadores têm em triplicata apeCOORDENADOR sobre a estrutura de proteínas acionadas nas um fragmento, geralmente aderido FLÁVIO HENRIQUE DA SILVA – UFSCar ou bloqueadas, de modo a permitir o ao cromossomo 21 ou ao 14. Os genes desenvolvimento de novos medicadesse fragmento correspondem à reINVESTIMENTO mentos. Nesse ponto do jogo os comgião crítica e acredita-se que alguns reR$ 261.050,01 petidores estão do mesmo lado. gulem a atividade de outros genes, pro• 52

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CIÊNCIA tidas por meio de RNAs validados experimentalmente. Os dados obtidos pelos brasileiros sugerem, por exemplo, que as atuais técnicas de identificação contêm numerosos dados falsos, provenientes de erros unidirecionais – falsos dados positivos e falsos negativos. Todos os 19 genes identificados codificam proteínas previstas com tamanho médio de 121 resíduos – extremaEquipe brasileira participa da descoberta mente abaixo das médias de 575 ou 469 anteriormente previstas. O problema, de novos componentes do cromossomo acredita o grupo, é que as previsões mais usuais contêm um número excessivo de responsável pela síndrome de Down pseudogenes, como se comprovou no caso do genoma humano: inicialmente estimado entre 45 mil e 140 mil genes, entendimento dos meO objetivo do grupo foi aperfeiçoar no seqüenciamento recentemente concanismos genéticos ena anotação genética do HC21, avaliancluído a previsão baixou para 35 mil. volvidos na síndrome de do o grau de precisão dos métodos atuais Extrapolando os dados de seu trabalho, Down, no que se refere a de identificação gênica por análises os pesquisadores vão além: “Se o núvários tipos de câncer, computacionais. Para isso, montou uma mero de genes do HC21 fica entre 218 passa pela identificação dos genes do base de dados com todo o mapeamene 250, podemos prever que o número cromossomo humano 21 (HC21), cuja to disponível do cromossomo, incluintotal dos genes humanos está entre trissomia é responsável pela síndrome. do as previsões, e incorporou instru21.500 e 24.500”, relata o artigo, assinaUma equipe do Instituto Ludwig de mentos para facilitar a descoberta de do por 16 pesquisadores – do Ludwig Pesquisas sobre Câncer – junto com genes. A análise desse material, alimenparticiparam Anamaria pesquisadores de quatro Camargo, Fabiana Betinstitutos suíços – acaba toni, Rapahel Parmigiade identificar 19 novos ni, Sandro de Souza e genes do HC21. Já haAndrew Simpson. viam sido caracterizaA descoberta de 19 Cada célula de um ser humano (exceto as sexuais) contém dos 127 genes e previadois cromossomos 21, um recebido do pai e outro da mãe. genes de um cromossose a existência de mais Ambos têm o mesmo tamanho e número de genes. mo já bem estudado – o 98. O trabalho da equiprimeiro a ser mapeado, pe, publicado em junho em 2000 – mostra que a na revista Genomics, reidentificação do transsultou num aumento de criptoma (conjunto de 9,5% na contagem de proteínas) humano comgenes do HC21. pleto não pode basearNenhum dos 19 nose só na previsão genévos genes identificados tica. O artigo alerta: “A havia sido previsto peanotação gênica definilo Consórcio de Mapetiva do genoma humaamento e Seqüenciano irá requerer uma mento do Cromossomo abordagem gene por ge21 nem pelo consórcio ne, aliada a uma verificaEnsembl, que se puseram ção experimental”. à frente desse trabalho. Com os avanços no mapeamento Mas, enquanto o grupo preparava o tada por uma farta documentação exdo HC21, espera-se detectar a contriartigo, a Celera Genomics, dos Estados perimental, permitiu identificar os 19 buição de cada gene nas diversas maniUnidos, reportou a identificação de três genes e mais quatro unidades de transfestações da síndrome de Down. Novos dos mesmos 19 genes, elevando a concrição do HC21. estudos também devem contribuir pafiabilidade do estudo, que inclui uma Convencidos de que a análise comra esclarecer a suspeita – sugerida por tabela descritiva dos novos genes e das putacional não é suficientemente sensíestudos epidemiológicos – de que os proteínas de seu RNA (ácido ribonuvel e precisa ser aliada a dados experiportadores da síndrome estejam protecléico). Notou-se que a maioria das mentais, os pesquisadores crêem que, gidos contra certos tipos de câncer, que substâncias dos novos genes não tem daqui por diante, a identificação genéincidem num grau muito maior na posimilaridade significativa com nenhutica dependerá do alinhamento de gepulação em geral. ma proteína já caracterizada. nomas finalizados com seqüências ob•

GENÉTICA

Mais 19 genes

Herança em pares

SÍRIO J. B. CANÇADO

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PSIQUIATRIA

Cartas na mesa Tese premiada define personalidade dos jogadores patológicos

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e você conhece alguém que fala muito em jogar e só se sente feliz quando entregue a cartelas de bingo, caça-níqueis, loterias, carteados ou corridas de cavalo, cuidado. A obstinação por apostas é um traço do jogador patológico, uma personalidade desequilibada que, se não controlada, pode chegar a extremos de roubar ou matar para manterse no jogo, tal qual – numa comparação agora sustentada cientificamente – um dependente químico. Diagnosticado com precisão no Brasil há poucos anos, o jogador patológico era facilmente confundido com portador do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), indivíduo que sofre de manias: lavar as mãos a todo momento ou manter a casa sempre impecavelmente arrumada, por exemplo. Mas são categorias diferentes, como demonstrou o médico Hermano Tavares em seu doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O trabalho obteve o reconhecimento do National Council on Problem Gambling (NCPG), organização norte-americana dedicada a entender e conter o vício em jogos de azar: Tavares foi premiado com uma placa gravada e convidado a dar uma conferência no congresso anual da instituição, em Dallas, Estados Unidos, no dia 14 deste mês. Na tese, orientado por Valentim Gentil Filho, Tavares pesquisou os traços de personalidade peculiares aos portadores desse distúrbio pouco estudado no Brasil. Com a equipe do Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso (Amjo), do Instituto de Psiquiatria da USP, comparou

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reações de 40 jogadores patológicos, 40 pacientes com TOC e 40 pessoas sem esses problemas. Uma das conclusões mais importantes é que, embora combine traços impulsivos (pouca reflexão seguida de rápida reação, prodigalidade e pouco apreço por normas e padrões) e compulsivos (medo da incerteza), além da obsessão por apostas em dinheiro, a personalidade do jogador patológico é claramente distinta da do portador de TOC. “A tese demonstra que existem mais semelhanças do jogo patológico com dependências químicas do que com TOC”, revela o pesquisador, que faz pós-doutorado na Universidade de Calgary, Canadá. Para ele, a melhor definição de jogo patológico é uma dependência comportamental. A sensação de êxtase – semelhante à experimentada pelas drogas – vem da aposta, da emoção de obter bons resultados e ganhar. A mente não sai do ambiente de apostas: “O jogador patológico está constantemente preocupado com o jogo, esperando a hora de poder fazer uma nova aposta, bolando estratégias para ganhar ou imaginando como conseguir dinheiro para pagar dívidas de jogo”, diz Tavares. Outro sinal: o desejo de recuperar o dinheiro perdido, num movimento contínuo de apostas que alimenta a dívida e a ansiedade. “A falta de controle sobre o comportamento”, prossegue, “revela-se em tentativas frustradas de reduzir ou abster-se do jogo, mentiras para ocultar a extensão da dependência e envolvimento em atividades ilegais, como falsificação de cheques e furtos, para financiar o jogo.”

Tavares adotou escalas de personalidade habitualmente usadas para distinguir jogadores patológicos e portadores de TOC. Em 2000, ano em que a tese foi concluída, saíram na Revista de Psiquiatria Clínica os resultados completos sobre uma das escalas, o Inventário de Temperamento e Caráter (ITC), que concebe o desenvolvimento da personalidade como um caminho de mão dupla entre temperamento e caráter: fatores hereditários de temperamento (busca de novidade, dependência de recompensa e persistência, por exemplo) motivam fatores de caráter (autodirecionamento e cooperatividade, entre outros), que por sua vez acionam os mecanismos de resposta a um estímulo (vontade de jogar, por exemplo). Problema social - “A procura por tratamento aumentou vertiginosamente depois que os bingos eletrônicos e os videojogos, principalmente de pôquer e do próprio bingo, espalharam-se pelo país, nos anos 90”, observa Tavares. Seu estudo e os de outros especialistas mostram uma nítida correlação entre a permissão da prática de jogos de azar – cada vez mais acessíveis – e o aumento dos diagnósticos confirmados de jogadores patológicos. No Brasil não há estatísticas, mas as do exterior indicam que de 1% a 4% da população padece desse distúrbio, que é considerado uma dependência, embora menos freqüente que as do álcool, do tabaco e de drogas prescritas por médicos, como tranqüilizantes e anfetamínicos, por exemplo. Mas é mais comum que a dependência de cocaína e de crack e que transtornos psiquiátricos clássicos, entre eles a esquizofrenia. “Os efeitos do jogo patológico, como o endividamento crônico, as tentativas de suicídio e o aumento da criminalidade, deveriam ser considerados no momento em que se discute a reintrodução dos cassinos no Brasil”, alerta o pesquisador, que lança uma convocação: “Já passa da hora de começarmos um estudo sobre a freqüência e o impacto do jogo patológico na sociedade brasileira, pelo menos nas cidades maiores, onde os bingos eletrônicos e a os videojogos se tornaram populares”. De antemão, sabe-se que as mulheres podem ser mais afetadas que os ho-


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mens. Em 2001 Tavares publicou um trabalho no Journal of Gambling Studies mostrando que as mulheres desenvolvem o quadro de jogo patológico duas vezes mais rápido. “Hoje as estatísticas apontam para uma proporção de dois homens para cada mulher”, diz ele, “mas, à medida que o jogo se torna mais popular, mais mulheres estão jogando e a tendência futura é a proporção cair para uma para cada homem.” Com os videogames caseiros, o perigo parece menor. Segundo Tavares, em princípio, a dependência só se estabelece a partir de jogos de azar, definidos por duas características: a habilidade do jogador não aumenta as chances de ganho e os resultados finais são geralmente aleatórios. Mas ele adverte que não se pode ter certeza disso, porque ainda não há estudos que relacionem um interesse excessivo de crianças por videogames com o surgimento do jogo patológico na vida adulta. No Canadá, com Nady el-Guebaly e David Hodgins, pesquisadores veteranos na área, Tavares trabalha na aplicação de seus dados a uma amostra local e na comparação entre jogadores e alcoólicos quanto à personalidade e avidez. Os resultados preliminares apontam para uma correlação entre avidez e traços impulsivos de personalidade. O pesquisador, que pretende voltar em dezembro, acredita que a partir daí surjam critérios de classificação de jogadores patológicos em subtipos – predominantemente impulsivo ou compulsivo, por exemplo – e variações terapêuticas: “O tratamento dos impulsivos enfocaria a avidez como fator de risco para recaídas; e o dos compulsivos, as emoções negativas, a ansiedade e a depressão como precipitantes de recaídas”. •

O PROJETO Caça-níquel, que proliferou na década de 90: criador de dependência

Jogo Patológico e suas relações com o espectro impulsivo-compulsivo MODALIDADE

Bolsa de doutorado COORDENADOR

VALENTIM GENTIL FILHO – USP INVESTIMENTO

R$ 40.585,32

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Diálogos com a água Simulação com moléculas que mudam de comportamento quando mergulhadas em solventes permite modelar novas substâncias

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É

difícil estudar o comportamento das moléculas em fase líquida ou em solução, mesmo que seja esse o hábitat natural delas, no qual ocorrem processos vitais – formação de proteínas, do DNA e das membranas celulares, por exemplo. O problema é que, quando se põe uma substância dentro de solventes comuns, como água e acetona, ela tem suas propriedades alteradas e passa a interagir, a conversar com esses meios. Toma forma uma espécie de dança, uma movimentação constante que gera uma quantidade enorme de imagens a avaliar. Quais dessas imagens devemos observar? Usando simulações em computador e métodos multidisciplinares, o grupo de Ciências Moleculares do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (Ifusp) responde a essa pergunta com resultados que poderão fazer avançar processos industriais, especialmente de medicamentos e cosméticos. Os pesquisadores concluíram, primeiro, que quem vê a substância sozinha e depois mergulhada em líquidos observa duas situações completamente diferentes. As pesquisas ajudam a compreender mais os desvios de comportamento das moléculas. Em quase cinco anos, o grupo analisou o comportamento de cerca de 20 substâncias. “Nossa aplicação mais recente foi com o betacaroteno: a interação dele com os solventes é especial”, afirma Sylvio Canuto, coordenador da equipe.

Calor e ritmo - Hidrocarboneto formado por ligações simples e duplas entre átomos de carbono e encontrado em alimentos vegetais – cenoura, man-

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ga e mamão, entre outros, o betacaroteno é um dos precursores da vitamina A, que está diretamente ligada ao bom funcionamento da visão. Dura e inflexível, essa molécula é também apolar – tem pouca capacidade de atrair e alterar outras moléculas. E esse é um desafio às pesquisas. A última característica, no entanto, só se manifesta quando o betacaroteno é analisado isoladamente. No líquido, o quadro muda, pois a densidade é alta e a movimentação, intensa. Na disputa por espaços, constantemente provocado pela presença do solvente, o caroteno responde aos estímulos desenvolvendo polaridade induzida: passa a interagir com as moléculas do líquido, principalmente as mais próximas. Essa dança pode ser comparável a bolero, samba ou rock pauleira, dependendo da temperatura. Chamada força de Van der Waals, é uma interação que determina mudanças nos níveis de energia – as camadas ou órbitas onde se distribuem os elétrons. Isolada, a molécula do caroteno tem níveis de energia hipotéticos A, B e C; no solvente, esses níveis mudam para A1, B1 e C1. Quem determinar quais são esses novos níveis também poderá definir com precisão a quantidade de energia que os elétrons precisam absorver para saltar de uma faixa a outra. No caso do caroteno, os pesquisadores apontaram os valores da energia da primeira banda de absorção nos quatro solventes em que ele foi avaliado – metanol, isopentano, acetona e acetonitrila. “Os resultados que obtivemos estão em plena concordância com os trabalhos experimentais”, afirma Kaline Couti-

nho, professora da Universidade de Mogi das Cruzes, que participa do grupo.“Até hoje, nenhum outro método tinha conseguido fazer esses cálculos de maneira tão precisa quanto o nosso.” Canuto também comemora: “Agora temos um modelo seguro e confiável de análise, que pode ser aplicado a outras moléculas com propriedades semelhantes”. Os estudos estão numa fase inicial, de observar para compreender o que se passa, mas a longo prazo a análise do comportamento de moléculas em líquidos deverá trazer grandes contribuições às indústrias de medicamentos e cosméticos, entre outras. Por exemplo: a síntese de remédios com a perspectiva de interferir na composição para eliminar possíveis efeitos ou reações colaterais indesejadas. O mesmo vale para produtos de cosmética. RPG e cassinos - O estudo do que se passa com moléculas mergulhadas em solventes ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, mas nos últimos 15 anos o desenvolvimento de programas de observação levou a um salto de qualidade. O grupo da USP usa as ferramentas da informática como se estivesse diante de um jogo de RPG (Role Playing Game): nessa brincadeira de desempenhar papéis que há anos fascina adolescentes pelo mundo, os participantes encarnam personagens imaginários para atuar diante de problemas concretos e apresentar respostas. Em vez de criaturas idealizadas, os pesquisadores lidam com moléculas, que têm suas danças e interações simuladas por computador, de um modo o mais perto possível da realidade. PESQUISA FAPESP

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Betacaroteno, o precursor da vitamina A: afinidade com as moléculas mais próximas

Os programas computacionais que o grupo desenvolveu são o instrumento de observação das moléculas e garantem uma visão do conjunto caótico que se manifesta. Por meio das fotografias que produzem, pode-se conhecer a distância entre os átomos, as modificações que acontecem nos níveis de energia, a quantidade de camadas de moléculas e de que modo se mexem, além de obter dados estatísticos e gráficos de cada simulação. Contas difíceis - Até chegar a esse estágio, no entanto, há um longo caminho. Afinal, os líquidos não têm forma geométrica definida e podem assumir uma infinidade de configurações e posições – uma característica chamada comportamento estatístico. Some-se a isso o fato de o grupo investir na análise multidisciplinar: a leitura do que acontece nas simulações exige o uso da física quântica (que estuda a matéria na escala do mais pequeno) e da física estatística (que trata do comportamento médio do sistema), além de buscar sustentação nos processos químicos e biológicos envolvidos. A intersecção de comportamento estatístico e multidisciplinaridade trouxe um desafio crucial: se, por causa dos solventes, são geradas milhões de cenas e configurações, como fazer cálculos quânticos, que demoram semanas? Caso 58

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não resolvessem esse dilema, os físicos estariam numa situação inviável, devido à quantidade de informações obtidas e ao tempo necessário para avaliá-las. A resposta que queriam emergiu da análise estatística dos dados, que seleciona apenas as imagens relevantes, geradas a partir da técnica chamada de Monte Carlo – uma referência à cidade dos cassinos, onde é a probabilidade que dita as regras. A seleção dos melhores momentos garante um ganho enorme de tempo, sem perda de qualidade ou de confiança nos resultados.

U

m exemplo: No caso de outra molécula estudada, o benzeno, os pesquisadores fizeram os cálculos com 10 mil configurações moleculares e depois os repetiram usando apenas 40 delas. “Os resultados foram os mesmos”, garante Canuto. Assim, as simulações tornaram-se bem mais ágeis – um cálculo que no início da década de 90 levava até 40 horas, agora pode ficar pronto em menos de um minuto. O grupo observou e detalhou outro fenômeno que ocorre com algumas substâncias: o efeito hidrofóbico, ou a incapacidade de certas moléculas se misturarem com a água. No caso, trabalharam com o benzeno e desenvolveram um modelo que serve para outras

moléculas hidrófobas. Também um hidrocarboneto, formado por seis átomos de hidrogênio e seis de carbono ligados em forma de hexágono, o benzeno é usado em larga escala na produção de resinas, plásticos, lubrificantes e detergentes, entre outros produtos, além de ser adicionado ao óleo diesel e à gasolina para melhorar suas características. Nesse caso, o grupo dividiu o processo de observação em duas etapas. Primeiro, analisou as interações na fase gasosa, em duas situações distintas: a primeira situação incluiu uma molécula de água e outra de benzeno; na segunda, foram usadas duas moléculas de benzeno. Os pesquisadores foram anotando o que acontecia, sem que houvesse ainda a interferência do líquido, para depois estabelecer as comparações e ver o que mudava. Na segunda etapa, avaliaram uma e depois duas moléculas de benzeno, envolvidas por 400 moléculas de água. Nos dois casos, percebeu-se que, na região mais próxima ao benzeno, formou-se uma gaiola de proteção, chamada clatrato. Constituída por moléculas de água conectadas por ligações de hidrogênio, essa cápsula de isolamento impede a interação entre os meios. É a manifestação evidente do efeito hidrofóbico. Canuto revela: “Comparativamente à fase gasosa, a interação entre o benzeno e a água, quando misturados, foi reduzida


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ILUSTRAÇÕES DE SIRIO J. B. CANÇADO SOBRE FOTOS DO INSTITUTO DE FÍSICA DA USP

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Benzeno, sozinho e em dupla: gaiola de proteção impede interação com a água

em 80%. Por outro lado, percebemos que a interação entre os benzenos no clatrato é três vezes maior do que a verificada no gás e duas vezes maior do que a que existe num líquido formado puramente por benzenos.” Trocando em miúdos, é possível afirmar que, na presença da água, as moléculas de benzeno preferem fortalecer suas relações e conversar entre si, deixando o resto de lado – e o mesmo acontece com a água. Já que as duas partes não manifestam interesse em estabelecer diálogo, surge o efeito hidrofóbico. “Conseguimos quantificar alguns de seus aspectos”, acrescenta Canuto. Os estudos desenvolvidos pelo grupo entre 1999 e 2002 originaram 27 artigos em revistas internacionais e 11 dissertações de mestrado, doutorado ou projetos de iniciação científica. Sem tentativa e erro - Além do betacaroteno e do benzeno, o grupo analisou os complexos de guanina e de citosina (peças elementares do DNA) em água; a piridina, a pirimidina e a pirazina (moléculas de bases nitrogenadas) em vários solventes; e famílias de cetonas e corantes em vários líquidos. É contínuo o intercâmbio com outras instituições e grupos. No Brasil, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Instituto de Química da USP e do Instituto

de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) também trabalham com simulação computacional envolvendo líquidos. “Todos fazem ciência da melhor qualidade”, destaca Canuto. “A diferença é que passamos a aplicar a mecânica quântica em líquidos e talvez sejamos o único grupo brasileiro a atuar com essa perspectiva.” Para Canuto, parcerias com as indústrias química e farmacêutica seriam saudáveis, principalmente porque, atualmente, em função dos conhecimentos e da competência desenvolvida, a universidade pode estabelecer uma relação estável e simétrica – e não de dependência. Afinal, mostra-se cada vez mais viável a idéia de projetar moléculas que assumam determinados comportamentos, eliminando custos e potencializando benefícios.

O PROJETO Estrutura Eletrônica de Líquidos Moleculares MODALIDADE

Projeto temático COORDENADOR

SYLVIO ROBERTO ACCIOLY CANUTO – Instituto de Física da Universidade de São Paulo INVESTIMENTO

R$ 311.181,39

Kaline Coutinho lembra que já se fazem experiências com diversos solventes, até chegar ao correto para cada tipo de situação. “Ainda se testa e se testa até chegar ao ideal”, comenta a pesquisadora. Não é assim que se quer trabalhar. “Poderemos eliminar esse método de tentativa e erro e inverter as mãos de direção, já apontando o melhor tipo de solvente para cada objetivo.” Modelagem - Nesse processo de modelagem molecular, a mecânica quântica ocupa lugar de destaque. A partir do conhecimento preciso das interações que as moléculas estabelecem com os solventes, elas poderão ser modificadas, fazendo surgir, por exemplo, remédios menos tóxicos e mais eficientes. Há mais de 25 anos atuando na área e apaixonado pela idéia de que, em última instância, os mecanismos biológicos dependem de interações físicas entre moléculas, Canuto está satisfeito com os resultados. Lembra, no entanto, que o sucesso só será completo se for mantida a perspectiva da multidisciplinaridade, uma ênfase do grupo, à qual se atribui a amplitude dos resultados. “O elétron não diz: ‘Agora estou me comportando com base em princípios físicos, agora mudei para a química’ ”, comenta o pesquisador. “Ele simplesmente se comporta e nos desafia a compreender esse comportamento.” • PESQUISA FAPESP

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CIÊNCIA

FÍSICA

O relevo da memória EDUARDO CESAR

Equipe de Pernambuco elucida um fenômeno essencial dos computadores

Disco rígido: rugosidade entre as camadas metálicas determina a capacidade de armazenar informações

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s computadores realizam uma de suas habilidades básicas – o armazenamento de informações – sem que se consiga entender exatamente como. Mas houve um avanço. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) explicou um fenômeno essencial para o funcionamento das novas cabeças de leitura dos discos rígidos (hard disks), que, embora descoberto há 40 anos e usado há três, sobrevivia com escassa fundamentação teórica. A equipe coordenada por Sergio Rezende, do Departamento de Física da UFPE, comprovou que a rugosidade tem uma importância crucial na interação entre as camadas metálicas da cabeça de leitura do disco – é essa interação que determina, di-

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retamente, o desempenho dos computadores. A descoberta permite compreender melhor o fenômeno que viabiliza a compactação de informação num momento em que, no mundo todo, buscam-se memórias com maior capacidade, mais rápidas e de menor consumo de energia. Como um pião - A ponta das cabeças de

leitura do disco rígido usadas atualmente, tecnicamente chamadas de magnetorresistivas, é um conjunto de camadas metálicas de poucos átomos. Como em um sanduíche, são intercaladas: uma primeira, feita de material ferromagnético (normalmente, uma liga de ferro e níquel ou cobalto), se sobrepõe a uma segunda, de material antiferromagnético (geralmente, óxido de níquel), e assim sucessivamente. Na superfí-


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cie e no interior de cada camada, os elétrons agem como um pião: giram em um sentido, como os ponteiros de um relógio, ou no sentido oposto. Desse movimento de rotação do elétron, que os físicos chamam de spin, nasce o campo magnético – ou magnetização – que permite o armazenamento de informações da memória permanente do computador, gravada em cada ponto das trilhas dos discos rígidos, que também são feitos de camadas de materiais magnéticos. Em cada ponto, a magnetização em um sentido representa o bit 0, e no outro o bit 1 – esse é o código binário, a partir do qual todo texto, gráfico ou imagem são construídos. Já as informações da memória rápida, chamada RAM (random access memory ou memória de acesso randômico), são armazenadas em semicondutores na forma de carga elétrica positiva ou negativa, representando 0 ou 1. Limites ampliados - Para entender

melhor a pesquisa desse grupo de Pernambuco, é inevitável recorrer a um pouco de história e a mais algumas explicações. Até os anos 90, a leitura do disco rígido era feita por um processo físico chamado indução magnética: a magnetização do bit produzia uma corrente elétrica na cabeça de leitura, depois processada, por outros dispositivos do computador. Era um recurso limitado porque a área de armazenagem tinha de ser grande para ser interpretada pela cabeça de leitura. Nos anos 90 ocorreu um salto, com as novas cabeças de leitura, chamadas magnetorresistivas, e com elas foi possível diminuir a área e, assim, aumentar a capacidade de armazenamento de informações dos discos rígidos. Dessa virada tecnológica, por sinal, participou outro brasileiro: Mário Baibich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1989, quando estava na França, Baibich descobriu a magnetorresistência gigante, o fenômeno que deu origem às atuais cabeças de leitura dos discos rígidos e que associa a resistência do material ao campo magnético criado pelo bit de informação do disco rígido. Ao comprovar a importância da rugosidade, Rezende chegou, de certo modo, a resultados perseguidos pelos

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pesquisadores teóricos da IBM, a empresa que desenvolveu o primeiro disco rígido em 1956 e não parou de buscar como ampliar a memória desses dispositivos.

N

esse tempo, o conhecimento acumulado sobre as propriedades das camadas ferromagnéticas e antiferromagnéticas permitiu que a capacidade de armazenamento aumentasse 3 milhões de vezes: dos iniciais 2 kbits por polegada quadrada no primeiro disco para 20 gigabits por polegada quadrada na versão mais recente, de 1999. Mesmo assim, havia apenas hipóteses sobre como funcionava a interação entre as camadas – fenômeno conhecido como exchange bias ou polarização por intercâmbio – permanecia carente de sustentação teórica e experimental. “Os cálculos teóricos de Alex Malozemoff, da IBM, mostraram em 1987 que a rugosidade poderia ser a responsável pela enorme redução do campo magnético de exchange bias, originado pela interação dos elétrons superficiais entre as camadas ferromagnéticas e antiferromagnéticas”, comenta Rezende. “Nossas experiências e o modelo teórico que desenvolvemos comprovam que é esse realmente o caso.” O grupo de Pernambuco apresentou as medidas experimentais em novembro do ano passado na Conferência Anual de Magnetismo, realizada em Seattle, Estados Unidos, e publicou os estudos teóricos em dois artigos recentes, um em março deste ano na Physical Review B e outro em abril no Journal of Applied Physics. Embora não se achasse que fosse tão importante, a rugosidade entre as camadas já era conhecida. É uma propriedade ainda inevitável das camadas magnéticas que forma a memória permanente dos computadores, já que atualmente é impossível produzir uma superfície absolutamente plana. O que a um simples olhar parece perfeitamente liso assume, na escala atômica, contornos que lembram os altos e baixos de uma cadeia de montanhas. Duas camadas são como suas cadeias montanhosas encaixando-se perfeitamente, já que o processo de fabricação elimina qualquer espaço vazio entre elas.

Os estudos da equipe de Rezende detalham exatamente o modo pelo qual a rugosidade – a variação de relevo – interfere na interação entre as camadas. É por causa desses altos e baixos que os elétrons da camada ferromagnética interagem ora com elétrons com spin num sentido (situados, digamos, num pico da cadeia montanhosa), ora com elétrons com spin em outro sentido (no vale) da camada oposta. O problema é que a rugosidade causa fenômenos indesejados, que os físicos denominam comportamentos complexos, originados por desordens físicas, conhecidas como frustrações, agravadas pelas variações de temperatura. “Esses fenômenos eram observados há anos e havia especulações sobre suas causas, mas não um comprovação como agora”, comenta Rezende. Sem perdas - A rugosidade interfere

também, já num plano macroscópico, na redução da interação magnética entre as camadas e, em última instância, no desempenho da cabeça de leitura. Seu efeito não é nada desprezível: o campo efetivo que o filme antiferromagnético cria sobre a magnetização do filme ferromagnético é 100 a 1000 vezes menor que o campo previsto para uma interface perfeitamente plana. “O desafio agora é eliminar a rugosidade”, diz Rezende. “Se, usando um método ainda não conhecido, alguém conseguir fazer uma camada dupla ferromagnética e antiferromagnética com interface perfeitamente plana, o campo que prende a magnetização da camada ferromagnética será muito maior.” Em conseqüência, o computador vai funcionar melhor. A compreensão da interação entre as camadas poderá ganhar aplicações ainda mais refinadas. O exchange bias, junto com outro fenômeno, o chamado tunelamento magnético, é um dos conceitos essenciais na construção de uma memória RAM magnética e duradoura, não mais volátil como a usada hoje nos semicondutores. A IBM anunciou há dois anos o protótipo dessa nova memória, com a qual se pretende algo simples: um computador que ao ser desligado abruptamente não perca mais informações da tela e, ao ser ligado outra vez, retome o trabalho no exato ponto em que estava. • PESQUISA FAPESP

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TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUÇÃO

■ Santo André

abriga tecnologia O município de Santo André terá sua primeira incubadora tecnológica a partir de julho. É quando termina o processo de seleção das empresas que serão abrigadas na incubadora, iniciado em março. Na primeira etapa, foram pré-selecionadas dez propostas, nas áreas de software e tecnologia da informação, química fina, cadeia automotiva, robótica, eletrônica e alternativas energéticas. Na segunda fase, todas as escolhidas vão participar de um workshop para elaborar um plano de negócios. Se62

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Trem de pouso do ERJ-145: acima das necessidades

Herman Jacobus Cornelis Voorwald, o grupo ganhou com o estudo sobre o uso do níquel a medalha de prata em 2001 como um dos melhores papers apresentados na revista Plating & Surface

gundo o coordenador do programa, Roberto Vasques, o workshop tem como principal objetivo dar condições de igualdade a todos os participantes pré-selecionados. “Dessa forma, todas usarão a mesma metodologia para apresentar os planos de negócios; o que vai diferenciá-las será o mérito do projeto.” Embora a incubadora tenha condições de abrigar todas as pré-selecionadas, a escolha será feita pelo critério de excelência. As escolhidas contarão com infra-estrutura e assessoria completa para o desenvolvimento do seu negócio. O projeto é uma parce-

PESQUISA FAPESP

Finishing (Revestimento e Acabamento Superficial), da Sociedade Americana para Eletrodeposição e Acabamento Superficial (AESF). O artigo foi assinado pelos doutorandos Renato Chaves

ria entre prefeitura, Sebrae-SP e Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC. Até 2004, a prefeitura pretende transformar a incubadora em um organismo auto-sustentável. Nesse perío-

Souza e Marcelino Pereira do Nascimento, que teve o trabalho desenvolvido em sua tese de mestrado, e pelo doutorando e engenheiro da Eleb Walter Luis Pigatin.“No trem de pouso, as propriedades de fadiga, corrosão e desgaste têm que estar sempre acima das necessidades mínimas requeridas”, explica Voorwald. O trabalho do grupo segue agora para a total substituição do cromo na proteção do aço do trem de pouso. “Estamos estudando um revestimento alternativo ao cromo, ou melhorias ao processo atual, porque esse material é danoso ao homem e ao meio ambiente, tanto no momento da fabricação quanto no descarte da peça ou dos resíduos do processo de cromagem”, diz Voorwald.

do, vai destinar R$ 350 mil por ano para o programa. O Sebrae também se comprometeu, por meio de convênio, a destinar R$ 100 mil em repasse único, valor que poderá ser renovado.

• LAURABEATRIZ

A adição de uma pequena camada de níquel sob o cromo que recobre o aço dos trens de pouso dos aviões proporciona mais resistência à corrosão e à fadiga desses equipamentos. Essa recente conclusão é de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Eles já repassaram essa informação à Eleb, empresa formada pela Embraer e a companhia alemã Liebherr, que fabrica, em São José dos Campos (SP), equipamentos para a indústria aeronáutica. Esse repasse faz parte de um acordo existente desde 1990, entre o grupo e a Embraer, para o desenvolvimento de pesquisas tecnológicas relacionadas ao trem de pouso. Coordenado pelo professor

EMBRAER

Mais resistência à fadiga e à corrosão


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■ Novas cores

Girassol na cor vinho, uma das nove variedades disponíveis ■ Piscininhas para

a água de chuva Uma idéia simples pode ajudar a minorar os sérios problemas causados pelas chuvas na cidade de São Paulo: a construção, em prédios e casas, de reservatórios para armazenar a água que cai do céu. A proposta, criada pelo matemático e inventor Elair Antônio Padin, transformouse, no início do ano, na Lei das Piscininhas, aprovada pe-

la Câmara Municipal de São Paulo e sancionada pela prefeitura. A medida tem por objetivo redirecionar a água pluvial que desce pela calha para esses minirreservatórios. O mecanismo deve reter a água durante a chuva, evitando que se acumule nas ruas e provoque pontos de alagamento. Esse líquido poderá ser infiltrado no solo ou reutilizado para fins não-potáveis, como descargas sanitárias e lavagem de carros. A lei vale

Calhas de captação Água da chuva Condutor

Reservatório Infiltração Solo

■ Bioinseticida

contra lagartas

SIRIO J. B. CANÇADO

O amarelo não é mais a cor que identifica o girassol. Novas variedades, que estarão à venda no segundo semestre deste ano, produzem flores nas cores vinho, rosa-claro, rosa escuro, amarelo-limão de centro claro, amarelo-limão de centro escuro, mesclado, ferrugem escuro, ferrugem claro e estriada na forma de raios de sol. O melhoramento genético tradicional que resultou nas novas cores foi feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Soja, de Londrina (PR), de 1996 a 2001, e teve investimentos de R$ 111 mil.“As variedades foram desenvolvidas para suportar as condições climáticas em campo aberto, por isso não há necessidade de grandes gastos com estufas”, explica o pesquisador Marcelo Fernandes Oliveira. Quando o Programa de Girassol Ornamental teve início, a Embrapa Soja buscava outras formas de utilizar a planta, que se destina à alimentação de pássaros e à indústria de óleo, a qual absorve cerca de 70% da produção nacional de grãos. Segundo Oliveira, um dos obstáculos para o crescimento da cultura é a ausência de indústrias esmagadoras do grão fora de Goiás, São Paulo e Rio Grande do Sul.“Os produtores que não estão nessas regiões ficam impossibilitados de cultivar o grão, devido ao aumento do custo com transporte. Por isso resolvemos tornar o girassol atraente como flor ornamental.” O girassol com as novas cores é menor que o tradicional. As sementes do amarelo-limão de centro escuro e do mesclado estarão à venda a partir de julho. As outras estarão disponíveis em dezembro.

EMBRAPA

para o girassol

para novas construções em lotes com área impermeabilizada superior a 500 m2. O volume do reservatório depende de um cálculo que leva em conta três fatores: área impermeabilizada do terreno, índice pluviométrico e tempo de duração da chuva. Para um terreno com área impermeabilizada de 500 m2, por exemplo, a capacidade do reservatório será de 40 m2. O mesmo projeto está sendo implantado em cidades do Nordeste que sofrem com a estiagem. Lá, a água será reutilizada nos períodos de seca. “As escolas de Campina Grande são as primeiras a adotar a medida”, afirma Padin.

Um bioinseticida que combate a lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda), praga que ataca o milho e é responsável pela perda de grande parte da produção do grão, está em fase final de desenvolvimento pelo Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Alternativa a inseticidas convencionais, o bioinseticida é baseado na ação de um vírus específico para inseto, chamado baculovírus, que existe na natureza. Apesar de ser letal para a lagarta, sua ação é lenta. “Estamos elaborando sistemas para acelerar o processo de morte da lagarta infectada pelo baculovírus”, conta Evanguedes Kalapothakis, um dos coordenadores do projeto. Esse processo é feito pela manipulação genômica. “Introduzimos no DNA desse vírus o gene de uma toxina que ataca o sistema nervoso da lagarta.” Assim, o vírus mata a praga mais rapidamente.

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LINHA DE PRODUÇÃO

Um grupo de pesquisadores da Universidade Texas Tech, baseada em Lubbock, Texas, nos Estados Unidos, conseguiu fazer um detalhado mapeamento da superfície da Estátua da Liberdade, o mais famoso monumento de Nova York. Os resultados serão importantes para a manutenção e conservação da estátua, abrindo caminho para a preservação de outras construções. O mapeamento foi obtido graças ao uso de uma tecnologia de digitalização tridimensional, desenvolvida pela empresa Cyrax Technologies, que emprega feixes de laser do tipo Yttrium Aluminum Garnet (YAG), constituído por óxido de ítrio e de alumínio. Agora, os pesquisadores podem analisar a deterioração das estruturas, feitas em cobre, procurando por buracos de oxidação na superfície. Para fazer o mapeamento, os cientistas “bombardearam” a estátua com feixes de laser, emitidos por aparelhos localizados a 100 metros de distância, e coletaram um total de 94 milhões de informações pictóricas, a

■ Banco de dados

para o câncer Um banco de dados informatizado, que reúne informações de pacientes com câncer, está sendo distribuído gratuitamente a médicos, hospitais e clínicas de todo o país. Fruto de um trabalho conjunto desenvolvido durante 18 meses pelo Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de 64

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FOTOS UNIVERSIDADE DO TEXAS

Linhas da Estátua da Liberdade

Feixes de laser percorrem a Estátua da Liberdade: oxidação na superfície aponta estragos na estrutura de cobre

■ Melancias pequenas

e sem sementes

Detalhe da estátua: mão esquerda segura tábua com a data da independência americana

partir das quais construíram um modelo tridimensional das áreas digitalizadas. Localizada numa pequena ilha, ao sul de Manhattan, a está-

Campinas (Unicamp) e Laboratórios Lilly, o CD-ROM organiza os dados sobre o paciente, a doença e as condutas prescritas durante o tratamento. A Apoio Informática foi contratada pela empresa farmacêutica para desenvolver o software, baseado nas informações fornecidas pelo setor de Oncologia do hospital.“Fomos procurados pelo Lilly para participar como consulto-

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menta mudará até o modelo de ensino, porque os alunos terão à disposição os prontuários do hospital on-line. Sem contar que será muito mais simples fazer levantamentos com o perfil do paciente, tipos de câncer, tratamentos, resultados obtidos. A primeira providência do hospitalescola será eliminar 12 metros de prateleiras, utilizadas para arquivar os prontuários dos seus 4.500 pacientes.

tua tem 93 metros de altura e foi construída em 1886. É a primeira vez que os cientistas conseguem fazer um trabalho do gênero.

res técnicos do software”, conta Paulo Eduardo Pizão, oncologista clínico e coordenador da disciplina e do serviço de oncologia do HC da Unicamp. A convivência permitiu a criação de um verdadeiro prontuário médico eletrônico. Os custos financeiros e de distribuição foram bancados pela laboratório farmacêutico. Segundo Pizão, coordenador da parceria, essa ferra-

Melancias sem sementes e bem menores que as tradicionais, fruto de melhoramento genético convencional, foram produzidas pela Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Jaboticabal. A melancia “portátil” pesa entre 2,5 e 3 quilos e mede 17 centímetros de altura por 16 de largura, enquanto a de tamanho normal tem entre 7,5 e 10 quilos e pode chegar a 60 centímetros de altura por 40 de largura. “Trabalhamos com o mesmo conceito utilizado por outras culturas tutoradas, em que as plantas são conduzidas na vertical”, diz Thiago Leandro Factor, aluno de mestrado de Produção Vegetal, que desenvolveu a pesquisa orientado pelo professor Jairo Augusto Campos de Araújo. O cultivo é feito em estufa. “As plantas ficam suspensas em uma espécie de varal, presas por fitas, e recebem água com nutrientes. Os frutos são acondicionados em saquinhos e amarrados aos arames do varal que sustenta as plantas”, explica Factor. Essa técnica é associada ao processo de adensamento, que consiste


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■ Do Recife para as

minas do mundo Primeira empresa a deixar a incubadora do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), iniciativa do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 1998, a InForma Software já presta serviços para várias companhias no país e acaba de finalizar um contrato com uma empresa norte-americana, no valor de US$ 150 mil. Situada na cidade de Tucson, no Estado do Arizona, a Modular Mining Systems é líder mundial em sistemas para gerenciamento no setor de mineração, com instalações em minas nos Estados Unidos, Chile, África do Sul e também no Brasil, fornecendo serviços para a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). “Iniciamos nosso trabalho com um projeto para integrar a comunicação da central da mina com os caminhões e os tratores, coletando dados para verificação do trabalho e para manutenção dessas máquinas”, explica Virgínia Sgotti, uma das diretoras da InForma. É um trabalho de integração do software ao sistema operacional da Modular e ao hardware dos aparelhos instalados nas mi-

nas e nas máquinas. “Agora estamos desenvolvendo um sistema de gerenciamento para uma mina no Chile.” A empresa, que está instalada no Porto Digital, moderno pólo tecnológico de Recife, também desenvolve softwares para a Companhia Hidrelétrica de São Francisco (Chesf) e para a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe). No ano passado, a InForma faturou R$ 800 mil, com 12 funcionários.

■ Exposição e debate

sobre tecnologia Um megaevento está sendo preparado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) para divulgar projetos de inovação, produtos e processos desenvolvidos por universidades, centros de pesquisa e empresas de todo o país. Será o Salão e Fórum de Inovação Tecnológica e Tecnologias Aplicadas nas Cadeias Produtivas, a ser realizado entre 30 de

julho e 2 de agosto, no Expo Center Norte, em São Paulo. Sob a coordenação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o evento vai abordar o tema tecnologia no Brasil, focando os desafios, as conquistas a serem atingidas e as aplicações tecnológicas presentes no dia-a-dia. Além da mostra, haverá espaço para amplo debate sobre os fundos setoriais implementados pelo MCT. Mais informações no site: www.redetec.org.br.

Radar inteligente produzido no Brasil Um radar de bordo inteligente, que vai equipar os 54 caças AMX da Força Aérea Brasileira (FAB), começará a ser fabricado no ano que vem no Brasil pela Mectron Engenharia, de São José dos Campos. O SCP-01, que funciona como o sensor principal do sistema de mira das armas da aeronave de ataque ao solo, está sendo produzido em parceria entre a empresa brasileira e a italiana Galileo, responsável pela unidade transmissora e o processador do equipamento. Ele detecta e segue a pista de alvos no ar e no mar e também mede a distância do alvo para o apontamento de armas. Inicialmente vai equipar os aviões da FAB, mas a Aeronáutica Militar Italiana já manifestou interesse em comprar o radar para parte da sua frota de AMX. Os caças foram projetados e fabricados na década de 80 por um consórcio formado

MECTRON

em acomodar um maior número de plantas por metro quadrado e permite obter até dez vezes mais frutos do que no cultivo tradicional. As sementes híbridas, fornecidas por uma empresa japonesa, produzem melancias com polpa de coloração amarela, laranja e vermelha.

Radar do caça AMX: sensor de alvos no ar e no mar

pela Embraer e as italianas Alenia e Aermacchi. Sua capacidade de decolar em apenas 850 metros permite que operem a partir de pistas danificadas ou até mesmo de estradas. Com o radar, a FAB pretende ampliar a capacidade operacional do AMX

em missões de interceptação e ataque antinavio, com mísseis lançados de fora do alcance visual. No final do ano passado, o radar foi testado no litoral norte paulista, numa operação conjunta da FAB, Marinha, Embraer, Mectron e Galileo.

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TECNOLOGIA NOVOS MATERIAIS

Muito além do vidro Pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos produzem materiais vítreos que podem ser usados em telescópios, fogões high-tech e ossos artificiais Y URI VASCONCELOS

Q

uando o assunto é a pesquisa para o desenvolvimento de vidros especiais e materiais correlatos, o Brasil tem ótimos motivos para comemorar. Nos últimos anos, uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) produziu importantes contribuições à pesquisa de vitrocerâmicas, um sofisticado material que se origina do vidro e que pode ser empregado na fabricação de ossos e dentes artificiais, substratos de discos rígidos de laptops, espelhos de telescópios gigantes, pisos de luxo, panelas transparentes resistentes ao choque

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térmico e placas de modernos fogões elétricos no lugar dos tradicionais queimadores a gás. Os materiais vitrocerâmicos surgiram há pouco mais de 40 anos. Eles são produzidos a partir da cristalização controlada de materiais vítreos. A cristalização controlada é um fenômeno que ocorre quando o vidro, contendo um agente nucleante dissolvido (óxido de titânio, óxido de fósforo, óxido de zircônio, prata, ouro, etc.), é submetido a temperaturas que variam de 500 a 1.100 graus centígrados. Como resultado desse processo, ele se transforma num novo material, dotado de características diferenciadas.“Os materiais vitrocerâmicos são lisos e muito mais resistentes do que o vidro. Além disso, eles podem ter bai-

xa condutividade elétrica e dilatação térmica próxima ao zero”, explica o engenheiro de materiais Edgar Dutra Zanotto, coordenador do LaMaV e responsável pelo desenvolvimento dos novos produtos. As vantagens dessas qualidades são que esses materiais funcionam como isolantes elétricos, característica necessária aos substratos de discos rígidos, por exemplo, e podem ser usados em situações onde a dilatação do vidro provoca prejuízos ao bom funcionamento do equipamento, como no caso dos telescópios ou placas de fogões. A mais recente das invenções do laboratório da UFSCar – com patente sendo redigida – é uma vitrocerâmica muito parecida com o mármore e o granito e mais resistente que esses ma-


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Vitrocerâmica de escória de aciaria: resíduos transformados em peças de decoração, pisos e revestimentos

teriais. Ela poderá ser usada na fabricação de vários produtos que compõem uma casa: pisos, azulejos e lavatórios. Por enquanto, o LaMaV domina a tecnologia para fabricação de peças pequenas, medindo 15 por 15 centímetros, mas está desenvolvendo outras maiores. No mundo inteiro, apenas a empresa japonesa Nippon Electric Glass fabrica e comercializa um produto similar, ao preço aproximado de US$ 500 o metro quadrado, mas com composição química totalmente distinta das estudadas no LaMaV. “Ainda não sabemos quanto custará o nosso produto. O preço será definido na etapa de produção, mas certamente será bem mais barato”, explica o coordenador do LaMaV.

Em outra linha de estudo dos pesquisadores da UFSCar, o objetivo é desenvolver peças vitrocerâmicas que possam substituir ossos humanos. O primeiro exemplar de uma biovitrocerâmica foi criado em meados dos anos 90 numa parceria com a Universidade da Flórida, Estados Unidos. Trata-se de um material empregado na fabricação de dentes artificiais e pequenos ossos do ouvido, como o martelo, o estribo e a bigorna. Em pó, ele pode ser usado para recompor cavidades dentárias. No final da década passada, a patente foi licenciada à empresa American Biomaterials, dos Estados Unidos.“No processo de patenteamento, por ingenuidade, fomos identificados apenas como os inventores do produto e não os titulares

– aqueles que são os detentores dos direitos sobre a patente – que é a Universidade da Flórida”, afirma Zanotto. “Nunca recebemos um tostão de royalties”, lamenta o pesquisador. Há dois anos, os cientistas do LaMaV concluíram o desenvolvimento de mais uma vitrocerâmica, desta vez a partir de escórias de aciaria, um subproduto da indústria metalúrgica com alto teor de silica e óxidos metálicos. O trabalho foi realizado em parceria com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Usiminas, localizado na cidade de Ipatinga (MG). Na Usiminas são geradas em torno de 125 mil toneladas de escórias de alto-forno e de aciaria por mês, representando um grave problema ambiental. “A produção de vitrocerâmicas de escórias siderúrgicas livrará o ambiente de parte desses resíduos industriais e permitirá a substituição, muitas vezes com vantagens, de rochas naturais e outras matérias-primas”, afirma Zanotto. Graças ao seu aspecto visual agradável, essa nova vitrocerâmica poderá ser usada como piso, revestimento de paredes e na decoração de ambientes. Os pesquisadores do LaMaV esperam iniciar em breve estudos sobre a fabricação do produto em escala piloto. Avançando as fronteiras - A criação desses novos materiais revela a importância das pesquisas conduzidas por Zanotto e sua equipe. “Nosso laboratório tem 25 anos de atividades e uma filosofia de trabalho bem definida”, diz o pesquisador. “Acreditamos ser possível realizar pesquisa básica de bom nível e aplicar métodos similares ao desenvolvimento de tecnologia. Queremos avançar as fronteiras do conhecimento e inovar no setor de vidros e materiais correlatos.” Para atingir seus objetivos, o LaMaV tem estabelecido estreita cooperação com indústrias. Nada menos que 18 projetos de pesquisa e desenvolvimento foram realizados nos últimos 20 anos em conjunto com diversas empresas, entre elas Pirelli, Usiminas, Companhia Baiana de Pesquisas Minerais (CBPM) e Alcoa. PESQUISA FAPESP

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Toda essa produção tecnológica, segundo Zanotto, está sedimentada no campo da ciência fundamental em pesquisas baseadas na compreensão do fenômeno de cristalização.“Os vidros são materiais que possuem energia relativamente alta no nível atômico devido à sua estrutura molecular desordenada e tendem a cristalizar-se espontaneamente, sem controle, durante a fabricação ou o uso, perdendo a transparência, trincando ou quebrando”, afirma Zanotto. “Os materiais cristalinos, ao contrário, como as vitrocerâmicas, cuja estrutura molecular é organizada, têm a menor energia possível e, portanto, são termodinamicamente estáveis.” Esse fenômeno, quando espontâneo, pode ser uma fonte de sérios problemas. No entanto, se a cristalização for feita de maneira controlada, é possível desenvolver novos materiais policristalinos como as vitrocerâmicas.

laboratórios espalhados pelo planeta vêm estudando novas composições e formas de produção desses materiais, que se mostraram úteis em diversas aplicações. Os espelhos dos telescópios Gemini (Chile e Havaí, EUA) são feitos de vitrocerâmica, assim como a superfície de modernos fogões elétricos, que não têm chama e nem fogo, apenas círculos onde são colocadas as panelas ou o próprio alimento. Fogões desse tipo já são fabricados pelas empresas Bosch, Siemens e Jung, de Blumenau (SC), que importa o material vitrocerâmico.

Pulo do gato - Além da criação de materiais inovadores, os cientistas da UFSCar também pesquisam um novo processo de fabricação de vitrocerâmicas, conhecido por sinterização com cristalização controlada. Sinterizar significa unir várias partículas por aquecimento. Nesse caso, a formação da vitroPeça que poderá concorrer no mercado com o mármore cerâmica não necessita de agentes nucleantes como acontece no processo tradicional de obtenção desse masos –, quando percebeu que havia deiterial. A sinterização com cristalização xado, por esquecimento, um par de lencontrolada, portanto, não demanda a tes de óculos durante toda a noite num Óculos no forno - Como é comum na adição de uma nova substância que aforno aquecido. Essas lentes ficaram história da ciência, os materiais vitrotue como catalisador. Partículas de imopacas, completamente cristalizadas, cerâmicos foram descobertos por acapurezas e defeitos presentes na própria pois haviam se transformado em outro so. No final dos anos 50, o pesquisador superfície do vidro fazem o papel do material, muito mais resistente, que norte-americano Donald Stookey, da agente nucleante. Zanotto explica: “Obele acabou chamando de vitrocerâmiempresa Corning Glass, conduzia pesservamos que na cristalização desconca (glass-ceramics). Nesse caso fortuito, quisas com vidros fotocromáticos, destrolada o processo de transformação do a prata atuou como agente nucleante. ses que escurecem com a luz – pois têm vidro começa na superfície e concluíDe lá para cá, dezenas de empresas e minúsculos cristais de prata disper-

Falta integração com a indústria vidreira A produção industrial de vidros no Brasil também ganha destaque no cenário mundial ao lado das pesquisas relacionadas a novos materiais vítreos. Em 2001, a capacidade instalada da indústria vidreira nacional era calculada em 2,6 milhões de toneladas, sendo que os fabricantes de vidros planos respondiam por 31,7% do total – em seguida vinham os produtores de embalagens de vidro, com 31,1%. Juntas, as 74 empresas do setor faturam cerca de R$ 2,65 bilhões

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por ano e geram quase 12 mil postos de trabalho. Apesar do excelente desempenho do setor e do alto nível dos trabalhos científicos, não existe uma forte integração entre os fabricantes de vidro e os centros de pesquisa. Poucos profissionais com doutorado ou mestrado na área são contratados pelo setor produtivo. “A maioria das indústrias de vidro opera com capital estrangeiro e mantém centros de pesquisa em seus países de origem”, escreveu Za-

notto no artigo Glass industry and research in Brazil (Indústria e pesquisa de vidro no Brasil), divulgado em março último na revista Glass International. “Essa é, provavelmente, a razão da fraca interação entre as empresas internacionais e os grupos de pesquisas das universidades brasileiras”, alerta. Segundo Zanotto, a relação entre os pesquisadores e a indústria vidreira nacional também não é proveitosa. “É infatisfatória, porque falta diálogo e cooperação.”


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12 ocasiões, fomos convidados a proferir palestras plenárias em eventos importantes”, afirma Zanotto. Além do LaMaV, outros grupos nacionais de pesquisa também têm se sobressaído no desenvolvimento de novos materiais e novas tecnologias associadas ao vidro. A força da pesquisa brasileira pode ser avaliada pela publicação de artigos em periódicos científicos internacionais. Nos últimos seis anos, aproximadamente 5% de todos os artigos divulgados no Journal of Non-Crystalline Solids e 2% dos publicados no Physics and Chemistry of Glasses, as mais importantes revistas científicas do setor, foram assinados por pesquisadores brasileiros. Vitrocerâmica desenvolvida para ser usada na confecção de dentes e ossos artificiais

mos que ali existem partículas e falhas cujo efeito é semelhante ao dos agentes nucleantes.”, conta Zanotto. A partir dessa conclusão, os pesquisadores do LaMaV moeram o vidro para que o pó resultante contivesse essas partículas superficiais. “Esse foi o pulo do gato de nossas pesquisas”. Pode parecer simples, mas na prática é muito difícil. Os pesquisadores levaram sete anos para desvendar os segredos da sinterização com esse tipo de cristalização, chamada de concorrente. A sinterização deve ocorrer no início do processo e só no final é que deve começar a cristalização. “Temos um projeto temático, com complexas simulações computacionais, tentando entender e controlar a competição entre sinterização e cristalização”, afirma Zanotto. Segundo ele, a sinterização com cristalização concorrente é um processo alternativo para fabricação de vitrocerâmicas e, em certos casos, pode ser mais rápido e barato. Com os resultados dos estudos produzidos pela equipe do LaMaV, o laboratório tornou-se um dos mais conceituados centros mundiais de pesquisa em sinterização para produção de materiais vitrocerâmicos. Apenas alguns outros grupos conseguiram chegar aos resultados alcançados pelos pesquisadores da UFSCar: por exemplo, uma equipe do laboratório BAM, de Ber-

lim, na Alemanha, um grupo ligado à Academia de Ciências da Bulgária e a empresa japonesa Nippon Electric Glass. “Todos esses pesquisadores têm feito, paralelamente a nós, importantes descobertas sobre o fenômeno da sinterização e cristalização controlada”, afirma o pesquisador. Atuação destacada - Para se ter uma idéia da relevância das pesquisas conduzidas por Zanotto e sua equipe, basta saber que nos últimos 20 anos o grupo foi laureado com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais e apresentou, sob convite, cerca de 55 palestras nos mais importantes congressos da área. “Uma amostra da importância e repercussão das pesquisas desenvolvidas por nossa equipe é o fato de que, nos últimos dois anos, em

O PROJETO Problemas Correntes sobre Cristalização de Vidros MODALIDADE

Projeto temático COORDENADOR

EDGAR DUTRA ZANOTTO – Departamento de Engenharia de Materiais - UFScar INVESTIMENTO

R$ 794.824,88

Novas instalações - A atuação do LaMaV, cuja equipe é formada por três professores, dois pós-doutorandos, seis alunos de doutorado, dois de mestrado, quatro de iniciação científica e um técnico, ficará ainda mais fortalecida com a inauguração, no próximo mês, das novas instalações do laboratório, de 530 metros quadrados. O prédio, que custou cerca de R$ 300 mil, recebeu financiamento da própria UFSCar e de convênios com empresas. Os recursos para a infra-estrutura vieram do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do projeto temático Problemas Correntes sobre Cristalização de Vidros financiado pela FAPESP. O prédio tem o formato de um forno para fabricação de vidros e está aparelhado com equipamentos de última geração. “Os recursos da FAPESP viabilizaram a instalação da infra-estrutura do novo laboratório, que é de padrão internacional, e também a publicação de vários artigos e a apresentação de uma dezena de palestras convidadas no exterior”, diz Zanotto. Os pesquisadores do LaMaV estão, assim, fazendo ciência e desenvolvendo tecnologia para novos materiais que devem compor produtos de diversas funções. De ossos artificiais, passando pelo disco rígido de laptop até a pia de um bom banheiro. • PESQUISA FAPESP

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TECNOLOGIA

ENGENHARIAS

Laboratório Nacional de Luz Síncrotron desenvolve micropeças com ampla utilização no meio acadêmico e na indústria

M ARCOS

DE

O LIVEIRA

Amostras fabricadas no LNLS: sensores, pinças para manipular cristais de proteínas e estruturas para cultura de neurônios 70

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EDUARDO CESAR

Minúsculas e notáveis


O

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s aparelhos que lêem o código de barras dos produtos nos supermercados, e se espalham por outros estabelecimentos do comércio, estão ganhando uma pequena peça que poderá torná-los mais rápidos e eficientes. Acionado por um campo eletromagnético, essa peça, que possui o tamanho de 25 milímetros de comprimento por 12 milímetros de largura, chamada de defletor ou scanner, leva no seu interior um produto precioso com a espessura de 70 micrômetros (também chamados de mícrons) ou 0,07 milímetros de espessura. É uma trilha de ouro instalada no centro do rotor, a parte giratória do scanner que faz a leitura das barras impressas nas embalagens. A incorporação dessa inovação vai ampliar os exemplos de produtos da tecnologia de microfabricação, um segmento que cresce em importância no atual estágio do desenvolvimento industrial. No nosso dia-a-dia, vários exemplos já mostram o potencial dessas micropeças que sempre ficam escondidas dentro de equipamentos bem maiores se comparados com elas, como nas cabeças de bicos de impressoras de jato de tinta, sistemas portáteis de dosagem de glicose e os acelerômetros, micromáquinas que acionam o air-bag de veículos. “A microtecnologia trabalha com dimensões de alguns micrômetros a alguns centímetros”, explica o professor Luiz Otávio Saraiva Ferreira, coordenador do Projeto Multiusuário de Microfabricação (Musa) do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e mentor do oscilador para leitores de código de barras, projeto que recebeu financiamento da FAPESP. Não tão famosa como a sua irmã mais nova, a nanotecnologia, já usada nos chips eletrônicos, mas ainda em fase experimental em vários campos de estudo, a microfabricação, além de estar presente em diversos produtos, é a esperança para um amplo leque de atuações. Por exemplo, ela está cotada para formulação de microdispositivos de análise clínica que vão funcionar num recipiente do tamanho de uma caixa de fósforos e dispensar num futuro não

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muito distante os tradicionais exames de sangue. Apenas uma gota retirada do dedo do paciente – como atualmente nos exames rápidos de diabetes – será suficiente para se fazer um hemograma ainda no consultório do médico ou ao lado de um leito hospitalar. Ganha o paciente, que não precisará mais ver uma seringa perfurar o seu braço e ganha o médico, que poderá ver o resultado de forma instantânea na tela do computador que estará conectado ao microdispositivo de análise clínica. “Ainda estamos no começo, testando as enzimas, as interfaces elétricas e caracterizando os polímeros que LNLS

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Micropeneira: em um espaço de 1 cm por 1 cm, 67 mil orifícios

vão ser usados nos microcanais que farão a análise do sangue”, diz o químico Júlio César Bastos Fernandes, pós-doutorando no LNLS com bolsa da FAPESP, que iniciou em setembro do ano passado um projeto de construção desses microdispositivos de análise clínica. Pesquisadores convocados - O braço

mais famoso da microfabricação é a microeletrônica, responsável pela produção de chips. Para tornar o outro braço da microfabricação, que produz micropeças não-eletrônicas, mais famoso e mais útil aos pesquisadores brasileiros e futuramente à indústria, o Projeto Musa trabalha para assegurar essa notoriedade. Por meio de rodadas anuais de editais, o grupo convoca pesquisadores interessados em micropeças para diversos experimentos. O próprio slogan do Musa define bem a sua função: “Você projeta, nós fabricamos e você testa”. Dessa forma, desde sua criação

no LNLS em 1999, num projeto idealizado pelo professor Ferreira ainda utilizando as instalações do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), criado pela antiga Telebras, o Musa já proporcionou a fabricação de micropeneiras para limpeza de água, microdutos para contagem de bactérias no leite, guias de laser e até um microdispositivo que serve como base para o crescimento de neurônios em pesquisas laboratoriais. Além do suporte do LNLS, o Musa recebe apoio da FAPESP, do Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), antiga fundação Centro Tecnológico para a Informática (CTI), e do Centro de Componentes Semicondutores (CCS) da Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Alta velocidade - O experimento que está mais próximo de ganhar o mercado é mesmo o do professor Ferreira. Com a colaboração do aluno de mestrado Pedro Ricardo Barbaroto, do CCS da Unicamp, ele finaliza o defletor de feixes de luz que se movimenta por indução eletromagnética e faz a varredura do código de barras. Fabricado com um monocristal de silício, o novo dispositivo tem resistência mecânica melhor que o aço-mola, com custo menor e melhor desempenho que os equipamentos usados atualmente. A velocidade do novo dispositivo se comparado com a dos atuais é também um fator favorável. Ele pode oscilar 1.300 vezes por segundo, enquanto os aparelhos existentes no mercado não podem oscilar acima de 30 vezes com risco de se enganar na leitura. “Já patenteamos o princípio do acionamento do mecanismo por indução nos Estados Unidos e no Brasil”, conta Ferreira. O defletor está incluso nessas patentes. Agora, o trabalho de Ferreira e de Barbaroto é miniaturizar a parte do defletor, chamada de estator, peça que não se movimenta durante o funcionamento do aparelho. “Se uma empresa se dispuser a produzir esse equipamento em larga escala, ele vai ficar barato”, assegura Ferreira. Outro experimento produzido no Musa que apresenta possibilidades fuPESQUISA FAPESP

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Oscilador em ação: leitura mais rápida e melhor resistência mecânica

turas de ser utilizado pela indústria – e que já foi testados em campo – são as micropeneiras, dispositivos que podem ser utilizados para retirar partículas muito pequenas suspensas em gases ou em líquidos, além de servir para separar, por tamanho, partículas sólidas em pó. As micropeneiras projetadas e testadas pela professora Maria Aparecida Silva, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, são feitas de cobre no tamanho de um centímetro por um centímetro e possuem 67 mil orifícios com diâmetro de 20 mícrons cada um. Com essa micropeneira foram realizados experimentos de filtração de água em laboratório, utilizando-se amostras coletadas de uma estação de tratamento de água da Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento (Sanasa) de Campinas. “Com a filtração da água bruta, conseguimos a retirada de 95% da matéria orgânica, e a filtração da água tratada quimicamente apresentou um índice de transparência de 99,9%”, diz Maria Aparecida. “Esse produto teve bons resultados experimentais e tem potencial de uso no tratamento de água a um preço barato e com amplo impacto social, se produzido em larga escala.” A micropeneira também poderá ser utilizada como membrana filtrante em sistemas de hemodiálise, que filtra o sangue de pessoas com insuficiência renal. Com esse novo dispositivo, fica mais viável o desenvolvimento de um equipamento portátil para hemodiálise. Maria Aparecida tem confiança no uso futuro da micropeneira tanto no tratamento de água como na hemodiálise, porque a boa uniformidade dos orifícios garante o sucesso técnico do dispositivo. As possibilidades abertas com projetos de microfabricação são amplas. Os dutos dos microdispositivos fabricados no LNLS também já cedem espaço para projetos inovadores, como o do professor Elnatan Chagas Ferreira, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Com72

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putação da Unicamp. Ele pesquisa um contador de bactérias no leite por meio de microdutos e fibras ópticas. “A contagem das bactérias é feita no meio líquido em microdutos fabricados no Musa que medem 100 mícrons de largura e 100 mícrons de altura”, explica Ferreira. Ele e o doutorando André Teixeira estão elaborando um protótipo de contador de bactérias automatizado acoplado a um microscópio óptico especial que faz a contagem dos microrganismos. Neurônios de escargô - Outros proje-

tos também produziram dispositivos para contato com material orgânico. Um deles foi a criação de uma microestrutura para a cultura de neurônios num trabalho realizado no Laboratório de Microeletrônica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Dois doutorandos, Henrique Estanislau Maldonado Peres e Nathalia Peixoto, sob a orientação do professor Francisco Javier Ramirez-Fernandez, desenvolveram um dispositivo de 1,2 milímetro de lado, com cavidades para orientar o crescimento de neurônios de escargô (Helix aspersa) em meio de cultura. Os experimentos mostraram que as célu-

las aderem e crescem sobre as estruturas e podem ser estimuladas por meio de microeletrodos. “Precisamos, agora, desenvolver um dispositivo com canais de maior profundidade para acomodar os neurônios”, explica Peres. “O maior sucesso foi estudar a propagação de sinais elétricos (ou estímulos elétricos) nos neurônios in vitro.”

Testador portátil - O óleo de cozinha usado em restaurantes e outros estabelecimentos de produção de alimentos, como as pastelarias, foi o objeto de um experimento realizado no Musa pelo professor Edval Santos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele desenvolveu um capacitor que mede as constantes dielétricas (resistência à passagem de corrente) de líquidos como óleo de cozinha, solventes e combustíveis. “Com esse capacitor poderemos, por exemplo, caracterizar o óleo de cozinha usado no comércio, medindo a qualidade desse produto”, explica Santos. O mesmo princípio poderá ser também utilizado para detectar adulterações em combustíveis. Conforme o tempo de fritura, o óleo pode perder as características originais e tornar-se, inclusive, cancerígeno. Uma das maneiras de avaliar essa degradação é medir as propriedades elétricas do óleo com o capacitor, que funciona como um sensor químico. “Com o microcapacitor produzido no Musa é possível montar um sistema de inspeção para testar no próprio local a qualidade do óleo, funcionando como um sistema de triagem para o laboratório que irá emitir um laudo conclusivo”, prevê Santos. Entre os vários projetos já executados pelo Musa estão, por exemplo, uma pinça para manipular cristais de proteínas, ferramenta útil para os pesquisadores do Centro de Biologia Molecular Estrutural do LNLS. “Já temos a pinça, agora precisamos criar o mecanismo que dará movimento a ela”, explica Izaque Alves Maia, pesquisador do Musa. Como a pinça, outras peças produzidas no Musa já estão delineadas e fabricadas, porém não estão prontas para entrar em ação. Normalmente, elas fazem


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POLÍMERO FOTOSSENSÍVEL

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Máscara Litográfica

Polímero exposto à radiação

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MOLDE POLIMÉRICO

Polímero protegido da radiação UV Revelação Região sem polímero

Base Isolante com filme condutivo

EXPOSIÇÃO À RADIAÇÃO ULTRAVIOLETA (UV) OU RAIO X

ELETRODEPOSIÇÃO Preenchido com metal

MICRO ESTRUTURA DE METAL

LIBERAÇÃO DA BASE

parte de sistemas maiores que exigem novos estudos e a criação de novos mecanismos. São, no entanto, peças essenciais a sistemas inovadores e, muitas vezes, inéditas. Litografia e metais - Para ser entregues a seus idealizadores, todas as micropeças fabricadas no Musa passam por um mesmo processo de produção com pequenas variáveis. Elas são projetadas pelos interessados – pesquisadores de institutos e universidades ou de empresas – e enviadas ao LNLS. O processo de fabricação começa com a produção de uma micromáscara litográfica produzida em metal com o desenho da peça. Essa máscara é, então, colocada sobre um polímero fotossensível assentado sobre uma base de silício ou vidro revestido com uma camada condutiva. Depois esse conjunto é exposto à radiação ultravioleta. O desenho da peça fica impresso no polímero como num filme fotográfico. Ao retirar-se o polímero da parte sensibilizada forma-se um molde da micropeça. Na parte final da fabricação do dispositivo, esse molde ganha por eletrodeposição ou galvanoplastia – sob a ação de corrente elétrica – um

REMOÇÃO DO POLÍMERO

metal, que pode ser cobre, níquel ou ouro. Essa fase é realizada na empresa Metalfoto, na cidade de Cotia, que faz o crescimento do metal dentro do molde de polímero. A micropeça fica pronta quando são retirados esse molde e a base de silício ou de vidro. “Nossa intenção para avançar nesse processo de microfabricação é fazer a sensibilização (litografia) com o raio X da luz síncrotron em vez da radiação ultravioleta”, diz o coordenador do Musa, Luiz Otávio Ferreira. “Com isso teremos melhor qualidade na fabricação

O PROJETO Projeto, Microfabricação e Caracterização de Osciladores Microeletromecânicos com Acionamento Eletromagnético MODALIDADE

Linha regular de auxílio à pesquisa COORDENADOR

LUIZ OTÁVIO SARAIVA FERREIRA – LNLS INVESTIMENTO

R$ 92.660,25 e US$ 51.671,90

das peças.” Uma das dez linhas de luz do síncrotron, chamada XRL, está destinada exclusivamente para o trabalho do Musa. Esse raio X é produzido a partir da energia dos elétrons que circulam, na velocidade da luz, no interior do anel metálico de 93 metros de comprimento e 30 metros de diâmetro que, integrado a dezenas de outros componentes, forma a fonte de luz síncrotron. Uso industrial - Os primeiros experi-

mentos com o raio X estão sendo realizados pela equipe do professor Ferreira. Mesmo sem a utilização plena do raio X, os mecanismos de fabricação de micropeças estão disponíveis para quem necessitar desse serviço industrial. A intenção do LNLS é aumentar a participação de empresas interessadas em fazer microdispositivos. “Nós temos a receita de fabricação de micropeças e podemos colaborar com empresas nos seus projetos”, diz Ferreira, que também é professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, onde está formando um grupo de estudos em microssistemas. São boas notícias para os vários setores que necessitam de microdispositivos para o desenvolvimento de aparelhos, sistemas e equipamentos inovadores. • PESQUISA FAPESP

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TECNOLOGIA

Adesão do filme de polímero às lâminas de aço ocorre no forno a 190o Celsius

ENGENHARIA METALÚRGICA

Ruído controlado Sanduíche de lâminas de aço e polímero formam chapas que absorvem vibrações de motores D INORAH E RENO

A

poluição sonora é considerada como a terceira maior causa de poluição ambiental pela Organização Mundial de Saúde (OMS). As conseqüências do excesso de ruídos para os ouvidos humanos traduzem-se em danos físicos e psíquicos, que se instalam gradativamente e afetam a qualidade de vida nas grandes metrópoles. Nos últimos anos, a preocupação com o controle acústico resultou em exigên74

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cias para serem cumpridas pelas indústrias de todo o mundo antes que elas coloquem seus produtos no mercado. No Brasil, os carros só saem da fábrica se produzirem até 77 decibéis de ruído; as motos, 80; caminhões e ônibus, 84. Uma das maneiras de a indústria automobilística atingir essas metas é revestir o motor com materiais que absorvam ruídos e vibrações, como a chapa VDS (Vibration Damping Steel ou Aço Anti-Ruído e Vibração), fabri-

cada nos Estados Unidos e no Japão e que deve ser lançada comercialmente no Brasil ainda este ano. A tecnologia nacional foi desenvolvida pela Fitafer Indústria e Comércio, de Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, com o apoio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP. O embrião do projeto da Fitafer que resultou na chapa VDS, composta por duas lâminas de aço recheadas por


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um polímero em forma de filme, originou-se no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Em 1997, quando a Fundação abriu as primeiras inscrições para o PIPE, o engenheiro Vicente Mazzarella, na época diretor técnico do IPT, convidou Francisco de Paula Assis Júnior, um engenheiro aposentado especializado nas áreas de laminação e tratamento térmico, com experiência de dez anos de trabalho na Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), para coordená-lo. “Achei interessante porque é minha área de atuação. O Brasil só poderá passar dessa condição de emergente, quando desenvolver tecnologia industrial”, diz o engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente professor da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), de São Bernardo do Campo, e da Escola de Engenharia Mauá, de São Caetano do Sul. Mazzarella e Assis procuraram, então, a Fitafer, produtora de aços relaminados, que atuava com bons resultados na área e tinha interesse em diversificar seus produtos. Assis conta que o ponto de partida para o trabalho foi uma chapa VDS fabricada nos Estados Unidos, usada no cárter (parte do motor onde fica estocado o óleo) dos motores a explosão da MWM, uma empresa norte-americana com filial no Brasil. “Ela nos forneceu amostras da chapa e fizemos uma avaliação das características do material. O grande problema era encontrar o polímero adequado, porque a 3M, o fornecedor do fabricante norte-americano, recusou-se a nos ceder amostras.” Estabilidade e aderência - O próximo passo foi selecionar, com a ajuda do IPT, três polímeros candidatos para compor a chapa VDS com tecnologia nacional. Como essa peça passa por uma série de operações, o polímero não pode descolar. Foram testadas aderência e estabilidade até temperaturas de 150o Celsius. Os ensaios, que ainda não tinham sido realizados no Brasil, foram feitos no instituto com polivinil butiral (PVB), polietileno (PE) e polipropileno (PP). O aço utilizado foi o SAE 1006, cedido pela Fitafer. Os testes da fase laboratorial resultaram na escolha do PVB como o polímero que tinha melhor aderência às chapas de aço.

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A segunda etapa do projeto, em escala piloto, foi realizada em parte na Fitafer, com um forno e outros acessórios adquiridos com financiamento do PIPE. Nessa fase, o PVB recebeu vários aditivos, para absorver melhor os ruídos e as vibrações e garantir sua aderência às lâminas de aço. “Os resultados foram considerados muito bons e o polímero demonstrou ter boa estabilidade e aderência”, conta o coordenador do projeto.

O

processo de rechear as chapas com o polímero é relativamente simples. As duas lâminas de aço e o filme de polímero são nivelados para entrar no forno, onde permanecem durante cerca de uma hora a uma temperatura de 190o Celsius. Passado o tempo necessário para que ocorra a cura, a chapa passa por novo nivelamento e está pronta para ser usada. “O problema maior é o conjunto ficar bem sustentado no forno e ocorrer a cura do polímero, o que significa endurecer e aderir, formando um conjunto coeso”, explica o professor. Produção industrial - A fase piloto terminou em outubro do ano passado. Agora, a Fitafer prepara-se para produzir comercialmente as primeiras peças no segundo semestre deste ano. Inicialmente, vai fabricar apenas peças de pequenas dimensões, como chapas para liquidificadores, com o mesmo forno usado para produzir as chapas em escala piloto. Para dar início à produção comercial, está construindo uma nova área na empresa, que deverá ficar pronta em agosto. A previsão para fabricar peças maiores, como a tampa de cárter

O PROJETO Desenvolvimento de Chapas VDS (Vibration Damping Steel), para Absorção de Ruídos e Vibrações MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR

FRANCISCO Fitafer

DE

PAULA ASSIS JÚNIOR –

INVESTIMENTO

R$ 246.700,00

de motor, é para o final do próximo ano. “Precisamos de um forno maior para fabricar peças de maior porte e, para isso, é necessário um investimento alto”, explica Ecidir Dias Taverneiro, diretor executivo da empresa. No ano passado, o faturamento da Fitafer chegou a R$ 8 milhões. Quando as peças maiores estiverem em processo de produção, serão definidos os potenciais compradores. A indústria automobilística é uma das fortes candidatas, além das empresas de estamparia. Mas, como a Fitafer também tem a sua própria estamparia, poderá fornecer a peça pronta. “Tudo vai depender do tamanho da peça, se cabe ou não na nossa prensa”, adianta Taverneiro. As possibilidades de aplicação da chapa VDS são variadas: equipamentos elétricos, materiais de construção e indústria automotiva. Esse amplo campo de atuação atrai as grandes siderúrgicas brasileiras, que já demonstraram interesse em dominar o processo para produzi-la. Segundo Assis, a Usiminas está investindo em pesquisas para chegar a uma tecnologia própria para produzir chapas similares à VDS. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), por meio de sua subsidiária Inal, já propôs à Fitafer uma joint venture para fabricar a chapa VDS com a tecnologia desenvolvida com o apoio do PIPE. Enquanto isso, o IPT e o coordenador do projeto estudam a solicitação de uma patente para o processo de fabricação da chapa. Parceria vitoriosa - Para o professor, as

pequenas empresas não têm como competir com as grandes nem em escala nem em tecnologia. Portanto, diz Assis Junior, elas precisam diversificar suas atividades para sobreviver. Essa filosofia é compartilhada pela Fitafer, que procura “adequar os seus produtos às necessidades do mercado brasileiro de aços planos”. Agora, a empresa tem na mão um produto importante e essencial no atual estágio do desenvolvimento industrial, em que o cuidado com as questões ambientais está na primeira linha das exigências produtivas. Um produto com grandes perspectivas comerciais, delineado de forma exemplar na parceria entre a empresa, um especialista e o apoio fundamental de um centenário e reconhecido instituto de pesquisa. • PESQUISA FAPESP

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TECNOLOGIA

INFORMÁTICA

Criação sem limites Empresa paulistana desenvolve software que incorpora efeitos especiais em sistemas de vídeos

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E

xtrair a imagem de um carro de Fórmula 1 correndo no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, e aplicá-la em outro cenário ou destacar a imagem de um ciclista passeando numa cidade e sobrepô-la a uma paisagem árida e gelada do continente antártico são dois exemplos dos efeitos especiais obtidos para a edição de vídeos digitais por um software que está em fase final de desenvolvimento pela empresa SDC Engenharia, Sistemas e Eletrônica, de São Paulo. “Criamos uma ferramenta computacional inédita, que será valiosa para os profissionais que trabalham com edição e pós-edição de imagens”, afirma Robert Liang Koo, diretor da SDC e coordenador do projeto intitulado Segmentação Assistida de Imagens e Vídeos Digitais, financiado pela FAPESP dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). Resultado de mais de dois anos de extenso trabalho, o software será uma ferramenta simples e rápida para auxiliar no processo de segmentação de imagens digitais que será muito útil em gravações no sistema Digital Video Disc (DVD) ou para a futura TV digital. Essa técnica de segmentação consiste em isolar os pixels (o menor ponto tonal de um sistema de imagem digital) que

O software isola e faz o recorte de qualquer objeto e propaga o quadro para outra cena

representam o objeto de interesse dos demais existentes no fundo da imagem. Com ele, será possível fazer o recorte de qualquer objeto em qualquer tipo de cenário, sem que para isso as gravações precisem ocorrer em ambiente previamente preparado, como é necessário atualmente. Em outras palavras, o software, batizado de SDC ProntoVídeo, permitirá a segmentação de vídeos com imagens bem mais complexas, independentemente das cores e das características do fundo e da imagem a ser destacada. A colagem de imagens é um recurso bastante utilizado pelos telejornais em todo o mundo. A previsão do tempo do Jornal Nacional, da TV Globo, por exemplo, mostra o apresentador e ao fundo uma imagem animada do mapa do Brasil. Mas, para a cena ir ao ar, as

filmagens do apresentador e do mapa ao fundo são feitas separadamente. Primeiro, o “homem do tempo”é filmado à frente de uma parede azul, cheia de marcações (pregos ou adesivos) que mostram onde, supostamente, estão os Estados brasileiros e os aspectos meteorológicos a serem ressaltados – frentes frias, massas de ar seco, ar quente, chuvas, etc. Depois, é feita uma animação em que é mostrado o comportamento da meteorologia no território brasileiro. Cenário azul - Na montagem final, a

imagem do meteorologista é isolada e recortada do cenário azul e colada sobre a animação. Esse efeito especial só é possível graças a uma sofisticada técnica de edição de imagens conhecida por croma-key ou fundo azul. Para livrar o recorte de distorções, a gravação


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se dá em um ambiente controlado. O cenário onde se encontra o apresentador é todo azul, e a iluminação é orientada para acentuar o contraste entre ele e o cenário ao fundo. Agilidade e rapidez - Segundo Koo, que também é professor de Ciências da Computação na Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o software desenvolvido é bastante superior a similares disponíveis no mercado. A segmentação de imagens num ambiente genérico é tão difícil que, na maioria dos casos, ela é feita manualmente, com o usuário desenhando o contorno do objeto, como se fosse uma máscara, para em seguida recortá-lo. Essa segmentação, feita com uma ferramenta disponível em inúmeros softwares de desenho, como o Photoshop, é realizada de acordo com a percepção visual do usuário e leva muito tempo. “O que oferecemos agora é uma ferramenta semi-automática, extremamente ágil e muito mais fácil de ser manipulada”, explica. Sua operação é muito simples. Inicialmente, o usuário deve assinalar, no primeiro quadro da imagem, o objeto que pretende isolar. Para isso, basta posicionar o cursor em cima do objeto e, pressionando o botão da esquerda do mouse, fazer um pequeno risco no objeto. Esse é o marcador interno, que leva a cor vermelha. Em seguida, ele faz um marcador externo, em azul, nas áreas ao redor do objeto, pressionando o botão da direita do mouse e fazendo outro risco. “Dois marcadores simples, um externo e outro interno, já são suficientes para o ProntoVídeo processar a segmentação da imagem”, explica Koo. Ele vai procurar encontrar o contorno do objeto, por meio da diferença de padrão dos pixels, que é expressa pela mudança de cor, textura e brilho do objeto a ser recortado e o que está a seu redor. Uma vez feitas as marcações iniciais, o ProntoVídeo projeta o contorno do objeto e do fundo. Utilizando cálculos de estimativa de movimento, esses contornos são propagados para os quadros seguintes do filme. Caso ocorram pequenas distorções no recorte –

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um novo formato de vídeo digital em que os vários objetos em cena são codificados separadamente”, afirma. “O novo software da SDC ajudará o produtor de MPEG-4 na separação dos vários elementos presentes na imagem.” O produto deverá estar no mercado dentro de um ano. Mas o protótipo, concluído no ano passado, já se encontra em plenas condições de ser utilizado pelo usuário final. “Estamos apenas fazendo alguns aperfeiçoamentos para que ele se torne um produto competitivo no mercado internacional”, afirma o diretor da SDC. “Entre outras coisas, estamos solicitando uma patente com o auxílio da FAPESP e melhorando o algoritmo de estimativa de movimento de propagação dos marcadores”, diz ele. Esse algoritmo é Experiências o responsável pela precisão iniciais: do recorte do objeto. O softo jogador ware deverá custar entre dentro de US$ 50 e US$ 100 e sua venuma mão da será feita apenas pela Internet. Quem quiser, poderá fazer um download do programa diretamente do site da SDC (www.sdc.com.br), mediante o pagamento de uma taxa. nas (Unicamp); Junior Barrera, do Venda pela Internet - Criada em 1987, Instituto de Matemática e Estatística a SDC é uma empresa nacional espeda Universidade de São Paulo (USP); cializada na integração e no forneciAlexandre Falcão, do Instituto de Commento de equipamentos, softwares e putação da Unicamp; e Rubens Machasoluções para automação industrial, do, do Centro de Pesquisas Renato Arautomação de laboratórios, visão comcher (Cenpra), de Campinas. Segundo putacional, processamento de imagem, Lotufo, o ProntoVídeo terá, inicialmencomércio eletrônico e telecomunicações. te, duas utilidades básicas. “Ele será usaEm 2000, seu faturamento atingiu US$ do para realizar efeitos especiais em ví2 milhões, sendo 10% referentes a vendeo, como a retirada de fundos, e para das externas. Um de seus produtos de produção de vídeos no formato MPEG-4, maior sucesso comercial é o software SDC Morphology ToolBox, lançado em O PROJETO 1999 e hoje exportado para mais de 50 países. “Esse software é uma poderosa Segmentação Assistida de Imagens e Vídeos Digitais coleção de ferramentas morfológicas para segmentação de imagens e utilizado no MODALIDADE delineamento de imagens de exames Programa de Inovação Tecnológica médicos”, explica Robert Koo. “O Morem Pequenas Empresas (PIPE) phology ToolBox foi a base de desenvolvimento do ProntoVídeo.” Ao que tudo COORDENADOR indica, o novo software tem tudo para ROBERT LIANG KOO – SDC também ser um produto bem-sucedido INVESTIMENTO comercialmente e tornar-se uma ferraR$ 91.000,00 e US$ 35.000,00 menta importante na produção de filmes digitais. • por exemplo, se parte do objeto, como o nariz da pessoa, não tiver sido destacado –, o usuário interfere no processo, fazendo as correções necessárias, apagando alguns marcadores ou introduzindo novos. No caso do nariz, bastaria que se fizesse um marcador interno nesse ponto e ele seria recuperado na imagem recortada. “Por isso é que a segmentação é semi-assistida e não totalmente automática”, explica Koo. O desenvolvimento da tecnologia foi feito com o auxílio dos pesquisadores Roberto Lotufo, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campi-

SDC

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AGROINDÚSTRIA

Ganhos ambientais e energéticos

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TECNOLOGIA

Projeto inovador de miniusinas propõe a integração total em torno da produção do álcool

U

m ousado projeto fundamentado no conceito de integração agroindustrial pode transformar o álcool da cana-deaçúcar na definitiva substituição do petróleo importado, utilizado para o refino da gasolina e do diesel. Essa é a expectativa dos professores Geraldo Lombardi e Romeu Corsini, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), responsáveis pela concepção de uma rede de Miniusinas de Álcool Integradas, batizadas de Muai. Ainda inéditas no Brasil e no mundo, essas miniusinas são estabelecimentos de médio porte que têm como carro-chefe a produção de álcool combustível. As Muais usam tecnologia já consagradas, com processos regenerativos e recicláveis. São projetadas para produzir álcool, hortifrutícolas, levedura seca usada em rações (veja reportagem na página 80), energia elétrica, além de possuírem espaço para criação de gado. “A Muai é muito mais do que uma simples redução em escala de uma usina sucroalcooleira grande”, afirma Romeu Corsini, professor-titular aposentado do Departamento de Transportes da EESC e co-autor do projeto. “Sua grande inovação é o conceito de integração total, até agora não adotado por nenhum empreendimento do gênero.” Segundo o pesquisador, a miniusina deve produzir 40 mil litros de álcool por dia para ter preço de venda compe-

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titivo com o dos combustíveis derivados do petróleo. Dimensionada para operar em terreno de 4.310 hectares, a Muai irá gerar 131 empregos fixos, sendo 25% deles terceirizados. A tradicional lavoura de cana-de-açúcar é associada ao plantio do sorgo sacarino, uma planta com quase 3 metros de altura da mesma família das gramíneas, que possui colmo (caule) doce e suculento. Com ele será possível elevar para dez a 12 meses o tempo de trabalho anual da miniusina, contra os oito meses dos estabelecimentos convencionais. Na Muai serão produzidas 3.630 toneladas por ano de produtos agrícolas relacionados ao sorgo. Os colmos da cana e do sorgo produzem o caldo e o bagaço. Do caldo fermentado são produzidas 1.130 toneladas por ano de levedura desidratada e, através do destilador, o álcool e o vinhoto. O vinhoto biodigerido transforma-se em biofertilizante e biogás. Nos 188 hectares destinados à pecuária, serão criadas 2.800 cabeças de gado em regime de semiconfinamento, sete meses em currais e cinco meses fora deles, alimentadas pelos ponteiros da cana e do sorgo acrescidos de outros aditivos protéicos. O bagaço, 40% da palha seca e o biogás (gás natural na entressafra) são queimados numa caldeira para a produção de vapor superaquecido a 450˚C. O vapor aciona um turbogerador de alta potência e eficiência, com saída de 6,36 megawatts (MW) de energia elétrica excedente a um custo de US$ 6,58 o megawatt/hora produzido, que se cons-

tituirão na segunda fonte de receita da Muai. “O projeto privilegia a máxima eficiência termodinâmica, produtiva, ambiental e social dentro do conceito de auto-sustentabilidade”, afirma o engenheiro aeronáutico Geraldo Lombardi, professor-titular do Departamento de Hidráulica e Saneamento da EESC. Rede de usinas - Para provar a viabili-

dade econômica da Muai, Lombardi e Corsini promoveram, com o apoio financeiro da FAPESP, a visita do professor Pedro Antonio Rodríguez Ramos, do Instituto Superior Politécnico José Antonio Echevaría, de Havana, Cuba, pelo período de um ano. Ramos concluiu, em novembro passado, o projeto Avaliação Econômica de uma Miniusina de Álcool Integrada. Ele apontou que, para tornar possível a substituição dos 600 mil barris de petróleo importado diariamente pelo Brasil, seria necessário instalar 3.870 Muais no país. Juntas, elas produziriam 155 milhões de litros de álcool por dia, uma potência térmica equivalente à do petróleo importado, e tornariam disponíveis 24.600 MW de eletricidade excedente, o equivalente a pouco menos de duas hidrelétricas do porte de Itaipu. Os estudos demonstraram ainda que o investimento, estimado em US$ 12,1 milhões, apresentaria tempo de retorno em 6,9 anos, o mesmo de uma usina convencional que produza exclusivamente 200 mil litros de álcool por dia. Além de todas as vantagens econômicas e sociais, como a geração de 507


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RECEPÇÃO DE MATÉRIA PRIMA

LAVOURA DE CANA E DE SORGO

Corte mecanizado

EXTRAÇÃO DO CALDO

PicadorDesfibrador

Difusor Caldeira

Colmo

Enfardamento de bagaço Palha seca

Ponteiros Folhas verdes

Caldo

Currais

Evaporador

Secador

Caldo

Caldo flotado

TRATAMENTO DO LODO

Resfriador

Mosto

Dornas

Produção de energia Produção de álcool Produção de ração, alimentos e couro Tratamento da levedura Produção de biofertilizante

mil empregos fixos, a economia anual de US$ 5,5 bilhões com importação de petróleo e a geração de US$ 5,8 bilhões em impostos por ano, a Muai também tem inegáveis benefícios ambientais. A miniusina atende aos requisitos do Protocolo de Kyoto no que diz respeito à emissão de gases. “Ao substituir os derivados de petróleo, ela evitará a emissão cumulativa de quase 2 milhões de toneladas de dióxido de carbono por dia, gás agravante do efeito estufa e da qualidade de vida na Terra. Retira, ainda, da atmosfera 197 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) pela cana em contínuo crescimento”, explica Lombardi. Para completar, 680 hectares do terreno de cada Muai, correspondentes a 20% das áreas agrícolas, serão destinados para reservas florestais, atendendo às normas legais de preservação .

BIODIGESTÃO

Hortaliças, Frutas

Biofertilizante Trocador Biodigestor

Levedura

FABRICAÇÃO DE ÁLCOOL

Centrífuga

LAVOURA DE CANA, SORGO E OUTRAS CULTURAS

Vinhoto

Flotador

Lodo filtrado

Tanque de lodo

Cuba

Levedura

Termolisador

Biodigestor

RESERVA FLORESTAL

Levedura seca

Pré-evaporador

Caldo

Lodo

Dejetos

Caldo flotado

Decantador

Regenerador Fundo dorna Biodigestor

Álcool Hidratado

Vinho

Álcool Anidro

COLUNAS DE DESTILAÇÃO

COMERCIALIZAÇÃO

Couro

COMERCIALIZAÇÃO

TRATAMENTO DA LEVEDURA

Aquecedor TRATAMENTO DO CALDO

Cinzas

Leite Carne

Conjunto Turbo-Gerador

Biogás

TRATO COM O GADO

Energia elétrica

Secador Leito Suspensão

Tombador

Vales de fermentação

COMERCIALIZAÇÃO

PREPARO DE MATÉRIA PRIMA

GERAÇÃO DE VAPOR E ENERGIA

TRATAMENTO DE BAGAÇO

COMERCIALIZAÇÃO

Caminhos da integração na miniusina

Vinho

Como funciona - Em função de suas

múltiplas atividades, o fluxograma da Muai é complexo (veja ilustração). A filosofia da miniusina, no entanto, é simples: tudo deve ser reprocessado e reci-

O PROJETO Visita do Professor Pedro Antonio Rodríguez Ramos, do Instituto Superior Politécnico José Antonio Echevaría, para a Avaliação Econômica de uma Miniusina de Álcool Integrada MODALIDADE

Auxílio a pesquisador visitante COORDENADOR

GERALDO LOMBARDI – Escola de Engenharia de São Carlos - USP INVESTIMENTO

R$ 56.181,60

clado. A palha da cana-de-açúcar, por exemplo, é usada na proteção do solo contra ervas daninhas, além de se destinar à produção de vapor para geração de eletricidade. O vinhoto e os dejetos dos animais transformam-se em biogás para queima na caldeira e também em biofertilizante para uso no canavial. O fato de estar ancorado em um ciclo completo de produção energética e agroindustrial confere ao projeto boas perspectivas de implementação. Produtores de cana procuraram os dois pesquisadores para saber mais detalhes. Cuba também pode se beneficiar do conceito de integração total na produção. O professor Ramos voltou àquele país, severamente dependente da importação de petróleo, com o compromisso de apresentar o projeto Muai ao governo cubano. • PESQUISA FAPESP

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TECNOLOGIA

LEVEDURA

Riqueza nas sobras da usina Ital e Copersucar desenvolvem produtos alimentares de resíduos da produção de álcool

O

cheiro não é bom e a aparência ajuda menos ainda: uma suspensão de cor escura e viscosa. Assim fica a levedura (Saccharomyses cerevisiae) depois de usada como fermento para desencadear nas destilarias o início da operação do processamento do álcool da cana-de-açúcar. E o tamanho desse resíduo não é pequeno. De cada litro produzido, sobram cerca de 30 gramas de levedura seca. Se levarmos em conta a produção brasileira anual de álcool, que atinge os 15 bilhões de litros, sobram 450 mil quilos de levedura. Todo esse resíduo de pouco valor nutricional e comercial é destinado à alimentação bovina. A reversão desse quadro – de abundância e aproveitamento medíocre da levedura – começou a ser implementada em 1998 pela Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar) e pelo Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital) em um projeto financiado pela FAPESP dentro do programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE). Os resultados apresentados no início deste ano indicam que a levedura não apenas pode ser aproveitada de forma mais eficaz na ração animal como pode ser uma boa alternativa para a alimentação humana. O projeto, coordenado pelo pesquisador Valdemiro Carlos Sgarbieri, resultou na formulação de quatro substâncias derivadas da levedura: autolisado, extrato, parede celular e concentrado protéi-

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co. Todos esses subprodutos possuem proteínas e podem ser adicionados às massas, aos biscoitos e aos pães, além de uma série de outros produtos alimentícios. São também substâncias ricas em vitaminas do complexo B, micronutrientes e minerais essenciais, como manganês, magnésio, zinco e ferro. Elas podem servir para substituir os aditivos químicos na obtenção de sabor, aroma e coloração de alimentos processados, como as sopas em pó, por exemplo. Na área da indústria farmacêutica, o Japão já retira os ácidos nucléicos presentes na levedura para a produção de medicamentos. Com tamanho potencial, a Copersucar resolveu utilizar melhor a levedura residual das 35 usinas cooperadas, responsáveis por 22% da produção brasileira de açúcar e álcool. “Nosso interes-

O PROJETO Desenvolvimento de Tecnologia Visando o Aproveitamento de Derivados de Levedura em Alimentação Humana e Animal MODALIDADE

Parceria para a Inovação Tecnológica (PITE) COORDENADOR

VALDEMIRO CARLOS SGARBIERI – Ital INVESTIMENTO

R$ 62.651,00 e US$ 18.521,00 (FAPESP) e R$ 596.730,00 (Copersucar)

se foi agregar valor na levedura e buscar usos para a alimentação humana”, explica Karl Heinz Leimer, chefe do projeto de levedura na Copersucar. Produção no campo - A primeira par-

ceria para transferência de tecnologia deu-se com a Usina Santo Antônio, em Sertãozinho, na região de Ribeirão Preto. A usina está se preparando para produzir os subprodutos da levedura. Leimer avalia que o investimento necessário para instalar uma planta industrial com capacidade de processamento diário de 5 toneladas é de R$ 500 mil. Nas usinas, a levedura é utilizada nos tanques onde o mosto, que é o meio de fermentação formado pela garapa e a levedura, é fermentado para depois ser destilado para a produção do álcool. Mas o próprio processo multiplica a produção de levedura a cada ciclo de destilação e sua retirada dos caldeirões, além de aumentar a produtividade na produção do álcool, pode resultar em subprodutos valiosos como mostrou o estudo. “Normalmente, parte da levedura é retirada em cada novo ciclo, num processo conhecido como sangria, no jargão industrial”, explica Sgarbieri. Essa biomassa é lavada para retirada de impurezas e é seca num equipamento chamado spray dryer que faz a secagem igual a utilizada na produção do leite em pó. O processo posterior é a autólise, quando o material é deixado sob agitação mecânica num fermentador por 24 horas. Nessas condições, as enzimas hi-


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drolíticas da própria célula rompem as paredes celulares e liberam seus componentes que formam o autolisado. Depois, essa substância é levada à centrífuga para a separação de dois outros subprodutos, a parede celular e o extrato. O quarto produto, o concentrado protéico, é produzido por um outro processo. As células de levedura têm suas paredes rompidas por um processo mecânico e as proteínas, depois de separadas dos fragmentos de parede celular por centrifugação, são solidificadas pela adição de substâncias ácidas. A parede celular em pó pode ser usada em sopas como espessante e misturada a farinhas de trigo e de milho para a produção de snacks (salgadinhos industralizados).

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Levedura integral Seca e em pó após ser usada na produção de álcool

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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Concentrado protéico Mais valor nutritivo para os biscoitos

Usos e vantagens - O extrato poderá

ser comercializado em pó ou em pasta para dar sabor de carne em sopas. A venda do extrato pode render até R$ 8,00 o quilo, enquanto o preço atual, com a levedura sem beneficiamento, alcança o valor de R$ 0,80 o quilo. Extrato de “Com o produto processado, é Levedura possível alcançar no mínimo o do- Tempero em bro do valor obtido hoje, ou até saladas e maioneses dez vezes mais para outros usos na alimentação humana ou em produtos farmacêuticos”, diz Sgarbieri. Os usos dos subprodutos da levedura abrangem vários segmentos da indústria alimentícia. O extrato e o autolisado, por exemplo, foram testados na fabricação de salsichas substituindo e superando em sabor e aroma a proteína de soja. Nos biscoitos salgados, os mesmos subprodutos foram testados e os resultados apontaram para um sabor mais agradável e uma textura melhor. O mesmo teste foi feito com macarrão. Parede celular Os melhores resultados de aceitação Espessante na aconteceram com a massa com espinasopa e fre, de coloração já alterada. ingrediente Sgarbieri acrescenta que o extrato nos salgadinhos também foi testado, com bons resultados, na formulação de temperos para saladas e maioneses. O teste foi feito com a distribuição de amostras nas casas de uma região de Campinas. Esse trabalho marca um novo passo para a incorporação de inovações no setor sucroalcooleiro. Também ganha a indústria alimentícia, que terá, em breve, aditivos extraídos de uma biomassa antes desprezada e de pouco valor. •

Autolisado Supera em gosto e aroma a proteína de soja nas salsichas PESQUISA FAPESP

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EMBRAPA

TECNOLOGIA

AGRONOMIA

Terra sem fogo No Pará, em vez de queimada, a capoeira é triturada e vira adubo

A

partir de uma série de experimentos conduzidos durante uma década numa das mais antigas áreas de cultivo do Pará, a Zona Bragantina, distante 120 quilômetros de Belém, pesquisadores da Embrapa da Amazônia Oriental e das universidades alemãs de Göttingen e Bonn desenvolveram um eficiente sistema alternativo de preparo da terra que eleva a produtividade da agricultura familiar na região sem aumentar os danos ao ambiente. Em linhas gerais, o método propõe uma alternativa à tradicional e nociva prática de queimada da capoeira, nome popular dado à vegetação secundária que cresce espontaneamente numa área desmatada, e a adoção de duas medidas. A primeira recomenda, em vez de queimar a capoeira, triturála com o auxílio de uma máquina especial acoplada a um trator e usar essa vegetação retalhada (mais rica em nu82

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trientes do que as cinzas da queimada) para construir uma cobertura vegetal morta, chamada de mulch, sobre a terra a ser usada no plantio. Essa prática se torna ainda mais eficiente se for precedida do enriquecimento da capoeira nativa por meio do cultivo de árvores de crescimento acelerado, capazes de se desenvolver mais rapidamente do que as espécies originais da região. Dessa forma, cresce ali em menos tempo uma vegetação secundária reforçada, que, se triturada de forma adequada, vai gerar uma cobertura morta com ainda mais nutrientes. Seis comunidades do município de Igarapé Açu, de um total de 50 comunidades na região, testam o novo método em propriedades de, no máximo, 25 hectares. Os resultados são animadores. Pelo sistema convencional, os colonos só podiam utilizar cada parcela de sua propriedade para o cultivo de milho e mandioca, as principais culturas da região, a

cada três anos. Eles plantavam um ano e deixavam a terra “descansar” durante três ou quatro anos, tempo necessário para a capoeira crescer e atingir uma biomassa mínima que justificasse a adoção da queimada “preparatória” do solo para a próxima safra. Eficiência produtiva - O abandono do

fogo como prática agrícola e o emprego combinado da trituração mecânica da capoeira enriquecida reduziram o tempo de pousio da terra para dois anos. Ou seja, o colono adota uma conduta mais limpa do ponto de vista ambiental e ainda alcança maior eficiência econômica na exploração de sua propriedade. “Isso é bom para a natureza e para o bolso do agricultor, que, com uma terra mais produtiva, não sente pressão para deixar o campo e migrar para a cidade”, diz a agrônoma Tatiana de Abreu Sá, da Embrapa, uma das coordenadoras do Projeto Capoeira, uma iniciativa conjunta dos cen-


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FOTOS EMBRAPA

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À esquerda, a mata com árvores de rápido crescimento. Acima, o triturador em ação, ao lado, o material picado no solo e a plantação

tros de pesquisa do Brasil e da Alemanha. “Precisamos agora encontrar meios para que os pequenos produtores tenham acesso a essa tecnologia.” A Embrapa, junto com os alemães, desenvolveu protótipos de máquinas trituradeiras, como a Tritucap, que podem realizar o trabalho de corte e trituração da capoeira. Mas a máquina é cara para ser adquirida: custa de R$ 20 mil a R$ 30 mil. Para os agricultores, a saída seria formar cooperativas para comprar a máquina ou alugá-la de alguma entidade que viesse a adquirir o trator. A adoção do novo método compensa. Dados da Embrapa mostram que a técnica traz vantagens para o pequeno produtor. Além de reduzir a duração do período de pousio, permite que o rendimento das culturas agrícolas não sofra muitas oscilações nos anos de safra. A queimada provoca a perda de mais da metade dos nutrientes estocados na vegetação, em especial de nitrogênio, e costuma dar a ilusão de ser uma prática boa para a agricultura em razão de aumentar no curtíssimo prazo a produtividade do solo. Isso ocorre porque uma pequena quantidade de nutrientes da capoeira queimada se ar-

mazena nas cinzas que recobrem a área a ser plantada. Mas esse resto de nutrientes é consumido de forma muito rápida pela terra, que, em seguida, cai muito de rendimento. “Ao preparar a terra com a cobertura vegetal triturada, os nutrientes, além de serem mais abundantes, permanecem mais tempo disponíveis no local escolhido para o plantio”, diz Tatiana. Outra vantagem é conferir ao agricultor maior flexibilidade na escolha do momento ideal para preparar a terra. Pelo método antigo, esse serviço só podia ser feito nos meses mais secos, geralmente entre julho e setembro, quando as queimadas imperam na Amazônia. Seqüestro na atmosfera - Do ponto de vista ambiental, os ganhos também são palpáveis. O abandono das técnicas rudimentares de queimada ajuda a diminuir a emissão de fumaça e de gases,

sobretudo de dióxido de carbono, que contribui para o aquecimento exagerado da temperatura da atmosfera terrestre. Existe ainda outro benefício: o enriquecimento da capoeira com espécies de rápido crescimento, como as acácias (Acacia auriculiformis e Acacia mangium) originárias da América Central, aumenta a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, criando um efeito duplo de limpeza do ar da Terra. Isso ocorre porque uma área com vegetação secundária em franco desenvolvimento retira mais dióxido de carbono da atmosfera do que uma capoeira não-enriquecida. Por ora, não há indício de que a introdução de novas espécies de árvores de crescimento rápido em meio à vegetação secundária da região tenha alterado significativamente o ecossistema. Experiências similares estão em teste em outros países tropicais. Na Costa Rica, por exemplo, há pesquisas sobre os efeitos benéficos do abandono das queimadas e a utilização da capoeira triturada como cobertura vegetal morta da terra de cultivo. Na África e na Ásia, o enriquecimento da capoeira nativa para futuro uso como cobertura vegetal triturada também é alvo de trabalhos semelhantes. “A diferença é que a capoeira da Amazônia é mais rica em termos de biodiversidade do que a desses locais”, compara Tatiana. • PESQUISA FAPESP

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FUSÃO

Relação delicada Cada vez mais cientistas utilizam obras de arte em suas análises e artistas lançam mão da ciência para entender suas criações

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E

m 1935, o poeta Fernando Pessoa resumiu as razões pelas quais arte e ciência habitaram mundos distintos por gerações e gerações. Para ele, enquanto a ciência descrevia as coisas como elas eram, a arte descrevia as coisas como elas eram sentidas. À luz do novo milênio, entretanto, o poeta certamente enxergaria um novo cenário, em que ciência e arte passam a ter objetivos comuns. Os sintomas mais evidentes de confluência surgem na academia. Quadros de Picasso e Munch, por exemplo, estão sendo utilizados para compreender melhor a cefaléia. Esculturas e pinturas da Antigüidade servem de material para a história de doenças que causam paralisia facial. Obras do Renascimento são usadas para trabalhos sobre desenvolvimento humano e para investigações a respeito das relações entre cérebro e artes plásticas. Na Itália, o pintor Canaletto é fonte de informação para pesquisadores identificarem o avanço do mar sobre Veneza. Por outro lado,


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REPRODUÇÕES

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O Experimento Científico, de Derby, e o Casamento dos Arnolfini (acima), de Van Eyck, com o detalhe do espelho convexo

histórias em quadrinhos, vídeo-arte e peças de teatro têm sido criadas a partir de pesquisas em química. Em Chicago, o artista plástico e professor brasileiro Eduardo Kac criou uma coelhinha branca transgênica como uma espécie de instalação artística. “Há uma disposição de cientistas e de artistas para que haja a fusão entre arte e ciência. Nos últimos séculos, o cientista ficou muito restrito em sua área de atuação. Com isso, perdeu a oportunidade de ampliar o conhecimento para outras esferas. Estávamos atados à visão cartesiana dicotômica, que opõe razão à emoção”, diz Norberto Garcia-Cairasco, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Com apoio da FAPESP, Garcia-Cairasco dirige e desenvolve pesquisas em Neurociências no Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental da USP. Dublê de artista plástico e cientista, ele tem se dedicado a investigar a relação do cérebro com as artes visuais. E encontra espaço para

suas abordagens. Para ele, o mundo experimenta hoje uma espécie de neo-renascimento, em que cientistas e artistas admitem as contribuições que a união dos dois campos podem oferecer para o desenvolvimento mútuo. Potencial - Uma evidência de que esse

movimento é crescente é a criação do Art Science Research Laboratory, fundado por ninguém menos do que Stephen Jay Gould, professor de Harvard, falecida no mês passado. Sua proposta era que arte e ciência deveriam unir todo seu potencial para o desenvolvimento de métodos comuns, do pensamento crítico, da busca pela inovação e de uma perspectiva histórica. O trabalho de Garcia-Cairasco caminha nessa direção, unindo uma perspectiva histórica com novas propostas de pesquisa e produção artística. “Procuro identificar como os artistas viram o cérebro ao longo dos séculos. Essa é uma região mítica e misteriosa”, comenta. A importância dessa aproxima-

ção pode ser resumida em dois exemplos de peso: Leonardo Da Vinci e Michelangelo Buonarroti, ambos gênios da arte renascentista. “Muitas das versões, algumas magníficas, outras nem sempre precisas, sobre o cérebro, nervos e músculos foram conseqüências desse período da história da humanidade. Grandes obras da anatomia aconteceram nessa época e subseqüentes”, observa.“Talvez Vesalius não teria sido tão reconhecido como anatomista, não fosse pela contribuição importante do ateliê de Ticiano na sua obra”, diz. No ano passado, o debate sobre esse tema se tornou acirrado com o lançamento do livro O Conhecimento Secreto, do pintor inglês David Hockney. Na obra, o autor propõe que, no século 15, pintores usavam lentes, espelhos côncavos e câmeras escuras para obter maior realismo nas pinturas. Detalhe: eles faziam isso antes de todos e no mais absoluto sigilo. Entre os adeptos dessa técnica estão nomes relevantes, como Van Eyck, Caravaggio, Lotto, Vermeer e Ingres. PESQUISA FAPESP

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A tese de Hockney vai na contramão da visão de historiadores, que apontavam o realismo das pinturas flamenga e renascentista à invenção da perspectiva e da tinta a óleo. Os recursos descritos pelo pintor inglês, entretanto, teriam criado condições para a representação com fidelidade de profundidades, brilhos, sombras e volumes. Logo após o lançamento do livro, a gritaria foi geral. Muitos críticos consideraram a teoria de Hockney uma mácula à imagem desses gênios. Mas a resposta de Hockney salientou como a parceria arte-ciência pode ser bem-vinda. Segundo ele, instrumentos ópticos não fazem arte. As lentes, os espelhos e a câmara escura eram tão e somente ferramentas para esses artistas. Sua defesa às acusações é que ele apresenta uma tese em que artistas descobriram instrumentos antes de todos. Neurociências - Garcia-Cairasco não

entra na discussão. Mas acredita que a união de ferramentas científicas e artísticas é fundamental para o desenvolvimento dos dois campos. Para ele, o avanço nas técnicas eletrofisiológicas e da biologia molecular, por exemplo, tem trazido o paradoxo entre o conhecimento mais profundo e sofisticado em modelos de microuniversos neurais e o da aparentemente inviável tarefa de colocar as partes coerentemente no seu lugar. Uma proposta de solução está na fusão de arte e ciência. “É preciso que pesquisas em neurociências contemporâneas destaquem de maneira clara a necessidade de novas associações artista-cientista, com o objetivo de permitir uma interpretação mais realista das dissecações moleculares, por analogia com as dissecações da renascença”, acredita. As ferramentas contemporâneas para os modelos, entretanto, são outras das utilizadas pelos pintores renascentistas. Trata-se do aparato computacional, eletrônico e virtual. “O gigantesco projeto da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, The Visible Human, ilustra a fusão histórica da arte com a tecnologia contemporânea”, sugere. Seu logotipo é uma fusão de uma imagem anatômica de Vesalius com uma de ressonância magnética estrutural. Em seu ateliê, Garcia-Cairasco também trabalha com esse tema e elemen86

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tos. Sua proposta é a conjunção entre desenho digital de natureza e comportamentos humanos e animais, com situações relevantes para as neurociências. Uma obra síntese pode ser Poeta de Gaveta: Inspiração para Estudos Cerebrais, realizada em 1998. “Meu trabalho recupera a idéia renascentista do homem com a natureza só que com novos instrumentos”, avalia. Um outro aspecto da interação cérebro-arte também discutida em seu laboratório é a correspondência entre o desempenho humano em tarefas estéticas em indivíduos com doenças cerebrais. Na investigação, o professor considera dois tipos de universos: os gênios que apresentavam quadro maníaco-depressivos (Tennessee Williams e Erza Pound) e os que sofriam de epi-

lepsia (Van Gogh). A equipe parte de estudos em modelos animais dessa alteração neurológica, o que tem permitido que se estudem analogamente as modificações comportamentais no paciente epilético. Segundo Garcia-Cairasco, a primeira e incontestável constatação das pesquisas nessa área é que essas restrições mentais não comprometeram o desempenho artístico e criativo dessas pessoas. A segunda ainda é uma pergunta. Esses artistas eram gênios pelas patologias que os afligiam? “Estamos todos interessados em saber como o cérebro processa a informação estética e regula a execução de performances artísticas”, explica. Na linha de recuperação histórica, a professora de medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)


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Estudo de Pintura (à esq.), de Vermeer, e Campo San Vitale, de Canaletto: estudos de luz e arquitetura

Maria Valeriana Leme Moura Ribeiro também se utiliza dos renascentistas para desenvolver seu trabalho acadêmico. Ela acaba de escrever o livro Neurologia e Desenvolvimento, no qual aborda a metodologia observacional e qualitativa da criança, segundo grandes mestres da pintura. “O entrelaçamento entre o desenvolvimento humano e suas alterações, no aspecto físico-fisiológico e social e as obras de arte retratadas nos séculos 16 e 17 decorre de observações, análises e correlações envolvendo conceitos e avanços importantes da neuropsicologia”, diz. Perspectivas - Esses pintores tinham como objetivo a busca de um trabalho que reproduzisse a imagem com a maior fidelidade possível, valorizando as pro-

porções. “Os pintores recorriam a profissionais de outras áreas, como matemáticos, para ajudá-los na resolução de problemas referentes a medidas de segmentos corporais, volume muscular, proporções, perspectivas”, fala. Nesse contexto, despontaram nomes como Da Vinci, Gerard David, Michelangelo e Rafael. Todos retratavam o desenvolvimento evolutivo da criança com acuidade e precisão. Para a professora, o procedimento adotado por eles é o mesmo do processo científico. “Eles traçavam objetivos, desenvolviam metodologias”, explica. A partir das instâncias de produção artística, a professora diz que é possível identificar em quadros aspectos importantes para o neurodesenvolvimento, como os reflexos do recém-nascido,

a apreciação das características do crânio e da face, apreensão das características do desenvolvimento motor evolutivo e até observações da comunicação psico-afetiva da mãe com o bebê. O professor de medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Luiz Antonio de Lima Resende também recorreu às artes plásticas para sua tese de livre-docência a respeito da síndrome de Romberg, que provoca a atrofia e deformação de um dos lados do rosto. Em sua pesquisa, Resende identificou que, embora a doença tenha sido documentada apenas no século 19, ela já deveria ter se manifestado muito antes. Sua análise incluiu obras de arte dos séculos 16 e 17. Segundo ele, o primeiro quadro a registrar a doença foi Cristo Encarnecido, de Grunewald, em 1503. Resende aponPESQUISA FAPESP

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Lição de Anatomia, de Rembrandt: pesquisador usa Picasso para mostrar a dor imponderável da enxaqueca

ta, entretanto, que é em Retrato de Gerard Lairesse, de 1665, pintado por Rembrandt Van Rijn, que a síndrome é mais evidente e expressa com precisão. O professor de medicina da USP José Geraldo Specialli é outro cientista que se sentiu seduzido pelas artes plásticas como recurso de pesquisa. Ele tem recorrido a elas para o estudo das cefaléias. Em suas palestras, apresenta reproduções de obras de arte famosas, em que a expressão dos personagens caracterizam as dores de cabeça. “Existem doenças que são identificadas pelo aspecto físico, mas a dor de cabeça não é expressa dessa forma. Mesmo assim, alguns pintores conseguiram reproduzir o desconforto da cefaléia. Os quadros registram o imponderável da dor”, diz. Enxaqueca - Um dos quadros utiliza-

dos por ele é A Mulher que Chora, de Picasso. Segundo o professor, no centro 88

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da mulher pintada há uma mancha branca em ziguezague, uma sensação própria de quem tem enxaqueca. “Antes de uma crise, o enxaquecoso tem esse sintoma”, diz. Assim como Specialli, o professor de bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leopoldo de Meis defende que a união entre arte e ciência é um recurso didático importante. Ele constatou que crianças e adolescentes enxergavam o cientista como um homem solitário.“Essas características eram muito fortes e generalizadas. Não conseguimos descobrir a razão”, afirma. Foi pela preocupação com esse isolamento e ruído na comunicação acadêmica que de Meis procurou lançar mão de recursos artísticos para desvendar o mundo científico. A primeira iniciativa ocorreu com uma parceria do professor com o designer gráfico Diucênio Rangel. Com apoio da FAPESP e da Fundação Vitae,

os dois produziram uma história em quadrinhos, intitulada O Método Científico, que já teve duas edições de 8 mil exemplares cada.“Queria ensinar a ciência de forma bela e emocionante”. O segundo passo foi a criação de uma peça teatral, interpretada por pesquisadores, também batizada de O Método Científico. O espetáculo, apresentado em vários congressos de ciência do país, substitui os antigos slides por dramatizações feitas pelos próprios cientistas. Agora, de Meis está envolvido num projeto de vídeo, chamado Mitocôndria em Três Atos. O trabalho explorou a linguagem cinematográfica com uma exposição didática sobre as mitocôndrias. “Os artistas usaram um fato científico para se expressar com uma linguagem artística”, resume o pesquisador. Para ele, a linguagem artística é importante para introduzir no universo científico mais emoção e criatividade. •


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ANTROPOLOGIA

As pegadas de Macunaíma Pesquisadores da Unicamp refazem a missão de pesquisas folclóricas pelo Norte e Nordeste, organizada por Mário de Andrade, em 1938

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JORGE PALMARI

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mundo de Mário de Andrade era muito maior do que a sua Paulicéia desvairada. Com um espírito de explorador moderno, o autor de Macunaíma tinha como projeto redescobrir o Brasil. Foi em busca desse ideal nacionalista que, na década de 1920, partiu para viagens para o Norte e Nordeste e organizou, em 1938, uma expedição para conhecer os muitos brasileiros do país e registrar as manifestações da cultura popular da região. Essa diligência ficou conhecida como missão de pesquisas folclóricas e revelou uma grande variedade de danças e músicas típicas. Agora, mais de 60 anos depois da viagem de Mário, pesquisadores da Universidade Estadual de CampiBordadeira: tradições populares sobreviveram ao tempo nas (Unicamp), liderados por tinha sentido, mas não em sua totalidano Daminello, cineasta que particiCarlos Vogt, decidiram refazer a missão de. Segundo a pesquisa, os meios de pou com Jorge Palmari da segunda para compreender o que teria ocorricomunicação de massa influenciaram expedição por meio do Laboratório do com essas expressões culturais. a cultura popular, mas deixou muitas de Estudos Avançados em Jornalismo Com apoio da FAPESP, a nova exbrechas para sua preservação. Na verda Unicamp. “Hoje em dia, as manipedição se propôs a verificar se as tradidade, verificaram-se poucas mudanças festações populares adquiriram um ções populares do país teriam sobrevinas formas das manifestações. As altecaráter mais turístico. Não são mais vido ao tempo, em especial ao impacto rações de maiores proporções ocorrerealizadas para um público local. São provocado pelos meios de comunicaram na função dessas expressões da promovidas para atrair divisas de um ção. “Quando Mário de Andrade orgacultura popular. público de fora.” nizou a primeira expedição, havia a “Na expedição de 1938, não havia Para Carlos Vogt, se na primeira expercepção de que o rádio poderia comtelevisão e o rádio ainda não era um pedição as manifestações funcionavam prometer as manifestações culturais em meio de massa. Por isso, as manifestacomo um ritual de equilíbrio social pasua forma original”, diz Vogt. ções tinham a função de divertir as cora as comunidades, agora elas são penA nova missão de pesquisas folclómunidades locais”, explica Luís Adriasadas como um evento midiático. “O ricas constatou que o receio de Mário


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melhor exemplo é o Carnaval”, resume o professor. “A televisão acaba definindo o que significa diversão e provocando um sentimento de que o que não está na telinha só pode ser coisa de velho, de matuto. Passa a ser vergonhoso, entre os jovens, participar dos grupos de cultura popular”, analisa. O mesmo roteiro - Assim como a expedição de 1938, a nova missão percorreu os mesmos seis Estados do Brasil – Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará. O trajeto seguiu, praticamente, o mesmo roteiro estabelecido por Mário

REPRODUÇÃO

Mário de Andrade no navio Netuno

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em sua segunda viagem ao Norte e Nordeste, realizada em 1928. Foi a partir das observações dessa expedição que ele escreveu o livro Turista Aprendiz. “Nessa época, havia uma motivação no Brasil e no mundo de compreender as influências das manifestações populares. Vivíamos num ideal nacionalista. Não por acaso, o modernismo tinha como uma das diretrizes voltar-se para questões nacionais”, explica Vogt. A obra Macunaíma – O Herói sem Caráter nasceu justamente da proposta antropofágica de Oswald de Andrade e reflete a procura da igualdade da cultura brasileira com as demais, consumindo o melhor das influências externas. Na expedição de 1938, o chefe da missão foi Luis Saia, arquiteto e amigo do escritor. Ele foi acompanhado por Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira. Embora tenha idealizado o projeto, Mário não participou da viagem. Os quatro

integrantes da equipe tiveram de gravar, fotografar, filmar e estudar as melodias que homens e mulheres usavam para trabalhar, se divertir e rezar em apenas quatro meses, de fevereiro a julho de 1938. Para esse período, foi preciso uma bagagem bastante pesada. Fora as roupas dos expedicionários, havia ainda seis malas e três caixas com o material de pesquisa, como gravador, amplificador, agulhas, microfones com cabos e tripé, válvulas, 237 discos, gerador, pré-amplificador, blocos de papel, cadernetas para anotação, fones, pick-up para gravador, 118 filmes para fotografia, 21 filmes para cinematografia, câmara fotográfica com filtros e lentes, aparelho cinematográfico com lentes e pastas de couro para transporte dos discos. Boa parte do material foi utilizada na expedição, apesar das dificuldades para seu aproveitamento adequado. Para garantir um maior grau de autenticidade, o grupo de Mário desenvolveu uma metodologia de captação das informações. Primeiro, assistiam ao ensaio da peça, momento em que obtinham dados para que a gravação ocorresse com tempo de duração certo, e a disposição dos microfones, a fotografia e a filmagem fossem feitas de forma adequada. Esse recurso facilitava também a priorização de perguntas a serem feitas para os integrantes dos grupos populares. Mas nem sempre as coisas corriam bem. Gravar ao ar livre era tarefa árdua, sobretudo em lugares onde a energia elétrica era escassa. Para efeito de comparação, a expedição de Vogt captou cerca de 65 horas de imagens e sons com equipamentos digitais. O material recolhido - Apesar do esfor-

ço dos missionários, a expedição de 1938 não foi concluída. Mário de Andrade foi deposto de seu cargo de diretor do Departamento de Cultura e a viagem foi interrompida. Mesmo assim, o material recolhido foi enorme, totalizando cerca de 10 mil peças. Foram 20 cadernetas de campo, 168 discos 78 RPM, 1.066 fotos, nove filmes e 775 objetos. Havia fartura de documentos, mas foram publicados apenas cinco volumes sobre as manifestações populares em Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro. Os temas escolhidos foram xangô, tambor de mina e tambor de crioulo, ca-


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timbó, babassuê e chegança de marujos. Ficaram de fora os documentos sobre bumba-meu-boi, reis de congo, reisado, caboclinho, cambinda e praiá. Mas, embora a pesquisa fosse extensa e com alguns volumes publicados, a missão de 1938 tornou-se quase sem aproveitamento por causa da má conservação e da organização dos documentos ao longo dos anos. “Em vez de estudos completos, a maior parte do material coletado compõe-se de peças soltas, pequenas amostras de grandes manifestações culturais”, comenta Vogt. A proposta da nova pesquisa, portanto, foi produzir registros atuais dessas mesmas manifestações e viabilizar análises realizadas por especialistas e pesquisadores. “A idéia era complementar o material de 1938”, explica. Em 1997, foi feita uma primeira viagem para contato com os grupos e, em setembro de 1997, os pesquisadores partiram para uma viagem de três meses, com equipamentos de som e imagem. Parte do material filmado foi usada para o documentário Missão de Pesquisas Folclóricas, para a TV Cultura. Numa segunda etapa, a nova expedição registrou o trabalho durante o Carnaval de Recife, em 2000, a mesma manifestação que a equipe da missão de 1938 assistiu. Depois, em junho, julho e agosto, foram documentadas as festas do ciclo junino em São Luís do Maranhão e em Belém, também repetindo o circuito da missão. No Natal, foram realizados novos registros das festas desse ciclo, numa viagem ao Recife e à Paraíba.

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“O Mário de Andrade tinha uma visão de que a cultura era dinâmica e que o trabalho da expedição não deveria ser um registro para efeito museológico. Ele tinha como objetivo perceber as transformações da cultura. Acreditava que a cultura era um processo, era algo dinâmico”, analisa Vogt. “Para o Mário as Um registro das transformações da cultura

O PROJETO Missão de Pesquisas Folclóricas MODALIDADE

Linha regular de auxílio à pesquisa

CARLOS VOGT – Lab. de Estudos Avançados em Jornalismo/Unicamp INVESTIMENTO

R$ 55.687,50

JORGE PALMARI

PESQUISADOR

manifestações populares não iriam desaparecer propriamente, elas iam ser transformadas”, prossegue. O canto que desapareceu - Na nova ex-

pedição, a única forma de expressão que não pôde ser revista foi a de cantos de trabalho, que desapareceu. “Havia várias formas de canto de trabalho, na casa de farinha, entre os carregadores de pedra e de piano. Havia até toadas dos pedintes. Hoje, a nova característica das atividades econômicas deve ter acabado com elas”, diz Daminello. Sobre os cantos de trabalho, Mário de Andrade comentou em seu livro Danças Dramáticas : “Até cantos de trabalho, tão explicáveis por si mesmos, se mesclam de misticismo. As famosas cantigas de carregar piano, entre nós, não vêm, para o indivíduo popular, da precisão de unanimizar a andadura coletiva dos carregadores, mas de que o canto obriga o instrumento a permanecer afinado”. Já na missão de 1938, os cantos de trabalho estavam em fase terminal. A equipe chegou a encontrar um grupo que se lembrava de algumas melodias usadas no trabalho. Mas, na primeira iniciativa de gravar os cantos, não obteve sucesso, pois os trabalhadores não conseguiam executar a melodia sem um piano. Só depois de providenciado o instrumento, as gravações foram feitas. Mesmo com a morte dos cantos de trabalho, Vogt considera que as manifestações populares resistiram mais às transformações da sociedade do que a música erudita e da elite. A resposta pode estar no fato de que as pessoas ligadas às formas populares de arte acreditam na preservação de tradições. “Elas ainda estão muito vivas e continuam tendo a mesma importância da época de Mário de Andrade”, conclui Vogt. Provando a perenidade das idéias do criador de Macunaíma. • PESQUISA FAPESP

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HUMANIDADES

URBANISMO

A nova terra da garoa que a economia inventou SUZANA PASTERNAK/EQUIPE PRONEX

Projeto mapeia mudanças ocorridas na cidade de São Paulo provocadas pela globalização

Marginal do Rio Pinheiros: novo centro do setor terciário do município

A

partir do final da década de 80, com a abertura comercial, a implantação de novas tecnologias e modelos de gestão, a economia paulista foi impelida a reestruturar a indústria, o comércio e os serviços. A crescente liberalização, integração e a internacionalização das economias – processo conhecido pelo nome genérico de globalização – provocou importantes transformações que repercutiram na organização dos espaços urbanos no município de São Paulo. Esse processo possibilitou a dispersão dos lugares de trabalho, o declínio de áreas industriais tradicionais, a descentralização de empregos e fábricas, a expansão do setor terciário. A pesquisa Territorialidades da Globalização em São Paulo, coordenada por Antonio Cláudio Moreira Lima e Moreira, do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da 92

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Universidade de São Paulo (FAU/USP), procura conhecer melhor as manifestações territoriais da globalização na cidade. Além de Moreira, a pesquisa tem a participação de mais três docentes da FAU: Maria Cristina da Silva Leme, Suzana Pasternak e João Sette Whitaker. Realizada em parceria com a Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo (Sempla), a pesquisa faz parte do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP. Na primeira fase, foram sistematizadas informações disponíveis sobre o tema. Constatou-se uma diminuição das áreas ocupadas pela grande indústria, com forte retração do emprego; um considerável crescimento do setor terciário, movido pela reestruturação do setor industrial e pelos novos empreendimentos gerados pelos trabalhadores desempregados como estratégia de sobrevivência. Um novo tecido industrial surgiu, fragmentado, disperso e mesclado com usos residenciais e de serviços.

Em relação à habitação, o loteamento irregular, a casa própria e a autoconstrução – formas que governavam a localização da população de baixa renda entre 1940 e 1980 – perderam força. Hoje, o que mais cresce são as favelas na periferia. De 1940 a 1980, a cidade era descrita a partir da dualidade entre centro e periferia. Atualmente, novas hipóteses mostram que essa dualidade parece se fragmentar, segundo Suzana Pasternak. “A estrutura ainda mantém os pobres longe do centro, mas nessa nova forma os grupos sociais estariam mais próximos fisicamente, apesar de separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não interagir em espaços comuns”, diz. “Exemplos que descrevem o que poderia ser a nova segregação são visíveis no Morumbi, onde convivem, separados por muros e grades, favela, prédios populares, residências e prédios de luxo.”


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A Marginal do Rio Pinheiros consolidou-se como novo centro do setor terciário avançado da cidade. Dois circuitos de comércio coexistem: os shopping centers, em franca expansão – que servem às classes mais abastadas – e o comércio de rua, para os pobres, dispostos ao longo dos corredores de transportes coletivos. A partir desse mapeamento, definiu-se um elenco de questões que serão estudadas na segunda, das três etapas que compõem o Programa de Pesquisa em Políticas Públicas. Na primeira delas foi estabelecida a metodologia, que é desenvolvida na segunda e seus resultados são implementados na terceira, pelo órgão público parceiro, a Sempla, nesse caso. A primeira etapa foi realizada entre fevereiro e outubro de 2001. A Sempla forneceu técnicos e dados, num valor estimado de R$ 84 mil, enquanto a FAPESP investiu R$ 13,8 mil. Utilização do espaço - A segunda etapa começará nos próximos meses e deve durar um ano. Vila Anglo, em São Paulo: “Como o projeto envolve a uni- dos anos 80 para cá, as favelas são versidade e um órgão público, ti- as que mais crescem na cidade vemos que conciliar os tempos das do sistema produtivo e corrijam seus duas instituições, que são bastante difeefeitos perversos. rentes. O órgão público deve se submeEntre os processos cujo conhecimento ter ao calendário político, segue uma lóé necessário para otimizar políticas de ingica muito diferente daquela que ordena tervenção, estão o conhecimento da tera universidade”, diz Maria Cristina da ritorialidade do parque industrial paulisSilva Leme. Articular essas lógicas não é tano, ou seja, sua localização, evolução, uma coisa simples, é preciso levar em tendências e a adequação da legislação; conta as particularidades dos dois lados. “No caso da pesquisa, a mudança de governo na prefeitura atrasou o início do O PROJETO trabalho, nos obrigou a rever a composição da equipe de pesquisadores.” Territorialidades da Globalização em São Paulo Três eixos orientam o estudo dos impactos da globalização no espaço urMODALIDADE bano paulistano: os efeitos de desindusPrograma de Pesquisa trialização, a criação de novos centros e em Políticas Públicas a exclusão social. “Queremos compreender os processos que influem sobre o COORDENADOR ANTONIO CLÁUDIO MOREIRA LIMA mercado e condicionam a ocupação e E MOREIRA – Faculdade a utilização do espaço”, explica Antonio de Arquitetura e Urbanismo da USP Cláudio Moreira. Ele diz que a compreensão é fundamental para orientar a INVESTIMENTO discussão e a elaboração de políticas R$ 5.571,72 públicas que apóiem as transformações

SUZANA PASTERNAK/EQUIPE PRONEX

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o estudo das características dos circuitos de distribuição presentes na cidade – comércio e serviços –, avaliando a adequação das zonas comerciais definidas pela legislação municipal às novas territorialidades do setor terciário; a análise do problema da desigualdade socioespacial em São Paulo, que completa uma nova visão da estrutura urbana da cidade; a investigação sobre o impacto das ações do poder público sobre a estrutura urbana, identificando nexos entre globalização e as ações do poder público municipal.

Osaka, Japão - Um dos aspectos inovadores da pesquisa é a articulação entre a reestruturação econômica e a exclusão social. “Isso permite pensar problemas como as diferenças entre favelas da região da Avenida Luís Carlos Berrini e da Billings, ambas na Zona Sul de São Paulo. Elas têm inserções urbanas muito distintas, com possibilidades de emprego diferenciadas para seus moradores e repercussões diferentes no que diz respeito à violência”, diz Maria Cristina. “Conhecer o perfil das novas atividades econômicas e sua cultura é fundamental.” A coleta seletiva de lixo, forma de sobrevivência precária, é um bom exemplo: se for organizada, será mais eficiente e rentável. Maria Cristina apresentou a primeira fase da pesquisa no Japão, entre fevereiro e março. Convidada pelo Japan Center for Area Studies, do National Museum of Ethnology, em Osaka, ela viajou com o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa e do Centro de Cooperação Internacional da USP. “Osaka é uma cidade muito diferente de São Paulo e esse distanciamento permitiu recolocar sob outro ângulo certas questões da pesquisa, como a segregação socioespacial. A distribuição de renda é excelente, a pobreza é quase inexistente e é recortada por questões culturais”, afirma a pesquisadora. Em Osaka, não há a noção de centro e periferia, dado clássico da metrópole ocidental. Tudo está misturado: comércio, indústria, residências de classes sociais diversas, até a agricultura penetra no espaço urbano. • PESQUISA FAPESP

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Memórias da escola Projeto organiza banco de dados para arquivar políticas públicas em educação

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om a abertura democrática que ocorreu no Brasil na década de 70, ampliaram-se as oportunidades de professores universitários e educadores de universidades públicas participarem da gestão dos sistemas de ensino do país. Esses profissionais levaram com eles projetos educacionais inovadores, mas essas iniciativas são políticas locais que ficaram restritas à região onde foram desenvolvidas. Foi para resgatar, documentar, discutir e possibilitar acesso público a essas informações que os professores Celso de Rui Beisiegel e Romualdo Portela de Oliveira, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), elaboraram o projeto temático: Construção de Banco de Dados sobre Experiências de Professores da Universidade Pública na Administração da Educação Pública das Últimas Décadas. Orientados pelos dois professores, sete alunos percorreram vários Estados do Brasil coletando e registrando todo tipo de informações disponíveis – tanto em gestões estaduais como em municipais – sobre as atividades de professores em universidades públicas na elaboração e na execução de políticas educacionais. Levantaram documentos, entrevistaram educadores e promoveram seminários com a participação desses professores a O educador Paulo Freire: mudando a estrutura da autonomia das escolas

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fim de entender o trabalho que desenvolviam e debater a sua importância. O resultado foi a construção de um banco de dados eletrônico que já conta com o registro de mais de 40 experiências de administrações públicas de ensino. O professor Romualdo Portela criou uma estrutura de registro que permite a atualização permanente desses documentos, a inserção de novas experiências e a consulta por diversos critérios. “Todo esse material está disponível na homepage da Faculdade de Educação para consulta pública. Qualquer pessoa pode consultá-lo por data, administração, Es-

tado, região do país ou tema”, explica o professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da FEUSP.“A intenção é criar um acompanhamento mais sistemático dessas políticas e fornecer suporte para qualquer outro tipo de pesquisa.” A FAPESP financiou o projeto concedendo cinco bolsas de iniciação científica para os alunos do curso de graduação e mais duas bolsas de capacitação técnica para o aperfeiçoamento dos alunos de pós-graduação. A pesquisa de campo durou dois anos e meio e teve início em 1º de janeiro de 1999. O ponto de partida foi a elaboração de uma lista que selecionou previamente educadores que se envolveram em atividades de direção de políticas públicas de ensino a partir de 1982. “Relacionamos vários colegas que já ocuparam ou ainda ocupam cargos de direção, principalmente nos níveis federal e estadual”, diz o professor Beisiegel. “Mas no trabalho de campo descobrimos trabalhos muito bons nos governos municipais também.” Para uniformizar a coleta de informações, foi elaborado um extenso questionário para ser respondido pelos entrevistados. O roteiro da entrevista contemplou os seguintes pontos: dados gerais e diagnósticos disponíveis sobre a situação do ensino público na época e na região considerada; levantamento das primeiras propostas de intervenção; funLEONARDO CASTRO/AE

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damentação e histórico das propostas apresentadas; prioridades estabelecidas; processo de desenvolvimento dos trabalhos; relacionamentos com os agentes políticos; problemas enfrentados; recursos disponíveis para realizar o trabalho; levantamento da documentação produzida; levantamento da cobertura da imprensa e avaliação do trabalho final.

B

eisiegel explica que a idéia de construir esse banco surgiu a partir da criação, em 1997, do Centro de Estudos e Pesquisas de Políticas Públicas em Educação. O centro foi criado por professores da área temática “Estado, Sociedade e Educação”, da FEUSP, com o objetivo de promover e incentivar a elaboração de pesquisas nessa área. “Mas, antes de promover a pesquisa, a intenção do centro era resgatar o papel importante que muitos pesquisadores tiveram quando começaram a se reunir – durante a ditadura militar – para discutir os rumos que poderia tomar a educação no Brasil”, conta Beisiegel.“Essas reuniões acabaram tornando-se centros de discussões que depois, com o fim da repressão, contribuíram para fortalecer os institutos de estudo e pesquisa.” Esse foi o motivo da escolha do ano de 1982 como base, para dar início ao levantamento dos dados. Os pesquisadores explicam que as eleições realizadas a partir da década de 80 abriram a discussão sobre a gestão pública da educação para o meio acadêmico, o que significou considerável melhora na qualidade das propostas de intervenção. “O Brasil vinha de décadas muito difíceis do ponto de vista das políticas educacionais. Em um período de intenso crescimento populacional, o poder público estendeu a oportunidade de acesso à escola a praticamente toda a população escolarizável, mas não investiu os recursos necessários para enfrentar essa expansão do atendimento”, explica Beisiegel. O professor acrescenta ainda que a escola pública brasileira atravessou um doloroso processo de sucateamento. O ensino público passou a ser considerado “o ensino dos pobres”, a opção daqueles pertencentes às camadas mais baixas da população, que não podiam ter acesso a outro serviço de melhor qualidade. Foi a partir da década de 70 que pesquisadores, educadores e intelectuais

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O PROJETO Construção de Banco de Dados sobre Experiências de Professores da Universidade Pública na Administração da Educação Pública das Últimas Décadas MODALIDADE

Projeto temático COORDENADORES

CELSO DE RUI BEISIEGEL e ROMUALDO PORTELA DE OLIVEIRA – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo INVESTIMENTO

R$ 74.150,00

inseriram em sua pauta de discussão a urgente intervenção para promover a universalização da escolaridade básica e, principalmente, a melhoria da qualidade de ensino que se estendia às classes pobres. “Esse processo só ganhou força com a abertura democrática”, diz Beisiegel.“Os acadêmicos que discutiam as políticas de intervenção necessárias puderam efetivamente implementá-las.” Algumas administrações foram priorizadas na pesquisa por serem consideradas exemplares para o debate em suas determinadas áreas. Uma delas é a administração de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo, entre 1989 e 1992. “Em 15 de novembro de 1988, o Partido dos Trabalhadores ganhou as eleições municipais de São Paulo e esse momento é muito marcante”, diz Romualdo Portela. “Um partido popular e de oposição assumia, pela primeira vez na sua história, a mais importante cidade do país.” Paulo Freire - Além do fato de a prefei-

ta ser professora e assistente social, o que contribuiu para que essa administração se tornasse exemplar para o estudo de políticas educacionais foi a escolha do educador Paulo Freire para o comando da Secretaria Municipal de Educação. As mudanças estruturais mais importantes introduzidas na administração de Freire incidiram sobre a autonomia da escola. Foram restabelecidos os conselhos de escola e os grêmios estudantis. O primeiro ato de Paulo Freire foi restaurar o Regimento Comum das Escolas Municipais, abolido pela administração que o antecedeu. Outras políticas de destaque desse período foram a criação dos programas de

alfabetização de jovens e adultos e de formação permanente de professores. Darcy Ribeiro - Outra administração

analisada com profundidade foi o primeiro governo de Leonel Brizola à frente do Estado do Rio de Janeiro. A marca dessa administração foi a criação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), um projeto de Darcy Ribeiro. Os CIEPs são grandes escolas, projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que funcionam como educandários e como centros culturais para as populações da periferia metropolitana. “É uma proposta inovadora, funcional e que serviu de exemplo para outros projetos, inclusive em outros Estados”, explica Portela. Apesar de dar maior atenção e aprofundar melhor as políticas públicas que acabaram servindo de exemplo ou referência para a elaboração de outros projetos (como as já citadas), o trabalho dos pesquisadores não faz nenhum tipo de análise valorativa. O banco de dados registra os trabalhos desenvolvidos, datas e circunstâncias em que foram implantados, os resultados e possíveis desdobramentos que tiveram. Em um ou outro caso, a equipe detectou a replicação de propostas em outros locais e com adaptações. Nesses casos, foram feitas comparações com as propostas originais. Todas as atividades do Centro de Estudos e Pesquisas de Políticas Públicas em Educação passarão a ser registradas, a partir de agora, no banco de dados desenvolvido. Assim como as pesquisas de temáticas específicas desenvolvidas pelos alunos do curso de pós-graduação. A intenção dos professores é que em torno desse arquivo se desenvolva um verdadeiro laboratório de pesquisas sobre o tema.“Nós formamos a estrutura, desenvolvemos um sistema e já arquivamos ali os primeiros documentos”, diz Portela.“A alimentação do banco vai ser feita automaticamente, à medida que os pesquisadores começarem a consultálo e sugerirem novas experiências que possam ser acrescentadas ali.” Analisar, discutir e qualificar cientificamente os projetos já levantados e os outros que serão registrados no banco posteriormente também estão nos planos dos dois professores. “Mas isso já é uma outra proposta de trabalho, independentemente da formação do banco de dados”, avisa Portela. • PESQUISA FAPESP

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RESENHA

Alla Matriciana Em seu novo livro, Lucia Santaella conseguiu uma suma semiótica entro da vasta produção teórica de Lucia Santaella, este livro constitui um marco, não apenas da sua linha de pesquisa como das ciências da linguagem em geral. Esta afirmação seria, ao mesmo tempo, exata e exígua, na medida em que as ciências cognitivas são também arroladas no escrito, em prol de uma interlocução necessária. Apresenta, ainda, uma das mais inspiradas aplicações das categorias de Charles Sanders Peirce. Como resultado, uma magna opera, uma suma semiótica consistente, um trabalho de fôlego amadurecido por anos de estudo e reflexão. Com humildade e orgulho, a autora fala de si antes de entrar no assunto; para introduzi-lo, a coerência do seu percurso é testemunho, e cada um dos momentos relatados consigna mais um degrau na direção de um sistema de conceitos organizados pragmaticamente. Trata-se de um esforço de unificação do conhecimento, destinado a pôr em consonância as três matrizes semióticas fundamentais: a sonora, a visual e a verbal.Elas são responsáveis pela linguagem humana, determinando também a nossa capacidade de raciocínio. Partindo da divisão triádica das linguagens, haveria um número provável de modalidades do pensamento, cuja ratio fica explicitada no decorrer do texto, na utilização das contribuições peircianas de primeridade, secundidade e terceridade, como instrumental. Ora, qualquer sistematização que opere de maneira trinitária permitiria que fosse cotejada com alguma outra configuração similar, mesmo se as convergências só pudessem ser assintóticas. Por este viés, as matrizes tangenciam os registros lacanianos de Real, Imaginário e Simbólico, chegando até a fronteira com a psicanálise, espaço extraterritorial; ali, os processos sígnicos costumam ser considerados numa outra perspectiva, apontando o sujeito que humanizaria suas funções, na tríplice condição de falante, sexuado e mortal. A importância desta obra eleva a semiótica a um novo patamar. Nele, o destaque dado às classificações nada tem de burocrático; antes, há o propósito de formalizar uma lógica, rigorosa o suficiente para dar conta das peculiaridades das linguagens definidas. Quan-

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Matrizes da Linguagem e Pensamento

do é afirmado que o pensar obedece à impressão matricial, avança-se a passos largos na Lucia Santaella precisão de novos saberes. Aqui, neste ponto, deveria Editora Iluminuras começar o diálogo, a argumen431 páginas / R$ 49,00 tação, inclusive a disputa com outros discursos e disciplinas diretamente concernidas. Por exemplo, a filosofia, a comunicação, a pedagogia, mas também a psicologia, obviamente, fora um inevitável aggiornamento epistemológico para todas, à altura do debate. Conseqüências metapsicológicas são previstas. Para as ciências cognitivas, então, será uma verdadeira mão na roda, tendo que arcar com os royalties. Ainda, ele cai como uma luva, em boa hora, para enfrentar os novos desafios. Do século passado ao milênio atual, as linguagens híbridas têm proliferado de jeito exponencial. A tecnologia permite hoje o que antes só acontecia nos sonhos, desordenadamente. Agora, interfaces e penetrações recíprocas desenham a pluralidade do antes impossível. Mas, desde sempre, a arte também pode exprimir, de maneira única e original, a conjunção das três matrizes. Assim, no poético ensaio sobre uma escultura escritural da artista plástica Betty Leirner, Santaella apresenta seu universo teórico em ato. Em seguida, oferece a sugestão de um cartograma exeqüível, junto com algumas sinalizações para ulteriores desenvolvimentos. O futuro que já chegou demanda subsídios para entender a complexidade da experiência que a revolução digital está provocando, em termos psíquicos, sociais e culturais. A trama estética e intelectual das linguagens da hipermídia tem seu lugar específico, atendendo às características de interatividade, multidimensionalidade e arquitetura fluida. Ilustrativo, o CD-ROM de Bairon & Petry é um exemplo cabal da sofisticação dos produtos culturais contemporâneos. Pelos seus quilates, esta edição ganha um relevo ímpar e o prêmio Jabuti recebido há pouco tempo torna público um reconhecimento merecido.

OSCAR CESAROTTO, psicanalista. Professor de Semiótica Psicanalítica na PUC-SP.


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LIVROS

REVISTAS

Descobertas do Brasil

Margem

Editora Universidade de Brasília Angélica Madeira e Mariza Veloso 329 páginas / R$ 34,00

2001 - volume 10 R$ 20,00

A idéia inicial era fazer um grande ciclo de palestras que percorreria o país a fim de desenvolver um retrato do Brasil. O evento não ocorreu, mas o livro é um excelente testemunho da seriedade da tarefa. O estudo se compõe de uma série de artigos que pretende dar conta da intensa diversidade nacional, com os vários “brasis” existentes. Os dois pontos centrais discutem temas ligados ao Brasil colônia e ao Brasil moderno. Entre os articulistas, Marisa Lajolo, Roberto Ventura, Mary del Priore, Lúcia Lippi Oliveira, Willi Bolle, Luiz Tatit, Flávio Goldman, Murilo Fernandes Gabrielli, entre outros.

Erguendo-se pelos próprios Cabelos: Auto-emprego e Reestruturação Produtiva no Brasil Editora Germinal (apoio FAPESP) João Batista Pamplona 366 páginas / R$ 37,00

Mesmo em tempos da chamada globalização, o Brasil ainda mantém estruturas arcaicas de emprego. Este estudo procura analisar como, nesse novo contexto econômico mundial, se pode entender o trabalho informal e o auto-emprego. A questão levantada por João Batista Pamplona é se essa forma de subsistência é alternativa promissora ou precarização da mão-de-obra do país.

A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960 Mercado de Letras (apoio FAPESP) Luís Antônio Contatori Romano 368 páginas / R$ 37,00

A visita do casal existencialista ao Brasil e as várias conseqüências no meio cultural e filosófico do país são o tema deste estudo. Romano discute com profundidade as discussões que precederam a chegada de Sartre e Simone e de que forma as novas idéias do filósofo francês se modificaram com sua visita à Cuba, pouco antes de chegar ao Brasil, e, dessa forma, trouxeram ainda mais lenha para as discussões que eram feitas sobre seu pensamento por aqui. Além disso, há também um curioso relato das andanças do casal por terra nacionais e de como seu teatro foi recebido.

A publicação semestral da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, editada com o apoio da FAPESP, traz neste volume um dossiê sobre os 500 anos do Brasil. O desejo dos articulistas foi oferecer uma visão alternativa seja ao ufanismo de alguns sobre a data, seja ao ceticismo absoluto de outros. A idéia central é, sem preconceitos, descobrir o que, em verdade, temos para pensar o país a partir da efeméride. Entre os vários artigos, textos escritos por Mariza Werneck, Daniel Dubuisson, Luiz Eduardo Wanderley, Maristela Toma, Mara Pardini Bicudo Véras, Josildeth Gomes Consorte e, entre outros, um texto de John Updike.

Revista Brasileira de Ciências Sociais Volume 17 - número 48

A publicaçã da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais faz uma homenagem a Vilmar Faria, morto em novembro de 2001, publicando um artigo inédito (uma aula inaugural do professor de 1992) do sociólogo que foi a alma social do governo FHC: Ciências Sociais: Razões e Vocações. Ainda neste número, editado com o apoio da FAPESP: Partidos, Ideologia e Composição Social, de Leôncio Martins Rodrigues; Políticas do Desperdício e Assimetria entre Público e Privado – Indústria Automobilística, de Glauco Arbix; entre outros.

Brazilian Journal of Physics 2001 - volume 31

Editada trimestralmente pela Sociedade Brasileira de Física, a nova edição da publicação traz os seguintes artigos: Energy Spectrum and Eigenfunctions through the Quantum Section Method, de R. Egydio de Carvalho e J. Espinoza Ortiz; An Analysis of Helium Primordial Nucleosynthesis with a Variable Cosmological Coupling, de Marinho, Gonçalves, Fabris e Alvarenga; Squeezing in Coupled Oscillators Having Neither Nonlinear Terms Nor Time-Dependent Paramenters; entre outros. PESQUISA FAPESP

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