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exemplar de
Maio 2011
Maio 2011 Nº 183
pesquisa fapesp
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Confundidos com células-tronco, fibroblastos atrapalham a terapia celular
Especial Química I
Mudanças climáticas e energia alternativa
Biólogos encontram situações-limite na mata atlântica
Entrevista
Laura de Mello e Souza A história nos arquivos
ESA
imagem do mês
O deserto
fertiliza o mar O vento que sopra para o oeste carrega a poeira das tempestades de areia do Saara ao oceano Atlântico, aportando até o Caribe. Repleto de nutrientes, o pó estimula a produção dos plânctons, visíveis nas águas como redemoinhos azul e verde.
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fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
empresa que apoia a ciência brasileira
Celso Lafer
Presidente eduardo moacyr krieger
vice-Presidente
Conselho Superior Celso Lafer, eduardo moacyr krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, Maria josé soares mendes giannini, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani
Diretor Presidente
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Diretor Científico
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Diretor Administrativo
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Conselho editorial Carlos henrique de brito cruz (presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Mariza Corrêa, Maurício Tuffani, Monica Teixeira comitê científico LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (presidente), cylon gonçalves da silva, FRANCISCO ANTôNIO BEZERRA COUTINHO, joão furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, josé roberto parra, luís augusto barbosa cortez, luis fernandeZ lopez, marie-anne van sluys, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, sérgio queiroz, wagner do amaral, Walter Colli Coordenador científico luiz henrique lopes dos santos Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editora assistente Dinorah Ereno revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura daviña e Mayumi okuyama (coordenação) ARTE maria cecilia felli e bel falleiros fotógrafo eduardo cesar editora on-line maria guimarães webmaster Danielle Gomes Fortunato Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de dados), Andrés Sandoval, Catarina Bessell, Daniel Jacobino, Evanildo de Oliveira, Guilherme Lepca, Igor Zolnerkevic, Larissa Ribeiro, Leya Mira Brander, Márcio Ferrari, Marcos Flamínio Peres e Paulo Lima
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cartas cartas@fapesp.br
Ouriço-do-mar Sobre a reportagem “Venenos mutantes” (edição 182), gostaria de fazer alguns comentários ligados aos meus campos de trabalho, a dermatologia, a toxinologia clínica e a medicina tropical. Tenho a experiência da observação de centenas de acidentes por ouriços-do-mar-pretos (E. lucunter), grande parte deles relatados em comunicações e livros. Quando os autores apresentam suas pesquisas sobre toxinas de ouriços-do-mar, dizem: “O veneno desse ouriço não mata, mas merece respeito”. Não há publicações sobre esse veneno para que se chegue a tal conclusão. Nos muitos casos que tive a oportunidade de examinar nas cidades litorâneas não observei essas possíveis reações inflamatórias intensas. Concordo que ocorre inflamação, mas discreta, pouco perceptível no momento do acidente e crescente com o passar dos dias, proporcional à presença de corpos estranhos nas lesões (fragmentos de espículas). Outro comentário é relativo à frase: “... verificou que o inchaço – ou granuloma – do local da espetada é um sinal de uma reação inflamatória intensa que pode durar dias...”. Inchaço ou edema é um acúmulo de água, plasma ou linfa que cursa geralmente com inflamações, mas também em situações agudas como os traumas. Granulomas formam-se em reações inflamatórias tardias e crônicas. Quando permanecem fragmentos de espículas nos ferimentos, forma-se o
granuloma. Não questiono que existam toxinas nas espículas de E. lucunter, mas estas não interferem no quadro clínico dos pacientes, que é de caráter traumático. Assim, creio que a indicação de anti-inflamatórios é precipitada e teria que ser apoiada por um ensaio clínico (que a meu ver dificilmente chegaria a essa conclusão), uma vez que este grupo de drogas não interfere nos granulomas e apresenta muitos efeitos colaterais. Vidal Haddad Junior Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Botucatu, SP
Zoo Na reportagem “Menos bichos mais pesquisa” (edição 181), além dos pesquisadores mencionados, fazem parte da equipe de prospecção Cristina Viana Niero e Marcelo A. Vallim, da Universidade Federal de São Paulo. A parte de metagenômica é realizada por pirossequenciamento de DNA na Universidade de São Paulo por Aline Maria da Silva e Sérgio Verjovski Almeida. Renata Pascon Unifesp Diadema, SP Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora
Nova janela para as células-tronco Mariluce Moura - Diretora de Redação
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s células-tronco são, talvez, a entidade biológica que mais sonhos, esperanças, frustrações e decepções espalhou na última década entre cientistas, médicos, pessoas acometidas por condições complicadas de saúde e seus familiares. Agora, pelo menos em relação ao mal de Parkinson, um grupo de cientistas de São Paulo parece ter encontrado uma pista importante para explicar parcialmente o insucesso da terapia baseada em transplantes de células-tronco e mesmo das terapias celulares mais antigas que se valiam do transplante de material extraído da glândula adrenal ou do cérebro de fetos abortados. Esse achado e o contexto em que se desenvolvem hoje as pesquisas das terapias contra Parkinson, doença cujo peso na saúde cresce proporcionalmente ao envelhecimento da população, estão bem contados pelo editor especial Marcos Pivetta, a partir da página 16. Ele mostra que a se confirmar o que o grupo paulista propõe em estudo publicado em 19 de abril, na edição on-line da Stem Cell Reviews and Reports, os fibroblastos podem ser um vilão, entre outros ainda não identificados, nessa história. Trata-se de um tipo de célula da pele muito parecido com algumas células-tronco, mas com propriedades totalmente distintas destas últimas. E, implantados junto com células-tronco mesenquimais (obtidas do cordão umbilical de recém-nascidos) em camundongos com Parkinson, os fibroblastos anularam os bons resultados que se tinha conseguido com o implante puro das células-tronco durante a experiência e ainda agravaram os sintomas da doença nas cobaias. Qual a dedução possível a partir daí? “É possível que muitos resultados ruins em trabalhos científicos com terapias celulares se devam a esse tipo de contaminação”, nas palavras da geneticista Mayana Zatz. Em outros termos, fibroblastos confundidos com células-tronco e a elas misturados nos implantes podem estar causando novos problemas para doentes que se submetem em algumas partes do mundo a transplantes sem muito controle e eles precisam ser alertados nesse sentido. Mais:
a contaminação pode também estar atrapalhando conclusões verdadeiras sobre possíveis efeitos positivos das terapias celulares. O lado bom dessa história é que de novo se abre uma janela para as experiências com células-tronco mesenquimais, puras e bem controladas, no tratamento do Parkinson. O segundo texto que quero comentar desta edição é a excelente entrevista pingue-pongue concedida pela historiadora Laura de Mello e Souza ao editor de humanidades, Carlos Haag. Seguir sua fala desde a página 10 é tomar contato com seu modo apaixonado de fazer história, mergulhando em arquivos pouco ou nada manipulados para empreender cada uma das viagens que se propõe “ao país estrangeiro que é o passado”. Aliás, ela diz crer que essa frase de Hartley (o escritor britânico Leslie Poles Hartley) em The Go-between é a grande definição do que seja história. A entrevista permite também que tomemos contato com a crítica contundente de Laura ao excesso de ensaísmo, de estudos monográficos, de recortes na produção historiográfica brasileira, em detrimento das abordagens mais gerais de nossa história. Ressalte-se que ela considera essa produção boa, mas dado que pulamos etapas, dado que passamos para a micro-história sem entrar a sério no historismo, ela vê uma lacuna na produção que a obriga a recomendar, quando alguém lhe pede indicação de uma história geral do Brasil, a História geral da civilização brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda. É um trabalho dos anos 1960, mas é o mais recente em seu gênero. “Acho desejável que se supere essa fase, que seja possível fazer estudos monográficos, mas explicações gerais também”, diz a determinada altura. Atenta, Laura de Mello e Souza observa que há um público no Brasil sedento por livros de história, atendido por profissionais que fazem um trabalho correto, mas que não inovam, enquanto há historiadores inovadores que não chegam ao grande público. E ela pensa que o próximo passo precisa ser dado por quem está fazendo pesquisa original: escrever para o grande público. PESQUISA FAPESP 183
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memória
Forte San Miguel, no Uruguai: século XVIII
Um saber (quase) morto Estudo recupera técnica milenar de construções de pedra Neldson Marcolin
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ntes do concreto era a pedra. Igrejas, prédios de governo, palácios, fortificações, mosteiros, pontes, canais e tudo o que deveria ser duradouro tinham em comum a pedra como principal elemento de construção. Talhadas por mestres artesãos para serem encaixadas umas nas outras, as rochas davam forma aos arcos e às paredes que sustentavam, não raro, estruturas com vários andares sem a necessidade do reforço de cimento, ferro ou madeira. Muitas dessas edificações estão de pé até hoje, centenas de anos após a construção. A arte e a técnica de pensar, lavrar e empilhar pedras para compor um sistema arquitetônico estável são chamadas de estereotomia (do grego stereos, sólido, e tome, corte) e foram extensamente utilizadas no Brasil trazidas primeiro por portugueses e depois pelos espanhóis, holandeses e ingleses. Com o desenvolvimento do concreto e do concreto armado, a técnica caiu completamente em desuso na virada do século XIX para o XX e parece sobreviver apenas em alguns livros publicados na Europa. No Brasil, Dalton Almeida Raphael, professor de geometria descritiva na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trouxe a público um estudo minucioso em que analisa e sistematiza a estereotomia na América lusitana. Os mestres construtores usavam basicamente a experiência de outros antigos artesãos para projetar as edificações de pedra, o que envolvia alguns conhecimentos
fotos Dalton Almeida Raphael
hoje associados à matemática, como as construções geométricas, também chamadas de desenho geométrico, e ainda, mais tarde, à geometria descritiva. A estereotomia foi desenvolvida desde as primeiras civilizações e utilizada na Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, sem falar do Oriente. “Os projetos eram totalmente empíricos na sua organização e no dimensionamento dos elementos estruturais”, diz Raphael, autor da tese de doutoramento sobre o tema. “O conhecimento aprimorado foi certamente uma herança do antigo regime das corporações de ofício e teve grande difusão através dos séculos.” A técnica é responsável por edifícios com quase mil anos ou mais serem tão estáveis e terem chegados quase intactos aos dias de hoje, como as catedrais de Notre-Dame e Chartres, na França, ou mesmo o Convento da Batalha, em Portugal, entre muitos outros. Dalton Raphael estudou edificações no Brasil em que foi possível analisar o método de construção, como, por exemplo, as fortalezas militares de San Miguel e Santa Teresa (hoje no Uruguai), o Mosteiro de São Bento e a Igreja da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro do Rio de Janeiro, o Castelo da Torre de Garcia d’Ávila da Bahia, as muitas ermidas de Minas Gerais e as Missões Jesuíticas do Sul. “Hoje, porém, é quase
impossível achar quem conheça a técnica na prática, quem saiba o talhe da pedra, como bater corretamente nela para tirar partido e conseguir o encaixe perfeito”, diz o pesquisador. Os primeiros portugueses que se estabeleceram no Brasil começavam construindo com madeira e palha. Mas, da metade para o final do século XVI, já havia edificações de pedra. O Castelo da Torre, a 80 quilômetros de Salvador, começou a ser feito em 1551. Ainda hoje é possível observar sua estrutura, embora a cobertura tenha ruído. Já a Igreja da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Glória, no Rio, inaugurada em 1739, continua em pé e inteira. Foi lá que Raphael defendeu a tese, em julho de 2009, ao mesmo tempo que utilizava um apontador de laser para mostrar as particularidades do local. “O lugar é um verdadeiro laboratório de estereotomia”, diz o químico e historiador da ciência Carlos Alberto Filgueiras, orientador de Raphael na UFRJ
Arco da Igreja São Pedro dos Clérigos, em Mariana (MG), do século XVIII
e hoje de volta à sua universidade de origem, a Federal de Minas Gerais (UFMG). Os processos construtivos começaram a mudar com a vinda da família real, em 1808. Pela influência de Grandjean de Montigny, arquiteto da
Missão Francesa, uma nova estética chegou ao Brasil em 1816. Mais para o final do século XIX o concreto e o concreto armado se tornaram dominantes, pela facilidade de trabalhar com eles. A estereotomia, desde então, virou um saber quase morto. “O estudo dessa técnica é interessante mesmo para leigos porque mostra como os arquitetos antigos procediam para projetar seus edifícios antes dos estudos modernos de resistência dos materiais e estabilidade das construções”, observa Filgueiras.
Arcadas da Fortaleza de Santa Cruz, de Niterói (RJ), do século XVII PESQUISA FAPESP 183
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entrevista
Laura de Mello e Souza
Um país chamado passado
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história exige imaginação e muito esforço, muito rigor. Como se fosse um espetáculo encenado: a cortina sobe, tudo parece no seu lugar, tão harmonioso e tão fluente, mas se passaram meses, anos até se chegar ali. Por isso tenho fascínio por bailarinas: quanto esforço atrás de um gesto por baixo da aparente naturalidade.” A definição é da historiadora Laura de Mello e Souza, professora titular de história moderna na Universidade de São Paulo (USP), que acaba de lançar a biografia do poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa (coleção Perfis Brasileiros da Companhia das Letras), um belo entrechat histórico da pesquisadora, que, partindo de uma quase total ausência de informações sobre o personagem, construiu um retrato do homem e da época. Um jeté que exigiu longas buscas em arquivos históricos, uma marca do trabalho de Laura, mas que, como no balé, não revela o esforço, apenas a beleza do texto. “Venho de uma família de contadores de história”, explica. No entanto, não lhe foi um fardo sempre ouvir dos professores: “Ah, você é filha do Antonio Candido e da dona Gilda de Mello e Souza?”. A família de intelectuais era, acima de tudo, uma família, ainda que cercada de livros. “Minha relação com meus pais sempre foi boa. Eles são pessoas especiais, têm uma noção justa do seu papel, mas são modestos e têm uma relação muito bonita com o conhecimento.” Laura, antes da história, flertou com a arquitetura, psicologia e medicina. Reuniu todas essas paixões na história, acrescentando uma boa dose de preocupação social e consciência política. Foi a primeira a tratar dos “desclassificados” em Desclassificados do ouro (1983) e seus livros sempre trazem uma relação forte com uma leitura mais engajada do Brasil, sem que a autora abra mão do rigor dos documentos. Assim, embora diga “viver” entre os séculos XVI e XVIII, suas obras ajudam a explicar o país de hoje, em aspectos antes desprezados pelos acadêmicos, como a religiosidade e a feitiçaria, presentes em O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986) e Inferno atlântico (1993). Mais recentemente, vem repensando a forma de escrever a história do Brasil. “O historiador não pode ficar só no particular. É a história da floresta: se vemos a árvore, temos que ver a floresta, senão a compreensão fica prejudicada.” Daí sua
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Para historiadora, faltam pesquisas inovadoras que atinjam o grande público Carlos Haag
fotos eduardo cesar
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clima de insegurança muito grande, que não era uma coisa que me desse orgulho, mas era uma coisa meio marginal pertencer àquele meio. Depois é que fui percebendo como eles eram pessoas respeitáveis, destacadas etc. Também não creio que eles tenham desenvolvido expectativas muito grandes sobre mim e sempre deram espaço para que eu e minhas irmãs fôssemos o que queríamos ser. Eu até tentei cair fora, fazer outras coisas, como arquitetura e medicina, mas não consegui. Tenho um trauma de não ter conseguido ser médica. n A senhora foi a primeira pesquisadora
dedicação em compreender os impérios para resolver os dilemas da colônia que fomos um dia, um grande temps levé. Desse esforço, resultou o projeto apoiado pela FAPESP Dimensões do Império português, que Laura coordenou, e livros como O sol e a sombra (2006). Leia a seguir trechos da sua entrevista. n Como começou a sua viagem “ao país
estrangeiro que é o passado”? Adoro essa frase do livro The Go— -between, do Hartley [o escritor britânico Leslie Poles Hartley], que creio ser a grande definição do que é a história. Tive desde pequena uma paixão pela história. História e histórias. Eu tive o sonho de fazer medicina, que acho que não é muito longe da história, pelo fascínio pelos fragmentos que permitem você fazer uma reconstituição. A medicina não me parece uma ciência exata: vamos ao médico, ele faz uma porção de perguntas para poder construir uma hipótese. Acho que o historiador faz a mesma coisa. Não temos nunca acesso direto ao passado e, assim, o passado é um país estrangeiro. Seria ótimo se a gente pudesse ter uma linha direta com o passado, mas temos sempre que ponderar que o passado deve ser olhado com cuidado através dos vestígios que ele deixou. O tempo se encarrega de fazer com que essas diferenças fiquem muito grandes. A gente sente a diferença entre as gerações, entre os pais e os filhos, imagine entre várias gerações, como são as que eu lido, períodos remotos de até 400 anos. n De que maneira sua maneira de escrever
história é diferente de outras maneiras de escrever história? — Fui muito influenciada por esses meus parentes contadores de história. Meu pai é um grande contador de histórias. Mas 12
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quando entrei na faculdade, esse tipo de história estava desacreditada, sobretudo na USP, onde havia uma predominância da história estrutural. Acho que antes da televisão, dessa transformação grande nos meios de comunicação, as pessoas contavam muitas histórias. Cresci no interior, onde, no convívio com meus avós e o meio rural, as pessoas tinham muitas histórias. Então a história de que sempre gostei é a história narrativa. Depois, nos anos 1990, ela voltou a entrar em voga. A história mais analítica é muito importante, erra menos, mas para mim é menos atraente. Acho que tem uma questão de temperamento aí. Não me interesso apenas pelos historiadores. Adoro antropologia, sobretudo as monografias clássicas, que são narrativas. Gosto muito de história da arte e de literatura. Então foram os gostos que me levaram a outro tipo de história, talvez mais passível de erro, mas mais ligada a outras disciplinas. n De que forma seus pais a influenciaram?
Acho que o ambiente familiar é mui— to marcante. Claro que o fato de eu ter crescido numa casa onde o ambiente intelectual era muito marcante influenciou, com as conversas e o fato de ter livros, que, acho, são as coisas mais importantes. A gente não lê todos os livros que tem, mas essa coisa do trato com o livro, ir à estante e olhar, isso é muito importante. Meus pais eram pessoas muito low profile, então só fui adquirir consciência do peso que eles tinham no meio universitário quando entrei na universidade. Eu não tinha muita ideia. Como cresci durante a ditadura militar, era o contrário, uma coisa meio incômoda ter os pais que eu tinha. Durante 10 anos ouvíamos boatos de que meu pai ia ser cassado. Havia um
a lidar com os desclassificados e em seus livros se percebe uma visão de engajamento político. — Quando entrei na faculdade, a ditadura estava no auge. Isso se refletiu no meu trabalho. Acho impossível ser diferente, a não ser que a gente viva na estratosfera: os historiadores vivem um pouco no mundo da lua, sobretudo os de períodos remotos. Eu mesma acho que vivo mais no mundo da lua do que eu desejaria, mas foi inelutável vindo de um meio de esquerda. Mesmo pessoas como eu, que não tinham vocação para a militância política, procuraram fazer um tipo de história que de uma forma ou de outra colocasse questões importantes para o país. Fiz isso com uma história social sobre o problema da desigualdade, que era uma questão presente no início da minha carreira. Acho que é uma coisa que marca uma geração, é uma tentativa de acordo com o passado que já vinha lá do Florestan Fernandes, do tempo em que ele trabalhou com o Roger Bastide. Acho que agora a historiografia brasileira está se emancipando, de alguma forma, está abrindo um leque maior de temas. Minha pesquisa atual, que teve financiamento da FAPESP, é, por exemplo, uma pesquisa de história do Brasil, mas numa perspectiva muito europeia, de tentar entender a história do nosso país dentro da história da Europa. Hoje em dia, cada vez menos têm sentido as histórias nacionais. Eu não me interesso mais muito por história nacional. Um dos aspectos bons da globalização é a possibilidade de fazer uma história total. O que eu entendo por história total? Não é apenas a história do Brasil, mas a história do Brasil na relação que ela tem com outras histórias, outros processos históricos contemporâneos e correlatos. Acho que a gente faz história nacional ou história regional para fazer tese. É que nem a menina que, para fazer
balé, tem que começar pelo balé clássico, tem que fazer ponta, tem que fazer barra, para depois ela poder desconstruir aquilo, fazer balé moderno, fazer dança contemporânea. n Como a senhora foi tomada pelo que
chama de “febre dos documentos”? — Eu comecei a trabalhar com documentos, porque escolhi um tema sobre o qual não existia nada. Tenho, aliás, vocação para o abismo, de trabalhar com temas que são praticamente impossíveis de serem trabalhados. Como esse livro sobre o Cláudio Manuel da Costa. Eu não fiz uma biografia, mas acabei fazendo alguma coisa que dá essa noção. Mas, no caso dos desclassificados, as pessoas diziam que eu não ia conseguir fazer porque não tinha documentação. E realmente não tinha. Trabalhei com documentação publicada, mas o filé-mignon foi documentação manuscrita. Assim, eu me enfiei dentro dos arquivos para ver o que tinha e aí eu descobri essa documentação extraordinária, que tinha sido pouco trabalhada antes de mim e que me deu uma visão possível dessa camada socialmente desclassificada. No caso da feitiçaria foi a mesma coisa, eu não tinha alternativa porque não existia trabalho sobre o assunto, então eu tinha que ler os processos da Inquisição. Era o sistema da pesca a linha: você jogava e não sabia se vinha peixe ou não. Aí, quando vi, tinha me tornado uma historiadora de arquivo. Eu sou uma historiadora de arquivo, continuo sendo e não abro mão disso. Não sei trabalhar se não for com pesquisa de manuscrito, é onde sinto prazer. n É nesse sentido que a senhora diz que a
função do historiador é antes compreender do que explicar? — Acho que a compreensão vem daquilo que você colocou no início, o passado é um país estrangeiro, então a gente dificilmente pode explicar. A gente tem que compreender. Por outro lado, é necessário buscar a explicação. Tem uma margem de explicação de que a gente não pode abrir mão, senão a gente nem compreende. E tem uma margem de generalização que a gente tem que estabelecer também, senão não se consegue passar o recado. n Como funciona essa generalização no
caso do Brasil? — Creio que o Brasil, se a gente for ser otimista, é um país do futuro, realmente, porque, bem ou mal, já estamos lidando com uma questão que está se colocando
Há historiadores que escrevem para o grande público e não inovam e há os que o fazem, mas não escrevem para grande público. É preciso que se encontre um meio termo
para a Europa agora, que é a questão da mestiçagem. O problema dos negros no Brasil ainda é gravíssimo, tem uma exclusão social muito grande das pessoas afrodescendentes. Mas, de qualquer maneira, o Brasil é um país que não poderia ter existido sem a imigração, que não poderia ter existido sem a escravidão e que espoliou a mão de obra indígena de uma maneira atroz. Ainda assim, aí estão os indígenas, que procuram ter voz cada vez mais ativa. Então o Brasil é um fenômeno que foi costurando a diversidade cultural desde a colonização. Não poderia ter mantido essa unidade que manteve se não fosse a costura da diversidade cultural. Somos o único país das Américas que tem uma multiplicidade cultural autêntica, na medida em que ela é vivenciada: não é uma sobrevivência, é vivência. Não há aqui uma sobrevivência indígena, ou uma sobrevivência africana, tudo isso é vivência. Faz parte da nossa experiência, do nosso DNA, que é indígena, basicamente. Por outro lado, acho que é uma falsa questão abrir mão da tradição europeia, porque somos também europeus. Então, acho que o nacionalismo, justamente, e a necessidade
de criar um corpo de intelectuais e um pensamento original para um país jovem fizeram com que se construísse uma série de explicações a contrapelo dessa ideia da continuidade, que foi sempre vendida como uma ideia reacionária. Mas ela pode não ser. Acho que a história que fiz, inclusive essa biografia do Cláudio, está sempre diante desse dilema que o Sérgio Buarque de Holanda expressou com felicidade quando falou “nós somos uns desterrados na nossa própria terra”, em Raízes do Brasil. n É senso comum atribuir os males do Bra-
sil à nossa colonização, tal “herança dos degredados”. Como a senhora vê isso? — Tudo isso é verdade e não é. É verdade porque, de fato, tudo isso aconteceu. E o mais dramático não é ser terra de degredados, porque todas foram: os EUA, a Austrália etc. O mais terrível é termos tido escravidão até 1888, porque isso, sim, dá uma dinâmica social que é quase impossível de reverter. Então o problema não é a colonização, mas a escravidão. Nós fomos o único país que teve escravidão? Não. Mas somos o que lidou de uma maneira mais perversa com a questão da escravidão. Quando uma criança, hoje, entra no quarto, tira a roupa e deixa a calça amassada no chão, do jeito que saiu do corpo, eu falo “isso é uma sociedade escravista”. Essa desqualificação do trabalho menos qualificado, por exemplo, menos considerado, como tem até hoje no Brasil. Todo trabalhador é basicamente igual: a gente tem que acreditar nisso. No Brasil não é assim. Agora, atribuir todas as mazelas à colonização tem a ver com a afirmação da independência. Na medida em que o Brasil fez um processo de independência diferente, com um Império escravista, quando veio a República, essas primeiras gerações republicanas tiveram uma necessidade de atribuir as mazelas do Brasil à colonização portuguesa. Eu acho que explica pouca coisa. Por isso os historiadores estão sempre estudando a escravidão, que nos explica melhor. n Ao lado da escravidão, as elites também
ajudam a entender o Brasil? — Eu não sei se as elites brasileiras são piores do que as outras elites. Elas são mais aferradas a um determinado tipo de privilégio e dependendo da região do Brasil. Veja: as elites em São Paulo são completamente diferentes das elites do Nordeste. Pelo menos, eu sou paulista, e vejo que as elites de São Paulo hoje não são mais o que eram no tempo dos meus PESQUISA FAPESP 183
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avós. São outras, que vão reproduzindo os vícios das antigas elites. No Nordeste e no Norte do Brasil me parece que são as mesmas. Quer dizer, são os mesmos nomes que a gente encontra no Nordeste e no Norte do Brasil. No Sul, não. Quem são as elites em São Paulo hoje em dia? Não são mais Paes Leme etc. Onde está essa gente? Nem existe mais. Então há uma circulação das elites muito mais rápida em São Paulo e no Sul em geral, por causa do desenvolvimento capitalista, é claro. Porque é a ideia de que a sociedade é aberta a quem tem dinheiro e a quem sabe fazer, a quem tem talento, então circula de uma maneira muito mais intensa. E nos Estados Unidos acho que as elites são igualmente terríveis como as elites brasileiras. Acho que o que caracteriza as elites brasileiras é uma grande relutância em abrir mão de seus privilégios. Isso tem a ver com o tipo de relação que essas elites estabeleceram com os aparelhos de Estado ao longo da história. E o fato de o Estado português ser um Estado tão antigo e que a partir do século XVII abriu mesmo o bolso para suas elites. Quer dizer, a nobreza portuguesa, sobretudo no século XVIII, é uma nobreza que depende ou do serviço do Império ou do dinheiro que é dado do bolsinho do rei para que ela possa se manter. Há um atendimento muito mais imediato do Estado às necessidades das camadas dominantes, me parece. Mas acho um pouco arriscado dizer o que estou dizendo. n Tivemos grandes intelectuais, que pen-
savam a história como um todo. E hoje? Isso é uma coisa que me preocupa — muito e cada vez mais. Porque, se alguém me perguntar, “Laura, quero ler uma história geral do Brasil, o que leio?”, não tenho nada para dizer para ele. A última grande história do Brasil é a História geral da civilização brasileira, do Sérgio Buarque de Holanda. Isso é, a meu ver, um problema gravíssimo, porque é um fenômeno global, mas existem determinadas tradições historiográficas que continuam mantendo as histórias gerais. Acho que faz muita falta. Quando queremos ter uma determinada perspectiva geral do Brasil, voltamos ao Caio Prado Júnior, ou ao Sérgio Buarque de Holanda, ou ao Capistrano de Abreu. Nenhum livro escrito hoje e nos próximos anos sobre a vinda da família real será melhor do que Dom João VI no Brasil, do Oliveira Lima. Acho que nós queimamos etapas, pulamos uma determinada etapa do conhecimento histórico, que na Europa foi 14
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Não há mais intelectuais que atuam na sociedade. Acho que tem alguma relação com o fato de não se ter mais a coragem e a candura de produzir explicações
muito sedimentado, que é o historismo, a publicação maciça de coleções de documentos, a descrição exaustiva de determinadas épocas. Nós pulamos uma etapa e entramos direto no ensaísmo, na história universitária, que te exige o recorte. Hoje a produção historiográfica brasileira é boa, nas ciências humanas é, segundo a FAPESP, a mais numerosa, com alguns livros absolutamente extraordinários, mas sempre ainda muito recortados. Isso tem a ver com a crise dos paradigmas, de que é impossível explicar, de que é impossível construir explicações gerais, de que para se entender um fenômeno geral tem que partir sempre de um recorte específico, o impacto da micro-história, do pós-modernismo... Eu acho desejável que se supere essa fase, que seja possível fazer estudos monográficos, mas explicações gerais também. Recortes que sejam mais abrangentes. E o que a gente vê hoje é que existe um público muito sedento de livros de história atendido nem sempre por historiadores profissionais, mas por indivíduos que fazem pesquisa sem ter uma especialização. Aqueles que têm uma formação mais específica, mas optaram por vender muito, em geral reproduzem,
eles não inovam. Fazem algo correto, mas não inovam. Aqueles que estão inovando não estão escrevendo para o grande público. O próximo passo precisa ser dado por aqueles que estão fazendo pesquisa original e que devem passar a escrever para o grande público. n A senhora costuma criticar os jovens his-
toriadores que descartam os clássicos apenas pela busca de novidades. Como é isso? — Eu, quando era jovem, também era novidadeira. Achava que eu ia inventar a roda. Agora, há determinados problemas que são falsos problemas e que são atraentes só porque são novidade. Alunos chegam para mim e dizem “eu li tudo, é tudo bobagem, ninguém fala o que quero falar”. Eu falo “então me explica por que é bobagem”. Então, no fim, o que resta de bobagem não é tanta bobagem assim, e aquela grande novidade que ele quer dizer não é tanta novidade assim. n Outro ponto importante é a ausência da
atuação do intelectual na esfera pública. — Vejo isso com muita tristeza. Acho que isso é um problema muito grave. É um dos indícios mais sérios da tal crise dos paradigmas. Acho que deve ter sido muito bom para as gerações que tinham certezas e verdades absolutas. Eu não tenho nenhuma. E isso é muito desalentador. Por outro lado, é instigante, dá um âmbito de uma liberdade de criação. A nossa produção universitária é muito boa, mas não existem mais os grandes intelectuais como havia e isso é uma perda. Acho que é uma perda muito grande. Fiquei muito impressionada, em 1998, eu era professora na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e quando li o The New York Times e a primeira página inteira era a foto do caixão do Octavio Paz e a manchete era: “Morreu o maior pensador das Américas”. Talvez ele tenha sido o último grande pensador latino-americano. Agora não há mais. E acho que tem alguma relação com o fato de não se ter mais a coragem e a candura de produzir explicações. O labirinto da solidão, que acho um dos livros mais extraordinários que li, quando indico para os meus alunos eles reclamam, “não, pelo amor de Deus, não me venha com Octavio Paz, é um reacionário, uma ficção”. É a mesma coisa, se a gente for pegar Raízes do Brasil. Caio Prado Júnior é um dos maiores sacos de pancada da minha geração. Vários colegas dizem que não dão Caio Prado Júnior na sua aula porque ele é racista. A vida de um professor universitário pode ser profundamente ressecada e
n E a figura do Tiradentes?
Se alguém é herói da República com — título justo, acho que é ele. Acho que ele era um agitador mesmo, era um agitador político. Irresponsável, alucinado como todo agitador político. Era um agitador político e que ele aí começou a acreditar que o negócio podia engatar mesmo, se tornar um movimento de emancipação, pelo menos da região. Hoje em dia há vários estudos que sugerem que havia uma tentativa de organização entre São Paulo, Rio e Minas, que as elites estavam tentando defender os interesses econômicos, que eram muito amarrados, dessas três regiões. n A senhora diz que vive entre os sécu-
desinteressante. Profundamente. Eu luto desesperadamente para que a minha não seja. Mas se eu for ser estritamente uma professora universitária como se deve, minha vida é muito sem graça, porque tenho que fazer um monte de relatórios, tenho que dar um monte de pareceres, para Capes, CNPq, FAPESP, tenho que representar minha área na Capes, no CNPq, na Fapesp, como já representei, porque tenho que orientar iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado, porque tenho que ir a não sei quantos congressos por ano para poder ser reconhecida junto às agências que financiam pesquisa, porque tenho que publicar não sei quantos artigos por ano para ser reconhecida junto às agências que financiam pesquisa. E vai se criando uma certa distorção. Eu já vi pareceres dizendo que tal historiador, do mais alto nível, só publica livros, não publica artigos e que é indesejável que ele só publique livros. O fato de a gente ter se tornado profissional tira a gente da vida pública. Hoje, quem está na universidade, com poucas exceções, não atua na vida pública. Os que atuam muito na vida pública acabam fazendo menos investigação. n Por que um livro sobre Cláudio Manuel
da Costa? — Ele foi um homem dividido, um homem dilacerado, que sente que o que ele é e o que ele faz não estava afinado com o mundo do reino, mas também não conseguiu dar o passo além. Então acho que ele é muito típico do mundo luso-brasileiro antes da independência, quando não se era uma coisa nem outra. Tem uma fra-
se na confissão dele em que ele diz que, apesar de ter dito tudo aquilo, não acha que os delatores são melhores do que os que lutaram, do que os delatados. Ou seja, ele fala “eu delatei, mas sou mais mesquinho e menor do que os que conspiraram contra o rei”. É um dos elementos que me permitem acreditar que ele se matou, que ficou com nojo do que fez. Foi importante também revisar a Inconfidência Mineira e de como, no final, eles estavam puxando o freio de mão. Não queriam mais. Mas o movimento estava caminhando para uma disseminação mais generalizada e para um encaminhamento mais radical do que tinha sido no início. Durante anos eles iam recitar para o governador, “ah, meu Deus, podia ser melhor. E se a gente tivesse mais representatividade? E se os luso-brasileiros fossem mais ouvidos?” , e os governadores, “não, acho que vocês têm razão”. Em seguida, os governadores escreviam para o Conselho Ultramarino, “olha, as coisas, vocês estão vendo aí de longe, aqui de perto não são como vocês pensam aí não, eu que estou aqui estou vendo, não dá para aplicar da maneira como você está mandando”. Então essa coisa de tentar contemporizar para manter a dominação colonial foi junto com um desejo de participação soft das elites e aí, numa conjuntura dessas, que é quando troca o governador, em 1784, esse grupo diferenciado resolve realmente ver se dava para mudar, talvez até fazer a independência. Eu acho que no meio do processo o negócio engata num outro tipo de movimento, mais contestatório, de caráter mais popular, mais reivindicador, e aí os homens de letras puxam o breque de mão.
los XVI e XVIII. Mas qual a sua visão do Brasil de hoje? — Eu tenho uma visão muito positiva do Brasil de hoje e acho que temos todos os motivos para isso, porque acho que somos o único país da América com um projeto próprio. Apesar do que a imprensa diz, de que nós estamos sempre na beira do abismo e que ninguém tem projeto nenhum, acho que o Fernando Henrique e o Lula fizeram dois governos muito importantes. Acho que tudo começou no governo FHC, por ser ele o Fernando Henrique, um homem respeitado, um grande intelectual num momento de enorme mediocridade internacional. Se a gente for pensar quem são os dirigentes políticos no mundo, a gente dá um banho, seja com o Fernando Henrique, seja com o Lula ou com a Dilma. Mas os problemas do Brasil continuam sendo os mesmos. Em escala menor agora, que é distribuição de renda e educação. O desafio da educação, educação de qualidade, pública, para o ensino fundamental, acho que é o maior desafio do Brasil. Porque hoje em dia, bem ou mal, nós temos uma rede universitária competente. O desafio dos próximos anos é a educação. Porque acho que a saúde, inclusive, é decorrência da educação e, na medida em que a educação engrene, a saúde vai junto. Há, porém, a questão da distribuição de renda. E aí a gente volta na questão das elites brasileiras. Tem que haver uma motivação maior, uma participação maior e aí faltam as grandes figuras públicas, que infelizmente não temos mais. Faltam grandes causas, as grandes bandeiras. Mas sou otimista quanto ao Brasil e pessimista quanto ao mundo porque acho que o mundo vai acabar. Nesse mundo que está aí, vejo o Brasil com otimismo. n PESQUISA FAPESP 183
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A fraqueza das células-tronco Contaminação pode ser a
causa dos maus resultados
da terapia contra o Parkinson
Marcos Pivetta
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capa
MedicalRF.com / Gettyimages
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á três décadas a terapia celular tem sido uma fonte sucessiva de entusiasmo e decepção para os pacientes com mal de Parkinson, doença caracterizada pela morte progressiva dos neurônios responsáveis pela produção de uma importante substância química, o neurotransmissor dopamina. Nos anos 1980 uma abordagem polêmica contra a doença, que inicialmente parecia promissora, foi testada em animais e até em seres humanos em países como Suécia, Estados Unidos e México: a realização de transplantes com células extraídas da glândula adrenal ou do tecido cerebral imaturo de fetos abortados. A lógica dessas cirurgias, discutíveis inclusive do ponto de vista ético, era dotar a estrutura cerebral conhecida como substância negra – lesada nos pacientes pela perda progressiva dos neurônios dopaminérgicos – com uma nova população de células capazes de fabricar o neurotransmissor. Dessa forma, os principais sintomas do Parkinson, como tremores, rigidez muscular, lentidão de movimentos e dificuldade para falar e escrever, poderiam ser eliminados. Os resultados da abordagem foram decepcionantes. Nos casos em que houve melhora, o bem-estar dos pacientes foi passageiro. Em outros, nem isso ocorreu e a tentativa de tratamento até piorou a doença, levando à morte alguns indivíduos. Um grupo de biólogos e neurocientistas paulistas pode ter descoberto um dos motivos por trás do fracasso das antigas terapias celulares contra o Parkinson e talvez compreendido por que as versões mais modernas e refinadas desse tipo de tratamento experimental, hoje baseadas no emprego das chamadas células-tronco, continuam a dar resultados inconsistentes. Os transplantes que têm sido testados nos estudos pré-clínicos, em animais de laboratório, podem conter uma quantidade significativa de fibroblastos, um tipo de célula da pele extremamente parecido com algumas células-tronco, mas que tem propriedades totalmente diferentes. pESQUISA FAPESP 183
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Os sinais que controlam os movimentos do corpo são trasmitidos por neurônios que se projetam da substância negra até o núcleo caudado
núcleo caudado
dendritos
ventrículos laterais
putâmen
axônio neurônios nigroestriatais substância negra Terminal
Neurônio normal Movimento normal
dopamina
receptores
Neurônio afetado por Parkinson Problemas motores
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) publicaram no dia 19 de abril passado um estudo na versão on-line da revista científica Stem Cell Reviews and Reports mostrando que, em ratos com Parkinson induzido, a presença de fibroblastos humanos anula os possíveis efeitos positivos de um implante de células-tronco mesenquimais, obtidas do tecido do cordão umbilical de recém-nascidos. “Quando administramos apenas as células-tronco, os ratos melhoraram dos sintomas da doença”, diz a geneticista Mayana Zatz, uma das autoras do artigo, que coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) mantidos pela FAPESP, e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Celulas-Tronco em Doenças Genéticas Humanas. “Mas, quando 18
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injetamos também os fibroblastos, os efeitos benéficos desapareceram e houve até uma piora. É possível que muitos resultados ruins em trabalhos científicos com terapias celulares se devam a esse tipo de contaminação.” De acordo com os pesquisadores, o trabalho é o primeiro a mostrar, no mesmo modelo animal, tanto os efeitos positivos do emprego de células-tronco mesenquimais contra o Parkinson como os malefícios da contaminação por fibroblastos. Além de representar um avanço no conhecimento básico sobre os eventuais benefícios das terapias celulares num órgão tão complexo e delicado como o cérebro, o resultado do trabalho serve de alerta para os familiares de pessoas com Parkinson. Não há, em nenhum país do mundo, tratamento oficialmente aprovado à base de células-tronco para combater essa ou outras doenças neurodegenerativas. “É preciso olhar com
cuidado as pesquisas com células-tronco e não fazer falsas promessas de cura”, afirma outro autor do artigo, o neurocientista Esper Cavalheiro, da Unifesp, que encabeça os trabalhos do Instituto Nacional de Neurociência Translacional, um projeto conjunto da FAPESP e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). “Antes de propormos terapias, precisamos entender todo o mecanismo de diferenciação das células-tronco nos diversos tecidos do organismo e compreender como o cérebro faz para ‘conversar’ e direcionar a atuação dessas células.” Até hoje as únicas doenças que contam com um tratamento à base de células-tronco são as do sangue, em especial os cânceres (leucemias). Contra esse tipo de problema, os médicos lançam mão, há décadas, do transplante de medula óssea, rica em célula-tronco hematopoéticas, precursoras do sangue.
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inda sem cura, o Parkinson atualmente é controlado com o auxílio de medicamentos, como a levodopa, que podem ser convertidos pelo cérebro em dopamina. Em casos mais graves há ainda uma segunda alternativa: implantar eletrodos no cérebro de pacientes que não respondem bem ao tratamento ou apresentam muitos efeitos colaterais em decorrência do uso dos remédios. Ligado a um pequeno gerador implantado debaixo da pele, os eletrodos tentam melhorar a comunicação entre os neurônios. A delicada cirurgia para a colocação dos eletrodos é conhecida como estimulação profunda do cérebro (deep brain stimulation, ou simplesmente DBS). Com exceção dessas duas abordagens, todos os demais procedimentos contra a doença ainda se encontram no estágio de testes, sem aprovação dos órgãos médicos. Mensageira química produzida por menos de 0,3% das células nervosas, a dopamina pertence a uma classe de substância denominada neurotransmissores, cuja função básica é levar adiante a informação, na forma de sinais elétricos, de um neurônio a outro. Esse processo de comunicação entre neurônios é conhecido como sinapse. A dopamina atua especificamente em centros cerebrais ligados às sensações de prazer e dor, tendo papel comprovado nos mecanismos que geram dependência e vícios e também no controle dos movimentos. Nos
ilustração de daniel das neves sobre material do nih
Circuito cerebral do Parkinson
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ão há evidências sólidas de que as células-tronco mesenquimais tenham a capacidade de gerar os neurônios que estão em falta ou são pouco funcionais nos pacientes com Parkinson. Elas parecem melhorar o ambiente em que ocorrem as lesões associadas às doenças, diminuir a inflamação local e favorecer a preservação de mais células nervosas. “Seus efeitos poderiam ser indiretos, ao diminuir a inflamação no cérebro”, diz Okamoto. Foi isso o que os pesquisadores paulistas verificaram no experimento com ratos. Eles injetaram as células-tronco
Rodrigo A. Bressan/ UNIFESP
casos de Parkinson, a questão motora se mostra claramente afetada devido à falta do neurotransmissor. É muito fácil misturar os fibroblastos com as células-tronco mesenquimais – e essa confusão pode ser a origem dos resultados inconclusivos e contraditórios de muitas tentativas de se tratar Parkinson com terapias celulares. Ambos os tipos de células têm a mesma origem. Derivam do mesênquima, o tecido conjuntivo primordial, presente no embrião, a partir do qual se formarão vários tipos de células. Apesar da origem comum, os fibroblastos e as células-tronco mesenquimais apresentam propriedades distintas. Responsáveis pela síntese do colágeno, os fibroblastos formam a base do tecido conjuntivo num indivíduo adulto. São, portanto, células especializadas e diferenciadas. Já as células-tronco mesenquimais ainda são bastante indiferenciadas e têm a capacidade de gerar muitos tipos de tecidos, como ossos, cartilagem, gordura, células de suporte para a formação do sangue e também tecido fibroso conectivo. “É quase impossível distinguir esses dois tipos de células se simplesmente as examinamos num microscópio”, comenta o bioquímico Oswaldo Keith Okamoto, do Centro de Estudos do Genoma Humano, coordenador do artigo publicado na Stem Cell Reviews and Reports. “Elas crescem in vitro nas mesmas condições e só conseguimos distingui-las com o auxílio de marcadores e ensaios específicos.” As células-tronco mesenquimais apresentam ainda uma importante particularidade. Têm propriedades imunossupressoras e podem reduzir a necessidade de tomar remédios para diminuir a rejeição a órgãos e tecidos transplantados.
Imagem de cérebro normal com mais neurônios que produzem dopamina (à esq.) e de outro afetado por Parkinson
Injeção de fibroblastos fez ratos com Parkinson piorarem dos sintomas da doença e anulou benefícios das células-tronco
no cérebro de um grupo de 10 roedores doentes com Parkinson induzido e, um mês depois, viram que eles não apresentavam sintomas da doença. Estavam tão saudáveis quanto os animais do grupo de controle que não tinham Parkinson. Esse resultado bate com conclusões de outros estudos semelhantes realizados aqui e no exterior. A grande novidade ocorreu na segunda parte do experimento. Os cientistas inseriram uma cultura de fibroblastos num outro grupo de 10 ratos, também com Parkinson. O resultado foi desastroso. Um mês depois do procedimento os animais passaram a exibir mais problemas motores e o número de neurônios dopaminérgicos na substância negra se reduziu à metade. A uma terceira leva de roedores doentes foi administrada uma mistura, em partes iguais, dos dois tipos de células. Nesse grupo não se verificou melhora algu-
ma. É como se os fibroblastos tivessem anulado os aparentes efeitos benéficos das células-tronco. “Eles parecem ser neurotóxicos”, afirma Mayana. Na Índia, um grupo de médicos e cientistas do BGS-Global Hospital, de Bangalore, está testando o uso de células-tronco mesenquimais em sete pacientes humanos com Parkinson com idade entre 22 e 62 anos. Obtidas da medula óssea dos próprios doentes, as células foram injetadas nos cérebros lesados de acordo com um protocolo local criado pelos indianos. Num artigo publicado em fevereiro do ano passado na revista Translational Research, os pesquisadores relataram diminuição dos sintomas da doença em três dos sete pacientes e disseram que a abordagem parece segura. Os resultados, no entanto, ainda são preliminares e devem ser vistos com reservas. “Talvez os transplantes de células-tronco mesenquimais não se tornem um tratamento definitivo para o Parkinson, mas complementar, como uma neuroproteção”, pondera Okamoto. “Esse tipo de estudo pode nos auxiliar a entender como minorar o ambiente degenerativo no cérebro e, quem sabe, criar novos fármacos contra a doença.” Genes, ambiente e mistério - Apesar de existirem casos de indivíduos jovens com Parkinson, como o famoso ator canadense Michael J. Fox, que, aos 30 anos, recebeu a notícia do diagnóstico da doença, essa desordem neurológica aparece com mais frequência em pessoas com mais de cinco ou seis décadas de vida. “Pacientes com menos de 50 anos são considerados precoces e representam uns 20% do total”, diz o neurologista Luiz Augusto Franco de Andrade, pESQUISA FAPESP 183
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Dobro de doentes em 2030 - Numa linha semelhante de investigação, um estudo divulgado em setembro de 2010 pelos National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, sugeriu que indivíduos com uma determinada versão do gene GRIN2A poderiam se beneficiar mais do consumo de café e chá. Em pessoas com esse perfil genético a ingestão de bebidas com cafeína atuaria como um fator de proteção ao Parkinson. A busca por substâncias que auxiliam na manutenção dos neurônios é uma estratégia adotada por muitos grupos de pesquisa. A administração da proteína GDNF, que atua nesse sentido, é alvo de testes há anos para checar sua possível ação contra a doença. A despeito de avanços localizados na compreensão de possíveis mecanismos implicados em sua gênese, o Parkinson ainda mantém o status geral de doença neurodegenerativa de causa misteriosa e inexplicada. Ninguém sabe ao certo por que os neurônios produtores de dopamina começam a morrer ou param de funcionar direito num ponto da vida de certas pessoas. De concreto há um dado palpável da realidade atual: o envelhecimento de uma população é um grande fator de risco para o Parkinson. Essa questão é particularmente preocupante nas nações em desenvolvimento que estão mudando rapidamente a estrutura etária antes de se tornarem ricas. 20
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mariane secco
do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. “Mas já tratei de um menino de 13 anos com Parkinson.” Há evidências crescentes de que fatores ambientais e genéticos podem estar implicados no aparecimento da doença, ao menos em alguns casos. Um estudo de pesquisadores da Escola Médica de Harvard, publicado em outubro do ano passado na revista Science Translational Medicine, mostrou que centenas de genes ligados ao funcionamento das mitocôndrias, organelas que são a usina de energia do organismo, estão menos ativos em pacientes com Parkinson. Até mesmo pessoas que se encontram num estágio inicial ou até pré-Parkinson parecem apresentar essas alterações. Se essa conexão entre as mitocôndrias e a doença se confirmar, drogas que atuem sobre esses genes podem se tornar úteis no tratamento do problema.
Células-tronco mesenquimais (à esq.) e fibroblastos: difíceis de distinguir
número de casos da doença cresce de forma mais expressiva nos países em desenvolvimento do que nas nações mais ricas
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inda visto como uma nação de jovens, o Brasil alterará drasticamente seu perfil demográfico nas próximas décadas. Um relatório do Banco Mundial divulgado no mês passado destaca que sua parcela de habitantes com 65 anos ou mais subirá dos atuais 11% para 49% em 2050. Num período de 40 anos o número de idosos triplicará. Saltará de menos de 20 milhões para cerca de 65 milhões. “A velocidade do envelhecimento populacional no Brasil será significativamente maior do que ocorreu nas sociedades mais desenvolvidas no século passado”, dizem os responsáveis pelo relatório Envelhecendo num Brasil bem mais velho. Na França, foi necessário mais de um século para sua população com idade igual ou superior a 65 anos aumentar de 7% para
14% do total. “Nos últimos anos a gerontologia moderna enfatizou mais os ganhos do que as perdas físicas e mentais do processo de envelhecimento”, afirma a antropóloga Guita Grin Debert, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estuda questões ligadas às mulheres e à velhice. “Temos especialistas em doenças, mas não muitos no processo de envelhecimento.” Um estudo de revisão publicado em janeiro de 2007 na revista científica Neurology analisou dados divulgados por outros 62 trabalhos e concluiu que o número de casos de Parkinson em pessoas acima de 50 anos vai dobrar nas próximas duas décadas em 15 países do globo. O trabalho analisou estatísticas das nações mais populosas do mundo, entre as quais está o Brasil, e das cinco maiores da Europa. Em 2005 esse conjunto de países tinha entre 4,1 milhões e 4,6 milhões de pacientes com Parkinson. Em 2030 terá de 8,7 milhões a 9,3 milhões de casos da doença. Nesse mesmo período o número de doentes no Brasil saltará de 160 mil para 340 mil. Segundo o artigo científico, as taxas estimadas de crescimento da incidência do Parkinson em países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil, que estão passando apenas agora por um processo de envelhecimento de sua população, serão superiores a 100%. Em economias já desenvolvidas e compostas atualmente por um grande número de idosos, como Japão, Alemanha, Itália e Reino Unido, a quantidade de doentes deverá aumentar menos de 50%.
desenhos: Instituto Santiago Ramón y Cajal / Wikimedia
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e forma grosseira, estima-se que 1% dos habitantes do planeta com mais de 65 anos deverão ter Parkinson. Mas o índice pode variar bastante de acordo com as características da população analisada. Um estudo feito em 2006 na cidade de Bambuí, em Minas Gerais, encontrou uma incidência elevada do Parkinson, de mais de 7,2% em meio a um grupo de 1.186 indivíduos com mais de 64 anos. O valor é três ou quatro vezes maior do que o encontrado em trabalhos semelhantes realizados na Europa, Ásia e Estados Unidos. Quase metade dos casos da doença em Bambuí tinha sido induzida pelo uso descontrolado de remédios contra psicoses e vertigens. “Atualmente acreditamos que a quantidade de casos da doença decorrentes do emprego sem controle de drogas diminuiu”, afirma Francisco Cardoso, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador do estudo. “O controle na venda de remédios melhorou no país.” As células-tronco não são a única aposta da ciência para aprimorar as formas de tratamento do Parkinson. Não há perspectivas de cura da doença a curto prazo. No entanto, os pesquisadores esperam ser possível barrar a evolução desse distúrbio neurológico ou ao menos retardar sua progressão por meio do desenvolvimento de novos remédios e cirurgias mais eficazes e, se possível, menos invasivas. “Hoje tentamos compensar os efeitos do Parkinson por meio da administração de medicamentos orais”, diz Cardoso. “Mas a forma como repomos a dopamina não é boa.” Quando, por exemplo, o paciente toma a droga levodopa, um precursor da dopamina, seu cérebro entra em contato com altas concentrações do neurotransmissor. Com o passar do tempo, a quantidade da substância diminui. Dessa forma, o doente tratado experimenta ciclos de excesso e de falta do neurotransmissor, vivendo um movimento que lembra uma gangorra química, com altos e baixos de dopamina. Alguns remédios tentam regular o momento em que a dopamina, produzida de forma artificial devido à ingestão de levodopa, se torna disponível para ser usada pelo cérebro do doente. Mas o controle desse processo ainda precisa ser refinado e a imitação dos
CIRURGIAS MENOS INVASIVAS PARA MELHORAR A COMUNICAÇãO ENTRE NEURôNIOS SãO OUTRA APOSTA CONTRA O PARKINSON
mecanismos fisiológicos é imperfeita. A situação se torna ainda mais complicada quando as drogas deixam de controlar os sintomas do Parkinson ou começam a provocar efeitos colaterais. O uso prolongado de precursores da dopamina causa, às vezes, movimentos involuntários e repetitivos, denominados tecnicamente de discinesias, que podem levar o paciente a morder os lábios, colocar a língua para fora ou piscar rapidamente. Nesses casos a cirurgia de estimulação profunda do cérebro, a DBS, pode ser indicada. Há dois anos a equipe do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, da Universidade Duke (EUA) e fundador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), sugeriu que a estimulação
elétrica talvez possa produzir bons resultados contra o Parkinson sem a necessidade de abrir o crânio dos doentes. Num artigo que foi capa da revista científica Science de 20 de março de 2009, Nicolelis relatou um bem-sucedido experimento com ratos e camundongos que tinham Parkinson induzido: a instalação de pequenos eletrodos na superfície da medula espinhal dos animais levou-os a recobrarem a capacidade normal de locomoção. Segundo o cientista, o procedimento de colocação dos eletrodos dura 20 minutos, é pouco invasivo (abre-se apenas a pele do animal) e seguro. A nova abordagem, que agora está sendo testada em macacos, foi a primeira tentativa de tratamento do Parkinson a não atuar diretamente no cérebro. É difícil prever se novas terapias contra o Parkinson vão surgir de estudos como os feitos pelas equipes de Mayana Zatz, na USP, e Esper Cavalheiro, na Unifesp. Por ora, esses trabalhos, e também o de outros cientistas, ainda se constituem em linhas de pesquisa a serem trilhadas, e não em possibilidades imediatas de tratamento. Mas os médicos que cuidam das pessoas com Parkinson não veem motivo para pessimismo. Os pacientes vivem cada vez mais tempo com a doença, décadas inclusive, embora haja a questão delicada dos efeitos colaterais causados pelos remédios, e os eletrodos e baterias usados nas cirurgias DBS se tornam menores e mais eficientes. “Ainda não sabemos como os neurônios ‘conversam’ entre si, mas hoje conseguimos registrar a atividade de uma quantidade maior de células no cérebro”, afirma o neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira, professor da USP e membro do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital n Sírio-Libanês, de São Paulo. Artigos científicos 1. PEREIRA, M.C. et al. Contamination of mesenchymal stem-cells with fibroblasts accelerates neurodegeneration in an experimental model of parkinson’s disease. stem cell reviews and reports. Publicado on-line no dia 19 de abril de 2011. 2. VENKATARAMANA, N. K. et al. Openlabeled study of unilateral autologous bonemarrow-derived mesenchymal stem cell transplantation in Parkinson’s disease. Translational Research. v. 155 (2), p. 62-70. fev. 2010. pESQUISA FAPESP 183
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Estratégias mundo
O resgate das coleções Uma rede de museus científicos de Portugal está organizando coleções de mais de 2 milhões de espécimes de animais e plantas, coletados nos últimos 200 anos, que estavam dispersas e em condições precárias em cinco instituições de pesquisa. 22
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“Não podíamos continuar a ver perder este patrimônio”, disse ao jornal O Público Paulo Gama Mota, diretor do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra e porta-voz do recém-criado Consórcio Nacional para a Preservação e Uso em Investigação das Coleções de História Natural. Parte do material foi recolhido
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em expedições ao Brasil, Angola e Moçambique. Em janeiro foi descoberta uma coleção rara de peixes do Brasil, esquecida na Universidade de Coimbra, que fora recolhida pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, do século XVIII. “O abandono das coleções explica-se pela falta de interesse científico que existia no passado”, disse Gama Mota.
Variedades reforçadas A Fundação Bill & Melinda Gates vai investir US$ 20 milhões no desenvolvimento de novas variedades de arroz e de mandioca para reduzir a desnutrição na Ásia e na África. Os recursos serão
usados no desenvolvimento e no lançamento do GoldenRice, um tipo de arroz enriquecido com vitamina A, nas Filipinas e em Bangladesh, e da BioCassava Plus, raiz reforçada com vitamina A, ferro e proteínas, no Quênia e na Nigéria. A decisão de investir nos dois produtos vem da constatação de que, em regiões da Ásia, as pessoas dependem do arroz para prover de 50% a 80% dos gastos calóricos, assim como 70 milhões de africanos têm a mandioca como principal alimento. Culturas enriquecidas podem reduzir a mortalidade e a incidência de doenças, disse ao site da revista Nature (14 de abril) Lawrence Kent, diretor de desenvolvimento agrícola da fundação. golden rice project
A National Research Council (NRC), uma das principais agências de pesquisa do Canadá, anunciou uma mudança que causou desconforto em parte da comunidade científica do país. Pesquisadores dos institutos vinculados à agência perderam autonomia sobre o destino de 20% dos recursos para projetos e a totalidade do orçamento para infraestrutura, em benefício de um Comitê Executivo que vai investir em programas desenhados para atrair parceiros privados. Tais programas preveem o desenvolvimento de uma nova variedade de trigo; o aperfeiçoamento de aparelhos eletrônicos de impressão; o aumento da produção de biocompósitos; e o uso de algas para absorver emissões de carbono da indústria. John Polanyi, Nobel de Química de 1986 e professor da Universidade de Toronto, criticou a mudança, que, segundo diz, vai enfraquecer a pesquisa básica nos laboratórios da NRC. Para o presidente da agência, John McDougall, há duplicidade nos esforços com ciência básica feitos pela NRC e as universidades canadenses, que, por sua vez, dispõem de outras fontes de financiamento para essa finalidade. Disse, ainda, que o Comitê Executivo será responsável, no futuro, pela decisão sobre 80% do orçamento. Robert Dunn, diretor do Instituto Neurológico de Montreal, disse à revista Nature (21 de abril) que o governo canadense foi o incentivador da mudança, pois tem interesse em exercer mais controle sobre a pesquisa do país. “Mas a avaliação por pares ainda é o melhor mecanismo para garantir que recursos limitados sejam atribuídos aos melhores projetos.”
catarina bessell
Foco em ciência aplicada
Arroz normal e GoldenRice
james gathany / cdc
Chile e Estados Unidos celebraram uma série de acordos na área científica na visita de 21 horas que o presidente Barack Obama fez a Santiago. Um dos acordos estabelece cooperação na área nuclear e gerou polêmica no país, assustado com o terremoto seguido de tsunami que causou vazamento radioativo na usina de Fukushima – o Chile é um país sujeito a grandes abalos sísmicos, como o Japão. Outro acordo prevê parcerias no gerenciamento de catástrofes, um desdobramento da ajuda que os Estados Unidos deram após o terremoto que atingiu o Chile no dia 27 de fevereiro de 2010. No dia da chegada de Obama, o Chile recebeu um carregamento de equipamentos científicos usados cedidos pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) para laboratórios chilenos danificados pelo sismo de 2010. São 84 centrífugas,
Guerra ao mosquito Uma parceria entre instituições do Reino Unido e o governo da Arábia Saudita vai criar um centro de pesquisa dedicado a controlar infecções causadas por insetos, como malária e dengue, no Oriente Médio. O Ministério da Saúde saudita destinou US$ 5,5 milhões para a iniciativa, que tem como parceiros a Escola de Medicina Tropical de Liverpool e o Consórcio para Inovação no Controle de Vetores, rede sediada na Inglaterra. O centro começará a funcionar em 2012, com sede em Riad. O recrutamento de pessoal vai começar logo e o primeiro projeto será a versão de um programa de computador que monitora a incidência da malária e orienta esforços para controlar o mosquito que dissemina a doença. "O centro também vai mapear as doenças infecciosas em outros países da região, como o Iêmen, que está enfrentando um aumento no número de vítimas", disse à agência SciDev.Net Ziad Memish, assessor do Ministério da Saúde saudita. Pouco mais da metade da população saudita está vulnerável à malária, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
computadores, incubadoras e espectrofotômetros. “Muitos laboratórios dos NIH se reaparelham a cada três anos. Alguns dos equipamentos estão quase
Anopheles, que dissemina a malária
Caçadores de plágios
novos e terão grande serventia para o Chile”, afirmou à agência SciDev. Net Pablo Moya, pesquisador chileno que faz pós-doutorado nos NIH.
Esteban Maldonado / wikicommons
Os ecos do terremoto
Efeitos do sismo em Santiago
Um grupo anônimo de ativistas da internet está agitando a política alemã ao denunciar plágio em teses acadêmicas defendidas por autoridades. Autointitulados “caçadores de plágio”, eles ganharam notoriedade há três meses, quando o ministro da Defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, renunciou após admitir que copiara parte de sua tese de doutorado. O rastro de denúncias se amplia. O alvo mais recente é a vice-presidente do Parlamento europeu, Silvana Koch-Mehrin. Segundo o grupo, que apresenta suas denúncias no site VroniPlag (de.vroniplag.wikia.com), pelo menos um quarto de sua tese sobre história econômica foi copiado. A Universidade Heidelberg, onde a tese foi defendida, investiga o caso. A advogada Veronica Sass, filha do ex-governador da Bavária Edmund Stoiber, também foi acusada. Há cerca de 15 Ph.Ds. que contribuem para o site, disse à agência Reuters Debora Weber-Wulff, professora da Universidade HTW, em Berlim. Segundo ela, pelo menos 10% de uma tese precisa ser plagiada para aparecer no site.
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Exposição em Leipzig A FAPESP e a Universidade de Leipzig, Alemanha, inauguraram em Leipzig a exposição Brazilian nature – Mystery and destiny (Natureza brasileira – Mistério e destino), que aborda o conhecimento sobre a biodiversidade brasileira. A mostra, que fica aberta ao público até o dia 15 de julho, tem como referência principal a Flora brasiliensis, obra do botânico alemão Carl Philipp von Martius (1794-1868), que mesmo 171 anos após ter seu primeiro volume publicado permanece como o mais completo levantamento da flora brasileira. Os 37 painéis da mostra foram concebidos com base nos dados de três projetos apoiados pela FAPESP. Um deles é o projeto Flora brasiliensis on-line e revisitada. A segunda parte remete ao projeto Flora fanerogâmica do estado de São Paulo, iniciado em 1993 com a participação de mais de 200 pesquisadores. A terceira aborda a biodiversidade de forma geral e está vinculada ao programa Biota-FAPESP, cujos resultados têm sido aplicados como instrumento de preservação ambiental no território paulista. Representantes dos três projetos auxiliaram na compilação do conteúdo da mostra, que já foi apresentada no Museu do Jardim Botânico de Berlim, em 2008, e na Haus der Wissenschaft, em Bremen, em 2009. Os painéis da exposição podem ser vistos, com legendas em português, inglês e alemão, no endereço <www. fapesp.br/publicacoes/braziliannature>.
Laboratório contra o câncer Um grande laboratório de pesquisas sobre o câncer foi inaugurado na capital paulista. O Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) vai coordenar uma rede de 20 grupos que atuam em pesquisa básica 24
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e aplicada, disponibilizando equipamentos e serviços. O investimento é de R$ 2 milhões. O laboratório ocupa uma área de 2 mil metros quadrados e integra especialidades como epidemiologia, genética molecular, biologia celular, biologia molecular, virologia e engenharia genética, entre outras. A infraestrutura inclui
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Melocactus fotografado na Bahia
microscópios a laser, sequenciadores de DNA e separadores de células. Outra novidade é a implantação de um banco de amostras biológicas, com fragmentos de tumores congelados, amostras de sangue, RNA, DNA e proteínas coletadas dos pacientes. “O centro permitirá testar com mais velocidade os avanços que surgirem na pesquisa em oncologia”, diz Paulo Hoff, diretor-geral do Icesp.
Biociência agrícola O campus de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp) tornou-se sede do primeiro escritório para a América do Sul do Centro Internacional de Biociência Agrícola (Cabi, na sigla em inglês), organização internacional que reúne 400 pesquisadores voltada para publicações e projetos de pesquisa em agricultura e meio ambiente. Entre seus serviços estão o CAB Abstracts, um dos principais bancos de dados agrícolas e ambientais do mundo, e o Global Health, base de dados bibliográfica sobre informações de saúde pública. O Cabi também gerencia uma das maiores coleções de recursos genéticos de culturas de fungo. Entre os projetos realizados pelo centro está o Plantwise, que busca melhorar a segurança alimentar e a vida das populações rurais pobres, através da redução das perdas nas colheitas.
Cris Castello Branco
volker bittrich
Estratégias brasil
Ultrassom de alta intensidade: tecnologia
Agência Brasil
Contribuição mais ampla
Biodiversidade abrigada O campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo acaba de tomar uma iniciativa importante em prol do conhecimento sobre a rica diversidade biológica brasileira. Com apoio da FAPESP de quase US$ 800 mil, as coleções biológicas estão sendo reunidas em um museu da biodiversidade, anunciou o biólogo Flávio Bockman em carta à revista Nature (21 de abril). Segundo ele, só as instituições locais podem amealhar coleções informativas para a investigação biológica. “Universidades com coleções científicas fornecem um ambiente rico para o recrutamento e o treinamento de biólogos evolutivos que lidarão com questões prementes em biodiversidade”, afirmou. O pesquisador chama a atenção para a falta de financiamento contínuo, já que esses museus não recebem uma proporção permanente no orçamento das
O Grupo de Trabalho 2 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), responsável por avaliar os impactos, adaptações e vulnerabilidades às mudanças climáticas, deverá incorporar contribuições de pesquisadores não filiados ao órgão para aprimorar a qualidade de seu próximo relatório. O anúncio foi um dos resultados de uma reunião regional do painel para as Américas Central e Enchente em do Sul realizada no Instituto Nacional Santa Catarina: vulnerabilidade de Pesquisas Espaciais (Inpe) entre os dias 11 e 13 de abril. “A inclusão de contribuições de autores que não universidades. O resultado é participam do IPCC possibilita o preenchimento de ‘vazios de que as coleções não têm conhecimento’ existentes em algumas regiões das Américas garantias de permanência Central e do Sul”, disse José Marengo, climatologista do independentemente da Inpe e membro do IPCC que coordenou a reunião. “Sabemos duração da vida profissional que existem estudos, por exemplo, de vulnerabilidade de de seus curadores. megacidades ou de ocupação de áreas de risco, mas como não estão disponibilizados amplamente acabam não sendo A expectativa é que o exemplo considerados pelo Grupo do IPCC. Agora poderemos reunir de Ribeirão Preto influencie outras universidades para qualitativamente esse material.” O IPCC está promovendo mudar essa realidade. encontros de âmbito regional reunindo cientistas que participarão da elaboração do seu quinto relatório de avaliação, que deve ser divulgado entre 2013 e 2014.
FAPESP lança novo portal
A FAPESP apresentou no dia 25 de abril seu novo portal na internet (www.fapesp.br), criado para organizar melhor as informações oferecidas a seus mais diversos públicos. A Fundação recebe mensalmente mais de 650 mil visitas no portal. Uma das mudanças principais está relacionada à distribuição de conteúdo, que passa a ser dividido em três áreas principais: “Públicos”, “Atividades e serviços” e “Quem somos”. A primeira área apresenta sites com informações específicas para os principais públicos atendidos pela
FAPESP: como pesquisadores, assessores, bolsistas, candidatos a auxílios e jornalistas, entre outros. A área “Atividades e serviços” remete à revista Pesquisa FAPESP e à Agência FAPESP, além dos convênios e chamadas de propostas, entre outros. A área “Quem somos” organiza as informações institucionais da Fundação, como dados sobre os dirigentes, membros das coordenações e a sistemática de análise por pares para as
solicitações encaminhadas nas diferentes linhas de fomento. No alto da home page há a ferramenta de busca e acesso direto ao serviço Converse com a FAPESP, de atendimento a dúvidas e solicitações dos diversos públicos.
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[ financiamento ]
o peso da tesoura
Como o Brasil e os Estados Unidos enfrentam seus cortes nos recursos para ciência e tecnologia
Fabrício Marques ilustrações Andrés Sand oval
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s comunidades científicas tanto do Brasil como dos Estados Unidos amargam a contingência de trabalhar com menos recursos públicos federais do que em 2010, após o anúncio de cortes agudos nos investimentos em ciência e tecnologia em ambos os países. No caso do Brasil, o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) ficou em cerca de R$ 6,37 bilhões. Inicialmente, a verba prevista para a pasta era de R$ 8,1 bilhões, mas foram cortados R$ 713 milhões em emendas parlamentares, que atingiram principalmente projetos de inclusão digital, e R$ 353 milhões do orçamento direto. Outros R$ 610 milhões dos recursos dos fundos setoriais foram bloqueados para garantir recursos para o pagamento das dívidas do governo, expediente conhecido como contingenciamento. No pacote de cortes de R$ 50 bilhões no orçamento da União, justificado pela necessidade de cumprir metas fiscais e evitar o aumento da inflação, a redução no orçamento do MCT ficou em R$ 1,7 bilhão. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma importante fonte de recursos do ministério, teve bloqueados 20% de seus recursos. Com isso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) perdeu R$ 430 milhões. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência do governo federal que financia projetos de
política científica e tecnológica
inovação de empresas e universidades, perdeu R$ 1 bilhão. O corte interrompe uma trajetória ascendente de gastos federais em ciência. No ano passado, o orçamento do MCT alcançara R$ 6,6 bilhões. “Nossos indicadores de ciência estão em expansão e, no ano passado, pela primeira vez, o orçamento foi integralmente executado. Um corte dessa magnitude terá consequências que serão sentidas no futuro”, diz a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader. “Os jovens não enxergam a ciência como uma profissão de futuro e estamos perdendo a oportunidade de reverter essa percepção.” Já nos Estados Unidos, um corte que prometia ser dramático acabou reduzido num acerto entre o governo e os deputados, poupando as agências de pesquisa de grandes sacrifícios na redução de US$ 38,5 bilhões do orçamento da União de 2011, em relação ao nível de 2010. Uma proposta aprovada pelos deputados em fevereiro, mas rejeitada pelo Senado, havia previsto um corte geral bem maior, de US$ 61 bilhões, que ameaçava causar grandes prejuízos
A ciência norte-americana se beneficia de uma estrutura de financiamento com forte participação privada
perdeu US$ 65 milhões e receberá US$ 6,8 bilhões. A Nasa ficou com US$ 18,5 bilhões, US$ 200 milhões a menos do que em 2010. No total, o orçamento garante US$ 66,8 bilhões em dispêndios federais com ciência. “No final, decidiu-se que, embora seja importante cortar gastos federais, é necessário seguir priorizando a pesquisa e a educação”, disse à revista Nature Barry Toiv, da Associação das Universidades Norte-americanas. O apetite por cortes da maioria republicana na Câmara dos Deputados projeta, porém, novas batalhas nos debates do orçamento de 2012.
N principalmente à pesquisa básica. No final, a perda de recursos das agências científicas ficou em torno de 1% – de todo modo, o maior corte já registrado nas últimas décadas. Os National Institutes of Health (NIH) vão receber US$ 30,7 bilhões, US$ 300 milhões a menos do que o nível de 2010, enquanto a National Science Foundation (NSF)
os Estados Unidos houve um intenso debate público em torno do corte orçamentário e uma firme disposição do governo de evitar que a ciência e a educação fossem sacrificadas. O presidente Barack Obama programou visitas a escolas, onde aproveitava para se pronunciar contra cortes indiscriminados. Já no Brasil o corte pegou de surpresa as entidades científicas. A presidente da SBPC, Helena Nader, critica o caráter linear do corte, que impõe restrições até mesmo às atiPESQUISA FAPESP 183
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O tamanho
dos orçamentos %PIB investida em P&D
1,09%
2,77%
BRasil
EUA
% do esforço Privado No investimento Em P&D
44%
65%
BRasil
EUA
investimento federal em ciência e tecnologia nos dois países
US$ 670 Mi
US$ 66,8 Bi
orçamento de 2011 Corte R$ 1,7 Bi
R$ 6,37 Bi
BRasil
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vidades-fins do ministério: as reuniões de instâncias como a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) e do recém-criado Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) já não se realizam com a periodicidade habitual por falta de recursos para pagar passagens e diárias. Outro dado preocupante, segundo a presidente da SBPC, é que até agora não houve reunião do Fundo de Infraestrutura (CTInfra), instrumento fundamental para a renovação de laboratórios e a construção de instalações. “As universidades federais, ao contrário das estaduais paulistas, não têm um orçamento e dependem muito de instrumentos como esse para fazer pesquisa”, diz ela, que é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifiesp) e membro da coordenação na área de biologia da FAPESP. Helena Nader critica a mudança de rumo na política científica e tecnológica do país. “No final de 2010 participei de uma reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, em que o presidente da República foi ovacionado pela ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia. Um mês depois veio o corte de orçamento e, curiosamente, o conselho até hoje não voltou a se reunir”, afirma. A SBPC já pediu audiências com os ministros da Casa Civil da Presidência da República e do Planejamento para tentar reverter os cortes. “Conversamos com o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, mas ele também é contra os cortes”, afirma. O ministro já se disse preocupado com a repercussão dos cortes na política de inovação e estuda socorrer a Finep com um empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com aval do Tesouro. “O BNDES tem uma carteira de pedidos de R$ 2,5 bilhões, com bons projetos que tecnicamente merecem ser aprovados. A política de inovação é uma prioridade”, disse o ministro, em entrevista ao programa Canal livre, da Rede Bandeirantes. O matemático Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências, destaca o fato de que países emergentes que competem diretamente com o Brasil, como China e Índia, vêm ampliando seus orçamentos. “Eles estão acelerando bastante e precisamos acompanhá-los”,
afirmou Palis, que está esperançoso na reversão de parte do corte, principalmente no caso da Finep. “Seria um alívio restrito à inovação, mas muito importante.” Segundo dados do MCT, o investimento do Brasil em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em 2008 equivaleu a 1,09% do PIB, ante 1,54% da China. Já os Estados Unidos investiram 2,77% do PIB em P&D. O orçamento do Ministério da Ciência da China em 2011 é de 24,69 bilhões de yuans, o equivalente a US$ 3,8 bilhões, um aumento de 14% em relação a 2010. O orçamento para ciência na Índia, espalhado por vários ministérios, também prevê 14% a mais do que em 2010. “Os Brics, os países em desenvolvimento e os países de todo o mundo vêm investindo largamente em ciência, tecnologia e inovação”, disse a diretora da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), Tamara Naiz. “O Brasil não pode seguir na contramão de uma tendência mundial.”
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e a ciência norte-americana sofreu um corte proporcionalmente menor do que o brasileiro, também se beneficia de uma estrutura de financiamento que não depende exageradamente de recursos públicos. “Além de o orçamento norte-americano ser bem maior, os pesquisadores recebem bastante financiamento de empresas e entidades filantrópicas. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que eles começaram a investir em educação no século XVIII e nós na década de 1930”, afirma Helena Nader, da SBPC. Em 2008, o setor privado foi responsável por 44% dos investimentos em P&D no Brasil, que, repetindo, alcançou 1,09% do PIB. Nos Estados Unidos, as empresas foram responsáveis por dois terços dos dispêndios em P&D, que alcançaram 2,77% de seu PIB. Não deixa de ser curioso que o Brasil tenha sido citado como exemplo por Barack Obama, em meio aos debates sobre os cortes orçamentários, para justificar a ampliação dos investimentos na pesquisa energética. “Se alguém duvida do potencial dos combustíveis renováveis, considere o Brasil. Lá, mais da metade dos veículos pode utilizar biocombustíveis”, disse o presidente norte-americano em pronunciamento no dia 5 de abril. n
Reforma espanhola
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Espanha deve ganhar nos próximos meses uma nova legislação sobre ciência, tecnologia e inovação, que busca estimular os investimentos do setor privado em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e cria novas bases para a carreira de pesquisador, submetendo-o a novos processos de avaliação, mas garantindo direitos trabalhistas inéditos no país. A lei, proposta pelo governo há um ano, foi aprovada por unanimidade em fevereiro na Comissão de Ciência e Tecnologia do Congresso e agora tramita no Senado. A previsão é que entre em vigor até meados de 2011. Ela substituirá a Lei de Ciência que vigora desde 1986. O estímulo para mudar o marco legal tomou impulso em 2008, com a recriação do Ministério da Ciência e Inovação, que aglutinou órgãos das pastas de Educação e Saúde. Um Ministério da Ciência já existira anteriormente, mas foi extinto em 2004. A Espanha é o 9º país no ranking mundial de produção científica, mas cai para o 20º lugar quando se avalia o impacto de sua pesquisa. Segundo a ministra da Ciência e Inovação, a bióloga Cristina Garmendia, o sistema de P&D do país consolidou-se nos últimos anos, com a multiplicação do número de cientistas e o crescimento do volume de recursos, além de uma forte integração da ciência espanhola ao espaço europeu. Persiste, contudo, um estranhamento entre a comunidade científica e as empresas. “A lei vai melhorar a nossa capacidade de transformar conhecimento em inovação, chave para uma economia sustentável”, disse. A lei incorpora a inovação ao sistema científico espanhol. A Agência de Pesquisa Espanhola deve ser criada em um ano, com a missão de monitorar os recursos e estimular o setor privado a investir mais em P&D. Pesquisadores terão mais flexibilidade na carreira para criar empresas. Para reforçar as conexões entre o sistema público e o setor privado, a lei prevê a criação de um estatuto da Jovem Empresa Inovadora, que receberá incentivos, por exemplo, no campo das compras governamentais, e prevê a criação da Estratégia Estatal de Inovação, que promove a cooperação entre diversas instâncias da administração. Mas ainda há lacunas a resolver, que estão sendo discutidas no Senado. “Não se abordou um proble-
Nova lei na Espanha busca aproximar a ciência do setor produtivo
ma importante, que é o dos incentivos fiscais para estimular o investimento privado em inovação”, disse o deputado Gabriel Elorriaga, do Partido Popular, à agência Europa Press. O Congresso promoveu modificações na estrutura da carreira científica, atrelando a estabilidade à avaliação de desempenho. A nova lei mantém o esquema que vincula os cientistas aos quadros do funcionalismo civil, mas cria novidades sobretudo para os pesquisadores em início de carreira. Uma delas é um contrato inicial de cinco anos, não prorrogável, durante o qual o pesquisador será continuamente avaliado e os resultados obtidos nortearão seu aproveitamento futuro. Outra novidade é a substituição do sistema de bolsas por contratos de trabalho de tempo determinado. “Onde antes havia bolsas, agora haverá os contratos”, ressaltou Cristina Garmendia. Com isso, disse a ministra, a idade média com a qual um pesquisador alcançará uma posição fixa vai ser reduzida de 39 para 34 anos. Miguel Ángel de la Rosa, presidente da Sociedade Espanhola de Bioquímica e Biología Molecular, lembra que a nova lei de ciência surge num cenário econômico adverso para a Europa. “Mas é o momento de fazê-lo, com decisão e visão de futuro”, disse. “Já temos laboratórios que competem com os melhores do mundo, uma comunidade científica consolidada e jovens líderes formando seus próprios grupos de pesquisa. A lei permitirá avançar mais”, afirmou. n
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Atalhos para a universidade USP e Unicamp adotam novas estratégias para atrair alunos de escolas públicas
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s duas principais universidades de pesquisa do país inauguram novas estratégias para ampliar o número de alunos egressos de escolas públicas. A principal novidade vem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que criou em 2011 um curso piloto de dois anos de duração para 120 alunos de escolas públicas campineiras selecionados de acordo com a performance no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Como boa parte dos alunos do ensino público nem sequer cogita fazer o vestibular da Unicamp, resolvemos ir atrás deles”, diz o pró-reitor de Graduação da Unicamp, o físico Marcelo Knobel, um dos idealizadores da iniciativa. Ao final do curso piloto, e dependendo do desempenho de cada um, os alunos poderão ingressar em vagas das carreiras regulares da universidade sem passar pelo vestibular. Batizada de Profis, sigla para Programa de Formação Interdisciplinar Superior, a iniciativa busca ampliar o contingente de estudantes economicamente desfavorecidos na instituição. Desde 2005, a Unicamp mantém um programa que oferece bonifi-
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fotos eduardo cesar
[ Recursos humanos ]
cações nas notas obtidas no vestibular de alunos oriundos de escolas públicas, com um bônus extra para aqueles que se declarem negros, pardos ou indígenas. “Os bônus no vestibular continuam, mas eles têm uma limitação: só beneficiam quem toma a iniciativa de participar do vestibular”, afirma Knobel. A Universidade de São Paulo (USP) aperfeiçoou o sistema de bônus no vestibular que desde 2007 beneficiava alunos de escolas públicas, no âmbito de seu Programa de Inclusão Social (Inclusp). A bonificação máxima na nota do vestibular de estudantes que tiveram toda a sua formação anterior em escolas públicas, que era de 3% em 2007 e subiu para 12% em 2009, agora chega a 15%. O bônus é cumulativo e cresce na mesma proporção do desempenho do candidato. “O desconhecimento dos alunos de escolas públicas sobre a USP é tamanho que muitos acham que a universidade é paga”, diz a pró-reitora de Graduação da USP, Telma Zorn. A novidade é que a USP abandonou a ideia de fazer uma prova específica no ambiente das escolas públicas apenas para os alunos do terceiro ano do ensino médio. Agora o programa será expandido para os alunos do 2º ano que prestarem o vestibular no próprio ambiente da Fuvest como treineiros – aqueles candidatos que ainda não concluíram o ensino médio mas já querem ganhar experiência no vestibular. Uma parte do bônus de 15% vem dessa participação. “Com o incentivo para que façam o vestibular como treineiros, buscamos incentivar os alunos de escolas públicas a iniciar mais cedo a preparação para o vestibular e a cobrar uma formação de mais qualidade”, diz Telma Zorn. Segundo ela, quase a totalidade dos cerca de 12 mil treineiros que prestam o vestibular a cada ano vem do ensino privado. “Queremos reverter uma cultura de autoexclusão da USP e das grandes universidades instalada na rede pública há décadas; criar para os alunos e seus professores um projeto de futuro; trazer os melhores alunos das escolas públicas para a USP e privilegiar aqueles com desvantagens socioeconômicas mais expressivas”, diz. Nessa direção, observa a pró-reitora, apenas os alunos que fizeram integralmente seus estudos fundamental e médio em escolas públicas poderão usufruir do teto de 15%
de bônus, enquanto os que fizeram só o nível médio nessas escolas terão bonificação máxima de 8%. “Esse procedimento garante maior benefício para os alunos com desvantagens socioeconômicas mais profundas, com renda familiar entre 1 e 5 salários mínimos. Para garantir a qualidade, essas bonificações estão atreladas ao desempenho e o teto só será atingido por candidatos que perfizerem 60 pontos na primeira fase da Fuvest.” Alunos oriundos de escolas técnicas também passaram, desde o vestibular 2010, a poder concorrer pelo programa desde que tenham feito toda a sua formação na rede pública. Carreira científica - A inclusão de alu-
nos economicamente desfavorecidos num ensino superior público ainda fortemente dominado por estudantes de classe média egressos de escolas particulares é a principal ambição dos dois programas, mas eles também buscam atrair para a carreira científica um contingente maior de jovens talentos, preocupação recorrente das universidades de pesquisa. “Se nosso projeto tiver êxito, é natural que uma parte desses alunos siga a carreira de pesquisador. Potencial para isso eles têm: são os melhores de suas escolas”, afirma Knobel, da Unicamp. “A pós-graduação desmorona se não for bem alimentada pela graduação, assim como a graduação desmorona se o ensino médio não funcionar bem. A médio prazo, esse desequilíbrio poderá afetar profundamente a expansão e a qualidade dos programas de pós-graduação no país”, diz Telma Zorn, da USP, que vem estimulando o contato dos estudantes carentes com a carreira científica – a universidade aboliu as bolsas de trabalho, em que os alunos recebiam uma quantia para prestar pequenos serviços, substituindo-as por bolsas de iniciação científica. A preocupação converge com uma das conclusões da Conferência Paulista de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada em abril de 2010, segundo a qual as deficiências no ensino fundamental e médio são a grande questão de fundo para a formação de recursos humanos no estado. A meta de triplicar o número de pesquisadores em atividade no estado – dos 50 mil atuais para mais de 150 mil – enfrenta uma barreira: o número de vagas para o ensino superior é maior do que o número de pessoas concluindo PESQUISA FAPESP 183
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o ensino médio. Para aumentar o número de pesquisadores, seria necessário melhorar a qualidade do ensino médio para haver candidatos em quantidade e qualidade superiores aos de hoje. As receitas adotadas pela USP e pela Unicamp buscam preservar a avaliação por mérito dos estudantes – as duas instituições optaram por não estabelecer sistemas de cotas, como os que existem em universidades federais, por considerar que a reserva de vagas pode punir os alunos de escolas privadas com bom desempenho. Os bônus na nota do vestibular, na prática, acabam servindo como um empurrãozinho para alunos que já estavam próximos da aprovação. Já no caso do curso piloto da Unicamp, só os melhores alunos das escolas são recrutados. Não faltam, é certo, críticas às estratégias das duas universidades. No exemplo da Unicamp, as principais restrições estão relacionadas aos propósitos e à duração do curso. “Ao contrário do que afirmaram, não se trata de um cursinho de luxo”, afirma Marcelo Knobel. “Estamos investindo na formação geral, com disciplinas de ética, literatura, história, física e biologia. Isso não é algo novo. Nos Estados Unidos, os liberal art colleges cumprem a função de dar esse tipo de formação para o aluno. Também não é um curso de nivelamento, pois a ideia é discutir questões de maneira abrangente”, diz. O tempo investido pelos estudantes num curso intermediário entre o ensino médio e a formação superior tradicional também foi alvo de críticas. “Mas é comum que os candidatos a uma vaga na Unicamp sejam reprovados na primeira tentativa e tenham de fazer até dois anos de cursinho para ter sucesso”, afirma Knobel, que aponta uma vantagem do modelo: 32
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“Ele evita a escolha precoce da carreira, que é uma causa de evasão. Os dois anos de vivência universitária podem propiciar uma escolha mais madura”. Priscila Aparecida da Silva Cardoso, 17 anos, uma das alunas do curso piloto, trocou uma vaga garantida no curso de publicidade da PUC de Campinas, com bolsa do ProUni, pela oportunidade de disputar uma vaga na Unicamp no início de 2013. “Quando soube do programa, achei fantástico. Para entrar na Unicamp eu teria de fazer cursinho e trabalhar. Agora posso melhorar minha formação e escolher o curso que realmente quero fazer”, afirma Priscila. Filha de uma dona de casa e de um mestre de obras, ela sempre estudou em escolas públicas – seu desempenho no Enem destacou-se na Escola Estadual Culto à Ciência, na região central de Campinas. Mas ela não conseguiu passar no vestibular da Unicamp para economia e engenharia de alimentos.
Alunos na Unicamp: curso piloto
Estagnação - Os sistemas de bônus
das duas universidades também são alvo de críticas – a experiência dos últimos anos permite dizer que tiveram um impacto restrito na incorporação de egressos de escolas públicas. Uma hipótese é que a oferta de outras opções para alunos de escolas públicas – caso, por exemplo, das bolsas do ProUni – fez o número de matriculados provenientes do ensino público estagnar, a despeito das iniciativas. Em 2005, primeiro ano de implantação do programa de bônus na Unicamp, a admissão de alunos oriundos de escolas públicas foi de 34,1% do total, ante 29,6% no ano anterior. Mas esse percentual decresceu nos anos seguintes, até cair abaixo dos 30% em 2009. Em 2011 houve uma reação e chegou a 32% dos matriculados.
A dificuldade também foi observada na USP, que, com oscilações, não consegue sair da barreira dos 25% dos alunos. Para a antropóloga e especialista em políticas de ensino superior Eunice Durham, o sistema de bônus não teve nenhum efeito sobre a democratização do acesso à USP e um efeito mínimo em relação aos egressos do ensino médio público. “Por melhores que fossem as intenções, o programa apenas alimenta a ilusão por parte da USP de que ela está contribuindo para a democratização do ensino público”, escreveu a professora em artigo publicado em outubro de 2009. “Se se quer promover o ingresso de alunos de baixa renda, melhor seria oferecer bônus aos alunos mais pobres e não àqueles provenientes do ensino médio público, cuja renda é bastante variável”, afirmou. A professora defende a oferta de cursos pré-vestibulares gratuitos com novas tecnologias. “Poderia ter um efeito mais amplo e dar a oportunidade à USP de estudar a fundo as deficiências do ensino médio público.” Ela cita o exemplo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que oferece cursinhos pré-vestibulares em seus campi. Dos 4.586 estudantes desses cursinhos em 2010, 1.480 foram aprovados em vestibulares, sendo 1.085 em universidades públicas e 395 em particulares. Estratégia - A Unesp adotou a es-
tratégia dos pré-vestibulares porque já dispõe de uma boa proporção de egressos de escolas públicas, na casa dos 35% aos 40%. Isso é resultado de sua presença no interior do estado, onde a qualidade do ensino médio é, na média, melhor. Para Herman Voorwald, secretário estadual da Educação que até janeiro desempenhava o cargo de reitor da Unesp, a vantagem dos cursinhos é que eles dão ao aluno a chance de ingressar na universidade por seu mérito. “Mas é importante que as universidades tenham políticas para estimular o ingresso. Esse programa da Unicamp, por exemplo, é muito inteligente”, afirma. Voorwald ressalta, porém, que é fundamental as universidades participarem do esforço para melhorar a qualidade do ensino médio público. “Elas estão ajudando de várias formas e é isso que garantirá a ampliação do acesso de alunos menos favorecidos”, diz o secretário.
A experiência mostra que programas de bônus têm impacto ainda limitado, mas atraem jovens talentos de escolas públicas
No caso de instituições que adotam cotas, há dificuldades de outra natureza. A Universidade Federal do ABC (UFABC) criou um esquema abrangente para garantir a permanência dos cotistas. Cinquenta por cento das vagas são reservadas para egressos de escolas públicas e, desse quinhão, quase um terço destina-se a alunos que se declaram negros, pardos ou indígenas. A instituição tem 4.184 alunos e 1.500 deles recebem bolsas de R$ 300. Uma pesquisa recente feita pela UFABC mostrou que os cotistas têm um coeficiente de rendimento de 2,0, enquanto os não cotistas alcançam 2,08. Já os cotistas que recebem bolsas têm rendimento de 2,05. A seleção, contudo, não tem conseguido preencher todas as vagas. Uma pesquisa feita em 2010 mostrou que 38,7% dos alunos da instituição declararam-se cotistas. A proporção é superior aos 33% registrados em 2009, mas ainda distante dos 50% oferecidos no vestibular. Como acontece com muitas universidades, a UFABC se ressente com o problema da evasão. “Não temos dados consolidados, mas a evasão nem sempre é uma notícia ruim. Nossos cursos são quadrimestrais e acontece de o estudante ingressar na UFABC no mês de maio, mas depois passar no vestibular de universidades como a USP e a Unicamp e se transferir para elas”, diz Joel Pereira Felipe,
pró-reitor de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC. Os sistemas de bônus, apesar de suas limitações, vêm se mostrando eficientes para atrair estudantes de alto potencial. Em 2005, 34 dos 110 alunos da turma de medicina da Unicamp eram egressos da rede pública e 22 deles só foram admitidos graças à bonificação. “Até o quarto ano nenhum deles havia desistido nem teve matrícula trancada por fraco desempenho acadêmico, mas havia oito alunos oriundos da rede privada que estavam nessa situação”, diz o professor Renato Pedrosa, coordenador da Comissão Permanente de Vestibular da Unicamp. Entre as explicações possíveis destaca-se a habilidade especial dos alunos carentes, porém bem formados, para enfrentar situações desfavoráveis, qualidade nem sempre partilhada com os colegas de classe média. No caso da Unicamp há evidências de que os bônus estão atraindo um novo público. “A participação da escola pública está se dando a partir das escolas regulares, não das escolas técnicas, como ocorria no passado”, diz Pedrosa. “Em 2000, mais de três quartos dos alunos matriculados que vinham da rede pública haviam estudado em escolas técnicas. Hoje esse grupo corresponde a cerca de 35% dos alunos da rede pública.” n
Fabrício Marques PESQUISA FAPESP 183
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[ Globalização ]
In English, per favore Universidades italianas criam cursos em inglês para conquistar alunos do exterior Marcos Pivet ta, de Pav ia e Bolonha
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universidade de bologna
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om seis séculos e meio de existência, a tradicional Universidade de Pavia, situada numa pequena cidade de nome homônimo distante 35 quilômetros de Milão, norte da Itália, iniciou em 2009 um segundo curso de graduação em medicina com um programa acadêmico exatamente igual ao do curso tradicional. Não fosse por um detalhe a iniciativa poderia passar quase despercebida: todas as atividades do novo curso, que dura seis anos, são ministradas em inglês. “Só falamos em italiano se encontramos um aluno fora do horário de aula”, diz Antonio Rossi, um dos professores da disciplina de bioquímica. Nas aulas, mestres e alunos, independentemente de sua nacionalidade, são obrigados a trocar o idioma pátrio pelo de Shakespeare. A criação do curso numa língua estrangeira tinha um objetivo claro. “Queríamos internacionalizar mais a universidade, atrair alunos de melhor nível vindos do exterior e melhorar nossa posição nos rankings que comparam instituições de todo o mundo”, diz Maurizia Valli, coordenadora dos dois cursos de medicina da Universidade de Pavia, o antigo, em italiano, com 185 vagas anuais, e o novo, em inglês, com 100 postos, dos quais 20 para candidatos de fora da União Europeia. “Nossa
Internacionalização é meta de algumas universidades do país europeu
universidade tem um bom nível, mas a língua italiana não ajuda nesse objetivo.” No mais recente ranking QS, feito no Reino Unido, a Universidade de Pavia, que tem 25 mil alunos distribuídos por nove faculdades, ocupa, por exemplo, a posição de número 363, atrás de muitas instituições da Europa, Estados Unidos, Ásia e também das brasileiras Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O novo curso de medicina ainda não produziu os efeitos esperados. Em meio aos cerca de 75 mil habitantes da região em torno de Pavia, não chega a chamar atenção a quantidade de universitários de origem estrangeira. A maioria dos alunos que até agora entraram no curso em inglês era italiana em busca de um diploma com ares mais globalizados, capaz de lhes abrir postos de trabalho em outros países da Europa ou nos Estados Unidos. Esse é o caso de Elia Rigamonti, de 21 anos, aluno do segundo ano de medicina. “Fiz o curso secundário em Hong Kong e
falo inglês”, afirma Rigamonti. “Queria continuar praticando o idioma e resolvi fazer o curso nessa língua. A universidade é barata, menos organizada do que a de outros países, mas bastante competitiva.” Anualidade baixa - O valor das taxas
nas universidades públicas italianas é baixo quando comparado com o de instituições de ensino dos Estados Unidos e de outras nações europeias. Em Pavia, chega a no máximo uns € 3.500 por ano, dependendo da situação financeira do estudante. O atrativo dos preços moderados e o charme de viver na Itália deveriam ser suficientes para que houvesse uma fila interminável de candidatos do exterior. Não foi o que ocorreu até agora. Em 2009, primeiro ano de existência do curso, apenas 19 candidatos não europeus se inscreveram. Todos entraram e mal deu para cobrir a cota de 20 postos destinados a estudantes de fora do Velho Mundo. No ano passado a história não foi muito diferente.
O motivo da procura decepcionante parece ser um só. “Podemos dar o curso em inglês, mas o governo federal não nos deixa fazer o exame de seleção, que é nacional, em outra língua que não o italiano”, explica Maurizia. “Dessa forma, continuamos não atraindo os melhores alunos do exterior, mas apenas nosso antigo público de fora, composto de alguns interessados do Oriente Médio, sobretudo de Israel, da África e da Albânia.” A coordenadora do curso acredita que, quando mais universidades italianas passarem a oferecer formação superior em outros idiomas, será possível convencer o poder central da necessidade de se fazer um processo seletivo em inglês. No ano passado, ao menos outras duas instituições superiores de ensino iniciaram cursos de medicina totalmente em inglês: a Universidade de Milão, pública como a de Pavia, e o Instituto San Raffaele, privado e situado nessa mesma cidade. Em Pavia também há cursos de mestrado que duram dois anos e são ministrados apenas em inglês, como o de biologia molecular e genética e o de economia e negócios internacionais. Como se vê, a preocupação em melhorar a imagem e a reputação num mundo universitário globalizado e competitivo em que o inglês se firma cada vez mais como a língua franca da academia, não se restringe às faculdades italianas PESQUISA FAPESP 183
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Prédios da Universidade de Bolonha: 6% de alunos estrangeiros
Idioma italiano é visto como pouco interessante para estimular a vinda de mais estudantes do exterior
que formam cirurgiões ou clínicos gerais. Segundo um levantamento do ano passado do Conselho Universitário Nacional, órgão eletivo que representa o sistema superior de ensino italiano junto ao Ministério da Instrução, da Universidade e da Pesquisa, havia 64 cursos de graduação totalmente em inglês no país. Um quarto deles era na área de administração e economia. O número de atividades acadêmicas desenvolvidas em língua estrangeira cresce, a despeito de o total de cursos de graduação na Itália ter diminuído em 9% entre 2008 e 2010. 36
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Talvez o centro de ensino e pesquisa mais internacionalizado de toda a Itália não esteja localizado em Roma ou em Milão, as duas cidades mais conhecidas e badaladas do país. Considerada a mais antiga instituição de ensino superior do mundo ocidental, tendo sido fundada em 1088, a Universidade de Bolonha contava, em 2009, com 4.800 alunos do exterior, cerca de 6% de seu total. Pode parecer pouco perto dos percentuais de estudantes de fora do país exibidos pelas grandes universidades norte-americanas e inglesas, mas é um número acima da média italiana. Como virou rotina em lugares de renome mundial, a presença de chineses se destaca. Eles representam 10% dos alunos estrangeiros que estudam em Bolonha e contam com o apoio de uma associação ligada à universidade, o Colégio da China. De olho nesse público, a universidade mantém em seu site até páginas em mandarim. Para a historiadora Carla Salvaterra, pró-reitora de Relações Internacionais da Universidade de Bolonha, a abertura ao exterior sempre foi uma marca de sua instituição, famosa pelo humanismo e o ensino de direito. Não é um traço atual, tampouco do século XXI. Em 1988, quando completou 900 anos de vida, Bolonha foi, por exemplo, a principal formuladora e palco da assinatura da Magna Charta, um documento que, entre outros pontos, reafirma a autonomia
marcos pivetta
Universidade de Pavia: curso de medicina todo em inglês
e a independência das universidades, o caráter indissociável das atividades de ensino e pesquisa e a necessidade de conhecimento recíproco das diferentes culturas. “Naquela época não se falava muito em globalização, mas a Magna Charta foi importante em nosso processo de internacionalização”, afirma Carla. Hoje 721 universidades de 79 países, entre as quais 11 do Brasil, são signatárias do documento. Segundo a pró-reitora, Bolonha não tem como objetivo competir com universidade de outros países pelos melhores alunos do mundo. “O que queremos é manter um nível mínimo de qualidade”, explica ela. A Universidade de Bolonha, que conta com um campus em Buenos Aires desde o final da década de 1990 e envia anualmente cerca de 200 alunos para intercâmbios no exterior, mantém hoje mais de 40 cursos de graduação e sobretudo mestrados em línguas estrangeiras, a maioria em inglês. Em setembro deste ano começam as aulas de um novo MBA, todo em inglês, que tratará das relações Brasil-Europa do ponto de vista dos negócios. “O interesse pelo Brasil cresceu muito nos últimos cinco anos na Itália”, diz Roberto Vecchi, professor de literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Bolonha. Vecchi concluiu recentemente um levantamento informal na universidade e descobriu que 150 professores da universidade, das
áreas de humanas, exatas e biológicas, já mantiveram algum trabalho de pesquisa em colaboração com colegas brasileiros. A informação animou-o a montar, com apoio da reitoria local, um grupo com 30 pesquisadores de 15 departamentos distintos para estreitar as parcerias do outro lado do Atlântico. “Queremos desenvolver projetos interdisciplinares com os brasileiros”, diz ele. Vinte prêmios Nobel - Não é preciso
invocar nomes do passado distante, como Galileu Galilei, para dizer que a Itália teve e ainda tem peso na produção mundial de conhecimento. O país ganhou 20 prêmios Nobel, dos quais seis em Literatura, um da Paz e os demais nas áreas científicas. De acordo com o levantamento do Essential Science Indicators, que leva em conta trabalhos publicados em revistas indexadas pela empresa Thomson Reuters, a Itália foi o oitavo maior produtor de ciência entre janeiro de 2000 e agosto de 2010, logo atrás do Canadá. No período, emplacou quase 410 mil artigos científicos. É 30% a menos do que a vizinha França, sexta colocada no ranking, mas a Itália gasta 1,3% do PIB em pesquisa enquanto Paris destina por volta de 2% ao setor. Há quem acredite que os levantamentos internacionais não façam jus ao real tamanho da produção científica italiana. Com essa ideia na cabeça, o
bioquímico italiano Mauro Degli Esposti, professor da Universidade de Manchester, na Inglaterra, resolveu construir uma forma alternativa de medir a produtividade das universidades e dos pesquisadores de sua terra natal. Auxiliado por um colega estatístico profissional, mantém desde 2009 um ranking on-line baseado no chamado índice h, uma forma de medir o tamanho e o impacto da produção de um cientista. “A Itália deve ser o quinto produtor de ciência do mundo”, diz Degli Esposti, que mantém um site (http:// via-academy.org) onde os dados de suas listagens, separados por nome de cientistas, área acadêmica e por instituição de pesquisa, são atualizados de forma automática. “Os rankings internacionais ignoram o trabalho de muitos de meus compatriotas que vivem no exterior.” Hoje mais de 2 mil pesquisadores, todos com índice h superior a 30, um desempenho considerado bom, e ao menos 130 universidades aparecem nas listas da Via-Academy, cujos resultados são frequentemente noticiados pela imprensa italiana. As universidades de Bolonha, Pádua e Milão se revezam nos três primeiros lugares do ranking por instituição. Degli Esposti chama os melhores pesquisadores de seu país de top italian scientists. Assim mesmo, em inglês. É a internacionalização. n PESQUISA FAPESP 183
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[ homenagem ]
Os caminhos de Amélia Trabalhos da pesquisadora vão da física à educação, da memória à política científica Neldson Marcolin
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mélia Império Hamburger foi uma pesquisadora em física que publicou alguns trabalhos importantes no exterior, quando esteve na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, no final dos anos 1950. Mas foi na intersecção da física com as diversas áreas das ciências humanas que ela obteve mais destaque ao publicar estudos e livros sobre a preservação da memória científica, epistemologia e política de ciência e tecnologia, além de ter organizado arquivos de interesse histórico no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). “Ela dizia que optou pela física pensando em ajudar o país no futuro”, conta o também físico Ernst Wolfgang Hamburger, que ela conheceu na USP e com quem foi casada por mais de 50 anos. “Ocorre que sua visão não era puramente cientificista. O que mais a interessava era a moldura social da ciência.” Amélia morreu aos 78 anos em 1º de abril em consequência de um câncer. A pesquisadora formou-se em 1954 na USP e trabalhou com os físicos Philip Smith e Oscar Sala no acelerador de partículas Van der Graaf. Dois anos depois partiu para o mestrado em Pittsburgh. Em 1958 publicou como coautora um artigo no primeiro número da recém-criada revista Physical Review Letters sobre reações nucleares no C14 e C13. Um segundo trabalho, mais completo, foi publicado na Physical Review em 1960, ano em que voltou ao Brasil. De sua união com Ernst nasceram quatro filhos em cinco anos, entre 1960 e 1964 (o quinto nasceu em 1970): Esther, antropóloga, Sônia, produtora cultural, Vera, diretora de arte, Carlos (Cao), cineasta, e Fernando (Feco), fotógrafo. Amélia foi uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Física, em 1966, em uma situação singular. “Ela se recuperava de uma hepatite, em
Reprodução Lucia Mindlin Loeb
casa, e tinha sido indicada por colegas, junto com Oscar Sala e Ross Douglas, para redigir proposta de estatutos da nova sociedade. Os dois foram até lá e sentaram no pé da cama para que ela os ajudasse com o estatuto”, conta Ernst. Com a situação política ruim em razão do golpe militar, a família foi para Pittsburgh, onde ficou de 1965 a 1967. No período, Amélia fez um pós-doutorado na Universidade Carnegie Mellon com uma peculiaridade: sem ter feito doutorado. “Várias vozes sensatas da USP admitiram que Amélia era uma pesquisadora que, embora não tivesse completado o doutorado em física, tinha conhecimento e experiência suficientes para ser reconhecida como doutora”, relata Ernst. Amélia pesquisou as propriedades de cristais magnéticos a baixas temperaturas. “Mas, depois de algum tempo, ela quis voltar”, diz. A decisão se revelou traumática. O casal terminou preso pelos órgãos de repressão em dezembro de 1970. “Nosso filho mais novo tinha apenas 8 meses e isso deixou Amélia muito preocupada. Ela passou pouco tempo na prisão, mas foi torturada e ficou fora de si.” Depois do episódio, os dois conseguiram retomar a carreira no Instituto de Física da USP (IFUSP). Amélia envolveu-se com o curso de pós-graduação de ensino de física e escreveu e orientou estudantes a respeito de questões epistemológicas, principalmente relativas a tópicos de física clássica e quântica. “Ela era preocupada com o reforço das nossas instituições acadêmicas e políticas e com todas as questões referentes ao ensino”, diz Sílvio Salinas, professor e pesquisador do IFUSP. “Seus trabalhos em epistemologia e história da ciência foram motivados por interesses no ensino da física e na preservação da memória da ciência no país.” A preocupação com a memória científica a levou a organizar o primeiro volume da Obra científica de Mario Schönberg (Edusp, 2009), vencedor do Prêmio Jabuti em 2010 na categoria Ciências Exatas, Tecnologia e Informática. Interessada na política científica, a pesquisadora organizou dois livros sobre a história da FAPESP: FAPESP, uma história de política científica e tecnológica (FAPESP, 1999), com Shozo Motoyama e Marilda Nagamini, e FAPESP 40 anos. Abrindo fronteiras (Edusp/FAPESP,
Sua visão não era puramente cientificista. O que mais a interessava era a moldura social da ciência
2004). Foi também uma das organizadoras de A ciência e as relações BrasilFrança 1850-1950 (Edusp/FAPESP, 1996) e publicou com Renina Katz o livro Flávio Império (Edusp, 1999) sobre seu irmão, arquiteto, cenógrafo, diretor de teatro e artista plástico. “Amélia foi uma grande amiga que teve uma vida de incansável atividade em prol da ciência no Brasil”, disse o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. “Sempre defendeu o valor da pesquisa básica e o progresso da ciência, no sentido mais amplo e não utilitário que esta expressão possa ter. Foi cientista, militante e, ainda por cima, junto com o Ernst, criou uma família de pessoas educadas e inteligentes. Sua ausência será muito sentida.” O presidente da FAPESP, Celso Lafer, demonstrou igual pesar. “Amélia Hamburger contribuiu de maneira muito importante para a organização e divulgação da memória da FAPESP”, disse. “O historiador francês Pierre Norat fala da importância dos locais de memória que precisam e devem ser preservados. A FAPESP tem sido, no correr dos anos, um importante local da memória da pesquisa e da ciência no estado de São Paulo, com repercussão nacional. O trabalho da professora Amélia contribui para a criação desse local de memória e para manter viva a n alma da instituição.” PESQUISA FAPESP 183
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Jim Peaco / National Park Service
laboratório mundo
As profundezas de um vulcão
Comum em jardins e áreas perto de bosques na metade leste dos Estados Unidos, a salamandra Ambystoma maculatum não tem nada de banal. E não é por causa da cor preta com manchas amarelas. Dentro das células de seus embriões vive a alga Oophila amblystomatis, o primeiro exemplo de uma alga vivendo dentro das células de um vertebrado, segundo artigo de um grupo de pesquisadores do Canadá e dos Estados Unidos (PNAS, abril de 2011). A associação, descrita como endossimbiose, causou surpresa embora não fosse de todo inesperada: está até no nome científico da alga, que significa apreciadora 40
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de ovos. Já se sabia desde os anos 1980 que os embriões da salamandra se desenvolvem mais depressa na presença da alga, e que a alga se dá melhor em água que esteja em contato com esses embriões. Mesmo assim, foi motivo de festa descobrir que a alga vive dentro das células, uma situação que costuma desencadear uma reação do sistema imunológico. Falta ainda descobrir exatamente como as duas espécies causam benefícios uma à outra. Norte-americanos devem pensar duas vezes antes de aterrar os lagos em seus quintais, lugar de reprodução das salamandras. As relações ali são ainda mais íntimas do que se pensava.
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Ligação visceral: salamandra Ambystoma maculatum e seus ovos, que abrigam algas Brian Gratwicke / Wikimedia Commons e Roger Hangarter
Salamandra, moradia de algas
A quantidade de rocha quente e parcialmente liquefeita – ou pluma – nos canais do vulcão Yellowstone, um dos maiores em atividade no mundo, é maior do que parecia ser nas imagens produzidas a partir das ondas sísmicas, geradas pelos tremores de terra. Por meio de outra técnica, um grupo de geofísicos liderado por Michael Zhdanov, da Universidade Utah, Estados Unidos, mediu a condutividade elétrica gerada pelas rochas derretidas da pluma por meio Yellowstone: de sensores em 115 estações nos muita rocha derretida estados norte-americanos de Wyoming, Montana e Idaho, por onde o vulcão se ramifica (Geophysical Research Letters, no prelo). As imagens que emergiram depois de 18 horas de processamento contínuo de dados em um supercomputador praticamente dobraram a área da pluma, estendo-a por cerca de 400 quilômetros no sentido lesteoeste. Essa técnica tem duas limitações. A primeira: chega somente a 370 quilômetros de profundidade. A outra: não prevê quando pode chegar outra erupção. As erupções do vulcão Yellowstone produziram mudanças intensas no planeta, a primeira delas há cerca de 17 milhões de anos.
Proteínas, enzimas, anticorpos não servem apenas para diagnosticar doenças. Podem ajudar também a identificar os materiais utilizados em pinturas, esculturas ou mesmo roupas antigas, facilitando a avaliação de sua autenticidade, a compreensão de sua importância histórica e a aplicação de técnicas mais adequadas de preservação. Pesquisadores do Metropolitan Museum of Art (MMA) e da Universidade Columbia, ambos em Nova York, começaram a usar essa abordagem, complementando-a com outras já usadas habitualmente, para detectar, por exemplo, se as colas usadas em quadros antigos são proteínas ou polissacarídeos (açúcares). Estão vendo também se existem camadas de óleo em uma pintura a têmpera, à base de gemas de ovos. Agora está um pouco mais claro que o pintor renascentista Francesco Granacci usou têmpera de ovo, óleo e pigmentos de ouro para fazer Cenas da vida de São João Batista em 1506-7.
O sal e a hipertensão Há tempos os médicos se perguntam por que, após o consumo de sal, a pressão arterial de algumas pessoas aumenta e a de outras, não. Agora pesquisadores dos Estados Unidos parecem ter chegado a uma resposta plausível. Quem é sensível ao consumo de sal sofre elevação passageira da pressão porque seu organismo tem mais dificuldade de controlar a temperatura do corpo (Hipertension Research, abril de 2011). A conexão entre os dois fenômenos? O sistema cardiovascular, que regula tanto a pressão como a temperatura. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao fazer um teste com 22 homens não hipertensos. Metade deles tomou apenas água e a
outra metade recebeu uma mistura de água e sal, enquanto os médicos monitoravam a pressão, a temperatura e a composição da urina. Os pesquisadores detectaram redução maior na temperatura corporal dos indivíduos resistentes ao sal – eles não sofrem aumento de pressão – do que nos sensíveis. “Parece que as pessoas sensíveis ao sal mantêm o equilíbrio da temperatura corporal de modo mais efetivo, mas apresentam aumento da pressão arterial”, diz Robert Blankfield, um dos autores do estudo. Já com os resistentes ocorre o oposto. Essas elevações de pressão, momentâneas ou duradouras, podem disparar mudanças nas paredes dos vasos sanguíneos que levam à hipertensão.
Cenas da vida de São João Batista, de Francesco Granacci
A ferrugem do trigo Na maioria dos países da África, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Cáucaso, o trigo chega a contribuir com mais de 40% das calorias e com 20% das proteínas ingeridas pela população. Porém epidemias têm ameaçado a segurança alimentar regional e causado dificuldades econômicas para os agricultores e suas famílias. Foi o que divulgaram pesquisadores reunidos no Simpósio Internacional sobre Ferrugem da Folha de Trigo, realizado na Síria em abril. Os cientistas alertaram que as doenças chamadas ferrugem da
folha e ferrugem do colmo dizimaram cerca de 40% das plantações nas últimas safras. Áreas do Norte da África, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Cáucaso – incluindo a Síria, o Egito, o Iêmen, a Turquia, o Irã, o Usbequistão, o Marrocos, a Etiópia e o Quênia – foram afetadas. O aumento das temperaturas e a variabilidade da época de chuvas teriam contribuído para a disseminação dessas doenças, que estão se adaptando às temperaturas extremas como nunca observado até hoje. Para combater o problema, durante o congresso, pesquisadores indicaram que os agricultores precisam adotar variedades resistentes à ferrugem.
guihua bai / usda
The Metropolitan Museum of Art
Sob novo olhar
Nova praga: perdas de 40% nas safras PESQUISA FAPESP 183
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laboratório brasil
Cálcio sob controle Pesquisadores de Minas Gerais identificaram um processo bioquímico que facilita a regeneração do fígado após uma lesão. Em experimentos com ratos, a equipe de Maria de Fátima Leite, da Universidade Federal de Minas Gerais, verificou que o controle dos níveis de cálcio nas mitocôndrias, organelas celulares que produzem energia, acelera a recuperação do órgão. 42
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A redução do teor de cálcio nas mitocôndrias ajudou na restauração do fígado por evitar a morte celular programada (apoptose), e não por induzir a reprodução das células (Hepathology, abril 2011). Esse provavelmente não é o único mecanismo. Mas, se um dia puder ser controlado por medicamentos, deve abreviar a recuperação de danos hepáticos, como os causados pelo consumo abusivo de álcool ou a extração de parte do órgão.
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As plantas da Pedra Furada Até agora era muito pouco conhecida a flora do Parque Municipal da Pedra Furada, famoso por sua rocha em arco e por campos pedregosos. No município de Venturosa, interior de Pernambuco, o parque é caracterizado pela caatinga, a vegetação de zonas áridas na Região
UFPE
Há uma epidemia de infecção hospitalar no Brasil. Mais grave: 40% das pessoas contaminadas morreram (a taxa é de 6% nos Estados Unidos). Resultado de um estudo brasileiro que analisou 2.563 casos de infecções detectados em 16 hospitais do país entre 2007 e 2010, esse índice representa quase mil mortes no período (Journal of Clinical Investigation, abril 2011). Quase todos os casos (96%) foram provocados por uma única espécie de bactéria. Os patógenos mais comuns são as bactérias Staphylococcus aureus (14% das infecções), Staphylococcus coagulase (13%), Klebsiella (12%) e espécies do gênero Acinetobacter (11%). Metade dos casos ocorreu nas unidades de terapia intensiva, segundo o estudo, coordenado por Alexandre Marra, pesquisador do Hospital Albert Einstein e da Universidade Federal de São Paulo. O uso de cateter venoso central, tubo inserido em vasos sanguíneos do tórax, aumentou muito o risco de infecção. Outra conclusão: os medicamentos para combater esses microrganismos estão menos eficientes. De um terço a metade das bactérias era resistente a antibióticos.
catarina bessell
Perigo nos hospitais
Nordeste. A partir de coletas feitas em 1998 e entre 2004 e 2009, um grupo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal Rural de Pernambuco fez um levantamento das espécies vegetais que compõem aquela paisagem. O estudo, encabeçado por Polyhanna Gomes, da UFPE, é mais do que uma listagem (Check List, fevereiro 2011). Cada uma das feições do parque – encostas, planaltos e escarpas – tem uma flora característica, limitada principalmente pela presença ou ausência de solo ou pela necessidade das plantas de se agarrar às rochas. As escarpas são praticamente pedra nua, os planaltos têm uma camada rasa de solo e as encostas conseguem sustentar uma flora mais arbustiva. Os resultados mostram ainda que o parque abriga a vegetação típica de caatinga e também a restrita a campos rupestres. Mais um motivo para preservar a área.
Bromélia sobre rochas: caatinga legítima
Chapada dos Veadeiros: estudos profundos
Livia Fioravanti
Dois engenheiros do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) desenvolveram uma abordagem matemática que pode facilitar a identificação das chamadas microcalcificações – minúsculas pedras resultantes do acúmulo de cálcio – em mamografias, exames de raios X usados para diagnosticar câncer de mama. Em 20% dos casos, os contornos irregulares das microcalcificações podem ser causados por tumores, que às vezes escapam aos exames. Em 2004, em um teste preliminar, os irmãos Márcio e Marcelo Portes de Albuquerque aplicaram os conceitos da chamada entropia não extensiva, elaborada pelo físico do CBPF Constantino Tsallis, e filtraram as informações relevantes, que aparecem na radiografia como pontos brancos. Aplicando essa abordagem, três pesquisadores do Instituto Indiano de Tecnologia Kanpur ampliaram o índice de identificação de prováveis tumores de mama – os resultados positivos – de 80,2% para 96,5%, enquanto os falsos positivos caíram de 8,1% para 0,4% (Signal Processing, 2010). “Seria importante repetirmos no Brasil o trabalho dos indianos e abrir uma discussão com médicos sobre a possibilidade de melhorar o diagnóstico de microcalcificações em mamografias”, disse Márcio Albuquerque.
A crosta no Brasil central Em março, geólogos da Universidade de Brasília (UnB) e de universidades de São Paulo e de estados do Nordeste realizaram
a segunda etapa dos testes de campo para medir a espessura da crosta – a camada mais superficial da superfície terrestre – da chamada Província Borborema, formada pelos oito estados do Nordeste.
Ali, principalmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, os tremores de terra são intensos. Esse levantamento é resultado de um trabalho de medição da estrutura da crosta que começou há 12 anos na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, valendo-se da mesma técnica (refração sísmica profunda). A espessura da crosta varia de 5 a 70 quilômetros (km). Na chapada, está em torno de 44 km. Porangatu, norte de Goiás, é onde a crosta é mais fina: 36 km. Coordenado por José Soares e Reinhardt Fuck, ambos da UnB, esse levantamento literalmente aprofunda o conhecimento sobre o Centro-Oeste, antes conhecido apenas até 5 km abaixo da superfície, e alerta para as áreas mais sujeitas a tremores de terra. No Centro-Oeste tremores de baixa intensidade são frequentes.
Fernando d’Horta/USP
Matemática contra o câncer
Um pássaro e a floresta A história do vira-folhas (Sclerurus scansor) reflete a história da mata atlântica – e contraria algumas teorias. Em resposta a variações do clima nos últimos milhares de anos, as matas encolheram e se fragmentaram ou seexpandiram e se conectaram. Esses pássaros, achados do sul do Brasil ao Ceará, são sensíveis a essas mudanças. “Hoje as populações das matas do Ceará estão isoladas das do sul, mas já estiveram conectadas”, diz Fernando d’Horta, biólogo da Universidade de São Paulo que reconstruiu a história evolutiva da ave (Molecular Ecology, abril 2011). As análises indicaram expansão das populações do sul da mata atlântica. Era esperado: as glaciações afetaram mais as florestas de regiões de maior latitude. No Nordeste, de menor latitude, imaginava-se menor variação do clima e maior estabilidade da floresta, mas diminuiu a população de vira-folha, sinal de grandes mudanças na paisagem. “Os efeitos locais das mudanças globais do clima são muito complexos”, diz D’Horta.
Vira-folhas: inesperada redução da população no Nordeste
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O limite da floresta
Grupo de São Paulo identifica os sinais que precedem extinções em série na mata atlântica Igor Zolnerkev ic
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Ciência
[ Ecologia ]
fabio colombini
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Anfíbios, afetados pelo desmatamento
mata atlântica é uma floresta aos pedaços. Segundo estimativas recentes, restam de 11% a 16% de sua cobertura original, a maior parte na forma de fragmentos com menos de 50 hectares de vegetação contínua, cercados de plantações, pastagens e cidades. Há tempos se sabe que essa arquitetura desarticulada dificulta a recuperação da floresta, uma das 10 mais ameaçadas do mundo. Agora as equipes do ecólogo Jean Paul Metzger e da zoóloga Renata Pardini, ambos da Universidade de São Paulo (USP), constataram que, para cada grupo de animais vivendo nessa paisagem retalhada, existe um ponto de não retorno, um limite mínimo de cobertura vegetal nativa que precisa ficar de pé para manter a variedade de espécies de certa região. Quando o desmatamento ultrapassa esse limite, a maioria das espécies é extinta em todos os trechos de mata da área. Por quase uma década 60 pesquisadores coordenados por Metzger coletaram informações sobre a abundância e a diversidade de anfíbios, aves e pequenos mamíferos em dezenas de trechos de mata atlântica no Planalto Ocidental Paulista, as terras em declive que se estendem da serra do Mar rumo a oeste e ocupam quase metade do estado. Ao comparar os dados, os pesquisadores observaram quedas dramáticas na biodiversidade dos fragmentos de regiões próximas e parecidas, que diferiam apenas em área total de vegetação nativa. Uma paisagem com 50% de suas matas preservadas, ainda que dispersas em fragmentos, por exemplo, apresentou uma diversidade de aves sensíveis à perda de vegetação três vezes maior do que uma paisagem semelhante com 30% de vegetação. Pequenos mamíferos como a cuíca Marmosops incanus, marsupial de pelagem cinza, olhos grandes e focinho alongado, resistiram mais à derrubada da floresta. Mas, mesmo para eles, o fim veio rápido uma vez atingido o limite. Houve uma queda de 60% a 80% no número de espécies quando a área de mata nativa encolhia para menos de um terço da original. O estudo não fornece um valor único de área mínima de mata nativa necessária para manter intacta a biodiversidade do ecossistema. “Para outros grupos de animais, as perdas bruscas podem acontecer mais cedo ou mais tarde, dependendo da capacidade de deslocamento das espécies e da resistência a perturbações”, explica Metzger,
que diz ser razoável o limite de desmatamento fixado para a mata atlântica pelo Código Florestal em vigor. A análise dos dados permitiu a Renata e Metzger – com o auxílio de Adriana Bueno e Paulo Inácio Prado, também pesquisadores do Instituto de Biociências da USP, e de Toby Gardner, da Universidade de Cambridge, Inglaterra – chegar a uma explicação plausível de por que a biodiversidade dos fragmentos de mata atlântica diminuiu em algumas regiões, mas, em outras, se manteve parecida com a de trechos de vegetação contínua da serra do Mar. Em um artigo publicado em outubro de 2010 na revista PLoS One, eles apresentam um modelo conceitual de como isso aconteceria. Segundo o modelo, o colapso das populações seria causado pela combinação de processos que ocorrem em duas escalas: local e regional. Os processos com efeito regional estão ligados à dificuldade de migrar de um fragmento de floresta para outro. Condicionada à área total de matas remanescentes na região, essa dificuldade aumenta com o avanço do desmatamento, pois crescem exponencialmente as distâncias separando os trechos de florestas – e muitas espécies, até pássaros como o trepador-coleira (Anabazenops fuscus), não se deslocam de um fragmento a outro quando há pastagens ou estradas no caminho. Presos a áreas restritas, essas espécies se tornam mais suscetíveis a processos que influenciam as extinções em escala local, como a redução na área dos fragmentos, que diminui o tamanho das populações. O mais importante é que esse modelo pode orientar decisões sobre o melhor modo de aplicar recursos para PESQUISA FAPESP 183
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saram a compreender melhor ao simular em computador como o desmatamento recorta uma floresta virtual. Essas simulações sugerem que, à medida que a vegetação nativa de uma região diminui, ocorre uma transformação fundamental em uma característica dos fragmentos de floresta: a distância entre eles, que no início cai de modo gradual, passa a aumentar exponencialmente. A partir desses resultados, confirmados em paisagens reais por Metzger e pesquisadores de outros países, o grupo da USP começou a se questionar se a evolução da geometria dos fragmentos poderia afetar a biodiversidade de uma região por influenciar dois fenômenos bem conhecidos dos ecólogos. Um deles é a influência que a área de um fragmento exerce sobre a probabilidade de sobrevivência de uma população. Quanto maior a área, maiores as populações das espécies que vivem ali – e, portanto, menores os riscos de serem extintas por um evento ao acaso, como o nascimento exclusivo de fêmeas em um ano ou a ocorrência de um desastre natural.
arthur grosset
Isolamento - Por esse raciocínio, a bio-
conservar e recuperar a mata atlântica. Segundo os pesquisadores, ele prevê, por exemplo, que os eventos que precedem a extinção dariam pistas de sua chegada com antecedência. A maneira como as espécies se distribuem nos fragmentos de uma região sinaliza quando a biodiversidade está no limite de cair abruptamente, mas ainda tem boa chance de ser recuperada. “Nessas condições, pequenos investimentos de restauração que facilitem o fluxo de animais entre os fragmentos produziriam um retorno grande”, diz Metzger. “Se quisermos aumentar a cobertura florestal da mata atlântica com ganhos rápidos de diversidade biológica, é nessa faixa [regiões com 20% a 40% de remanescentes] que temos de atacar.” Um dos fundamentos do modelo é a evolução da geometria dos fragmentos, que Metzger e outros pesquisadores pas46
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Trepador-coleira: incapaz de atravessar pastos e estradas
O Projeto Diversidade de mamíferos em paisagens fragmentadas no planalto atlântico de São Paulo – nº 2005/56555-4 modalidade
Programa Jovem Pesquisador Coordenadora
Renata Pardini – IB/USP investimento
R$ 264.307,22 (FAPESP)
diversidade de um fragmento deveria ser proporcional à sua área. Mas essa é apenas parte da história. “Não é só o tamanho do fragmento que importa, mas também a paisagem em que ele está inserido”, explica Renata. Afinal, os fragmentos não são ilhas perfeitamente isoladas. Se estiverem próximos o suficiente uns dos outros, muitas espécies de animais podem viajar entre eles, evitando a extinção de populações nos fragmentos menores. “Esse é o efeito resgate”, conta. “Apesar de um fragmento ser pequeno e o risco de extinção grande, a população se mantém por causa da migração.” Os pesquisadores imaginaram então que no processo de desmatamento, antes de ocorrer o aumento acelerado da distância entre os fragmentos, esses trechos de floresta estariam ainda próximos o suficiente uns dos outros para que o efeito resgate mantivesse a biodiversidade alta em toda a região. Com a diminuição das matas remanescentes, porém, esse efeito perde força e a diversidade dos fragmentos pequenos diminui, embora a biodiversidade total da região seja preservada, com a
fabio colombini
maioria das espécies concentrada nos fragmentos maiores. Nesse estágio, é possível observar na região o efeito do tamanho dos fragmentos, que torna a diversidade de espécies de um fragmento proporcional à sua área. Esse efeito predomina até que o desmatamento passe a aumentar exponencialmente a distância entre os trechos de floresta. Ultrapassado esse limite, o efeito resgate cessa e o risco de extinção das populações aumenta para grande parte das espécies, que somem tanto dos grandes fragmentos como dos pequenos. Teste do modelo - O passo seguinte foi
testar se o modelo previa a distribuição das espécies que o grupo da USP havia observado no trabalho de campo feito entre 2000 e 2009 no interior paulista, com apoio da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e do Ministério Federal de Educação e Pesquisa da Alemanha. No projeto, os pesquisadores fizeram o levantamento de anfíbios, aves e pequenos mamíferos em três áreas de 10 mil hectares com diferentes graus de mata nativa preservada (50%, 30% e 10%) e em três áreas de mata atlântica contínua na serra do Mar. Depois de capturar os animais e identificar suas espécies, os pesquisadores os separaram em dois grupos: o das espécies especialistas, que só habitam trechos de mata atlântica; e o das generalistas, capazes de sobreviver tanto na floresta como em áreas modificadas pela ação humana, como plantações e pastagens. A classificação foi essencial para comparar os dados do levantamento com as previsões teóricas sobre o efeito da fragmentação, que deveriam ser observadas apenas para as espécies especialistas. No caso dos pequenos mamíferos, das 39 espécies encontradas, 27 eram especialistas. Para estas, os padrões de diversidade observados foram os esperados. Na região com 50% de cobertura nativa, tanto fragmentos grandes como pequenos continham quase todas as espécies achadas na região de mata contínua vizinha. Essas mesmas espécies também estavam na região com 30% de mata, mas concentradas nos fragmentos maiores. Já na região com 10% de floresta, o limiar de desmatamento havia sido ultrapassado e a diversidade
A partir de certo estágio de desmatamento a perda de diversidade de espécies cresce em ritmo acelerado
era uniformemente baixa: seus fragmentos, independentemente da área, abrigavam de três a cinco vezes menos espécies especialistas do que a região de mata contínua. Os pesquisadores notaram ainda que, na ausência de espécies especialistas, as populações das espécies generalistas explodiram na região com 10% de mata. Em áreas com 50% de floresta foram capturados 63 roedores Oligoryzomys nigripes, uma espécie generalista, enquanto o número saltou para 409 na região com menos mata. O dado preocupa. Esse roedor é o principal reservatório na mata atlântica do vírus causador da hantavirose humana e sua presença em pastos e plantações pode aumentar o risco de contágio das pessoas. Esse é só um exemplo do impacto que a perda de biodiversidade pode ter sobre a saúde e a qualidade de vida hu-
manas. Outros serviços prestados pelos ecossistemas naturais, como a polinização de plantações e o controle de pragas agrícolas, também podem desaparecer. “Não queremos preservar a biodiversidade para manter museus vivos, mas para manter os serviços que os ecossistemas desses remanescentes prestam”, diz o ecólogo Thomas Lewinsohn, da Universidade Estadual de Campinas, que não participou da pesquisa. Para Lewinsohn, o trabalho dos grupos de Renata e de Metzger representa um salto qualitativo na ecologia, por combinar um estudo de campo difícil de realizar, com um modelo teórico que explora as consequências finais de diferentes efeitos, antes discutidos de maneira separada pelos pesquisadores que investigam a redução e a fragmentação de ambientes naturais em todo o mundo. “Eles deram uma contribuição importante para o entendimento das consequências da perda de florestas para a biodiversidade”, comenta o ecólogo Ilkka Hanski, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, pioneiro na pesquisa do impacto das transformações no hábitat sobre comunidades de plantas e animais. “Esse estudo deve se tornar altamente influente na biologia n da conservação.” Artigo científico PARDINI, R. et al. Beyond the fragmentation threshold hypothesis: regime shifts in biodiversity across fragmented landscapes. PLoS One. 23 out. 2010. PESQUISA FAPESP 183
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especial // Ano Internacional da Química
Moléculas, problema e solução
Palestras de abril discutem fontes alternativas de energia e mudanças climáticas Maria Guimarães ilustrações Larissa Ribeiro
I
magens de enchentes, florestas ressequidas e calor excessivo já são lugar-comum quando se pensa em mudanças globais do clima. A necessidade de investir em fontes alternativas de energia também já faz parte do contexto. O que não é de imediato evidente é o papel da química na história. Pois ela está em toda parte, tanto no mecanismo que leva às mudanças como nas soluções. É o que ressaltaram o climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o químico Jailson de Andrade, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), a bióloga molecular Glaucia Souza, da Universidade de São Paulo (USP), e o químico Luiz Pereira Ramos, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), no primeiro encontro do Ciclo de Conferências do Ano Internacional da Química, realizado em São Paulo no dia 4 de abril. O ciclo, que vai até novembro, é uma iniciativa da FAPESP e da Sociedade Brasileira de Química como parte da celebração com o tema Química: nossa vida, nosso futuro, promovida pela União Internacional de Química Pura e Aplicada em parceria com a Unesco. As conexões químicas que levam às mudanças do clima também chegam à produção de alimentos, mostrou o químico Arnaldo Alves Cardoso,
da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) de Araraquara, coordenador da mesa. A revolução verde, que aumentou a produção de alimentos e rendeu ao agrônomo norte-americano Norman Borlaug o Prêmio Nobel da Paz em 1970, se baseou em grande parte na síntese de nitrogênio reativo, que pode ser usado como fertilizante. Mas os benefícios, inegáveis, também acabaram causando problemas: o excesso de nitrogênio que vai parar nos rios e na atmosfera é uma origem importante de poluição e de efeito estufa. Desafios - “Estamos vivendo mais e melhor, mas
o mesmo não acontece com o planeta”, ressaltou Jailson de Andrade, destacando a importância de investimentos em sustentabilidade. Para ele, a energia, a água e a produção de alimentos são desafios interligados. “E não há um único desses desafios em que a química não seja central.” Para a energia, o pesquisador da Bahia mostrou que não existe uma solução única. A fissão nuclear gera temores na sociedade, sobretudo agora que o acidente nuclear do Japão está fresco na memória coletiva. De qualquer maneira, para substituir o combustível consumido hoje no mundo seria necessário construir 10 mil usinas nucleares nos próximos 30 anos – uma por dia –, algo obviamente inviável. Andrade ressaltou 50
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também que a fusão, uma forma diferente de obter energia nuclear que poderia representar menos riscos, ainda está em escala experimental, e as células combustíveis a hidrogênio ainda têm um custo muito alto. A energia solar é uma grande promessa, mas é preciso melhorar a eficiência das células fotovoltaicas, que hoje só convertem em eletricidade 30% da energia solar que recebem. “Ainda somos caçadorescoletores de energia, precisamos passar a ser produtores”, avisou. Parte da solução energética pode estar nos biocombustíveis, e é nisso que aposta o Programa de Pesquisa em Bioenergia da FAPESP, o Bioen. Nesse aspecto, segundo mostrou a coordenadora do programa, Glaucia Souza, o Brasil avança a passos largos. “Podemos chegar a substituir 30% da gasolina usada no mundo”, afirmou. Melhorar a produção não depende só de expandir o plantio de cana-de-açúcar e construir mais usinas, mas de melhorar a produtividade – e é essa a missão dos projetos de pesquisa que integram o Bioen. O grupo liderado pela pesquisadora da USP está envolvido na melhoria genética da cana-de-açúcar por meio de genética de ponta. “A cana é o maior desafio da genômica”, disse Glaucia, “porque as hibridizações feitas ao longo do desenvolvimento de uma variedade que
tecnologias baseadas em catalisadores reativos de alto desempenho, que melhorem a produção de etanol e biodiesel, reduzindo os poluentes emitidos por essa indústria. A produção de etanol de segunda geração representa uma das linhas de pesquisa do laboratório de Ramos. “Conseguimos usar a explosão a vapor para transformar o bagaço de cana de forma mais seletiva e eficiente.” O processo desestrutura a parede celular de forma que a celulose fica mais disponível para gerar bioenergia. Não é um processo inédito, mas o grupo inovou com o uso de catálise e substâncias químicas auxiliares para tornar o processo mais eficaz. O uso de catalisadores não solúveis no meio, a chamada catálise heterogênea, é a espinha dorsal de parte da pesquisa do grupo paranaense. “O impacto ambiental e econômico é bem menor quando a catálise é verdadeiramente heterogênea”, explica o pesquisador, que faz parcerias com empresas para oferecer soluções químicas aos gargalos da produção de biocombustíveis. Era humana – Uma tecnologia para a produção
A água, a energia e a produção de alimentos são problemas relacionados
produzisse mais açúcar multiplicaram por 10 o genoma dessa planta.” Com as novas tecnologias de sequenciamento, os avanços são agora muito mais rápidos do que em décadas passadas, mas não basta desvendar trechos desconexos do DNA da planta. “Já sequenciamos 70% das regiões ricas em genes, mas com 10 cópias é difícil montar esse genoma”, explicou. É preciso também entender o funcionamento desse material genético para conseguir interferir, ligando e desligando genes para melhorar a produtividade em diversas situações, como incrementar o armazenamento de açúcar sem aumentar a necessidade de irrigação e sem prejudicar o crescimento das plantas. Somado a biorrefinarias que não emitam carbono e usem todos os subprodutos da cana, assunto que ocupa uma das vertentes do Bioen, esse vegetal altamente eficaz em produzir e armazenar açúcar pode causar mudanças importantes no quadro energético do país e do mundo. Se os projetos que integram o Bioen deixam claro que combustível de origem vegetal é muito mais do que suco energético de plantas, Luiz Ramos, da UFPR, vai na mesma linha: soja, algodão, dendê e pinhão-manso, entre outros, são todos fontes possíveis de biodiesel. No laboratório paranaense, pesquisadores buscam desenvolver
de biocombustíveis melhor e com mais fontes de energia renovável pode fazer do Brasil uma potência ambiental tropical, ressaltou Carlos Nobre. A energia hidrelétrica, maior responsável pela matriz energética com 46% de fontes renováveis, não basta. Segundo ele, o país está ficando para trás no que diz respeito às energias eólica e solar, recursos que tem de sobra. A energia fotovoltaica deve, preconiza, se tornar a fonte de energia mais disseminada, inclusive para a geração de hidrogênio como combustível. “Estamos deitados em berço esplêndido”, parafraseia o hino nacional. Os desafios de produção de energia e de alimento, reduzindo a poluição que afeta a saúde das pessoas e está na base das mudanças climáticas globais, fazem parte do que define o Antropoceno, a época geológica caracterizada pela interferência humana: a cada hora a Terra ganha 9 mil pessoas, são emitidos 4 milhões de toneladas de gás carbônico (CO2), são derrubados 1.500 hectares de florestas, é adicionado 1,7 milhão de quilogramas de nitrogênio reativo ao solo e à água e 3 espécies são extintas. “Já ultrapassamos em muito os limites da sustentabilidade.” O excesso de gás carbônico, que ficou popularizado como ícone do aquecimento global, não é o único vilão desses limites ultrapassados: outros gases contribuem para o efeito estufa, como o óxido nítrico e o metano. Essas substâncias químicas em excesso, tanto na atmosfera como nos oceanos, já começam a causar danos. Mas os aumentos súbitos e substanciais nas últimas décadas tornam inequívoco, de acordo com o climatologista do Inpe, o aquecimento global. PESQUISA FAPESP 183
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fotos eduardo cesar
Glaucia, Andrade, Ramos e Nobre durante a conferência
“A química precisa encontrar uma maneira viável de retirar CO2 do ambiente”, avisou. Investimentos nesse sentido têm que ser feitos antes que o sistema terrestre ultrapasse os chamados pontos de virada, em que não há mais retorno para o estado anterior. “Se passarmos esses pontos, todas as discussões serão meramente acadêmicas.” Um exemplo, novamente, é o CO2. A cada ano, a atividade humana é responsável por um acréscimo de 9,7 bilhões de toneladas desse gás, dos quais 5,5 bilhões são absorvidas pelos oceanos e pelas plantas. Esse acúmulo acaba sendo responsável pela acidificação da água do mar, que pode ter consequências sérias. Se o processo continuar no ritmo em que vai, estima-se que em 2100 o pH dos oceanos chegue a 7,8. Nessas condições, ele alertou, não se forma a aragonita, uma substância essencial para grande parte dos organismos marinhos de estrutura óssea. Para a Amazônia, a pesquisa de Nobre tem mostrado que um aquecimento médio maior que 3,5 graus Celsius (°C) e mais de 40% de área desmatada levarão a floresta para além do ponto sem retorno, disseminando o processo conhecido como savanização. Ainda há tempo para reduzir os estragos, de acordo com o pesquisador do Inpe e membro do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), mas as mudanças em políticas e comportamento não estão 52
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A química é central na solução de todos esses desafios
acontecendo na velocidade que a ciência julga necessária. Para limitar o aquecimento aos 2°C preconizados pelo IPCC, o mundo inteiro não pode emitir mais de 500 bilhões de toneladas de carbono até o final do século, o que exige uma redução nas emissões atuais. As negociações são lentas, mas Nobre vê com bons olhos a liderança que o Brasil assumiu na Conferência do Clima de Copenhague, a COP-15, no final de 2009, sobre redução na emissão de gases de efeito estufa. A química deve fazer parte da concretização dessa liderança, de acordo com os especialistas que, nessas conferências no início de abril, dirigiram seus olhares distintos para um mesmo problema. Fazendo a ponte entre biologia e física, entre urbanização e meio ambiente, essa área do conhecimento pode ser a chave para, nas próximas décadas, tornar sustentável a vida humana com as características que ela tem hoje. O ciclo de conferências é uma ocasião valiosa para discutir como essa área do conhecimento pode contribuir para os grandes desafios globais e despertar o interesse dos jovens para a investigação científica. Veja a programação completa no site <revistapesquisa.fapesp.br>. n
Notícias Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet | www.scielo.org
\\ Biologia
\\ Cinema
A carga de nitrogênio em rios é cada vez mais controlada por atividades humanas independentemente da escala espacial, do clima ou da região geográfica. Consequentemente, esforços de modelagem que predizem exportação de nitrogênio usam atributos que refletem atividades humanas, tais quais densidade populacional, uso do solo, urbanização e saneamento ambiental. Esses modelos têm aumentado significativamente o entendimento sobre as fontes e o destino do nitrogênio adicionado ao sistema terrestre e transportado aos sistemas aquáticos, especialmente em países desenvolvidos localizados no hemisfério Norte. Entretanto, a maioria da população mundial vive em países em desenvolvimento dos trópicos, onde os efeitos das atividades humanas sobre a carga de nitrogênio nos rios são pobremente entendidos. Em um esforço para aumentar a compreensão sobre este fenômeno, os pesquisadores L.A. Martinelli, L.D. Coletta, E.C. Ravagnani, P.B. Camargo e R.L. Victoria, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo, J.P.H.B. Ometto, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, e S. Filoso, do University of Maryland Center for Environmental Science, compararam a distribuição de nitrogênio dissolvido em 32 rios brasileiros, drenando duas regiões contrastantes em termos de desenvolvimento econômico – rios do estado de São Paulo (na foto, rio Piracicaba) e da região Amazônica. Os dados incluem nitrogênio em duas formas dissolvidas, inorgânica (NID) e orgânica (NOD). Os resultados mostraram que, em ambas as áreas de estudo, a concentração de nitrogênio decresceu com o volume de água dos rios e as concentrações mais elevadas foram encontradas na região economicamente mais desenvolvida. A correlação entre as concentrações e fluxos de nitrogênio com parâmetros demográficos tais quais densidade de população demonstrou que o fluxo de nitrogênio aumenta somente após a densidade populacional atingir 10 indivíduos por quilômetro quadrado. O trabalho foi descrito no artigo “Dissolved nitrogen in rivers: comparing pristine and impacted regions of Brazil”. Brazilian Journal of Biology – vol. 70 – nº 3 – supl. 0 – São Carlos – Out. 2010
Busca da identidade nacional
piracicaba.sp.gov.br
Nitrogênio nos rios
O texto “O ‘descobrimento’ no pensamento cinematográfico brasileiro: diálogos possíveis quanto à identidade nacional”, de Alexandro Dantas Trindade, da Universidade Federal do Paraná, pretende analisar uma produção fílmica de Humberto Mauro, O descobrimento do Brasil (1937), tendo como contraponto o filme de Nelson Pereira dos Santos Como era gostoso meu francês (1970). Ambos tratam, de formas diversas e mesmo opostas, um aspecto emblemático da narrativa sobre a formação nacional: o “descobrimento” do Brasil e os primeiros contatos entre colonizador e colonizado. O autor busca entender como tais obras dialogam com outras referências documentais, pictóricas e imagéticas para produzir seus respectivos discursos e representações sobre o que consideram a “verdadeira” identidade nacional. Lua Nova: Revista de Cultura e Política – nº 81 – São Paulo – 2011
\\ Ambiente
Conservação do solo Programas de conservação do solo e da água que utilizam a bacia hidrográfica como unidade de planejamento têm sido amplamente empregados. Um componente importante desses programas se refere à implantação de projetos de monitoramento hidrossedimentométrico e de qualidade da água para avaliar o impacto nos recursos hídricos das práticas introduzidas. Entretanto, em alguns casos, os resultados obtidos pelos projetos de monitoramento têm sido pouco conclusivos, devido a limitações dos procedimentos experimentais adotados. A revisão “Monitoramento de bacias hidrográficas para identificar fontes de sedimentos em suspensão”, de Jean Paolo Gomes Minella, da Universidade Federal de Santa Maria, e Gustavo Henrique Merten, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, explora metodologias de avaliação que combinam técnicas tradicionais de monitoramento com técnicas de identificação de fontes de sedimentos que contribuem para elucidar os efeitos das práticas conservacionistas na produção de sedimentos em bacias hidrográficas e também a inter-relação dinâmica entre as fontes de sedimentos. Ciência Rural – vol. 41 – nº 3 – Santa Maria – Mar. 2011 \\ O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br
[ Geoquímica ]
Adubo pré-colombiano
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s arqueólogos costumam debater qual o real significado das manchas de terra preta encontradas em sítios pré-históricos da Amazônia Central, um tipo de solo escuro que se destaca visualmente da monotonia marrom-amarelada característica das áreas de terra firme da região. Para alguns, elas são um indicativo de que grupos indígenas pré-colombianos viveram por centenas ou até uns poucos milhares de anos em sociedades complexas e estruturadas, baseadas na agricultura sedentária e no manejo do ambiente, em meio à floresta. Para outros, a existência desse tipo de terreno mais escuro, frequentemente recheado de fragmentos de peças de cerâmica, não é uma prova cabal de que houve ali um processo de ocupação humana antiga e prolongada antes do desembarque do conquistador europeu. Mas sobre uma questão, mais relacionada às ciências agrárias do que às humanidades, há consenso generalizado: a terra preta é um oásis quase permanente de fertilidade numa zona recheada de solos pobres e incapazes de reter nutrientes por muito tempo. Estudo recente confirma que um componente importante dessa variante de solo é um vestígio inequívoco do estabelecimento de assentamentos humanos: as fezes dos índios. Concentrações de um biomarcador associado à deposição de excrementos humanos no ambiente, o coprostranol (5ß-stanol), foram encontradas em amostras de terra preta oriundas de cinco sítios pré-históricos da Amazônia, de acordo com um artigo científico a ser publicado por uma equipe de pesquisadores do Brasil e da Alemanha na edição de junho da revista Journal of Archaeological Science. Quatro sítios estão localizados no Amazonas, a sudoeste de Manaus, numa faixa de terra firme na confluência entre os rios Negro e Solimões, e um se situa no Pará, a sudoeste de Santarém, no baixo Tapajós. “A rigor, o biomarcador também poderia indicar a presença de fezes de porcos domesticados”, afirma o engenheiro agrônomo Wenceslau Geraldes Teixeira, da Embrapa Solos, do Rio de Janeiro, um dos autores do trabalho. “Mas, como esse animal só foi introduzido na América do Sul depois da che-
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Antigos índios da Amazônia contribuíram para a fertilidade da terra preta Marcos Pivet ta
gada dos europeus, descartamos essa possibilidade.” Todos os exemplares de terra preta analisados se formaram entre 500 e 2.500 anos atrás, antes da descoberta oficial do continente por Cristóvão Colombo. Rica em minerais associados à fertilidade dos solos, a terra preta deve sua cor enegrecida à elevada presença em sua composição do chamado carbono pirogênico, uma forma estável de carvão aromático produzida pela combustão incompleta de biomassa. O modo de vida dos antigos índios da Amazônia – que queimavam os restos de animais consumidos, enterravam os mortos e depositavam lixo e excrementos nos arredores de suas comunidades – deve ter sido o responsável pela formação desse tipo de solo. “Estamos tentando entender a composição química da terra preta e descobrir qual aporte de material orgânico a mantém fértil até hoje”, afirma o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da Universidade de São Paulo (USP), outro autor do estudo e coordenador de um projeto temático da FAPESP sobre a história pré-colonial
Cena / USP
Eduardo góes neves
Perfil mostra a diferença entre a fértil terra preta (alto) e o latossolo típico e pobre da Amazônia. À direita, imagem de microscopia por fluorescência da superfície de carbono pirogênico
O Projeto Cronologias regionais, hiatos e descontinuidades na história pré-colonial da Amazônia – nº 2005/60603-4 modalidade
Projeto Temático Coordenador
Eduardo Góes Neves – MAE/USP investimento
R$ 577.619,78 (FAPESP)
da Amazônia. “Se tivermos sucesso nesse objetivo, talvez possamos aprender a melhorar a fertilidade em solos pobres e dar uma contribuição para uma agricultura tropical mais sustentável.” Existem tentativas de reproduzir artificialmente as propriedades da terra preta, mas os esforços ainda estão nos trabalhos iniciais. Alguns especialistas acreditam que compostos presentes nas fezes humanas desempenham um papel importante na manutenção a longo prazo da fecundidade dessa variante do chão amazônico. Ao contrário dos empobrecidos latossolos típicos da Amazônia, a terra preta sofre pouca lixiviação, processo caracterizado pela perda de nutrientes devido à infiltração da água da chuva que “lava” o solo e lhe rouba os componentes químicos. “Os excrementos dão uma contribuição significativa para o conteúdo de nutrientes encontrados na terra preta, como nitrogênio e fósforo, e a ajudam a reciclar seus nutrientes”, afirma Bruno Glaser, da Universidade Martinho Lutero de Halle-Wittenberg, Alemanha, estudioso da biogeoquímica de
solos e também coautor do artigo. “Nas sociedades modernas isso não ocorre mais, pois esses nutrientes são perdidos com a deposição do lodo de esgoto em reservatórios.” Na terra preta as fezes provavelmente se misturam ao solo devido à ação de minhocas, cupins, formigas e outros organismos. Embora não costume ser diretamente apontado como um elemento capaz de conferir fertilidade ao solo, o carbono pirogênico parece conter uma conjunto único de fungos e bactérias, cuja sinergia pode estar relacionada à fertilidade da terra preta. Trabalhos feitos pela equipe da engenheira agrônoma Siu Mui Tsai, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP, em Piracicaba, mostram que a forma de carvão presente nesse tipo de solo abriga o DNA de até 3 mil espécies de microrganismos. “Essa biodiversidade é bem maior do que a encontrada em solos amazônicos vizinhos à terra preta”, afirma Siu. “Os índios não usavam produtos tóxicos e seu sistema estava em equilíbrio.” Ninguém sabe, no entanto, se os povos pré-colombianos criaram intencionalmente a terra preta, como forma de enriquecer o solo destinado à agricultura, ou se ela é uma mera decorrência acidental dos dejetos e do lixo produzidos por seu modo de vida. n Artigo científico BIRK, J.J. et al. Faeces deposition on Amazonian Anthrosols as assessed from 5ß -stanols. Journal of Archaeological Science. v. 38 (6). p-1209-20, jun. 2011. PESQUISA FAPESP 183
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[ medicina ]
Pressão contra o câncer Anti-hipertensivo detém crescimento de tumores e indica novos alvos para medicamentos Carlos Fioravanti
ilustrações bel falleiros
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losartan, um dos medicamentos mais usados no mundo para controlar a hipertensão arterial, deteve o crescimento de tumores de pele em experimentos realizados em camundongos nos laboratórios da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Uma droga antiga ganhou uma aplicação potencial nova, facilitando a busca de novos tratamentos contra o câncer, mas seria arriscado concluir que esse remédio já poderia ser usado por pessoas com essa nova finalidade apenas porque se trata de um medicamento produzido no Brasil como genérico e com efeitos colaterais já delineados. “Precisamos agora aprender a usar essa droga para melhorar o tratamento de tumores”, alerta o médico Roger Chammas, professor da FMUSP e um dos coordenadores desse estudo, detalhado em maio de 2010 na revista Cancer Chemotherapy and Pharmacology. Os resultados do trabalho realizado por Andreia Otake indicaram que o medicamento bloqueou a ação da angioten-
sina II, um fragmento de proteína – ou peptídeo – que ajuda a controlar a pressão arterial, em conjunto com outras moléculas produzidas pelo organismo. Esse e outros estudos mostram que a angiotensina II pode ter outra função menos conhecida e explorada: ajudar os tumores a formar ou atrair vasos sanguíneos que trarão os nutrientes necessários para sua sobrevivência. Com menos angiotensina, menos vasos sanguíneos crescerão no interior do tumor, que assim poderá morrer de inanição. Segundo Chammas, esses estudos fortalecem a perspectiva de as moléculas com que o tumor interage, o chamado microambiente tumoral, e não só o tumor, serem alvo de novos medicamentos. Nos últimos anos, vários estudos indicaram que a angiotensina II promovia a migração e a proliferação de células endoteliais, que formam a camada mais interna dos vasos sanguíneos, desse modo participando da regulação de processos inflamatórios que às vezes marcam o início ou o desenvolvimento de tumores. “Um tumor pode ser visto
como uma inflamação persistente, uma ferida que não cicatriza e atrai vasos sanguíneos, que por sua vez contribuem para a disseminação do câncer pelo organismo”, comenta Chammas. O fato de haver receptores de angiotensina na superfície das células endoteliais dos vasos que nutrem os tumores abre a perspectiva de novos usos para medicamentos anti-hipertensivos como o losartan. Testes preliminares em andamento em grupos limitados de pessoas nos Estados Unidos atestam a ação antitumoral desse medicamento, usado sozinho ou em conjunto com anti-hipertensivos com mecanismo de ação similar, como o captopril. Descoberto em 1986 por um grupo de jovens pesquisadores da DuPont, o losartan foi a primeira de uma classe de novos anti-hipertensivos chamados antagonistas dos receptores da angiotensina II. Produzido pela Merck, embora já tenha se tornado um genérico no Brasil, está ganhando novas aplicações. Uma delas é o tratamento de doenças renais crônicas. Desde o final dos anos 1980 o médico da USP Roberto Zatz tem
feito estudos em seu laboratório que indicaram que doses altas de losartan ajudavam a deter os danos gerados por doença renal crônica em ratos. Ele participou de estudos clínicos internacionais que embasaram o uso hoje relativamente comum dos medicamentos desse tipo para tratar doenças graves renais. Foi Zatz que propôs a Chammas o experimento em tumores de pele, cujo crescimento queriam deter valendo-se dessa capacidade do fármaco em reduzir a pressão arterial, o crescimento de vasos sanguíneos e processos inflamatórios. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Robson dos Santos está começando a explorar as aplicações terapêuticas para um derivado da angiotensina II, a angiotensina 1-7, assim chamada por ter sete aminoácidos em vez de oito como a angiotensina II. Envolta por um açúcar, a ciclodextrina, a angiotensina 1-7, por via oral, ajudou a amenizar os danos em células do coração de ratos que haviam passado por um infarto induzido, como detalhado em um estudo publicado em março deste ano na revista Hypertension. Segundo ele, essa mesma formulação pode regular os níveis de glicose e de lipídeos (gorduras), de acordo com experimentos realizados em animais de laboratório. Santos conta que a angiotensina 1-7 por via endovenosa mostrou efeitos positivos para tratar mulheres com pré-eclâmpsia, um problema grave que pode ocorrer a partir do segundo mês de gravidez, com hipertensão e
retenção de líquidos. Segundo ele, os testes com essa formulação por via oral devem começar em breve. “Esperamos ter os resultados em seis meses”, diz ele. “Na pré-eclâmpsia, a angiotensina 1-7 exógena ajuda a normalizar o nível de angiotensina 1-7 no sangue.”
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m paralelo a resultados promissores emergem recomendações para o uso cuidadoso de medicamentos anti-hipertensivos com outras finalidades. De acordo com um estudo publicado em junho de 2010 na revista médica Lancet Oncology, as pessoas submetidas a terapias experimentais com anti-hipertensivos que atuam sobre a angiotensina para tratar doenças cardiovasculares e diabetes por pelo menos um ano apresentaram um risco 1,2 maior que o de pessoas não medicadas de contrair câncer, principalmente de pulmão; esse risco chamou a atenção, embora seja baixo.
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Temos de pensar diferente e ver o tumor como um Órgão, sugere Roger Chammas
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Em princípio, o mesmo medicamento pode agir contra os tumores ou a favor deles porque o câncer representa um conjunto amplo de doenças distintas: os especialistas já identificaram 200 tipos diferentes de câncer, todos caracterizados por células que crescem de maneira descontrolada e que invadem tecidos vizinhos. As peculiaridades são cada vez mais valorizadas para nortear o diagnóstico e o tratamento: “Um tumor no pulmão de uma pessoa pode ser muito diferente de um tumor no pulmão de outra, ainda que tenham tido origem no mesmo tipo de célula do pulmão. Estas diferenças se traduzem por diferentes assinaturas moleculares dos tumores, algo comparável com uma impressão digital e que aponta quais as vias moleculares estão alteradas em um certo tipo de câncer”, comenta Chammas. “Estamos tentando entender melhor essas assinaturas, para aprimorarmos o diagnóstico e os tratamentos para os diferentes tipos de câncer. Temos de pensar diferente e ver o tumor como um órgão, com mecanismos próprios de funcionamento.” A possibilidade de medicamentos anti-hipertensivos serem avaliados como antitumorais no Brasil por meio de testes controlados em seres humanos é remota, em vista dos labirintos que pesquisadores e médicos de instituições públicas têm de enfrentar para aproveitar os dados obtidos em
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Não estamos ganhando a batalha contra o câncer. Precisamos acelerar, diz Paulo Hoff
laboratório para resolver problemas de saúde pública. A principal queixa é que a aprovação da proposta dos estudos pelos órgãos federais pode demorar um ano ou mais, enquanto em países como os Estados Unidos ou mesmo a África do Sul leva em média três meses. Santos, da UFMG, conta que teve de esperar seis meses até receber todas as aprovações necessárias para levar adiante os testes da angiotensina 1-7 com ciclodextrina por via endovenosa em mulheres com pré-eclâmpsia grave. Já a solicitação para testar a formulação por via oral demorou um ano até voltar da comissão de ética em pesquisa, da própria universidade, e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Ministério da Saúde. “É uma realidade desalentadora”, desabafa. “Falta espírito de urgência no Brasil”, observa Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp), ligado à FMUSP inaugurado em 2008, que atualmente atende cerca de 12 mil casos novos de pessoas com câncer por ano. “A burocracia poderia ser mais ágil, eficiente e transparente, sem perder o controle”, diz Hoff, um dos autores de um artigo publicado em 2010 na Lancet Oncology propondo a conciliação de interesses gover-
namentais, médicos e acadêmicos no planejamento e execução das fases iniciais de candidatos a medicamentos em países como o Brasil, procurados principalmente para validar resultados obtidos onde a regulamentação é mais ágil. Hoff conta que se tem observado mais interesse dos representantes do governo federal em apoiar a realização de testes clínicos no Brasil. “Temos de agir com flexibilidade”, sugere. “Não podemos entrar em uma negociação achando que nosso ponto de vista é que vai predominar.”
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médico do Icesp Max Mano acredita que mais agilidade na aprovação dos testes clínicos de novos medicamentos ou de novas aplicações para medicamentos já em uso poderia beneficiar em especial o tratamento de tumores raros, que podem aparecer em qualquer órgão do corpo e ser facilmente confundidos com outros tipos. Em um artigo publicado em 2010, Mano e Hoff alertam que os tumores raros respondem por 25% do total de mortes causadas por câncer nos Estados Unidos e possivelmente também no Brasil. “Um tumor raro não é mais difícil de tratar”, diz Hoff. “Difícil é encontrar um médico que o reconheça e saiba como tratá-lo.”
Alguns tipos de câncer, como o de estômago, já são raros na Europa, em razão da implantação de medidas sanitárias, da melhoria dos hábitos de alimentação e do diagnóstico precoce, mas ainda são frequentes no Brasil e em outros países da América Latina. “Muitos tumores estão relacionados a processos infecciosos crônicos mal resolvidos”, diz Mano. “A pesquisa não avança na mesma velocidade que a doença.” Por sua vez, Hoff ressalta que houve avanços, como a padronização dos testes para diagnosticar os vários tipos de câncer, mas reconhece: “Não estamos ganhando a batalha contra o câncer. Precisamos acelerar”. n Artigos científicos 1. ARAI, R.J. et al. Building research capacity and clinical trials in developing countries. The Lancet Oncology. v. 11. ago. 2010. 2. OTAKE, A.H. et al. Inhibition of angiotensin II receptor 1 limits tumor-associated angiogenesis and attenuates growth of murine melanoma. Cancer Chemotherapy and Pharmacology. v. 66, n. 1, p. 79-87. mai. 2010. 3. MARQUES, F.D. et al. An oral formulation of angiotensin-(1-7) produces cardioprotective effects in infarcted and isoproterenol-treated rats. Hypertension. v. 57, p. 477-83. mar. 2011. PESQUISA FAPESP 183
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[ Astrofísica ]
Um buraco negro espelhado Cone de íons reflete imagem do misterioso objeto no centro de galáxia
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á quase meio século os astrofísicos catalogam regiões do espaço tão densas e compactas, dotadas de um enorme campo gravitacional, que delas nada escapa, nem a luz. Até agora foram identificados buracos negros, como são denominados genericamente esses pontos do Universo em que o espaço e tempo se encontram deformados, dos mais variados tipos e tamanhos. Para ficar apenas em dois casos extremos, pouco mais de 1% das estrelas conhecidas pode, no final de sua vida, virar pequenos sugadores de matéria e a maioria das galáxias, talvez até todas, abriga no seu interior buracos negros supermassivos, com massa superior à de milhões ou bilhões de sóis. Um forte indício da existência de mais uma variante desses objetos de natureza singular foi obtido pelo astrofísico João Steiner, da Universidade de São Paulo (USP), e dois de seus alunos de doutorado, Tiago Ricci e Roberto Menezes, ambos bolsistas da FAPESP. Por meio do emprego de um sofisticado método de análise de dados tridimensionais, inventado por eles mesmos, os pesquisadores encontraram um buraco negro espelhado – ou seja, um buraco negro e sua imagem projetada num cone de íons de hidrogênio que se comporta como um espelho – no centro da NGC 7097, galáxia elíptica situada na constelação austral de Grus, a aproximadamente 105 milhões de anos-luz da Terra. “É a primeira vez que se registra esse fenômeno, previsto antes apenas em teoria”, diz Steiner, que vai publicar um artigo sobre o achado na revista científica Astrophysical Journal Letters. O buraco negro e sua imagem se encontram tão próximos que é quase impossível distingui-los. A distância que os separa é da ordem de 20% de um segundo de arco. Medida usada em astronomia, um segundo de arco equivale a 1/3.600 de um ângulo com um grau de comprimento. Em outras palavras, um nada se interpõe entre o objeto real e o virtual.
Desenho de buraco negro com um disco de matéria ao seu redor
O objeto real e o virtual iag-usp/gemini
O que os astrofísicos viram no centro da galáxia NGC 7097
imagem projetada buraco negro real
disco de gás e poeira interestelar
Aurore Simonnet/Sonoma State University/nasa
Cones ionizados
“Nosso método permite ver dois pontos no centro da galáxia onde outras técnicas enxergam apenas um”, afirma Steiner (ver explicação acima). Por definição, um buraco negro não pode ser observado em nenhum dos comprimentos da onda eletromagnética. Não há, portanto, prova cabal de sua existência, apenas indícios indiretos. Pouco antes de ser engolida pelo buraco negro, a matéria está tão aquecida que libera energia na forma de radiação, como raios X. Fontes misteriosas ou inexplicadas de radiação em certos pontos do Universo, como no centro de galáxias com um núcleo ainda ativo, são interpretadas pelos astrofísicos como associadas a buracos negros. No caso da NGC 7097, as evidências da presença de um objeto com essas características foram captadas por um espectrógrafo de campo integral instalado no telescópio Gemini Sul, situado em Cerro Pachon, no Chile, projeto internacional do qual o Brasil é um dos sócios. O instrumento gera informações extremamente detalhadas sobre o céu e o objeto observado na forma de um cubo de dados, em 3D. Duas dimensões do cubo são espaciais: imagens bidimensionais que representam a altura e a largura da região analisada. A terceira dimensão, equivalente à profundidade, é dada na forma de um gráfico do espectro, das chamadas linhas de emissão de energia, obtido do objeto estudado. Esse tipo de espectrógrafo produz tanta informação que a extração de dados relevantes para estudos científicos é apenas parcial, e não otimizada de forma matemática.
O buraco negro (ponto rosa) é rodeado por um disco de gás e poeira interestelar que o alimenta de matéria (manchas vermelha e azul-escura). Sua imagem refletida (azul-claro) está projetada num dos dois cones ionizados repletos de elétrons livres (manchas verdes), que funcionam como espelhos.
Para contornar essa limitação, Steiner e seus alunos criaram há dois anos um método estatístico de análise dos chamados componentes principais dos cubos de dados (ver reportagem de Pesquisa FAPESP na edição 159, de maio de 2009). Inspirada levemente na tomografia usada na medicina, a técnica filtra os registros produzidos pelo espectrógrafo e resume e ordena 99,9% dos dados na forma de um conjunto de cinco imagens e seus respectivos gráficos. Apenas a primeira foto contém 99,53% da informação do cubo de dados. Juntas, a segunda, terceira, quarta e quinta imagens representam o restante 0,46%. A título de exemplo, a imagem que revelou o espelho com a projeção do buraco negro da NGC 7097 equivale a 0,02% da informação contida no cubo de dados sobre a galáxia. “No início, demorava meses usar o método e extrair as informações”, afirma Tiago Ricci. “Hoje produzo as imagens e gráficos em dois dias.” Claro que interpretar os dados é outra história e esse trabalho, sim, pode demorar muito tempo. A técnica pode ser útil para trazer à tona fenômenos sutis do Universo. “Ela pode revelar um sinal fraco ‘escondido’ no meio de outro mais forte, como é o caso da assinatura de buracos negros supermassivos no centro das galáxias, onde a luz é dominada pela emissão das estrelas”, afirma a astrofísica Thaisa Storchi-Bergmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), n que também usa o método.
Marcos Pivet ta PESQUISA FAPESP 183
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Proteção contra erupções catarina bessell
No ano passado o fechamento do espaço aéreo europeu devido à erupção do vulcão Eyjafjallajökull na Islândia gerou um prejuízo de US$ 2 bilhões e, claro, alertou para o perigo que as nuvens de cinza podem representar aos motores das aeronaves. Pesquisando sobre como proteger os motores a jato da areia aerotransportada, cientistas descobriram que dois revestimentos cerâmicos podem oferecer proteção especial contra as cinzas vulcânicas. Um dos revestimentos possui zircônia e alumina e o outro, zirconato gadolínio. O estudo, publicado na edição on-line de 8 de abril da Advanced Materials, mostrou que as cinzas derretem e penetram no revestimento no motor aquecido. Após o resfriamento as cinzas fundidas formam uma espécie de vidro frágil que descama, levando o revestimento com ele. Porém grandes quantidades de cinza podem temporariamente bloquear um motor a jato.
Futuro em 3D real
Science
Pela primeira vez pesquisadores conseguiram substituir os feixes de laser usados na geração de hologramas por uma fonte comum de luz branca. A pesquisa, publicada por japoneses da Universidade de Osaka na Science de 8 de abril, pode ser o começo para a criação de telas com imagem realmente em 3D e com menor custo. As telas tridimensionais atuais imitam a ilusão de profundidade pela sobreposição de duas imagens 2D. Assim, é necessário o uso de óculos
especiais. A holografia já fornecia imagens 3D reais, mas até hoje apenas em preto e branco. Para conseguir o colorido, os cientistas criaram uma técnica holográfica baseada em plásmons de superfície, com a geração da imagem feita com a atividade de nuvens de elétrons que se deslocam pela superfície de um filme metálico. Ao fazer a difração dos plásmons, as ondas de elétrons livres geram hologramas multicoloridos nos quais, independentemente do ângulo, os objetos são vistos com a mesma cor do original. Com um detalhe: os plásmons de superfície são excitados pela luz branca.
Imagem holográfica captada em 3D 62
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Passos para recarregar Recarregar a bateria do celular, literalmente no meio da rua, poderá ser possível apenas com uma caminhada. Cientistas da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, desenvolveram um recarregador de baterias portátil capaz de converter o movimento humano ou as vibrações da natureza como o balançar do galho da árvore pelo vento em energia elétrica. A pesquisa foi publicada na revista Applied Physics Letters (5 de abril). Para conseguir tal feito, os pesquisadores utilizaram os chamados geradores de elastômeros,
plásticos com propriedades elásticas dielétricos, que variam a carga elétrica. Eles possuem propriedades mecânicas semelhantes às da pele humana. São compostos por membranas de borracha e lubrificante feito de graxa de carbono, ambos instalados em uma estrutura. Ao ser esticado, o produto gera eletricidade sem a necessidade de circuitos eletrônicos externos. A vantagem? Além de utilizar a energia que o próprio corpo produz, tornando a geração ambientalmente amigável, todas as suas características o tornam anatômico, leve e com baixo custo de fabricação.
miguel boyayan
Laser para ignição
Maravilhas do grafeno Os ganhadores do Prêmio Nobel de Física 2010, Andrei Geim e Konstantin Novoselov, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, encontraram agora uma forma de magnetizar o grafeno com um fluxo de elétrons ou corrente elétrica. Apresentado na revista Science (15 de abril), o estudo abre novas perspecticas tecnológicas para a spintrônica que utiliza o giro dos elétrons. Novos sensores, microprocessadores e memórias digitais podem se utilizar desse novo tipo de magnetização.
A spintrônica já está presente em discos rígidos de muitos computadores e demais dispositivos eletrônicos de
Laser para motores de veículos
processamento. Os pesquisadores encontraram um novo caminho para interconectar o spin e a carga elétrica e melhorar o fluxo de elétrons no grafeno. Outro grupo de pesquisadores, da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, liderados pelo professor William King, demonstraram (Nature Nanotechnology, 3 de abril) que transistores de grafeno podem ser resfriados em nanoescala, o que permite a produção de circuitos eletrônicos sem a necessidade dos coolers, comuns em computadores para resfriar os chips.
Geim Lab/universidade Manchester
Um sistema de laser multifeixe, de apenas 9 milímetros de diâmetro por 11 milímetros de comprimento, poderá substituir as tradicionais velas para a ignição de combustíveis no motor de automóveis. A novidade será apresentada por pesquisadores dos Institutos Nacionais de Ciências Naturais em Okazaki, no Japão, em uma conferência sobre lasers e eletro-ópticos em Baltimore, no estado de Maryland, nos Estados Unidos, no início de maio. Os lasers desenvolvidos pelo grupo de pesquisa liderado por Takunori Taira são feitos de pós cerâmicos e podem ser produzidos em larga escala. Os dispositivos cerâmicos concentram energia a partir de lasers compactos, de menor potência, que são enviados por fibra óptica liberando essa energia em pulsos com duração de apenas 800 trilionésimos de segundo. Diferentemente dos cristais usados em lasers de grande potência, as cerâmicas conseguem suportar o calor produzido dentro do motor de combustão. O sistema é composto por dois feixes de laser, que conseguem injetar energia para fazer o motor funcionar rapidamente. Agora os pesquisadores estão trabalhando com três feixes de laser, o que permitirá uma combustão interna mais rápida e uniforme. O laser está sendo testado pelo fabricante de componentes de automóveis Denso, que pertence ao grupo Toyota.
Representação do grafeno com fluxo de elétrons
Célula ganha escala Um passo importante para as células a combustível de óxido sólido, conhecidas pela sigla em inglês Sofc – equipamento que gera eletricidade a partir do hidrogênio sem deixar resíduos –, se tornarem um produto mais facilmente comercializável foi dado por pesquisadores da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade Harvard e da empresa SiEnergy Systems. Eles conseguiram produzir um filme fino de óxidos formados por cerâmicas que quebram o hidrogênio e liberam os elétrons da molécula do gás para gerar eletricidade, com uma estrutura diferente, envolvida por telas metálicas com melhor aproveitamento da energia produzida, além de proporcionar um design mais compacto e com menor uso de minérios na confecção do equipamento. Com isso, acreditam os pesquisadores, as células Sofc podem ganhar escala de produção industrial e entrar no mercado mais facilmente com preços atraentes (Nature Nanotechnoloy, 3 de abril).
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Prótese cardíaca Uma prótese para implantes cardíacos, introduzida sem necessidade de abrir o tórax, foi desenvolvida em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a empresa Braile Biomédica, fabricante de produtos médicos e hospitalares. Ela é indicada nos casos de estenose aórtica (lesão da válvula aórtica) ou como substituta de prótese implantada anteriormente e deteriorada pelo tempo de uso. “A válvula é introduzida compactada dentro de um cateter, pela artéria femural ou pela ponta do coração”, diz o professor Enio Buffolo, do Departamento de Cirurgia da Unifesp e coordenador do trabalho. Ela só abre quando o cateter é acionado no local exato da liberação. “Até agora a válvula já foi implantada em 78 pacientes”, relata. Desses, 39 são pacientes da Unifesp e o restante de instituições credenciadas, como o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Hospital São Francisco da Santa Casa de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “Estamos pedindo autorização da Anvisa para estender o uso para vários grupos cirúrgicos no Brasil.” Atualmente, apenas cinco empresas no mundo fabricam esse tipo de válvula, entre as quais agora a Braile.
Parcerias para vigilância Criada em 2010, a Embraer Defesa e Segurança, unidade empresarial ligada à fabricante de aviões brasileiros, firmou uma série de parcerias na Feira de Defesa e Segurança (Laad) 2011, realizada em abril no Rio de Janeiro, para fornecer sistemas principalmente para a vigilância das fronteiras. 64
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O primeiro foi um acordo técnico e comercial com a empresa carioca Santos Lab para produzir pequenos veículos aéreos não tripulados (Vants) para a área de segurança. A pequena empresa já produz alguns modelos e fornece há cinco anos essas aeronaves para a Marinha brasileira. Outra parceria assinada foi com a Atech Negócios em
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Tecnologia, que desenvolve soluções para sistemas de comando, controle, computação e inteligência para as áreas militar e de segurança. A Atech Negócios é uma cisão da Fundação Atech, uma organização de direito privado e sem fins lucrativos criada em 1997 para integrar o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Nesse sentido, a Embraer Defesa comprou em março, por R$ 28,5 milhões, 64% do capital da OrbiSat da Amazônia, com sede em São José dos Campos (SP), que detém tecnologia de radares em 3D (ver Pesquisa Fapesp nos 149 e 89). A Orbisat, produtora de equipamentos eletrônicos e de mapas de sensoriamento remoto, continua sob o controle dos antigos proprietários.
Enzimas produzidas por fungos que crescem na vinhaça, resíduo resultante da produção do álcool da cana-de-açúcar, estão sendo utilizadas no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, no interior paulista, para eliminar diversas substâncias poluentes contidas nos efluentes têxteis. Testes mostraram que as enzimas descolorem e degradam o corante índigo, utilizado para tingir tecidos. O processo é baseado no método de reciclagem de materiais orgânicos contidos na vinhaça, que são transformados em enzimas e biomassa, testada para a produção de ração animal. O estudo é conduzido há um ano pelo engenheiro ambiental Gleison de Souza, coordenado pela professora Regina Monteiro, do Cena. O objetivo inicial foi encontrar um tratamento alternativo para a vinhaça, tornando-a água de reúso.
ilustrações catarina bessell
Enzimas descolorantes
Descendentes de caprinos machos e fêmeas transgênicos foram obtidos por um grupo de pesquisadores sob a coordenação do médico veterinário Vicente José Freitas, professor do Laboratório de Fisiologia e Controle da Reprodução da Universidade Estadual do Ceará (Uece), em Fortaleza. Esses animais possuem em seu genoma um gene que produz a proteína do fator estimulante de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF, na sigla em inglês) usado em doenças imunológicas, principalmente relacionadas ao uso de quimioterapia. O medicamento é secretado no leite da cabra transgênica e depois extraído e purificado (ver Pesquisa Fapesp n° 147). Existem medicamentos feitos em laboratório para suprir o hG-CSF, mas cada ampola custa R$ 500,00. Alguns tratamentos necessitam até de 14 ampolas. Uma cabra pode produzir quase duas ampolas em uma lactação induzida. Chamados de biorreatores, o uso de animais transgênicos para produção de medicamentos
Secretaria de C&T do Ceará
Cabras e bodes Transgênicos
Filhotes da raça Canindé: leite medicamentoso
é uma tendência mais barata e mais fácil de implantar, ao contrário do cultivo de bactérias e de células. Depois de conseguirem reproduzir os animais transgênicos, que são da raça Canindé, em via de extinção na Região Nordeste do país, o passo seguinte antes de comercializar o produto é fazer testes clínicos para a aprovação do medicamento. O projeto conta também com pesquisadores da Univesidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Academia de Ciências da Rússia e recebe financiamento do Ministério de Ciência e Tecnologia e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Notícias MCT, 8 de abril).
Olimpíada inovadora Projetos científicos e tecnológicos desenvolvidos por professores, alunos e funcionários da Universidade de São Paulo (USP) podem participar da segunda edição da
Olimpíada USP de Inovação, que tem inscrições abertas até o dia 16 de junho. A promoção é da Agência USP de Inovação, que passou, a partir de abril, a ser coordenada pelo professor Vanderlei Bagnato, do Instituto de Física de São Carlos da USP. A primeira etapa do concurso terá duas categorias, uma livre se destina a projetos baseados em ideias e conceitos inovadores e outra específica para os centros de inovação da universidade como Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Numa segunda etapa, os concorrentes serão divididos em quatro áreas tecnológicas: exatas, da terra e engenharia; saúde e biológicas; agrárias; e sociais aplicadas e humanas.
Expansão do software A produção nacional de software apresentou excelentes resultados, como mostra pesquisa divulgada em abril pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2009, a receita com a criação de softwares chegou a R$ 13 bilhões, o que representa 33,1% do faturamento total de R$ 39,4 bilhões do setor de tecnologia da informação no país. Os dados constam da Pesquisa de Serviços de Tecnologia da Informação 2009, feita pelo IBGE. Foram analisadas cerca de 2 mil empresas com mais de 20 funcionários, que respondem juntas por 75% do mercado de TI no país. O estudo mostra ainda que a representação e o licenciamento de softwares estrangeiros no país movimentaram R$ 4,4 milhões, ou seja, apenas 11,1% do total movimentado pelo setor. Já o volume de exportação dos serviços de TI atingiu US$ 2,1 bilhões. Na Índia, líder nesse segmento, o valor das exportações chegou a US$ 50 bilhões no mesmo ano, enquanto o valor total do setor atingiu US$ 75 bilhões (5% do valor da produção mundial total, de US$ 1,5 trilhão, segundo a consultoria D&B). Os Estados Unidos responderam por 72,7% da demanda pelos serviços brasileiros. PESQUISA FAPESP 183
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[ cosméticos ]
Parceria bem-sucedida Pesquisadores externos contribuem com inovação da Natura Dinorah Ereno
Yamada Taro / Getty Images
A
união do conhecimento acadêmico com as demandas da maior fabricante brasileira de cosméticos, a Natura, tem produzido resultados alentadores que beneficiam ambos os lados. Novas espécies aromáticas nativas da mata atlântica com potencial para fabricação de óleos essenciais e produtos medicinais, princípios ativos extraídos de plantas e algas com poder antioxidante para desenvolvimento de produtos cosméticos, além de novas técnicas e processos de análise mais simples e mais baratos para avaliação da eficácia de produtos são alguns dos exemplos dessa bem-sucedida parceria. “É um tipo de colaboração em que todos ganham”, diz o professor Anderson Zanardi de Freitas, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), ganhador do Prêmio Natura Campus de Inovação Tecnológica edição 2010 com o projeto “Avaliação do uso da tomografia de coerência óptica em dermatologia”. “A empresa investiu no desenvolvimento da técnica no laboratório do Ipen, com tecnologia totalmente nacional para fazer testes de eficácia de produtos, e ainda contratou um dos meus alunos de doutorado para trabalhar nessa área dentro da Natura”, diz Freitas. O primeiro contato da empresa com Freitas foi em 2006, depois que um pesquisador da Natura conheceu a técnica chamada tomografia de coerência óptica em um congresso de dermatologia nos Estados Unidos. “É uma técnica não invasiva, que permite ver em tempo real a imagem de tecidos biológicos com a mesma resolução de um microscópio óptico”, explica Freitas, que na época fazia o doutorado nessa área. “O resultado do meu douto-
Testes avaliam grau de absorção de novos ativos na pele
ativos cosméticos
poro sudoríparo
pelo
camada córnea (queratinizada) epiderme
derme Glândula sudorípara
Hipoderme tecido subcutâneo (adiposo)
rado foi o primeiro tomógrafo de coerência óptica no Brasil”, diz. A Natura procurou o pesquisador porque queria desenvolver uma metodologia para testar a eficácia dos produtos cosméticos que produz. “Os testes eram feitos na Alemanha, porque não existia uma técnica no Brasil para isso”, relata Freitas. O projeto resultou no desenvolvimento de uma metodologia e de um software que conseguem aferir, em tempo real, a eficácia dos produtos. Com isso a empresa conseguiu acelerar o processo de avaliação e reduzir os custos, já que o teste na Alemanha ficava cinco vezes mais caro. “A Natura comprou um sistema de tomografia comercial e abriu uma linha de pesquisa de tomografia óptica, que considero como o maior ganho do projeto”, diz Freitas. O pesquisador acredita que o primeiro lugar no prêmio, lançado em 2007 e concedido a cada dois anos, deve-se à facilidade de emprego da técnica que, embora complexa, não apresenta grandes segredos para a aplicação na indústria. A Natura foi a primeira colocada no setor de farmacêutica e cosméticos 68
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no ranking das 25 companhias brasileiras escolhidas com base na receita e melhor desempenho na década, publicado na edição especial do jornal Valor Econômico em 2010. A empresa alcançou receita líquida de R$ 5,1 bilhões em 2010, 21,1% superior ao ano anterior. O investimento em pesquisa e desenvolvimento foi de 2,8% da receita líquida. A segunda empresa brasileira do setor cosmético, O Boticário, teve receita líquida de R$ 422,8 milhões em 2009 e um crescimento de 15,8% em relação ao ano anterior, segundo a publicação. Na lista dos 10 maiores mercados consumidores de produtos de higiene, perfumaria e cosméticos, o Brasil ocupa a terceira posição, com movimentação de US$ 37,4 bilhões no ano passado, correspondentes a 10% da fatia mundial (US$ 374,3 bilhões), segundo dados da empresa Euromonitor International. A liderança é dos Estados Unidos, com US$ 59,8 bilhões, seguido pelo Japão, com US$ 43,8 bilhões. O desenvolvimento de uma metodologia padrão para os testes in vitro que são utilizados pela indústria der-
matológica e cosmética para avaliar a segurança de novos ativos deu à professora Maria Vitória Bentley, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), o segundo lugar do prêmio Natura Campus. “Nos testes in vitro, com membranas de animais ou pele humana, conseguimos avaliar o grau de penetração de uma substância na pele, em que camada ela fica retida ou mesmo se poderá ter absorção sistêmica”, diz a pesquisadora, que coordena o Centro de Pesquisa de Permeação Cutânea da universidade e trabalha há 20 anos na área. Maria Vitória recebeu há três anos um convite da Natura para fazer um estudo interlaboratorial que envolveu o laboratório da USP, considerado referência nessa área de pesquisa, um laboratório particular e a própria empresa. “Cada um realizou os testes no seu laboratório, que foram então comparados e, a partir deles, estabelecemos uma metodologia padrão, validada, para que os produtos cosméticos sejam todos avaliados da mesma forma com relação à permeação cutânea.” A importância do trabalho repercutiu na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que está elaborando uma revisão das normas exigidas para os produtos aplicados na pele lançados pela indústria farmacêutica e cosmética, com a colaboração da professora Maria Vitória. A metodologia permite avaliar, por exemplo, a eficácia de um sistema de liberação controlada de ativos com nanotecnologia, como cremes antirrugas e outros produtos. Óleos essenciais - A parceria da Na-
tura com os pesquisadores externos abrange ainda um mergulho na biota da mata atlântica, como mostra uma extensa pesquisa conduzida pela professora Márcia Ortiz, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), no interior paulista. O estudo, que durou três anos e contou com a participação de 25 pessoas, envolveu especialistas de várias áreas do conhecimento e também da empresa na seleção de óleos essenciais de espécies nativas com potencial olfativo e atividade biológica. O projeto, que começou a ser elaborado timidamente dentro do IAC, ganhou força em março de 2003, quando foi lançado o primeiro edital da Natura em parceria
daniel das neves
Permeação cutânea
andre benedito
com a FAPESP para pesquisas sobre biodiversidade financiadas pelo programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). Desde então o programa financiou 10 projetos de pesquisa, dos quais oito foram concluídos e dois estão em andamento. O investimento total da Fundação é de R$ 1.374.696,27. “O Pite foi um grande marco e deu inspiração para a empresa lançar o Natura Campus, em 2006, que é um programa de fluxo contínuo”, diz o biólogo Gilson Manfio, gerente de Inovação da empresa. Nessa modalidade, as parcerias ocorrem de formas diversas. Alguns temas de interesse para projetos de pesquisa em parceria são colocados no site, mas a empresa também manda seus representantes para as universidades ou então propõe colaborações com pesquisadores escolhidos. “Se houver uma linha de pesquisa interessante, vamos atrás do projeto para propor parceria”, diz Manfio. A empresa pode ainda licenciar tecnologias prontas. O programa está focado em quatro áreas: tecnologias sustentáveis, matérias-primas com propriedades sensoriais (relativo ao olfato), ativos para pele e cabelo e pesquisa voltada para o bem-estar do consumidor. “A bioprospecção do potencial aromático de espécies nativas da mata atlântica envolveu não só a parte química, olfativa, genética, taxonômica e a fisiologia das plantas, mas também a propagação das espécies selecionadas”, diz Márcia, que encerrou o projeto em 2008 e ficou com o terceiro lugar do prêmio. A proposta apresentada tinha como objetivo selecionar amostras nas áreas nativas preservadas da instituição. O IAC faz parte da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, que possui mais de 20 fazendas, muitas delas com áreas nativas. Pelo seu caráter multidisciplinar, o estudo reuniu especialistas das áreas de botânica, fitoquímica, fisiologia e genética. Na primeira etapa, que durou sete meses, foram selecionadas mais de 100 espécies de várias famílias botânicas com base no critério olfativo. Após a extração do óleo essencial de todas as espécies, a empresa fez a avaliação olfativa e o IAC verificou a composição química, a atividade antimicrobiana e antioxidante dos óleos essenciais.
Catiguá-morcego (Guarea macrophylla): seleção olfativa
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O Pite serviu de inspiração para a empresa lançar o Natura Campus, diz Gilson Manfio, gerente de Inovação
Na segunda etapa do projeto, os pesquisadores saíram novamente a campo para novas coletas das espécies selecionadas, tanto no nível do mar como na área central do estado. O objetivo era saber se a composição química dos óleos essenciais era influenciada por fatores genéticos e ambientais. “A grande dúvida era se as espécies selecionadas de ocorrência em lugares diferentes tinham composição química divergente”, diz a pesquisadora. A resposta é sim. O estudo abarcou ainda a identificação das espécies, observação em campo dos ambientes de ocorrência e avaliação da abundância, frequência e dinâmica demográfica dessas plantas em diferentes populações. Paralelamente, foi feito um estudo de variabilidade química e genética via marcador molecular para cada espécie. pESQUISA FAPESP 183
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Sérgio Gallucci, gestor da área de pesquisa da empresa que trabalha no desenvolvimento de ingredientes com propriedades sensoriais, diz que a proposta foi bem-sucedida, mas que há ainda um longo caminho pela frente. “Para que as substâncias selecionadas transformem-se em produto são necessários vários estudos complementares”, diz Gallucci. Das 100 espécies iniciais foram selecionadas 11 com potencial de uso cosmético e medicinal. “Como é um novo ingrediente, temos que ter certeza a respeito da sua segurança para consumo humano.”
da passariúva, descartadas pelas carvoarias, contêm antioxidantes
interior paulista, coordenador do projeto. “Foram feitos ensaios adicionais de toxicologia, que comprovaram a segurança necessária para uso em formulações dérmicas”, relata Cavalheiro. Os resultados foram inéditos e geraram uma patente. A parte de pesquisa foi encerrada em 2007 e entregue para a empresa, a quem cabe o desenvolvimento final do produto. Esse processo pode demorar até cinco anos. “Algumas vezes as plantas não são abundantes para atender ao lançamento de produtos”, diz Gallucci. “Em 50% dos casos temos que montar a cadeia de fornecimento vegetal.” Ele cita coNATURA
Resíduo aproveitado - Um outro projeto envolvendo uma espécie nativa da mata atlântica, conhecida popularmente como passariúva (Sclerolobium spp.) e utilizada em carvoarias, também financiado pela FAPESP em parceria com a Natura, comprovou que as folhas da árvore contêm antioxidantes e podem ser usadas em formulações cosméticas. A escolha da planta se deu pelo fato de que as folhas são um resíduo descartado e também porque triagens feitas ainda no âmbito do projeto Biota da FAPESP apontaram para o seu potencial antioxidante. “Caracterizamos quimicamente o extrato da planta e demonstramos o seu potencial antioxidante”, diz o professor Alberto José Cavalheiro, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, no
Folhas
mo exemplos alguns produtos de sucesso no mercado, como os feitos com a castanha-do-brasil, que já tem uma cadeia agronômica estabelecida, ou com a pitanga, em que foi necessário estabelecer parceria com produtores para conseguir a matéria-prima, que são as folhas da pitangueira, em quantidade suficiente para ter volume. “As pesquisas com a pitanga tiveram início em 2002, mas o produto foi lançado apenas em 2004”, relata. Mesmo quando há a cadeia de fornecimento – e uma pesquisa com resultados promissores – pode ocorrer de o produto não conquistar o público. Foi o que aconteceu com a pariparoba, um arbusto originário da mata atlântica que mostrou em estudos feitos na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo atividade protetora contra os raios ultravioleta do tipo UVB, os mais lesivos para a pele. A descoberta resultou em
Os Projetos 1 - Bioprospecção do potencial aromático de espécies nativas do bioma mata atlântica no estado de São Paulo: ocorrência, taxonomia, caracterização química, genética e fisiológica de populações - nº 2003/08896-1 2 - Validação de Sclerolobium spp. como fonte de antioxidantes naturais cosméticos - nº 2003/08863-6 3 - Algas marinhas da costa brasileira: isolamento e caracterização de substâncias bioativas com potencial uso para formulações cosméticas - nº 2003/08735-8 modalidade
Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) Coordenadores
1 - Márcia Ortiz Mayo Marques (IAC) 2 - Alberto José Cavalheiro (Unesp) 3 - Pio Colepicolo Neto (USP) investimento
Laboratório em Cajamar 70
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1 - R$ 228.660,74 (FAPESP) e R$ 207.301,34 (Natura) 2 - R$ 45.000,00 (Natura) e R$ 45.000,00 (FAPESP) 3 – R$ 95.000,00 (Natura) e R$ 95.800,00 (FAPESP)
iac
parceria com a Natura. Uma das substâncias encontradas nas macroalgas brasileiras são os aminoácidos tipo micosporinas, composto químico de baixo peso molecular sintetizado por algas e fungos com alta capacidade de absorção da radiação ultravioleta, que foram isolados e caracterizados pelo grupo de Colepicolo Neto. A Natura já fez os testes de estabilidade e de avaliação de citotoxicidade da substância, ensaio feito em cultura de células necessário para avaliar a biocompatibilidade dos materiais. Rede externa - A Natura tem hoje par-
Cachuá (Trichilia elegans): óleo essencial
um pedido de patente e despertou o interesse da Natura, que licenciou a tecnologia para utilização do extrato da raiz no desenvolvimento de produtos de uso cosmético (ver mais sobre o assunto em Pesquisa FAPESP n° 105). Em 2007 a empresa lançou um produto para tratamento de rosto à base de pariparoba como parte da linha Ekos, baseada na biodiversidade brasileira. “O produto saiu de linha depois de um tempo porque não teve sucesso no mercado”, diz Manfio. Em compensação, o Chronos Passiflora, um creme antienvelhecimento que tem como matéria-prima o maracujá, desenvolvido em parceria entre o professor João Batista Calixto, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e a Natura, é um suces-
so desde o seu lançamento em 2009. “Toda a pesquisa de comprovação de benefícios do produto foi feita pelo professor Calixto”, diz Manfio. Coube à empresa desenvolver a cadeia de fornecimento para o maracujá. O grupo de pesquisa de Calixto também participou do desenvolvimento do primeiro antiinflamatório fitoterápico nacional, o Acheflan, lançado no mercado em 2005 pela Aché. A biodiversidade envolve também pesquisas com macroalgas encontradas na costa brasileira. “Um dos extratos obtidos apresentou excelente potencial para uso em formulações destinadas à proteção solar”, diz o professor Pio Colepicolo Neto, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), coordenador de um projeto Pite em
cerias com 18 universidades brasileiras, distribuídas em nove estados. “Há uma interação direta com pesquisadores e bolsistas da rede externa, um movimento que envolve uma grande quantidade de pessoas.” A área de pesquisa e desenvolvimento da empresa conta com 250 pesquisadores internos. O maior laboratório, com 80 mil metros quadrados, fica em Cajamar, na Região Metropolitana de São Paulo. A empresa tem ainda um laboratório em Belém, no Pará, ligado à fábrica de saboaria em Benevides, que fica próxima às fontes de matérias-primas utilizadas nos sabonetes e óleos essenciais. Um terceiro laboratório em Paris, na França, tem como objetivo o desenvolvimento de novas tecnologias em cosméticos. “Lá os pesquisadores da Natura desenvolvem projetos em parceria com instituições francesas”, diz Manfio. O modelo de negócios escolhido pela empresa, de investir na inovação com base em substâncias da nossa biodiversidade, tem se diversificado. “Este ano vamos expandir nossas parcerias com modelos novos”, diz Manfio. Um exemplo é um acordo feito com o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), um dos três laboratórios associados do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais, junto com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e o Centro de Tecnologia do Bioetanol, em Campinas, no interior paulista. A parceria prevê o estabelecimento de uma plataforma de screening (triagem) de alta performance para testar ativos para pele e cabelo. A Natura patrocina o centro de pesquisa dentro do laboratório e compartilha o uso das instalações com o LNBio. n pESQUISA FAPESP 183
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[ embalagem inteligente ]
Cor nos fungos Filme sensível avisa ao consumidor deterioração dos alimentos Evanild o da Silveira
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pH + básico
pH básico
pH neutro
pH ácido
fotos eduardo cesar
A
tradicional mandioca, originária do sudoeste da Amazônia e consumida no Brasil desde muito antes da chegada dos portugueses – era a base alimentar dos indígenas –, ganhou novas e avançadas funções tecnológicas. Filmes plásticos biodegradáveis feitos a partir do amido desse vegetal poderão ser usados na produção de uma embalagem ativa, capaz de inibir o crescimento de fungos, ou inteligente, que muda de cor quando o alimento começa a estragar. O polímero também está sendo testado em cirurgias cardíacas, tanto para revestir o implante venoso, dando a ele maior resistência na fase inicial, como para a liberação de fármacos. Os estudos que resultaram nos filmes plásticos feitos do amido da mandioca, um polissacarídeo que tem como função principal armazenar a energia produzida pela fotossíntese, tiveram início em 2004 na Universidade de São Paulo (USP). As películas que o grupo de pesquisa coordenado pela professora Carmen Cecília Tadini, do Laboratório de Engenharia de Alimentos do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP, desenvolve têm em comum a adição em sua composição de glicerol, substância plastificante conhecida comercialmente como glicerina. Subproduto da fabricação de biodiesel, o glicerol tem custo baixo. São três tipos de filme plástico estudados. Cada um é caracterizado pelas substâncias presentes em sua composição, sendo que dois deles contêm nanopartículas de argila para torná-los mais resistentes. No caso
da película antimicrobiana, são os óleos essenciais de cravo e canela que possuem princípios ativos que agem contra microrganismos. Testes realizados em laboratório com o polímero contendo essas essências mostraram que ele é capaz de impedir o crescimento de fungos. “Hoje esses microrganismos são combatidos com substâncias antifúngicas aplicadas no produto embalado”, conta Carmen. “Nos ensaios feitos com os filmes que desenvolvemos constatamos que essa capacidade perdura por até sete dias.” Um dos desafios que os pesquisadores precisaram vencer para produzir esse filme foi determinar a dosagem exata das essências de cravo e canela que deveriam entrar em sua composição. Se muito alta, o odor forte e característico dessas especiarias poderia passar para os alimentos embalados e, se pequena demais, não teria eficácia para evitar o crescimento dos micróbios. O desafio de resolver o problema coube à doutoranda Ana Cristina de Souza, que fez um estágio no Laboratório de Alta Pressão e Tecnologia Supercrítica, da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde aprendeu a dominar a técnica que usa gás carbônico em estado supercrítico para incorporar os óleos essenciais aos polímeros. Ela explica que o estado supercrítico é alcançado quando a temperatura e a pressão de uma substância estão acima do seu ponto crítico – que ocorre quando se chega a uma determinada pressão e o equilíbrio líquido-vapor deixa de existir. A substância nesse estado tem grandes aplicações em processos de extração e separação química. PESQUISA FAPESP 183
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Filme rosa possui extrato de uva na composição e o transparente, canela
O segundo plástico é feito a partir da mesma base do primeiro, com amido de mandioca, glicerina e nanopartículas de argila. O que o diferencia é o quarto elemento de sua composição, que é um extrato rico em antocianinas, componente natural de frutas roxas ou arroxeadas, como uva, açaí, jabuticaba e amora, por exemplo. “A característica das antocianinas que aproveitamos em nosso trabalho é sua capacidade de mudar de cor, conforme muda o seu pH”, explica Carmen. “Como a alteração do pH é um dos primeiros indicativos de que um produto alimentício está começando a se deteriorar, usamos isso para produzir um filme para embalagens inteligentes. Ela muda de cor quando o alimento começa a estragar. Uma paleta de cores na embalagem pode indicar ao consumidor se o produto está bom ou não.” O terceiro polímero está sendo testado junto com a equipe do professor José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (InCor), da Faculdade de Medicina da USP. O plástico é empregado com o objetivo de melhorar a eficiência dos enxertos venosos utilizados nas cirurgias de revascularização miocárdica, mais 74
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conhecidas como pontes de safena. O filme utilizado não tem nanopartículas de argila em sua composição, porque a ideia é que, com o tempo, ele possa ser absorvido pelo organismo do paciente. Além do amido de mandioca e do glicerol, ele contém uma substância chamada carboximetilcelulose (CMC), um polissacarídeo extraído da celulose que tem a função de melhorar as propriedades mecânicas do plástico. Resistência natural - Nos implantes
de ponte de safena, quando essa veia é retirada da perna e colocada no coração para funcionar como artéria, a exigência por resistência é maior se comparada à sua função natural. Krieger explica que a velocidade do fluxo e a pressão do sangue circulante nas veias são menores do que nas artérias. Por isso a parede das primeiras é mais fina. Quando uma veia, como é o caso da safena, é implantada no coração, ela sofre uma alteração brusca de função e deve se adaptar rapidamente ao novo papel. Entender como isso funciona e o que ocorre quando uma veia se “arterializa” é o objetivo dessa linha de pesquisa de Krieger no InCor. “Queremos saber que genes e proteínas estão envolvidos nesse processo”, explica. Uma vez entendido isso, pode-se pensar em novas intervenções para melhorar o desempenho e tornar mais duradoura a ponte de safena. Krieger
explica que a perda dos implantes venosos chega a 50% após 10 anos, como se a “garantia expirasse em metade dos casos”. O trabalho da equipe visa buscar alternativa para aumentar esse prazo. Para isso o filme desenvolvido por Carmen e sua equipe está sendo testado em duas funções. Na primeira, ele é usado para embrulhar, ou seja, revestir externamente o implante venoso, dando a ele maior resistência e sustentação nas fases iniciais após a cirurgia. Depois disso a veia arterializada adquire sustentação própria. Assim o filme perde sua função e a absorção pelo organismo torna-se vantajosa. Na segunda função o filme é usado como plataforma para liberar drogas ou substâncias. “Se descobrirmos os genes ou proteínas envolvidos na arterialização, que a tornam diferente em cada paciente, poderemos interferir no processo com finalidade terapêutica”, diz Krieger. “Assim, se um gene está mais ativo do que deveria, podemos desativá-lo com drogas, por exemplo.” Para que a película desenvolvida por Carmen possa desempenhar essa função, ela deve ser impregnada com drogas, da mesma forma que os outros plásticos com substâncias antimicrobianas ou que a fazem mudar de cor. Por enquanto, os testes no laboratório de Krieger são feitos in vitro com segmentos vasculares e com células e em modelos experimentais utilizando ratos. Mais adiante os experimentos poderão ser feitos em coelhos e porcos. O projeto de desenvolvimento do filme para envolver as veias do cora-
O Projeto Embalagem ativa biodegradável à base de fécula de mandioca e aditivos naturais comestíveis: elaboração, caracterização e avaliação - nº 2005/51038-1 modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadora
Carmen Cecilia Tadini - USP investimento
R$ 85.401,19 e US$ 58.250,00 (FAPESP)
Os filmes desenvolvidos na USP são impregnados com vários tipos de substância de acordo com a função que vão exercer
ção é mais recente. Começou em 2009, com o doutorado de Helena Aguiar e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e conta com a participação do grupo de pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos, da USP, liderado pelo professor Douglas Franco. O trabalho que está mais adiantado é o de desenvolvimento do plástico com propriedades antimicrobianas, iniciado em 2004. “Já estamos na fase de viabilizar a produção em escala industrial”, revela Carmen. Esse projeto teve financiamento da FAPESP. Para o desenvolvimento do filme inteligente o grupo obteve bolsas do CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Homogêneo e biodegradável - A evo-
lução da integração das nanopartículas de argila aos plásticos contou com o trabalho da doutoranda Otilia de Carvalho, que fez um estágio na Universidade de Estrasburgo, na França, mais precisamente no Laboratório de Engenharia e de Polímeros e Altas Tecnologias (Lipht, na sigla em francês). “O meu principal objetivo durante o estágio foi elaborar um filme à base de amido, nanocomposto com argila e plastificado com glicerol”, conta. “Como há baixa compatibilidade entre o amido e a argila nativa, testei duas modificações e obtive materiais bem mais homogêneos.”
Embalagem inteligente para uvas que muda de cor se elas estragarem
Um estudo apresentado em abril pelo Instituto Fraunhofer, da Alemanha, também mostra a utilização de filmes que mudam de cor quando alimentos como carnes e peixes estão deteriorados. A pesquisa, conduzida pela professora Anna Hezinger, utilizou sensores químicos em embalagens plásticas que respondem às aminas, moléculas presentes na deterioração das carnes, e mudam a cor do filme que envolve o produto. Anna teve financiamento do Ministério de Educação e Pesquisa alemão e agora busca parceiros na indústria para produzir os sensores químicos para embalagens. Quanto aos plásticos biodegradáveis em geral, é um campo que está em desenvolvimento no mundo. Existem hoje muitos desses filmes sendo produzidos em vários países como Japão, Estados Unidos, Holanda e Brasil. Eles são produzidos a partir de várias fontes, como mandioca, milho, batata, soja e celulose. No Brasil está sendo produzido em escala piloto, a partir do açúcar da cana, um plástico biodegradável com propriedades similares às do polipropileno. O produto, chamado de Biocycle, foi desenvolvido em parceria entre o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Centro de Tecnologia da Copersucar
(CTC), no início dos anos 2000. “Hoje a tecnologia de produção encontra-se consolidada”, diz o gerente administrativo Eduardo Brondi, da empresa PHB que produz o bioplástico. “Toda a produção é destinada ao desenvolvimento e teste de aplicações, em conjunto com inúmeros parceiros em todo o mundo.” Entre essas aplicações estão peças automotivas, brinquedos, copos e talheres. De acordo com um estudo da European Bioplastics, associação criada em 2006 e que representa os fabricantes, processadores e usuários de bioplásticos e polímeros biodegradáveis e seus produtos derivados, em 2007, dado mais recente disponível, a capacidade de produção mundial de bioplásticos equivalia a cerca 0,3% da produção mundial de plásticos, derivados principalmente de fontes petroquímicas. A previsão é que a produção de bioplásticos será de 2,33 milhões de toneladas em 2013 e de 3,45 n milhões de toneladas em 2020. Artigos científicos 1. KECHICHIAN, V.; DITCHFIELD, C.; VEIGA-SANTOS, P.; TADINI, C.C. Natural antimicrobial ingredients incorporated in biodegradable films based on cassava starch. LWT - Food Science and Technology. v. 43, p. 1.088-94. 2010. 2. VEIGA-SANTOS, P.; DITCHFIELD, C.; TADINI, C.C. Development and evaluation of a novel pH indicator biodegradable film based on cassava starch. Journal of Applied Polymer Science. v. 120, p. 1.069-79. 2011. PESQUISA FAPESP 183
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[ proteção digital ]
Redes reforçadas Nova abordagem aumenta a segurança de internet e aeroportos Carlos Fioravanti
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importância de um aeroporto pode ser medida de duas formas. De modo visível, por seu tamanho, quantidade e porte dos aviões que chegam ou saem ou ainda pela quantidade de pessoas que embarca ou recebe. De modo menos tangível, pelo número de conexões que mantém com outros aeroportos. Um grupo de físicos brasileiros, israelenses e suíços está propondo um ajuste nessa abordagem para desconcentrar o movimento dos aeroportos e reduzir os danos em caso de um ataque de hackers às redes de computadores que regem o movimento de milhões de pessoas todos os dias. As equações dos físicos da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Escola Politécnica de Zurique, na Suíça, e da Universidade Bar-Ilan, em Israel, redesenham as conexões e tornam os aeroportos importantes menos importantes. Assim, um voo de Curitiba para Fortaleza que deixasse de fazer escala em São Paulo não sofreria nenhuma alteração em caso de ataque às redes de computadores do aeroporto paulista.
Com menos conexões, portanto com menos aviões e menos pessoas em trânsito, um aeroporto torna-se menos atraente para quem quiser atacá-lo causando o maior dano possível. “Imaginamos como os terroristas devem pensar antes de começarmos a desenvolver formas mais eficientes de proteção das redes de computadores”, diz José Soares de Andrade Jr., pesquisador da UFC e um dos autores dessa nova abordagem. Essa estratégia de proteção das redes de computadores imita a estrutura da cebola, uma comparação que os próprios físicos adotaram ao usar a expressão onion-like networks para descrever o que fizeram, propondo modificações a baixo custo em redes de computadores sem modificar o número anterior de conexões. A sacada foi alterar a geometria das conexões. Essa abordagem implica o redesenho das conexões, criando-se um núcleo principal, que representa um conjunto de nós muito conectados entre si. Esses nós estão unidos a outros, menos importantes, que representam a primeira casca interna
ilustração do artigo “Mitigation of malicious attacks on networks”
Representação da onion-like networks: os iguais se ligam
da estrutura. Como uma cebola, cada uma dessas camadas de nós está ligada a uma camada mais interna, com maior conectividade média, e a uma camada mais externa, menos conectada. Nessa abordagem, os iguais se ligam: quase todo nó com mesmo grau de importância está conectado com outro de mesma relevância sem passar por outro nó ou ponto de grau hierárquico maior ou menor. “Pequenos ajustes nas conexões podem deixar toda a rede mais protegida”, assegura Andrade. “Em caso de um ataque a um dos nós mais importantes, sempre haveria uma estrutura residual capaz de manter a integridade e o funcionamento da rede, em vez de desintegrar-se por completo.” Normalmente, nas chamadas redes complexas, como as que regem os voos dos aviões comerciais, a distribuição de energia elétrica, a internet ou as redes sociais, cada ponto importante, chamado de nó, está ligado de modo aleatório a outros pontos importantes e a muitos outros pontos menos importantes. “A rede simples, em que cada ponto se co-
necta com todos os outros, é eficiente, mas é muito cara”, observa Andrade. Segundo ele, a rede em forma de estrela, em que alguns pontos são muito conectados e a maioria dos outros muito pouco conectada, é de custo baixo, mas frágil. “Estamos propondo uma abordagem intermediária, que mantenha o número de conexões e aumente a robustez da rede com pequenas modificações, portanto a custo baixo.” Usos possíveis - Christian Schneider,
de Zurique, Andrade e outros físicos aplicaram essa abordagem na rede europeia de eletricidade, com 1.811 pontos de distribuição de energia e 370 milhões de usuários, e em uma rede de internet com 1.098 provedores e 6.089 conexões. A substituição de 5% das conexões, eles sugerem, poderia aumentar em 45% a proteção da rede elétrica contra ataques e em 55% a da rede de internet. Andrade disse que começou a conversar com engenheiros da Companhia de Eletricidade do Ceará (Coelce) para ver como essa estratégia pode ser útil também no Brasil.
Os físicos aplicaram esse enfoque matemático para conter o avanço de epidemias. Duas simulações iniciais – em uma rede de transporte aéreo com 3.666 aeroportos e outra em uma rede de amigos com 1.461 estudantes – indicaram que é possível reduzir a vulnerabilidade das pessoas a epidemias por meio de pequenos ajustes nas estratégias de vacinação. Em vez de seguir o enfoque habitual – vacinar o maior número possível de pessoas de todos os lugares onde a epidemia possa chegar –, os físicos observaram que poderiam aumentar a eficácia da imunização em até 55% na rede de aeroportos e em até 15% na rede de amigos priorizando os lugares – ou nós – muito usados por pessoas em trânsito. Alguns desses lugares são evidentes, como os aeroportos. Outros nem tanto. É o caso de Vitória da Conquista, cidade do sudoeste da Bahia com cerca de 300 mil habitantes, um entroncamento rodoviário por onde passam muitos ônibus para o Nordeste e o Sudeste. De acordo com essa estratégia, vacinar as pessoas que estiverem ali seria estratégico para deter o espalhamento de epidemias no Brasil. Na Faculdade de Medicina da USP, as equipes de Eduardo Massad, Marcelo Burattini e Francisco Antonio Bezerra Coutinho se valem de caminhos matemáticos similares para prever como a dengue se espalha e propor estratégias para enfrentar a epidemia. Uma das conclusões a que chegaram, com base em um estudo feito em Cingapura, é que não é preciso um esforço contínuo para controlar a transmissão da doença: basta concentrar as ações de controle em um dia a cada cinco semanas. As equações que relacionaram o número de pessoas infectadas, recuperadas ou imunes, o número de mosquitos suscetíveis a contrair o vírus e os insetos e ovos infectados indicaram que, uma vez instalada a epidemia, o melhor a fazer é matar os mosquitos adultos. Mas combater as larvas e eliminar os criadouros é essencial para evitar a ressurgência da dengue. n Artigo científico Schneider, C.M. et al. Mitigation of malicious attacks on networks. PNAS. v. 108, n. 10. 22 fev. de 2011. PESQUISA FAPESP 183
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[ Bioquímica ]
Barba-de-velho mede poluição Espécie de bromélia é usada para captar metais pesados no ar
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as grandes cidades há algo no ar além do oxigênio que respiramos. É o chamado material particulado, composto por minúsculos fragmentos de elementos químicos carregados principalmente de metais pesados causadores de estragos consideráveis à saúde, seja em problemas gastrointestinais, pulmonares ou hematológicos. Na tentativa de identificar essas partículas de forma barata e como alternativa aos equipamentos convencionais de monitoramento do ar, pesquisadores das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Bahia (Ufba) usaram a bromélia conhecida como barba-de-velho (Tillandsia usneoides), espécie presente nas matas brasileiras, para estudar as concentrações de metais pesados no ar das cidades de Salvador e do Rio de Janeiro. A técnica, chamada de biomonitoramento atmosférico, ainda é experimental em centros de pesquisa de vários países. O estudo nas duas capitais brasileiras – coordenado pelo biólogo Leonardo Rodrigues de Andrade, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, e pela farmacêutica Nelzair Araújo Vianna, da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador – provou que o material particulado atmosférico inalado pelas pessoas contém elementos tóxicos para a saúde humana nas duas cidades. “Mostramos também que a Tillandsia usneoides indica a concentração de metais que estão presentes na fração do material particulado mais perigoso para a saúde”, diz Andrade, que atualmente faz um pós-doutorado no National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos. “Concluímos ainda que a principal fonte desses elementos nos locais estudados relaciona-se à poluição causada por veículos automotores.” Segundo o pesquisador, antes do estudo realizado por eles não se sabia nada sobre a presença e concentrações de metais pesados nos locais estudados, principalmente em Salvador. “De certa forma, foi o nosso trabalho o primeiro a quantificar as concentrações de metais na atmosfera nos pontos pesquisados”, assegura. “No Rio existe um monitoramento do material particulado nos locais que estudamos, mas não de metais pesados.”
fotos WikiCommons
A Tillandsia adere ou fica pendurada em outras plantas, mas não é um parasita
Os pesquisadores usaram a bromélia Tillandsia usneoides para quantificar a presença de cinco elementos considerados extremamente tóxicos – cobre, cromo, cádmio, zinco e chumbo – em cinco locais distribuídos no estado do Rio de Janeiro, sendo três na capital, e em sete pontos na cidade de Salvador. Foram monitorados ainda dois locais sem poluição, para funcionar como controle de comparação: o Parque Nacional do Itatiaia (RJ) e a cidade de Cordeiro, na região serrana do Rio de Janeiro. “Escolhemos esses metais por serem encontrados em regiões consideradas poluídas”, conta Andrade. Depois de 45 dias de exposição nos locais escolhidos, os pesquisadores recolheram amostras da barba-de-velho e as levaram para o laboratório. Lá, pedacinhos da planta foram analisados com técnicas de espectrofotometria de absorção atômica, microscopia eletrônica de varredura e microanálise de raios X. A equipe escolheu a bromélia barba-de-velho para os experimentos porque é uma espécie com fisiologia adaptada para sobreviver em ambientes quentes e secos e que já foi usada em alguns estudos na Argentina, na Itália, no estado da Flórida, nos Estados Unidos, e na Alemanha. No Brasil também foi utilizada na análise do ar de São Paulo, no início dos anos 2000, pela equipe da professora Mitiko Saiki, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) (ver Pesquisa FAPESP n° 104). A bromélia é uma epífita que vive aderida ou pendurada em outras plantas, mas não como um parasita. Como não possui raízes de-
senvolvidas, absorve água e nutrientes diretamente da atmosfera por meio de estruturas chamadas escamas, que recobrem todo seu corpo. “Essas escamas possuem grande habilidade de atrair e reter líquido”, explica Andrade. O material particulado fica retido nas escamas e se acumula proporcionalmente ao tempo que a planta fica exposta ao ar. No Rio de Janeiro foram encontrados índices de cromo, chumbo, cobre e zinco muito maiores nos pontos biomonitorados do que nos locais controles, onde o ar é limpo. O cádmio só foi mais elevado nas localidades de Jacarepaguá e São Gonçalo. Destaque para o zinco, que teve em São Gonçalo valores até 17 vezes maiores em relação a Itatiaia e a Cordeiro. Em Salvador, o panorama não foi diferente. Embora os valores de cádmio, cromo e chumbo tenham sido semelhantes nas duas cidades, os índices de zinco e cobre foram mais elevados no Rio.“Um desdobramento de nossa pesquisa em Salvador foi a utilização dos dados como base científica para justificar o investimento financeiro na instalação de miniestações de monitoramento do ar como preparação para a Copa do Mundo de 2014”, revela Nelzair. De acordo com ela, isso é consequência do pioneirismo do trabalho deles na capital baiana, que mobilizou os meios de comunicação e os órgãos ambientais. “Até então Salvador não possuía nenhum dado relativo às condições do ar nos locais estudados.” A Secretaria de Saúde do município implantou o Núcleo Intersetorial para Qualidade do Ar, coordenado por Nelzair, e recomenda para os órgãos ambientais a utilização da Tillandsia usneoides no monitoramento do ar. De acordo com os pesquisadores, o método testado por eles não deve substituir estações de monitoramento, que possuem maior precisão de medição não só para material particulado, mas também para outros poluentes. n
Evanild o da Silveira Artigo científico VIANNA, N.A.; ANDRADE, L.R. et al. Assessment of heavy metals in the particulate matter of two Brazilian metropolitan areas by using Tillandsia usneoidesas atmospheric biomonitor. Environmental Science and Pollution Research. v.18, n.3, p. 416-27. 2011. PESQUISA FAPESP 183
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humanidades
[ vida urbana ]
ACERTEI NO MILHAR! Estudos analisam poder do jogo do bicho na criação da modernidade nacional Carlos Haag ilustrações Guilherme Lep ca
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m História do Brasil (1932), o poeta Murilo Mendes definiu o que chamou de Homo brasiliensis de forma enfática: “O homem é o único animal que joga no bicho”. Curiosamente, como nota o antropólogo Roberto DaMatta, autor de Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho, “instituições capitais para o entendimento do Brasil como o carnaval, o futebol e o jogo do bicho são praticamente banidas da reflexão intelectual, vistas como provas de ignorância, atraso cultural e expressão da nossa perene tendência para a corrupção e o crime”. Há décadas arrastam-se no Legislativo debates sobre a legalização ou não da “fezinha”, sem resultados, ainda que, no ano passado, tenha sido “descoberto” um ponto de apostas do bicho que funcionava há 15 anos dentro do Congresso Nacional. Há, ainda, quem aponte os bicheiros como “patronos” iniciais do narcotráfico e criadores de uma versão tropical da máfia no país. Apesar disso, em todo Carnaval é possível ver, em jornais e revistas, fotos de presidentes de escolas de samba, na sua maioria supostos bicheiros, que estariam
presentes também na cúpula da oficializada Liga das Escolas de Samba, a Liesa. Como entender que um jogo inocente, iniciado em 1892 por um nobre, o barão de Drummond, idealizado como forma de manter em funcionamento um símbolo da civilização que chegava aos trópicos, o Jardim Zoológico de Vila Isabel, tenha se transformado numa polêmica contravenção em tão pouco tempo? “A repressão ao jogo do bicho nunca foi uma questão moral ou legal. Antes, ela representou, desde o início, o desejo do Estado em regular o comportamento das classes populares brasileiras. Estudar a história do jogo do bicho é entender a crescente criminalização da vida cotidiana no começo do século XX, resultado das mudanças que acompanharam a transição da sociedade brasileira de uma sociedade escravista para outra capitalista, de consumo, cuja versão urbana foi fundada sobre o cerceamento da vida das pessoas comuns, no âmbito privado e público”, explica a historiadora Amy Chazkel, da City of New York University, que lança, neste mês, nos EUA, o estudo Laws of chance: Brazil’s clandestine lottery and the making of urban public life (Duke University Press). “A instituição PESQUISA FAPESP 183
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‘jogo do bicho’ não foi criação de um barão empreendedor, mas nasceu da interação entre o Estado e a população. Ela desafiou as loterias legais, que davam dinheiro para o governo, representou as tendências liberais que as associações comerciais e o Legislativo tentaram erradicar e parecia confirmar os medos das elites sobre as tendências entrópicas da classe trabalhadora, seu desejo de ganhar dinheiro sem trabalhar por ele e o descaso que tinham pelas leis.” Ou, nas palavras de DaMatta: “O jogo do bicho faz jus à imensa criatividade do brasileiro pelo que destila de utopia e generosidade, o que explica por que tem, como o gato, sete vidas, apesar das perseguições policiais dos governantes burros e de uma elite águia, que sempre foi mais patife do que nobre”. Zoológico - Amigo e sócio do barão de
Mauá, João Batista Vianna Drummond (1825-1897) comprou, em 1872, uma vasta chácara na encosta da serra do Engenho Novo, onde, no ano seguinte, implantou a Companhia Arquitetônica, cujo objetivo era a criação de um bairro amplo com bulevares, nos moldes franceses em oposição ao urbanismo lusitano, de ruelas, do Rio. Abolicionista, Drummond batizou a região de Vila Isabel em homenagem à princesa. Um projeto moderno, o bairro oferecia opções de lazer e uma ligação de bonde com o centro da cidade. No espírito científico e civilizatório da época, o barão reservou 300 mil metros quadrados 82
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O jogo do bicho faz jus à imensa criatividade do brasileiro pelo que destila de utopia e generosidade, diz DaMatta
para a instalação de um zoológico, que seria referência para estudiosos brasileiros. Usando seus contatos com o Estado, Drummond solicitou, e conseguiu, uma subvenção para o funcionamento do parque, aberto em 1888 e que lhe rendeu o título de barão das mãos do imperador. Dois anos mais tarde, argumentando a insuficiência do auxílio municipal, voltou a pedir ajuda, dessa vez sugerindo que poderia obter recursos sem onerar os cofres públicos se fosse permitido que explorasse jogos lícitos (o Código Penal de 1890 proibia jogos de azar) no interior do zoológico. Entre esses, o jogo do bicho: o visitante recebia um tíquete com a figura de
um animal impressa; no final do dia, abria-se a caixa que ficava pendurada perto do portal de entrada do parque, onde estava um quadro retratando o animal do dia, escolhido previamente pelo barão de uma lista de 25 bichos. O primeiro sorteio, em que deu “avestruz”, aconteceu em julho de 1892 e o vencedor teve direito ao prêmio de 20 mil-réis, 20 vezes o preço pago pela entrada. Duas semanas, deu “cachorro” e o sortudo embolsou 2 contos de réis, prova do crescimento rápido de público em razão do sorteio. Jornais comentavam a falta de espaço nos bondes para Vila Isabel e foram criadas novas linhas para dar conta da demanda. Esperto, o barão, em pouco tempo, oferecia a venda de bilhetes para o zoológico em estabelecimentos no centro da cidade, o que permitia participar a distância. O passo definitivo para o sucesso do bicho foi quando o parque passou a permitir que se pudesse escolher, na compra das entradas, um animal em particular. O sorteio virou jogo de azar.
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o jogo se transformou em “febre”: “Hoje, no Rio, o jogo é tudo. Não há criados, porque todos passam o dia a comprar bilhetes de bichos. Ninguém trabalha! Todo mundo só joga”, reclamou, parnasiano, o poeta Olavo Bilac. “A institucionalização do ideal de igualdade política e o fim da ordem imperial, numa sociedade em que o trabalho era marca da escravaria, trouxeram à tona a febre especulativa e consolidaram um jogo barato, fácil e sem pretensão. Um jogo marcado pelo apelo mitológico e totêmico familiar que mapeava e relacionava animais, números e dinheiro e com isso reunia simbolicamente os pobres aos ricos e os inferiores aos poderosos”, observa DaMatta. A República, porém, chegara disposta a regular um país que, afirmavam, a lassidão da monarquia condenava ao atraso. “O Estado policiava tanto os capitalistas poderosos quanto os pequenos negócios e os vendedores de rua, tudo o que operasse fora dos limites legais da regulação estatal. Nesse movimento, criou-se uma ‘zona cinza’ de empreendimentos incontroláveis que marcou a transição do Império para a República. O jogo
do bicho ficou cada vez mais popular e se ramificou por entre o pequeno comércio, e a perseguição ‘para inglês ver’ que se fazia aos jogos de azar até então ganha um novo objetivo: as preocupações morais sobre o jogo do bicho não surgiram porque era uma forma de jogar, mas porque era um tipo de comércio”, analisa Amy Chazkel. Afinal, continua a historiadora, o governo tinha mais a ganhar ao assinar contratos com grandes companhias do que ao permitir que os pequenos comerciantes, interessados em vender o jogo do bicho em meio ao seus negócios habituais, ocupassem as ruas da cidade livremente. “Daí a grita geral das elites e dos altos concessionários contra o jogo em petições e debates infinitos no Legislativo, o que revela o entendimento de que sempre que uma multidão se reúne e o dinheiro circula as pessoas encontram uma forma de burlar regras”, nota a pesquisadora. A República igualmente investiu pesadamente na consolidação do conceito de contravenção, os pequenos delitos. “Havia uma crítica forte contra o extinto regime na forma de reprimir atividades que atentariam contra a moral e a ordem pública, como vadiagem, preguiça, bebedeira, jogos de azar e capoeira. Para o novo governo republicano, a lassidão imperial diante dessas afrontas à ‘moral e aos bons costumes’ revelava a decadência da monarquia”, observa Amy Chazkel. O “pequeno crime” passa a ser uma obsessão para a polícia, já que atingia um número maior de pessoas e estava diretamente ligado à burocracia policial e menos ao Judiciário. Juízes e policiais passam a disputar espaço na forma de lidar com a contravenção, criando um conflito de interesses: o Judiciário tinha a última palavra na legalidade da ação da polícia nas ruas, mas essa autoridade muitas vezes excedia a do magistrado em absolver um preso. Isso explica por que quase nenhum vendedor de bicho preso pelos policiais foi condenado até 1917, por “falta de provas”. “As classes menos protegidas sofreram os efeitos colaterais dessa disputa, exacerbada pela transformação do jogo do bicho em contravenção, já que os policiais lutavam pela preeminência nas ruas ao exercer seu poder de prender e reprimir. Nesse movimento, a polícia carioca não era leal nem ao Estado, nem aos populares, de
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onde seus membros provinham. Havia a tendência, na contravenção, a lidar com suspeitos em base apenas em seus valores e identidades: alguém ‘conhecido por ser bicheiro’ podia ser preso mesmo que não estivesse vendendo bilhetes”, diz Amy. “Mais importante, a experiência deste modus operandi contra o jogo foi transferida, mais tarde, para o campo da política. A polícia usou as armas desenvolvidas para combater jogos e outras pequenas contravenções e as usou para reprimir a dissidência política nascida com as movimentações trabalhistas. Juridicamente, o bicheiro e o criminoso político eram a mesma coisa. Alguém era preso por ‘ser um conhecido líder comunista’.”
jogo do bicho, por mais que perseguido, não era erradicado. “Pode-se entender a absolvição de envolvidos como a reação dos juízes aos excessos da polícia e a consciência do envolvimento de policiais com os contraventores. O bicho sobreviveu também porque se transformou numa parte extralegal da profissão policial. Assim, todos os envolvidos, de juízes aos policiais, ajudaram a criar um submundo urbano de contravenção”, nota a pesquisadora. “À medida que a repressão cresce o bicheiro se organizou para obter o efeito oposto. A repressão acaba sendo responsável pela organização do jogo, unindo os bicheiros e provocando uma expulsão dos ‘amadores’ ou banqueiros eventuais. É uma situação tipicamente brasileira: a perseguição ao jogo gera uma aprovação popular, o que lhe dava legitimidade social contra uma proibição legal elitista e mal intencionada. O governo vira o inimigo comum e torna a polícia presa fácil dos banqueiros de bicho, que a aliciam”, concorda DaMatta. Para quem vendia os bilhetes, engajar-se nesse comércio era uma carreira muito mais tentadora do que trabalhar numa fábrica. O jogo se transforma num aspecto totalmente normal do cotidiano, ainda mais numa época em que, como nota o historiador José Murilo de Carvalho, em Os bestializados, “a crença na sorte como meio de enriquecimento rápido e sem esforço era difundida em toda a sociedade carioca PESQUISA FAPESP 183
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nos primeiros anos da República”, em razão da intensa especulação financeira gerada pelo Encilhamento, que colocou grandes quantidades de dinheiro em circulação, sem lastro, a expressão característica desse “capitalismo sem ética protestante”. “Não sem razão, a intelectualidade carioca usou o jogo do bicho como metáfora da especulação financeira do Estado”, lembra Amy. “Se um banqueiro pode falar seriamente em investimento, se um político apresenta um projeto de lei inspirado no liberalismo, o jogo do bicho é uma versão popular e barata dessas coisas. Se imaginarmos que o jogador do bicho é um humilde especulador situado no polo oposto, pode--se dizer que ele age inspirado por esse mesmo modelo, só que troca o Estado pelo sonho, o liberalismo pela cosmologia dos bichos e o apadrinhamento pelos palpites”, avalia DaMatta.
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m 1917, a repressão se intensificou com a chamada “campanha mata-bicho”, mas a loteria clandestina, mais do que sobreviver, emergiu mais forte, concentrada, profissionalizada, com um código de ética que, para a população, era “mais confiável” do que o apresentado pelo Estado. “Não se pode esquecer que, nessa lógica capitalista, o bicheiro era capaz de igualar práticas legais ao transformar um pedaço de papel numa nota promissória. A lendária confiança nos operadores do jogo nasceu do contraste implícito com os operadores não confiáveis do Estado. Para a maioria dos brasileiros que não eram da elite, o Estado era sinônimo de sistema judiciário criminal e ponto”, diz a historiadora. “Os banqueiros acessíveis e populares mantêm com o apostador um elo transitório, mas definido pela lealdade e confiança, porque os dois compartilham o mesmo sistema de crenças. Todos são tratados com respeito. E o cidadão busca tanto seus direitos políticos quanto o respeito. Não se trata, então, de uma sociedade defeituosa porque valoriza o ganho fácil, como querem alguns críticos, mas de um sistema que discerne o valor do dinheiro como um instrumento privilegiado para a construção da ‘pessoa’”, nota DaMatta. Assim, continua, o jogo adota a promessa capitalista do sucesso monetário, proporcionando a mudança de posição social, mas, dife-
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rentemente do capitalismo ortodoxo, não compactua com a indiferença social instituída com a redução individualista e mercadológica. Um fator notável do jogo do bicho, já em seus primórdios, foi a sua ligação com a cultura popular, pois muitos de seus primeiros banqueiros foram os empreendedores pioneiros do entretenimento nacional, como Paschoal Segreto, um dos introdutores do cinema no país. Antes das projeções dos filmes, Segreto exibia 26 anúncios, sempre retirando, de propósito, um deles, transformando o cinematógrafo num jogo de azar como o bicho. “O jogo do bicho foi para muitos cariocas o primeiro contato com o divertimento público comercializado. Novas invenções viravam um subterfúgio para empreendedores em busca dos lucros do bicho. Ao mesmo tempo, os ganhos do submundo permitiam que esses mesmos empreendedores pudessem investir no show business ou, no caso de Segreto, no cinema”, nota Amy. O próximo passo será o Carnaval. “Desde o início, quando as escolas de samba colhiam contribuições para o desfile, os bicheiros já estavam entre os
colaboradores. À medida que a cidade cresceu, o jogo do bicho acompanhou a expansão das suas áreas periféricas, em especial a partir da proibição dos jogos de azar pelo governo Dutra em 1946. Nelas a patronagem preencheu ao longo desses muitos anos os imensos vazios administrativos deixados pelo poder público em áreas carentes”, observa a antropóloga Laura Viveiros de Castro, do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. “O desfile das escolas permitiu a integração positiva do bicheiro à sociedade metropolitana. Escolas até então pouco competitivas, como a Mocidade ou Beija-Flor, passaram a batalhar efetivamente pelo Carnaval em razão do patrocínio dos bicheiros. Essa ‘modernização’ reforça o controle da rede do bicho sobre seus territórios, revela uma hierarquia da clandestinidade na cidade, e não retira o móvel não econômico e interessado do mecenato do jogo do bicho no Carnaval: o dinheiro do patrono é também um ‘investimento social’ cujo retorno é o prestígio e a simpatia da população.” “Envolvendo-se
Segundo analistas, é possível estabelecer uma ligação entre o bicho e o tráfico de drogas, mas a relação é polêmica
eleitorais, acesso ao bicho e às escolas é fundamental e os banqueiros conseguiram encampar ambos os benefícios. “Por sua rede social, sua capacidade de dominação e sua expressão política, os banqueiros do jogo se transformaram, durante muito tempo, numa organização algo semelhante à máfia americana do jogo, ainda que em proporções bem menores”, afirma o cientista social Michel Misse, professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e autor do estudo Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. “Até a chegada do tráfico de drogas nas favelas, o jogo do bicho foi o mercado ilícito mais importante, tradicional e poderoso. Sua capacidade de atração de força de trabalho do submundo criminal sempre foi grande, em especial oferecendo emprego e proteção a ex-presidiários.”
H com as escolas, os banqueiros do bicho (bicheiros são os ‘funcionários’, os empregados) ganhavam o que precisavam para desenvolver seus negócios em paz. Acho possível também que a ligação com as escolas tenha sido uma via de lavagem de dinheiro do jogo”, completa o historiador Luiz Antonio Machado Silva, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e autor, ao lado de Fillipina Chineli, do estudo O vazio da ordem: relações e políticas entre as escolas de samba e o jogo do bicho. Segundo eles, foi a partir da década de 1960 que se consolida a “patronagem” nas escolas, coincidindo com o momento em que município e governos federal e estadual repassam a responsabilidade financeira do Carnaval da esfera pública para a privada, ao mesmo tempo que a festa muda sua estética da “festa” para o “show”, o que fez os custos de produção crescer imensamente. Os banqueiros, então, entram em cena, e o ápice da relação se dá com a criação, em 1985, da Liesa, que ratifica o domínio dos banqueiros sobre as escolas e as relaciona com os órgãos públicos. “De certa forma, então, o poder público ‘permitiu’ que as escolas fossem
progressivamente controladas pelos banqueiros. As camadas populares não saem ganhando nisso, pois permanecem numa posição subalterna, submetidas política e ideologicamente”, nota Silva. “As escolas aceitam esse apoio de forma pacífica e sem questionar sua legitimidade por causa da inserção sociocultural do jogo do bicho. Afinal, o próprio samba precisou se legitimar e se tornar ‘legal’, ao se organizar nas escolas de samba, para passar da ‘transgressão’ para a ‘ordem’. Ao mesmo tempo, samba e bicho sempre foram atividades relacionadas entre si porque eram comuns ao mesmo estrato social”, analisa o pesquisador. Samba - A relação se “profissionaliza”
com a Liesa, que, controlada pelos banqueiros do bicho, passa a intermediar as relações entre o Estado, o mercado e a comunidade. As escolas passam a se autofinanciar com os ganhos das transmissões pela TV, discos etc., mas os “donos das escolas” continuam a aferir os dividendos sociais e políticos da “patronagem” dos desfiles e do trabalho assistencial, sem, no entanto, arcar com seu dinheiro para tanto. Em tempos
á quem afirme ainda a ligação entre o bicho e o tráfico carioca, embora a dimensão dessa união seja fonte de controvérsia entre os especialistas. “Ao final da década de 1970 a imprensa já revelava a articulação entre o bicho e o tráfico. É plausível a vinculação entre o bicho e o narcotráfico, mas se pode notar que ao longo dos anos 1990 o jogo conheceu sinais claros de decadência e o tráfico deu sinais claros de crescimento. Isso não quer dizer que pessoas do jogo não tenham migrado para o tráfico, mas esse já não tem mais no bicho a base de suas operações, como no início. Parece ter ocorrido uma absorção por parte dos traficantes quanto ao ‘caminho das pedras’ ensinado pela contravenção em termos de corrupção de policiais e autoridades, formas de investimentos para obter apoio (como apoio à comunidade, clubes etc.), maneiras de investir o dinheiro etc.”, avalia o geógrafo Helio de Araujo Evangelista, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Rio de Janeiro: violência, jogo do bicho e narcotráfico. Os banqueiros do bicho estão mudando de negócio. “Herdeiros de banqueiros substituíram o bicho pelo controle da distribuição de caça-níqueis em bares e bingos clandestinos das cidades, com o apoio de policiais”, acredita Misse. n PESQUISA FAPESP 183
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[ saber on-line ]
Como medir a cultura Pesquisa analisa evolução da inteligência humana usando milhões de livros digitalizados
Marcos Flamínio Peres ilustrações Daniel Jacobino
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omo quantificar algo tão volátil e multifacetado como a cultura? Como chegar a um denominador que indique uma tendência ou mudança ao longo do tempo em áreas tão sujeitas a chuvas e trovoadas como gramática, literatura, censura e comportamento? Esse é o objetivo do ambicioso programa Culturomics, que há três anos vem sendo conduzido em parceria por professores, pesquisadores e alunos da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, ambos nos Estados Unidos. Parte dos resultados foi condensada no artigo “Quantitative analysis of culture using milions of digitized books” (“Análise quantitativa da cultura usando milhões de livros digitalizados”), o segundo do programa e publicado em janeiro passado na Science. Assinado por nomes de peso, como o psicolinguista Steve Pinker, o trabalho se debruçou sobre um corpus de 5.195.769 livros digitalizados pelo Google Books – o equivalente, segundo os coordenadores, a 4% de todos os livros já impressos na história. A empresa californiana se tornou, por extensão, “a maior e mais importante fonte de financiamento do projeto”, afirma Adrian Veres, um dos signatários do artigo. Liderado por Jean-Baptiste Michel e Erez Lieberman Aiden, do Departamento de Dinâmica Evolucionária
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de Harvard, o artigo na revista norte-americana é fruto da pesquisa que os dois fizeram para quantificar a evolução dos verbos irregulares ingleses a partir de fontes secundárias. “De algum modo”, afirma Veres, “isso serviu para consolidar a ideia de que resultados importantes e significativos poderiam ser obtidos, em um nível quantitativo, através de dados tais como a repetição de uma determinada palavra ao longo do tempo”. Alcir Pécora, professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também se mostra entusiasmado com o projeto: “Acho interessante esse tipo de pesquisa, no sentido de que as máquinas permitem trabalhar hoje com enormes quantidades de dados. É uma massa fabulosa de informação”. Mas pondera: “Quando se trata de entender o que significam, esses dados precisam de um intérprete qualificado, e não de um analista de banco de dados. O que não significa que esse tipo de pesquisa seja inútil e, muito menos, ofensivo, como parecem por vezes pensar em meios humanistas tradicionais”. Dentro de um universo bastante amplo de variações culturais que o Culturomics pretende mapear, a língua se revelou um dos mais seguros de serem mensurados – “um modelo clássico de mudança gramatical”. Pois, dizem os autores, “diferentemente dos verbos regulares [em língua inglesa], cuja forma pretérita se
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129 milh ˜oes de livros publicados
5 milh ˜oes de livros analisados
15 milh ˜oes de livros escaneados
constrói com o acréscimo da partícula ‘ed’ ao final, os verbos irregulares são conjugados idiossincraticamente”. Assim, enquanto nos Estados Unidos se disseminou o uso de formas regulares pretéritas de certos verbos (como “burn”/“burned” e “spell”/“spelled”), na matriz europeia se manteve mais frequente o uso de suas formas irregulares (“burnt” e “spelt”, respectivamente). No entanto, o estudo quantitativo da gramática inglesa apontou uma mudança de paradigma cultural e geopolítico, com a crescente influência do padrão norte-americano sobre os usuários britânicos da língua inglesa. Pois, com o tempo, os britânicos também passaram a adotar as formas dos falantes da ex-colônia, conforme aponta a quantificação realizada pelo Culturomics. “As formas irregulares terminadas em ‘t’ também podem estar morrendo na Inglaterra. A cada ano, uma população equivalente à da cidade de Cambridge adota burned em vez de burnt.” Mas os falantes norte-americanos também resgataram formas irregulares já meio esquecidas na metrópole e que seriam, posteriormente, reincorporadas pelos ingleses à sua linguagem cotidiana. Essas estatísticas levaram os autores do estudo a chamar os Estados Unidos de 88
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A cada ano que passa estamos esquecendo nosso passado de maneira muito mais rápida, dizem os autores
“os maiores exportadores tanto de verbos irregulares quanto de regulares”. Não apenas a língua mas também a fama pode ser medida por meio das tabulações. “É possível medir quão rápido alguém se torna famoso, quão rapidamente alguém deixa de sê-lo, qual é a intensidade dessa fama e em que momento da vida determinada pessoa se tornou famosa ou deixou de sê-lo”, explica Veres, cuja linha de pesquisa é justamente a “dinâmica da fama”. Uma das conclusões mais impactantes – e cruéis – sobre a sociedade contemporânea apresentada no artigo da
Science é como as pessoas se tornaram famosas cada vez mais cedo; porém, em contrapartida, caem no esquecimento de modo muito mais veloz. Verbete - Para chegar a essa conclusão,
o estudo tomou como ponto de partida 740 mil pessoas cujos nomes constavam de verbetes na Wikipedia, descartando apenas os casos em que os nomes eram os mesmos. Tabularam o restante tomando como base a data de nascimento e a frequência com que determinado nome era mencionado. Em seguida, considerando o período entre 1800 e 1950, criaram um grupo com as 50 pessoas mais famosas nascidas em cada um daqueles anos. Assim, em 1882 figura, por exemplo, a escritora Virginia Woolf e, em 1946, aparecem o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e o diretor de cinema Steven Spielberg. As estatísticas apontaram que o período em que as celebridades atingem seu pico permaneceu regular, isto é, cerca de 75 anos após o nascimento. Mas os outros parâmetros sofreram uma mudança drástica ao longo do período analisado: “As pessoas mais famosas nos últimos tempos são mais famosas do que as pessoas famosas das gerações anteriores. Entretanto, essa fama tem vida cada vez mais curta. O período poste-
Gráficos de quantificaç ˜ao Gráficos de quantificaç ˜ao
rior ao ápice da fama despencou de 120 para 71 anos durante o século XIX”. Esses dados “são particularmente impressionantes porque estamos medindo a fama a partir de livros publicados, os quais, evidentemente, são uma mídia muito mais lenta do que jornais, revistas ou ainda periódicos que cobrem música”, alerta Veres. Indagado se o Culturomics acabou por validar a profecia feita pelo artista Andy Warhol em 1968 – de que “no futuro todo mundo será famoso por 15 minutos”–, Veres responde com bom humor: “Se considerarmos a sociedade atual, acho que em muito pouco tempo serão apenas 7,5 minutos de fama”. E conclui: “Definitivamente, o ritmo está se acelerando, e a sociedade está se movendo cada vez mais rápido”. Como consequência, a percepção daquilo que é velho e daquilo que é novo também vem se modificando na mesma velocidade, com ênfase muito maior no tempo presente. Um ano qualquer, como, por exemplo, “1880”, teve uma queda de 50% no número de citações 32 anos mais tarde, isto é, em 1912. Já uma data mais recente, como “1973”, teve uma queda equivalente no número de citações em um período de tempo muito mais curto, isto é, 10 anos depois, já em 1983.
“A cada ano que passa estamos esquecendo nosso passado de maneira muito mais rápida”, cravam os autores. Mas certas conclusões do artigo não seriam óbvias demais, como afirmar que “o ano de ‘1951’ foi raramente discutido até os anos que imediatamente o precederam”? Veres assume que “esse é de fato um risco em pesquisas assim. Por exemplo, é óbvio que, quando um país muda de nome (digamos, de Rodésia para Zimbábue), em um curto período de tempo deverá haver um declínio do nome antigo e um incremento do novo”. Entretanto, pondera, “a existência de tais ‘conclusões óbvias’ é muitas vezes útil porque serve como controle para o banco de dados” – justamente por chamar a atenção dos pesquisadores para esse risco. Controle - “O que poderia ser uma
conclusão sem importância nenhuma se torna uma forma de controle muito importante.” E aqui os pesquisadores correm o risco de cair em outra armadilha, que é o de transpor o limite entre fato e interpretação. E eles próprios o admitem no final do artigo – “o desafio do Culturomics reside na interpretação de suas evidências”.
Veres explica a metodologia que o grupo seguiu para superar essa dicotomia. “Os dados são a frequência com que as palavras surgem ao longo do tempo. Talvez, ainda falando dos dados, sejam necessárias algumas correções menores, como anotações erradas ou falhas na leitura óptica. Já a interpretação é o processo que busca explicar o que levou os dados a tomarem a forma que têm. O desafio, então, é encontrar o melhor lar que se ajuste a eles” – e, por lar, Veres se refere às diferentes histórias e visões de mundo disponíveis. E, de fato, há muitos tópicos apontados no artigo que permanecem em aberto e que deverão ser explorados nas próximas etapas do projeto. Por exemplo, a incidência de censura a ideias e pessoas. Durante o nazismo, na Alemanha, os membros do partido registraram um crescimento em número de menções de cerca de 500%! Em contrapartida, a menção aos grandes nomes da arte tida pelo regime como “degenerada” – o pintor espanhol Pablo Picasso ou o arquiteto da Bauhaus Walter Gropius – despencou vertiginosamente. Segundo os autores, esses dados podem levar à criação de um “index da supressão”, “formulando uma estratégia rápida para identificar prováveis vítimas de censura”. Por exemplo, “Freud” parece estar mais entranhado no imaginário do que “Galileu”, “Darwin” ou “Einstein”; “Deus”, igualmente, não tem andado muito em alta; também se deduz, pela quantificação, que a dieta típica norte-americana é feita de “bife”, “embutido”, “sorvete”, “hambúrguer”, “pizza”, “massa” e “sushi”. Por fim, o feminismo mostra ter deitado raízes mais cedo na França, porém foi nos Estados Unidos que se desenvolveu mais. E, na luta entre os sexos, a “mulher” ganha do “homem” – ao menos no número de menções. Infelizmente até agora a língua portuguesa não foi contemplada no projeto. E a razão tem a ver não só com sua relativa pouca penetração cultural e geopolítica, mas também com o tamanho e a digitalização das bibliotecas locais. Veres argumenta que o português não fez parte do projeto por não atender aos critérios estabelecidos. “Mas a ideia é no futuro incluir no banco de dados do Cultoromics tanto o português quanto n várias outras línguas”, conclui. PESQUISA FAPESP 183
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[ biblioteca digital ]
A mina dos mapas
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divulgação
Visão do Brasil que revela a exploração
m precioso material cartográfico vem ganhando visibilidade irrestrita graças ao trabalho do grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) responsável pela construção da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica. O acesso on-line é livre no endereço <http://www.cartografiahistorica.usp.br>. Fruto de um conceito desenvolvido pelo Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica (Lech), o site não só oferece a apreciação de um acervo de mapas raros impressos entre os séculos XVI e XIX, mas também torna possível uma série de referências cruzadas, comparações e chaves interpretativas com a pluralidade e a rapidez da internet. Afinal, “um mapa sozinho não faz verão”, como diz uma das coordenadoras do projeto, Iris Kantor, professora do Departamento de História da USP. O conjunto revela muito mais do que informações geográficas. Permite também perceber a elaboração de um imaginário ao longo do tempo, revelado por visões do Brasil concebidas fora do país. O trabalho se inseriu num grande projeto temático, denominado Dimensões do Império português e coordenado pela professora Laura de Mello e Souza, que teve apoio da Fapesp. Até agora o acervo teve duas fontes principais. A primeira foi o conjunto de anotações realizadas ao longo de 60 anos pelo almirante Max Justo Lopes, um dos principais especialistas em cartografia do Brasil. A segunda foi a coleção particular do Banco Santos, recolhida à guarda do Estado durante o processo de intervenção no patrimônio do banqueiro Edemar Cid Ferreira, em 2005. Uma decisão judicial transferiu a custódia dos mapas ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – iniciativa louvável, uma vez que esse acervo, segundo Iris Kantor, “estava guardado em condições muito precárias num galpão, sem nenhuma preocupação de acondicionamento adequado”. Foram recolhidos cerca de 300 mapas. Sabe-se que o número total da coleção original era muito maior, mas ignora-se onde se encontram os demais. O primeiro passo foi recuperar e restaurar os itens recolhidos. Eles chegaram à USP “totalmente nus”, sendo necessário todo o trabalho de identificação, datação, atribuição de autoria etc. Durante os anos de 2007 e 2008, o Laboratório de Reprodução Digital
Material cartográfico revela imaginário colonial português Márcio Ferrari
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Mapa holandês a partir de Jean de Léry
do IEB pesquisou, adquiriu e utilizou a tecnologia adequada para reproduzir em alta resolução o acervo de mapas. Foram necessárias várias tentativas até se atingir a precisão de traços e cores desejada. Em seguida, o Centro de Informática do campus da USP em São Carlos (Cisc/USP) desenvolveu um software específico, tornando possível construir uma base de dados capaz de interagir com o catálogo geral da biblioteca da USP (Dedalus), assim como colher e transferir dados de outras bases disponíveis na internet. Uma das fontes inspiradoras dos pesquisadores foi o site do colecionador e artista gráfico inglês David Rumsey, que abriga 17 mil mapas (http://www.davidrumsey. com). Outra foi a pioneira Biblioteca Virtual da Cartografia Histórica, da Biblioteca Nacional, que reúne 22 mil documentos digitalizados (http://bndigital.bn.br/cartografia). Futuramente, o acervo cartográfico da USP deverá integrar a Biblioteca Digital de Cartografia Histórica. Foi dada prioridade aos mapas do Banco Santos porque eles não pertencem à universidade, podendo a qualquer momento ser requisitados judicialmente para quitar dívidas. Hoje estão disponíveis na Biblioteca Digital “informações cartobibliográficas, biográficas, dados de natureza técnica e editorial, assim como verbetes 92
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Os mapas eram objetos de ostentação, com valor de fruição e ornamentação, para nobres e eruditos, diz Iris Kantor
explicativos que procuram contextualizar o processo de produção, circulação e apropriação das imagens cartográficas”. “Não existe mapa ingênuo”, diz Iris Kantor, indicando a necessidade dessa reunião de informações para o entendimento do que está oculto sob a superfície dos contornos geográficos e da toponímia. “O pressuposto do historiador é que todos os mapas mentem; a manipulação é um dado importante a qualquer peça cartográfica.”
Fizeram parte dessa manipulação os interesses geopolíticos e comerciais da época determinada e daqueles que produziram ou encomendaram o mapa. O historiador Paulo Miceli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que no início da década passada havia sido chamado pelo Banco Santos para dar consultoria sobre a organização do acervo, lembra que o primeiro registro cartográfico daquilo que hoje se chama Brasil foi um mapa do navegador espanhol Juan de la Cosa (1460-1510), datado de 1506, que mostra “a linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas, a África muito bem desenhada e, à sua esquerda, um triângulo bem pequeno para indicar a América do Sul”. “O Brasil foi surgindo de uma espécie de nevoeiro de documentos, condicionado, entre outras coisas, pelo rigor da coroa portuguesa sobre o trabalho dos cartógrafos, que estavam sujeitos até a pena de morte.” Essa “aparição” gradual do Brasil no esquema geopolítico imperial é o tema da tese de livre-docência de Miceli, intitulada, apropriadamente, de O desenho do Brasil no mapa do mundo, que sairá em livro ainda este ano pela editora da Unicamp. O título se refere ao Theatrum orbis terrarum (Teatro do mundo), do geógrafo flamengo Abraham Ortelius (1527-1598), considerado o primeiro atlas moderno. Navegadores - Ao contrário do que se
pode imaginar, os mapas antigos não tinham a função principal, e prática, de orientar exploradores e navegadores. Estes, até o século XIX, se valiam de roteiros escritos, as “cartas de marear”, registrados em “pergaminhos sem beleza nem ambiguidade, perfurados por compassos e outros instrumentos, e que viraram invólucros de pastas de documentos em acervos cartográficos”, segundo Miceli. “Os mapas eram objetos de ostentação e prestígio, com valor de fruição e ornamentação, para nobres e eruditos”, diz Iris Kantor. “Um dos tesouros do Vaticano era sua coleção cartográfica.” Já os roteiros de navegação eram apenas manuscritos e não impressos, processo que dava aos mapas status de documentos privilegiados. As chapas originais de metal, com as alterações ao longo do tempo, duravam até 200 anos, sempre nas mãos
de “famílias” de cartógrafos, editores e livreiros. Às vezes essas famílias eram mesmo grupos consanguíneos com funções hereditárias, outras vezes eram ateliês altamente especializados. Os artistas, com experiência acumulada ao longo de décadas, não viajavam e recolhiam suas informações de “navegadores muitas vezes analfabetos”, segundo Miceli. Para dar uma ideia do prestígio atribuído à cartografia, ele lembra que o Atlas maior, do holandês Willem Blaue (1571-1638), pintado com tinta de ouro, foi considerado o livro mais caro do Renascimento. Um dos critérios de busca da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica é justamente por “escolas” de cartógrafos, entre elas a flamenga, a francesa e a veneziana – sempre lembrando que o saber fundamental veio dos navegadores e cosmógrafos portugueses. Iris Kantor considera que elas se interpenetram e planeja, futuramente, substituir a palavra “escola” por “estilo”. Também está nos planos da equipe reconstituir a genealogia da produção de mapas ao longo do período coberto. No estudo desses documentos se inclui a identificação daqueles que contêm erros voluntários como parte de um esforço de
Carte tres Curiese, de 1719
contrainformação, chamado por Miceli de “adulteração patriótica”. Como os mapas que falsificam a localização de recursos naturais, como rios, para favorecer portugueses ou espanhóis na divisão do Tratado de Tordesilhas. Uma evidência da função quase propagandística da cartografia está no mapa Brasil, de 1565, produzido pela escola veneziana, que ilustra a abertura desta reportagem. Nele não se destaca exatamente a precisão geográfica. “A toponímia não é muito intensa, embora toda a costa já estivesse nomeada nessa época”, diz Iris Kantor. “É uma obra voltada para o público leigo, talvez mais para os comerciantes, como indicam os barquinhos com os brasões das coroas da França e de Portugal. Vemos o comércio do pau-brasil, ainda sem identificação da soberania política. Parece uma região de franco acesso. A representação dos indígenas e seu contato com o estrangeiro transmite cordialidade e reciprocidade.” “No fundo, os mapas servem como representação de nós mesmos”, prosse-
gue a professora da USP. “Pelo estudo da cartografia brasileira pós-independência, por exemplo, chama a atenção nossa visão de identidade nacional baseada numa cultura geográfica romântica, liberal e naturalista, que representa o país como um contínuo geográfico entre a Amazônia e o Prata. No mesmo período, a ideia do povo não era tão homogênea. Não é por acaso que os homens que fizeram a independência e constituíram o arcabouço legal do país fossem ligados às ciências naturais, à cartografia etc. A questão geográfica foi imperativa na criação da identidade nacional.” Um exemplo bem diferente de utilização de recursos digitais na pesquisa com mapas está em andamento na Unicamp, derivado do projeto Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e política, coordenado pela professora Silvia Hunold Lara e apoiado pela Fapesp. Trata-se do estudo Mapas temáticos de Santana e Bexiga, sobre o cotidiano dos trabalhadores urbanos entre 1870 e 1930 (http://www.unicamp.br/cecult/ mapastematicos). Segundo a professora, pode-se reconstituir o cotidiano dos moradores dos bairros, “não dissociados de seu modo de trabalho e de suas n reivindicações por direitos”. PESQUISA FAPESP 183
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resenha
O racismo oculto dos governantes O Estado brasileiro diante dos refugiados do nazismo Márcio Seligmann
O Cidadão do mundo - O Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo (1933-1948) Maria Luiza Tucci Carneiro Editora Perspectiva / Fapesp 480 páginas, R$ 75,00
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livro Cidadão do mundo – O Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo (1933-1948), de Maria Luiza Tucci Carneiro, tem origem em sua tese de livre-docência apresentada na FFLCH da USP em 2001. O trabalho é uma suma das pesquisas da historiadora no campo dos estudos judaicos. Nesse livro, como em outros de seus trabalhos, vemos a marca da pesquisa de arquivo ao lado de um engajamento ético e político, pois ela tem como força de seu trabalho a luta pela justiça, verdade e memória. Cidadão do mundo volta-se para o posicionamento do governo brasileiro (de Getúlio e Dutra) diante da enorme questão da necessidade de se receber os refugiados judeus do nazifascismo. Tanto Luis Roniger, na apresentação do livro, como Leonardo Senkman, na orelha, destacam, com razão, a originalidade da pesquisa em questão. Roniger chega a falar em “revelações inquietantes”, referindo-se às circulares secretas que guiavam a ação antissemita de nossos diplomatas. Pode-se dizer que de certa maneira a obra de detetive (que caracteriza boa parte do trabalho do historiador), de leitura de documentos antes inacessíveis e protegidos com a tarja de “secretos”, está ou em breve estará em crise, na era dos Wikileaks da vida, que hoje, ainda no calor da hora, trazem à luz do dia – ou à correnteza fria da internet – fatos que nossos diplomatas preferiam que nunca se tornassem públicos. Mas sobre a época enfocada ainda carecemos muito do esforço de historiadores do quilate de Maria Luiza. Além do aspecto humanista, ético e de seu engajamento pela memória, a obra em questão também realiza uma difícil ponte entre a micro-história e a grande história, das nações e políticas de Estado. A autora como que salva do esquecimento famílias que foram massacradas pela máquina assassina do Holocausto,
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ou recorda os nomes daquelas que conseguiram asilo no Brasil – malgré tout... – na mesma medida em que arrola uma série de cartas, telegramas, notícias e fotos documentando os grandes eventos da Segunda Guerra Mundial e do drama dos refugiados. As fotos, aliás, também servem para costurar essa trama entre os indivíduos e o histórico, entre a memória e a história, meio também de humanizar e dar rosto aos fatos. Lendo essa obra encontramos detalhes sobre a política de imigração brasileira da era Vargas, calcada em cotas e, mais importante, no modelo eugênico que previa a construção de uma “raça brasileira”. Nesse modelo não havia espaço para os judeus. Vemos como o Estado se tornou o grande gerenciador da população, tentando também forjar seu corpo e sua “raça”. O Estado tinha vários setores responsáveis por essa façanha, como a Diretoria do Serviço de Povoamento (do Ministério da Agricultura), dirigida por Dulphe Pinheiro Machado, que considerava a “população judaica” elemento “parasitário e inassimilável”, bordão repetido em vários dos documentos de Estado citados pela autora. O antissemitismo era um verdadeiro credo de Estado. Também contribuíam para a ideologia eugenista psiquiatras e pensadores como Oliveira Vianna, Roquete Pinto e Miquel Couto. Outro setor ligado à biopolítica da população era, como não poderia deixar de ser, o Conselho Nacional de Imigração, ligado ao Ministério do Trabalho. A autora deixa claros os inúmeros pontos de encontro da biopolítica brasileira com o que acontecia então nos regimes totalitários da Europa. Ela foca sobretudo a “ação sistemática do Ministério das Relações Exteriores contra os judeus”. É dele que emanam as circulares secretas antissemitas a partir de 1937. O governo Vargas, atuando no sentido da “higienização da raça brasileira”, chegou a penalizar diplomatas que se mostraram dispostos a salvar os judeus, como foi o caso do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. Uma das partes de maior destaque do livro é seu retrato dos bastidores diplomáticos brasileiros durante a Conferência de Evian de 1938, realizada a pedido de Roosevelt. Ela deveria tratar da acolhida dos refugiados judeus da Alemanha e da Áustria. Nosso representante, Hélio Lobo, foi mantido sob rédea curta por Oswaldo Aranha, que não permitiu que o Brasil fizesse concessões com relação à abertura para a recepção dos refugiados. Márcio Seligmann é professor de teoria literária da Unicamp e coordenou o projeto Escritas da violência (apoio da FAPESP).
livros
O plano e o pânico Maria Helena Pereira Toledo Machado Edusp 246 páginas, R$ 37,00
O estudo recupera as vozes dissonantes dos que viveram a Abolição e destaca o papel dos escravos e libertos que chegaram a inspirar programas de reforma agrária e projetos de integração social, posteriormente esquecidos com o advento da República. Revelando assim os mecanismos de censura que ocultaram a história no período até hoje. Edusp (11) 3091-2911 www.edusp.com.br
Renato Sérgio de Lima Editora Alameda 308 páginas, R$ 42,00
Aqui estão resultados de pesquisas realizadas durante uma década no campo da segurança pública, trazendo a produção de conhecimentos no domínio das ciências sociais bem como a organização das agências que compõem o sistema de justiça criminal e às estratégias dos encarregados de aplicar lei e ordem. O foco central da obra repousa nas relações entre conhecimento acadêmico e suas implicações práticas. Editora Alameda (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.br
O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930
Pandemias: a humanidade em risco
Cláudia de Oliveira / Monica Velloso / Vera Lins Editora Garamond / Faperj 268 páginas, R$ 42,00
Stefan Cunha Ujvari Editora Contexto 216 páginas, R$ 33,00
Aqui estão três ensaios que analisam as configurações do moderno a partir das revistas como fonte de estudo. São revelados os grupos intelectuais e seus elos com os grupos sociais da trama urbana carioca, a natureza diferenciada das revistas em função do público leitor e da própria concepção do que é moderno. O livro é acompanhado de uma farta iconografia sobre o período.
A mídia fala recorrentemente sobre o medo dos cientistas de que a humanidade posa ser vítima de uma pandemia capaz de matar milhões de pessoas no mundo todo. A pesquisa de Ujvari tenta mostrar, de forma precisa e sem exageros, o que pode acontecer com os seres humanos, num futuro próximo.
Editora Garamond (21) 2504-9211 www.garamond.com.br
Warchavchik: fraturas da vanguarda
fotos Eduardo Cesar
Entre palavras e números
Editora Contexto (11) 3832-5838 www.editoracontexto.com.br
Kluge: a construção desordenada da mente humana
José Lira Editora Cosac Naify / FAPESP 554 páginas, R$ 89,00
Gary Marcus Tradução de Roberta Gregoli Editora Unicamp 288 páginas, R$ 48,00
O estudo de José Lira traz uma análise do momento vanguardista, inserindo a obra do arquiteto Gregori Warchavchik em um triângulo de forças com Mário de Andrade e Lúcio Costa, como vértices do modernismo no Brasil. A edição traz mais de 350 imagens, entre fotos, documentos e projetos, que acompanham a biografia do arquiteto ucraniano que chegou ao Brasil em 1923.
A visão de Marcus mostra o cérebro à luz da evolução humana e argumenta que a mente não é um órgão que surge “perfeito” e “projetado”, mas vai encontrando mecanismos adaptativos, “kluges”, para dar conta das necessidades que surgem e, nesse movimento, vai se “construindo” e se adequando. Por isso, é o órgão que melhor revela o funcionamento do processo evolutivo.
Cosac Naify (11) 3218-1473 www.cosacnaify.com.br
Editora Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br
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ficção
Nadja
Paulo Lima
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u acreditava que o Google poderia encontrar qualquer informação sobre qualquer pessoa, em qualquer tempo ou lugar. Mas descobri que um vasto território do mundo real ainda não havia caído em seus tentáculos. O poderoso mecanismo de busca, aha, não era infalível como se pensava. O que me levou a essa conclusão foi a necessidade que tive de me reconectar com alguém do passado, uma mulher de outro país que conheci quando tinha dezoito anos. Minha relação com M terminara, e eu me sentia impelido a buscar no passado as razões do meu fracasso. É como se eu precisasse reaprender a andar, depois de vinte anos ao lado da mesma companhia, e isto eu só poderia conseguir olhando para trás. Era o que eu pensava. Só o desespero e o desamparo podiam justificar o fato de eu ir atrás de um fantasma, e um fantasma, além de tudo, alemão. Nadja era da região do Ruhr, que, vim a saber depois, foi muito castigada pelos bombardeios aliados durante a Segunda Guerra. Era uma moça alta e de olhos bastante azuis, que excursionava pelo Brasil com um grupo de música infantojuvenil. Vieram parar neste fim de mundo, e tenho a lembrança vívida de estarmos conversando numa noite, depois da apresentação, quando todos tentaram se aproximar daquele grupo exótico que falava uma língua impenetrável. Para mim, alemães eram símbolos claros de guerra e de nazismo. Mas meu contato com Nadja desfez qualquer impressão negativa que eu carregava do seu povo e de sua história. Aquela moça tão bonita aos dezesseis não poderia ser confundida com uma insigne representante de Hitler. Nadja. Claudiquei nos meus escassos conhecimentos de inglês, mas nos entendemos muito bem. Não é preciso muito mais que isso quando se tem dezesseis, dezoito anos. Apesar do assédio das pessoas, monopolizei sua atenção. Talvez pelo simples fato de que somente eu ali fui capaz de estabelecer uma comunicação, básica que fosse. Uma noite apenas. Mas que sustentou uma amizade que se prolongou durante anos. Entre nós, a esperança de que um dia iríamos cruzar o oceano e nos reencontrar. Tente falar rapidamente a seguinte palavra: Geburtstagsglückwünsche.
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Posso pronunciá-la sem dificuldade, mesmo decorridos tantos anos. É assim que os alemães expressam os votos de feliz aniversário. Esse foi um dos esforços que fiz pela amizade de Nadja. Estudei o idioma. Guten Tag. Gute Nacht. Wie geht’s? Coisinhas básicas, das quais ainda me lembro. Um dia fui ver um filme sobre o grupo Baader-Meinhof. Constatei que meu vocabulário ainda estava lá, intacto. Lembrei-me de Nadja e de minha busca infrutífera no Google, quando me separei de M. Google? Aha. Imagine que tentei todas as combinações possíveis. E o resultado que retornava era um turbilhão de informações tão vagas quanto inúteis. Descobri que os Kopfkrank, nome de família de Nadja, são tão numerosos quanto toda a população da China. Havia centenas, milhares deles não apenas na região do Ruhr, mas em cidades dos Estados Unidos, da França, da Holanda e até da Espanha. É possível existirem membros da família Kopfkrank até na Groenlândia. Num momento de loucura, cogitei enviar um e-mail para a embaixada alemã, contando uma longa mentira e pedindo que achassem Nadja. Ninguém pode se evaporar assim. Não passava por minha cabeça que ela podia ter casado e mudado de nome, ou até morrido. Como eu jamais conhecera qualquer membro de sua família – tudo que sabia é que tinha um irmão –, não tinha meios de ser avisado. Nadja morta. Nadja ist tot. A possibilidade me dava calafrios. Eu tentava me livrar do fantasma de M indo à procura de um outro fantasma. Sim, Nadja podia estar morta, mesmo sendo uma mulher saudável. Mas o que estou afirmando? Eu não a via há vinte anos, como poderia ter certeza de que permanecia saudável e bonita, como a conheci? Tão imerso estava em minha obsessão, que não me dava conta de um fato. O que dizer a Nadja, caso eu a reencontrasse. Quantos amigos procuram outros amigos tão obstinadamente, tanto tempo depois, sem despertar um grão de desconfiança de que as coisas não estavam indo bem? Que o que esse amigo queria, de fato, era uma tábua de salvação? É como se eu fosse um desses personagens russos dentro de uma cena lúgubre, num minúsculo apartamento em São Petersburgo. Todos os amigos estão mortos. Todos os familiares foram incinerados num campo de concentração.
leya mira brander
E agora esse personagem, diante do fim iminente, relembra o passado, contemplando as poucas fotos que lhe restaram, as pequenas anotações às margens de livros amarelados e aos pedaços, tentando recriar um vínculo com o passado. Mas tudo que lhe restava era o frio intenso, as dores no corpo provocadas pela idade e a chuva gelada tamborilando do lado de fora da janela. Para mim, existe um indescritível fascínio nos casos de pessoas que desaparecem sem deixar rastros. É como se elas tivessem sido abduzidas por extraterrestres. Mas o que acredito mesmo é que se cansaram de tudo e um belo dia foram embora, para viver uma nova vida em outro lugar, com outro nome e quem sabe até disfarçada como se fosse uma pessoa completamente diferente. Georges Simenon, o romancista belga, imaginou uma história assim, que muito me fascinou à época em que a li. Um sujeito entediado com a família deixou tudo para trás e foi viver uma vida incógnita em Paris. O livro é O homem que via o trem passar. Se eu penso nele agora, é porque havia em seu gesto um clamor de liberdade que me impressionou. Porém, a fuga revelava uma mensagem dúbia. Você podia ver nela tanto um ato extremo de liberdade quanto de loucura. Depois desse livro, liberdade e loucura ficaram indissociavelmente ligados em minha mente. Quantas vezes pensei em abandonar M e, como aquele personagem inspirador de Simenon, sumir e deixar tudo para trás. Mas foi M quem me abandonou primeiro. A ironia é que agora que estava sozinho me sentia oprimido pela liberdade e pela perspectiva de seu imenso abismo. O muro. Der Mauer. Um dia telefonei para Nadja e ela
estava radiante. “O muro”, ela gritava, “o muro, o mundo inteiro está falando dele!”. O muro de Berlim havia caído, e é como se as fronteiras do mundo tivessem sido abertas em definitivo. Meu ânimo de cruzar o oceano e ir reencontrar Nadja se reacendeu como nunca. Mas nas cartas que ela me mandaria depois ficava claro que a nova liberdade vivida pelos alemães tinha um preço. A reunificação não ocorrera de forma tão pacífica como se imaginou no início. Alemães de ambos os lados agora se olhavam com desconfiança e até hostilidade. Muitos anos depois é que fui entender aquela situação que Nadja tentava explicar em suas longas cartas, escritas com caneta azul e em letras irregulares, estranhamente pouco elegantes para uma moça tão bonita. Na última carta que recebi de Nadja ela dizia que estava morando em Düsseldorf. Nessa época, eu já estava casado com M. A correspondência com Nadja minguara até cessar de vez. Mergulhei na minha vida com M, tivemos filhos. Não percebi que tinha perdido uma amiga. O Google continua sem localizar minhas buscas por Nadja. Aha. Já esgotei todas as combinações possíveis. Não há mais o que tentar. Também não quero me tornar um personagem russo. São Petersburgo é muito fria, e eu não a suportaria. Vou agora mesmo telefonar para M. Podemos sair para dar uma volta, ir ao cinema e falar das crianças. Paulo Lima é jornalista e escritor, editor da revista eletrônica Balaio de Notícias e colaborador da revista Plurale. É autor do livro-reportagem Operação Cajueiro – A repressão dos comunistas em Sergipe, no prelo. PESQUISA FAPESP 183
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