Evolução da hepatite no Brasil

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Setembro 2011 Nº 187

pesquisa fapesp

Partículas de prata combatem bactérias

Os artigos mais quentes da ciência nacional

Plástica faz do corpo um capital


INPA / TEAM NETWORK PARTNERSHIP

imagem do mês

Câmera

indiscreta Numa floresta em Manaus, o tamanduá-bandeira passa alheio ao flagra. Ele entrou num conjunto de 52 mil imagens de mamíferos capturadas por armadilhas fotográficas em vários países. Contribuiu assim para um estudo do impacto da perda de hábitat na diversidade de espécies. Veja mais na galeria de imagens em www.revistapesquisa.fapesp.br

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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

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capa

seções

16 Levantamento identifica

quantos são e onde estão os portadores das diferentes formas das hepatites no país

Capa laura daviña

ENTREVISTA 10 Ex-empresário, hoje ambientalista, Israel Klabin discute futuro ecológico com otimismo

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3 IMAGEM DO MÊS 5 CARTA Da EDITORa 6 CARTAS 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 42 LABORATÓRIO 60 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 livros 96 ficção 98 CLASSIFICADOS

política c&T

ciência

tecnologia

humanidades

26 BIOENERGIA

44 FÍSICA

62 NANOTECNOLOGIA

78 ANTROPOLOGIA

Conferência exibe o esforço do Brasil e de outros países para produzir biocombustíveis

30 Universidades, empresas e governo dos Estados Unidos agem em conjunto para fazer biocombustíveis, diz Chris Somerville

32 PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Compostos doces, amargos e aromáticos são protagonistas da história

Peixes se reproduzem e criam filhotes em espaços específicos dos manguezais

Avança a seleção de variedades de cafés com sabores ou aromas únicos

Exercícios físicos associados a LEDs melhoram saúde de mulheres na pós-menopausa

Pesquisa explora os conflitos na oposição intelectual ao regime militar

88 CULTURA

70 DERMATOLOGIA

55 ECOLOGIA

A economia criativa pode ser nova forma de geração de emprego e uma mudança no perfil da produção das cidades

74 COMPUTAÇÃO

Plataforma digital aprimora a relação dos usuários com a internet

58 NUTRIÇÃO

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Cirurgias plásticas reforçam ideal do corpo como capital social

84 ciência política

66 Agricultura

Como programas da FAPESP influenciaram o panorama brasileiro da inovação

Físicos tentam explicar a diversidade dos contornos costeiros

51 ESPECIAL ANO DA QUÍMICA

38 HISTÓRIA IV

Nanopartículas combatem microrganismos e melhoram a eficiência de adesivos

48 FRACTAIS

Estudo mostra os artigos que deram mais visibilidade internacional à ciência do país

Neutrinos e antineutrinos parecem ter realmente a mesma massa

Ficar muito tempo sem comer pode causar graves desequilíbrios ao organismo

76 QUÍMICA

Solventes sustentáveis dissolvem celulose e têm uso amplo na indústria

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carta da editora

Uma especial forma de conhecimento Mariluce Moura - Diretora de Redação

M

eio ao acaso, a elaboração de uma única edição de Pesquisa FAPESP pode por vezes se tornar fonte de um rico aprendizado sobre o método científico e o caráter provisório das descobertas e das verdades científicas. Enquanto escrevo essas palavras, vou me lembrando de um debate ocorrido num final de tarde de abril de 2008, no Parque do Ibirapuera, em torno da seguinte indagação: “O avanço da ciência faz a humanidade melhor? Por quê?” O evento integrava a programação cultural da exposição Revolução genômica. Os palestrantes eram o físico Carlos Henrique de Brito Cruz e o ex-senador Roberto Freire, presidente do Partido Popular Socialista (PPS), e minha memória se detém em especial no ponto em que o primeiro, em meio a referências sobre os traços geniais do método científico, sintetiza-o nestes termos: “Trata-se de uma forma de buscar o conhecimento que, logo de cara, admite a existência do erro, o qual deverá ser superado por novas pesquisas – e assim sucessivamente” <http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4699&bd=2&pg=1&lg=>. O que primeiro atraiu minha atenção para o tema do método científico, durante o fechamento desta edição, foi a reportagem sobre um artigo relativo à massa dos neutrinos, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta, e que o leitor poderá conferir a partir da página 44. A meus olhos, ela é densamente ilustrativa de como se constrói a ciência no cotidiano, fazendo avançar determinadas proposições, revendo-as experimentalmente, ajustando-as, e por aí vai (revoluções não são coisa de todo dia, vide o velho Thomas Kuhn). Em seguida, a reportagem de capa sobre o mapeamento das hepatites no Brasil, com base em alguns estudos que tentam detectar e compreender a evolução desta doença de múltiplas origens e diferentes graus de gravidade, ampliou minha atenção para o tópico. Isso porque me causou imenso espanto o dado de que 40% da população do país na faixa etária de 5 a 19 anos já

teria tido contato com o vírus da hepatite A. Não haveria aí um erro estatístico, um erro na metodologia da pesquisa, algo assim? Ter contato significa ter desenvolvido em algum momento uma patologia por ação do vírus ou simplesmente abrigá-lo inofensivo entre os trilhões de microrganismos que povoam o corpo humano para o bem e para o mal? Bombardeei com perguntas, não os meus botões, mas nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, autor da reportagem, que tratou de rever seus dados e consultar de novo suas fontes. Da checagem, o percentual saiu ileso pelo menos por enquanto, como se poderá constatar a partir da página 16. Aliás, esse número já corrige dados apresentados um pouco antes pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Um destaque mais sobre a própria construção do conhecimento científico: a reportagem elaborada por nosso editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, sobre os artigos quentes do Brasil, ou seja, aqueles apontados como os mais citados por um estudo a respeito dos temas em que a ciência brasileira alcançou visibilidade internacional (página 32). Em tecnologia, destaco a reportagem sobre a incorporação das nanopartículas ao campo das técnicas de assepsia de instrumentos médico-cirúrgicos, elaborada pelo editor da área, Marcos de Oliveira. Ele se refere a instrumentos odontológicos que trazem na superfície nanopartículas capazes de destrutir bactérias, entre outros exemplos (página 62). Sugiro também ao leitor que se detenha na entrevista do ex-empresário, hoje ambientalista, Israel Klabin, concedida ao editor de humanidades, Carlos Haag. Sob muitos aspectos, é uma entrevista surpreendente e estimulante (página 10). E por último, creio que vale a pena descobrir a impressionante força poética da escritora Állex Leilla, em “A eternidade em carne viva”, na página 96. A ficção às vezes também é um modo de conhecimento. PESQUISA FAPESP 187

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Ciência em tempo real

cartas cartas@fapesp.br

empresa que apoia a ciência brasileira O conteúdo de Pesquisa FAPESP não termina aqui. Na edição on-line você encontrará vídeos, galerias de fotos e mais notícias. Afinal, o conhecimento não espera o começo do mês para avançar. Visite www.revistapesquisa.fapesp.br e se cadastre para receber o boletim.

Ouro na olimpíada

Acompanhe também: @PesquisaFapesp no twitter e a nossa página no facebook

Código para acesso Na reportagem “Contato de terceiro grau” (pág. 74) você poderá acessar o link da pesquisa pelo celular. Para isso, baixe um leitor de QR code e fotografe o código como este abaixo.

A matéria sobre os rapazes que venceram a olimpíada de física na Ásia (“Ouro na Tailândia”, Estratégias, edição 186) é modesta demais para o feito. Sobretudo se pensarmos que, neste país, jovens estudiosos são tidos como nerds. Aliás, as matérias da revista [na internet] deveriam conter espaço para comentários dos leitores. Neste caso específico, eu não hesitaria em fazer um enorme elogio para os cinco jovens, porque, além de derrubarem o preconceito etário contra os estudos, dois deles são originários de escolas fora do “Sul maravilha”. O que é outro preconceito derrubado. Antonio Dimas USP/FFLCH São Paulo, SP

Cerâmica Muito bons os artigos sobre a arqueologia amazônica (“A cultura dos geoglifos” e “As pedras do sol”, edição 186), mas a foto da cerâmica aristé mesmo pequena mostra que havia uma semelhança com a cerâmica contemporânea no Pará, com a tampa na forma de cabeça, as asas de braços e o corpo como bojo da peça. Obviamente havia uma unidade de cultura no norte amazônico. Por que

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concluem exatamente ao contrário dizendo que não havia semelhanças? José Fonseca Santo Antônio do Rio Grande, MG

Flavio Alterthum Cumprimento Pesquisa FAPESP pela extraordinária “Lições sobre o etanol do Brasil” (edição 185), em que o não menos extraordinário professor e cientista Flavio Alterthum foi entrevistado. Acompanho o professor Flavio desde os tempos em que era aluno da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, na Universidade de São Paulo (USP). Sua trajetória de sucessos pode ser apreciada na entrevista, revelando suas várias facetas científicas, ainda não terminadas. O “aliás eu sou feliz” caracteriza bem quem é Flavio Alterthum, que hoje conta e publica estórias para crianças, que ontem com suas pesquisas com etanol obteve a patente de número 5 milhões, nos Estados Unidos, e agora passa algumas horas jogando tênis com seus amigos no Esporte Clube Pinheiros. Ali, eu o encontro aos sábados e domingos, não para jogar, mas para festejá-lo sempre. José Carlos Barbério FCF/USP São Paulo, SP


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Celso Lafer

Presidente eduardo moacyr krieger

vice-Presidente

Conselho Superior Celso Lafer, eduardo moacyr krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, Maria josé soares mendes giannini, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler

Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Padre Vieira

Correções

Bem fundamentado em estudo sobre Antonio Vieira do pesquisador Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense, o artigo bem estruturado em sua primeira parte referente à presença mundial de Vieira é entretanto omisso em relação aos anos em que Vieira viveu na Bahia (1681-1697). O período foi altamente conturbado, quando Vieira gerou, estruturou e completou Os sermões e opôs-se ao tirânico governador Francisco Teles de Menezes, tendo que enfrentar um grave problema familiar e a acusação de participação em um crime político, porque seu sobrinho Antonio Brito foi um dos assassinos do prefeito de Salvador. Nunca provado seu envolvimento, entretanto, inspirou a obra de Pedro Calmon, O crime de Antonio Vieira. A reportagem “O homem de Deus na corte dos homens” (edição 185) deixou de trabalhar a mais significativa participação política de Vieira na formação da cultura nativista e do poder do Brasil em formação.

As imagens que ilustraram o infográfico sobre evolução estelar apresentado na reportagem “Os pesos-pesados do Universo”, publicada na edição 186, não correspondem ao conhecimento mais atual sobre estrelas de nêutrons e suas genitoras, as estrelas de grande massa. A versão correta aparece acima e no site da revista. Na reportagem, as afirmações a respeito do tamanho devem ser entendidas como referentes à massa, uma vez que as estrelas de nêutrons de maior massa são as de menor raio.

Francisco J.B. Sá Salvador, BA

Do twitter Excelente artigo sobre doenças transmitidas por mosquitos (“Antes da guerra com os mosquitos”, edição 186), em especial a malária, na @PesquisaFapesp! @RoThiago (Rodrigo Thiago)

Diferentemente do que foi publicado na reportagem “O céu pode esperar” (edição 186), o propelente de foguetes não é usado como matéria-prima na fabricação de componentes. Já o polímero polibutadieno, ingrediente na produção do propelente do VLS, tem aplicações industriais. O crédito das imagens publicadas na reportagem “As pedras do sol” (edição 186) é de Mariana Petry Cabral, e não Mauricio de Paiva, como foi publicado. A foto do rio Tietê publicada na seção Imagem do Mês (edição 185) não exibe o rio “antes de chegar à poluição da metrópole”, como foi publicado, pois o Tietê corre para o interior.

Conselho editorial Carlos henrique de brito cruz (presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Mariza Corrêa, Maurício Tuffani, Monica Teixeira comitê científico LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (presidente), cylon gonçalves da silva, FRANCISCO ANTôNIO BEZERRA COUTINHO, joão furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, josé roberto parra, luís augusto barbosa cortez, luis fernandeZ lopez, marie-anne van sluys, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, sérgio queiroz, wagner do amaral, Walter Colli Coordenador científico luiz henrique lopes dos santos

Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), maria guimarães (edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editoras assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura daviña e Mayumi okuyama (coordenação) ARTE ana paula campos, maria cecilia felli fotógrafo eduardo cesar Colaboradores Állex Leilla, Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados) Carla Rodrigues, Evanildo da Silveira, Igor Zolnerkevic, Leo Ramos, Marcelo Cipis, Márcio Ferrari, Mariana Zanetti, Nelson Provazi, Sheila Goloborotko e Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização

Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br

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IMPRESSão Gráfica plural

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Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

instituto verificador de circulação

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Ciência aberta: aula prática de botânica em 1939; Hoehne é o mais alto

Observador das cidades Em 2.400 fotos, Frederico Hoehne revela um olhar apurado sobre plantas, paisagens e cidades no início do século XX Carlos Fioravanti

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rederico Carlos Hoehne ganhou a primeira orquídea do pai aos 8 anos, quando moravam em um sítio em Juiz de Fora, Minas Gerais, fez vários orquidários em São Paulo e deu a uma de suas filhas o nome de uma orquídea, Laelia. Ele adorava orquídeas, mas sua visão de mundo era muito mais ampla. Um acervo de 2.400 fotos do Instituto de Botânica de São Paulo (IBt) que começa a ser revelado publicamente está mostrando a dimensão de seu olhar – e suas inquietações – sobre plantas, paisagens, cidades, pessoas e situações que encontrava ao longo de suas expedições por São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná. As inquietações emergem dos comentários escritos nos envelopes que guardavam os negativos das fotos, em placas de vidro geralmente de 13 por 18 centímetros. Em uma das fotos do mercado central de São Paulo que fez em 1919, ele anotou: “Grande profusão de raízes, hervas e fructos medicinaes são expostos à venda nessas casas sem o menór escrúpulo e sem a menór hygiene, sem os poderes, etc.”. Um dos envelopes contém o negativo de um extinto parque na Vila Mariana, em São Paulo, e esta observação: “Duas belas copaibeiras no bosque da Saúde, que foi loteado, em vez de ser aproveitado como parque de São Paulo”. “Hoehne era um crítico da política de urbanização


Acervo Instituto de Botânica

memória da cidade”, observa Luiz Barretto, arquiteto responsável pelo setor de documentação do IBt que coordena a organização desse acervo de imagens. Como Hoehne, Barretto aproveita o que vê para pensar a cidade: “Se ainda houvesse um bosque ali, certamente haveria menos enchentes na região da avenida Ricardo Jafet”. Barretto começou em 2007 a abrir as centenas de envelopes guardados em dois antigos armários com os negativos fotográficos em vidro, alguns já trincados, que hibernavam após alguns esforços anônimos de organização. Ele achou que poderia organizar aquilo tudo por ser também fotógrafo e ter estudado restauração de fotos e conservação de documentos históricos. Agora as observações sobre as fotos escritas nos envelopes estão em um computador e os negativos organizados em pequenas caixas de plástico – cada um deles protegido por um envelope de papel alcalino que se abre em cruz, eliminando o contato manual direto com o vidro. Quase metade da coleção foi tratada e higienizada e 700 imagens estão digitalizadas. Hoehne fez a maioria das fotos, mas há também trabalhos de outros naturalistas e fotógrafos. A foto mais antiga, de 1918, retrata o Horto Osvaldo Cruz, de que Hoehne cuidou no Instituto Butantan, em São Paulo, depois de ter sido jardineiro-chefe do Museu Nacional do Rio de Janeiro e participado

Olhar amplo: folhas de Philodendron hipimatifidium atacadas de insetos, banca de ervas no mercado central de São Paulo, em 1919, e Yolanda, filha de Hoehne, no jardim da casa onde moravam

das expedições do marechal Cândido Rondon pelo sertão de Mato Grosso. Em São Paulo, ele ajudou a implantar também o horto do Museu Paulista e o orquidário do estado, que integra o Jardim Botânico de São Paulo, outra obra sua. Alto e esguio, rosto afilado, ele acumulava prestígio por causa de suas realizações e do trabalho

incessante. Recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Göttingen em 1929 e foi o primeiro diretor do Instituto de Botânica de São Paulo, mas não se aquietou atrás de uma mesa e ainda foi a muitas expedições. Ao sair do Botânico, 10 anos depois, em 1952 – sete anos antes de morrer, aos 77 anos –,

ele tinha coletado cerca de 10 mil espécies de plantas e escrito 600 artigos dirigidos a botânicos e ao público geral. “Hoehne foi um conservacionista quando mal se pensava nesse tema, lá pelos idos de 1930 a 1950. Isso pode ser considerado comum hoje em dia, mas naquela época, quando a grande preocupação era o crescimento econômico do país, esse era um assunto pouquíssimo abordado”, comenta Fábio de Barros, pesquisador do orquidário do IBt. “Hoehne também foi um divulgador científico quando isso, ao menos no Brasil, era pouco valorizado. Ele escreveu dezenas de artigos publicados em jornais e revistas não científicas, além de livros, e promoveu cursos no Jardim Botânico para o público geral.” Por fim, Barros enfatiza a preocupação de Hoehne com as possibilidades de aplicação artística e prática das plantas brasileiras. Lendo Hoehne, várias vezes ele encontrou propostas de utilização de imagens de folhas e flores em vitrais, azulejos e pisos. As fotos estão enriquecendo a história de alguns lugares de São Paulo. Uma delas ajuda a entender melhor por que a Estrada das Lágrimas, próxima ao início da rodovia Anchieta, tem esse nome: por causa de uma figueira que ficou conhecida como árvore das lágrimas. Era ali que as mulheres se despediam dos maridos que partiam para longas viagens pelos sertões paulistas.

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entrevista

Israel Klabin

Capitalismo verde

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O ex-empresário, hoje ambientalista, discute futuro ecológico com otimismo Carlos Haag

fotos leo ramos

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himon bar Yochai, rabino e cabalista hebreu do século II d.C., gostava de contar a história do barco lotado de homens que navegava calmamente até que um deles começou a abrir um furo debaixo do seu lugar. Ao vê-lo, os outros protestaram: “O que você está fazendo? Pare!” O homem retrucou: “O que vocês têm com isso? Estou fazendo um buraco embaixo do meu lugar”. Ouviu, então, uma lição: “Seu tolo. É, sim, da nossa conta, pois você vai afundar o barco e todos nós vamos nos afogar”. Para arrematar a narrativa, o rabino ensinava: “Cada decisão e atitude que tomamos não afeta apenas a nós mesmos, mas toda a humanidade”. Por sorte, ainda há quem pense como ele. “Vivemos e construímos o nosso mundo com a sensação de que os recursos naturais são infinitos, mas precisamos nos lembrar de que não é o planeta que está ameaçado, mas a vida humana em seu hábitat. Resta saber se vamos comandar esse processo ou se seremos obrigados a agir ou perecer a partir da fúria da natureza”, avisa o ambientalista Israel Klabin, presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), criada por ele em 1992 no esteio da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. Neste mês, Klabin lança A urgência do presente, com o subtítulo Biografia da crise ambiental, livro onde relembra sua trajetória de empresário a ambientalista e discute a agenda do meio ambiente para hoje e o futuro. “Sempre me preocupei com o meio ambiente”, garante. Após cursar engenharia e fazer seu mestrado em matemática e química, foi para a França, onde se doutorou no Institut des Sciences Politiques, em Paris. Ao voltar, trabalhou em projetos de desenvolvimento na Comissão Mista Brasil-EUA e ajudou a fundar a Sudene e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Aos 30 anos, face à morte do pai, assumiu a empresa da família, a Klabin Irmãos & Cia, produtora de papel, celulose, cerâmica, azulejos e sisal. “Implantei lá toda a parte de sustentabilidade”, lembra. Ficou como sócio-gerente da empresa até 1988, quando “deixou de ser empresário” para voltar ao mundo acadêmico como membro do conselho de desenvolvimento da Pontifícia


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Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do conselho internacional da Universidade de Tel Aviv, Israel. Entre 1979 e 1980, foi prefeito do Rio. Hoje, à frente da FBDS, é interlocutor respeitado em debates sobre clima e meio ambiente, e elo de ligação entre a elite empresarial e o Estado, os quais cutuca com firmeza para que se coloque em pauta a discussão sobre as chances do “desenvolvimento sustentável”. ■■Falar de meio ambiente hoje virou um modismo, um conceito que abrange tanto pesquisas sérias quanto ingenuidade ou mesmo oportunismo. Qual é a sua visão do ambientalismo? ——O ambientalismo é um conceito que está sendo consolidado, tendo como base a multilateralidade e a multidisciplinaridade. Nomear esses movimentos todos, que podem ser políticos, éticos ou científicos, é o menos importante. O fundamental é estabelecer os vetores que vão construir o modelo de vida no futuro. O trabalho do ambientalista é uma visão de futuro. Há 20 anos, quando começamos a Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável (FBDS), ninguém tinha ideia do que era esse tal desenvolvimento sustentável. Afinal, ele é um paradoxo, porque o desenvolvimento tem sua dinâmica, enquanto a sustentabilidade exige uma postura mais estática. Como construir um modelo em nosso benefício, que integre crescimento econômico, inclusão social e consciência do limite do capital natural: ainda não vimos na prática esse tripé da sustentabilidade, esse triple bottom line. Nesses anos todos vi empresas e governos se esforçarem para compreender as práticas que nos aproximam do ideal sustentável, mas com ações insuficientes. “Sustentável” ainda é uma qualidade abstrata. Eu mesmo não deixo de repensar essa expressão “desenvolvimento sustentável”, usada em excesso e muitas vezes mal empregada. Nós precisamos pensar no desenho de um novo modelo econômico que garanta a continuidade dos meios naturais, e pouco ou nada será feito se não entendermos que eles são finitos. Da mesma forma, o conceito de que o excesso de emissões acima da capacidade de absorção do planeta é um dos vetores críticos do ambientalismo, um problema que já começava a tomar pé 12

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Aos poucos está surgindo uma consciência pública de que vivemos hoje um momento crítico do modelo econômico e da matriz energética

já em fins do século XIX com a Revolução Industrial. Sabemos que em 2050 teremos mais de 9 bilhões de habitantes e somente aí o avanço do impacto demográfico deverá se equilibrar. Então, o ambientalismo é a preparação de todos os modelos para dar conta desse futuro. É um pensamento prospectivo que nos obriga a repensar a matriz energética, o conceito e os mecanismos usados hoje para o desenvolvimento e o próprio modelo de governança democrática, que está incapacitado para colocar em ação em tempo hábil o que a humanidade precisa com rapidez. ■■Como foi a evolução da agenda brasileira para o meio ambiente? ——Lenta, porque por um bom tempo o país ignorou a importância dessa agenda, mantendo a porta aberta aos modelos anacrônicos de desenvolvimento, o que ajuda o empresariado a não se sentir responsável, seguindo essa “acomodação” que é dada pela escassez de políticas públicas na área ambiental. Em 1972, o governo brasileiro chegou a declarar: “Venham a nós a poluição. As indústrias poluidoras que queiram vir ao Brasil serão bem-

vindas”. Em 1992 isso já não era mais possível e em 2012 é inimaginável se dizer algo do gênero. Aos poucos estamos construindo uma consciência pública de que vivemos um momento crítico do modelo econômico e da matriz energética. Sobretudo no setor econômico privado, a consciência da necessidade de se caminhar para o que se chama uma economia verde cada é vez maior e não estou falando de “verdes sonhadores”. O Brasil sabe se apropriar muito rapidamente das evoluções tecnológicas e conceituais que nascem e alimentam o desenvolvimento econômico, nos moldes do que fez a China na sua absorção da modernidade. Entre 1992 e 2002, a evolução dos vetores negativos, ou seja, o aumento vigoroso das emissões e as suas consequências em mudanças climáticas, superou o empenho na busca de soluções, o que dá a noção do espaço pequeno dessas preocupações na agenda nacional, ainda que não se possa negar que esteja crescendo. O Brasil até que está numa situação privilegiada, por vários fatores naturais, mas hoje ninguém tem privilégios, já que todas as consequências são planetárias. Precisamos reduzir rapidamente o uso de fontes fósseis de energia e a prioridade é a eficiência energética. Isso significa uma mudança no modo de vida, porque teremos que nos disciplinar para racionalizar e dar maior eficiência ao uso da energia disponível. Esse é o preço mínimo que a humanidade deveria pagar, em especial os EUA e a China. Acima de tudo, as pessoas precisam entender que os problemas climáticos e ambientais que enfrentamos são resultado de modelos econômicos, de governança, de modelos de consumo, de transporte, enfim, da forma como vivemos. O processo de evolução passa necessariamente pelas responsabilidades globais, de governos e empresas, mas também, e principalmente, por uma reeducação na forma de viver. É urgente que se crie uma nova ética de inclusão social, que preveja segurança energética, acesso aos alimentos, à água, à habitação e, sobretudo, à educação. Enfim, um novo modelo de desenvolvimento que estenda seus benefícios às gerações futuras. Alguns países já acreditam que o crescimento econômico decorre do


progresso do conhecimento. A sociedade do conhecimento está surgindo como fator racional e fundamental para um desenvolvimento sustentável. ■■Qual é o papel dos empresários nesse processo? Sei que o senhor não gosta que o chamem de empresário... ——É verdade. Vivo graças à empresa, mas tenho orgulho por ela ser a maior reflorestadora brasileira. Há 20 anos, porém, achei que necessitava ter uma isenção total e absoluta das minhas raízes familiares e empresariais, como até eventualmente da minha formação técnico-científica. A minha carreira, na juventude, estava focada numa possibilidade acadêmica, mas vieram problemas familiares e fui obrigado a um interlúdio empresarial. Quando me voltei para esse desafio de uma visão prospectiva, entendi que teria que me isolar desse passado para ter a liberdade criativa e crítica e não querer ter vínculo em nenhum setor, nem mesmo no ambiental. Isso, porém, não me faz renegar, por exemplo, o lucro, que vejo como uma medida de eficiência. O lucro como ativador de um mercado de consumo supérfluo é ruim, assim como quando é utilizado ou é oriundo de um jogo especulativo, e não produtivo para a sociedade. Portanto, o que está nos faltando na verdade é uma moeda de referência. Quando a gente fala “lucro”, está falando numa moeda, em moedas que já não existem mais. A referência em dólar ou em euro já não existe mais, estamos passando por uma fase crítica de um ciclo econômico que só resistirá se for recriada uma moeda real que esteja lastreada em recursos naturais renováveis e não renováveis. Enfim, uma moeda ancorada num sistema de lucro cuja destinação específica seja o aumento da riqueza global. Deveríamos fazer outro tratado de Bretton Woods, uma conferência que remodelasse o sistema macroeconômico com base na sustentabilidade ambiental do planeta. O vetor não se chamaria moeda, mas meio ambiente. ■■Os empresários brasileiros já estão prontos para isso? ——Houve uma evolução significativa, mas a questão ambiental ainda é periférica dentro do contexto empresarial, não atingiu o coração das empresas. O que se convencionou chamar de sus-

tentabilidade está no departamento de marketing, mas não chegou ao centro das decisões empresariais. Ao empresário cabe não só caminhar no sentido da sustentabilidade de suas operações, como também estender sua ação para que o governo também adote práticas visando essa sustentabilidade. O problema da formação de um modelo político, ético, é de fundamental importância. Enquanto não tivermos uma moeda de referência, um sistema de ética governamental, uma elite consciente e um sistema em que a inclusão social seja um projeto não apenas fiscal, mas abrangente de todo o sistema econômico, não vamos chegar inteiros em 2050. Se a visão de um político é focada nos poucos quatro anos de mandato e na eleição, a visão do empresário, pelo menos da maioria, está no bottom line, no lucro da última linha. Agora, na medida em que o consumidor exija do produtor um comportamento ambientalmente sadio, isto é, sustentabilidade, haverá mudanças. O entrosamento entre o consumidor e o produtor no uso dos seus ativos para ter lucro é de muita importância. O empresariado brasileiro ainda não se sentiu obrigado a tomar uma ação nesse sentido porque

o conceito de empresa é produzir para um mercado. Se o mercado demanda, ela responde. Ora, é muito importante a educação do consumidor. Na medida em que o consumidor exija um comportamento diferenciado da empresa, ela vai ter que atendê-lo. Esse é o bom empresário, e esse é o bom consumidor. Mas o empresário também precisa atentar para o seu processo industrial, o que leva à necessidade de um entrosamento entre as indústrias e as universidades, para que haja uma aproximação entre os recursos científicos e a prática empresarial. ■■Essa união é desejável, mas nem sempre acontece. ——As empresas nem sempre têm a visão e a segurança necessárias para fazer os investimentos sustentáveis que as fariam caminhar na direção de um futuro viável. Aí vai uma crítica ao modelo tributário. Em qualquer país do mundo em que a inovação foi motivação de ciclos econômicos houve modelos tributários que permitiram isso. É preciso motivar o empresariado para levar esse projeto avante. Hoje o Brasil é um catalisador de cérebros disponíveis em outros países e que gostariam muito PESQUISA FAPESP 187

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fatores nacional e global. Quando o fator nacional colide com a superação dos problemas globais, temos sérios problemas, como se vê, por exemplo, nos EUA e na China, que não compreenderam a importância de mudarem seus padrões energéticos, porque os problemas nacionais fazem com que os governos deles não tenham força para modificar o modelo energético, a qualquer custo. Então, isso é democracia? Acho que é uma democracia que atende a poucos, mas ofende a todos. Não há solução possível num mundo de nações que tomam decisões olhando de dentro de suas conveniências.

de vir trabalhar aqui. Existem centros admiráveis aqui que podem alavancar soluções. Mas o modelo tributário não ajuda. O empresariado precisa lutar por outro modelo que viabilize inovação. ■■E como a universidade reage a esse movimento? Há quem veja um isolamento da academia. ——O pecado está nos dois lados: um não gosta de se aproximar do outro. Uma das utilizações de lucro que consideraria da maior utilidade seria na universidade, com o empresariado criando sua própria matéria-prima humana dentro dessas instituições. As universidades públicas estão num isolamento catastrófico, porque têm o velho conceito cartorial de que a universidade deve criar inteligência para o serviço público, enquanto deveria estar intimamente ligada à realidade da produção, da gestão, da realidade social, uma integração entre o empresariado, a universidade e o próprio governo. Se isso ocorresse, se avançaria muito em tecnologias avançadas, em matéria de gestão. ■■Nem sempre os empresários gostam da interferência do Estado... ——Sim, mas no caso do meio ambiente o Estado tem que ter presença absoluta, mas com a consciência de ser o meio de campo. O Estado, como a empresa e a universidade, tem os seus limites. Mas vivemos numa sociedade em que este 14

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limite tem que ser fluido o bastante para que eles possam conviver. O Estado deve ser o ponto de “união” de todos os vetores que formam a sociedade e o regulador da distribuição da riqueza. Há, porém, governo e Estado, coisas diferentes. O que tem acontecido é que o governo tem utilizado os ativos do Estado, inclusive os ativos naturais, de forma perversa. O governo precisa se adaptar a visões de prazo longo, e não a quatro anos de mandato. ■■O senhor defende a modificação do modelo de governança democrático? ——Os governos nacionais têm que compreender que nos últimos 30 anos passaram a ter uma relação de responsabilidade global. A democracia como estamos habituados a ver é um modelo de governança. No entanto, eu vejo a democracia mais como a manutenção de valores humanísticos. Será que esses valores estão sendo defendidos para a promoção dessa mesma democracia? Acho que eles, bem como a manutenção dos recursos vitais para as próximas gerações, não estão sendo defendidos adequadamente. O que precisamos é de um centro de decisão que tenha efetivamente uma visão prospectiva. A manutenção dos ativos ambientais das florestas tropicais é de fundamental importância para o futuro, não só do Brasil como do planeta. Há a integração dos

■■O Brasil tem um imenso excedente de energias limpas, mas que estão em locais estrategicamente complexos, de grande impacto ambiental, como a Amazônia. Como lidar com esse dilema? ——Por pior que seja o perigo, me perdoem meus amigos ambientalistas, mas sou favorável à utilização do potencial energético limpo da Amazônia, ainda que de forma sustentável. Precisamos ser responsáveis. Quando dizem que Belo Monte tem uma capacidade de geração de 11 mil quilowatts, não é verdade, pois a variação de fluxo hídrico do rio nos dará menos de 4 mil megawatts, ou seja, é antieconômico. Além disso, estudos mostram que temos um potencial eólico muito maior do que o hídrico e que ainda não foi desenvolvido. Por que não começamos por aí? Temos também um potencial solar gigantesco. Por que que não avançar na pesquisa e inovação para utilizá-lo? Há ainda muitas outras fontes. Por que não as usamos? Bem, isso tem a ver com o processo de decisão do governo, cada vez mais complexo, e a ligação entre política e meio ambiente está numa fase de transição entre gerações. Se você perguntar a um jovem ele se dirá ambientalista. Se perguntar a um agropecuarista do Mato Grosso, ele vai responder como um ruralista no mau sentido da expressão. As novas gerações sabem o que querem, mas não sabem como chegar lá. Então o problema político, como disse o Fernando Henrique, não é o que fazer, mas como fazer. Basta ver o sucesso de uma candidatura inviável como era a da Marina Silva, para sentir que há algo novo no ar e um fascínio geral da geração mais nova pela preservação do meio ambiente.


■■A política está prejudicando o novo Código Florestal? ——As discussões não devem ser pautadas por disputas partidárias ou demonstrações de força de um ou outro elo da cadeia política, nem privilegiar a agenda de agentes econômicos. Afinal, o formato final do novo Código Florestal é assunto sério demais para ser alvo de quedas de braço que pouco têm a ver com o verdadeiro interesse nacional. Por isso, é bastante alentador ver a presidente Dilma sinalizar sua intenção de vetar a chocante proposta de anistia ao desmatamento, que uma vez aprovada funcionaria como senha para o avanço do desmatamento. Também é essencial regulamentar o controle da exploração da floresta a partir da esfera federal. Permitir aos estados e municípios determinar os limites aceitáveis de desmatamento em seus territórios é uma receita para o desastre. O governo federal, porém, não pode permitir o desmatamento pensando que ampliará e democratizará o acesso à terra, com isso gerando um suposto aumento da produtividade do setor agropecuário. É o mesmo cuidado que precisamos ter com a questão da reforma agrária, que está tendo um efeito deletério sobre o meio ambiente porque a fazem em regiões erradas: a maior parte das ocupações está em regiões florestadas que passam a ser imediatamente desmatadas. O Brasil tem um excesso de terra, excesso de terra agriculturável, e, com as novas tecnologias, não é preciso desmatar. É preciso uma atitude racional na reforma agrária que integre o homem à terra de forma moderna. ■■De que forma a inclusão social influencia a questão ambiental? ——Nenhuma atividade econômica ou ambiental pode existir sem se considerar a inclusão social. É mais do que caridade, mas uma realidade à qual o lucro deverá estar condicionado. O desenvolvimento futuro não poderá ser alcançado apenas pelo aumento das rendas individuais, mas também com o redirecionamento das riquezas globais. As camadas mais pobres poderão ser a alavanca do novo modelo de desenvolvimento, fator do qual ainda não se tem consciência. Mas é um ponto importante: o conceito de

O governo federal não pode permitir o desmatamento pensando que ampliará e democratizará o acesso à terra

sustentabilidade abrange, também, a inclusão responsável, pela qual governo e cidadãos dividem responsabilidades sobre os bens comuns. Aos poucos, nesse movimento, as empresas vão perceber que podem ser um instrumento reformador do conceito de lucro. ■■Isso vale para a ascensão das novas classes sociais brasileiras? ——Nesse caso, acho que funciona ao contrário. As classes C e D, emergentes, procuram ser consumidoras “parametradas” pelo consumo dos ricos, o que é um erro. A classe média tem que começar a ser exigente em matéria de certificação. Alguns supermercados já estão preocupadíssimos com isso. Há mercadorias que não são mais compradas porque não são certificadas. Ou, também, as sacolas plásticas que estão sendo substituídas. O consumidor já está agindo e sua pressão vai produzir um grau mais elevado de sustentabilidade nas próprias empresas produtoras, ou seja, verticalizando a produção com a demanda. ■■Iniciativas globais, como o Protocolo de Kyoto, revelam os limites da adoção de uma “política externa” ambiental? ——Sem dúvida. Os países ricos estabeleceram seus altos padrões de conforto e bem-estar a partir de processos produtivos que estão pondo em risco os

mecanismos de adequação do planeta à vida humana. E os países em desenvolvimento avançam no mesmo caminho, declarando seu direito moral à poluição, aumentando ainda mais a demanda energética. O impasse político entre esses dois grupos de países vem desde as reuniões do Protocolo de Kyoto, quando se estabeleceram obrigações diferenciadas: os países ricos deveriam limitar suas emissões, mas as metas eram nada ambiciosas e não havia sanções práticas. Para os países em desenvolvimento as obrigações eram ainda menores, pois o desejo de chegarem a um patamar econômico mais elevado foi mais importante do que a preocupação com a saúde da atmosfera e a estabilidade do clima. O sistema de Kyoto morreu. Isaiah Berlin, um de meus gurus, já advertia que o nacionalismo era a “bengala torta da humanidade”. Temos que criar um mundo pós-nacionalista. O consenso é impossível e a multilateralidade é inviável. Unir 192 países numa posição única sobre política climática é uma ilusão. É mais produtivo fazer acordos entre grupos de países, ou de país com país, ou pelo menos entre aqueles países que mais poluem, dentre desenvolvidos e em desenvolvimento. O que os especialistas estão pregando é investir na praticidade política das questões globais. Em vez de focarmos em legislações globais, vamos ficar em áreas comuns a todos, como energia, transporte, água. O Brasil está numa posição espetacular para ser o proponente disso porque tem todos os ativos necessários para falar que não há mais espaço para uma discussão de regulação política, mas de regulação setorial. Esse é um novo caminho que estamos abrindo. Hoje estamos trabalhando numa energia para todos, ou seja, uma redistribuição dos ativos energéticos através de uma mudança tarifária, e na formação de um fundo que permita a inclusão social dos menores consumidores e a penalização dos grandes consumidores. ■■O senhor é otimista sobre o futuro? ——Sou, porque eu acredito que toda crise cria uma possibilidade. Essa é a história do homem. Essa crise pode ser altamente produtiva para um mundo melhor. Sou velho o bastante para ter passado por muitas crises e todas acabaram se resolvendo para melhor. n PESQUISA FAPESP 187

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capa

O mapa das hepatites Levantamento identifica quantos são e onde estão os portadores de diferentes formas da enfermidade no país

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Brasil começa a conhecer, por fim, as dimensões de um grave problema de saúde que os especialistas vêm chamando de doença silenciosa: as hepatites virais, enfermidades que apresentam os mesmos sinais clínicos, embora sejam causadas por tipos distintos de vírus que se alojam no fígado e disparam uma inflamação que o agride. Na quinta-feira 28 de julho, Dia Mundial da Hepatite, o Ministério da Saúde divulgou os resultados do mais amplo levantamento sobre essas enfermidades já feito no país. Durante sete anos, um batalhão de quase mil pesquisadores chefiados pela hepatologista Leila Beltrão Pereira e pelo epidemiologista Ricardo Ximenes, ambos da Universidade de Pernambuco (UPE), e pela biomédica Regina Moreira, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, entrevistou e colheu amostras de sangue de 26.102 pessoas em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal. O cenário delineado por esse trabalho ganha contornos mais definidos com os achados recentes de outras equipes brasileiras. Em vez de levantar a taxa de pessoas infectadas na população, o grupo do médico e bioquímico João Renato Rebello Pinho na Universidade de São Paulo (USP) foi atrás de comunidades dispersas pelo país em que sabidamente o índice de infecção é elevado, a fim de mapear as variedades do vírus em circulação. Outro trabalho, do qual participaram pesquisadores da

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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), projetou a evolução das taxas de hepatite até o final desta década. Vistos em conjunto, esses resultados podem orientar com mais precisão o combate às hepatites. As conclusões preliminares do levantamento populacional, o Inquérito nacional de prevalência de hepatites virais, revelam um quadro melhor que o reportado anteriormente pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A agência internacional classificava o Brasil como tendo alta concentração de casos de hepatite A; baixa de hepatite B, com exceção da Região Norte, onde seria elevada; e intermediária da hepatite C. Segundo o estudo encomendado pelo ministério, a prevalência das três formas mais comuns de hepatite oscila de moderada – caso da A nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – a baixa, como ocorre com a B e a C, menos frequentes e mais agressivas. “Esse trabalho muda o mapa das hepatites no Brasil”, afirma Leila, coordenadora da pesquisa. “A concentração de casos só é alta na Amazônia, mesmo assim em algumas regiões como a do rio Javari [na divisa do Brasil com o Peru]”, diz. A análise do sangue de 6.468 crianças e adolescentes mostrou que, em média, 39,5% apresentavam anticorpos contra o vírus da hepatite A, a mais frequente no mundo, que a cada ano atinge 1,4 milhão de pessoas. A detecção desse anticorpo é um sinal de que eles já tiveram contato

tratamento digital sobre fotos de eduardo cesar

Ricardo Zorzetto


Na rota do vírus Porcentagem de pessoas que tiveram contato com os vírus das hepatites por região (testes feitos com indivíduos de 5 a 19 anos para hepatite A e de 10 a 69 anos para B e C)

norte A  58,3% B  10,9% c  2,1%

nordeste A  53,1% B  9,13% C  0,68%

Distrito federal

centro-oeste

A  41,6% B  3,1% C  0,9%

A  54,1% B  4,3% C  1,3%

SUDESTE A  32,5% B  6,3% C  1,3%

fonte: ministério da saúde

SUL A  30,8% B  9,59% C  1,2%

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Uma População quase amarela Casos registrados de 1999 a 2010, por tipo de hepatite

C 69.952

A 130.354

E 874 D 1.812

B 104.454

com o agente causador da enfermidade, mas não significa que estivessem doentes no momento da pesquisa. Transmitido pelo consumo de água e alimentos contaminados, o vírus da hepatite A não causa grandes danos ao organismo de crianças e adolescentes. Cerca de metade dos infectados nem chega a apresentar sinais da enfermidade. Na outra metade, após 15 a 45 dias de incubação, o vírus pode provocar febre, mal-estar, desconforto abdominal, deixar a pele e os olhos amarelados (icterícia) e a urina cor de Coca-Cola, consequência de uma inflamação passageira no fígado. Quase sempre o vírus é eliminado do corpo sem exigir tratamento específico além de repouso, embora existam casos raros, em geral 18

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entre adultos, em que a infecção progride de modo agressivo e leva à morte em poucas semanas (ver quadro na página 21). Passada a fase aguda da infecção, a pessoa se torna imune ao vírus. “Vinte anos atrás a proporção de crianças e adolescentes infectados pelo vírus da hepatite A era de 90%”, conta o hepatologista Flair José Carrilho, professor titular de gastroenterologia da Faculdade de Medicina da USP e responsável pela parte do levantamento realizada no estado de São Paulo. Um dos motivos da redução na taxa de hepatite A, de acordo com o governo, é a melhora do saneamento básico. O número de domicílios com água tratada aumentou de 78% para 83% na última década e o de residências com acesso à rede de esgoto, de 47% para 55%, segundo comparação entre os censos de 2000 e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A distribuição dos casos de hepatite A, como se pode imaginar, não é homogênea. A frequência cresce do Sul para o Norte do país – vai de 31% nas capitais sulinas a 58% nas da Região Norte –, onde a rede de água e de coleta de esgoto é menor. “Esses números mostram a influência do acesso ao saneamento, que é menor nestas capitais e favorece a circulação do vírus”, observa Dirceu Greco, diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Atualmente técnicos do ministério e especialistas de diversas regiões avaliam os custos e os benefícios de incluir no Programa Nacional de Imunização a vacina contra hepatite A, hoje distribuída só em áreas de alto risco. “Com a redução da prevalência dessa hepatite entre crianças e jovens, surge o risco de que as pessoas passem a se infectar mais tarde na vida, quando aumenta a probabilidade de complicações”, diz Greco.

O

quadro se torna mais complexo quando se analisam os dados das hepatites B e C. Os pesquisadores mediram no sangue de 19.634 participantes com 10 e 69 anos de idade a presença de três proteínas indicadoras de infecção pelo vírus B e uma pelo C. Verificaram que 7,4% já haviam sido contaminados pelo vírus B, embora só 0,4% apresentasse hepati-

Ampliação do acesso à água tratada e à coleta de esgoto na última década reduziu os índices de hepatite A entre crianças e adolescentes

te no momento da pesquisa, e que 1,4% havia contraído o vírus C. À primeira vista, esses números são mais animadores que os da OMS, mas a redução nas taxas das hepatites pode não ser tão expressiva assim. Os documentos da OMS se baseavam em dados antigos, de estudos feitos com poucas pessoas – em geral, doadores de sangue – e em áreas restritas. “O resultado do levantamento nacional não chega a ser uma surpresa para os médicos”, afirma Fernando Gonçales Junior, da Unicamp. “Testes feitos nos bancos de sangue já indicavam taxas de infecção ativa de 0,5% para a hepatite B e 1,4% para a C”, conta. Num trabalho feito em parceria com pesquisadores estrangeiros e com o gastroenterologista Henrique Coelho, da UFRJ, Gonçales reuniu informações de 150 artigos científicos latino-americanos sobre hepatite e dados fornecidos pelo sistema de saúde de quatro países (Argentina, Brasil, México e Porto Rico) para alimentar um modelo matemático capaz de projetar a evolução da hepatite C nos próximos anos. A tendência, descrita em artigo na Liver Internacional de julho, é que o número total de casos aumente, mas a proporção se mantenha estável (em 1,5% no caso do Brasil) até 2021.


os vírus e suas características

A

B

C

Picornavírus

Hepadnavírus

Flavivírus

genéticA

RNA

DNA

isolamento

1973

Fonte: ministério da saúde / enciclopaedia britannica

FAMÍLIA

INCUBAÇÃO crônica contágio vacina

E

F

Não definida

Calicivírus

Flavivírus

RNA

RNA

RNA

RNA

1965

1988

1977

Não identificado

1996

20 a 40 dias

30 a 180 dias

15 a 150 dias

15 a 45 dias

30 a 180 dias

Não identificado

Não identificado

comida ou água contaminada

sangue e fluidos corporais

sangue e fluidos corporais

sangue e fluidos corporais

comida ou água contaminada

sangue e fluidos corporais

A limitação do inquérito nacional, segundo os especialistas, é ter sido feito apenas com a população das capitais e do Distrito Federal, embora a amostra seja grande e representativa de um quarto dos brasileiros. “O inquérito tem grande valor por mapear essas enfermidades em nível nacional, mas não podemos esquecer que as doenças têm fatores socioeconômicos e ambientais como determinantes, em especial a hepatite A”, afirma a médica sanitarista Rosangela Gaze, do Laboratório de História, Saúde e Sociedade da Faculdade de Medicina da UFRJ. “A frequência dessa hepatite pode variar bastante, mesmo nas capitais”, diz a pesquisadora. Caso os índices obtidos no levantamento possam ser extrapolados para toda a população, calcula-se que existam 3,5 milhões de brasileiros com as formas mais graves de hepatite – cerca de 800 mil com hepatite B e 2,7 milhões com hepatite C –, seis vezes o número estimado de portadores do vírus da Aids. “É mesmo um número grande”, reconhece Greco, do ministério. Juntas, as pessoas com essas duas formas de hepatite, que aumentam o risco de desenvolver cirrose e câncer de fígado ao longo da vida, ocupariam uma cidade como Salvador, na Bahia, a

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terceira maior do país. “Esses dados vão gerar uma discussão importante sobre o financiamento da terapia das hepatites, que é bastante dispendiosa”, afirma Carrilho. “O Sistema Único de Saúde não tem como bancar tudo”, diz.

P

or sorte, nem todos os infectados precisam de tratamento. Estudos internacionais que acompanharam a evolução natural das hepatites indicam que até 90% das pessoas que contraem o vírus B sofrem uma inflamação aguda, que dura poucas semanas, e conseguem controlar a proliferação do vírus sem desenvolver hepatite crônica. Mesmo assim, a quantidade de pessoas que precisaria de medicação é elevada: cerca de 160 mil. Entre os portadores do vírus C, cujo tratamento é menos eficaz, o número é quase 10 vezes maior, já que apenas em 20% dos casos a infecção não se torna crônica. Só uma pequena parcela, porém, descobre a doença e chega ao serviço público de saúde – em geral quando o problema está avançado e os sinais clínicos são evidentes. “Esses casos costumam ser mais graves, com menos chance de cura”, diz Carrilho. Na última década, o ministério contabilizou 104 mil casos de hepatite B e 70 mil

de hepatite C (ver quadro na página ao lado). E em 2010 gastou entre R$ 250 milhões e R$ 300 milhões para custear o tratamento de 24 mil pessoas com uma dessas duas formas de hepatite. Uma das razões do subdiagnóstico é que a evolução das hepatites B e C é muito lenta. Podem-se passar de 20 a 30 anos até que o fígado, órgão esponjoso e macio ao toque, comece a enrijecer em consequência da cirrose, cicatrização de lesões causadas pelo vírus e pela ação do sistema de defesa do organismo – nesse estágio, costumam surgir varizes no abdômen e no esôfago, aflorar na pele pequenas veias com formato de teia de aranha e aumentar o risco de hemorragias. “O professor Luiz Caetano da Silva, um dos pioneiros da hepatologia no Brasil, costumava dizer que o fígado sofre calado”, lembra Carrilho, de quem foi aluno no doutorado. O ministério tenta ampliar a detecção precoce com campanhas para a realização de testes. Em agosto começaram a ser distribuídos para 17 centros públicos kits de diagnóstico rápido das hepatites B e C, que reduz o tempo de espera pelo resultado de duas semanas para meia hora. Este ano também começou a ser avaliado pelos quatro maiores hemocentros do país (São Paulo, Rio de PESQUISA FAPESP 187

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Janeiro, Santa Catarina e Pernambuco) a versão brasileira de um teste molecular para identificar no sangue o vírus da hepatite C – e não os anticorpos, que permanecem no organismo mesmo após a eliminação do vírus. Desenvolvido pela equipe de Antonio Gomes Pinto Ferreira e Marco Aurélio Krieger, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Instituto de Tecnologia do Paraná e a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, o exame é produzido pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz, o Bio-Manguinhos, e deve diminuir de 70 para 10 dias o tempo de diagnóstico. O risco de contaminação por hepatite C em transfusões sanguíneas é baixo no país, conta Ester Sabino, chefe do departamento de biologia molecular da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo. A cada 200 mil bolsas de sangue, uma está infectada pelo vírus. Ester acredita, porém, que a adoção do teste molecular produzirá o efeito observado nos Estados Unidos, onde é usado desde 2000: baixar a taxa de infecção para uma bolsa a cada milhão. “Com o desenvolvimento de testes de maior sensibilidade e especificidade, as hepatites vêm se tornando mais visíveis e detectadas mais frequentemente”, diz Rosangela, que em seu doutorado investigou a influência das mudanças tecnológicas no diagnóstico das hepatites nos séculos XVIII e XIX por meio do estudo das teses acadêmicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, hoje integrada à UFRJ. “Mas não houve a mesma evolução em termos de tratamento e prevenção”, afirma.

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inco ou seis medicamentos são usados – isoladamente ou combinados – para tratar as hepatites mais graves. Contra o B, os médicos costumam indicar lamivudina, adefovir, tenofovir ou entecavir, que podem ou não ser associados a um composto que imita uma molécula de ação antiviral produzida naturalmente pelo organismo, o interferon. Na maioria dos casos, esses compostos controlam de modo eficiente a reprodução do vírus, mas não o eliminam do organismo. É que o vírus da hepatite B em alguns casos insere um trecho de seu material genético (DNA) entre os genes da célula infectada e assume o controle. Assim,

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Desde os anos 1980 há vacina eficaz contra a hepatite B, mas imunizamos muito menos pessoas do que poderíamos, diz Rosangela Gaze

ele consegue se manter dormente em algumas delas e anos mais tarde voltar à ativa, motivo por que muitos portadores do vírus B voltam a ter hepatite após um transplante de fígado. As terapias que funcionam contra a hepatite B, no entanto, nem sempre dão certo contra a C, mais agressiva e letal. Uma das estratégias mais adotadas contra a hepatite C é a associação de interferon e do antiviral ribavirina. A combinação, que costuma curar apenas 40% das infecções por algumas variedades do vírus C, deve ganhar nos próximos meses o reforço de dois outros compostos: o telaprevir e o boceprevir, já aprovados para comercialização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que elevaram para 70% o índice de sucesso nos testes clínicos. Por trás do sucesso parcial dos tratamentos estão as características genéticas dos vírus da hepatite, que variam muito. Desde a identificação do primeiro agente viral da hepatite – o vírus B – por Baruch Blumberg em 1965, outros cinco tipos já foram descritos: A, C, D, E e G (ver quadro na página 19). Mas as sutilezas não acabam aí. A sofisticação dos métodos de diagnóstico permitiu diferenciar os tipos em subtipos – os

genótipos, descritos por números ou letra maiúscula. E estes em subsubtipos: os subgenótipos, representados por números ou letra minúscula. Há seis anos a equipe de João Renato Rebello Pinho, do Laboratório de Gastroenterologia e Hepatologia Tropical do Instituto de Medicina Tropical da FMUSP, trabalha na identificação dos genótipos e subgenótipos dos vírus do Brasil e de outros países da América do Sul. O objetivo é saber quais variedades circulam por aqui e onde estão. Os dados obtidos até agora, descritos em quase uma dúzia de artigos científicos, refinam o conhecimento sobre as hepatites na América do Sul e devem ajudar a reconstituir a história evolutiva dos vírus B e C no continente. “Não esperávamos encontrar uma variedade tão grande”, afirma a microbióloga colombiana Mónica Viviana AlvaradoMora, aluna de doutorado de Pinho. Em parceria com equipes de outras regiões do Brasil e também do Chile, da Colômbia e da Venezuela, o grupo de Pinho identificou pela primeira vez na América do Sul uma variedade do vírus da hepatite B que se pensava ser exclusiva da África. Trata-se do vírus B do subgenótipo E, encontrado em Quibdó, comunidade de afrodescendentes no oeste da Colômbia.

Os Projetos 1. Estudo da variabilidade genotípica dos vírus das hepatites B e C na Colômbia – nº 2007/53457-7 2. Estudo da diversidade genética do vírus da hepatite C e hantavírus circulantes no estado de São Paulo – nº 2000/11457-1 3. Estudo da prevalência e genotipagem do vírus da hepatite B no estado do Paraná, Brasil – nº 1999/09551-0 modalidade

1., 2. e 3. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

1., 2. e 3. João Renato Rebello Pinho – IMT/USP investimento

1. R$ 260.277,97 (FAPESP) 2. R$ 1.169.490,33 (FAPESP) 3. R$ 129.862,29 (FAPESP)


um quadro ainda negro Mortes por tipo de hepatite no Brasil de 1999 a 2010

E 48

D

264

A 608

4.978

14.873

Testes moleculares que calculam a taxa de acúmulo de mutações no material genético ao longo do tempo sugerem que essa variedade do vírus foi introduzida uma só vez nessa região da América do Sul, mas não se sabe quando. Cruzando a Colômbia, Mónica coletou amostras de sangue em comunidades de quatro diferentes regiões e, pela primeira vez, identificou a taxa de prevalência das hepatites e os genótipos dos vírus B e C mais comuns no país. Entre os vírus B, encontrou duas das quatro variedades do genótipo F, mais comum entre os ameríndios, e uma do G, segundo artigo publicado este ano na Infection, Genetics and Evolution. Também viu algo inesperado: a elevada prevalência do subgenótipo A2, típico de europeus, na capital, Bogotá. Já do vírus C, a variante mais comum foi a 1b, sinal de que na Colômbia a transmissão dessa forma de hepatite se deve mais à transfusão de sangue infectado do que ao uso de drogas injetáveis. “A taxa de infecção vem caindo desde a adoção pelos bancos de sangue dos testes para detectar o vírus C”, afirma. O grupo encontrou ainda evidências de que a vacinação contra a hepatite B é efetiva no Brasil. “A imunização contra

o vírus B vem reduzindo a prevalência do vírus da hepatite Delta [ou D] genótipo 3, encontrado só na Amazônia”, diz Mónica. Diferentemente dos outros vírus, o D é defeituoso e só invade células infectadas pelo B. “Essas informações são importantes para definir a melhor estratégia de tratamento e para o desenvolvimento de testes de diagnóstico mais específicos”, afirma Pinho.

O

mais eficaz, porém, é se proteger ao máximo do contágio. Uma das maneiras é evitar o contato com sangue e outros fluidos corporais, usando preservativo nas relações sexuais e limpando adequadamente objetos de uso cotidiano, como alicates e talheres. Até 100 vezes mais infeccioso que o vírus da Aids, o vírus da hepatite B está presente no sangue, no sêmen e na saliva. A forma mais frequente de transmissão no Brasil é a prática de sexo sem camisinha, embora também ela possa ocorrer pelo compartilhamento de objetos de uso pessoal ou um simples beijo. Outra maneira de evitar a hepatite B é a vacinação. “Desde os anos 1980 existe vacina segura e eficaz contra a hepatite B”, lembra Rosangela, “mas no

Brasil ainda imunizamos muito menos pessoas do que poderíamos”. Desde 1998 o Programa Nacional de Imunizações recomenda a vacinação logo após o nascimento. Hoje 85% das crianças brasileiras com até 18 meses de idade recebem as três doses. Mas essa taxa cai para menos de 30% entre os adolescentes, que estão para iniciar a vida sexual. “Muitos recebem a primeira dose, mas não tomam as demais”, comenta Gonçales, da Unicamp. Na opinião de Rosangela, é preciso adotar estratégias para lembrar a população. “A hepatite B é veiculada mais facilmente do que outras doenças sexualmente transmissíveis e não podemos esperar que as pessoas se lembrem de tomar todas as doses”, diz. A comercialização de uma vacina contra a hepatite B desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, baixou de US$ 90 para R$ 1,5 o custo das três doses. Neste ano o ministério ampliou a faixa etária de vacinação gratuita para até 24 anos – a partir de 2012 a vacina será oferecida para pessoas com até 29 anos. “Queremos imunizar toda a população nessa faixa”, diz Greco. Contra a hepatite C ainda não há vacina. Mas um resultado apresentado em 3 de agosto na Science Translational Medicine traz alguma esperança. O grupo de David Klatzmann, da Universidade Pierre e Marie Curie, na França, chegou a uma possível estratégia para produzir uma vacina recombinante. Os pesquisadores inseriram cópias de genes do vírus da hepatite C no vírus do sarampo e aplicaram em camundongos e macacos. Tanto o organismo dos roedores como o dos primatas produziram anticorpos contra uma ampla variedade de vírus da hepatite C. n Artigos científicos 1. KERSHNOBICH, D. et al. Trends and projections of hepatitis C virus epidemiology in Latin America. Liver International. 2. NAKATANI, S. M. et al. Development of hepatitis C virus genotyping by real-time PCR based on the NS5B region. PLoS One. v. 5 (4). Abr. 2010. 3. ALVARADO-MORA, M.V. et al. Molecular epidemiology and genetic diversity of hepatitis B virus genotype E in an isolated Afro-Colombian community. Journal of General Virology. v. 91, p. 501-8. 2010. PESQUISA FAPESP 187

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Exploração simulada Chega à reta final o projeto Mars500, que desde 2009 mantém seis pessoas em confinamento em Moscou, num ambiente semelhante ao de uma viagem espacial a Marte. No dia 14 de agosto, o projeto comemorou um marco. Os tripulantes superaram a marca de 437 dias de confinamento, que é o recorde de permanência no espaço obtido pelo cosmonauta russo Valeri Polyakov em uma de suas temporadas na estação orbital russa Mir, em 1994. O “Big Brother” marciano reúne três russos, dois europeus e um chinês, e inclui a simulação de 250 dias de viagem de ida, um mês na superfície e 240 “Caminhada” dias para o deslocamento de regresso. em Marte: longa viagem O objetivo é levantar dados sobre o comportamento humano que ajudem a planejar longas viagens espaciais. Em fevereiro, três dos tripulantes deixaram o módulo hermeticamente fechado, entraram numa cápsula de aterrissagem, simularam um pouso em Marte e fizeram caminhadas num ambiente parecido com o do planeta vermelho. A iniciativa é promovida pela Agência Espacial Europeia e o Instituto de Problemas Biomédicos, em Moscou, que sedia a experiência. O fim da jornada está previsto para o dia 5 de novembro.

A África no espaço A Nigéria lançou com sucesso a partir de uma base russa o NigeriaSat-X e o NigeriaSat-2, os primeiros satélites construídos por africanos. Eles são fruto de um convênio entre a Agência Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Espacial (NASRDA, na sigla em inglês) e a empresa britânica Surrey Satellite 22

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Technology. Vinte e seis engenheiros nigerianos passaram 18 meses na Inglaterra trabalhando no projeto, sob a supervisão da companhia. Segundo a agência BBC, os satélites serão utilizados no monitoramento de culturas agrícolas, no planejamento urbano e na gestão de desastres naturais. Estações no Reino Unido e na Nigéria vão receber os dados dos satélites.

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Devoção feminina As mulheres que trabalham com ciência, tecnologia, engenharia e matemática nos Estados Unidos ganham menos do que os homens – mas a diferença não é tão grande como em outras áreas, revelou um

relatório divulgado pelo Departamento de Comércio norte-americano. A média salarial dos homens é 14% maior que a das mulheres nas ocupações científicas e 21% superior nas demais. E quando os dados são ajustados para controlar outros fatores, como o nível educacional, o hiato de gênero encolhe para 12% na ciência da computação e matemática, 8% em ciências naturais e da vida e 7% nas engenharias. Uma explicação para o fenômeno, segundo a secretária interina de Comércio, Rebecca Blank, é que as mulheres são sub-representadas nessas áreas e a minoria que opta por trabalhar nelas talvez seja particularmente talentosa e motivada. “Talvez elas sejam especialmente assertivas e devotadas”, disse à revista Nature. Linda Rosen, presidente de uma entidade que estimula a educação nesses campos do conhecimento, diz que as mulheres talvez carreiem “algum talento intangível para o trabalho que afeta seus salários”. George Joch / Argonne National Laboratory

esa

Estratégias mundo

Pesquisadoras: diferença salarial menor


O navio Dayang Yihao (ao centro): exploração

a China anunciou investimentos para a pesquisa que podem dar impulso à exploração do fundo do mar, largamente motivada

Prevenção de epidemias O surto de Escherichia coli na Alemanha que matou mais de 30 pessoas em meados do ano levou a União Europeia a reservar € 12 milhões para pesquisa sobre epidemias de doenças infecciosas. O fundo, anunciado pela comissária europeia para pesquisa, Máire Geoghegan-Quinn, será destinado a um consórcio multinacional, composto por 14 grupos de sete países, com a missão de investigar lacunas no conhecimento sobre as formas como vírus e bactérias oriundos de animais e do meio ambiente espalham-se entre seres humanos. “Até agora os governos enfrentavam epidemias com estratégias de emergência, como se combate um incêndio”, disse o virologista holandês Thijs Kuiken, coordenador do projeto, a um blog da revista Nature. “Queremos ser capazes de entender as epidemias e antevê-las.” Além da E. coli, serão estudados outros microrganismos com potencial para desencadear surtos, como o vírus Ebola e a bactéria Yersinia pestis, E. coli: lacunas no conhecimento causadora da peste bubônica.

pelo interesse de explorar reservas minerais. Em três anos, deve entrar em operação um centro de oceanografia e geologia marinha em Qingdao, província de Shandong. Os pesquisadores também querem construir uma rede de observatórios no fundo do oceano no mar da China meridional, similar à criada pelos Estados Unidos e Canadá. As ambições chinesas têm sido reforçadas pelas pesquisas sobre as riquezas do oceano feitas pelos cientistas a bordo do Dayang Yihao, principal navio de exploração do país.

Janice Haney Carr / CDC

Aumentou a tensão entre China e Vietnã em torno da exploração do mar da China meridional, uma área de 3,5 milhões de quilômetros quadrados no Pacífico que vai de Cingapura até o estreito de Taiwan. Segundo a revista Nature, a chancelaria do Vietnã fez um protesto formal após a China anunciar que um de seus navios de pesquisa, o Tan Bao Hao, estava mapeando a atividade tectônica naquela região, cujo potencial de exploração de petróleo e outros minerais é disputado pelos dois países, além de vizinhos, como as Filipinas. Recentemente,

Hong Kong University of Science and Technology

Riqueza no Fundo do mar

Transgênicos autorizados Após um intervalo de sete anos, o Uruguai voltou a aprovar o cultivo de novas variedades de milho transgênico – sendo duas resistentes ao pesticida glifosato, da Monsanto, e três resistentes a insetos, da Dow AgroSciences e da Pioneer. Em 2006, o governo estabeleceu uma moratória de 18 meses na avaliação de transgênicos e, dois anos mais tarde, um decreto definiu uma nova forma para análise de risco de organismos geneticamente modificados. Treze pedidos foram apresentados para comercialização de soja e milho, e agora saiu a definição sobre cinco deles. Cecília Jones, diretora executiva do Instituto Nacional de Sementes, disse à agência SciDev.Net que as autorizações são consequência natural do decreto de 2008. “Ele já explicitava o interesse numa política de coexistência de espécies convencionais e transgênicas”, afirmou.

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Estratégias brasil

eduardo cesar

Chance de regularizar

Barco em construção A comunidade científica paulista contará em meados do próximo ano com o primeiro barco oceanográfico inteiramente construído no Brasil. A embarcação, que poderá operar na faixa de 200 milhas marítimas da fronteira litorânea, já começou a ser construída – uma cerimônia de “batimento de quilha” ocorreu no dia 12 de agosto, no estaleiro Inace, em Fortaleza (CE). Faz parte de um projeto de aumento da capacidade de pesquisa submetido à FAPESP pelo Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP), no âmbito do Programa Equipamentos Multiusuários (EMU). Além do barco, a USP também 24

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adquiriu um navio oceanográfico, rebatizado de Alpha Crucis, para pesquisas em alto mar, que está em reforma nos Estados Unidos (ver Pesquisa FAPESP nº 186). O barco em construção em Fortaleza terá 25 metros de comprimento e poderá transportar 20 alunos e dois professores, além da tripulação. “Com essa capacidade, poderemos dar conta de toda a demanda dos estudantes”, disse Rolf Weber, professor do IO-USP. O custo é de R$ 4 milhões, sendo R$ 3,2 milhões da FAPESP e o restante da USP.

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Começou a ser posta em prática, em julho, uma norma que permite a empresas e pesquisadores regularizarem sua situação quando descumprirem a legislação sobre acesso a recursos genéticos para fins científicos, de prospecção e de desenvolvimento tecnológico. A norma, criada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), vigora desde a última reunião do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), vinculado ao ministério. Acesso a recursos “É importante que a mudança seja genéticos: divulgada, porque até agora, quanlegislação polêmica do a situação era considerada irregular, não havia mecanismo para regularizar”, diz o biólogo Carlos Alfredo Joly, que é coordenador do Programa Biota-FAPESP e diretor do Departamento de Políticas e Programas Temáticos do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI). Com a mudança, a fabricante de cosméticos Natura, que no ano passado recebeu multas que totalizavam R$ 21 milhões por uso de recursos genéticos sem autorização, teve dois pedidos de exploração econômica de plantas aprovados no CGEN. A empresa, contudo, permanece cética. Segundo Rodolfo Guttilla, diretor de Assuntos Corporativos da Natura, sem modificar a medida provisória de 2001 que regulou o tema as medidas serão apenas paliativas. "A legislação exige que a empresa peça autorização prévia, mesmo sem saber se a pesquisa levará a um produto que irá ao mercado", disse à Agência FAPESP.

O projeto do barco: plataforma de pesquisa


USP homenageia Celso Lafer

O reitor Grandino Rodas entrega a medalha a Lafer

Folha, o prêmio busca reconhecer a produção de conhecimento na prevenção e combate ao câncer. Brentani é diretor-presidente do Hospital do Câncer A.C. Camargo e coordenador do Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. Graduado pela Faculdade de Medicina da USP, da qual é professor titular emérito, foi também diretor do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Como pesquisador, atua principalmente com estudos relacionados ao papel do nucléolo no processamento de mRNA, à caracterização de mRNAs

Ricardo Renzo Brentani, diretor-presidente da FAPESP, recebeu no dia 5 de agosto o 2º Prêmio Octavio Frias de Oliveira, na categoria Personalidade de Destaque. Promovido pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, em parceria com o Grupo

Brentani: destaque

eduardo cesar

Na trincheira contra o câncer

de colágenos e à adesão celular e metástase. Na categoria Pesquisa em Oncologia, o prêmio foi concedido a José Barreto Carvalheira e Guilherme Zweig Rocha, do Laboratório de Oncologia Molecular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

A Reitoria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) lançou um site bilíngue para divulgar concursos e processos seletivos para contratação de docentes. A página, em inglês e português, lista os concursos e explica como funciona o Programa Professor Visitante, que oferece a pesquisadores com experiência acadêmica internacional a oportunidade de atuar na universidade por um período de um a dois anos. “A criação do site se insere no esforço de divulgar oportunidades na Unicamp e ampliar o número de candidatos qualificados do Brasil e do exterior que se inscrevem para os concursos”, afirma o pró-reitor de Pesquisa, Ronaldo Pilli.

Jober Sobczak / ufscar

eduardo cesar

O presidente da FAPESP, Celso Lafer, recebeu na Universidade de São Paulo (USP) no dia 30 de agosto a medalha Armando de Salles Oliveira, criada em 2008 para homenagear pessoas, entidades e organizações que contribuem para valorizar a USP. A condecoração leva o nome do governador de São Paulo que assinou o decreto de criação da universidade, em 1934. Celso Lafer é professor titular da Faculdade de Direito da USP, onde estudou e leciona desde 1971 (Direito Internacional e Filosofia do Direito). Foi ministro das Relações Exteriores em 1992 e novamente em 2001 e 2002, além de ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio em 1999. “A medalha tem como finalidade homenagear os que contribuíram para a valorização da USP. Não sei se contribuí, mas sei que empenhadamente valorizei, em todas as minhas etapas, primeiro como estudante e depois como docente, a minha vida uspiana, que está no cerne do meu percurso e do seu significado”, disse Lafer.

Oportunidades em site bilíngue

prêmio de reportagem Pesquisa FAPESP mais uma vez esteve entre os finalistas do Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica, organizado pelas entidades Conservação Internacional e SOS Mata Atlântica. Maria Guimarães, editora da Pesquisa FAPESP on-line, ganhou o segundo lugar na competição na categoria Impresso com a reportagem "Marionetes de oito patas" (foto). Na edição de 2010, Maria recebeu os dois primeiros prêmios. Nos 11 anos do concurso, foi o nono prêmio recebido por Pesquisa FAPESP, que também coleciona cinco menções honrosas. Publicada em fevereiro, "Marionetes de oito patas" conta o trabalho dos biólogos Marcelo Gonzaga e Jober Sobczak com vespas que assumem o controle de aranhas para se reproduzirem. A vencedora na categoria Impresso, que teve 75 inscritos, foi Giovana Girardi, da Unesp Ciência, com a reportagem "O Código Florestal ao arrepio da ciência". Também foram premiados trabalhos para TV e para a internet. PESQUISA FAPESP 187

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O Etanol

QUE MOBILIZA

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Conferência exibe o esforço do Brasil e de outros países em busca de novas formas de produzir biocombustíveis


[ Bioenergia ]

política científica e tecnológica

Carlos Fioravanti, de Camp os d o Jordão fotos Eduard o Cesar

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Momento raro: cana florida na serra da Mantiqueira

ez imensos cartazes com fotos de cana-de-açúcar pendurados no teto amenizaram a formalidade do saguão do centro de convenções de Campos do Jordão, cidade montanhosa a 173 quilômetros de São Paulo, e lembravam que o Brasil detém a mais alta eficiência da tecnologia de produção de etanol a partir da cana-de-açúcar no mundo. Ainda há uma distância confortável com outros países, mas as apresentações e as conversas que ocuparam o saguão e as salas anexas ao longo dos quatro dias da 1a Conferência Brasileira de Ciência e Tecnologia em Bioenergia (Brazilian BioEnergy Science and Technology Conference – BBEST), em agosto, indicaram que a corrida por novas formas de produção de mais biocombustíveis – de gramíneas e de outras plantas como sorgo, soja, batata-doce e tabaco – se intensificou. No Brasil e em outros países, plantas piloto ou de demonstração, ampliando a escala de produção de tecnologias que se mostraram bem-sucedidas em laboratório, estão em construção ou já em funcionamento – uma delas, na Dinamarca, usando palha de milho. A BP (British Petroleum) está construindo na Flórida, nos Estados Unidos, a primeira fábrica de etanol celulósico, que deve entrar em operação comercial em 2013, usando como matéria-prima uma gramínea nativa, o capim-elefante. “Todas as alternativas apresentadas até agora têm um custo econômico e/ ou ecológico maior que o sistema brasileiro de fermentar a sacarose da cana”, comentou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, em uma entrevista ao jornal O Globo. Segundo ele, a tecnologia brasileira de produção do álcool de cana-de-açúcar não deve ser superada tão cedo. Na conferência de abertura, o físico José Goldemberg reiterou: “A produção de etanol de milho nos Estados Unidos usa muita energia fóssil, o que torna a produção brasileira, cuja matéria-prima é a cana-de-açúcar, muito mais vantajosa do ponto de vista econômico e da sustentabilidade, uma vez que as usinas produzem energia a partir do bagaço da cana e são praticamente autossuficientes”. Neste mês de setembro, a usina piloto do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, deve entrar em operação. Seu propósito é desenvolver a produção de etanol celulósico – ou de segunda geração – em reatores de 100 a mil litros. “Estamos trabalhando intenPESQUISA FAPESP 187

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Montanhas de bagaço (ao lado, palha de cana): fonte de etanol, se os fungos ajudarem

samente com empresas do setor”, disse Marcos Buckeridge, diretor científico do CTBE e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol. As equipes das empresas também estão se movimentando. A Oxiteno desenvolveu um aditivo para usar com etanol em motores a diesel e agora trabalha para ampliar a escala de produção e iniciar a comercialização o mais breve possível. A Amyris Brasil aposta na produção de biodiesel e de bioquerosene para aviões transformando o caldo da cana-de-açúcar por meio de microrganismos geneticamente modificados. Os trabalhos do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) conseguiram integrar dois grupos de pesquisadores antes distantes – os especialistas em melhoramento clássico, de um lado, e os de análise genômica, de outro. “Estamos superintegrados e fazendo experimentos que nunca tínhamos imaginado”, afirmou Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e uma das coordenadoras do Bioen. Um dos estudos foi a análise de 620 genótipos das variedades de cana cultivadas pela equipe da Rede Interuniversitária 28

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para o Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), um consórcio de universidades federais dedicado ao melhoramento genético de cana, em colaboração com empresas (ver na página 66 a reportagem “Viva a diferença”, com informações sobre o programa de melhoramento genético da cana-de-açúcar do Instituto Agronômico). A análise indicou quais variedades poderiam acumular açúcar e fazer fotossíntese ao mesmo tempo, sendo mais produtivas – normalmente, o acúmulo de açúcar no colmo inibe a fotossíntese da cana. Produtividade – O Centro Paulista de

Pesquisa em Bioenergia, anunciado em dezembro de 2009, avança, com investimentos conjuntos do governo paulista, das universidades estaduais e da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP no 168). Segundo Luís Cortez, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador adjunto de programas especiais da FAPESP, as universidades estão fazendo os editais para selecionar e contratar os pesquisadores e, ao mesmo tempo, construindo os laboratórios do novo centro. “A previsão é que até o final do próximo ano os laboratórios já estejam prontos para os pesquisadores começarem a trabalhar”, diz ele.

O objetivo geral dessas iniciativas é o mesmo: ampliar a produtividade de biocombustíveis no Brasil, que agora é o segundo país, não mais o primeiro, em volume de produção de etanol. Desde 2005 os Estados Unidos assumiram a dianteira com seu etanol de milho, embora com produtividade menor e custos maiores. Rubens Maciel Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que integra o Bioen, disse que a produtividade de etanol por hectare por ano no Brasil poderia passar dos atuais 6 mil litros para 14 mil litros “com a adoção de tecnologias inovadoras”. Ele apresentou duas: a fermentação a vácuo e o uso de enzimas produzidas pelo fungo Aspergillus niger para degradar a celulose do bagaço de cana. Elba Bon, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estima ser possível extrair mais 36,5 litros de etanol por tonelada de cana, de onde já se extraem 80 litros de etanol, usando 12% do volume de bagaço (a maior parte é queimada para gerar eletricidade nas usinas) e 50% da palha de cana (metade permanece sobre o solo). “Podemos dobrar a produção sem aumentar a área plantada usando também resíduos de milho e de trigo.” Seu grupo da UFRJ desenvolveu novas técnicas de pré-tratamento de bagaço e palha, por meio da moagem seca ou com água. A biomassa moída é colocada sob a ação de enzimas que agem sobre a celulose e produzem xarope de glicose, que poderia entrar na linha de produção regular de etanol e lignina. “Precisamos de um método de separação contínua, em escala maior e economicamente viável”, comentou. A equipe avaliou vários fungos que produzem enzimas que degradam a celulose e identificou uma linhagem bastante promissora de Tricoderma trazida da Amazônia. Agora o desafio – desse e de outros grupos no Brasil e em outros países – é produzir enzimas em grande quantidade e a baixo custo. Os representantes de centros de pesquisa, do governo e de empresas dos Estados Unidos mostraram que têm metas ambiciosas. “Podemos nos tornar os melhores”, afirmou Nicholas Carpita, pesquisador da Universidade Purdue, que trabalha em métodos catalíticos de produção de etanol celulósico. “Há


muitas oportunidades para aumentar a produção e a diversificação de biocombustíveis”, disse Chris Somerville, diretor da Energy Biosciences Institute (EBI), empresa de pesquisa em biocombustíveis criada em 2007 na Universidade da Califórnia em Berkeley (ver entrevista a seguir). Bruce Dale, da Universidade Estadual de Michigan, apresentou um método de pré-tratamento de biomassa usando amônia quente concentrada, que, segundo ele, já se encontra em fase piloto de testes e se mostrou “muito eficiente” para retirar açúcares de resíduos agrícolas como palha de trigo e de duas gramíneas nativas dos Estados Unidos, a switchgrass e a Miscanthus. Foco único – “Nosso objetivo é catalisar

a transformação do sistema de energia e assegurar a liderança dos Estados Unidos em energia limpa”, disse Sharlene Weatherwax, diretora de ciências biológicas e ambientais do Departamento de Energia (DOE). O DOE procura integrar a pesquisa básica e tecnológica para que as descobertas científicas resultem em aplicações comerciais. O Office of Science, ao qual ela responde, apoia 27 mil estudantes de pós-graduação, 26 mil pesquisadores em instalações multiusuários como laboratórios e plantas piloto, 300 instituições acadêmicas e 17 laboratórios próprios de pesquisa. “Há um foco único e um trabalho multidisciplinar, baseado em uma ciência de equipes”, afirmou.

O DOE divulgou em agosto o documento U.S. billion-ton update: biomass supply for a bioenergy and bioproducts industry, organizando as ações de universidades, empresas e governo para ampliar a produção de combustíveis a partir de biomassa, inclusive resíduos urbanos e florestais, nos próximos 20 anos. Também em agosto o presidente Obama anunciou que os departamentos (equivalentes a ministérios no Brasil) de Agricultura, Energia e Marinha poderão investir até US$ 510 milhões nos próximos três anos, em parceria com empresas, para desenvolver biocombustíveis para embarcações militares e transportes comerciais.

Na Holanda, a equipe da BE-Basic, consórcio de 26 universidades e empresas, trabalha em uma planta piloto, prepara uma planta de demonstração de aproveitamento de biomassa e amplia as colaborações internacionais – a mais recente, anunciada no BBEST, com pesquisadores brasileiros, por meio da FAPESP. Na Dinamarca, o grupo Dong Energy inaugurou em 2009 a Inbicon, uma refinaria que transforma 30 mil toneladas de palha de milho por ano em 5,4 milhões de litros de etanol celulósico e 13 mil toneladas de pellets de lignina, usados para alimentação animal. Henning Jorgensen, da Inbicon, apresentou a refinaria, que, ele disse, poderia usar bagaço de cana; em seguida, um pesquisador da plateia comentou que o Fungos fazem enzimas objetivo deles não era processar bagaço, mas vender a que quebram a tecnologia para o Brasil. “Estamos perdendo comcelulose. O problema petitividade”, disse Marcos Jank, presidente da União da é produzir as enzimas Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Segundo ele, os cusem grande quantidade tos de produção subiram 35% desde 2005, por causa da competição por terras e aumento e a baixo custo nos custos com mão de obra e fertilizantes. Jank disse que está procurando tecnologias para reduzir custos, mas tem encontrado dificuldades para avançar. “O volume de pesquisa é pequeno. Sim, 500 pesquisadores estão aqui, mas poderiam estar mobilizados em um ou dois grandes projetos. A pesquisa ainda é fragmentada em pequenos projetos. Precisamos de grandes projetos em sistematização da cana, uso de palha e fermentação. Temos problemas urgentes para resolver.” Maciel Filho enfatizou a importância de articular a cadeia de conhecimentos em ciência e tecnologia para melhorar a produção e produtividade do etanol no Brasil. “Nossa posição é boa, mas será desafiada em breve”, comentou Francisco Nigro, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Nigro, que participou do desenvolvimento do carro a álcool, também enfatizou a necessidade de incentivo à pesquisa, a políticas públicas, à integração de equipes �� e ao consumo de etanol. PESQUISA FAPESP 187

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entrevista Chris Somerville

Alternativas em construção Universidades, empresas e governo agem em conjunto para fazer biocombustíveis

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hristopher Roland Somerville, que enveredou pela botânica e genética logo depois de se graduar em matemática, dirige a Energy Biosciences Institute (EBI), um centro de pesquisas da Universidade da Califórnia em Berkeley que conta com um financiamento de US$ 500 milhões do Departamento de Energia dos Estados Unidos e da BP (British Petroleum) para os próximos 10 anos. Sua missão, à frente de uma equipe de quase 500 pessoas, é desenvolver a indústria de etanol celulósico nos Estados Unidos. ■■Poderia contar um pouco do que o senhor fez em Michigan? ——Comecei meu trabalho na Universidade Estadual de Michigan em 1982. Meu interesse era desenvolver a Arabidopsis como organismo modelo. Estudei a genética básica e organizei uma colaboração internacional para estudar o genoma dessa planta, que foi a primeira a ser sequenciada. Foi um trabalho muito bem-sucedido. Publiquei 240 artigos e tive mais de 100 estudantes de pós-graduação e pós-doutorado. A Arabidopsis se tornou o organismo mais amplamente utilizado em pesquisas de plantas. Deve haver cerca de 16 mil pessoas trabalhando com essa planta hoje. Não fui apenas eu, claro. ■■E em Stanford? ——Na Universidade Stanford, para onde fui em 1994, continuei meu trabalho em genética de Arabidopsis e por 15 anos trabalhei em metabolismo de lipídeos. Em meados de 1990 me interessei em ver como a celulose era feita, para desenvolver materiais recicláveis e combustíveis, que não eram viáveis usando lipídeos. Meu grupo identificou

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as proteínas e os genes envolvidos na produção de celulose, o material mais abundante no planeta. Conseguimos fazer mutações em vários genes e ver como as moléculas da celulose eram feitas em tempo real. Nossa meta é otimizar a produção de celulose para vários usos. Em 2004 o Departamento de Energia me pediu para organizar um estudo sobre o que seria necessário para desenvolver uma indústria de etanol celulósico. Reunimos cientistas, discutimos o problema e publicamos um livro, Breaking the biological barriers to cellulosic ethanol. O Departamento de Energia e a BP se interessaram em desenvolver centros de pesquisas sobre etanol celulósico. Em Stanford não era possível, mas Berkeley, que é muito perto, se interessou. Em meados de 2000 havia um grande centro de pesquisa em Berkeley, o Lawrence Berkeley National Laboratory, que era liderado por Steve Chu, atualmente o secretário de Energia dos Estados Unidos. Steve me pediu para ir a Berkeley e desenvolver uma grande pesquisa sobre etanol celulósico com base no estudo do Departamento de Energia. Comecei a ir para Berkeley em 2004, 2005, e a trabalhar com alguns colegas, em particular Jay Keasling. Keasling e eu escrevemos as propostas e conseguimos um financiamento de US$ 25 milhões do Departamento de Energia para construir o JBEI, Joint BioEnergy Institute. Keasling é o diretor do JBEI, onde trabalham 180 pessoas. A BP também concordou em financiar um instituto em Berkeley, com financiamento de US$ 50 milhões por ano, o EBI, Energy Biosciences Institute, que eu lidero. É uma situação engraçada. De repente temos dois institutos que fizemos ao mesmo tempo, do nada. O EBI tem 123 professores em Berkeley e Illinois, 180 estudantes de pós-graduação e 150 pós-doutorandos. Incluindo todos, são 480 pessoas; cerca de 450 trabalham em algum aspecto da pesquisa em biocombustíveis de celulose.


■■Uma de suas metas é trocar o milho por outras gramíneas para fazer etanol. ——Sim. Não usamos mais milho, nossa meta é usar plantas que possam ser aproveitadas por inteiro e cresçam em terras que não são aproveitadas pelo milho. Essas gramíneas perenes são muito atraentes por crescerem em terrenos inclinados, enquanto o milho e a soja não crescem. Gramíneas e árvores, estamos interessamos também em árvores. Estamos nos preparando para anunciar como cultivar e processar Miscanthus; não só Miscanthus. Temos locais de pesquisa em 16 fazendas nos Estados Unidos e interagimos com 30 jardins botânicos, que nos enviam outras espécies, que estamos testando por todo o país.

eduardo cesar

■■Como é o acordo da EBI com a BP? ——O conhecimento é aberto, publicamos tudo. As patentes são da universidade e a BP tem uma licença da universidade; a BP tem automaticamente uma licença não exclusiva e tem o direito de comprar uma licença de uso exclusivo.

■■Qual a perspectiva de produção de etanol celulósico? ——A BP está construindo uma fábrica em escala comercial de etanol celulósico na Flórida, que deve entrar em operação em 2013. Acreditamos que vai funcionar porque a BP tem uma planta de demonstração, de US$ 130 milhões, em Louisiana. Todos os processos de produção de etanol estão sendo testados, e nossa meta na EBI é fazê-los funcionar melhor. É muito difícil determinar os custos com precisão, mas é provável que a produção de etanol celulósico tenha de ser subsidiada no início, porque os custos de capital são altos. Estamos trabalhando em muitos tópicos. Temos economistas, que trabalham para determinar que tipos de materiais podem ser usados para produzir combustíveis, que tipos de contratos temos de fazer com os produtores, coisas assim. Temos advogados, que veem políticas públicas e regulações; ecólogos, que indicam como crescer as culturas de modo sustentável, preservando a biodiversidade; engenheiros mecânicos, que veem a lo-

gística para colher, compactar e transportar biomassa; agrônomos, que examinam como gerenciar as plantações; patologistas, trabalhando em doenças que podem atingir as plantas; microbiologistas, que procuram melhorar as técnicas de fermentação; engenheiros químicos, que trabalham nos processos de produção; e enzimologistas, descobrindo melhores enzimas. Tentamos ver todo o campo ao mesmo tempo, integrando os tópicos, porque nessa área tudo está interconectado. ■■Como o senhor faz para motivar as pessoas a trabalharem juntas? ——Não é um grande problema, porque eu controlo o dinheiro. Quando peço para trabalharem juntas, são bastante prestativas. Facilitamos o trabalho em grupo organizando workshops entre equipes diferentes para entenderem o que fazem e encontrarem metas comuns. Cientistas precisam ter crédito pelo que fazem, temos de prestar muita atenção nisso. Temos de respeitar a contribuição de cada um deles.

■■Quando o etanol celulósico estará disponível? ——Hoje já temos em pequena quantidade, mas a BP começará a operar a primeira fábrica em 2013, acho que a Du Pont também. Em 20 anos, 300 usinas de etanol celulósico devem estar em funcionamento; é o que o governo dos Estados Unidos espera. A expectativa é produzir 22 bilhões de galões de etanol por ano em 2020. É bastante, mas depois que a primeira fábrica começar a funcionar bem, construir outras será relativamente fácil. ■■O senhor acredita que ainda é possível melhorar a eficiência da produção do etanol de milho? ——Sim. O etanol de milho tem tido ganhos contínuos de eficiência. Uma das mais recentes são as enzimas que não exigem o cozimento do amido, reduzindo os custos, e já estão em escala comercial. Usaremos menos milho quando conseguirmos aproveitar mais biomassa. Acreditamos que a tecnologia de produção de etanol celulósico virá ao Brasil em breve. n

Carlos Fioravanti PESQUISA FAPESP 187

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[ Produção científica ]

Os artigos quentes do Brasil Estudo aponta os temas em que a ciência do país alcançou visibilidade internacional Fabrício Marques ilustração Nelson Provazi

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ue parcela da pesquisa brasileira consegue alcançar uma ampla visibilidade internacional? Um estudo feito por Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo, conseguiu esboçar uma resposta a essa pergunta, ao levantar a lista de artigos brasileiros publicados na base de dados da empresa Thomson Reuters entre 2001 e 2005 que obtiveram mais de 200 citações – trata-se de um sinal de prestígio, pois significa que cada um desses papers foi citado como referência em ao menos outros 200 artigos publicados nos anos seguintes. A lista reúne 123 artigos, mas Zago aprofundou o levantamento e quis saber quais deles podiam efetivamente ser considerados uma contribuição do país à ciência no período. “Muitos trabalhos traziam apenas um ou dois autores brasileiros entre um grande número de estrangeiros, e a iniciativa estava fora do Brasil”, explica Zago. Ele chegou a um conjunto de 26 papers, divididos pelas áreas de medicina (7 artigos), química (5), física (5), genômica (2), computação (2), bioquímica (2), engenharia (1), genética (1) e ecologia (1). O estudo foi publicado no livro Inovações tecnológicas no Brasil – Desempenho, políticas e potencial, editado pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). O destaque da lista é Jairton Dupont, professor do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor principal de três dos 26 hot papers da lista. Em 1992, o grupo de Dupont desenvolveu novos sais fundidos, líquidos à temperatura ambiente, altamente estáveis, que encontraram ampla aplicação na indústria química. A

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contribuição inclui a produção de diversos líquidos iônicos, garantindo aplicações em vários campos da ciência. Dois dos três artigos são obras de revisão publicadas na revista Chemical Reviews, que fizeram uma análise da bibliografia acerca de temas de pesquisa do grupo de Dupont: um tipo de reação de catálise na química organometálica, área de pesquisa que liga as químicas orgânica e inorgânica, e o potencial de um precursor de catálise, o paladaciclo, que tem aplicações diversas, do desenvolvimento de materiais para a obtenção de cristais líquidos à produção de agentes quimioterápicos contra tumores. Artigos de revisão são, usualmente, muito citados, pois organizam as informações de um tema e servem de guia para estudantes e pesquisadores. “Esses artigos repercutiram por envolverem temas de interesse crescente mas, principalmente, por fazerem uma avaliação crítica e densa da bibliografia”, diz Dupont. Já o terceiro artigo, publicado no Journal of the American Chemical Society, envolve uma descoberta do grupo de Dupont: a possibilidade de usar nanopartículas metálicas na catálise de líquidos iônicos. “O artigo permitiu abrir um novo olhar sobre a matéria, ao mostrar que se pode empregar em solução técnicas analíticas antes restritas ao estado sólido”, diz Dupont. Ele chama a atenção, contudo, para outro estudo de sua autoria, publicado em 2004, que não entrou na lista apesar da elevada repercussão. O artigo propôs um modelo original para descrever líquidos iônicos. Rejeitado por grandes periódicos internacionais, foi publicado no Journal of the Brazilian Chemical Society. “Há preconceito com artigos de fora dos Estados Unidos que proponham


abordagens novas”, diz Dupont. “Há até casos de vencedores do Nobel que tiveram de publicar seus achados em revistas menos conhecidas. É importante que os jovens pesquisadores entendam que isso existe e não se sintam constrangidos em tentar mudar paradigmas.” A lista compilada por Zago tem o mérito de mapear contribuições originais da ciência brasileira, mas o próprio professor alerta para certas limitações do levantamento. É natural que artigos de medicina sejam a maioria entre os altamente citados, pois se trata de uma área especialmente produtiva no Brasil e do mundo. O número de citações é influenciado pelo tamanho da comunidade científica envolvida e por sua produtividade. Em outras áreas, com produção acadêmica menor, um artigo já tem repercussão extraordinária quando recebe 50 ou 100 citações. Um exemplo citado por Zago é o da odontologia, em que o Brasil tem destaque mundial, ocupando o segundo lugar em número de artigos publicados e em citações, mas que não aparece na lista dos papers altamente citados. A repercussão restrita de pesquisas brasileiras em ciências sociais e humanidades é atribuída ao fato de tratarem de assuntos de temas de interesse local e, em boa medida, serem publicadas em português. OS FRUTOS DO GENOMA

Dois artigos da lista são frutos do Programa Genoma FAPESP, iniciativa lançada em 1997 que criou uma rede virtual de 60 laboratórios dedicada a sequenciar o genoma de vários organismos. Um exemplo é um artigo publicado na revista Nature em maio de 2002 que mapeou os genes da Xanthomonas citri, PESQUISA FAPESP 187

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de Dublin, na Inglaterra, Barreto criou uma aplicação prática para um conceito matemático e apresentou um conjunto de algoritmos voltados para a implementação de sistemas de criptografia. O artigo foi publicado no livro Advances in cryptology – Crypto 2002.

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causadora do cancro cítrico, e comparou os resultados ao sequenciamento da bactéria Xanthomonas campestri. O estudo foi feito pelo mesmo grupo que sequenciou o primeiro genoma de um patógeno, o da Xylella fastidiosa, causadora da praga do amarelinho, capa da revista Nature em 2000. “O estudo com a Xanthomonas foi a continuação do trabalho com a Xylella, mas foi muito mais complexo, pois envolvia dois genomas e patógenos mais complexos”, diz Fernando Reinach, um dos autores do artigo. Parte dos 65 pesquisadores que assinam o paper saiu da academia e foi trabalhar com pesquisa em instituições privadas, caso da primeira autora, Ana Claudia Rasera da Silva, atualmente na empresa DuPont. O artigo, com 565 citações, superou o da Xylella, que teve 529 e não aparece na lista feita por Zago por haver sido publicado antes de 2001. Outra contribuição do programa ao rol dos artigos altamente citados foi liderada por Sérgio Verjovski-Almeida, professor do Instituto de Química da USP. Publicado em 2003 na Nature Genetics, o artigo mostrou os resultados de um esforço de pesquisa que determinou as sequências de 92% dos 14 mil genes do Schistosoma mansoni, parasita causador da esquistossomose. Mas o que faz um artigo ser altamente citado? Um denominador comum é a contribuição original do artigo, seja na forma de novos achados 34

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ou na interpretação dos dados existentes, como acontece em alguns textos de revisão. Com 547 citações na base ISI, um artigo assinado por Fernando Von Zuben, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Leandro de Castro, da Universidade Mackenzie, fez uma proposta pioneira na área de Sistemas Imunológicos Artificiais, que se caracteriza pelo interesse em reproduzir princípios e mecanismos do sistema imunológico para resolver problemas de engenharia de computação. O paper foi o primeiro a formalizar computacionalmente o princípio da seleção clonal, que, na medicina, explica como linfócitos selecionam antígenos para destruição. O princípio, diz Von Zuben, foi proposto nos anos 1950 e representou um marco da imunologia. O pesquisador atribui a popularidade do artigo à funcionalidade dos algoritmos propostos e à qualidade do periódico, chamado IEEE Transactions on Evolutionary Computation. “Os algoritmos cumprem bem o papel de importar para o computador habilidades presentes no sistema imunológico, como memória e resposta de adaptação a estímulos”, afirma. Outra contribuição original em ciência da computação foi feita por Paulo Barreto, do Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (Larc) da Escola Politécnica da USP. Em parceria com pesquisadores das universidades Stanford, nos Estados Unidos, e

grupo do biólogo José Alexandre Felizola Diniz Filho, da Universidade Federal de Goiás, desenvolveu técnicas para evitar erros estatísticos que acontecem quando se faz a relação entre dados ecológicos, como a riqueza da biodiversidade, e localizações geográficas. “Foi interessante, pois aconteceu o inverso do que ocorre normalmente, em termos de transferência de ciência e tecnologia”, diz Diniz Filho. “Começamos a aplicar as técnicas em dados macroecológicos e repassamos isso para grupos de pesquisa no resto do mundo.” Um professor da Universidade da Califórnia, Brad Hawkins, veio ao Brasil aprender as técnicas em 2002 e estimulou o grupo a escrever o paper, que já recebeu mais de 200 citações. O conhecimento resultou num software de livre distribuição, o SAM (spatial analysis in macroecology). MITOCÔNDRIAS E IMUNIDADE

A originalidade do artigo, contudo, não é condição suficiente para um desempenho extraordinário nas citações. Ajuda bastante quando o tema de pesquisa vive uma efervescência e está na agenda das revistas científicas internacionais. Décadas de dedicação a um assunto que vem ganhando importância na bioquímica explicam as quase 400 citações de um artigo publicado na revista FEBS Letters pelo grupo de Anibal Vercesi, professor da Unicamp e um dos coordenadores de área em Biologia da FAPESP. O paper apresenta um modelo para o funcionamento das mitocôndrias em situação de estresse oxidativo. Num pós-doutorado que fez na Universidade Johns Hopkins, entre 1976 e 1977, Vercesi descreveu resultados que mais tarde se tornaram relevantes para explicar o papel das mitocôndrias na morte celular. Demonstrou, com o grupo norte-americano, que os íons de cálcio são sinalizadores para a abertura de um poro na membrana mitocondrial (poro de transição de permeabilidade) que desencadeia o processo de morte celular. Nos últimos


anos, avançou nessa vertente esmiuçando como esse mecanismo é acionado em situação de estresse, quando a célula sofre a agressão de radicais livres. O papel das mitocôndrias em doenças vem se tornando alvo de investigação frequente. Vercesi e dois ex-alunos, Alicia J. Kowaltovski, hoje no Instituto de Química da USP, e Roger F. Castilho, da Unicamp, escreveram o paper. “O artigo é resultado de pesquisa feita no Brasil. Mas gosto de lembrar meus alunos que provavelmente a linha de investigação não existiria se eu não tivesse feito o pós-doutorado nos Estados Unidos”, diz. Pioneirismo e oportunidade explicam o grande número de citações de um artigo brasileiro publicado em 2001 no Journal of Imunology, acredita o chefe do grupo responsável pela pesquisa, o imunologista Ricardo Gazzinelli, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fundação Oswaldo Cruz. “Houve uma mudança de enfoque na pesquisa em imunologia no final dos anos 1990, com as atenções voltadas para os receptores da imunidade inata”, diz, referindo-se aos mecanismos de defesa inicial contra infecções, aqueles que atacam prontamente os invasores, e seus receptores que reconhecem agentes infecciosos. “Nosso trabalho foi o primeiro que se dedicou a estudar o papel desses receptores nas infecções com protozoários e nos tornamos referência

nisso. A área cresceu muito na imunologia”, afirma. O grupo de Gazzinelli continua trabalhando nessa vertente, tanto com o protozoário estudado no artigo, o Trypanosoma cruzi, causador do mal de Chagas, quanto com o plasmodium, o parasita da malária, mas também busca aplicações, em imunoterapias e no desenvolvimento de adjuvantes imunológicos empregados em formulações de vacinas.

A originalidade de um artigo não é suficiente para gerar citações. Ajuda muito quando ele envolve um assunto em efervescência

COR E ANCESTRALIDADE

Alguns trabalhos da lista chamam a atenção pela repercussão que amealharam também entre o público leigo. Um artigo publicado em 2003 na revista PNAS aponta a impropriedade do conceito de raça do ponto de vista biológico ao demonstrar que, no Brasil, a correlação entre cor e ancestralidade genômica era muito frágil. “Em outras palavras, mostrou que, em nível individual, é praticamente impossível inferir a ancestralidade genômica de um brasileiro a partir de sua cor e vice-versa”, diz seu autor, o geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, responsável por uma série de estudos sobre a composição genética da população brasileira. Segundo ele, a pesquisa repercutiu porque abordou um tópico de interesse geral. “Mas as citações têm mais a ver com aspectos científicos e com a novidade de nossos achados”, diz.

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á um grupo de artigos que evidencia a contribuição da pesquisa médica do país para o desenvolvimento de terapias e medicamentos. Dois artigos publicados em 2001 na revista Circulation, de autoria do cardiologista José Eduardo Sousa, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, apresentaram os primeiros resultados de um estudo clínico, realizado com 30 pacientes brasileiros, que tiveram grande impacto no tratamento de portadores de aterosclerose, doença inflamatória em que ocorre a formação de placas dentro dos vasos sanguíneos. Os papers registraram o alto grau de eficácia de um procedimento que hoje se tornou corriqueiro: a aplicação de uma droga, a rapamicina, nos stents, as próteses usadas para manter abertas as coronárias lesionadas. “Os artigos, que mostravam pela primeira vez a evolução dos pacientes logo após o procedimento e um ano depois dele, evidenciaram que a rapamicina, quando liberada ao longo dos primeiros 30 dias, conseguia evitar na maioria dos casos a formação de um tecido cicatrizante no local do stent que frequentemente fazia a artéria entupir de novo”, diz Sousa, pioneiro no Brasil na utilização de angioplastia, que é o esmagamento da placa por meio de um balão, e dos stents. O desenvolvimento e o teste de uma vacina contra quatro dos tipos mais

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prevalentes do vírus do papilomavírus humano (HPV), hoje disponível comercialmente, também resultaram num artigo altamente citado, cuja autora principal é a médica e pesquisadora Luisa Villa, diretora da filial brasileira do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. “Foi a primeira demonstração da vacina com os quatro tipos, atestando sua imunogenicidade e eficácia em humanos, e teve um impacto enorme”, diz ela. Em 90% dos casos a vacina preveniu o aparecimento de verrugas genitais e em 86% evitou o surgimento de infecções (ver Pesquisa FAPESP nº 157). Publicado em maio de 2005 na revista Lancet Oncology, o estudo foi patrocinado pelo laboratório Merck, criador da vacina, e envolveu pesquisadores de países como Estados Unidos e Noruega. Mas os quatro primeiros autores são cientistas brasileiros, de instituições como o Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, o Hospital A.C. Camargo e a Unicamp, sob a liderança de Luisa Villa. “A Merck entendeu que a participação dos pesquisadores e dos pacientes brasileiros teve papel preponderante na realização do teste clínico”, afirma. Segundo ela, o trabalho foi importante para agilizar a utilização da vacina no Brasil.

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m estudo epidemiológico que relacionou o desenvolvimento de diabetes tipo 2 com a presença de um conjunto de marcadores inflamatórios, mesmo em níveis modestos, tornou-se um dos artigos altamente citados do grupo do pesquisador Bruce Duncan, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado na revista Diabetes, o estudo lançou mão de uma base de dados norte-americana, que acompanhou 15 mil pessoas por vários anos em busca das causas da aterosclerose, suas sequelas e fatores de risco. “Nosso estudo só foi possível graças a uma colaboração que eu e minha esposa mantemos com investigadores norte-americanos há duas décadas”, afirma Duncan, que é casado e mantém parceria científica com a epidemiologista Maria Inês Schmidt, vencedora do Prêmio Conrado Wessel, na categoria Medicina, em 2003. Para realizar o estudo em questão, foram analisadas amostras de plasma estocadas de 1.153 norte-americanos, divididos em dois grupos: um com diabetes e outro sem a doença. O gru-

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po da UFGRS é responsável por um conjunto de estudos, feitos sobre essa mesma base de dados, segundo o qual o diabetes tem origens metabólicas comuns à aterosclerose. Processos inflamatórios, mesmo brandos, predizem e provavelmente causam não apenas doença aterosclerótica, mas também obesidade, diabetes, hipertensão, colesterol bom baixo e triglicérides altos, comenta Duncan. “Observamos que não há um marcador inflamatório mais importante que outro. O somatório de todos eles marca o processo inflamatório, sem necessariamente indicar onde está a causa”, afirma Duncan. NANOTECNOLOGIA EMERGE

Num estudo publicado em 2007, Rogério Meneghini e Abel Packer, coordenadores da biblioteca eletrônica SciELO Brasil, esquadrinharam as publicações brasileiras entre 1994 e 2003, período anterior ao coberto pelo artigo de Zago, e concluíram que havia 11 áreas do conhecimento em que a ciência brasileira tinha brilho internacional – as pesquisas em genômica, catálise química, cardiologia e metabolismo de mitocôndrias já apareciam neste trabalho (ver Pesquisa FAPESP nº 132). A lista dos 26 artigos mais citados sugere que há um tema emergente em que grupos brasileiros ganharam expressão: a nanociência. Há quatro artigos vinculados ao assunto. Um deles é o já referido trabalho de revisão de Jairton Dupont. Outro, cujo autor principal é Gerardo Goya, à época professor do Instituto de Física da USP e atualmente na Universidade de Zara-

goza, na Espanha, apresenta um estudo sobre o comportamento de nanopartículas de óxido de ferro magnético e foi publicado em 2003 no Journal of Applied Physics. “O estudo fez uma avaliação das propriedades magnéticas do óxido de ferro magnetita com diferentes tamanhos de partículas, desde o tamanho de 10 nanômetros até partículas maiores”, explica Thelma Berquó, coautora do artigo, atualmente na Universidade de Minnesota, Estados Unidos. Na época da publicação, ela era bolsista de pós-doutorado da FAPESP. “O impacto se deve ao fato de ninguém ter feito isso antes e ao interesse multidisciplinar sobre o assunto, que pode ter aplicações em medicina, ciências de materiais e geociências, entre outras”, afirma. O Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem dois artigos na lista, ambos relacionados à caracterização de nanotubos de carbono usando uma técnica chamada espectroscopia Raman, desenvolvida por dois pesquisadores da instituição, os professores Marcos Pimenta e Ado Jorio. “Essa técnica acabou se tornando uma das mais poderosas para a caracterização desses materiais”, diz Ado Jorio, que é o autor principal de um dos artigos, publicado em 2003, no New Journal of Physics, e coautor do segundo, publicado em 2004 na Physical Review Letters. Jorio diz que o interesse pelos nanotubos de carbono reúne físicos, químicos, cientistas de materiais e biólogos, entre outros. “Eles têm propriedades térmicas, ópticas, eletrônicas e mecânicas que são únicas na natureza”, explica.


Há artigos que revelam a contribuição do país no desenvolvimento de novas terapias e outros que repercutem entre o público leigo

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ma dezena de artigos da lista são obras de revisão, cujo impacto não se relaciona a descobertas, mas à densidade científica dos autores que se propuseram a fazer uma ampla revisão da literatura. Bernardo Leo Wajchenberg, professor da Faculdade de Medicina da USP, é autor de um artigo bastante citado na revista Endocrinology Reviews sobre a relação entre a gordura visceral e a síndrome metabólica, conjunto de fatores que aumentam o risco de desenvolver diabetes e doenças coronarianas. Norma de Oliveira Santos, professora do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve repercussão num artigo sobre a distribuição global dos sorotipos de rotavírus e suas implicações na implementação de uma vacina, publicado em 2005 no Reviews in Medical Virology. Um dado importante é a presença de autores de universidades de vários lugares do país, num sinal de descentralização da excelência acadêmica. Um artigo de revisão sobre polímeros eletroluminescentes, publicado em 2003 na revista Progress in Polymer Science, já obteve 372 citações. Foi escrito por Leni Akcelrud, chefe do Laboratório de Polímeros Paulo Scarpa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que já sintetizou mais de 50 polímeros que emitem luz. A eletroluminescência em plásticos foi descoberta

em 1990. O artigo tem 500 referências. “Demorei dois anos para terminar, mas lançamos as bases para comparações entre diversos sistemas”, diz. MOLÉCULAS NOVAS

Um grupo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por exemplo, produziu um artigo de revisão altamente citado sobre a toxicologia e a farmacologia de compostos orgânicos contendo os átomos de selênio e telúrio. O paper, publicado em 2004 na revista Chemical Reviews, teve impacto elevado porque envolve um tema emergente. “São moléculas novas, que têm potencial para o desenvolvimento de novos medicamentos”, diz Cristina Wayne Nogueira, professora do Departamento de Química do Centro de Ciências Exatas e Naturais da UFSM, que escreveu o artigo em parceria com dois outros professores da instituição quando fazia o pós-doutoramento na Universidade do Estado de Iowa, nos Estados Unidos. O convite para escrever o artigo se deveu à qualificação do grupo, que é pioneiro nessa vertente. “Levamos uma vantagem, que é a possibilidade de fazer experiências com animais de laboratório, como ratos, quando há limitações em outros países que dificultam a pes-

quisa nessa área”, diz Cristina. Já o físico russo Viktor Dodonov, professor da Universidade de Brasília, adverte que só conseguiu escrever seu hot paper com uma análise de 75 anos de publicações sobre estados não clássicos em óptica quântica porque trabalhava na época na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e tinha acesso à biblioteca do Instituto de Física de São Carlos da USP. “O artigo só foi possível graças à qualidade e à disponibilidade da biblioteca do instituto”, diz Dodonov, que trocou a Rússia pelo Brasil em 1996.

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enrique Hippert, professor de estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora, diz que o impacto gerado por um artigo de revisão escrito com outros dois autores em 2001 se deve, em primeiro lugar, ao interesse crescente no tema da previsão de consumo de energia. O texto, publicado pela revista IEEE Transactions on Power Systems, reuniu a literatura sobre uma técnica chamada de rede neural artificial. “Havia muito interesse dos pesquisadores em saber o que já tinha sido publicado. Duas ou três outras revisões surgiram na época, mas eram menos abrangentes”, diz. Bons artigos de revisão são valorizados por periódicos, pois garantem audiência e ajudam a ampliar seu fator de impacto, composto pelo número médio de citações. Dois papers da lista foram publicados na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e resultam da estratégia da publicação de investir em bons artigos de revisão para elevar o fator de impacto da revista. “Como era o editor da revista, escrevi o primeiro artigo da série”, diz José Rodrigues Coura, autor de uma revisão sobre os ainda escassos métodos de tratamento das vítimas do mal de Chagas, publicada em 2002. “O interesse pelo artigo se deve à preocupação, sempre renovada, de buscar novas drogas”, afirma Coura, chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC. Também integra a lista do professor Zago um artigo de revisão sobre o impacto dos métodos de controle da doença de Chagas na América Latina, publicado na Memórias do IOC pelo especialista em medicina tropical João Carlos Pinto Dias, da Fiocruz, e n outros dois autores.

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[ história IV ]

Ciência dentro da empresa Estratégia da FAPESP influenciou panorama brasileiro da inovação

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empenho da FAPESP em semear a pesquisa no ambiente empresarial e aproximar universidade e setor produtivo teve influência relevante no panorama da inovação no Brasil. Primeiro foi o Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), lançado pela Fundação em 1995, que estabeleceu um mecanismo pioneiro no país de colaboração entre empresas e universidades para enfrentar gargalos tecnológicos. O investimento da FAPESP em cada projeto, desenvolvido dentro do ambiente acadêmico, exige uma contrapartida financeira da empresa interessada. Isso não apenas amplia o volume de recursos como garante que o interesse do setor privado é genuíno e poderá gerar inovações com impacto no mercado. O Pite contabiliza 106 projetos concluídos e 68 em andamento, e ganhou impulso em 2010 na modalidade Pite Convênio, com o estabelecimento de parcerias com grandes empresas, como a Vale, a Whirlpool e a Sabesp. Até 2009 foram aprovados, em média, 8,4 projetos ao ano. Em 2010 chegaram a 43. Nesse mesmo ano foram analisadas 123 propostas no âmbito do Pite, quantidade sete vezes maior do que a média de propostas analisadas de 1995 a 2009 (ver quadros). “O crescimento do número de projetos é resultado de um aumento significativo do interesse do setor privado no acesso à inovação e também se deve à iniciativa da FAPESP de fazer acordos com grandes empresas, o que ajuda a organizar a busca e a seleção de parceiros”, explica o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, que participou da implantação dos programas quando foi presidente da FAPESP, entre 1996 e 2002. Dois anos após o nascimento do Pite surgiu o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), também pioneiro, mas por investir em pesquisa

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e desenvolvimento dentro de pequenas empresas utilizando recursos não reembolsáveis. Com 905 projetos concluídos e 93 em andamento, o Pipe apoia projetos de empresas que envolvam inovação tecnológica com potencial comercial e disponham de uma equipe de pesquisa compatível com os desafios propostos. Quem recebe os recursos da Fundação é o pesquisador responsável que trabalha dentro da empresa. Os projetos incluem desde os estudos sobre a viabilidade técnica de uma ideia criativa, conhecida como fase 1, até o desenvolvimento da pesquisa e do protótipo de seu resultado, a fase 2. “Enquanto o Pite busca incentivar colaborações entre empresas e universidades, o Pipe procura estimular o surgimento de uma cultura de pesquisa em pequenas empresas”, resume Sérgio Queiroz, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp e coordenador adjunto da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP. O impacto econômico do Pipe é notável. Um artigo publicado em junho na revista Research Evaluation apresentou resultados de uma avaliação dos projetos concluídos entre 1997 e 2006. A relação custo-benefício é elevada: cada R$ 1 alocado pela FAPESP gerou R$ 10,50 de retorno. Quando se contabilizam também os investimentos nos projetos feitos pelas próprias empresas

A evolução das parcerias no programa Pite Quantidade de

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e outras fontes, a relação é de R$ 5,98 para cada R$ 1 aplicado. A criação de empregos qualificados é outro fruto importante: as empresas com projetos Pipe aumentaram em 29% o número de empregados. O crescimento do contingente de funcionários com nível de graduação foi 60% e o de profissionais com doutorado, de 91%. “O impacto econômico do Pipe é substancial e crescente”, escreveu o autor do artigo, Sergio Salles-Filho, professor da Unicamp e um dos coordenadores do Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), vinculado à universidade, que avaliou o programa por solicitação da FAPESP. A influência do Pipe e do Pite pode ser medida em pelo menos três níveis. No plano nacional, atribui-se ao Pipe a inspiração para o surgimento de um programa semelhante em nível federal, o Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), iniciativa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) lançada em 2004. No estado de São Paulo, em função da existência do Pipe, a Fapesp e a Finep acordaram um formato para a implementação do Pappe com características diferenciadas, que constituíram o programa Pappe-Pipe III. Nele, empresas já financiadas pelo Pipe receberam recursos para a fase 3 – depois de desenvolver a ideia e o protótipo, puderam investir num plano de negócios. “As iniciativas da FAPESP quebraram paradigmas e ajudaram a catalisar uma mudança cultural que superou resistências de universidades e empresas e resultou na criação da Lei de Inovação, em 2004”, diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005, época em que os dois programas foram lançados. No plano local, houve uma transformação na forma como universidades e empresas inovadoras se relacionam, que exigiu uma mudança dentro da própria FAPESP, habituada a avaliar e investir em projetos gerados no ambiente acadêmico. A Constituição estadual de 1989 ampliou o volume de recursos da FAPESP de 0,5% para 1% da receita tributária do estado e incorporou aos objetivos da Fundação a aplicação “em desenvolvimento científico e tecnológico” – na Constituição anterior, a de 1947, havia menção apenas à “pesquisa científica”. A partir PESQUISA FAPESP 187

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acervo pessoal

Os dados mostram que 60% dos projetos resultaram no desenvolvimento de tecnologias e conhecimento novo, mas sem aplicação imediata, enquanto 30% geraram inovações em âmbito nacional e mundial e 10% inovações no âmbito da empresa. Um dado importante: 69% das empresas e 76% das instituições de pesquisa celebraram novas parcerias após o Pite e apontam a experiência propiciada pela FAPESP como uma grande motivação para a repetição. Um dos primeiros projetos aprovados envolveu uma parceria entre o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) para superar gargalos tecnológicos no desenvolvimento de aços de maior eficiência energética para a construção de motoO governador Covas, o secretário Emerson Kapaz, o reitor da USP Jacques Marcovitch, o presidente da FAPESP Carlos Henrique de Brito Cruz res, geradores e trans(microfone) e o diretor científico José Fernando Perez, no anúncio dos formadores elétricos, 32 projetos contemplados na primeira chamada do Pipe, em 1997 um mercado de que a empresa não participava. Em 1996, a Serrana Mineração e um grupo desse marco, teve início uma discussão US$ 100 milhões, eles do Instituto de QuímiO prazo médio sobre as melhores formas de apoiar a existem atualmente ca da Unicamp fizeram uma parceria para o pesquisa dentro de empresas. em 11 instituições para análise de O formato do Pite foi inspirado nos que apoiam a pesquidesenvolvimento de pigmentos à base de fosmatching funds norte-americanos, em sa, como a Nasa, a Napropostas do fatos de íons metálicos, que o dinheiro público aplicado requer tional Science Founprograma Pite uma contrapartida do setor privado. A dation e os National para substituir o dióxivantagem do formato é que evitava a Institutes of Health. do de titânio das tintas caiu de 447 dias brancas e criar novos dispersão de recursos em projetos tecNa primeira chamanológicos sem vínculo com inovação. da, em 1997, 80 foram pigmentos coloridos. em 2009 para 193 A Natura celebrou parenviados para avalia“O conceito era cuidadoso. Era a pricerias com instituições ção de assessores e 32 meira vez que colocávamos a palavra dias em 2010 como USP, Unicamp, empresa no dicionário da Fundação. foram contemplados. IPT e Unesp, em busca Na situação anterior, muitos proje“O Pipe se consolidou tos se intitulavam tecnológicos, mas porque nasceu forte”, de formas de utilização da goma dos cajueiros não visavam o mercado. Com o nodiz Perez. e de algas marinhas covo modelo, a empresa tinha de estar Um terceiro nível interessada e querer investir”, diz José em que o impacto dos programas pode mo cosméticos ou de plantas brasileiras ser mensurado é o do próprio ambiente Fernando Perez. como fonte de fragrâncias e substâncias antioxidantes. A lista de empresas parempresarial. Uma avaliação encomenticipantes foi extensa e reúne Petrobras, caminho trilhado pelo Pidada pela FAPESP ao Geopi mediu o te abriu espaço para o Pipe, desempenho dos programas de parceria Dedini e Oxiteno. De acordo com Sérgio Queiroz, que tinha um conceito mais tecnológica e de pesquisa em pequenas uma futura avaliação do Pite mostrará ousado, ao investir diretamente no empresas concluídos até 2006. No caso ambiente da empresa e usar recursos do Pite, foram analisados 65 projetos. uma realidade diferente, pois o prograque não seriam devolvidos, sem exigir As parcerias envolviam, na maioria, unima ganhou fôlego com a celebração de convênios entre a FAPESP e grandes versidades e institutos públicos (95%) e contrapartidas. Uma fonte de inspiraempresas. O principal caso é o convêção foram os programas SBIR (Small grandes empresas brasileiras (67% com nio entre a FAPESP e a Vale S.A., lanBusiness Innovation Research), dos Esmais de 500 empregados; 82% de capital çado no ano passado, que destina R$ tados Unidos. Estabelecidos por força nacional). A FAPESP investiu R$ 43,1 40 milhões, divididos entre a empresa de uma lei de 1982, que determinou milhões neles, ou R$ 525 mil em média e a Fundação, em projetos que contria criação de iniciativas de fomento à para cada um. Com a contrapartida das buam para o avanço e a aplicação do inovação em pequenas empresas em empresas, o valor total por pesquisa suconhecimento nas áreas de mineração, agências com orçamento superior a biu para R$ 1,1 milhão.


processos ferrosos para siderurgia, energia, ecoeficiência e biodiversidade, entre outros. “Buscamos o desenvolvimento de tecnologias e de processos capazes de mudar paradigmas dentro da Vale. Não se trata de obter apenas ganhos incrementais ou pontuais”, disse Luiz Eugênio Mello, diretor do Instituto Tecnológico Vale (ITV), que é o braço de pesquisa da mineradora, na assinatura do convênio. Outro exemplo é o acordo firmado entre a Fundação e a Sabesp em 2009, com um investimento previsto de R$ 50 milhões em cinco anos, em projetos sobre vários temas de interesse da empresa.

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á no caso do Pipe, que apoia a pesquisa nas pequenas empresas, aproximadamente 60% dos 214 projetos avaliados geraram inovações tecnológicas. Isso representou 111 inovações de base tecnológica, que se referem a produtos, softwares e processos. Cada empresa recebeu, em média, R$ 247 mil. O índice de mortalidade das empresas, na casa dos 8%, é inferior ao padrão brasileiro, que chega a 70%. A procura pelo Pipe está estabilizada, um dado que será investigado em profundidade na próxima avaliação do programa. “Gostaríamos de receber ainda mais propostas do que temos recebido”, diz Sérgio Queiroz. Considera-se, porém, que o programa tem cumprido seus objetivos, graças também ao aperfeiçoamento do sistema de avaliação dos projetos. Quatro coordenadores do programa têm feito um trabalho de acompanhamento, com visitas às empresas financiadas, que permitem identificar sinais positivos e gargalos. “Acontece de, na hora da visita, a empresa que parece estar indo bem não se mostre tão promissora, assim como há casos do que

Para estimular a apresentação de projetos bem estruturados, a FAPESP passou a divulgar no site do programa uma sugestão de roteiro para os projetos e os erros mais comuns nas propostas. “A FAPESP também passou a valorizar o esforço e a capacidade das empresas de cuidar bem de sua propriedade intelectual. Com essas medidas, melhorou a qualidade das propostas”, diz Carlos Henrique de Brito Cruz. Um mês antes do prazo final das Avaliação do chamadas de propostas, a FAPESP organiza Pipe mostra uma reunião e convida os pesquisadores inteque cada R$ 1 ressados para conhecer melhor o programa e tiinvestido pela rar dúvidas. Um projeto apresentado numa desFAPESP gerou sas reuniões, realizada em dezembro de 2010, um retorno resume os objetivos do programa. O empreeconômico sário e fisioterapeuta de R$ 10,50 Jeff­erson Garcia propôs um projeto que resultou numa inovação para cadeiras de rodas. Em parchamamos ‘fracasso bem-sucedido’”, ceria com um grupo da Faculdade de diz Queiroz, referindo-se a situações em Odontologia de Piracicaba (FOP), da que empresas, apesar dos maus resulUnicamp, criou um protótipo de protados no projeto, conseguem implantar pulsão invertida de cadeiras de rodas. uma cultura de pesquisa. “Fomos visitar Segundo Garcia, estudos mostraram uma empresa que buscava desenvolver que a maneira de se locomover girando uma tecnologia para remover o odor de as rodas para a frente força demais a resíduos de plástico reciclável. O projemusculatura. Com o movimento conto não prosperou, mas, quando fomos trário ao do deslocamento, segundo ele, o cadeirante se desgasta menos. A ver de perto, o faturamento da empreequipe criou um dispositivo de inversa havia multiplicado por 10, porque a cultura de pesquisa implantada resolveu são do movimento das rodas, que inoutros problemas”, diz Queiroz. clui uma chave bloqueadora. Com isso, Há centenas de exemplos de projeo cadeirante pode optar por alternar tos bem-sucedidos do Pipe em divera propulsão convencional e a inversas áreas do conhecimento. O físico tida. “Agora a ideia é produzir rodas Spero Penha Morato, que presidiu o que poderão ser adaptadas a qualquer Instituto de Pesquisas Energéticas e n cadeira”, disse Garcia. Nucleares (Ipen) entre 1990 e 1995, é Fabrício Marques sócio de duas empresas que se beneficiaram do programa da FAPESP. Em 1998 fundou a LaserTools Tecnologia, Artigo científico especializada em aplicações de laser na indústria e na área de saúde. Em SALLES-FILHO, S. et al. Evaluation of ST&I 2004 ajudou a criar a Innovatech, que programs: a methodological approach to desenvolveu no país um stent, a prótethe Brazilian Small Business Program and se usada para manter a passagem do some comparisons with the SBIR program. sangue em artérias estreitadas. Research Evaluation. jun. 2011. PESQUISA FAPESP 187

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usda

laboratório

Microrganismos no cacau

Fruto in natura: 20 tipos distintos de fungos e leveduras

A lógica do consumo Um software inicialmente projetado para analisar imagens obtidas por câmeras de monitoramento instaladas em casa de idosos foi adaptado para estudar as pessoas no momento em que decidem comprar um produto numa loja. Criado Johann Jaritz / Creative Commons

Um estudo que examinou 494 amostras de grãos de cacau obtidas no Brasil rendeu uma notícia preocupante e outra boa: foram encontrados ao menos 20 distintos gêneros de fungos e leveduras potencialmente tóxicos em alguma das etapas de processamento das sementes, mas o produto final, o chocolate vendido ao público, se mostrou isento desses microrganismos (Food Microbiology, 12 de agosto de 2011). A maior porcentagem de contaminação foi detectada em exemplares do fruto provenientes das fases de secagem e armazenamento dos grãos, executadas nas fazendas de produção de cacau da região de Ilhéus, no sul da Bahia. Com a diminuição da quantidade de água nas sementes e o processamento industrial do cacau, a presença dos fungos se reduziu sensivelmente e o chocolate analisado se mostrou seguro para consumo. O trabalho foi feito por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Universidade Técnica da Dinamarca.

Shopping: amplos corredores estimulam o consumo 42

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pela empresa americana VideoMining, o programa “assiste” a vídeos captados por filmadoras instaladas em estabelecimentos comerciais e gera mapas e gráficos que realçam alguns traços do comportamento dos consumidores (National Science Foundation). Segundo o cientista da computação Rajeev Sharma, fundador da companhia, a ferramenta digital permite descobrir quais são as áreas mais frequentadas numa loja e realçam fatores que inibem ou facilitam o ato de consumir. Algumas conclusões da VideoMining: as pessoas preferem adquirir mercadorias em corredores amplos; as mulheres precisam de mais tempo do que os homens para fazer compras; a escolha do produto a ser levado para casa muitas vezes se dá apenas no interior da própria loja, havendo pouca fidelidade a marcas.


Thure Cerling/Universidade de Utah

A savana e a origem do homem Ao longo dos últimos 6 milhões de anos, as savanas, e não as florestas, foram a paisagem natural dominante na maioria dos sítios do leste da África em que viveram os ancestrais do homem e também do macaco. A conclusão é de um estudo coordenado pelo geoquímico Thure Cerling, da Universidade de Utah, Estados Unidos, que analisou a presença de certos isótopos químicos em solos pré-históricos para inferir a prevalência de áreas de mata fechada, Caminhar ereto tomada por árvores e, portanto, com pode ter surgido em muita sombra, nessa porção do contiambientes abertos nente berço da humanidade (Nature, 4 de agosto de 2011). “Conseguimos por segundo. As manchas medir quanto havia de sombra no passado geológico”, diz o tendem a surgir no máximo pesquisador. “Onde quer que tenhamos encontrado ancestrais 48 horas depois de campos do homem, achamos evidências de que ali havia mais hábitats magnéticos dessa magnitude abertos, similares às savanas, do que florestas. Nosso estudo terem sido flagrados. Prever mostra que, durante o desenvolvimento do bipedalismo [há o aparecimento das manchas cerca de 4 milhões de anos], já existiam ambientes abertos.” Como o cerrado brasileiro, a savana é dominada pelas gramíé importante para evitar ou neas e a ocorrência de árvores é relativamente esparsa. minimizar eventuais danos

Pesquisadores da Universidade Stanford desenvolveram um método que permite prever com um ou dois dias de antecedência o aparecimento de manchas no Sol. Analisando dados do Solar and Heliospheric Observatory (Soho), espaçonave da Nasa e da ESA (a agência espacial europeia), o astrofísico Stathis Ilonidis e seus colegas da universidade californiana descobriram que a detecção de intensos campos magnéticos numa região interna da estrela, situada 65 mil quilômetros abaixo de sua superfície, é um

indicativo do surgimento iminente das manchas (Science, 19 de agosto de 2011). O fenômeno se manifesta no interior do astro e se desloca para sua parte externa a velocidades entre 0,3 e 0,6 quilômetro

nasa

Como evoluem as manchas no Sol

causados na Terra por fortes variações na atividade solar, que podem ocasionar quedas de energia elétrica e interrupções nos sistemas de comunicação e navegação por satélite. A eclosão das manchas solares também pode oferecer riscos para os astronautas em missão no espaço.

Atividade solar: previsão com dois dias de antecedência

O sexo dos peixes de Furnas A exposição a resíduos da agricultura e a esgoto sem tratamento parece estar afetando o sistema reprodutivo do lambari-do-rabo-vermelho (Astyanax fasciatus) que vive na hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais. Estudo de pesquisadores mineiros encontrou, em pontos do reservatório da usina, grupos de peixes com tamanho reduzido e maturação atrasada das glândulas sexuais. Em outros trechos de Furnas, os animais exibiam traços efeminados e havia evidências de contaminação por xenoestrógenos, hormônios presentes em compostos industriais que têm efeitos semelhantes ao estrógeno (Ecotoxicology and Environmental Safety, 9 de agosto de 2011). Além do risco à saúde dos peixes, os poluentes sugerem que as condições ambientais em Furnas inspiram cuidados.

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Mais ou menos iguais

Neutrinos e antineutrinos parecem ter realmente a mesma massa

Marcos Pivetta

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[ Física ]

Ciência

A

edição de 8 de julho passado da prestigiada revista científica Physical Review Letters (PRL) trouxe um artigo polêmico para a comunidade de físicos de partículas. Um trabalho feito no Fermilab por uma equipe internacional de pesquisadores, entre os quais quatro brasileiros, fornecia indícios de que os neutrinos do múon e seus respectivos antineutrinos poderiam não se comportar exatamente da mesma maneira e apresentar até massas distintas. O estudo sinalizava que talvez as diferenças entre a matéria e a antimatéria fossem maiores do que postula o modelo padrão, o arcabouço teórico erigido nos últimos 50 anos para explicar as interações entre as partículas subatômicas, os blocos que formam a matéria. Era um resultado surpreendente, que se baseava na análise de informações preliminares obtidas até junho de 2010 pelo experimento Minos (Main Injector Neutrino Oscillation Search), um dos projetos científicos tocados no laboratório americano, situado em Batavia, nos arredores de Chicago. O conteúdo do artigo, aparentemente em desacordo com algumas leis da física, conforme seus próprios autores, deve ser interpretado com cautela. Afinal, havia 2% de chance de os inusitados dados iniciais do Minos se deverem a uma flutuação estatística momentânea e não espelharem a realidade de neutrinos e antineutrinos. Em 25 de agosto, no entanto, depois de quase dobrar a quantidade de informação processada pelo experimento em relação aos dados do artigo na PRL, o Fermilab divulgou um comunicado ao público. “Medidas mais precisas nos mostram que, muito provavelmente, essas partículas e suas antipartículas não são tão diferentes como indicamos antes. Dentro de nosso atual campo de visão, parece agora que o Universo está se comportando da maneira que a maioria das pessoas pensa que ele se comporta”, disse, em nota à imprensa, Rob Plunkett, cientista do Fermilab e um dos porta-vozes do Minos. De acordo com o estudo publicado na PRL, referendado pelo tradicional processo de revisão pelos pares (peer review) antes de ser aceito, o quadrado da massa dos antineutrinos – os pesquisadores usam como parâmetro de comparação o valor da massa elevada à segunda potência, e não apenas a medida da massa – parecia ser cerca de 40% maior do que o dos neutrinos. “Passamos quase um ano procurando algum efeito de instrumentação que pudesse ter causado essa diferença. É reconfortante saber que a estatística era a culpada”, afirmou outra porta-voz do experimento, a física Jenny Thomas, da University College London. Segundo as novas informações revisadas internamente pelos pesquisadores do Fermilab no fim do mês passado, mas ainda não submetidas ao escrutínio de uma revista com peer review, essa diferença se reduziu hoje para 16%. PESQUISA FAPESP 187

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Há, portanto, uma grande possibilidade de as massas de neutrinos e antineutrinos serem iguais, como sustentam os modelos físicos atualmente aceitos. Um dos participantes do Minos, o físico brasileiro Carlos Escobar explica que a revisão dos resultados do experimento foi encaminhada de forma a evitar qualquer tipo de análise enviesada. “Tudo foi feito às cegas e de forma automatizada”, afirma Escobar, hoje professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Fermilab. “Os dados são soberanos.” Ele, no entanto, admite que o novo cenário trouxe alívio para os físicos. “A comunidade científica está mais tranquila”, diz Escobar. Vários experimentos internacionais que trabalham com partículas e antipartículas pressupõem que neutrinos e antineutrinos têm a mesma massa para realizar seus cálculos. Quando aparece um estudo que contradiz tal preceito, caso do artigo do Minos na PRL, algum pilar da física pode ter sido arranhado.

Desaparecimento e oscilação – O

objetivo do projeto do Fermilab é comparar a ocorrência de um fenômeno conhecido como oscilação em neutrinos e em antineutrinos do múon. No jargão dos físicos, quando um tipo de neutrino ou de antineutrino se transforma em outro ao se deslocar, ocorre uma oscilação. Há três formas ou sabores de neutrinos e antineutrinos: os do múon, os do tau e os do elétron. Esse trio de partículas com carga elétrica é chamado genericamente de léptons (neutrinos são léptons neutros). No Minos, os cientistas compararam a frequência com que neutrinos e antineutrinos do múon desapareceram e, supostamente, transformaram-se em neutrinos e antineutrinos do tau. “É a primeira vez que algum grupo de pesquisa mede a oscilação de antineutrinos do múon”, diz Philippe Gouffon, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), que também participa do experimento feito nos Estado Unidos.

A viagem dos neutrinos Soudan

Wisconsin m

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Primeiro detector

5k 73

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Minnesota

fermilab Illinois

Feixe de partículas

Mapa com a trajetória percorrida pelo feixe de partículas produzido no acelerador Main Injector do Fermilab, perto de Chicago. Os neutrinos são medidos por dois detectores, um distante 1 km do laboratório e outro situado a 735 km, na mina de Soudan, já no estado de Minnesota

Acelerador Main Injector

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Conceitualmente, a antimatéria é definida como uma espécie de cópia da matéria, com a qual divide basicamente as mesmas propriedades, inclusive a massa. Mas há uma diferença fundamental entre ambas: as antipartículas que moldam a antimatéria apresentam carga elétrica com sinal invertido em relação às suas respectivas partículas de matéria. Com carga positiva, o pósitron é a antipartícula do elétron, cuja carga é negativa. Fazendo jus a seu nome, neutrinos e antineutrinos são eletricamente neutros. No entanto, os primeiros estão ligados aos léptons de carga negativa e os segundos, aos de carga positiva. Os físicos acreditam que matéria e antimatéria devem existir na mesma proporção no Universo, embora a quantidade detectada de ambas esteja longe de ser a mesma. De forma grosseira, é nesse contexto teórico que os físicos estudam as propriedades de neutrinos e antineutrinos. Embora sejam considerados as segundas partículas mais abundantes do Universo, atrás apenas dos fótons (partículas de luz), os neutrinos são virtualmente imperceptíveis. Não possuem carga elétrica, têm uma massa quase desprezível, deslocam-se a uma velocidade muito próxima à da luz e praticamente não interagem com a matéria. São capazes de simplesmente atravessar corpos enormes, como o planeta Terra, sem alterar seu deslocamento ou sofrer algum efeito perceptível. O Big Bang, a explosão primordial que, segundo a teoria mais aceita, criou o Universo há pouco menos de 14 bilhões de anos, deve ter sido a principal fonte de neutrinos. A atividade solar e os raios cósmicos são as fontes naturais mais conhecidas de neutrinos, que se formam a partir de processos como o decaimento radioativo (quando o núcleo de um átomo estável perde espontaneamente energia e emite partículas ionizadas) e as reações nucleares. Ruído e informação - A compara-

ção de parâmetros entre partículas e antipartículas só foi possível porque o experimento do Fermilab é um dos poucos no mundo, ao lado do T2K (Tokai to Kamioka) no Japão, capaz de produzir feixes específicos, constituídos apenas de neutrinos ou somente


fotos: fermilab

de antineutrinos, com níveis mínimos de contaminação. A maioria das iniciativas científicas trabalha com feixes que são um misto de partículas e antipartículas, limitação que dificulta a obtenção de dados detalhados a respeito do fenômeno da oscilação. “Produzir um sistema que gere partículas em quantidade suficiente para separarmos o ruído da informação é uma de nossas grandes dificuldades”, explica o físico João Coelho, aluno de doutorado da Unicamp que passou um ano no Fermilab com bolsa da FAPESP. A primeira etapa do experimento Minos consiste em gerar as partículas que os físicos querem estudar. Com esse fim, o Main Injector – um anel de 3,2 quilômetros de circunferência que é um dos seis aceleradores de partículas do Fermilab – produz um pulso de prótons de alta energia destinado a se chocar contra um alvo de grafite. A colisão faz surgirem partículas instáveis, píons e káons, que vão gerar múons e neutrinos. Em seguida, o feixe é direcionado para uma parede que barra suas impurezas. Múons e outras partículas indesejadas são retirados e permanecem apenas os neutrinos do múon.

O detector de Soudan: neutrinos levam 2,5 milissegundos para ir de Illinois à caverna em Minnesota

A segunda parte do experimento é o coração do Minos. O feixe de neutrinos purificado é direcionado para dois detectores subterrâneos, o primeiro a um quilômetro de distância do Fermilab e o segundo a 735 quilômetros, na mina desativada de Soudan, no estado de Minnesota. O detector mais próximo, que foi montado pouco mais de 100 metros abaixo do Fermilab e pesa mil toneladas, checa a pureza e a intensidade do feixe. Suas medições servem para dar as características centrais do pulso. O detector mais longínquo pesa 6 mil toneladas e se encontra escondido 716 metros abaixo da superfície, numa caverna. Apenas 2,5 milissegundos depois de sair do Fermilab o feixe de neutrinos é detectado em Soudan. “As oscilações dos neutrinos ocorrem durante o percurso feito pelas partículas entre o primeiro e o segundo detector”, explica o físico Ricardo Gomes, da Universidade Federal de Goiás, que também participa do Minos.

Ao medirem pela primeira vez o desaparecimento de antineutrinos do múon, os cientistas do Fermilab inicialmente acharam que as oscilações dessas antipartículas e de suas partículas poderiam ser distintas, como está insinuado no artigo da PRL. Agora, com mais dados analisados, a equipe do Minos acredita que esse parâmetro seja igual para neutrinos e antineutrinos. “A física é uma ciência essencialmente experimental”, comenta Marcelo Guzzo, físico teórico da Unicamp que estuda neutrinos. “Qualquer resultado deve ser confirmado por vários grupos antes de termos a palavra definitiva”, diz Orlando Peres, outro especialista no tema, também da Unicamp. Segundo a física Renata Zukanovich Funchal, da USP, flutuações estatísticas são frequentes em experimentos com altas energias:“Por isso, devemos ter cautela quando encontramos resultados que não conseguimos compreender”. n Artigo científico Adamson, P. et al. First direct observation of muon antineutrino disappearance. Physical Review Letters. v. 10 (2), p. 021801-5. 5 jul. 2011. PESQUISA FAPESP 187

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[ fractais ]

Litorais recortados Físicos tentam explicar por que variam tanto os contornos costeiros Igor Zolnerkev ic

U

m modelo desenvolvido por físicos da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (ETH) é o primeiro a simular em computador uma variedade considerável de contornos possíveis que as linhas costeiras podem assumir. Os autores do trabalho, publicado em julho na Physical Review E, são os primeiros a admitir que é uma abordagem simplificada de um fenômeno complexo. Mas esperam que o modelo, que explora o uso de figuras geométricas conhecidas como fractais, possa no futuro auxiliar o monitoramento da erosão marítima, uma preocupação constante das cidades litorâneas. “Nuvens não são esferas, montanhas não são cones e litorais não são círculos”, disse certa vez o matemático francês Benoit Mandelbrot, que cunhou o termo fractal em 1975, se referindo à incapacidade da geometria convencional de retratar as formas da natureza. Os fractais – formas geométricas de aparência rugosa, cheia de reentrâncias – saem-se muito melhor na tarefa. Pode-se observar isso em imagens de satélite da ferramenta on-line Google Earth. Vários trechos de litorais do mundo – especialmente na Noruega, mas também no Brasil, em particular na divisa entre o Pará e o Maranhão e entre São Paulo e o Rio de Janeiro – parecem não mudar de aparência, não importa a altura da qual sejam visualizados. Partes de costa com poucos quilômetros parecem versões em miniatura de trechos de centenas de quilômetros. Essa é a principal propriedade dos fractais: a semelhança dos detalhes das partes com a figura completa. Certos trechos de costa, porém, têm contornos mais tortuosos e dão a impressão de terem uma “fractalidade” mais acentuada, noção capturada matematicamente pelo conceito de dimensão fractal. O valor dessa quantidade

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fonte: p.a. morais / physical review e

Costa artificial Ao lado, simulações em computador mostram a formação de linha litorânea menos rugosa, efeito do equilíbrio entre a força do mar (azul) e a dureza das rochas, e, à direita, a formação de costa com aspecto fractal, esculpida por ondas mais intensas

pode ser de igual a 1, para uma longa praia com contorno suave, como certos trechos do litoral nordestino próximos de uma linha perfeitamente reta, até teoricamente igual a 2, para uma costa tão recortada, repleta de baías e cabos dentro de mais baías e cabos, que medir o seu perímetro com máxima resolução seria uma tarefa praticamente impossível. Análises sugerem que costas reais não têm dimensão superior a 1,6 – a maioria fica entre 1 e 1,4.

Nina Matthews / creative commons

Modelos – Apesar de litorais serem ci-

tados como exemplos de fractais desde os anos 1960, só em 2004 surgiu a primeira explicação de como a natureza os esculpe. O físico francês Bernard Sapoval e seus colegas italianos Andrea Baldassari e Andrea Gabrielli criaram um modelo simples da força erosiva do mar em costas rochosas. Pelo mecanismo proposto, a tortuosidade costeira resultaria do equilíbrio entre a força das ondas e a capacidade da linha da costa de atenuá-la. À medida que as baías e os cabos escavados pelo mar se tornam mais recortados, aumenta o poder dessas feições geológicas de aprisionar e dissipar a energia das ondas. O mecanismo seria o mesmo que torna as paredes com superfícies rugosas ótimos isolantes acústicos. Apesar de parecerem realistas, os litorais que surgiram nas simulações sempre acabavam com uma dimensão fractal de 1,33, valor que descreve bem a costa leste dos EUA e partes do litoral sul fluminense. Mas que não dá conta de toda a variedade de contornos costeiros. Após Sapoval apresentar esse trabalho num seminário na UFC, o físico José Soares de Andrade Junior e seus alunos de doutorado Pablo Morais e Erneson

Oliveira começaram a pensar em como produzir litorais virtuais com dimensões fractais diferentes. Com o português Nuno Araújo e o alemão Hans Herrmann, físicos do ETH, criaram um modelo que, embora simplifique muito a ação do mar, trata de forma mais realista a distribuição espacial das rochas. Enquanto o modelo anterior dispunha as rochas mais ou menos resistentes à erosão aleatoriamente e de forma não correlacionada ao longo da costa, o novo modelo tenta simular, com a introdução de correlações estatísticas de longo alcance no espaço, as afinidades que rochas vizinhas possuem. “Essas correlações são capazes de mudar a dimensão fractal da costa”, conta Andrade. Desse modo, os pesquisadores puderam gerar litorais com dimensões fractais que variavam de 1 a 1,33, dependendo da distribuição de resistência à erosão das rochas. O novo modelo sugere ainda que os litorais só assumem formas fractais quando a força do mar é equilibrada pela dureza das rochas. Se a resistência das rochas for bem maior que a força das ondas, a costa tem formato rugoso, mas não é fractal. Quando a intensidade das ondas supera muito a resistência das rochas, a costa é continuamente erodida e o litoral assume a forma de um tipo especial de fractal, chamado de autoafim. “Esse fractal tem propriedades de contração e dilatação desiguais em diferentes direções”, explica Andrade. Ele espera em breve identificar essas diferentes geometrias costeiras em imagens reais de satélite e, com ajuda de geólogos do Instituto de Ciências do Mar da UFC, verificar se a dinâmica da erosão ocorre como o modelo prevê. “Se, por exemplo, identificarmos ero-

são acelerada”, diz, “alguma medida de proteção poderá ser tomada”. Como todo modelo, o do grupo franco-italiano e o da equipe da UFC são uma representação simplificada da realidade e desprezam um fator que oceanógrafos e engenheiros costeiros consideram essencial na definição da linha da costa: o relevo submarino, que determina a direção de propagação das ondas e como elas incidem sobre a costa. Os rios de areia, fluxo de sedimentos levantados pelas ondas e carregados pelas correntes marinhas, são outro detalhe importante que os modelos desconsideram. O especialista em geomorfologia costeira Dieter Muehe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que as áreas de maior risco de erosão estão nos pontos para os quais as ondas convergem e o fenômeno acontece com maior energia. Andrade confessa ainda não saber exatamente como incluir o transporte de areia em seu modelo, que considera uma primeira aproximação do que ocorre com os litorais em escala continental – o movimento dos sedimentos, em comparação, atuaria em uma escala menor, com a dimensão aproximada de uma praia. O grupo da UFC, que também estuda o movimento das dunas de areia, começou a investigar como acontece o transporte da areia na água. Andrade afirma: “É preciso estudar o fenômeno do ponto de vista físico em uma escala menor, antes de o transpor n para uma maior”. Artigo científico MORAIS, P.A. et al. Fractality of eroded coastlines of correlated landscapes. Physical Review E. 7 jul. 2011.

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especial // Ano Internacional da Química

Sabores e perfumes Compostos doces, amargos e cheirosos são protagonistas da história Maria Guimarães ilustração Mariana Zanetti

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perfume enleva os ânimos, seduz e, há quem diga, chega aos deuses. O doce indica energia ao paladar e gera combustíveis que movem boa parte da frota motorizada no Brasil. O amargo causa aversão, mas também dependência, e por isso origina guerras. Numa série de palestras com sotaque carioca, Vitor Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Claudia Rezende e Angelo da Cunha Pinto, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), percorreram a história da química desses sabores e odores no dia 3 de agosto, quinto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química, que celebra o Ano Internacional da Química. Uma sala de congresso cheia de mulheres suspirando ao aspirar o perfume de Napoleão Bonaparte em pleno século XXI. Não duvide do que leu, trata-se mesmo do imperador francês e o congresso aconteceu quase 200 anos depois de sua morte. Quem relatou a cena foi Claudia Rezende, que estava presente. Mesmo incongruente, a reação ao perfume chama a atenção para o uso de fragrâncias na sedução. Napoleão, contou a pesquisadora, foi um grande estimulador da produção de perfumes e frascos de vidro. A partir da receita encontrada recentemente, a Osmothèque – um museu de perfumes em Versalhes, na França


– conseguiu reconstituir a água-de-colônia produzida pelo perfumista Jean-Marie Farina para o monarca, já no final da vida deste. Mas sedução não é a única finalidade das fragrâncias. Muito antes, substâncias aromáticas já eram usadas na higiene pessoal. “No Egito Antigo se usava uma fragrância para cada parte do corpo”, disse Claudia. Nos registros da Roma Antiga também há frascos e descrições de aromas. Segundo a palestrante, o maior choque dos perfumados romanos diante das invasões bárbaras deve ter sido a visão e o cheiro rançoso dos vikings besuntados de gordura, necessária para amenizar o frio em terras e mares escandinavos. “O uso de aromas foi tão intenso que chegou a causar um desequilíbrio na balança comercial”, ela contou, devido à importação de mirra e olíbano do Oriente. Mirra e olíbano (incenso), aliás, eram dois dos presentes que os reis magos levaram a Jesus, segundo a Bíblia, o que já denota uma tendência religiosa para o uso de perfumes. “É um material volátil que, acreditava-se, poderia ajudar na comunicação com os deuses”, explicou a química da UFRJ. Esse uso, comum entre assírios, persas e gregos antigos, podia chegar à sofisticação de destinar perfumes específicos, como sândalo ou canela, para cada uma das divindades. E não se pode deixar de lado as propriedades medicinais dos perfumes, que precedem em muito a aromaterapia em voga neste século. Na Grécia Antiga, já por volta de 330 a.C., Teofrasto estudou o uso de plantas para fins curativos. No século XIV, quando a peste bubônica dizimou a Europa, aqueles com mais recursos procuravam se defender levando extratos de ervas em bolsas junto à boca e ao nariz. Acreditava-se, segundo Claudia, que o odor fétido da doença e da morte (os miasmas) nas ruas era o modo de transmissão. A partir do Renascimento surgiu uma aristocracia mais abastada, e aromas chegaram à mesa em carnes temperadas com pimenta, canela, cravo, gengibre e açúcar e em sobremesas perfumadas com rosas, flores de laranjeira e cravos. A tecnologia e o conhecimento para tomar posse dos perfumes naturais também variaram ao longo do tempo. Desde o uso direto das plantas aromáticas até a química mais precisa de hoje, foram usadas as técnicas de extração descritas no livro O perfume – história de um assassino, de Patrick Suskind (e no filme homônimo). “O filme é uma aula de perfumaria”, resume Claudia. Na enfleurage, bastante usada antigamente, as flores (ou mulheres, no caso da aterrorizante obra de ficção) eram envoltas numa gordura inodora que absorvia as substâncias voláteis, depois extraídas com etanol. A destilação também sempre foi parte importante do processo de fabricação de perfumes à base de álcool. 52

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"No Egito

Antigo se usava uma fragrância para cada parte do corpo", disse Claudia

A partir do século XIX tornou-se possível identificar e isolar moléculas aromáticas. Nessa época surgiram perfumes famosos como os de Guerlain, Hermès e Roger Gallet. No Brasil despontavam as boticas, como a Imperial Drogaria e Pharmacia de Granado & Cia, que até hoje produz polvilho antisséptico e sabonetes, entre outros produtos. Outro ícone da perfumaria brasileira são os sabonetes Phebo, feitos a partir de 1924 por portugueses que migraram do Sudeste para o Norte em busca de um aroma semelhante ao encontrado em alguns produtos britânicos. A matéria-prima principal era o pau-rosa, árvore amazônica que também está na base do mítico perfume Chanel nº 5, criado em 1921. Nessa época, o estudo de moléculas foi o começo do caminho para a produção de fragrâncias em escala industrial. O químico croata Leopold Ruzicka foi um pioneiro, o que lhe valeu o Prêmio Nobel de sua área em 1939. Em 1926, ele tinha elucidado a estrutura da muscona, uma substância extraída do veado-almiscareiro 20 anos antes, muito usada na perfumaria. Claudia apresentou também parte da trajetória histórica do mentol, um aromatizante de uso amplo em alimentos e cosméticos. Até a Segunda Guerra Mundial, a produção da menta-japonesa (Mentha arvensis) era controlada pela China e pelo Japão. Diante das dificuldades da guerra, imigrantes começaram a cultivar a planta por aqui, até chegar em 1973 ao ápice de 6.300 toneladas por ano. Nos produtos em que é desejável alguma refrescância, lá está o mentol: balas, chicletes, pastas de dente, sopas, cremes de barbear e até cigarros – neste último caso para aliviar o impacto da fumaça na garganta. Para muitos dos usos foi necessário modificar a estrutura molecular para impedir efeitos colaterais, como ardor prolongado nos olhos quando depois de espalhar loção pós-barba no rosto. “Muito do desenvolvimento químico do mentol veio da indústria do tabaco”, contou a pesquisadora. Hoje parte da substância produzida no mundo é sintética.

Apesar dos avanços na manipulação química, Claudia ainda se sente como o mestre perfumista de Perfume: agitando um lencinho para detectar as substâncias que compõem um aroma. Muito da pesquisa, ela afirma, ainda depende de narizes afiados. “É uma ciência empírica, embora tenha um arsenal científico sofisticado”, resumiu. Amargura - Também cheia de empirismo é a

história do amargo contada por Angelo da Cunha Pinto. O texto médico mais antigo que se conhece são receitas entalhadas em escrita cuneiforme na antiga Suméria, na Ásia, em torno do ano 2.200 a.C.. Desde as poções dos deuses feiticeiros da mitologia, “químicos de produtos naturais com grande perícia de laboratório”, até os produtores de drogas de hoje, as plantas produtoras de substâncias da classe dos alcaloides foram experimentadas de várias maneiras. E deram origem a guerras como a do ópio, que opôs China e Inglaterra no século XIX. Na origem da guerra estava a delicada papoula, cultivada na Tailândia, no Laos e em Mianmar, e de cujos frutos se extrai o ópio. A substância era sobretudo um remédio, mas fumá-la se tornou um hábito na China com a proibição do consumo de tabaco. E o fornecedor era o Império Britânico, o que acabou gerando desentendimentos de comércio. Mas além de guerra e dependência, o ópio é um alcaloide precioso para a medicina. Um de seus derivados é a morfina, medicamento de combate à dor que deu origem à seringa hipodérmica, usada pela primeira vez em 1853 na Guerra da Crimeia. Muitos dos remédios antigos tinham ópio na composição, a exemplo do elixir paregórico, usado contra diarreias até os anos 1970, e dos xaropes à base de codeína. A cocaína, hoje protagonista na “guerra do Rio”, nas palavras de Cunha Pinto, foi sintetizada em 1857 pelo alemão Albert Niemann e muito usada em chás, elixires, vinhos e até pastilhas para dor de dente. “De vinho e tônico passou às drogas”, lamentou o palestrante. PESQUISA FAPESP 187

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fotos eduardo cesar

Vitor Ferreira, Claudia Rezende e Angelo da Cunha Pinto

"Diesel fazia

Além desses exemplos, são muitas as plantas produtoras de alcaloides naturais usados de várias formas por povos do mundo todo e de todos os tempos registrados pela história, como o quinino contra a malária, a mandrágora como fortificante e afrodisíaco, e a bebida ayahuasca, feita com o cipó iagê e as folhas de chacrona, usada em rituais como os do santo daime. Açúcar - Também partindo da natureza, Vitor

Ferreira se embrenhou pela química avançada. Mostrando à plateia no auditório da FAPESP um saquinho de açúcar e outro de adoçante, desses disponíveis em cafés e restaurantes, chamou a atenção para a diferença de tamanho entre os dois. Adoçantes artificiais, explicou, são muito mais doces do que a sacarose natural: 600 vezes mais doce no caso da sucralose. Mas o açúcar faz muito mais do que adoçar a vida. “Mais doce ainda que a doçura é a potencialidade dos carboidratos para produtos de química fina”, brincou o palestrante. O mesmo açúcar que o corpo busca como fonte de energia também dá origem aos biocombustíveis, aposta em vários países para um equilíbrio entre a necessidade de locomoção e o problema de emissão de poluentes. A produção de biocombustíveis em larga escala e a partir de uma série de substâncias é um avanço real mas, segundo Ferreira, está longe de ser novidade. “O próprio [engenheiro alemão Rudolf] Diesel, quando inventou o motor a diesel, o fazia rodar com óleo de amendoim.” 54

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o motor rodar com óleo de amendoim", diz Ferreira

Agora a fabricação dos diversos produtos – como alimentos e insumos químicos – a partir de açúcares avança no sentido de tornar a síntese mais limpa e sustentável, dando origem à chamada química verde. “Em 2020 a química verde deve gerar US$ 307 bilhões”, afirmou. A matéria-prima não está em falta: 95% da biomassa produzida pela natureza, cerca de 200 bilhões de toneladas por dia, são carboidratos, e o homem usa apenas 5% desse total. Num verdadeiro desfile de moléculas – como maltose, quitina e celulose –, Ferreira mostrou como blocos de construção à base de açúcar criam uma infinidade de produtos, entre eles fixadores de aroma em refrigerantes, plásticos biodegradáveis e suturas cirúrgicas. “A química da sacarose é tão importante que tem até nome: sucroquímica.” E deve ganhar mais importância à medida que o petróleo se torna mais escasso, desde que haja investimento suficiente em pesquisa. “Precisamos aprender a fazer com essa biomassa tudo o que fazemos com o petróleo”, alertou. Segundo ele, fontes alternativas como solar e eólica podem contribuir para resolver problemas de energia, mas a química fina dependerá dos carboidratos. E na economia dessa n química o Brasil deve sobressair.


[ ecologia ]

Marcos André / Opção Brasil Imagens

Berçários móveis Peixes se reproduzem e criam filhotes em espaços específicos dos manguezais Carlos Fioravanti

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á bons motivos para não gostar dos manguezais: são feios, lamacentos, repletos de mosquitos e geralmente cheiram mal. Mas há também boas – e novas – razões para dar mais valor a esses espaços que misturam água do mar e de rios em meio a árvores de raízes expostas. Aprofundando a antiga explicação de que os manguezais são berçários de animais marinhos, uma equipe da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) verificou que várias espécies de peixes precisam de redutos distintos no mangue, com salinidade maior ou menor, para desovar e criar seus filhotes até que sejam capazes de seguir para o oceano. “O local de acasalamento dos peixes é um, o de desova é outro e o berçário é um terceiro, às vezes distantes entre si dezenas de metros, tudo dentro PESQUISA FAPESP 187

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fabio colombini

Os manguezais são uma das florestas mais ricas em carbono, mas metade já desapareceu

do estuário”, diz Mario Barletta, que, com seu grupo, percorre os estuários da América do Sul. Outra conclusão é que esses locais de reprodução, desova, crescimento, proteção e alimentação de peixes variam ao longo do ano, de acordo com as fases da lua e o regime de chuvas, com diferentes níveis de turbidez, salinidade e concentração do oxigênio dissolvido na água. “Esses refúgios, muitas vezes localizados em canais bem estreitos dos manguezais, podem estar mais longe da costa, quando chove muito, ou mais perto, quando chove pouco”, diz Barletta. Comuns em todo o litoral brasileiro, exceto no Rio Grande do Sul, os manguezais são protegidos por lei federal, mas estão perdendo espaço para estradas, condomínios residenciais e indústrias, e ganhando poluição. Sem seus refúgios, peixes e tartarugas marinhas em crescimento mudam a dieta e comem até plástico. No estuário do rio Goiana, uma área de 475 mil metros quadrados coberta por manguezal entre os estados de Pernambuco e Paraíba, Barletta e sua equipe analisaram 60 bagres-amarelos (Cathorops spixii), 60 bagres-brancos­ (C. agassizii) e 62 bagres-guiris (Sciades herzbergii), espécies bastante consumidas pelos ribeirinhos. Abriram a barriga de cada um deles e, em pelo menos 20% dos exemplares de cada espécie, encontraram pedaços de fios de náilon de cordas de barcos ou de redes de pesca. Fernanda Possatto, Barletta e outros pesquisadores da UFPE alertam que não é possível quantificar o alcance desse fenômeno nem as consequências desse tipo de poluição, mas recomendam mais cuidados para evitar que ela prejudique ainda mais a vida dos peixes e das pessoas. 56

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Não é só lá. No estuário de Paranaguá, uma área de 600 quilômetros quadrados coberta por matas e manguezais na Região Sul do país, pesquisadores da UFPE, da Universidade Federal do Paraná e do Instituto de Pesquisas Cananeia, de Campinas, coletaram 80 carcaças de tartarugas-verdes (Chelonia mydas) jovens capturadas em redes de pesca de junho de 2004 a julho de 2007. No estômago e nos intestinos de 76 delas, além de algas, plantas do mangue e conchas com que costumam se alimentar, eles encontraram restos de sacolas plásticas, fios de náilon e pedaços de placas de poliestireno, como detalhado na edição de fevereiro da revista Endangered Species Research. Segundo Barletta, esse fato indica que as separações espaciais do estuário – dividido em áreas de preservação ou de pesca artesanal, porto e desenvolvimento urbano ou turístico – não estão funcionando. Outros estudos de seu grupo haviam detectado resquícios de metais pesados, principalmente mercúrio, e de outros tipos de resíduos em peixes que passam ao menos parte da vida em manguezais. Barragens - Os manguezais estão encolhendo e se tornando mais poluídos em toda a costa da América do Sul. Especialistas do Brasil, da Argentina, da Venezuela e da Colômbia concluíram que, além da sobrepesca, a perda desses ambientes naturais causada pelo despejo de esgotos e resíduos da mineração e de outras atividades industriais marca as nove principais bacias hidrográficas e estuários sul-americanos: a bacia do rio Madalena, na Colômbia; a do rio Orinoco, na Venezuela; a bacia amazônica, incluindo terras do Brasil, Peru e Bolívia; os estuários do rio Goiana, entre Pernambuco e Paraíba, do rio Paranaguá, no Paraná; da lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul; a bacia e o estuário dos rios da Prata e Paraná, na fronteira de Argentina, Paraguai e Brasil. De acordo com esse levantamento, que resultou em um estudo de 59 páginas publicado em 2010 na Journal of Fish Biology, a construção de barragens fragmentou o curso de rios como o Paraná e o Uruguai e promoveu mudanças severas em manguezais e em outros ambientes costeiros em que os peixes vivem. A dragagem de estuários, como foi feito em Paranaguá para a construção do


Clemente Coelho Junior

porto na porção mais interna do estuário, causou uma redução no número de espécies. Na bacia do rio Urucu, um afluente do Amazonas, o principal problema detectado foi a poluição causada pelo vazamento de óleo no momento da prospecção. Barletta recomenda a valorização, a preservação e a recuperação desses ambientes. Para ele, os manguezais, mesmo sob tantas pressões, não precisam permanecer intocados. “Podemos explorar, claro, mas com critérios”, sugere. Metade da área de manguezais desapareceu nos últimos 50 anos no mundo todo, como resultado do crescimento de cidades nas zonas costeiras, de acordo com um estudo de Daniel Donato, do Serviço Florestal dos Estados Unidos, publicado em abril na Nature Geoscience. Esse trabalho traz uma conclusão que pode contribuir para preservar esses espaços inegavelmente fétidos: os manguezais são uma das florestas mais ricas em carbono do mundo. A perda dessas matas pode gerar o equivalente a 10% do total de gás carbônico emitido pelo desmatamento, mesmo que os manguezais respondam por apenas 0,7% do total das florestas tropicais do mundo.

Rio Maracaípe, em Pernambuco: estuários em transformação

“Os manguezais são ambientes muito frágeis e sensíveis à contaminação”, observa Itamar Soares de Melo, pesquisador da Embrapa, que coordenou um levantamento de microrganismos em manguezais de São Paulo. No município de Bertioga, ele encontrou bactérias do gênero Pseudomonas que produzem compostos capazes de degradar hidrocarbonetos como os do petróleo. Henrique Santos, Raquel Peixoto e outros pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro verificaram que as populações de microrganismos antes e depois da chegada dos contaminantes mudam bastante. As populações de bactérias dos gêneros Mirinobacterium, Marinobacter, Clostridium e Fusibacter se ampliam, enquanto as dos gêneros Haliea e Chromatiales caem bastante. Os pesquisadores acreditam que essas alterações podem ajudar a prever os possíveis impactos ambientais em regiões como a baía de Sepetiba,

no Rio de Janeiro, que abriga o porto de Itaguaí, em obras de dragagem para receber navios maiores. Melo e sua equipe identificaram novas espécies de microrganismos adaptados à alta salinidade nos manguezais, um ambiente seletivo também para as plantas, pois apenas poucas espécies de árvores vivem nesses espaços, algumas com raízes expostas, que facilitam sua fixação no lodo. Em manguezais sem poluição, Melo encontrou também espécies não patogênicas de bactérias do gênero Vibrio vivendo no interior de árvores. “As bactérias podem estar suprindo as plantas com nitrogênio e fósforo, nutrientes importantes para o crescimento, mas escassos naquele ambiente”, comenta. n Artigos científicos 1. GUEBERT-BARTHOLO, F.M. et al. Using gut contents to assess foraging patterns of juvenile green turtles Chelonia mydas in the Paranaguá Estuary, Brazil. Endangered Species Research. v. 13, p. 131-43. 2011. 2. BARLETTA, M. et. al. Fish and aquatic habitat conservation in South America: a continental overview with emphasis on neotropical systems. Journal of Fish Biology. v. 76, p. 2.118-76. 2010.

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[ Nutrição ]

Os perigos do jejum Ficar muito tempo sem comer pode causar graves desequilíbrios no organismo

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ense duas vezes antes de passar fome durante a semana para se refestelar com a feijoada no sábado. Agora há indicações de que ficar muito tempo sem comer e depois cair na comilança pode ser pouco saudável. Estudos com animais mostraram que o jejum prolongado alternado com alimentação excessiva pode alterar o funcionamento da insulina, o hormônio que facilita a entrada e o metabolismo de glicose nas células, favorecendo o surgimento do diabetes. O alerta resulta de um estudo feito pela nutricionista Fernanda Cerqueira em seu doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Alicia Kowaltowski. Fernanda desconfiava de que as dietas que restringem o consumo de alimentos poderiam ter efeitos diferentes sobre o organismo, mesmo que todas fizessem emagrecer. Como é dificílimo fazer esse tipo de estudo com pessoas, Fernanda submeteu cerca de 100 ratos a diferentes regimes de restrição dietética durante nove meses, o equivalente a quase 20 anos de vida de uma pessoa. Ela os dividiu em quatro grupos: o controle, que podia comer à vontade; o de restrição calórica, que recebia 60% da dieta padrão e uma complementação de vitaminas e sais minerais; o de restrição completa, que recebia uma die-

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foto eduardo cesar

ta 60% menor, sem suplementação vitamínica; e o de dieta intermitente, alimentado dia sim, dia não. As maiores surpresas apareceram nos animais do grupo submetido à dieta intermitente. Depois de um dia de jejum estavam esfomeados e, de uma só vez, comiam o dobro que os ratos controle. Também perderam peso, mas apenas de massa muscular, mantendo a mesma quantidade de gordura visceral que os do grupo controle. Do mesmo modo, os animais sob jejum absorviam a glicose, mas a aproveitavam menos. A provável explicação é o acúmulo de radicais livres, compostos químicos bastante reativos que se apresentaram em quantidade maior que nos animais do grupo controle. Os animais que passaram pelo jejum a cada dois dias tinham oito vezes mais peróxido de hidrogênio, um composto altamente reativo. O peróxido é uma molécula derivada de radicais superóxidos, que participam da formação do peroxinitrito, que adere a uma molécula chamada receptor de insulina. Por sua vez, o receptor aciona outras moléculas e faz com que a glicose entre nas células. “A insulina continua se ligando ao receptor, mas a resposta do receptor é menor que a normal”, diz Fernanda. Segundo ela, a reação do peroxinitrito com o receptor de insulina é um fenô-

meno irreversível e a consequência é que as células, principalmente as dos músculos, vão receber e metabolizar menos glicose do que necessitam. “Mesmo pesando menos, os ratos submetidos à dieta intermitente perderam a regulação metabólica adequada”, diz Alicia. “Os efeitos dos jejuns frequentes deveriam ser investigados mais profundamente também em seres humanos.” Padrão sedentário - Os resultados

obtidos com animais de laboratório não podem ser simplesmente transpostos para a realidade humana. A primeira razão é que os animais do grupo controle podem não ser os padrões ideais para balizar os resultados. Em 2010, na PNAS, pesquisadores dos Estados Unidos mostraram que os ratos de biotério, por comerem o quanto e quando quiserem e serem sedentários, são resistentes à insulina, têm predisposição à inflamação e pesam 20% mais que o animal silvestre. “Os animais de laboratório usados como controle em muitas pesquisas biomédicas correspondem ao normal sedentário, não ao normal ativo”, diz Francisco Laurindo, pesquisador do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP. Mesmo assim, o organismo humano segue uma lógica similar à dos roedores, o que sugere que os fenômenos observados e seus efeitos devem ser similares. “A restrição calóri-

ca pode funcionar como um pequeno estresse, preparando o organismo para uma situação subsequente de estresse mais intenso”, diz Laurindo. Dietas de restrição alimentar podem ainda ajudar pessoas a se recuperar de doenças e a amenizar os efeitos do excesso de medicamentos. Quem passou por um infarto tem de tomar muitos remédios e seguir uma dieta que restringe o consumo de alimentos gordurosos, uma das causas de problemas cardíacos. O grupo de Laurindo encontrou uma alternativa: a dieta mediterrânea, à base de verduras, legumes, frutas e azeite de oliva como principal fonte de gordura. Em um estudo com 19 pessoas que seguiram a dieta tradicional e 21 a mediterrânea, as duas dietas reduziram o peso e melhoram a pressão arterial e outros indicadores de problemas cardíacos. “A diferença”, diz, “é que a dieta mediterrânea é mais saborosa e permite o consumo moderado de queijo, azeite e vinho”. Formada em nutrição em Goiânia, atualmente na Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, Fernanda desconfiava também das dietas que recomendavam às pessoas comerem pouco a cada três horas. Ela pensava que essa estratégia poderia manter a insulina e a glicose em níveis elevados, mas o experimento com os ratos a fez repensar. “Jejuar e depois comer muito pode gerar uma sobrecarga de nutrientes e picos de insulina e de radicais livres.” O excesso de calorias pode resultar não só de comida, mas também de cerveja, vinho e outros prazeres de fim de semana. “As células não distinguem a fonte das calorias, que também se originam das bebidas alcoólicas.” n

Carlos Fioravanti Artigos científicos 1. CERQUEIRA, F.M. et al. Long-term intermittent feeding, but not caloric restriction, leads to redox imbalance, insulin receptor nitration, and glucose intolerance. Free Radical Biology and Medicine (no prelo). 2. THOMAZELLA, M.C.D. et al. Effects of high adherence to Mediterranean or Low-Fat Diets in medicated secondary prevention patients. American Journal of Cardiology (no prelo). PESQUISA FAPESP 187

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linha de produção

IBM

Processador Inteligente

Cabines mais resistentes

ao desenvolvimento de tecnologias inovadoras, estampa chapas metálicas altamente resistentes.

Airbus

Uma das partes mais sensíveis na fuselagem de um avião é o cockpit, a cabine de pilotagem localizada na frente da aeronave, submetida a forte e permanente atrito com o ar, poeira, água e gelo durante o voo. Para tornar os aviões mais resistentes, a Airbus acaba de firmar um acordo com a empresa holandesa 3D-Metal Forming para aplicar uma

Há alguns anos a IBM vem tentando tornar realidade o que se conhece por “computação cognitiva”, um processador capaz de reproduzir as capacidades do cérebro como percepção, sensação, ação, interação e cognição. Em outras palavras, criar uma espécie de máquina “inteligente”. E, depois de tanto esforço, parece que a empresa Funções finalmente atingiu seu objetivo. Em meados de do cérebro agosto, ela revelou uma nova geração de chips humano em um chip neurossinápticos capazes de aprender, por meio da experiência, encontrar correlações, criar hipóteses e recordar, mimetizando a estrutura de funcionamento do cérebro humano. Ainda nova tecnologia na em fase experimental, os novos processadores foram bemconstrução da fuselagem -sucedidos na realização de aplicações triviais como naveda cabine de seus jatos. gação, reconhecimento de padrões, classificação e memória Batizada de técnica de associativa. Eles são o resultado concreto da primeira etapa conformação explosiva, de um projeto conhecido como SyNAPSE (iniciais de systems ela foi desenvolvida para of neuromorphic adaptive plastic scalable electronics), cujo obfabricar componentes para jetivo é criar um sistema, com hardware e software, capaz não reatores de fusão nuclear, apenas de processar informações complexas a partir de múltique precisam suportar plas modalidades sensoriais, mas também de reconfigurar-se altas temperaturas. A dinamicamente na medida em que interage com o ambiente. empresa, nascida em 1998 Agora o objetivo da empresa é aumentar a capacidade de como uma spin-off do desempenho dos processadores para torná-los capazes de Instituto TNO, voltado executar tarefas mais complexas.

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Nanoestrutura durável Um vidro nanoestruturado, que pode ser empregado como memória óptica e ainda reduzir significativamente o custo de imagens médicas, foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Southampton, na Grã-Bretanha. A equipe liderada pelo professor Peter Kazansky utilizou um laser pulsado ultrarrápido

para imprimir no vidro pontos minúsculos, como se fossem pixels em 3D, batizados de voxels. As nanoestruturas ópticas criam redemoinhos de luz que podem ser lidos de maneira semelhante à leitura de informações que percorrem uma fibra óptica. A diferença é que, como o laser altera os átomos no vidro, um dado gravado nesse tipo de memória teria vida útil muito longa.


Embrapa

Frutos da Parceria Saladas e molhos vão ganhar novas opções de tomates. São três variedades desenvolvidas pela unidade Embrapa Hortaliças, de Brasília, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, sob coordenação do pesquisador Leonardo Boiteux, que estarão disponíveis para os agricultores no início de 2012. Duas são do tipo Santa Cruz, o BRS Kiara, de firmeza média, muito produtivo e de rápido crescimento, e o BRS Nagai, com frutos mais alongados e resistência a uma doença virótica conhecida como vira-cabeça. A terceira é do tipo cereja, chamada de BRS Iracema, também muito produtiva, com Tomates de maior teor de açúcar, além de apresentar recrescimento rápido sistência a nematoides (animais microscópicos semelhantes a vermes). Outra novidade é que o Diagnóstico desenvolvimento dos cultivares foi realizado em parceria com a empresa Agrocinco, com sede na cidade de Monte Mor, no refinado interior paulista, que atua há 12 anos no mercado de hortaliças. Com base na Lei de Inovação, a empresa fez investimentos Um grupo de pesquisadores da diretos na pesquisa tecnológica da Embrapa e terá direito de comercializar as sementes por 10 anos. Universidade Federal

Para garantir uma vida mais longa na prateleira aos iogurtes probióticos, feitos com bactérias vivas que resistem ao processo digestivo e chegam intactas ao intestino para melhorar o seu funcionamento, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recorreram a uma enzima removedora de oxigênio, adicionada durante o processamento do produto, após a fermentação. A enzima, chamada glicose oxidase, já é utilizada em bebidas para evitar que elas escureçam. Mas não para produtos lácteos. “Como os microrganismos probióticos são anaeróbios, o oxigênio é tóxico para eles”, diz o

pesquisador Adriano Gomes da Cruz, que desenvolveu a pesquisa durante o seu doutorado na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, orientado pelo professor José de Assis Faria. Nessa etapa, Cruz identificou as melhores concentrações da enzima para obter a máxima viabilidade do microrganismo probiótico Bifidobacterium longum. O iogurte também foi aprovado por consumidores em testes de análise sensorial. Atualmente Cruz faz pós-doutorado na mesma linha de pesquisa. “Investigo a reação dos consumidores com relação aos níveis crescentes da enzima adicionada ao iogurte e comparando com os probióticos existentes no mercado.”

eduardo cesar

Vida longa aos probióticos

do Rio de Janeiro (UFRJ) contribuiu para o aprimoramento de diagnósticos de leucemia feitos por um equipamento chamado citometria de fluxo. “A citometria é a medida de células feita por um aparelho capaz de analisar características individuais de cada uma

delas”, diz o professor Carlos Eduardo Pedreira, do Programa de Engenharia Elétrica do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da universidade, responsável pelo desenvolvimento do Infinicyt, um software que permite análises mais precisas dos resultados observados durante o processo de citometria. O software possui três patentes e já é utilizado em mais de 20 países, incluindo o Brasil. “É um trabalho de interface entre engenharia e medicina”, diz o pesquisador. Há cinco anos ele contribui para o EuroFlow, um consórcio de universidades europeias de especialistas em citometria de fluxo. A UFRJ é a única instituição não europeia integrante do consórcio. Uma das patentes, por exemplo, se refere à busca do que se chama em medicina de doença residual mínima. O software consegue selecionar 20 células doentes entre mais de 1 milhão de células.

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[ Nanotecnologia ]

Inovação em pequena escala

Nanopartículas combatem microrganismos e melhoram a eficiência de adesivos

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artículas com nanotecnologia que destroem bactérias da superfície de instrumentos odontológicos ou que garantem adesivos mais transparentes e eficientes já são realidade no Brasil. De tamanho equivalente a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes, essas partículas, quando incorporadas a materiais como plásticos ou pinceladas em forma de solução ou, ainda, em filmes chamados de coatings aplicados sobre metais, promovem uma série de benefícios para os consumidores. A função mais relevante é em relação à saúde dos usuários por meio da reação que nanopartículas de prata provocam na parede celular das bactérias, eliminan­­do-as e evitando possíveis contaminações, além de deixar as superfícies limpas e sem cheiro ruim de forma permanente. São novos materiais ligados ao campo da nanotecnologia, segmento tecnológico interdisciplinar que despontou para o mercado na primeira década deste século. Na realidade, o que muda em relação à prata é sua industrialização em escala nanométrica em nível molecular, porque esse metal é utilizado na medicina, para a cura de feridas, desde a Antiguidade. Pelo conhecimento anterior, não é de estranhar que a prata tenha sido um dos primeiros componentes do mun-

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do nanotecnológico. Várias empresas no mundo já utilizam essa tecnologia, principalmente para revestimento bactericida de produtos. O mercado de nanorrevestimento e nanoadesivos atingiu a marca em vendas mundiais de US$ 2 bilhões em 2009, de acordo com a empresa de pesquisa de mercado norte-americana BCC Research. Segundo a consultoria, a previsão para o mercado desse setor nanotecnológico será de US$ 18 bilhões em 2015. Nesse mercado está a empresa brasileira Nanox, de São Carlos, no interior paulista, uma spin-off surgida em 2004 de dois institutos de química, um da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e outro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, em dois grupos de pesquisa que trabalham cooperativamente e são integrantes do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, coordenado pelo professor Elson Longo. No ano passado, 40% das vendas da Nanox seguiram para o México e Estados Unidos como matéria-prima para ser incorporada a vários tipos de peças plásticas e metálicas da linha premium das geladeiras das marcas General Electric (GE) e Mabe, como dispensadores

PASIEKA/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Marcos de Oliveira


tecnologia

de água, gavetas e prateleiras que evitam a contaminação cruzada entre alimentos, formação de mau cheiro e bolores. “A tecnologia age contra vários microrganismos como bactérias e fungos”, diz Daniel Minozzi, um dos três sócios da Nanox. O faturamento da empresa atingiu R$ 2,1 milhões em 2010, ante R$ 1,3 milhão em 2009. A tecnologia da Nanox, chamada de NanoxClean, na forma de filmes finos para aplicação em metais, também está desde 2010 em todos os equipamentos odontológicos produzidos pela Dabi Atlante, uma empresa 100% nacional fundada em 1945. “Desenvolvemos com a Nanox a tecnologia que leva o nome de B-Safe em nossos equipamentos”, conta Caetano Biagi, diretor industrial da Dabi. A Nanox licenciou e coordena a produção e aplicação do produto. “São mais de 15 materiais com a nossa tecnologia que possuem ação antimicrobial”, diz Daniel. O material com nanotecnologia de prata recobre todos os objetos, como a cadeira de dentista, o aparelho conhecido como motorzinho, a luminária e os instrumentos, mangueiras e bandejas. “Decidimos colocar em toda a linha de produtos como forma de dar maior biossegurança para o dentista e os pacientes, evitando contaminações cruzadas”, diz Biagi. Assim, um dentista,

ao colocar a mão na boca do paciente e depois pegar o motorzinho ou ajustar a iluminação sobre a cadeira odontológica, não corre o risco de transferir bactérias para o paciente seguinte. Esses equipamentos odontológicos com nanotecnologia já são exportados para Itália, Espanha, Portugal, Polônia, África do Sul, China, Tailândia e todos os países da América Latina. Cerca de 20% do faturamento de R$ 100 milhões da Dabi vem das exportações. “Não conhecemos nenhum tipo de equipamento com essa tecnologia no mundo, mesmo nos Estados Unidos e Europa”, diz Biagi. Os produtos da Nanox ainda estão nos bebedouros de aço inoxidável e plástico da empresa IBBL, de Itu, no interior paulista, como bactericida, e também nos secadores de cabelo e em chapas de alisamento da Taiff, empresa instalada em São Paulo. Nesses casos, as nanopartículas eliminam microrganismos presentes nos jatos de ar ou nas chapas tornando os cabelos mais limpos, segundo a empresa. O próximo passo da Nanox é o lançamento de um produto com partículas com efeito bactericida para plásticos que servirá para confeccionar embalagens para acondicionar alimentos. “Conseguimos formular essas partículas nanoestruturadas por meio de um projeto do Programa pESQUISA FAPESP 187

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s usos da nanotecnologia são ilimitados e podem abranger de sacos de lixo para área hospitalar a tapetes e carpetes onde os ácaros são os principais inimigos a serem derrotados como agentes de alergia. “As partículas não matam os ácaros, mas matam as bactérias e fungos, que são alimentos dos ácaros, que, assim, morrem de fome.” Daniel imagina que nanopartículas possam estar também em caminhões frigoríficos, contêineres e teclados de computadores. Uma outra linha de produtos da empresa volta-se para a construção civil. É uma tecnologia que deverá ser lançada neste ano para esmalte cerâmico de pisos, revestimentos e louças que possui ação biocida e está em desenvolvimento há três anos. “É um biocida ativo que pode ser incorporado na composição da peça sem alterar o processo de produção atual de pisos, ladrilhos, pias e louças sanitárias”, afirma Daniel. A primeira impressão é de que o custo desses produtos com nanotecnologia é elevado. “Normalmente, as empresas não acrescentam o valor da tecnologia nos preços finais, mas diminuem a margem e ganham no marketing, na maior capacidade de vendas e na competitividade. No caso dos plásticos, o custo de agregar as partículas representa menos de 10% por quilo do produto”, explica Daniel. Com tantos lançamentos e possibilidades de aplicações nanotecnológicas, a empresa, que tem a concorrência de outras estrangeiras, algumas já instaladas no Brasil, como a norte-americana Microban, não deixa de ter um contato mais próximo com as universidades brasileiras. “Sempre nos valemos das universidades para consultoria e troca de ideias. Um ponto recorrente é a caracterização no desenvolvimento e

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Sempre recorremos às universidades para consultoria e troca de ideias. Um dos pontos é a caracterização do produto, diz Daniel

no final do produto, quando nos servimos dos microscópios eletrônicos das universidades”, diz Daniel. Os parceiros principais estão ligados à origem da empresa na UFSCar e na Unesp, com os professores Elson Longo e José Arana Varela, além de outros grupos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Hoje não adianta fazer alta tecnologia no Brasil se não se tiver o apoio da universidade”, diz o professor Elson. “Esses produtos exigem caracterização e laboratórios sofisticados com equipamentos como microscópios de varredura de alta resolução que custam € 600 mil, ou de transmissão de alta re-

solução, ao custo de € 1,3 milhão, além de aparelhos para difração de raios X, fotoluminiscência e outros que atingem um total de R$ 10 milhões”, diz. “Tudo isso para saber se o produto é realmente nanométrico e se cumpre as funções a que se destina. E as empresas não conseguem comprar esses equipamentos.” Na Nanox, os sócios – Daniel, Luiz Gustavo Simões e André Luiz de Araújo – se conheceram no curso de graduação em química na UFSCar e amadureceram a ideia da empresa no mestrado na Unesp de Araraquara. “Começamos porque tivemos aprovado um projeto Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa da FAPESP] em 2004”, diz Daniel. A Nanox surgiu como Science Solution (leia em Pesquisa Fapesp n° 121) e se instalou no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas da Fundação Parqtec, em São Carlos. Em 2006 mudou de nome e recebeu aporte financeiro de uma empresa de capital de risco, o fundo Novarum, do grupo Jardim Botânico Investimentos. Embora as partes não revelem a quantia, informações de mercado indicam um investimento de R$ 1 milhão. “O aporte e mais a colaboração do fundo na gestão da empresa, com visão financeira, além da rede de contatos empresariais são muito importantes”, diz Daniel. Em relação à tecnologia, ele diz que desde a saída da universidade,

Nanossílica nos filmes para rótulos da Novelprint

eduardo cesar

de Subvenção Econômica da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Elas podem ser incorporadas em vários tipos de plástico como polipropileno e PET. Esse material passou a constar em uma lista da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para uso em contato com alimentos. Isso foi possível depois de um estudo, e a comprovação da não toxicidade e não migração das partículas em plásticos, feito pelo Ital [Instituto Tecnológico de Alimentos] e Secretaria de Agricultura do estado”, diz Daniel.


rorivaldo camargo e ricardo tranquilin / cmdmc

a evolução dentro da empresa foi grande: “75% do nosso tempo é dedicado ao desenvolvimento de produtos e novas aplicações. São 20 funcionários, com profissionais com graduação, mestrado e dois com doutorado, além do presidente Luiz Gustavo”.

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utra empresa brasileira que incorporou nanotecnologia em seus produtos foi a Novelprint, de São Paulo, empresa de porte médio especializada em rótulos e etiquetas autoadesivas, além de fabricar máquinas de rotulagem, para grandes empresas como Nestlé, Bayer, Indústrias Muller, Heliar, Monsanto, Texaco e Cervejaria Kaiser, desde 1958. A Novelprint já está fornecendo a seus clientes materiais autoadesivos que contêm nanomateriais, como nanossílica, para, por exemplo, garrafas de vidro de cervejas e bebidas ice. Essas nanopartículas são translúcidas e permitem produzir rótulos mais transparentes e com melhor adesão às garrafas e a materiais plásticos, garantindo maior resistência ao material. Os nanomateriais aplicados a uma das camadas dos rótulos e etiquetas permite também que se utilize menos cola. “Reduzimos um terço da quantidade da cola, de 20 a 30 gramas por metro quadrado (g/m2), para 10 g/m2 com a nanossílica”, diz Derick Arippol, diretor técnico da Novelprint, empresa que sempre procurou desenvolver tecnologias próprias, contando atualmente com 95 patentes no Brasil, sendo 4 sobre nanomateriais, além de 3 nos Estados Unidos.

Os Projetos 1. Aplicação de coating cerâmico em superfícies metálicas – n° 2004/08778-1 2. Coatings nanoestruturados transparentes aplicados a materiais vítreos – n° 2005/55876-1 modalidade

1. e 2. Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dores

1. Luiz Gustavo Simões – Nanox 2. André Luiz de Araújo – Nanox investimento

1. R$ 475.248,48 (FAPESP) 2. R$ 384.415,00 (FAPESP)

Nanopartículas de prata obtidas em microscópio eletrônico de varredura e coloridas artificialmente

“Meu pai [Jeffrey Arippol, presidente da empresa] já imaginava adesivos com nanotecnologia em 2004, principalmente para baterias de carro e vasilhames de óleo automotivo que apresentavam problemas de aderência”, diz Derick, um físico que chegou a montar uma start-up (empresa iniciante) em computação gráfica nos Estados Unidos, mas preferiu voltar ao Brasil e trabalhar na empresa familiar. A concretização de um projeto nanotecnológico aconteceu em 2005, quando a empresa foi procurada pela Finep. A agência estatal ofereceu a oportunidade dentro do Programa Pró-Inovação e dois anos depois a Novelprint já ofertava produtos com nanotecnologia. Para executar esse projeto a empresa contratou dois recém-doutores do Instituto de Química da USP, que haviam trabalhado com nanotecnologia na universidade, mas não com adesivos ou rótulos. “Eles, dentro dos laboratórios da empresa e com a colaboração da universidade, identificaram qual material deveria ser usado, fizeram as formulações e processos até o produto final”, explica Simon Bahbouth, diretor da Radeco, consultoria que assessora a Novelprint.

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mbora real o sucesso de empresas como Novelprint, Nanox e Dabi Atlante, ainda falta um cenário no país mais favorável aos produtos com nanotecnologia incorporada. “Falta informação para as empresas, porque muitos empresários não sabem o que é a nanotecnologia, além de um melhor intercâmbio com as universidades”, diz José Ricardo Roriz Coelho, diretor do Departamento de Competitividade e Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que também é presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast) e presidente da empresa Vitopel, a maior produtora de filmes para embalagem da América Latina. Outro fator apontado por ele é a regulamentação de produtos nanotecnológicos que entram em contato com alimentos e bebidas, nas embalagens, por exemplo. “Na Vitopel desenvolvemos uma embalagem plástica com nanopartículas de prata incorporada que aumenta em até 70% o tempo de validade de uma verdura na prateleira”, diz José Ricardo. “Mas, como não há uma regulamentação da Anvisa, não temos segurança jurídica de que essas partículas nano não fazem mal à saúde quando em contato direto com alimentos e não podemos colocar o produto no mercado. Além disso faltam fornecedores locais de nanopartículas.” n

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[ agricultura ]

Viva a diferença Avança a seleção de variedades de cafés com sabores ou aromas únicos Carlos Fioravanti

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engenheiro agrônomo Gerson Silva Giomo apresenta com deferência os cafeeiros altos, encorpados e uniformes que formam uma mancha verde de um dos lados de uma estrada de terra da Fazenda Santa Elisa, nas bordas da cidade de Campinas. É o resultado de quase um século de melhoramento genético, que fez a produtividade dar um salto de 250%. Em seguida, Giomo sorri com discrição ao mostrar, do outro lado da estradinha, o que mais lhe interessa: fileiras de cafeeiros miúdos, desgrenhados e deselegantes. “Quem disse que esses pés feios, pequenos e com poucos frutos não podem produzir café de qualidade?”, ele indaga. “Quanto mais diferentes são as plantas, maior a chance de encontrar frutos com características que interessem para os produtores e apreciadores.” À frente do programa de cafés especiais do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), Giomo está colhendo os grãos que devem resultar em cafés mais doces, encorpados, leves, achocolatados ou frutados, para serem bebidos com calma, como café, não como um rápido cafezinho, ou usados em misturas de cafés, os blends, e em molhos para carnes. Em julho Giomo acompanhou a colheita dos grãos dos cafeeiros pouco valorizados, embalados separadamente. Ele esperou os grãos secarem sem pressa durante 30 dias em um dos galpões de secagem do IAC e estava perto na hora de torrar, quando os grãos esverdeados ganham cor, aroma e acidez, antes de serem moídos e aproveitados para se fazer uma das bebidas mais consumidas do mundo.

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fotos eduardo cesar

Cana, o exemplo – O trabalho inte-

Em seguida foi como degustador certificado pela Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA) que Giomo escolheu os de sabores e aromas mais originais, que ele pretende apresentar neste mês para um grupo de degustadores – pelo menos dois dos Estados Unidos. “São eles que vão nos dizer quais as variedades a que devemos dar mais atenção no IAC”, assegura. A SCAA estabelece 10 itens de avaliação, como sabor, aroma, doçura, acidez, corpo, sabor residual e equilíbrio. Acidez mais alta é valorizada, mas depende do tipo de acidez: “É melhor uma acidez cítrica ou frutada; a acidez acética, que lembra o vinagre, é ruim”. Escolhidos os melhores entre os melhores, os pesquisadores devem voltar ao campo e ampliar a produtividade das plantas em que cresceram os grãos do café que mais impressionaram os provadores. Giomo acredita que em sete anos os produtores poderão ter à mão pelo menos 10 novas variedades que conciliem características marcantes e diferenciadas de sabor e aroma com uma produtividade aceitável. “Queremos que os resultados cheguem aos produtores interessados o mais rapidamente possível”, apressa Oliveiro Guerreiro Filho, diretor do Centro de Café do IAC.

grado com os produtores foi o que recuperou o programa do IAC para melhoramento genético da cana-de-açúcar. No final da década de 1980, Marcos Landell, então pesquisador recém-contratado, encontrou o programa agonizante: os especialistas mais experientes se aposentavam, nenhuma pesquisa nova à vista. Logo depois, dois programas de pesquisa em cana criados nos anos 1970 encolheram, estimulando o IAC a se reorganizar nessa área. “Como éramos poucos, tratamos de nos organizar”, conta Landell. Ele e dois colegas de outras unidades do IAC, Pery Figueiredo e Mário Campana, procuraram técnicos de usinas produtoras de açúcar e álcool e pesquisadores de universidades e de outras instituições. Durante um ano reuniram-se uma vez por mês no bar Ao Leste do Éden para levantar problemas e possibilidades de ação. As conversas, ele garantiu, eram bastante produtivas, mas a mulher de um deles reclamou das noitadas, sem acreditar que eram encontros técnicos, e em abril de 1992 começaram a se reunir dentro do IAC de Ribeirão Preto. Trocaram as cervejas por café e chá, mas o grupo já havia crescido de meia dúzia para cerca de 40 participantes – hoje são 130. Em conjunto, planejaram e testaram novas técnicas de colheita, identificaram novas variedades de cana que poderiam ser usadas, detectaram e combateram pragas e doenças que começavam a chegar.

Uma consulta realizada em uma feira agrícola realizada no IAC indicou que os produtores queriam uma cana mais adequada à alimentação do gado. “Vimos que havia mais de 1,5 milhão de pecuaristas que usavam cana para gado, mais que para etanol”, conta Landell. Sua equipe, em conjunto com colegas do Instituto de Zootecnia e da Embrapa, identificou no próprio acervo do IAC uma variedade de cana forrageira menos fibrosa e mais doce, capaz de fazer as vacas produzirem mais leite, lançada em 2002. “Renascemos das cinzas, sem recursos, mas com a disposição de pessoas das usinas e da administração do instituto que deixaram o caminho aberto para atuarmos com criatividade”, celebra Landell, que desde 1995 dirige o centro PESQUISA FAPESP 187 setembro DE 2011 n

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de pesquisa e coordena o programa de melhoramento de cana. A contratação de nove pesquisadores em 2005 ampliou os trabalhos conjuntos com outros centros de pesquisa do país e de outros países. Desse tipo de abordagem, se funcionar outra vez, poderão resultar cafés de gostos diferenciados, tornando a produção brasileira respeitada não só pela quantidade, mas também pela qualidade. O Brasil é hoje o maior produtor mundial de café: a safra de 2011 deve ser de 43,5 milhões de sacas de 60 quilogramas (kg). Apenas duas espécies, as mais produtivas até agora encontradas, dão conta dessa montanha de café. A Coffea arabica, que produz os grãos usados no café consumido como bebida, ocupa 76% dos cafezais, enquanto a Coffea canephora, também chamada de robusta ou conilon, usada em cafés solúveis, os outros 24%. O melhoramento genético fez a produtividade aumentar em 250% desde 1727, quando o sargento Francisco de Melo Palheta plantou no Pará as primeiras mudas de café, que ele trouxe clandestinamente da Guiana Francesa. Por outro lado, a qualidade não foi tão enfatizada. “O melhoramento genético elimina a diversidade para valorizar a produtividade”, diz Maria Bernadete Silvarolla, pesquisadora do IAC.

Cafés mirradinhos, mas com sabor distinto 68

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As novas variedades devem ser escolhidas entre as raridades que crescem na fazenda do IAC – algumas delas nem parecem um pé de café, são longilíneas e têm folhas largas como uma jaqueira. Essa coleção de cafeeiros, a maior do país, começou a ser formada em 1932 com variedades trazidas da Etiópia, do Quênia, da Costa Rica, de El Salvador e da Guatemala. Por uma área de 70 hectares se espalham cerca de 120 mil plantas de 15 espécies ou combinações entre elas. “Por causa das leis que desde os anos 1990 dificultam a troca de material genético entre pesquisadores de países diferentes”, diz Bernadete, “hoje seria impossível formar uma coleção tão rica em diversidade genética”. Uma das espécies silvestres que crescem perto do centro de pesquisa

do café é a Coffea eugenioides. É um arbusto de folhas pequenas e frutos vermelhos bem pequenos, a partir dos quais se pode produzir um café suave, límpido, com baixa adstringência e um tênue aroma floral. Estudos recentes indicaram que essa espécie é uma das que originaram espécies das quais se formou a Coffea arabica. Outra conclusão importante: a doçura e o aroma agradável dessa espécie mais cultivada comercialmente provêm dos genes herdados da C. eugenioides. “O surgimento da Coffea arabica foi um fenômeno espontâneo dos mais felizes, ocorrido há cerca de 700 mil anos, unindo os genes de Coffea eugenioides e de uma espécie mais robusta, a Coffea canephora”, diz Carlos Colombo, pesquisador do IAC que participa de uma equipe de especialistas com ramificações em vários estados que analisa os genes do café. O problema é que a produtividade das espécies silvestres normalmente é baixa, e não é nada fácil fazer com que essas variedades produzam mais, por meio de cruzamentos com outras, sem perder os sabores especiais. Um cafeeiro demora dois anos para frutificar pela primeira vez e só é considerado um candidato à nova variedade se produzir grãos com as características desejadas e em uma quantidade razoável por pelo menos quatro anos seguidos. Uma variedade de café naturalmente descafeinado mostra como o trabalho nesse campo pode ser longo. Bernadete examinou a quantidade de cafeína em grãos de 3 mil plantas até encontrar três, vindas da Etiópia, com 0,07% de cafeína, enquanto uma variedade comercial bastante usada de Coffea arabica chamada Mundo Novo, usada como comparação, contém 1,2%. Em um artigo de 2004 na Nature, ela e outros pesquisadores do IAC e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apresentaram a provável razão da escassez de cafeína: a deficiência na quantidade ou no funcionamento da enzima cafeína sintase, que transforma a teobromina em cafeína. Essas três variedades, batizadas de AC em homenagem a Alcides Carvalho, pesquisador que liderou o programa de melhoramento genético de café no IAC durante 60 anos, tinham muito mais teobromina que a Mundo Novo.


Desde 2004, a equipe de Bernadete cruzou plantas ACs com outras, mais produtivas. Quatro anos depois, nenhuma das 600 plantas dessa primeira geração produziu café sem cafeína porque, hoje se sabe, essa característica se deve à ação conjunta de pelo menos dois genes, ambos recessivos: os grãos terão baixo teor de cafeína somente quando uma cópia de um gene vinda de um pai e outra cópia vinda de outro pai forem recessivas. Depois de outro cruzamento dirigido e mais três anos de espera, os pesquisadores examinam quimicamente os grãos da primeira safra das 400 plantas da segunda geração, esperando encontrar algumas capazes de produzir grãos sem cafeína – e com uma produtividade que justifique seu cultivo em escala comercial. Se encontrarem, talvez possam produzir mais rapidamente, por meio de clonagem, outras plantas com essa mesma característica. Bernardete acredita que o café naturalmente descafeinado poderia alegrar os paladares refinados e quem não pode ingerir cafeína, sob o risco de ganhar uma insônia ou desmaiar. Isolados na mata – Pode haver ou-

tras raridades além das cercas do IAC. Cafezais hoje são raros no interior paulista – foram substituídos por canaviais e outras culturas que exigem terras menos férteis –, mas cafeeiros isolados ainda florescem em meio aos fragmentos de mata atlântica. “A natureza fez uma superseleção genética de graça para nós nos remanescentes florestais”, observa Sergius Gandolfi, professor da Universidade de São Paulo (USP). “Nos fragmentos de florestas existem milhares de cafés provavelmente únicos, em sabor, resistência a doenças ou capacidade de crescer à sombra, que resistiram à competição com outras plantas e ataque de pragas e viveram isolados, sem trocar genes com outros cafés de outros fragmentos, durante um século, talvez 20 gerações.” A qualidade dos grãos e da bebida não depende só da genética, mas também do ambiente e do processamento. Por essa razão é que a equipe do IAC pretende conseguir a colaboração de produtores que possam ceder terras, se possível em todo o país, para avaliarem se as plantas selecionadas

No IAC: frutos em duas etapas do amadurecimento

A produção de cafés especiais poderá exigir ajustes na colheita, na secagem e na torra

mantêm as qualidades desejadas em outros ambientes. Se conseguirem, talvez possam encurtar o tempo de desenvolvimento de novas variedades – as que derem certo já estarão nas terras dos produtores. Outra possibilidade é modificar o ambiente para as plantas expressarem suas qualidades. Já se sabe que o cafeeiro cresce melhor em áreas mais altas, como as de Minas Gerais e da Alta Mogiana, em São Paulo, e que a arborização parcial pode compensar a baixa altitude e contribuir para melhorar a qualidade. Os cafés da Etiópia e do Quênia estão entre os melhores do mundo porque o café cresce em meio a florestas, seu ambiente original, com menos estresse, e os frutos podem amadurecer mais lentamente e produzir as substâncias que acentuam o sabor e o aroma. Gandolfi lembra que um estudo feito na Costa Rica indicou que a produção de grãos poderia ser 20%

maior quando há uma floresta perto dos cafezais. A proximidade beneficiava também a qualidade dos grãos, por facilitar a polinização, mais eficaz quando feita por abelhas nativas. “Em tempos de mudança do Código Florestal”, diz ele, essas evidências “se contrapõem ao discurso de que os pequenos proprietários não precisam de florestas”. A produção de cafés especiais poderá exigir também ajustes na colheita e beneficiamento. Os grãos maduros talvez tenham de ser colhidos várias vezes, em vários momentos; hoje o colhedor puxa dos ramos de uma só vez os frutos verdes, maduros, cuja cor varia do amarelo pálido ao vermelho intenso, dependendo da espécie, e os já ressecados, depois os separando. Os grãos podem secar mais rapidamente no terreiro de cimento, como se faz há mais de um século, mais lentamente em secadores suspensos ou um pouco ao sol e depois em secadores mecânicos. Aindá há muito trabalho – e café – pela frente. n PESQUISA FAPESP 187 setembro DE 2011 n

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Estímulo

em dose dupla Exercícios físicos associados a LEDs melhoram saúde de mulheres na pós-menopausa Dinorah Ereno

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uso da luz para tratamento de várias doenças e também em tratamentos estéticos é uma prática consagrada em consultórios e clínicas dermatológicas. Uma nova abordagem, que associa a radiação infravermelha originada de diodos emissores de luz (LEDs) com exercícios físicos em esteira ergométrica, mostrou em estudo feito com mulheres na pós-menopausa resultados alentadores, contribuindo para melhorar vários aspectos relacionados ao envelhecimento, como osteoporose, função muscular, perfil lipídico, capacidade aeróbia e até estética, com visível redução da celulite e melhora do aspecto externo da pele. O estudo inicial foi conduzido por um ano pela educadora física Fernanda Rossi Paolillo, durante o seu projeto de doutorado em biotecnologia defendido na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e orientado pelos professores Vanderlei Bagnato e Cristina Kurachi, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP). Bagnato é coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de São Carlos (CePOF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “A razão da escolha do LED infravermelho conjugado com esteira é que o exercício eleva o nível metabólico”, diz Bagnato, que desenvolveu o equipamento utilizado na pesquisa. Composto por duas placas de alumínio com 2 mil LEDs cada, ele foi concebido com o objetivo de irradiação de uma grande área corpórea que abrange os glúteos e os músculos quadríceps, envolvidos na fase de

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tratamento digital sobre foto de eduardo cesar

[ Dermatologia ]


apoio e balanço do ato de caminhar. “Nessa área há maior incidência de osteoporose, principalmente no fêmur, além de gordura localizada e celulite”, diz Fernanda. O arranjo de milhares de diodos é curvo e com altura regulável. A pesquisa teve o apoio de uma equipe multidisciplinar, integrada por físicos, engenheiros, fisioterapeutas, educadores físicos, médicos, entre outros profissionais de saúde, além do Laboratório de Apoio Tecnológico (LAT) do Grupo de Óptica da USP e do Departamento de Fisioterapia da UFSCar. O infravermelho é uma radiação na porção invisível do espectro eletromagnético, próxima do vermelho no espectro da luz visível. Embora não seja percebida na forma de luz pelo homem, ela pode ser sentida como calor por terminações nervosas especializadas da pele, conhecidas como termorreceptores. A radiação infravermelha de 850 nanômetros foi escolhida para o experimento porque penetra melhor na pele em comparação com a luz vermelha. “Quando ela entra na pele ocorrem reações químicas em cascata”, diz Fernanda. “O infravermelho acelera o transporte de elétrons na mitocôndria e aumenta a produção de adenosina trifosfato (ATP), um nucleotídeo responsável pelo armazenamento de energia proveniente da respiração celular em nosso organismo, usado para consumo imediato em diversos processos biológicos”, relata. O infravermelho contribui ainda para a regeneração de tecidos, como pele, músculos, ossos e nervos. Ou seja, a fototerapia melhora a ativação celular e acelera os processos metabólicos do organismo, PESQUISA FAPESP 187

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resultando em benefícios principalmente quando aplicada durante o exercício físico na esteira ergométrica. “Os exercícios feitos na esteira aumentam a capacidade aeróbia e utilizam o metabolismo de gorduras, além de produzir benefícios osteomusculares”, diz Fernanda. “Ao conjugar exercícios e radiação infravermelha com iluminação da maior massa muscular possível, queremos prolongar o condicionamento físico das pessoas que atingiram a senioridade”, ressalta Bagnato. Atividade metabólica – Participaram

da pesquisa 30 mulheres com idades entre 50 e 60 anos na pós-menopausa, caracterizada pela ausência de menstruação por mais de um ano, e que não realizaram reposição hormonal. Mulheres que tinham problemas neurológicos, metabólicos, inflamatórios, endócrinos e doenças como câncer e cardíacas foram excluídas. As voluntárias foram instruídas a não mudar seus hábitos alimentares durante o estudo. O grupo foi dividido em três, cada um deles com 10 mulheres. O primeiro grupo fez esteira e recebeu radiação infravermelha, o segundo fez apenas exercícios e o terceiro não fez nada. O acompanhamento foi feito ao longo de um ano. Durante esse período, os dois primeiros grupos fizeram exercícios na esteira, com infravermelho e sem, duas vezes por semana durante 45 minutos. “Um ano é o tempo mínimo para avaliação do comportamento da massa óssea”, diz Fernanda. A distância entre o dispositivo e a pele das voluntárias foi de 15 centímetros, todas ficaram de biquíni para absorção direta do infravermelho e receberam protetores oculares. Com exames de densitometria óssea feitos no início e no final do programa de treinamentos, foi constatada redução 72

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da perda de massa óssea do fêmur nas mulheres que associaram exercícios e infravermelho. Já o grupo que fez só esteira teve perda significativa de massa óssea no período do estudo. “A melhora da massa óssea é um indicativo de que a estimulação mecânica, quando associada aos LEDs, melhora o desempenho muscular e a formação óssea por efeito piezoelétrico”, diz Fernanda. Os músculos funcionam como uma carga mecânica que é transformada em sinal elétrico e causa um estímulo osteogênico (de formação óssea). A avaliação termográfica indicou, segundo a pesquisadora, aumento da atividade metabólica. Nas imagens térmicas do corpo é possível ver manchas coloridas que apontam aumento da temperatura cutânea e da vasodilatação nas mulheres do grupo que se exercitou com

imagens cepof são carlos

Imagens térmicas do corpo: aumento da temperatura e vasodilatação

LEDs. “Isso mostra que houve melhora da circulação sanguínea e aumento do aporte de oxigênio para o músculo exercitado, bem como o transporte e a eliminação dos substratos metabólicos como o ácido lático, que causam fadiga e dor muscular. ” O aumento da circulação e do fornecimento de oxigênio promoveu a regeneração de tecidos, principalmente da pele, contribuindo para a redução da celulite e a melhora do aspecto externo da pele “casca de laranja”. “Não conseguimos ver a perda da porcentagem de gordura, mas houve a redução de medidas de circunferência corpórea principalmente na coxa e culote, por isso acreditamos que o infravermelho funciona como uma drenagem linfática”, diz Fernanda. Outro aspecto importante ressaltado pela pesquisadora é o aumento da síntese de colágeno, com visível melhora no aspecto da pele. Mas esse resultado só foi obtido quando se aliou a tecnologia ao exercício. “O infravermelho tem sido bastante usado na cosmiatria para estímulo do colágeno”, diz a professora Solange Teixeira, do Departamento de Dermatologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A cosmiatria é uma área da dermatologia focada no tratamento estético facial e corporal. “O infravermelho é um comprimento de onda que penetra na pele até chegar à derme, onde faz o aquecimento desse tecido subcutâneo

A fototerapia melhora a ativação celular e acelera os processos metabólicos do organismo

Imagem mostra posição das placas com LED ao lado da esteira


responsável pela resistência e elasticidade da pele”, diz Solange. Já o colágeno é uma proteína que, quando aquecida a determinada temperatura, a fibra se contrai, produzindo um esticamento da pele, o chamado efeito lifting. Efeitos potencializados – Existem al-

guns aparelhos comerciais para combater a celulite com infravermelho, mas eles trabalham de forma integrada com sucção e radiofrequência – emissão de uma onda de rádio que atua aquecendo os tecidos de sustentação da pele. “Quando usados em conjunto com a massagem mecânica, potencializam o tratamento para diminuir a flacidez da pele”, diz Solange. Na pesquisa do IFSC os desempenhos muscular e aeróbio também foram testados. “Foi constatado um aumento da potência muscular e redução da fadiga nas mulheres que fizeram exercícios junto com o infravermelho”, relata Fernanda. A explicação é que a radiação infravermelha potencializa os efeitos do exercício. Para avaliação da força foi utilizado o dinamômetro isocinético, aparelho padrão de medida da força muscular, e para análise da capacidade cardiovascular as voluntárias passaram por testes ergométricos, que constataram que elas se exercitaram em alta intensidade e com menor esforço cardiovascular. “Esse grupo se exercitou mais, por um tempo maior, numa velocidade mais alta e com menor frequência cardíaca em comparação com o que só fez exercícios.” Outro aspecto importante observado no grupo de mulheres que se exer-

O Projeto Efeitos da iluminação-LED (850 nm) associada ao treinamento em esteira ergométrica em mulheres na pós-menopausa – nº 1998/14270-8 modalidade

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Co­or­de­na­dor

Vanderlei Bagnato – CePOF /USP investimento

R$ 1 milhão por ano para o CePOF (FAPESP)

Econômicos pontos de luz Os ecléticos LEDs e suas vantagens e desvantagens O diodo emissor de luz, mais conhecido pela sigla LED (do inglês light emitting diode), é um componente eletrônico semicondutor semelhante aos chips de computadores. Ele tem a propriedade de transformar energia elétrica em luz de forma diferente das lâmpadas convencionais, que se valem de filamentos metálicos, radiação ultravioleta e outras fontes. Os LEDs, além de substituir lâmpadas, são usados na produção de displays, em televisores e celulares, por exemplo, e trazem o benefício de consumir pouca energia. São utilizados também em uma série de equipamentos de uso médico e odontológico para vários tipos de aplicações terapêuticas. Há diferenças marcantes entre os diodos emissores de luz e o laser, embora ambas as tecnologias possam ser utilizadas para as mesmas aplicações. O laser usa a emissão

citaram enquanto recebiam o infravermelho foi a melhora no perfil lipídico, que permite avaliar o fator de risco para doença coronariana. Ou seja, quanto maior o nível de LDL (lipoproteína de baixa densidade) e menor de HDL (lipoproteína de alta densidade), maior o risco de problemas cardiovasculares. “No grupo LED houve diminuição do colesterol total e do LDL”, diz Fernanda. Em relação ao colesterol, vários fatores contribuem para sua redução, como alimentação e o próprio exercício. “Mesmo assim o grupo LED apresentou 20% de redução do colesterol total e do LDL em comparação com o que só fez exercícios.” A partir dos resultados obtidos, a pesquisadora sugere que a dose de infravermelho seja em torno de 100 joules por centímetro quadrado (100 J/cm2), a mesma utilizada na pesquisa. “A dose da luz é como a de remédio, tem que ser adequada ao objetivo”, diz Fernanda. O público que poderá ser beneficiado pela nova proposta terapêutica não se restringe às mulheres acima dos 50 anos.

estimulada de radiação que desencadeia uma ação em cascata entre as partículas de luz, resultando que todas se propaguem em uma mesma direção. Quando isso ocorre surge o feixe de laser, chamado de coerente porque suas partículas apresentam o mesmo comportamento. A luz do laser é concentrada, monocromática – mesmo comprimento de onda eletromagnética com pouca dispersão de calor – e altamente colimada – propaga-se como um feixe de ondas praticamente paralelas. Já a luz originada dos LEDs não é coerente nem colimada e atua numa banda mais ampla de comprimento de onda. As vantagens dos LEDs em comparação com os lasers são o baixo custo e a possibilidade de irradiação de grande área corpórea, além da possibilidade de configuração para que produzam múltiplos comprimentos de onda.

“Os benefícios são claros e podemos inovar no atendimento aos nossos atletas com essa tecnologia”, diz Bagnato. O grupo de pesquisa já havia testado em alguns tipos de terapia a iluminação antes e depois do exercício. “Mas a pesquisa provou que usar a iluminação durante o exercício produz melhores resultados.” Um segundo protótipo do equipamento já foi desenvolvido e está sendo instalado em algumas clínicas de reabilitação e academias para poder expandir o conceito e testar os benefícios de forma mais ampla, que engloba esporte, reabilitação e estética. n Artigos científicos 1. PAOLILLO, F.R. et al. Effects of infraredLED illumination applied during highintensity treadmill training in postmenopausal women. Photomedicine and Laser Surgery. Edição on-line jul. 2011. 2. PAOLILLO, F.R. et al. New treatment of cellulite with infrared-LED illumination applied during high-intensity treadmill training. Journal of Cosmetic and Laser Therapy. v. 13, p. 166-71. ago. 2011. PESQUISA FAPESP 187

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[ computação ]

Contato de terceiro grau

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Plataforma digital aprimora a relação dos usuários com a internet Yuri Vasconcelos

http://lidetJamSession.wordpress.com

instruções de acesso ao código ao lado, ver pág. 6

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uando surgiu, no início dos anos 1990, a internet não comportava nenhuma interatividade com as informações que apareciam na tela. A primeira geração digital, ou web 1.0, era, em linhas gerais, “passiva” e acessada pelos usuários quase exclusivamente para obtenção de dados, como se fosse uma grande enciclopédia. Tempos depois, ela tornou-se uma via de mão dupla e passou a oferecer um leque variado de possibilidades interativas aos internautas. É nesse estágio, da web 2.0 – um termo proposto em 2004 pelo empresário norte-americano Tim O’Reilly –, que nos encontramos hoje. Mas os teóricos da tecnologia da informação já vislumbram para o futuro um terceiro estágio, a web 3.0, que será uma espécie de internet “inteligente”, em que programas intensificarão as interações entre eles para compor novos recursos e serviços em uma nova dimensão. Para esse cenário foi projetada na Universidade de São Paulo (USP) a Plataforma JamSession, ao mesmo tempo um ambiente de software para mediação e coordenação de serviços digitais e uma arquitetura computacional para construir agentes virtuais inteligentes, capazes de reagir às ações dos internautas. O projeto JamSession foi desenvolvido no Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME-USP) com apoio do Instituto Virtual FAPESP-Microsoft Research, uma iniciativa para auxiliar projetos de pesquisa em tecnologias de informação e comunicação propostos por pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa de São Paulo. “O foco do projeto foi a percepção de que as tecnologias computacionais estão transformando as interações entre pessoas e sistemas digitais, entre os sistemas entre si e de pessoas com pessoas”, explica Flá-


vio Soares Correa da Silva, professor do IME-USP e coordenador do JamSession. O objetivo do projeto, segundo ele, é elaborar uma arquitetura de software para a construção de mundos virtuais com objetivos específicos. “De uma forma simplificada, a JamSession é uma plataforma que utiliza conceitos e técnicas de inteligência artificial, em que os sistemas recebem e processam informações de forma autônoma ou quase que “raciocinam” sozinhos e passam a fornecer soluções, para integrar recursos digitais preexistentes, como softwares e games, e produzir novos resultados que podem aprimorar a interação do usuário com o computador”, diz o pesquisador. Emoção e empatia – Na prática, a plataforma, destinada a programadores, pode ser usada na construção de vários sistemas como governo eletrônico, ambientes inteligentes para apoio a pessoas com necessidades especiais e sistemas sociais para respostas a situações de emergência. Em comum, eles poderão contar com personagens virtuais que interagem com os usuários, inclusive com expressões faciais. É possível que expressem estados de humor, emoção e criem relações de empatia entre usuários e sistemas. Assim, na tela do computador apareceriam atendentes virtuais capazes de entender o problema de um usuário e mostrar soluções. Para construção desses aplicativos, novos projetos estão sendo organizados com a colaboração de parceiros em instituições de pesquisa

no Brasil e no exterior. “Os resultados do JamSession são sistemas disponíveis livremente para uso, com código aberto, encontrados no site com link na ilustração ao lado. A plataforma está pronta para uso, mas aperfeiçoamentos e extensões deverão surgir em novas versões, como resultado do uso do sistema em aplicações correntes”, diz Flávio da Silva. Ele explica que o nome do projeto teve como fonte de inspiração as jam sessions originadas nos anos 1940, em Nova York, nos Estados Unidos, em que músicos se reuniam no final da noite, depois de suas apresentações regulares, para tocar livremente. Jam é a abreviatura em inglês de jazz after midnight ou jazz depois da meia-noite. “Desses encontros surgiram tendências, novas formas de composição e muita inova-

O Projeto JamSession – Uma plataforma descentralizada para mundos virtuais especializados e a web 3.0 – n° 2008/53977-3 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Flávio Soares Correa da Silva – USP investimento

R$ 113.680,00 (FAPESP)

ção no plano musical”, destaca ele, um saxofonista amador. “Nossa intenção é que a plataforma cumpra, no ambiente da tecnologia da informação, o mesmo papel que as jam sessions cumpriram no cenário musical.” Uma das aplicações possíveis da plataforma é o aprimoramento dos serviços de governo eletrônico. Ela poderia, por exemplo, auxiliar na criação de uma versão virtual do Poupatempo, programa do governo paulista que oferece vários serviços à população, sendo a emissão de RG, atestado de antecedentes criminais, carteira de trabalho e de habilitação os mais solicitados. “No governo eletrônico, o JamSession pode atuar em duas frentes. Primeiro, mediando a interação entre sistemas virtuais oferecidos por diversos órgãos públicos visando à ampliação dos serviços oferecidos. E, segundo, tornando mais amigável a interface usuário-computador, por meio do uso de animações autoexplicativas. Dessa forma, a plataforma democratiza o acesso, permitindo a parcelas da população que não estão familiarizadas com a internet acessar os serviços virtualmente”, explica o pesquisador. No futuro, por exemplo, o usuário poderá, com auxílio da JamSession, ao interagir com um personagem virtual, fazer um RG remotamente, sem ter que ir a um posto fixo do Poupatempo ou preencher formulários. Outra possibilidade de uso da plataforma é o gerenciamento de mensagens em situações de emergência, como em inundações, atentados ou congestionamentos. No caso de um alagamento da marginal Tietê, em São Paulo, por exemplo, a JamSession receberia dados de sensores sobre o nível do rio e informes de usuários próximos ao local do transbordamento. O programa, por meio do uso de recursos de inteligência artificial, seria capaz de qualificar as mensagens recebidas, categorizando-as como mais ou menos confiáveis conforme a fonte da informação – o reporte de voluntários e pessoas comuns teria menos peso do que o de profissionais da defesa civil ou agentes de trânsito. Com base nos dados e mensagens recebidos, o sistema faria uma ponderação e sugeriria as ações mais adequadas. O uso da plataforma para esse fim está sendo objeto de estudo da pós-doutoranda cubana Mirtha Lina Venero, pesquisadora do IME-USP. n PESQUISA FAPESP 187

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[ química ]

Agentes da separação Solventes sustentáveis dissolvem celulose e têm uso amplo na indústria Evanild o da Silveira

fotos eduardo cesar

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ara muitas pessoas a química é algo que pode ser perigoso. Na opinião popular ela está associada a alimentos industrializados que podem fazer mal, armas de destruição em massa ou poluição. Como reação a essa situação e levando-se em consideração os aspectos ambientais e de produção sustentável, a partir dos anos 1990 começou a se consolidar o conceito de “química verde”. Trata-se do incentivo ao uso de matéria-prima renovável e produtos biodegradáveis para substituir substâncias prejudiciais à saúde humana e ao ambiente. Na Universidade de São Paulo (USP), uma equipe liderada pelo professor Omar El Seoud, do Instituto de Química (IQ), se dedica a levar à frente esses princípios. Com apoio da FAPESP, eles trabalham numa linha de pesquisa que tem como objetivo desenvolver os chamados “solventes verdes”, que causam baixo impacto ambiental e são recicláveis. São os líquidos iônicos compostos de íons, moléculas ou átomos que ganham ou perdem elétrons durante um processo e por isso possuem carga elétrica diferenciada. Eles constituem uma alternativa aos solventes tradicionais, derivados de petróleo, utilizados na produção de plásticos, tintas, adesivos e detergentes. Os líquidos iônicos proporcionam maior estabilidade química e térmica. Por isso são seguros, não são inflamáveis e não evaporam, o que diminui muito o risco de causar incêndios e explosões. Eles também são relativamente fáceis de obter. “A partir de um composto orgânico nitrogenado, o imidazol, e de elementos comuns, como cloro, bromo e iodo, é possível produzir 144 líquidos iônicos e um grande número de derivados, a maioria com potencial de aplicação”, diz Seoud. “Esse número é impressionante se for comparado à pequena quantidade dos solventes orgânicos voláteis (SOV) derivados do petróleo


usados industrialmente.” Existem pelo menos 10 solventes de origem petrolífera produzidos no Brasil. Segundo a Agência Nacional de Petróleo (ANP), em 2010, a produção atingiu 2,4 milhões de metros cúbicos, um mercado que movimenta cerca de R$ 5 bilhões por ano. Ainda principiante no país, o mercado de solventes verdes já movimenta por ano cerca de US$ 3,5 bilhões no mundo com a produção de 5 milhões de toneladas, segundo apurou o jornal Brasil Econômico. A empresa de pesquisa de mercado norte-americana

Os Projetos 1. Síntese, propriedades, e aplicações de tensoativos e biopolímeros funcionalizados: um enfoque de química verde – n° 2004/15400-5 2. Solventes “verdes”: química e aplicações de líquidos iônicos em catálise; coloides, e derivatização de biopolímeros – n° 2010/03629-9 modalidade

1. e 2. Projeto Temático Co­or­de­na­dor

1. e 2. Omar Abou El Seoud – USP investimento

1. R$ 513.625,20 e US$ 184.476,24 (FAPESP) 2. R$ 590.427,90 e US$ 73.111,88 (FAPESP)

Global Industry Analysts anunciou no ano passado que os solventes verdes tiveram um crescimento médio anual de 4,2% na produção entre 2001 e 2010. Fibra vegetal – A importância mundial que se dá às novas possibilidades dos solventes verdes é ampla e abrange os líquidos iônicos que podem ser utilizados, por exemplo, na produção de etanol de segunda geração a partir de resíduos agrícolas. A primeira etapa nesse processo envolve a remoção de lignina, uma espécie de cola que junta os componentes da fibra vegetal. Uma das rotas que está sendo pesquisada é dissolver o material em líquido iônico e separar a lignina por adição de outro solvente (acetona). “Essa massa vegetal é separada e depois fermentada, o que gera glicose e depois etanol”, explica. “O líquido iônico também é recuperado e reciclado no processo.” Esse tipo de líquido pode ser ainda usado na produção de derivados de celulose, como membranas de filtração e hemodiálise, fibras e espessantes na indústria de alimentos. “Usamos os líquidos iônicos como solventes eficientes para dissolver fibras de celuloses de interesse comercial, como algodão, sisal e eucalipto. Depois de dissolvida, a fibra é transformada no derivado.” Os pesquisadores também estudam os chamados líquidos iônicos tensoativos (LITs), que têm as mesmas estruturas básicas dos comuns, mas são capazes de mudar a tensão superficial

da água, daí o seu nome. Eles podem ser usados como bactericidas e para recuperação da água contaminada com substâncias orgânicas policloradas. “Nesse caso, o LIT é adicionado à água contaminada e forma agregados chamados de micelas, que dissolvem os contaminantes orgânicos”, explica Seoud. “Em seguida, a solução passa por uma etapa de ultrafiltração com membranas especiais e sob pressão, a água é limpa num filtro específico e o agregado, com a micela contendo o poluente, fica retido para posterior descarte seguro. A técnica pode ser também adequada para a remoção de metais pesados, contaminantes inorgânicos, provenientes de vários processos metalúrgicos.” Ainda sem a elaboração de uma patente, o professor Seoud diz que não há perspectivas imediatas de esses solventes verdes serem licenciados para uma indústria, por exemplo. Os líquidos iônicos não são os únicos solventes que podem ser considerados verdes. Já existe no mercado similares produzidos a partir da glicerina, um subproduto da fabricação do biodiesel em que, para cada mil litros desse biocombustível, sobram cerca de 100 litros de resíduo. Um exemplo é o Augeo SL 191, um solvente para tintas e vernizes empregado em pintura automotiva e repintura, tintas industriais, madeira e couro, lançado em 2009 pela Rhodia no Brasil. Segundo a empresa, trata-se de um solvente de lenta evaporação e baixo composto orgânico volátil, que possibilita maior produtividade e menor consumo no processo de fabricação de tintas e vernizes. Na mesma linha, a empresa lançou, no final de 2010, o Augeo Clean, uma variedade de solventes, também derivados da glicerina, para atender como matéria-prima ao segmento de produtos utilizados em limpeza doméstica e industrial. A multinacional, que foi adquirida no início do ano pela belga Solvay, garante que os novos produtos, criados nos laboratórios da empresa no Brasil, obedecendo critérios de sustentabilidade, podem substituir com vantagens os produtos similares derivados de petróleo, tradicionalmente utilizados nas formulações de solventes. n PESQUISA FAPESP 187 setembro DE 2011 77 n

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[ ANTROPOLOGIA ]

A economia das aparências Cirurgias plásticas reforçam ideal do corpo como capital social Carlos Haag ilustração Marcelo Cipis

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cirurgia plástica é um crime contra a religião e os bons costumes. Mudar a cara que Deus nos deu, cortar a pele, coser os peitos e quem sabe o que mais, vade retro.” É assim que Ponciana, personagem do romance Tereza Batista cansada de guerra, de Jorge Amado, reage ao ver a vizinha, dona Beatriz, “renovada”, com “rosto liso, sem rugas nem papo, seios altos aparentando não mais de trinta fogosas primaveras, num total descaramento, a glorificação ambulante da medicina moderna”. Imagine-se como ela reagiria hoje, ao saber da pesquisa recente do Ibope em conjunto com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP): no Brasil a cada minuto é realizada uma operação plástica, 1.700 por dia, um total anual de 645 mil, que só nos deixa atrás dos Estados Unidos, com 1,5 milhão de cirurgias. Das intervenções nacionais, 65% são só cosméticas e as mulheres são as maiores clientes: 82%. A preferência nacional é pela lipo (30%), seguida pela prótese de silicone (21%). Nos últimos cinco anos aumentou em 30% a procura da plástica estética também pelos homens.

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“O que fez a plástica virar quase obrigação, com uma demanda crescente em todas as regiões e segmentos sociais? O país é o único que oferece plásticas pelo sistema público de saúde (15% do total) e clínicas particulares têm até carnês de prestações”, diz o antropólogo americano Alexander Edmonds, da Universidade de Amsterdã e autor de Pretty modern: beauty, sex and plastic surgery in Brazil, recém-lançado nos EUA pela Duke University Press. “No Brasil não basta ser magra. A mulher tem que ser sarada, definida, sensual. Mais do que boa mãe, profissional competente e esposa cuidadosa, ela tem que enfrentar o ‘quarto turno’ da academia, correndo atrás de um corpo sempre inatingível. O maior algoz da mulher brasileira é ela mesma, que vive procurando aprovação de outras mulheres. Temos que pensar numa mulher que comporte falhas, não criminalize seu corpo por fugir aos padrões e que aproveite momentos como a maternidade sem querer voltar às pressas à forma anterior”, explica Joana de Vilhena Moraes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) e autora de


humanidades

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Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares (Editora Pallas/PUC-Rio), livro que traz os resultados de uma pesquisa financiada pela Faperj sobre os padrões estéticos em diferentes camadas sociais. “Descobrimos que, se a procura do corpo perfeito é democrática, desejo de mulheres ricas ou pobres, há diferentes conceitos de beleza. Entre as ricas, qualquer sacrifício vale a pena para ganhar a magreza das modelos. Entre as mais pobres, o bonito mesmo é o corpo farto e curvilíneo das dançarinas de pagode. O que diverge entre os grupos é o sofrimento: as ricas se escondem sob roupas largas; as pobres exibem a gordura sem pudor em microshorts e tops justos.” Segundo ela, isso não impede que também malhem e fiquem nas filas dos hospitais públicos para fazer plástica estética. “A mídia, com apoio do discurso médico, estimula que as mulheres recorram a esses expedientes que evitam a constatação das mudanças da sua subjetividade, valendo-se, para isso, do estágio atual de evolução das ciências biotecnológicas, nas quais o país é respeitado globalmente.” 80

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uriosamente, segundo Edmonds, por muito tempo a cirurgia cosmética não foi vista como medicina legítima e para ganhar a aceitação precisou ser transformada em “cura”, aliando-se à psicologia: conceitos como “complexo de inferioridade” deram à operação um fundamento terapêutico. “O cirurgião Ivo Pitanguy foi o responsável por diluir os limites entre as cirurgias estética e reparadora, já que ambas curariam a psique. Para ele, o cirurgião plástico seria um ‘psicólogo com bisturi’ e o objeto terapêutico real da operação não seria o corpo, mas a mente”, nota o americano. Mas há consequências sobre a profissão. “A saúde é, agora, um guarda-chuva simbólico e não se restringe a permanecer na normalidade médica: é cuidar da forma, do peso, da aparência. A ‘saúde’ se estetizou”, analisa Francisco Romão Ferreira, professor do PGEBS (Programa de Pós-Graduação no Ensino de Biociências na Saúde do IOC/Fiocruz) e autor da pesquisa Os sentidos do corpo – Cirurgias estéticas, discurso médico e saúde pública. “Há uma pseudodemocratização da tecnologia que leva as pessoas a pensar que o processo é simples e com poucos riscos,

e recém-formados em medicina migram para esse filão do mercado, que faz com que esses profissionais alertem para a banalização das cirurgias. É uma ruptura com a medicina tradicional que tem no corpo seu campo de ação. Essa medicina, ao contrário, se inscreve na superfície do corpo, com critérios subjetivos fora dele. A doença é criada artificialmente no âmbito da cultura, fora do corpo, mas que começa a fazer parte dele.” “A beleza física ligou-se ao imaginário nacional e global do Brasil e é impossível conceber a identidade brasileira sem um componente estético, uma ‘cidadania cosmética’ que não significa direitos reais, mas forma de reproduzir desigualdades sociais e estruturais”, afirma o antropólogo Alvaro Jarrin, da Duke University, autor da pesquisa Cosmetic citizenship: beauty and social inequality in Brazil. É o que Edmonds chama de “saúde estética”, uma mistura de direito à saúde com consumismo. “Se o povo não realizou sua cidadania, ao menos pode se ‘refazer’ como ‘cidadão cosmético’. Os socialmente excluídos viram ‘sofredores estéticos’. A saúde sempre foi vista como bela; no Brasil, a beleza se transformou em saudável.” Para Jarrin, Pitanguy entendeu essa necessidade dos pobres por uma cidadania da beleza ao criar o primeiro serviço de cirurgia plástica popular num hospital-escola, ganhando apoio do Estado como um serviço filantrópico. “O governo é cúmplice e capitaliza indiretamente o sucesso do desenvolvimento das cirurgias de beleza”, nota. “O direito à cirurgia cosmética nunca foi diretamente autorizado pelo SUS, mas, por redefinições engenhosas do que é saúde, médicos fazem plásticas cosméticas em hospitais públicos, onde podem praticar com poucos riscos de processos por erros, desenvolvendo o ‘estilo brasileiro’, exportado para todo o mundo”, acredita Edmonds. “Assim, as representações do corpo da mulher brasileira não são mais pela ‘verdadeira natureza perdida’, expressão da mistura das raças, mas produto da associação entre essa noção antiga e as técnicas mais modernas, uma intimidade perigosa entre prótese e carne. Num país cuja imagem é a ‘beleza natural’, a valorização das técnicas cirúrgicas dos médicos brasileiros é um paradoxo”, avalia a historiadora Denise Bernuzzi


de Sant’Anna, coordenadora do grupo de pesquisa A Condição Corporal, da PUC-SP, e autora de Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. “Mas a liberdade de construir o próprio corpo não escapa a exigências como ser jovem e a obsessão pela alegria sem escalas e em curtíssimo prazo, em que cada um é responsável pelo sucesso ou fracasso em função do culto ao corpo ou seu descuido”, avalia. “O problema não é o cuidado de si, mas fazer do corpo um território que dispensa o contato com quem é diferente de nós; não gostar de alguém pelo seu corpo.” Uma segregação com objetivos definidos. “Sofrer para ter um corpo ‘em forma’ é recompensado pela gratificação de pertencer a um grupo de ‘valor superior’. O corpo identifica a pessoa a um grupo e o distingue de outros. Este corpo ‘trabalhado’, ‘malhado’, ‘sarado’, é, hoje, um sinal indicativo de certa virtude. Sob a moral da boa forma, ‘trabalhar’ o corpo é um ato de significação como se vestir. Ele, como as roupas, é um símbolo que torna visível as diferenças entre grupos sociais”, observa a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de O corpo como capital e que analisou o fenômeno na pesquisa Mudanças nos papéis de gênero, sexualidade e conjugalidade, apoiada pelo CNPq. “No Brasil, o corpo é um capital, um modelo de riqueza, a mais desejada pelos indivíduos das camadas médias e das mais pobres, que percebem o corpo como um importante veículo de ascensão social e como capital no mercado de trabalho, no mercado de casamento e no mercado sexual. A busca do corpo ‘sarado’ é, para os adeptos do culto à beleza, uma luta contra a morte simbólica imposta aos que não se disciplinam e se enquadram aos padrões.” Com direito a sutilezas geográficas. “Em São Paulo há a cultura do light, mas a roupa ainda é o adereço importante. No Rio há um desvelamento do corpo. Quando perguntaram a Adriane Galisteu como ela sabia a hora de fechar a boca ela disse: ‘Se me chamarem de gostosa na rua, sei que estou gorda’. Esse é o pensamento carioca”, diz Joana. Todos, porém, querem ser bem avaliados pelos pares. “Uma mulher gorda na classe média e alta é motivo de escárnio. Na favela, ela não precisa se livrar dos recheios para ser

No Brasil, o corpo é um capital, um modelo de riqueza, a mais desejada pelas camadas médias e as mais pobres

admirada. As mais pobres gastam mais energia em garantir direitos básicos de sobrevivência, coisas que para a mulher mais rica estão resolvidas. Pelo menos nessa relação com o corpo as moradoras de favela são mais felizes”, conta.

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m sua pesquisa, Joana descobriu que as mulheres das classes mais abastadas usam um discurso mais sofisticado, individualista, dizendo que fazem sacrifícios, como plásticas e malhação, para elas mesmas. Prova de uma relação tensa com o espelho: nunca se justifica o “trabalho” do corpo como querer ser um objeto de mais desejo. “Nas favelas, elas dizem claramente que fazem as intervenções para ‘ficar gostosas’, numa sexualidade vivida de maneira mais plena”, observa. O que não significa que as mulheres mais pobres não se percebam mais cheinhas e estejam satisfeitas com seus corpos, pois têm acesso à informação, leem revistas, veem a mesma novela que as mulheres mais ricas. “A diferença é que elas não estão aprisionadas nesse processo. Privação e disciplina são valores máximos das classes altas. Nas classes populares, a privação é associada à pobreza, e a gordura à

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prosperidade. Uma mulher da favela me disse que não ia ‘viver de alface’ porque iam achar que estava na miséria.” Mas, para desgosto de Gilberto Freyre, que via a beleza brasileira na mulher de seios pequenos e glúteos grandes, Brasil e EUA, hoje, compartilham ideais corpóreos. Uma obsessão americana, o aumento das mamas está em alta aqui desde os anos 1980, a ponto de a capa da revista Time (julho de 2001) trazer a cantora Carla Perez com seios proeminentes, nos moldes das mulheres americanas, com a pergunta se o novo “busto tropical” não seria um “imperialismo cultural”. Mas há diferenças. Um estudo da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês) afirma que as brasileiras querem seios maiores, mas também nádegas grandes com quadris esculpidos, em busca do corpo “brasileiro” curvilíneo. Para Bárbara Machado, chefe da equipe médica da clínica Pitanguy, a redução de seios era mais popular, mas, com o aumento da segurança das próteses e os ícones de beleza com seios maiores, a brasileira optou por mamas maiores, sem, no entanto, abrir mão das curvas.

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era futilidade? Edmonds observa que a beleza é fundamental até no mercado de trabalho. “A aparência, cor e apelo sexual ‘adicionam valor’ ao serviço ou são critérios de seleção. Mulheres e homens atrativos têm maiores salários, pois o trabalhador vira parte do produto oferecido ao consumidor.” A cultura do corpo também é a cultura da produtividade. “A aparência fala sobre seu caráter. Se você souber gerenciar bem seu corpo, a leitura que é feita do seu caráter é que você sabe viver, é bom profissional, não é desleixado e administra sua vida de forma competente”, diz Joana. “As mulheres, porém, precisam pensar num outro modelo de pessoa bem-sucedida, porque o atual está levando as pessoas a um adoecimento extremo, já que há um acúmulo descomunal de tarefas, fruto do feminismo, que deu liberdade para a mulher trabalhar sem levar em conta que ela precisaria, também, ser linda e esbelta.” As conquistas feministas adquirem outro significado na modernidade plástica. “A tirania dos ideais de beleza foi explorado pelas feministas nos anos 1970. Mas

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A plástica permite ganhar capacidades, mas seu uso tem um efeito perverso nas mulheres ao ocultar a velhice

agora a luta das mulheres para melhorar a aparência é legitimada como vitória do feminismo e já se aceita o egoísmo sadio do prazer de cuidar de si, um orgulho de exibir em público corpos desejáveis. É preciso evitar o otimismo imprudente. A plástica permite a aquisição de capacidades novas, mas o uso das tecnologias tem um efeito perverso nas mulheres: ocultar os efeitos da velhice é promover a reprodução das desigualdades”, analisa Guita Grin Debert, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora da pesquisa Velhice e tecnologias de rejuvenescimento (apoiada pela FAPESP). Entre os efeitos está o “ataque” à maternidade. “A retórica da indústria é da liberdade do destino biológico, mas permanecem as tensões entre ser mãe e continuar um ser sexual. A cirurgia acirra o conflito, pois permitiria, teoricamente, à mulher ser mãe e continuar a ter apelo sexual, corrigindo os ‘defeitos’ provocados pela maternidade no corpo pós-parto e na anatomia vaginal”, observa Edmonds. Ou, nas palavras de Diana Zuckerman, do Centro Nacional de Pesquisa de Mulheres e Famílias, dos EUA: “O sonho dos homens de marketing é fazer as mulheres acreditarem que seus

corpos ficam repugnantes após o nascimento de um filho”. “A medicalização do corpo pelas cirurgias não se legitima pelo discurso biológico do passado cuja beleza ideal do corpo da mulher proveria da maternidade, com o corpo arredondado, volumoso, ancas desenvolvidas e seios generosos. Agora tudo se baseia no discurso ‘psi’, que traz uma submissão à ordem médica ao afirmar o desejo de possuir um ‘corpo perfeito’ em função da autoestima. Nesse discurso, tudo se explica na ênfase da interioridade, o que leva as pessoas a justificar a necessidade de todos se adequarem a modelos estéticos por causa da autoestima”, analisa a antropóloga Liliane Brum Ribeiro, autora da pesquisa A medicalização da diferença. Essa preocupação antecipa-se cada vez mais e atinge os adolescentes, que se “preparam” para o futuro corrigindo “defeitos” de seus corpos jovens e, acima de tudo, aumentando o seu apelo sexual. Daí o crescimento no percentual de jovens operados, na faixa dos 19 anos (25% do total). “A cirurgia coloca as mulheres em competição por mais tempo e mesmo as diferenças geracionais desaparecem com mães e filhas ‘lutando’ entre si por homens, aumentando ainda mais o ‘valor de mercado’ da aparência de juventude”, nota o americano.


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e os adolescentes foram sexualizados, os mais velhos também sofrem com isso. “A cirurgia significa ‘continuar competitivo’ em qualquer idade. No passado, uma mulher de 40 anos se sentia velha e feia, pronta a ser trocada por uma mais jovem ou condenada à solidão. Agora essa mulher está no mercado competindo com a menina de 20 anos graças à plástica”, diz Edmonds. A plástica trouxe, assim, mudanças culturais intensas. “A partir dos anos 1960, a mulher feia era acusada de o ser por não se amar. Ser moderna virou cultivo da aparência bela e do bem-estar corporal. Recusar a beleza é sinal de negligência a ser combatido, um problema psíquico solucionado pela plástica”, observa Liliane. Os impactos são fortes sobre os idosos. “A cirurgia é uma forma de fugir das marcas do tempo, desnaturalizando processos normais e impedindo que a natureza siga seu destino. Transforma-se a velhice numa questão de negligência corporal, negando os constrangimentos dados pelos limites biológicos do corpo”, avalia Guita. “O envelhecimento é o monstro que a medicina tenta combater. Não é para banir cirurgias, mas não se deve restringir a velhice a um ‘desequilíbrio

hormonal’, equipará-la a uma doença, uma questão estética, magicamente resolvida com operação, o que só repete a antiga forma de controle sobre a mulher”, analisa Joana. Afinal, como observou Guita, há uma tendência a transformar a velhice numa questão de negligência corporal e os médicos se empenham em estimular os idosos a adotarem estratégias para combater as marcas do envelhecimento, negando os constrangimentos dados pelos limites biológicos do corpo. “As operações mostram a aversão ao diferente, e a cirurgia é uma tentativa de fugir das marcas do tempo, desnaturalizando processos naturais, e impedir que a natureza siga o seu destino”, avisa a antropóloga. “A aversão ao corpo envelhecido organiza as tecnologias de rejuvenescimento. Os ideais de perfeição corporal encantam a mídia, mas todos sabem que é uma imagem que jamais se pode atingir. É a materialidade do corpo envelhecido que se transforma em norma pela qual o corpo vivido é julgado e suas possibilidades restringidas.” Com o crescimento de pessoas velhas na população, o mercado se esmera em mostrar como devem os jovens de idade avançada se comportar para reparar as marcas do envelhecimento.

“Essa projeção do corpo jovem na materialidade do envelhecido e a negação do curso natural impedem a criação de uma estética da velhice”, nota Guita. Mirian Goldenberg, numa pesquisa recente feita na Alemanha sobre a visão do envelhecimento, encontrou diferenças sintomáticas. “Observando a aparência de alemãs e brasileiras, as últimas parecem mais jovens e em melhor forma, mas se sentem subjetivamente mais velhas e desvalorizadas do que as primeiras. Essa avaliação equivocada me fez perceber que, aqui, a velhice é um problema grande, o que explica o enorme sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens”, avalia Mirian. “Elas constroem seus discursos enfatizando as faltas que sentem, não suas conquistas objetivas. A liberdade das brasileiras aparece como conquista tardia após terem cumprido seus papéis de mãe e esposa. Na nossa cultura, em que o corpo é um capital importante, envelhecer é vivenciado como um momento de grandes perdas (de capital), de falta de homem e de invisibilidade social, na contramão do que sentem as mulheres alemãs mais velhas, que valorizam menos a aparência do que as novas experiências, a realização profissional e a qualidade de vida”, conta a antropóloga. Nem tudo, porém, são espinhos nas cirurgias estéticas. “Há um elemento democratizante nisso tudo. A plástica, ao enfatizar o corpo nu, em detrimento de roupas e ornamentos, naturaliza e ‘biologiza’ o corpo, já que, nesse estado, ele é menos legível como um ‘corpo social’”, analisa Edmonds. “Ela incita uma visão da beleza como igualitária, um capital social que não depende de nascimento, educação ou redes sociais para avançar. Quando o acesso à educação é limitado, o corpo, em relação à mente, se transforma numa base importante para a identidade, uma fonte de poder.” Para o antropólogo, é esse contexto cultural que faz o Brasil único no uso da cirurgia plástica. “É um país lembrado pela graça, pela sensualidade e dificilmente pela disciplina. Talvez, por isso, a cirurgia plástica no país não se ligue a uma alienação do corpo, um ódio das formas, mas a um ethos mais bem adaptado à indústria da beleza: o amor compulsório pelo corpo.” n PESQUISA FAPESP 187

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Resistência civil e dilemas da cultura

[ ciência política ]

Pesquisa explora os conflitos na oposição intelectual ao regime militar Márcio Ferrari

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conceito de resistência cultural foi uma espécie de guarda-chuva comum da produção artística e cultural das oposições ao regime militar brasileiro. Abrigou uma série de matizes e composições cuja dinâmica ainda hoje demanda pesquisa e definições mais precisas. Depois de vários estudos sobre as articulações e paradoxos entre engajamento político e indústria cultural, sobretudo nos campos da música popular e da produção audiovisual, o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), acaba de defender sua tese de livre-docência sobre as políticas culturais nascidas ou desenvolvidas no seio dessa cultura de oposição durante o período mais característico do ciclo autoritário. A tese tem o título de Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1968) e resultou de um projeto de pesquisa realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A expressão “coração civil” já havia sido usada pelo autor em seus estudos sobre a MPB para aludir a um sentimento de oposição que permeava a produção cultural, hegemonicamente de esquerda, assim como sua fruição e valorização por uma classe média escolarizada. Os dilemas e contradições da cultura, principalmente das obras artísticas, expressavam “também os dilemas e contradições dessa mesma resistência civil”.


Arquivo O Globo

Artistas durante manifestação contra a ditadura

Em seu novo estudo, Napolitano analisa as políticas e ações culturais de quatro correntes da resistência cultural ao regime: comunistas (aí entendidos os intelectuais ligados ao Partido Comunista Brasileiro – PCB), católicos, liberais e movimentos contraculturais. O autor trabalhou como hipótese central com a percepção de que uma aliança estratégica entre liberais e comunistas produziu o conceito dominante de resistência cultural, que entrou em conflito com os movimentos ligados à Igreja Católica e as tendências contraculturais. As duas últimas tendências, ainda que muito dessemelhantes em vários sentidos, tinham em comum uma postura radicalmente crítica em relação a alguns pilares da cultura tradicional de esquerda. Napolitano destaca, sobretudo, entre esses pilares, a participação do artista de oposição no grande mercado produtor de bens simbólicos, a estética realista apoiada numa “hierarquia cultural legitimada pelas instituições” e o “papel do intelectual como mediador central da cultura”. O primeiro ponto foi ilustrado, e já na época intensamente discutido, pela migração de dramaturgos ligados ao PCB (como Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho) para a Rede Globo, no início dos anos 1970. E as duas outras instâncias de conflito diziam respeito à questão crucial de como falar em nome das classes populares e se isso era possível e legítimo. Napolitano sublinha que, nesse aspecto, as críticas formuladas pela esquerda católica e a contracultura eram bastante diferentes. Enquanto a primeira defendia “uma cultura basista, amadora PESQUISA FAPESP 187

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Arquivo O Globo

A cultura na passeata dos 100 mil (acima); ao lado, ensaio da peça Roda-viva

e comunitária”, a última propunha “uma cultura sectária, experimental e transgressora”. Ambas procuravam se distanciar, ou pelo menos os questionar, dos espaços e instituições convencionais de produção e consumo cultural. Exemplos disso foram o teatro de periferia, o cinema marginal e certa feição do tropicalismo, que afrontavam o bom gosto e a arte conceitual, exercida fora dos circuitos de galerias e museus.

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apolitano vê seu estudo, em parte, como uma retomada de temas “bem estabelecidos pela historiografia da cultura brasileira”, mas com um importante elemento novo. “A grande lacuna, na minha opinião, é o tema das políticas culturais ligadas à

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nova esquerda, formada por socialistas democráticos, dissidências leninistas, movimentos sociais de base, esquerda católica, entre outros”, diz o historiador. “O que fiz no meu trabalho foi, basicamente, cotejar as análises já propostas com novas fontes e novas perspectivas, analisando sobretudo a visão e o papel da cultura para cada grande grupo ideológico da oposição ao regime.” Entre os intelectuais que se dedicaram ao estudo das lutas culturais entre comunistas e contracultura, Napolitano cita Roberto Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda e Celso Favaretto. O estudo dos liberais, aí entendidos “os grupos ligados aos empresários da cultura e da imprensa”, foi, lembra ele, mapeado por autores que analisaram a indústria cultural, como Renato Ortiz e Sergio Miceli. Nos trabalhos que vem realizando desde pelo menos seu doutorado, com a tese Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular brasileira – 1959/1969 (publicada em livro pela Annablume/

FAPESP em 2001), Napolitano ressalta também a importância da obra Em busca do povo brasileiro (editora Record, 2000), do historiador Marcelo Ridenti, em explorar a relação entre cultura, ideologia e política. O livro estuda o imaginário de artistas e intelectuais de esquerda embasados nas classes médias, principalmente nos anos 1960. O autor caracteriza esse imaginário como perpassado por uma categoria superdimensionada do “povo”, sendo uma manifestação tardia do “romantismo revolucionário”. “Tratava-se de uma aposta nas possibilidades da revolução brasileira, que permitiria realizar as potencialidades de um povo e de uma nação”, diz Ridenti, professor da Unicamp e coordenador de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. “Recuperavam-se as representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, tão caras, por exemplo, ao pensamento de Gilberto Freyre. Só que agora não mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de


folhapress

questioná-la. O Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças, da harmonia e da felicidade do povo porque isso estaria interditado pelo poder do latifúndio, do imperialismo e, no limite, do capital.”

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esse contexto, as questões estratégicas das propostas de política cultural que Napolitano estudou em sua tese de livre-docência – baseado exclusivamente em fontes textuais de época – têm como ponto de referência incontornável “as ‘frentes culturais’ de resistência, quase sempre defendidas pelos comunistas, com o apoio de setores liberais em alguns momentos”. “Essa aliança estava pautada por um conceito de cultura brasileira e ação cultural que foi questionado pelos grupos contraculturais e, sob outra ótica, pela nova esquerda, que a partir de 1980 se aglutinaria no PT”, diz Napolitano. Pela importante presença dos quadros ligados ao PCB na vida cultural brasileira, o estudo da produção intelectual do período militar não pode prescindir de um recuo às décadas anteriores. Se o partido, nas palavras do sociólogo Rodrigo Czajka, “não tinha importância decisória desde 1947, quando foi posto na clandestinidade”, houve uma reconfiguração da linha de frente intelectual na década seguinte, quando o comunismo internacional passava por uma crise, “e esses intelectuais e artistas iniciaram um processo de inserção em diversos espaços da produção cultural brasileira”. Miceli, professor titular do Departamento de Ciências Sociais da FFLCHUSP e autor de obras clássicas como Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), vê a cooptação pelo poder como uma constante histórica na cultura do país. “Ao contrário do que se passou na Argentina e no Chile, o regime militar brasileiro não desmontou os alicerces institucionais da vida intelectual, como a universidade pública, o sistema editorial, as entidades corporativas etc.”, diz ele. “Por outro lado, a esquerda intelectual, mesmo no momento mais difícil da repressão, jamais perdeu sua condição de legitimidade, de árbitro em matéria cultural.” Czajka, que é professor da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (MG), dedicou

Ao contrário das ditaduras do Chile e Argentina, a brasileira não desmontou alicerces da vida cultural e intelectual do país

sua tese de mestrado na Unicamp ao estudo da atuação de Ênio Silveira à frente da editora Civilização Brasileira e principalmente da Revista Civilização Brasileira, no qual pretendeu explorar a complexidade da hegemonia intelectual da esquerda nos anos 1960. “Ênio reunia em si dois aspectos aparentemente contraditórios: militância e mercado”, diz o sociólogo. “Deste binômio surgem outras questões que suscitam, por exemplo, a aproximação do PCB de novas formas de visibilidade pública. E o mercado, por sua vez, acolheu novas linguagens e possibilitou a emergência de novos atores sociais.” Como dados adicionais da ambiguidade da posição da revista, Czajka lembra que Silveira resistiu a

várias pressões do PCB para que a revista fosse integrada ao conjunto de publicações do partido e que o próprio editor era filiado à agremiação, mas nunca revelou isso publicamente.

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medida que o regime militar avançou, a questão da indústria cultural ganhou peso nos debates no interior da cultura de oposição. “Tento demonstrar que o problema já estava colocado desde o final dos anos 60, mas é inegável que a indústria cultural deu um salto qualitativo na direção de um ‘sistema’ durante a década seguinte”, observa Napolitano. “O regime militar promoveu um processo de modernização autoritária da sociedade brasileira”, diz Ridenti, que ressalta o papel duplo do Estado, como censor e incentivador da cultura (via, por exemplo, o suporte oficial da Embrafilme ao cinema, muitas vezes a cineastas de esquerda). “Foi nesse período que se estabeleceu a Rede Globo, com incentivos do regime, colocando a questão da identidade cultural nacional no âmbito do mercado de bens simbólicos.” Napolitano não encara essa progressão como uma derrota do ideário de esquerda. “Se havia uma pressão por vezes restritiva sobre os produtores e artistas, não podemos esquecer que a chave da ‘resistência’ também angariava públicos ou consolidava tendências de mercado. Por outro lado, a cultura de oposição teve um papel formador, uma espécie de educação cívica e sentimental, sobre amplos setores da população.” n

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[ cultura ]

Menos transpiração e mais inspiração A economia criativa pode ser a nova forma de mudança no perfil da produção das cidades Carl a Rodrigues

A moda como economia

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Thatyana Esperanza / Fotoarena / Folhapress

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conomia da cultura ou economia criativa são termos que, embora não sejam sinônimos, tentam dar conta do promissor casamento entre dois campos: o da economia e o da cultura. Juntos, têm produzido importantes transformações na economia das cidades, já que abrangem as atividades que têm como principal insumo a criatividade humana, envolvendo setores industriais e prestadores de serviços como arquitetura, moda, design, software, mercado editorial, televisão, filme e vídeo, artes visuais, música, publicidade, expressões culturais e artes cênicas. Foi classificada como a terceira maior indústria do mundo, atrás apenas das de petróleo e de armamentos. E tudo basea­do na criatividade. Uma pesquisa feita em 2008 pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, a Firjan, estimou que a “nova economia” movimenta cerca de R$ 380 bilhões anuais no Brasil (16,4% do PIB). Dados do Banco Mundial indicam que a economia da cultura já responde por 7% do PIB mundial. Não sem razão, a nova gestão do Ministério da Cultura achou por bem criar uma secretaria dedicada a ela, sob o comando da socióloga Cláudia Leitão, que havia desenvolvido estudos sobre o tema no Grupo de Pesquisa sobre Políticas Públicas e Indústrias Criativas na Universidade Estadual do Ceará. Mas a discussão demorou 17 anos para chegar ao Brasil. Para tirar esse atraso, universidades e profissionais da cultura estão arregaçando as mangas para difundir o conceito, em iniciativas como a realização do I Seminário Internacional de Economia Criativa: Novas Perspectivas, organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio. Ao


mesmo tempo, acaba de ser divulgada a pesquisa sobre economia criativa feita pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo a pedido da secretaria de governo da Prefeitura de São Paulo, revelando o peso significativo da área na economia paulista e nacional. Segundo a metodologia desenvolvida no estudo para a prefeitura, a participação do emprego formal criativo é de 1,87% do total do emprego formal no Brasil; de 2,21%, na Região Sudeste; de 2,46%, no estado de São Paulo; e de 3,47%, no município de São Paulo. Comparada com outros setores considerados importantes empregadores, a economia criativa destaca-se não só pela capacidade de gerar empregos, mas também pela qualidade e remuneração desses empregos. De 2006 a 2009, a taxa média anual de crescimento do emprego formal no setor chegou a 8,3% no estado

de São Paulo e a 9,1% no município, enquanto no total da economia chegava a 5,5% no estado e a 5,8% na cidade. No Rio, Manoel Marcondes Neto, professor adjunto da Faculdade de Administração e Finanças da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e líder do grupo de pesquisa Gestão e Marketing na Cultura junto ao CNPq, também se debruçou sobre os números da cultura e acaba de lançar Economia da cultura: contribuições para a construção do campo e histórico da gestão de organizações culturais no Brasil (Editora Ciência Moderna), ao lado de Lusia Angelete. “Os economistas não querem saber disso, e os artistas têm medo quando aparecem termos como economia ou administração”, diz o pesquisador. “Há um preconceito grande nas universidades. Muitos mantêm a rejeição adorniana à produção mercan-

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Suzanne & Nick Geary / gettyimages

ao dilema da inovação que ora culpa as empresas, ora o isolamento das universidades. O Brasil é um ambiente ideal para desenvolver as indústrias criativas e, com elas, elevar o valor agregado do setor de serviços e do setor industrial”, avalia Lídia. Iconomia - Há mesmo quem, a partir

Londres: berço da economia criativa

til de bens e serviços culturais, o que os impede de reconhecer que, hoje, a ideia da cultura como ‘recurso’ vai muito além da transformação da cultura em mercadoria”, analisa Paulo Miguez, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e autor da pesquisa Economia criativa: em busca de paradigmas, apoiada pela Fapesb. O tema é fundamental na discussão atual da sustentabilidade do crescimento brasileiro. “A economia criativa é um caminho interessante, pela sua capacidade de criar empregos, em especial entre os jovens que, se bem articulados e apoiados, se tornam propulsores de inovação e da ampliação da capacidade produtiva”, acredita a economista Lídia Goldenstein, ex-professora da Unicamp 90

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que hoje trabalha o novo campo em sua consultoria. “A sustentabilidade do crescimento atual passa necessariamente pelo fortalecimento da economia criativa, pois ela pode garantir a geração de um ambiente inovador robusto, criando instrumentos para o fortalecimento do setor manufatureiro.” Estudo recente feito pelo economista Aurílio Caiado, pesquisador da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), parece comprovar a hipótese: 44,7% dos brasileiros empregados no setor criativo possuem carteira assinada, diante de 37% na média total. Os salários da área são ainda 51% maiores do que a média nacional. “Esse pode ser o caminho para destravar o baixo investimento em inovação das empresas brasileiras e pôr fim

do desenvolvimento da área, proponha renovar o conceito de economia pelo de “iconomia”. “Se economia tem sua origem em oikos, casa, a iconomia se baseia em icos, que deu origem à palavra ícone. O que gera valor, hoje, não é, como nos modelos econômicos tradicionais, a utilidade da coisa ou a energia gasta em sua construção, mas sim uma construção que combina a coisa, o ser e o símbolo. O conhecimento é sempre algo simbólico, intangível. A avaliação do intangível criativo remete diretamente ao conceito de indústrias criativas, de economia criativa. É o capitalismo 3.0, não só material, mas criativo”, defende o economista Gilson Schwartz, diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento, projeto do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, basta ver a importância que a sustentabilidade assume, por exemplo, para os negócios de uma empresa: as pessoas não darão mais valor aos produtos que não forem associados à sustentabilidade, à criatividade e a outros fatores intangíveis. Em 2003, em meio a uma pesquisa sobre inovações nos modelos de inclusão digital, Schwartz e seus orientandos começaram um projeto sobre uma moeda alternativa para responder à questão: “Se nós precisamos medir o intangível, se a rede em que estamos trabalhando é uma rede cultural, qual é a medida do gasto neste ambiente?” No Rio Grande do Norte, imprimiram e distribuíram uma moeda que passou a circular no setor de turismo e entre estudantes. “Com base nisso, desenvolvemos um modelo que é a moeda do saber: quem não gastá-la ficará ignorante, perderá saber; quem gastar, ganhará ainda mais saber”, conta.


Evelson de Freitas / Folhapress

Sala São Paulo: polo de atração de criatividade

“Em 2009, no I Fórum de Inclusão Financeira, o Banco Central reconheceu a iniciativa e hoje fala em moedas sociais, ou seja, meios de pagamento criados de baixo para cima, cujo lastro é o capital social local. Moedas criativas são moedas cujo capital ou ‘lastro’ é cultural. São as moedas da economia criativa”, observa o pesquisador. É o mesmo espírito que rege o trabalho da Secretaria da Economia Criativa, que tem como objetivo se valer da diversidade cultural para estimular a geração de emprego e renda. Segundo a nova secretária, a ênfase na produção local pode vir a valorizar iniciativas regionais em detrimento da produção em massa, um dos fortes da economia criativa. A meta é tratar a cultura como indústria, o que permitiria a emancipação do mundo da criação, tirando dele os polêmicos vícios das leis de incentivo estatal. O processo se amplia ainda mais quando se pensa no conceito das “cidades criativas”, gerado a partir da economia criativa. “Foi da economia da cultura e suas tentativas de organizar um campo mensurável de negócios que surgiu a economia criativa, resultado do processo de ‘desendustrialização’ de

Cidades recuperam suas economias por meio de ações ligadas não à indústria, mas à criatividade

muitas economias que perderam atividades industriais por conta da alta capacidade de fragmentação da cadeia de produção e da volatilidade do capital. ‘Cidades criativas’ são as que estão recuperando suas economias por meio de atividades ligadas à criatividade e são exemplos de como a criação pode desabrochar e impactar as relações urbanas”, explica a economista Ana Carla Fonseca Reis, professora da FGV-SP e da Universidade Cândido Mendes, assessora

em economia criativa para a ONU. “Cidades que pretendem manter suas economias aquecidas têm de oferecer cultura, integração social e emprego, mesmo no caso da retenção de talentos qualificados, o que tem levado vários governos a valorizar a criatividade no ambiente urbano”, afirma. Segundo ela, em momentos em que a economia está cada vez menos industrial e mais de serviços, vários países observaram suas contas nacionais para ver onde estariam as vantagens competitivas de suas economias e, invariavelmente, descobriram que não se tratava de brigar por commodities, mas pela criatividade agregada a produtos e serviços. Os exemplos são contundentes: Londres, Barcelona, Bilbao, Amsterdã e, entre outras, até mesmo Bogotá. Design - “O processo se dá em vários níveis: no impacto da geração de emprego, renda e tributos; na agregação de valor a setores econômicos tradicionais (basta pensar na competitividade que a moda traz à indústria têxtil e de confecções, ou o que o design gera em vários setores); e ao gerar um ambiente favorável ao olhar alternativo, à abertura ao PESQUISA FAPESP 187

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Atrair pessoas criativas e mais qualificadas é a política eficaz de desenvolvimento regional, observa

novo”, explica Ana. Nenhuma cidade seria mais criativa do que a outra, mas o índice de trabalhadores criativos que ela vai atrair é que fará a diferença e a transformará num centro de capacitação criativa. “Atrair pessoas criativas e mais qualificadas seria a política mais eficaz de desenvolvimento regional. Regiões com qualidade de vida, com uma vida cultural mais desenvolvida e sociedade diversificada têm uma tendência a atrair pessoas qualificadas e criativas”, observou o economista André Golgher, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em sua pesquisa sobre “cidades criativas”. Golgher relaciona essa atração e concentração de pessoas qualificadas e criativas com o desenvolvimento de cidades e regiões. Assim, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo apresentam valores acima da média nacional, com 21,7%: (DF), 15,2% (RJ) e 14,7% (SP). Por outro lado, em estados como Alagoas, Maranhão e Piauí, os valores são muito inferiores, entre 5,1% e 5,5%. O geógrafo Valnei Pereira, da FAU-USP, em sua pesquisa sobre “cidades criativas”, vai além e afirma que as cidades podem ser recriadas em função da economia criativa, mas necessitam de políticas públicas que aproveitem essas dinâmicas. Assim, o espaço urbano não é mais apenas uma “dimensão física imutável”, mas é imbuído da “nova economia cultural do espaço”. “As nossas cidades ficaram grandes basicamente por causa da indús92

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G. Evangelista / Opção Brasil Imagens

André Golgher

Exemplo da mistura entre a arte e o espaço urbano

tria, que é uma atividade que está se acabando, obrigando muitas delas a se reinventar no século XXI. Tecnologia e capital tornaram-se fáceis de ser transferidos e o que agrega valor a uma mercadoria não é mais a produção em si, mas o conceito das coisas”, analisa o economista André Urani, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Mas é preciso ter cuidados redobrados. “Deve-se superar o aparato ideológico institucional e político das oligarquias e investir num modelo voltado para as pequenas empresas e oferta de serviços, que absorvam a criatividade nos processos produtivos, o modelo de um ‘setor quinário’”, avisa. No Rio de Janeiro, os Jogos Olímpicos de 2016 fazem parte de um grande mo-

vimento de recuperação da cidade pela via da economia criativa, nos moldes do conceito de “cidades criativas”. “Mas é preciso uma nova dinâmica que ponha os projetos a favor das cidades, e não ao contrário. É necessário ir além da criação de infraestruturas para reforçar um modelo de governança compartilhado e um arranjo institucional que favoreça a sociedade civil, fortaleça as instituições”, avalia Ana. “A criatividade impulsiona a busca de novos arranjos de governança entre público, privado e sociedade civil; levanta formas alternativas de financiamento, mais voltados ao capital de conhecimento do que às garantias físicas; traz inovações na gestão da cidade; e, por fim, engendra modelos colaborativos nos quais todos ganham, em vez de competitivos, nos quais um ganha no curto prazo e todos perdem”, observa a pesquisadora. n


resenha

Hinos gregos entre o divino e o profano Estudo sobre o tema revela erudição surpreendente Flávio Ribeiro de Oliveira

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uas passagens de Platão afirmam que o hino é um gênero literário estritamente ligado ao divino (República 607a; Banquete 177a). A. E. Harvey (“The classification of greek lyric poetry”, CQ 5, 1955, p. 165) crê que, nesses trechos, o propósito de Platão tenha sido definir o hino como um canto cultual dirigido aos deuses (e não aos mortais). Contudo, essa definição da poesia hínica como canto associado a uma prática cultual é problemática: o próprio Harvey (ibidem) admite que, na literatura grega, o termo “hino” é aplicado a praticamente qualquer tipo de canto. De fato, o corpus que forma a hínica grega apresenta grande variedade formal e funcional – ali encontramos hinos cultuais, mas também simpóticos, líricos, rapsódicos. Muitos hinos têm de fato uma função cultual; há outros, contudo, que são de fundo literário e não estão associados a nenhum culto. Em A palavra ofertada, José Marcos Macedo, reconhecendo a dificuldade de definição do gênero, enfrenta o problema com elegância e acuidade. Seu objetivo é identificar as estruturas retóricas que se repetem nos hinos gregos – estejam eles ligados ao culto religioso ou não. O insight fundamental da análise de Macedo é a constatação de que, por trás da variedade recoberta pelo gênero hínico, é possível encontrar uma mesma estrutura formal de poesia hierática e identificar estratégias retóricas constantes que caracterizam e definem o gênero. Ao buscar identificar esses aspectos formais do gênero, Macedo sempre se apoia em uma leitura perspicaz e em uma análise rigorosa do texto grego de passagens significativas de uma importante seleção de hinos e de poemas gregos que contenham hinos aos deuses.

A palavra ofertada. Um estudo retórico de hinos gregos e indianos José Marcos Macedo Editora Unicamp 408 páginas R$ 48,00

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Apenas esse estudo original e sensível já justificaria considerarmos A palavra ofertada como uma das mais importantes publicações brasileiras na área de estudos clássicos nos últimos anos. Contudo, Macedo vai ainda além dos hinos gregos: seções do livro são dedicadas ao estudo de hinos indianos que compõem o Rig Veda, coleção de poemas compostos oralmente entre os séculos XV e XI a.C. – e este me parece ser o aspecto mais original e prolífico de seu trabalho: o estudo comparativo de hinos gregos e indianos propicia uma melhor compreensão da estrutura desse gênero literário e – foco principal do trabalho de Macedo – dos recursos retóricos empregados no discurso dirigido aos deuses. A escolha do corpus – hinos gregos e indianos – não é gratuita: as duas culturas têm uma origem comum e apresentam analogias estruturais não só nas línguas (o grego e o sânscrito pertencem à mesma família linguística – o indo-europeu), mas também nos aspectos formais de suas poesias. O estudo comparativo desses dois conjuntos de hinos revela, com clareza e precisão, os recursos estilísticos empregados pelo poeta para persuadir o deus que é o destinatário do hino. Da análise de tais recursos – a autorreferencialidade (capítulo 1), a estruturação a partir do centro encontrada em alguns hinos regvédicos (capítulo 2) e a estruturação da composição a partir de pares contrastantes (capítulo 3) – o autor chega à ideia de reciprocidade como paradigma da relação entre mortais e deuses (capítulo 4), tanto nos hinos gregos como nos indianos. Os homens fazem ofertas aos deuses e, reciprocamente, pedem-lhes dádivas. E, aqui, Macedo identifica uma diferença importante entre o hino e a prece: enquanto a prece está normalmente associada a um objeto votivo, a uma libação, a um sacrifício etc. (ou seja, paralelamente à prece, é ofertado aos deuses um outro objeto), o hino pode ser ele mesmo o objeto ofertado, o objeto que induzirá os deuses a estabelecer laços de reciprocidade com o mortal que os interpela. A função do hino jamais é ancilar (como no caso da prece): é o próprio hino – palavra ofertada – que seduz e torna propícios os deuses. Esse trabalho seminal de Macedo revela uma erudição impressionante: leva em conta praticamente toda a bibliografia relevante sobre o tema. Em apêndice, são apresentadas as traduções de alguns hinos rigvédicos analisados. Flávio Ribeiro de Oliveira é vice-diretor e professor de grego no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.


livros

Os batalhadores brasileiros Jessé Souza Editora Ufmg 354 páginas, R$ 56,00

O debate acerca da chamada “nova classe média” ou a “nova classe trabalhadora” ganha destaque no Brasil de hoje. Para Jessé Souza, essa classe social, que ascendeu a novos patamares de consumo através de enorme esforço, é a grande responsável pelo extraordinário crescimento econômico dos últimos anos. O livro fundamenta-se em pesquisa empírica qualitativa realizada em todo o país, experimentando abordagens diferentes das usuais nesses estudos. Editora Ufmg (31) 3409-4650 www.editora.ufmg.br

História e poesia em Drummond Fernando Braga F. Talarico Edusc / Fapesp 
 344 páginas, R$ 49,90

O historiador Fernando Talarico faz um estudo da obra A rosa do povo, de Drummond, relacionando o poeta com outros escritores como Mário de Andrade e mesmo Thomas Mann. O autor aborda o universo drummondiano através de referenciais analíticos, como indivíduo lírico, pluralidade temático-formal, ato poético, gauchismo, eu / mundo, participação reflexiva, entre outros. Edusc (14) 2107-7252 www.edusc.com.br

Agenda brasileira

fotos Eduardo Cesar

André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.) Companhia das Letras 584 páginas, R$ 54,00

O livro reúne 50 profissionais de diversas áreas para contribuir com o debate sobre as principais questões nacionais, que vêm suscitando discussão e reflexão e gerando polêmica na contemporaneidade. As condições dos índios, da periferia, do racismo, da segurança pública e do meio ambiente, entre outros temas, estão na pauta do dia e apresentam, cada qual à sua maneira, diferentes graus de complexidade. Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

Genética: escolhas que nossos avós não faziam Mayana Zatz Editora Globo 208 páginas, R$ 29,90

Professora titular de genética do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, Mayana Zatz resumiu em livro sua expe­riência no ramo mais polêmico deste século. Seu foco são as questões éticas na produção científica e tecnológica, em especial nas rupturas de dogmas acarretadas pelas pesquisas. Entre os capítulos, “Paternidade ou o direito de não saber”; “Menino, menina e o que você faria se pudesse escolher”; “Projeto Genoma”; “O que nos reserva o futuro”. Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br

Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na colonização do Brasil Pedro Carlos Louzada Fonseca Edusc 400 páginas, R$ 55,00

O autor conduz o leitor a uma viagem ao imaginário medieval. Da análise do ideário e do discurso do gênero presentes no bestiário medieval, que caracterizava o feminino como algo animal e demoníaco, passa a compreender a visão cheia de “pecados” e “tentações” que os europeus tinham do Novo Mundo. Edusc (14) 2107-7252 www.edusc.com.br

Imprensa, humor e caricatura Isabel Lustosa (org.) Editora Ufmg 560 páginas, R$ 83,00

Ao abordar as várias práticas da imprensa ilustrada, da caricatura, da fixação e da negação de estereótipos de diferentes épocas (séc. XVIII e XXI), o livro traça um retrato das produções de humor na América Latina e Europa, com ampla documentação histórica, e analisa politicamente o humor e sua contextualização na história de vários países. Editora Ufmg (31) 3409-4650 www.editora.ufmg.br

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ficção

A eternidade em carne viva

Állex Leilla

Elle est retrouvée! Quoi? L’ éternité. C’est la mer mêlée Au soleil Artur Rimbaud

É

preciso dormir de qualquer jeito. Abandonar a grande morte dentro de outras menores; nas serras frias e vastas de Gramado ou nos recantos abertos do litoral. Quando digo litoral, penso em Cidreira. Viverei em Cidreira antes de minha morte. Mas não, não se deve pensar truncado e despensar assim. Volta o emaranhado por dentro, diminuindo o oxigênio. Tenho pouca sorte com os pensamentos, as reconstruções. Desde que mudei pra Porto Alegre, um sufocamento vem, alcança os olhos, quer desrepresar. Abrir meu peito, me comprometer. Acontece na rua, no metrô, no trabalho. Há pouco, na saída de um sebo na Rua da Praia. Olhos claros, aos milhares, me consideraram. Depois, silenciosos, seguiram seus caminhos. Ao longe e em nenhum lugar possível, vi o mar me chamando. Fervilhando debaixo do sol. Sacudi a cabeça, levemente irritada: esse mar não existe. Desgraça de vida complicada: os cacos coloridos estão na pele, retalhando-a. Ainda ontem, estava nos braços dele, do homem a quem mais amei; havia nossas crianças, risos de almoço feliz. Súbito: a noite solitária; minhas mãos jogam terra no vazio; a fumaça dos dias divididos entre trabalho e mestrado. Perco fácil o time do vivido. Onde vivo, por quem? Disse o alemão, especialista em Walter Benjamin, ora encantado ora desiludido com o nosso tempo: a ideia de eternidade sempre teve na morte a fonte mais forte. Além das rimas chulas, aquela pessoa estrangeira cometia tantos erros de concordância tentando aprofundar o inaprofundável. Eu poderia permanecer na sala? Me concentrar no mestrado? Procuramos respostas, explicava ele, pra compreendermos como nos transformamos em bichos esquisitos que odeiam perder. Nós, seres humanos, sobrevivemos à eternidade da seguinte forma:

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Idade Antiga: conscientes da morte, que era referência e destino; Idade Média: tementes da morte, que era purgação e circo; Idade Moderna: desorientados da morte, que era ausência privada e assepsia; Idade Hoje: evitando a morte, que pode ser um vazio ou um espetáculo reluzente. Assim se traça, ele sintetizou, a linha evolutiva do pensamento ocidental. Trem-destino de todo ser vivo, a morte, enfatizou, é a eternidade em carne viva. Outro homem, baiano de Itaparica, interrompeu e declarou ser tudo aquilo grandiloquência. Apesar de vivermos num espaço de vida assombrado pela consciência da morte, deveríamos evitar discursos paranoicos, só havia uma ação possível, esclareceu, o amor. Desgosto geral. Todos respiraram torto na sala. Um brasileiro convicto proclamava sua crença no amor-redentor. Logo, as mentes se organizaram a fim de destruir tal princípio. Ora, o amor!, isso sequer existe, é mera construção cultural, rebateu a moça de Brasília. Pior, declarou o rapaz do Paraná, é uma ilusão. O amor é ilusão, tomemos nota, trata-se de uma descoberta sem precedentes. O debate foi empobrecendo, já não estávamos na sala de mestrado: todos falavam frases extraídas da novela das oito, narcisos boiando em óleo. Percebendo o ar rarefeito, quis ver o verde, fugi. Precisava respirar fundo, pedir aos céus coragem pra atravessar aqueles dias destituídos de sentido. Mas fui interrompida: o rebatedor do especialista em Benjamin se aproximava, fumando. Ousara contrariar o porta-voz das ruínas ocidentais e depois abandonar a sala? Conheceria ele a morte de caixão oco? Saberia o que é mão de mãe e esposa avançando quase sem avançar num punhado de flores, jogando-o no


Sheila Goloborotko

vazio? Uma morte sem recheio, sem textura. Porque os meus morreram na queda de um avião, não houve corpos, não houve qualquer elemento carne viva da morte pra encher nossos olhos d’água, cortar os círculos, encerrar. Quis um alto-falante. Pronunciar o nome de outro homem, calado em mim, roendo. Caído. Desencontrado. Carbonizado, junto aos destroços do avião. Quem sabe de mãos dadas com as nossas crianças. Aquele-esse-este homem: caco de vidro raspando a pele a cada manhã. Vi as letras do seu nome formando labirintos desconexos. Dentro da sala, imaginei, explicavam-se certos paradoxos. Só podemos pensar na morte quando vivos, alegaria o alemão, especialista em Benjamin. Havia rimado até pedra com seta, coitado! Gritar aquele outro nome calado em minha garganta, de forma irônica ou repressora, como a mãe pronunciava, na tenra infância, quando ele mastigava de boca aberta ou punha os cotovelos à mesa. Repreendê-lo. Expô-lo ao ridículo. Abandoná-lo. Quem sabe relembrar um jeito de contar uma piada, pedindo-lhe alegria, basta de luto, não há mais nada a ser dito, leia o poema da Bishop, assista ao filme do Angelopoulos. Tente não se matar a cada dia. Sobretudo, insista. Que a eternidade há de ser a teima em permanecer vivo, a birra de recomeçar. Recomece. Do zero. Em Gramado, Porto Alegre, Cidreira, Itaparica. Isto é morrer e não morrer. Se fizesse tal discurso, traria o baiano que ousara discutir com o especialista pro meu lado? Inventaríamos assuntos? Meu amor da vida inteira pareceu tão perto. Sua pele tinha um tom prateado. Estava vivo, com nossas crianças. Pegou uma garrafa, pôs barquinhos de madeira. Sorriu. Sem querer, lembrei: as velas que acendi ora cheiravam a erva-cidreira, ora a jasmim. Foi suficiente pra represa minar

água de novo. Às vezes, é impossível: o ontem retalha a carne. Recebi o lenço da mão dele, o homem me perguntava por que o pranto. Nos abraçamos. Eternidade veloz e rarefeita: mistura pedaços de alegria à dor amadurecida. Ninguém nos ensina, mas há saída: um abraço é continuidade invisível no tempo, todo abraço é arquivo solto na memória, como os corpos miúdos das estrelas estendendo-se – séculos de luz e ausência. Me deixei ficar no abraço do homem que ousara contestar o especialista em Benjamin. Dizia ele algo sobre permanência. A ideia de uma morte diferente das demais me veio. Preenchendo de luminosidade os intervalos entre os corpos celestes, se instalando no infinito, como queria Rimbaud, Pascal. É possível? Conheço cada centímetro dela, não me engano: a morte é sem miolo algum. Provavelmente, é a gorda raça humana que se ilude a respeito de seus outros sentidos. Afinal, leva-se a vida inteira pra entender: é apenas esse mar ausente. Esse oco no espaço. Não traz verdade, não é capaz de orientar a nossa doce evolução. Doce evolução, eu disse? Não, não se deve pensar truncado e despensar assim. Me desfiz do abraço, estreita, sem sorte com os pensamentos. Ele sorriu, pleno. Sacudi a cabeça: estava entardecendo, deveria procurar o caminho de casa, desviar daquele mar fervilhando a um palmo. Desviar, repetir convicta: aquele mar não existe. A única eternidade possível era o gesto lento, mil vezes refeito, de virar a página a cada dia, fechar os olhos, respirar fundo, e tentar esquecer. * Állex Leilla nasceu em 1971, em Bom Jesus da Lapa (BA). Formada em letras pela Universidade da Bahia, é autora de dois livros de contos – Urbanos e Obscuro; dois romances, Henrique e Primavera nos ossos; da novela O sol que a chuva apagou. PESQUISA FAPESP 187

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