Pesquisa FAPESP 216

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fevereiro de 2014  www.revistapesquisa.fapesp.br

mudanças climáticas

Manguezais migram continente adentro com aumento do nível do mar física

Brasileiros testam teoria que ajuda a prever crises financeiras saneamento

Sabesp investe em inovação para evitar desperdício de água teia sintética

Produto de laboratório imita fio de aranha entrevista humberto torloni

O resgate da história da oncologia

Energia para o cérebro Estimulação elétrica de baixa intensidade avança como tratamento promissor contra depressão



fotolab

Topografia colorida O relevo acidentado de parte do interior de São Paulo ganhou cores fortes por uma boa razão. A paisagem não é uma fotografia, mas uma imagem processada a partir de nuvens de pontos produzidas com uma tecnologia de escaneamento a laser, cuja sigla é LiDAR (Light Detection and Ranging), usada a partir de um avião. O equipamento varre o território escolhido e fornece várias informações sobre o volume de madeira, a quantidade de carbono e o perfil de floresta nativa ou do plantio, entre outras. A técnica – que vem servindo como fonte de dados para trabalhos científicos no exterior e tem aberto novas fronteiras na área de sensoriamento remoto – está sendo pioneiramente utilizada por uma equipe da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) em estudos e aplicações florestais. Esta imagem mostra o plantio de eucaliptos à esquerda e pastagens à direita separados pela cumeeira de um relevo acidentado. A imagem foi capturada e trabalhada por Poliana Santos durante atividade de iniciação científica do curso de engenharia florestal.

Imagem enviada por Luiz Carlos Estraviz Rodriguez, professor do Departamento de Ciências Florestais da Esalq-USP Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 216 | 3


fevereiro  n.216 CAPA 16 A estimulação de neurônios

com uma corrente elétrica de baixa intensidade amadurece como técnica promissora no tratamento contra depressão

56

ENTREVISTA 22 Humberto Torloni

Patologista trabalha para recuperar a memória da oncologia

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Colaboração

Parceria entre FAPESP e NSF une pesquisadores do Brasil e dos EUA para conhecerem melhor a biodiversidade brasileira

33 Difusão

Mostra alemã chega a São Paulo com descobertas científicas que podem mudar o mundo

33

seçÕes 3 Fotolab 5 Carta do editor 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 86 Memória 88 Arte 90 Conto 92 Resenhas 94 Carreiras 96 Classificados capa chuwy / getty images

4 | fevereiro DE 2014

54 Bioquímica

Em São Paulo e no Rio, dois compostos que combatem a ação do veneno de abelhas passam nos testes iniciais

TECNOLOGIA

56 Saneamento

Sabesp cria núcleo de tecnologia e faz parcerias para desenvolver novos produtos e sistemas

62 Saúde

Sensores fazem análises clínicas mais sensíveis e detecção precoce da dengue

66 Biotecnologia

Cientistas brasileiros produzem fibras sintéticas que mimetizam os fios de aranhas

70 Pesquisa empresarial Bosch brasileira tornou-se referência mundial ao lançar o sistema flex fuel

CIÊNCIA 36 Ecologia

Manguezais ganham importância diante de alterações no clima

42 Paleontologia

Fósseis sugerem que o rio Amazonas desaguava no norte da Venezuela e Colômbia

HUMANIDADES

74 Ciência política

Análise das redes de organizações da sociedade civil contraria tese da “onguização”

78 Letras clássicas

Brasileiros ajudam a testar teoria sobre a previsão e o controle de crises financeiras globais

Pesquisadora investiga comédias do dramaturgo romano Plauto que foram referência para Shakespeare, Molière e Suassuna

50 Genética

82 Patrimônio

44 Física

Descoberto gene responsável por síndrome que causa malformação da mandíbula e da laringe

Estudo revela a arquitetura rural do século XIX no interior do Nordeste


carta do editor

O alento que vem da eletricidade

A

reportagem de capa desta edição relata os detalhes de um tratamento experimental para a depressão severa. São duas as razões de termos escolhido esse trabalho como tema principal. A primeira é o seu caráter promissor. A estimulação transcraniana de corrente contínua (ETCC) está sendo testada em vários países, incluindo o Brasil, com bons resultados. Além de efeitos colaterais mínimos, a nova terapia pode ser alternativa ou complementação ao uso de medicamentos, o que é especialmente importante quando se sabe que 30% das pessoas com depressão grave não respondem aos tratamentos atuais. A segunda razão é a doença propriamente dita – a depressão é o mais disseminado dos distúrbios mentais. Levantamento coordenado por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo indicou que 28,27% da população brasileira apresenta sintomas da doença. Deste contingente, 15% demonstram sinais do mal em sua forma mais severa, que, em geral, exige o uso de doses mais elevadas de medicação. Mesmo assim, com sucesso limitado. A ETCC é considerada promissora pelos especialistas do Centro de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo pela simplicidade da aplicação. Trata-se de fixar dois eletrodos nas têmporas, um positivo e outro negativo. Uma corrente elétrica de baixa intensidade é aplicada durante 20 a 30 minutos seguidos, o que ajuda a restabelecer o funcionamento normal dos neurônios. Quando se fala em estimulação elétrica logo se pensa na eletroterapia convulsiva (ETC), conhecida como eletrochoque, um tratamento de péssima fama, mas ainda hoje considerado uma das formas mais eficientes de amenizar a depressão que não responde a nenhum outro tratamento. Neste caso, uma corrente única e elevada, de até 1 ampère, atinge o cérebro do paciente, que precisa ser anestesiado e pode ter como efeito colateral a perda temporária de memória. Na ETCC, a corrente aplicada é 400 vezes menor, de 2 miliampères, com a pessoa acordada. Causa apenas formigamento por alguns segundos e vermelhidão onde fi-

cam os eletrodos por 20 minutos. Os estudos continuam e são um alento para quem sofre da doença em seu pior estágio, tão incapacitante como qualquer outra moléstia grave. Vale ler a reportagem do editor especial Carlos Fioravanti (página 16). *** Embora os estudos sobre mudanças climáticas globais tenham como alvo todos os tipos de ambiente, raramente os manguezais aparecem sob os holofotes. Agora, o mais longo acompanhamento desse bioma no Brasil, que vem sendo realizado há 16 anos em Guaratiba, no Rio de Janeiro, foi motivo de reportagem da editora de Pesquisa Fapesp On-line, Maria Guimarães, que mostra a reação dos manguezais às alterações ambientais (página 36). Em Guaratiba a floresta avançou 80 metros continente adentro de 1998 até hoje, um claro indício de que o mar vem subindo, segundo os pesquisadores. A expectativa é que os manguezais ampliem sua distribuição geográfica no Brasil à medida que as temperaturas aumentem. *** A geração e prospecção de novas tecnologias para o setor de saneamento em São Paulo foram investigadas pelo editor Marcos de Oliveira (página 56). Ele conta de alguns dos projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que desde 2009 investe para melhorar o serviço que atende a 363 municípios paulistas. O interesse da empresa – a segunda em número de clientes em um só país – a levou a estabelecer parcerias com universidades e a fazer um acordo de cooperação com a FAPESP para apoiar projetos nessa área. Um dos principais objetivos é diminuir o enorme desperdício de água na rede, sobretudo em razão de rachaduras nas tubulações. Hoje um terço da água que sai dos grandes reservatórios é perdido, o que inclui vazamentos e fraudes. A companhia agora investe em P&D para tentar reduzir as perdas. Essa é outra boa história desta edição. Neldson Marcolin, editor chefe PESQUISA FAPESP 216 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos

Revista

Sou assinante de Pesquisa FAPESP há pelo menos oito anos. A cada exemplar fico cada vez mais convencida de que assiná-la é um bom investimento. Os assuntos são muito bem escritos, acho a diagramação ótima e percebe-se o capricho em cada edição. A capa de janeiro (“O último ato da favorita do imperador”, edição 215) é linda! O conteúdo, como sempre, maravilhoso. Aprendo muito com a leitura dos diversos assuntos abordados de forma didática e acessível, sem abrir mão da qualidade dos conteúdos. Mais um adjetivo: a revista é atemporal. Os artigos podem ser relidos, independentemente da passagem do tempo. Eles estão sempre atualíssimos. Meus parabéns a todos que fazem o sucesso de Pesquisa FAPESP. Maraci Baraldi Marília, SP

Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio Cesar Barros (Editor assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Ana Lima, Alexandre Affonso, Carolina Rossetti de Toledo, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Ivana Arruda Leite, Juliana Sayuri, Laura Teixeira, Lauro Lisboa Garcia, Lisbeth Rebollo Gonçalves, Márcio Ferrari, Maria Gabriela S.M.C. Marinho, Nara Isoda, Negreiros, Nelson Provazi, Pedro Hamdan, Raul Aguiar, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 43.800 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP no

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | fevereiro DE 2014

Rios de São Paulo

A edição 214, com a cidade de São Paulo e seus rios na capa, está ótima (“Entre paredes de concreto”), gorda de conteúdo. Gostei da fusão nuclear com hidrogênio gerando hélio (“Alta frequência”) e da história de Theodoro Sampaio (“Engenho e arte”): quem vê a primeira foto da página rapidamente pensa que ele é o branco abaixado. Vocês poderiam ter colocado uma seta vermelha na foto apontando o Theodoro com chapéu africano, em pé. Em relação a “inovação”, no texto de Mariluce Moura, necessária é à inovação na democratização da ciência, no investimento nos professores da escola pública. José Fonseca Santo Antonio do Rio Grande, RS

Mudanças climáticas

Não é dúvida para ninguém que as atividades antropogênicas têm influenciado demais o clima do planeta e que isso pode se tornar um grande problema mais adiante (“O mundo mais quente”, edição 212). No entanto, temos que considerar que o nosso planeta já passou por isso

durante as glaciações e os períodos interglaciais bem antes da existência dos seres humanos, e possivelmente estamos novamente num novo ciclo, e o homem está dando uma mãozinha para acelerar o processo. Logo, não é justo colocar toda a culpa na raça humana sobre os problemas ambientais, pois a natureza também tem sua parcela de contribuição. Marte Ferreira da Silva Atibaia, SP

Museus no Brasil

Muito bacana a reportagem de Maria Guimarães sobre a vinda do diretor do Museu de História Natural de Londres ao Brasil em busca de parcerias (“Uma coleção viva”, edição 214). No entanto, fico imaginando o que Michael Dixon terá dito aos colegas da Inglaterra quando retornou. E o motivo é bem simples: não temos nenhum museu de história natural que possa chegar ao menos perto da instituição que ele dirige. Certamente o senhor Dixon não deve conseguir entender como a sétima economia mundial não tem nem sequer um único museu de história natural condizente com a sua posição econômica. Talvez o senhor Dixon, além das parcerias que procura desenvolver no nosso país, pudesse visitar os políticos de Brasília, incluindo os que se encontram no Ministério da Educação, e mostrar a importante função educativa dos museus em seu país. Alexander W. A. Kellner Museu Nacional/UFRJ Rio de Janeiro, RJ

Correção

Os nomes dos núcleos atômicos deutério e trítio estão invertidos no desenho “Plasma em fusão” no infográfico da página 74, que integra a reportagem “Alta frequência” (edição 214).

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

Tom Wenseleers

Mariana P. Massafera_ Muito interessante! Parabéns aos pesquisadores brasileiros envolvidos. (O último ato da favorita do imperador) Adauto Pereira_ Não deixem de ver o filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, filho do cientista, e que conta a história da perseguição dele na época da ditadura. (Ernst Hamburger: Rainha usa feromônios como sinalização que indica às operárias que ela está fértil

um corajoso cidadão paulistano) Germanna Righetto_ Muito relevante a ferramenta. O bromofenol é um reagente bem comum nos laboratórios de pesquisa molecular e é interessante que

Exclusivo no site

possa, junto com um computador e um scanner, ajudar a monitorar

x Um grupo de pesquisadores que inclui brasileiros da Universidade de Leuven, Bélgica, verificou que as rainhas nas colônias de abelhas, vespas e formigas usam um mesmo composto químico (feromônio) para impedir que as operárias se reproduzam. A substância indica que a rainha está fértil e, em alguns casos, inibe o desenvolvimento dos ovários das operárias. No estudo, publicado na Science, eles afirmam que esses compostos se conservaram por toda a história evolutiva desses grupos, servindo como sinal de fertilidade no ancestral solitário, há 145 milhões de anos.

x Num levantamento conduzido em 149 municípios brasileiros, pesquisadores da Unifesp e da Universidade do Texas verificaram que 3,9% dos 4.607 entrevistados consumiram cocaína uma vez na vida e que 1,7% usou a substância nos 12 meses antecedentes à pesquisa. Segundo Ilana Pinsky, uma das autoras do estudo publicado na Addictive Behaviors, os dados podem ser generalizados para toda a população brasileira. “Estimamos que 5,2 milhões de pessoas consumiram cocaína uma vez na vida, seja em pó ou como crack, e que 3,2 milhões a usaram em 2011.”

a adulteração do leite. (Imagens da fraude) Matheus Steinmeier_ Só espero que o conteúdo da mostra não corrobore essa falsa impressão de linearidade evolutiva, num trajeto hipotético “do macaco ao homem”. (Do macaco ao homem) Roberto Willians de Santana_ Muito preocupante, uma questão de Estado. Isto é, de saúde pública, urgente! (Estudo avalia prevalência no uso de cocaína no Brasil)

Vídeo do mês Veículo sem motorista pode ser realidade em grandes centros urbanos nos próximos 20 anos.

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 216 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em dezembro de 2013 e janeiro de 2014 temáticos  Geração e análise da imunogenicidade de proteínas recombinantes baseadas nas diferentes formas alélicas do antígeno circumsporozoíta de Plasmodium vivax visando o desenvolvimento de uma vacina universal contra malária Pesquisador responsável: Maurício Martins Rodrigues

Instituição: Centro de Terapia Celular e Molecular/Unifesp Processo: 2012/13032-5 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

Processo: 2013/17368-0 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2019

Jovem pesquisador  Genômica cardiovascular: mecanismos & novas terapias CVGen mech2ther Pesquisador responsável: José Eduardo Krieger Instituição: Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo/SSSP

 Biologia de sistemas de longos RNAs não-codificadores Pesquisador responsável: Helder Takashi Imoto Nakaya Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP

Processo: 2012/19278-6 Vigência: 01/12/2013 a 30/11/2017  Análise da aplicação de nanotecnologia em processos térmicos e de conversão de energia Pesquisadora responsável: Elaine Maria Cardoso Instituição: Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira/Unesp Processo: 2013/15431-7 Vigência: 01/12/2013 a 30/11/2017

Fomento à pesquisa Taxa de sucesso para propostas submetidas à FAPESP e algumas agências estrangeiras (ano-base 2011)

FAPESP (todos os auxílios e bolsas) Auxílios à Pesquisa Regulares Auxílios Temáticos

Solicitações analisadas

Concessões

Taxa de sucesso

22.928

12.637

55%

4.414

2.184

49%

179

71

40% 60%

Bolsas no país - PD

1.635

976

Bolsas no país - DR

2.637

1.356

51%

NSF, EUA (todos os auxílios) [1]

55.542

12.996

22%

NIH, EUA (todos os auxílios)

49.592

8.765

18%

R01 (equivale a Temáticos)

2.871

5.380

19%

BBSRC, Reino Unido (exclui bolsas) [2]

1.832

513

28%

NERC, Reino Unido [3]

1.256

215

17%

EPSRC, Reino Unido [4]

1.938

803

41%

MRC, Reino Unido [5]

1.238

327

26%

AHRC, Reino Unido [6]

1.037

432

40%

ESCRC, Reino Unido [7]

779

108

14%

8.799

3.977

45%

Bolsas PG

3.321

1.704

51%

Bolsas PD

1.432

133

9%

547

122

22%

3.429

1.986

58%

NSERC, Canadá [8]

Strategic Grants [9] Discovery Grants [10]

[1] NSB 2012, “Report to the National Science Board on the National Science Foundation’s Merit Review Process, 2011”, http://www.nsf.gov/nsb/topics/ MeritReview.jsp. [2] Biotechnology and Biological Sciences Research Council (BBSRC), “Annual Report and Accounts 2011 – 2012”, http://www.bbsrc.ac.uk/publications/ accounts/bbsrc-annual-11-12.aspx. [3] Natural Environment Research Council, “Annual Report and Accounts 2011-2012”, http://www.nerc.ac.uk/publications/annualreport/2012/. [4] EPSRC, “Research Proposal Funding Rates 2011-2012”, http://www.epsrc.ac.uk/funding/apprev/successrates/Pages/201112.aspx. [5] MRC, “Annual Report and Accounts 2011/12”, http://www.mrc.ac.uk/Utilities/Documentrecord/index.htm?d=MRC008776. [6] Arts & Humanities Research Council, Annual Report & Accounts 2011-12, http://www.ahrc.ac.uk/News-and-Events/Publications/Pages/ Annual-report-and-accounts.aspx. [7] Economic and Social Research Council, “Vital Statistics 2011-12”, http://www.esrc.ac.uk/publications/annual-report/index.aspx. [8] NSERC, “Facts and Figures 2010-11”, http://www.nserc-crsng.gc.ca/NSERC-CRSNG/FactsFigures-TableauxDetailles_eng.asp. [9] Os Strategic Grants do NSERC têm valor médio de Cd$ 60 a Cd$ 200 mil por ano, sendo comparáveis nesta dimensão aos Auxílios à Pesquisa Temáticos da FAPESP, embora tenham duração de somente três anos. [10] Os Discovery Grants do NSERC têm valor total médio de Cd$ 33 mil, sendo comparáveis em dimensão aos Auxílios à Pesquisa Regulares da FAPESP.

8 | fevereiro DE 2014


Boas práticas Denúncias anônimas envolvendo plágio e fraude em artigos científicos são recebidas com regularidade pelos editores de periódicos, mas desde 2010 o pseudônimo Clare Francis se tornou um símbolo desse tipo de delação. Diane Sullenberger, editora executiva da Proceedings of the National Academy of Sciences, disse à revista Nature que 80% das denúncias que tem recebido vieram de e-mails endereçados por Francis – cujo nome verdadeiro, ocupação e gênero seguem desconhecidos. No ano passado, o Journal of Cellular Biology cancelou um artigo escrito em 2006 por pesquisadores italianos sobre mecanismos de fusão de mioblastos por manipulação das imagens publicadas, após investigar denúncia de Clare. O Journal of Neuroscience também investigou recentemente uma suspeita de manipulação de imagens num artigo de 1997, mas não conseguiu chegar a uma conclusão: embora a acusação fizesse sentido, os autores do estudo negaram categoricamente a fraude. A dificuldade de apurar o caso tanto tempo depois levou a revista a não determinar a retratação do artigo, mas anexar uma “declaração de preocupação” envolvendo a possível manipulação. Denúncias anônimas criam dilemas para os editores. “É preciso conhecer as motivações do delator, pois alegações infundadas podem causar prejuízo e se transformarem elas próprias num tipo de má conduta científica”, disse à Nature Ulrich Brandt, editor da Biochimica et Biophysica Acta. Em fevereiro de 2013, o Committee on Publication Ethics (Cope), fórum de revistas

científicas que congrega mais de 7 mil afiliados, divulgou orientações sobre o assunto. Propôs que qualquer denúncia amparada em provas deve ser investigada, mesmo que não se conheça a origem. Nem todas as revistas seguem essa diretriz. Darren Taichman, editor do Annals of Internal Medicine, disse ao site The Scientist que denunciantes devem informar sua identidade se quiserem que a acusação seja investigada pela revista, que aceita, no entanto, manter o nome do delator em sigilo. Certas táticas de Clare Francis irritam os editores. O pseudônimo às vezes envia as respostas que recebe dos editores para órgãos de imprensa, quando não fica satisfeito com a acolhida da denúncia. Tom Reller, vice-presidente da editora Elsevier, diz que nem todas as acusações feitas por Clare Francis compensam ser investigadas. “As denúncias são produto da

daniel bueno

Limites das denúncias anônimas

utilização de softwares em artigos disponíveis publicamente. Em geral apontam falhas em registros. Preferimos gastar nosso tempo com as pessoas que nos dizem coisas sobre registros científicos que não conseguiríamos saber de outra forma”, divulgou Reller no site da Elsevier, em dezembro.

Cópia chinesa de artigo brasileiro Luiz Eduardo Imbelloni, professor de anestesiologia da Faculdade de Medicina Nova Esperança, na Paraíba, foi informado pelo leitor Aman Kumar, em maio do ano passado, de que um de seus artigos havia sido plagiado por pesquisadores da China, que publicaram os mesmos resultados num periódico alemão. “Tudo o que eu havia descrito, inclusive os dados numéricos, tinha sido literalmente copiado”, diz Imbelloni, que denunciou o caso. Em 2010, ele e outros colegas publicaram um artigo em inglês na Revista Brasileira de Anestesiologia, com acesso aberto na biblioteca SciELO, editada pela Sociedade

Brasileira de Anestesiologia, sobre a aplicação de raquianestesia (anestesia local) num procedimento cirúrgico que normalmente exige anestesia geral. No ano seguinte, um grupo de pesquisadores liderado por X. Liu, do Hospital de PLA, na China, publicou um artigo na revista alemã Der Anaesthesist apresentando surpreendentemente os mesmos resultados, dados e conclusões obtidos pelos brasileiros. “Eles não se esforçaram nem em mudar o número de pacientes que analisamos, 68”, conta Imbelloni. No final do ano passado, a Der Anaesthesist desqualificou oficialmente o artigo assinado pelos chineses. PESQUISA FAPESP 216 | 9


Estratégias Zago é o reitor da USP

Licença-maternidade para bolsistas

O governador Geraldo

Hospital das Clínicas

Alckmin nomeou os

e diretor científico do

professores Marco

Hemocentro, ambos

Antonio Zago como novo

de Ribeirão Preto.

reitor da Universidade

Doutorou-se pela USP e

de São Paulo (USP) e

fez o pós-doutorado na

Vahan Agopyan como

Universidade de Oxford.

vice-reitor. O mandato é

Como pesquisador,

de quatro anos. A chapa

contribuiu para o estudo

formada por Zago e

da anemia falciforme

Agopyan foi a mais

e da talassemia. Desde

votada no colégio

2000 coordena o Centro

eleitoral, composto por

de Terapia Celular, um

integrantes do conselho

dos Centros de Pesquisa,

universitário, dos

Inovação e Difusão

conselhos centrais

(Cepid) financiados pela

e das congregações

FAPESP. Entre 2007 e

das unidades e dos

2010 presidiu o Conselho

conselhos deliberativos

de Desenvolvimento

de museus e institutos

Científico e Tecnológico

especializados, realizado

(CNPq) e criou

no dia 19 de dezembro.

os Institutos Nacionais

Recebeu 1.206 votos

de Ciência e Tecnologia

e encabeçava a lista

(INCTs). Também foi

O Conselho Técnico-

FAPESP. A solicitação

tríplice encaminhada ao

um dos coordenadores

-Administrativo da

deverá ser acompanhada

governador, que tem a

de área da Diretoria

FAPESP aprovou, numa

por um comprovante

prerrogativa da escolha.

Científica da FAPESP,

reunião realizada no

médico. Durante

Pró-reitor de Pesquisa

uma comissão

dia 17 de dezembro

o período de

na gestão do reitor

de reconhecidos

último, a concessão de

afastamento não

João Grandino Rodas,

especialistas com

licença-maternidade

haverá interrupção do

professor titular da

a responsabilidade de

de quatro meses para

pagamento e, quando

Faculdade de Medicina

coordenar o processo

pesquisadoras com

a vigência prevista

de Ribeirão Preto, Zago,

de análise de mérito das

bolsas de dedicação

da bolsa terminar,

de 66 anos, formou-se

solicitações submetidas

integral concedidas

serão acrescidos mais

na Faculdade de

à Fundação. O novo

pela Fundação,

quatro meses.

Medicina da USP de

vice-reitor, Vahan

nas modalidades

“A FAPESP já vinha

Ribeirão Preto e foi

Agopyan, é engenheiro

mestrado, doutorado,

estudando o assunto

diretor clínico do

e professor titular da

pós-doutorado,

há algum tempo, pois

Escola Politécnica da USP

jovem pesquisador,

havíamos recebido

(Poli) com doutorado pela

jornalismo científico

algumas solicitações”,

University of London

e treinamento técnico

disse Joaquim José de

King’s College, no Reino

(com dedicação

Camargo Engler, diretor

integral). A medida

administrativo da

já está em vigor e

Fundação. “A Diretoria

as bolsistas interessadas

Científica analisou o

podem solicitar o

assunto e o Conselho

benefício para a

Técnico-Administrativo

Gerência de Apoio,

aprovou a proposta

Informação e

de criação da licença”,

Comunicação (Gaic) da

afirmou Engler.

10 | fevereiro DE 2014

Unido. Dirigiu a Poli e o Instituto de Pesquisas

1

Tecnológicas (IPT). Foi presidente do Conselho Marco Antonio Zago e Vahan Agopyan: reitor e vice escolhidos pelo governador

Superior do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e membro do Conselho 2

1

Superior da FAPESP.


fotos  1 e 2 Ernani Coimbra 3 e 4 eduardo cesar  5 léo ramos  6 inct-sc  ilustraçãO daniel bueno

Diretores reconduzidos

Colaboração premiada

Carlos Henrique de

da Aeronáutica e obteve

Brito Cruz e Joaquim

os títulos de mestre em

José de Camargo Engler

ciências (1980) e doutor

foram reconduzidos

em ciências (1983) na

para exercer as funções

Unicamp. Foi diretor do

de, respectivamente,

Instituto de Física Gleb

diretor científico e

Wataghin e pró-reitor

diretor administrativo

de Pesquisa da Unicamp.

no Conselho Técnico-

Entre 2002 e 2005 foi

da qual já foi diretor.

-Administrativo da

reitor da Unicamp e,

Doutor em agronomia

FAPESP, por um novo

entre 1996 e 2002,

pela Esalq, Master of

período de três anos.

presidente da FAPESP.

Science (MS) e Doctor

A nomeação foi feita

Engler é diretor

of Philosophy (Ph.D.) em

pelo governador Geraldo

administrativo da FAPESP

economia agrícola pela

Alckmin. Brito Cruz é

desde 1993. Engenheiro

The Ohio State University,

diretor científico da

agrônomo formado

foi coordenador de

FAPESP desde 2005.

pela Escola Superior de

administração geral

Professor no Instituto de

Agricultura Luiz de Queiroz

da USP, coordenador

-Administrativo da

Física Gleb Wataghin da

(Esalq) da Universidade

e prefeito do campus da

FAPESP, é o primeiro

Universidade Estadual

de São Paulo (USP),

USP em Piracicaba,

pesquisador brasileiro

de Campinas (Unicamp),

é professor titular do

diretor do Centro de

contemplado com o

graduou-se em engenharia

Departamento de

Energia Nuclear na

Bridge Building Award,

eletrônica pelo

Economia, Administração

Agricultura e chefe de

conferido pela American

Instituto Tecnológico

e Sociologia da Esalq,

gabinete do reitor da USP.

Ceramic Society. O

3

4

Engler e Brito Cruz: reconduzidos por um novo período de três anos

Varela: reconhecimento pela contribuição à pesquisa colaborativa

5

José Arana Varela, diretor-presidente do Conselho Técnico-

prêmio lhe foi entregue durante a 38ª edição da International Conference and Exposition on Advanced Ceramics and Composites, na Flórida, Estados Unidos. O Bridge Building Award destaca cientistas com intensa atividade de pesquisa em associação com pesquisadores de outros países. Varela é pesquisador do Centro 6

de Desenvolvimento de Materiais Funcionais, um

Sistemas complexos nas engenharias

Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

A Escola Politécnica da Universidade de

ses como China e Estados Unidos, que

São Paulo (Poli-USP) começará a ofere-

têm investido na engenharia de sistemas

cer a alunos de graduação ingressos em

complexos”, avalia o físico Constantino

2014 um conjunto de disciplinas optati-

Tsallis, coordenador do Instituto Nacional

vas em engenharia de sistemas comple-

de Ciência e Tecnologia de Sistemas

xos. O tema ainda está restrito ao âmbi-

Complexos, sediado no Rio. Há alguns

to da pesquisa básica no Brasil, embora

anos, o físico Sérgio Mascarenhas, do

na última década tenha ganhado rele-

Instituto de Estudos Avançados da USP

vância global com aplicação em áreas

em São Carlos, vem alertando sobre essa

como saúde e economia. “Caso não seja

questão. “O país deve investir o quanto

óxido de estanho (SnO)

fomentada uma cultura voltada para o

antes na criação de cursos de graduação

com capacidade

desenvolvimento tecnológico na área, o

e pós-graduação em engenharia de sis-

de detectar dióxido de

país correrá o risco de ficar atrás de paí-

temas complexos”, diz ele.

nitrogênio (NO2), um

da FAPESP, no qual lidera Imagens de tomografia cerebral mais precisas: exemplo de aplicação dos conhecimentos em sistemas complexos

a equipe de pesquisa do Instituto de Química da Unesp. Em parceria com pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), o grupo desenvolveu um material à base de

gás altamente tóxico. PESQUISA FAPESP 216 | 11


Tecnociência Combustível com água do mar

Tomar sol reduz a pressão

Uma planta que tolera

Além de produzirem

altos índices de sal no

mudas da planta, os

solo, podendo inclusive

pesquisadores do Masdar

ser irrigada com água do

relataram em artigo na

mar, está no centro das

revista Bioresource

pesquisas para produção

Technology (fevereiro de

de biocombustível para

2014) que a salicornia

aviação em um projeto

seca tem bom potencial

entre a fabricante

para produção de etanol

norte-americana de

de segunda geração por

aviões Boeing e

meio de hidrólise

instituições dos Emirados

enzimática, processo que

Árabes Unidos. A ideia é

extrai os açúcares da

produzir, em solos áridos

planta. Ela apresentou

desse país árabe,

características

bioquerosene de aviação

semelhantes a outras

com as sementes e

culturas utilizadas na

etanol com os açúcares

área de biocombustível,

Já se tinha visto que a

em 24 voluntários

da biomassa da

como palha de milho,

pressão sanguínea pode

saudáveis submetidos a

Salicornia bigelovii, uma

trigo, cana e demais

variar ao longo do ano –

30 minutos de sol ao

planta sem folhas

gramíneas. O único

tende a ser mais alta

meio-dia em um dia claro

originária dos Estados

problema é a

durante o inverno e

no sul da Europa.

Unidos e do Caribe.

necessidade do uso

mais baixa no verão.

Em 2009, um grupo de

O projeto é realizado

de água doce para a

Atribuía-se esse efeito

Edimburgo já havia

pelo Consórcio para a

retirada do sal

à temperatura, mas

mostrado que o óxido

Pesquisa Sustentável

acumulado antes do

agora emergiu outra

nítrico da pele humana,

da Bioenergia (SBRC,

processamento dos

hipótese: tomar sol

encontrado em

na sigla em inglês), que

biocombustíveis. Em

pode ajudar a reduzir

concentração maior

reúne tanto a Boeing

2015, os pesquisadores

a pressão sanguínea.

que no sangue, poderia

como a empresa aérea

vão construir um

Metabólitos do óxido

interagir com a radiação

Etihad Airways, o

ecossistema no solo

nítrico parecem ser

ultravioleta. Ainda não

Instituto de Ciência e

arenoso dos Emirados.

capazes de modular a

se sabe exatamente

Tecnologia Masdar, dos

A água do mar usada

pressão depois da

como os metabólitos

Emirados e a empresa

na criação de peixes e

exposição à radiação

de óxido nítrico

de tecnologia norte-

camarões vai nutrir uma

ultravioleta (Journal of

poderiam agir para

-americana Honeywell.

plantação de salicornia.

Investigative

gerar esse efeito.

Dermatology, janeiro).

Os autores do estudo

Martin Feelish e sua

mais recente alertam

equipe da Universidade

que as conclusões

de Southampton,

têm importância para a

Inglaterra, suspeitaram

saúde pública e sugerem

por 20 anos dessa

uma reavaliação da

possível ação da luz

recomendação para as

solar. Agora verificaram

pessoas tomarem menos

uma redução nos níveis

sol, uma medida que

de nitrato e um aumento

pode evitar o câncer

nos de nitrito, ambos

de pele, mas, como

metabólitos do óxido

agora se supõe, poderia

nítrico, e a redução da

agravar as doenças

pressão sanguínea,

cardiovasculares.

12 | fevereiro DE 2014

Salicornia bigelovii: planta sem folhas tem sementes para produção de biodiesel

1


A estrutura da miosina V, agora completa Depois de cinco anos de trabalho, uma

por causa da região funcional, que se liga

por esse trabalho (Journal of Biological

equipe do Laboratório Nacional de Bio-

com os alvos – proteínas, vesículas e or-

Chemistry, novembro de 2013). Os estudos

ciências (LNBio), de Campinas, definiu a

ganelas – a serem transportados no inte-

sobre as funções e a regulação dessas

estrutura tridimensional da chamada re-

rior das células. “Entender como essas

proteínas avançavam lentamente porque

gião funcional – ou ativa – de três miosinas

proteínas interagem com outras macro-

faltava o conhecimento sobre a estrutura

encontradas em vertebrados, descobertas

moléculas é importante para a compreen-

das regiões funcionais.

há 20 anos. De modo geral, miosinas são

são dos mecanismos moleculares envol-

proteínas responsáveis pela contração

vidos em doenças como o albinismo e os

muscular. As três variações de miosinas

distúrbios neurológicos associados a

da classe V, estudadas pela equipe do

mutações nos genes de miosinas de clas-

LNBio, diferem das miosinas responsáveis

se V”, comentou Mário Murakami, coor-

pela contração muscular principalmente

denador da equipe do LNBio responsável

fotos 1 SBRC 2 LNBio  3 Felipe Maluta / Esalq/USP  ilustraçãO daniel bueno

Led ilumina muda de cana

Agrupamento de miosinas, em forma de E (em branco) e suas regiões ativas (em verde e laranja)

Um problema encontrado

Hercílio Viegas Rodrigues,

na produção de mudas de

coordenador do estudo.

cana-de-açúcar in vitro

A pesquisa começou por

é a competição por luz.

um projeto de iniciação

O método convencional,

científica de Felipe

adotado nas biofábricas,

Maluta, aluno de

utiliza lâmpadas

engenharia agronômica.

fluorescentes que

“A técnica já é utilizada

fazem algumas mudas

com banana e morango.

crescerem mais do que

O que fizemos foi aplicar

outras e as menores

esse método pela primeira

acabam morrendo. Para

vez na cana”, diz Maluta.

Uma área de 154 mil

humana antiga. Os

resolver esse entrave,

Os resultados foram

quilômetros quadrados

pesquisadores chegaram

pesquisadores da Escola

apresentados em janeiro

na Amazônia,

a essa estimativa ao

Superior de Agricultura

na revista Pesquisa

equivalente a 3,2% da

confrontar informações

Luiz de Queiroz (Esalq)

Agropecuária Brasileira.

floresta e ao dobro do

de quase mil áreas já

da Universidade de

território de Portugal,

mapeadas de terra preta

São Paulo (USP),

pode ter sido ocupada

com estudos que não

em Piracicaba,

por grupos indígenas

registraram esse tipo

desenvolveram uma

com centenas a milhares

de solo. Ao cruzar as

técnica capaz de

de pessoas durante

informações, eles

aumentar a produtividade

períodos relativamente

detectaram padrões de

dessas mudas utilizando

longos antes da chegada

distribuição de terra preta

luzes de LED. Uma

dos colonizadores

e concluíram que a

combinação de luzes azul

europeus (Proceedings of

probabilidade de

e vermelha resultou no

the Royal Society B,

encontrá-la em áreas

crescimento uniforme,

janeiro 2014). Essa é a

próximas a rios nas

mantendo um tamanho

área em que um grupo

regiões leste e central da

reduzido das mudas.

internacional de

Amazônia é maior do que

“Sob a luz vermelha,

pesquisadores, do qual

na Amazônia ocidental

os cloroplastos, região

participa o arqueólogo

ou em áreas próximas aos

responsável pela

Eduardo Góes Neves,

Andes. Esses resultados

fotossíntese, ficam

da Universidade de

podem orientar a

São Paulo (USP), estima

investigação de áreas

existir um tipo de solo

ocupadas por populações

bastante fértil, a terra

pré-colombianas, difíceis

preta, que pode guardar

de identificar sob as

vestígios de ocupação

árvores da floresta.

‘estressados’, fazendo a planta reduzir seu tamanho. A azul serve para equilibrar esse processo”, explica Paulo

3

2

Ocupação antiga na Amazônia

Luzes vermelha e azul sobre mudas de cana garantem produção sem perdas

PESQUISA FAPESP 216 | 13


Grandes e eficientes

1

Uma régua para o Universo

Nessa concepção artística, cada círculo, com raio de 500 milhões de anos-luz, representa as regiões com maior concentração de galáxias

Mesmo com décadas

ela tem. Mesmo que a

ou até mais de um século

produtividade de cada

de vida, as árvores muito

folha diminua com a

grandes continuam

idade, a capacidade total

a crescer e a absorver

de a árvore processar

carbono da atmosfera.

e estocar o carbono

É diferente do que se

aumenta. Em casos mais

espera quando se pensa

extremos, uma única

em pessoas e animais,

árvore grande pode

que crescem muito na

incorporar a mesma

infância e depois, mesmo

quantidade de carbono

que engordem, em geral

ao longo de um ano do

têm um aumento

que a existente em uma

limitado de massa. Já

árvore média inteira. Esses

uma árvore cujo tronco

resultados, obtidos por

tenha 1 metro de

um grupo internacional

diâmetro continua a

de pesquisadores,

produzir de 10 a 200

conferem importância

quilogramas de matéria

às florestas já

orgânica por ano

estabelecidas – sejam

(valores medidos após

elas em zonas tropicais,

Astrônomos

entre essas cristas cria

determinaram distâncias

uma régua cósmica

entre aglomerados de

natural, cuja expansão

galáxias com uma

pode ser usada para

precisão recorde, que

detectar a influência da

a secagem). Essa massa

subtropicais ou

estabelece um pouco

energia escura. No

é quase o triplo do

temperadas – quanto à

melhor as propriedades

Universo atual, esse

crescimento de um

capacidade de contribuir

da energia escura,

espaçamento é de cerca

exemplar da mesma

para o combate às

uma forma de energia

de 500 milhões de

espécie que tenha a

mudanças climáticas.

ainda pouco entendida,

anos-luz. Durante um

metade do diâmetro no

O estudo incluiu 403

presente no espaço

encontro da Associação

tronco. Isso acontece

espécies de todos os

vazio e que vem

Astronômica Americana,

porque, quanto maior

continentes com florestas

acelerando a expansão

no dia 8 de janeiro,

a planta, mais folhas

(Nature, 15 de janeiro).

do Universo desde o seu

pesquisadores do Boss

nascimento, no Big Bang.

(Levantamento

Nos seus primeiros

Espectroscópico de

300 mil anos, o Universo

Oscilações Bariônicas)

era preenchido por um

divulgaram medidas das

gás quente e denso, feito

oscilações acústicas

de núcleos atômicos,

bariônicas com 1% de

elétrons livres e

precisão. O estudo

radiação. A expansão

analisou mais de

do Universo fez esse gás

1 milhão de galáxias,

esfriar e se tornar

distribuídas por uma

rarefeito, formando

região de 6 bilhões de

estrelas e galáxias.

anos-luz de extensão.

Mas as ondas que se

O Boss é um dos quatro

propagavam no gás

levantamentos

primordial deixaram

astronômicos do projeto

vestígios na distribuição

Sloan Digital Sky Survey

das galáxias no Cosmo.

3 (SDSS-III), do qual

As galáxias tendem a

participam grupos

se acumular mais em

brasileiros. O projeto usa

regiões que um dia

um telescópio exclusivo,

foram as cristas dessas

instalado no Novo

ondas, chamadas de

México, Estados Unidos,

oscilações acústicas

que analisa a luz de

bariônicas. O

milhares de galáxias

espaçamento regular

simultaneamente.

14 | fevereiro DE 2014

O pinheiro Pinus monticola: uma das árvores mais altas e de mais rápido crescimento no mundo

2


Genoma ameríndio

Armadilha antiviral em gravidade zero

Pesquisadores brasileiros e portugueses

Uma plataforma antiviral criada por cien-

sequenciaram, pela

tistas israelenses, e que leva os vírus a

primeira vez, o genoma

cometer “suicídio”, será testada na pró-

de um habitante nativo

xima missão espacial da Nasa. A inovação

da América do Sul: um

desenvolvida pela empresa Vecoy Na-

ameríndio. O material

nomedicine foi uma das oito selecionadas,

genético foi obtido de

entre 1.200 candidatos de todo o mundo,

um homem de uma tribo

para ser levada ao espaço em um con-

amazônica. Seus genes

curso organizado pelo Center for the

guardam semelhanças

Advancement of Science in Space (Casis),

com os de populações

braço de pesquisa da Estação Espacial

do leste da Ásia e de

Internacional (ISS, na sigla em inglês). A

infecções virais em camarões e caran-

aborígines australianos

diferença entre a “armadilha” antiviral

guejos. Outra tecnologia selecionada é

(PLoS One, dezembro

da Vecoy e as vacinas tradicionais é que

um dispositivo de ultrassom portátil que

2013). Esses resultados

ela levaria o vírus a se autodestruir antes

mede a pressão intracraniana em pacien-

corroboram as hipóteses

de atingir as células saudáveis. Os pes-

tes com traumatismos cranioencefálicos,

mais aceitas de ocupação

quisadores israelenses acreditam que a

desenvolvido pela Neural Analytics, dos

das Américas, segundo as

plataforma poderá ser usada no futuro

Estados Unidos. O experimento vai com-

quais populações da Ásia

para combater ameaças de epidemia

parar medições feitas em cérebros de

teriam chegando à América

como Ebola, hepatite e até HIV. As ex-

astronautas com dados de pacientes com

pelo estreito de Behring

periências em ambiente de gravidade

traumatismos. A norte-americana Quad

e depois se espalhado.

zero ajudarão os cientistas israelenses a

quer usar o teste de microgravidade para

Segundo Sidney dos

aperfeiçoar o design da plataforma em

melhorar a tecnologia de isolamento de

Santos, da Universidade

escala nanométrica. No momento, a Ve-

tipos específicos de células no sangue

Federal do Pará, um dos

coy testa a tecnologia no combate a

relacionadas às células cancerosas.

autores do trabalho, as populações indígenas da Amazônia ficaram isoladas por muito tempo,

Por que os supervulcões entram em erupção

“acumulando mutações

fotos 1 Zosia Rostomian / LBNL 2 Rob Hayden  3 blascha Faust / ESRF  ilustraçãO daniel bueno

próprias que devem Em um laboratório em

a imensa cratera cujo

(Nature Geoscience,

Grenoble, na França,

centro hoje é ocupado

janeiro). A pressão

pesquisadores

pelo Parque Yellowstone,

resultante da diferença

reproduziram as

nos Estados Unidos.

de densidade entre o

condições de pressão

Os pesquisadores

magma líquido e o sólido,

e temperatura das

colocaram minúsculas

já cristalizado em rochas,

câmaras de magmas

amostras de rochas

foi suficiente para romper

dos supervulcões e

entre duas pontas de

quilômetros de crosta

conseguiram identificar

tungstênio, submetidas

acima das câmaras

o que dispara as erupções

a temperaturas de

de magma e iniciar

colossais, capazes de

1.700ºC e pressões de

uma violenta erupção.

alterar o clima, como a

36 mil atmosferas, para

Wim Malfait, da Escola

do monte Pinatubo,

simular as câmaras de

Politécnica de Zurique,

em 1991, que reduziu a

magma dos supervulcões.

que integrou a equipe,

temperatura do planeta

As medições, feitas por

comparou: a subida do

em 0,4 grau Celsius (ºC)

meio da luz síncrotron,

magma em consequência

durante alguns meses.

indicaram que as

da diferença de

Há 60 mil anos a erupção

erupções podem ocorrer

densidade é como uma

de um supervulcão

espontaneamente,

bola de futebol cheia

liberou mais de

ativadas somente pela

de ar debaixo d’água,

mil quilômetros cúbicos

pressão do magma, sem

que é forçada para cima

de cinza, gases e lava

a necessidade de uma

pela água mais densa

para a atmosfera e criou

ação ou pressão externa

que a envolve.

ser investigadas”. Nesse aparelho, amostras de magma foram comprimidas e aquecidas a 1.700ºC e examinadas por raios X

Os resultados poderão ajudar a entender a origem de doenças frequentes em indígenas sul-americanos.

3

PESQUISA FAPESP 216 | 15


capa

Energia para os neurônios Estimulação com corrente elétrica de baixa intensidade amadurece como técnica promissora no tratamento contra depressão Carlos Fioravanti

m um final de tarde de janeiro, o psiquiatra Leandro Valiengo abriu um dos armários do já quase deserto quarto andar do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP), retirou uma mala preta, colocou-a sobre o colchonete azul de uma maca e apresentou o equipamento que está sendo visto como uma nova forma de tratamento contra depressão e outros distúrbios neuropsiquiátricos: é um aparelho de estimulação transcraniana de corrente contínua (ETCC). “É muito simples”, ele diz. O aparelho é uma caixa de tamanho aproximado ao de um laptop, com um teclado para se registrar o código de cada paciente em tratamento e alguns botões para regular o fornecimento de energia. De uma das laterais saem dois fios em cujas pontas há dois eletrodos – um positivo e um negativo – que são fixados nas têmporas 16  z  fevereiro DE 2014

por meio de uma bandana. Os eletrodos geram uma corrente elétrica de baixa intensidade que atravessa o córtex, a região mais superficial do cérebro, durante 20 a 30 minutos seguidos, e desse modo ajuda a restabelecer o funcionamento normal dos neurônios. Por meio de estudos realizados em vários países, milhares de pessoas – cerca de 250 delas no Brasil – já foram tratadas por meio da ETCC, uma técnica experimental que amadurece a passos firmes, aparentemente com efeitos colaterais mínimos, e ganha consistência como alternativa ou complementação ao uso de medicamentos, principalmente contra depressão, o mais disseminado dos distúrbios psíquicos. Um levantamento coordenado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) detectou os sintomas da depressão em quase um terço da população brasileira (ver quadro na página 18). Novas técnicas de tratamento são a princípio

Representação artística dos efeitos da estimulação elétrica


léo ramos

pESQUISA FAPESP 216  z  17


Depressão no Brasil A frequência de sintomas é maior em mulheres, mais velhos, mais pobres e moradores da região Norte

Quase um terço da população brasileira apresenta sintomas de depressão, de acordo com um levantamento nacional coordenado por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo

Porcentagem (%) da amostra entrevistada com sintomas de depressão

(Unifesp). Nesse estudo, parte do I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool

Idade

Gênero Homem

19,4

14-15 anos

28,9

Mulher

38,1

16-17 anos

30,6

18-24 anos

28,2

25-34 anos

26,6

35-44 anos

21,9

45-59 anos

31,3

60 anos ou mais

34,9

na População Brasileira, foram entrevistadas 3.007 pessoas com idade mínima de 14 anos, representando o perfil demográfico da população, em 143 cidades do país, de novembro de 2005 a abril de 2006. Nesse trabalho, o primeiro de alcance nacional, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2013, a frequência de pessoas com sintomas de depressão na população amostrada foi de 28,27%, a maioria delas (15%) com sinais de depressão severa. É uma média bem mais alta que a de levantamentos anteriores, feitos separadamente em São Paulo, Brasília e Porto Alegre, que indicaram uma taxa de sintomas de

Educação Analfabeto / ensino básico

34,3

Ensino básico completo ou incompleto

29,1

Ensino médio completo ou incompleto

24,5

Ensino superior completo ou incompleto

15,0

depressão de no máximo 10% da população amostrada. Mesmo considerando a possibilidade de que o rastreamento de possíveis casos de depressão possa levar a falsos positivos, embora seja uma metodologia aprovada internacionalmente. “A depressão no Brasil provavelmente é alta mesmo”, diz o psiquiatra Cassiano Coelho, da Unifesp. Como em outros estudos, as mulheres apresentaram uma taxa de sintomas de depressão de duas a três vezes maior que a dos homens,

estado civil

e as pessoas com mais de 60 anos apresentaram

Casado

26,8

uma propensão à depressão maior que os mais

Solteiro

28,7

os adolescentes com idade entre 14 e 17 anos

Divorciado/ separado/ viúvo

41,5

jovens. Diferentemente de outros estudos, apresentaram uma alta frequência de sintomas de depressão, maior que a verificada entre pessoas com 18 a 44 anos, o que os autores do levantamento consideram uma razão para Região do país

classe social A1

28,8

A2

17,8

B1

11,1

B2

19,5

C

24,5

D

34,5

E

37,5

preocupação e para análises mais aprofundadas. Os moradores da região Norte do Brasil,

Sul

26,2

Norte

41,0

foram os que apresentaram as taxas mais elevadas,

Centro-Oeste

32,4

em comparação com os de outras regiões.

Nordeste

27,0

depressão poderia ser um fenômeno associado

Sudeste

26,2

ao isolamento social e à soma de posições sociais

amostrados provavelmente pela primeira vez,

A hipótese dos pesquisadores é que a

e econômicas desfavoráveis, ao acometer com frequência maior “pessoas com menor escolaridade e renda mais baixa”, diz Coelho. Em uma situação extrema, uma mulher viúva, sem filhos, amigos ou vizinhos, de pouco estudo e baixa renda, vivendo isolada em uma área pobre da região Norte, teria uma propensão maior à depressão que uma mulher com círculo social mais amplo, mais estudo e mais expectativa de

Fonte Coelho et al., 2013

18  z  fevereiro DE 2014

melhoria de vida.


léo ramos

bem-vindas porque 30% das pessoas com depressão não respondem aos medicamentos atuais, que, quando aceitos, podem causar efeitos colaterais indesejados, como ganho de peso, perda de libido ou insônia, que limitam a adesão ao tratamento. Em outubro de 2013, o psiquiatra André Brunoni e sua equipe do Hospital Universitário da USP iniciaram um teste amplo em que 240 participantes com depressão grave, divididos em três grupos, deviam receber diariamente, durante 10 semanas, estimulação elétrica real ou simulada, um antidepressivo conhecido como escitalopram (Lexapro) ou placebo. Realizado no Centro de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas do HU-USP em colaboração com o Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, esse estudo é chamado de duplo-cego porque os participantes e os pesquisadores só sabem no final se o que foi aplicado era um tratamento efetivo ou simulado (a enfermeira coloca os eletrodos na têmpora dos participantes, mas não sabe se de fato se formou uma corrente elétrica entre os eletrodos). Se tudo correr bem, esse teste deve indicar se o efeito da estimulação elétrica poderia ser equivalente ou superior ao do medicamento e, além disso, qual o perfil das pessoas com depressão que poderiam A estimulação responder melhor a um tipo ou outro elétrica de tratamento, de acordo com seu perfil genético e comportamental, que serão consiste de avaliados por meio de exames de sangue, tomografias e entrevistas ao longo uma corrente de quatro anos. Em um estudo anterior, com 103 parcontínua; ticipantes com depressão grave acompao eletrochoque nhados durante seis semanas, Brunoni e equipe verificaram que a estimulaé uma descarga sua ção elétrica poderia ampliar o efeito de um antidepressivo de uso amplo, a serúnica com tralina (nome comercial, Zoloft), que, assim como o escitalopram, apresenta uma energia o mesmo mecanismo de ação da fluoxe400 vezes tina (Prozac) – todos prolongam a ação de neurotransmissores como a serotomaior nina, essenciais para o funcionamento dos neurônios. De acordo com o artigo que detalha os resultados, publicado em 2013 no JAMA Psyquiatry, o efeito do tratamento combinado – estimulação elétrica e sertralina – foi não só mais intenso, mas também mais rápido, já que os participantes desse grupo relataram remissão dos sintomas a partir da segunda semana de tratamento, enquanto os de outros grupos, que haviam tomado apenas medicação, estimulação elétrica ou placebo, relataram melhoras no bem-estar seis semanas após o início da terapia. “Aparentemente os efeitos são complementares e atingem regiões diferentes, a sertralina com uma

ação mais subcortical e a estimulação elétrica com uma ação mais intensa na região cortical”, diz Brunoni. Talvez por causa desse efeito ampliado é que no grupo de tratamento combinado de ETCC e sertralina houve um número maior de pessoas (5, ante apenas 1 em cada um dos outros grupos) que apresentaram euforia, o efeito oposto ao da depressão, com duração máxima de duas semanas.

N

a etapa seguinte, 42 participantes do estudo que haviam tomado placebo foram convidados a receber antidepressivo e estimulação elétrica efetivos. Desta vez, os participantes do estudo foram tratados por seis semanas e acompanhados por seis meses, e o que se viu foi que, após interromper as aplicações, os sintomas de depressão retornaram em 25% dos pacientes com quadros clínicos menos graves e em 70% dos que eram resistentes a qualquer medicamento. Não há demérito nesse resultado, assegura Leandro Valiengo, da equipe de Brunoni, porque os benefícios dos medicamentos antidepressivos também cessam quando as pessoas param de tomá-los. “A duração do efeito da estimulação elétrica, de algumas semanas, é similar ao da eletroterapia convulsiva”, diz ele. Essa técnica, conhecida como ETC ou eletrochoque, consiste na aplicação de uma descarga elétrica única e elevada – de até 1 ampère – em pacientes que têm de ser anestesiados. Ainda é bastante usada, apesar dos efeitos colaterais, como a perda de memória, porque é o único método eficaz quando as pessoas com depressão grave não respondem a nenhum outro tratamento. Na ETCC, uma corrente contínua de 2 miliampères, 400 vezes menor, é aplicada durante 20 a 30 minutos em pessoas acordadas. “A estimulação elétrica é muito mais simples e segura que a eletroterapia convulsiva”, assegura Brunoni, que em 2011 avaliou o uso da ETCC em 14 pessoas com transtorno bipolar, obtendo resultados que considerou animadores. A estimulação elétrica é também mais simples que a estimulação magnética por corrente contínua, em que uma bobina, quando ativada, forma um campo magnético, que por sua vez gera um campo elétrico de baixa intensidade no córtex. Aprovada em 2008 nos Estados Unidos e em 2009 no Brasil para tratamento contra depressão, a estimulação magnética é considerada um tratamento caro, exige acompanhamento médico, por causa do risco de convulsões, e só pode ser aplicada em centros médicos especializados. Acredita-se que a estimulação elétrica poderia ter um uso mais amplo, porque o custo do aparelho é menor e, se aprovada pelos órgãos pESQUISA FAPESP 216  z  19


reguladores, poderia ser adotada em centros de mo alternativa para tratar depressão em pessoas saúde e empregada tanto por médicos quanto que sofreram acidente vascular cerebral (AVC), por outros profissionais da saúde. para as quais os efeitos colaterais dos medicaHá indicações de que poderia tanto estimular mentos podem ser muito prejudiciais. Em um quanto inibir a atividade dos neurônios, depen- estudo duplo-cego do qual devem participar 48 dendo da posição em que os eletrodos são colo- pessoas, 33 já receberam tratamento simulado ou cados – a estimulação magnética e a eletrotera- efetivo. No Instituto de Reabilitação Lucy Monpia convulsiva apenas estimulam os neurônios. toro, ligado à USP, o neurologista Marcel Simis Essa possibilidade poderia ampliar suas aplica- emprega a estimulação elétrica, ainda experições. Desde 2006, estudos duplos-cegos – inicial- mentalmente, em estudos duplos-cegos como mente com uma corrente elétritécnica complementar na reaca elevada, de 500 miliampères bilitação de pessoas com AVC. – indicam que a ETCC, além de Desse modo, ele acredita, talser bem tolerada, poderia cauvez seja possível estimular a sar uma redução dos sinais de área lesada do cérebro e inibir Por estimular várias doenças. O médico braa área preservada, evitando a cautela, sileiro Felipe Fregni está avaa sobrecarga de um dos heliando a ação dessa técnica em misférios cerebrais – a lesão essa técnica pessoas com Parkinson atendide um lado do cérebro faz o das no hospital da Universidade outro lado trabalhar mais inpoderia ser Harvard, Estados Unidos, e, astensamente. “A estimulação sociada com exercícios aeróbielétrica, em associação com usada para cos, em pessoas com fibromialoutras técnicas, deve ampliar ajudar a deter gia, uma síndrome caracterizada nosso conhecimento sobre os por dores musculares crônicas limites da plasticidade neuroa compulsão por todo o corpo, atendidas em nal”, afirma Simis. hospitais de São Paulo. Por ser uma técnica ainda para beber, experimental, os participanOs efeitos colaterais da estimulação elétrica registrados até fumar ou comer tes dos estudos têm de ir aos hospitais para receber as apliagora parecem mínimos, o que em excesso cações de corrente elétrica. contribui bastante para que os Aparelhos portáteis, porém, testes de eficácia continuem. Até já estão em desenvolvimeno momento, verificou-se que a to e em avaliação. Se forem passagem da corrente pelos eletrodos colocados sobre o crânio causa apenas a sensação de formigamento durante alguns segundos e uma vermelhidão por cerca de 20 minutos na região sobre a qual é aplicado um bloco de esponja com os eletrodos positivo ou negativo. Segundo Valiengo, esses efeitos são bem mais amenos e passageiros que os de medicamentos antidepressivos, que podem causar taquicardia ou perda de interesse sexual. Incertezas

Ainda há ajustes a serem feitos. Estudos como os do Hospital Universitário da USP, registrando a volta dos sintomas da depressão após o tratamento, são importantes porque mostram os limites do efeito desejado e alertam para a necessidade de definição de detalhes clínicos, principalmente sobre a dosagem e a periodicidade mais adequadas para cada aplicação, como se faz normalmente com novos tratamentos. “Uma sessão de estimulação elétrica a cada 15 dias não foi suficiente e talvez seja melhor uma ou duas vezes por semana”, observa Brunoni. “Esse é um mundo novo, que precisamos conhecer melhor”, reitera Valiengo. Ele próprio está avaliando a ETCC co20  z  fevereiro DE 2014

Manequim com bandana e eletrodos do aparelho de estimulação elétrica, usado para esclarecer funções cognitivas (imagens ao fundo)


fotos léo ramos

Versões portáteis dos aparelhos de estimulação elétrica, que, se aprovados, poderiam facilitar o tratamento contra depressão

aprovados e adotados por médicos e pacientes, talvez possam permitir a redução do custo do tratamento, evitando internações. Os especialistas também acreditam que a ETCC permitiria um controle do tratamento até maior do que o obtido com os medicamentos, que os pacientes podem tomar a menos ou a mais que o recomendado.

O

s aparelhos de estimulação elétrica cerebral são simples e de baixo custo (cerca de R$ 6 mil) – essencialmente, um gerador de corrente contínua com um amperímetro e uma saída para eletrodos. Essas características podem facilitar seu manuseio, mas também aumentar o risco de acidentes e de mau uso. “Já houve quem tentou construir o aparelho, seguindo instruções encontradas na internet, e queimou a pele”, relatou Valiengo. Uma empresa dos Estados Unidos produz e vende pela internet aparelhos de estimulação cerebral para aumentar o desempenho de jogadores de videogames, argumento que não precisa de registro nos órgãos de governo porque não se trata de um dispositivo médico. Como não há evidências nem dos benefícios reais nem dos riscos possíveis do uso, os especialistas estão preocupados. “A configuração dos eletrodos não faz sentido”, alerta Paulo Sergio Boggio, pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie e um dos pioneiros nessa área no Brasil, mostrando na tela de seu computador o aparelho da empresa norte-americana. A possibilidade de acesso fácil ao aparelho de estimulação elétrica traz alguns dilemas éticos, que as equipes de Boggio e de Brunoni apre-

sentam em um artigo a ser publicado na revista Psychology & Neuroscience. Os médicos poderiam recomendar ou permitir que pessoas saudáveis usassem essa técnica para aumentar o desempenho escolar, para se manterem mais ligadas e enfrentarem concursos com mais tranquilidade ou para reduzir a impulsividade ou a inquietação dos filhos? Há também o risco de uso forçado por pilotos de caça ou controladores de voo, e não se sabe ainda como resolver essas situações. “Sabemos que o uso da estimulação pode ser benéfico durante 30 minutos por dia”, observa Brunoni. “Mais do que esse limite, não sabemos.” Além de participar de estudos clínicos com outros grupos de pesquisadores, Boggio usa a estimulação elétrica como uma abordagem complementar de pesquisa de funções cognitivas. Por permitir a estimulação ou inibição de regiões específicas do córtex, de acordo com a posição dos eletrodos, essa técnica indicou que poderia haver uma relação causal entre a ativação do córtex pré-frontal direito e o comportamento de risco, para a qual outra técnica, a ressonância magnética, havia indicado apenas uma associação. Em seu laboratório, Boggio verificou também que essa técnica, por estimular regiões do córtex associadas à tomada de decisões, poderia ajudar as pessoas a deter seus impulsos para beber, fumar ou comer em excesso, o que abre perspectiva de aplicações para controle de compulsões para o uso de drogas ou para o jogo patológico. “A estimulação anódica no córtex pré-frontal acentuou a cautela e favoreceu a tomada de decisões, o que poderia beneficiar as pessoas não só no mundo dos negócios, mas em qualquer comportamento”, diz. Em outro teste, feito em colaboração com Dora Fix Ventura e Thiago Costa, ambos do Instituto de Psicologia da USP, Boggio verificou um ganho na percepção de cores. “Se a estimulação elétrica interfere positivamente nos processos de percepção visual”, ele imagina, “não poderia ser usado para ajudar pessoas com danos no sistema visual?” n

Projeto Escitalopram e estimulação transcraniana por corrente contínua no transtorno depressivo maior: um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, placebo-controlado de não Inferioridade (nº 12/20911-5); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Andre Russowsky Brunoni – USP; Investimento R$ 453.591,70.

Artigos científicos BRUNONI, A.R. et al. The sertraline vs. electrical current therapy for treating depression clinical study: results from a factorial, randomized, controlled trial. JAMA Psychiatry. v. 70, n. 4, p. 383-91. 2013. COELHO, C.L.S. et al. Higher prevalence of major depressive symptoms in Brazilians aged 14 and older. Revista Brasileira de Psiquiatria. v. 35, n. 2, p. 142-43. abr.-jun. 2013. KRISHNADAS R, CAVANAGH J. Depression: an inflammatory illness? Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatryvol. v. 84, n. 5, p. 495-502. 2012.

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fotos  lÊo ramos

22 | fevereiro DE 2014


entrevista Humberto Torloni

Nos bastidores da oncologia Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin

idade 89 anos especialidade Anatomia patológica formação Escola Paulista de Medicina, atual Universidade Federal de São Paulo (graduação), 1948 instituição A.C. Camargo Cancer Center (São Paulo) Organização Mundial da Saúde (Genebra, Suíça) Organização Pan-Americana da Saúde, Opas (Washington) Ministério da Saúde (Brasília) Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer (São Paulo) produção científica 52 artigos publicados em revistas indexadas (PubMed)

P

restes a completar 90 anos em março, o médico que ajudou a criar as bases institucionais e conceituais da oncologia no Brasil trabalha todos os dias com entusiasmo no segundo subsolo do Hospital A.C. Camargo – rebatizado de A.C. Camargo Cancer Center em 2013 –, um dos principais centros de pesquisa e atendimento especializado nessa área no país. Como se estivesse peneirando ouro, Humberto Torloni revê os livrões de registros de casos de pessoas tratadas desde quando o hospital começou a funcionar, em 1953, e, com sua equipe, detecta a mudança do perfil epidemiológico do câncer no país. À medida que as informações são analisadas, novas diretrizes de tratamento emergem do provavelmente maior banco brasileiro de dados e de amostras de tumores. “Quem semeia colhe”, ele diz. Humberto Torloni ainda era estudante de medicina quando ajudou a levantar dinheiro para a criação do Hospital do Câncer, concebido e dirigido pelo cirurgião Antonio Prudente. O jovem médico especializou-se em patologia, dirigiu a equipe de patologistas do hospital – “comecei lavando defunto” –, criou técnicas e aparelhos de trabalho e ajudou a formar jovens pesquisadores, hoje em posições de liderança nas faculdades de medicina e centros de pesquisa de São Paulo e de outros estados. Em 1962 mudou-se para Genebra com a família e, na Organização Mundial da Saúde (OMS), coordenou uma equipe de patologistas de vários países que estabeleceram os critérios pa-

ra até então caótica terminologia de tumores, fundamental para a definição de tratamentos e comparação de casos. Trabalhou depois na Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) em Washington e no Ministério da Saúde brasileiro, onde conheceu o milionário norte-americano Daniel Ludwig, que queria patrocinar um centro de pesquisa sobre câncer no Brasil. Torloni ajudou Ludwig a selecionar o hospital que poderia sediar o centro de pesquisas e o diretor, Ricardo Brentani, que muitos anos depois foi presidente da FAPESP. A convite de Brentani, em 1984 Torloni voltou ao hospital, como coordenador de programas do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. Fumante de cachimbo algumas vezes por dia, bem-humorado e provocador, Torloni não liga para titulação acadêmica nem tem currículo Lattes, embora a base PubMed registre 52 artigos científicos em que ele é autor ou coautor. Chama a si mesmo de “cozinheiro do Grande Hotel”, por ter sempre trabalhado nos bastidores e coxias de instituições importantes de saúde. Médicos e pesquisadores em dúvida ou em apuros o procuram com frequência. Humanista nato, em uma das palestras, em novembro do ano passado, ele lembrou que a relação de confiança entre o médico e o paciente deve estar acima da tecnologia. Suas ideias sobre como exercer a medicina criaram raízes na própria família: um filho e uma filha são médicos e outro é administrador; um neto também é médico e outro é administrador e advogado. É uma família de longevos. PESQUISA FAPESP 216 | 23


Resgate da história: livro de registro de pacientes tratados, analisados um a um

O pai de Torloni, Matheus Torloni, nome de um viaduto no bairro do Jabaquara, viveu até os 102 anos. Ele é tio da atriz Cristiane Torloni. O que o senhor faz no hospital, aos 89 anos? Resgato a memória para escrever a história. Aquele mapa que a moça [aponta para a colega Hirde Contesini, na mesa em frente] está escrevendo é igual a este que está na minha mesa. O dela é de 1958 e este é de 1959. Nestes mapas estão registrados todos os dados transcritos dos prontuários dos pacientes. Queremos fazer um banco de dados com todos os casos atendidos no hospital desde 1953, quando foi fundado, até 2000. De 2000 para cá já está tudo digitalizado. O que fazemos é baseado nos códigos de classificação de tumores, que constam nos livros de referência da OMS, o CID-10 e o CID-O. Há cerca de 800 tipos de tumor, com vários subtipos. A ficha com uma síntese de cada caso atendido é digitada e serve para tentarmos errar menos, para o médico desenvolver o melhor tratamento com base nas características morfológicas, celulares e moleculares de cada tumor. Temos de correr contra o tempo, porque a cor da tinta muda e dois ou três mapas foram molhados por acidente e estão manchados. Os dados 24 | fevereiro DE 2014

serão recuperados através da leitura dos microfilmes. Todos os casos identificados que podem interessar ao corpo clínico serão revistos por meio dos blocos de parafina com amostras de tumores retirados dos pacientes, que serão reanalisados por meio da imuno-histoquímica e outras técnicas moleculares que não tínhamos na época do diagnóstico inicial. E o que o senhor está encontrando? Vejo muito erro de diagnóstico, antes muito comum por falta de experiência. Em um caso de abscesso de mama, tipo tuberculose, tiraram a mama achando que era câncer. Não precisava. Aprendemos com o erro. Quando vejo um caso assim, aviso que é pedagógico, porque hoje não ocorre mais. Tem muitas informações sobre não câncer no meio de tudo isso. Os pacientes entravam aqui com medo de câncer, mas tinham blastomicose [infecção por fungo], esquistossomose do reto, tuberculose, leishmaniose, hanseníase, sífilis congênita, todos achando que tinham câncer. Também encontramos casos de câncer de pele e hanseníase, por exemplo. Hoje as doenças infecciosas estão controladas, mas sobram as crônicas. Em 2007, quando saí do Instituto Ludwig porque o Ricardo Brentani deixou a direção, eu disse que queria trabalhar no hospital e resgatar

o que tem aqui. Na primeira análise que fiz, com poucos dados, revimos 225 mil prontuários, dos quais 49% eram câncer; 50 mil eram homens e 61 mil eram mulheres. Fizemos um balanço simples. Por exemplo: 16 mil casos de câncer de mama, a imensa maioria em mulheres e apenas 11 em homens. Para escrever a história de qualquer câncer é preciso resgatar estas informações. Em 50 anos tivemos 1.051 casos de câncer de pênis, que chegavam em estágio avançado e o índice de mortalidade era enorme. Ficamos surpresos, porque é uma localização atípica, em faixas etárias jovens. Quem são esses homens? Eram todos jovens trabalhadores que tinham vindo do Norte e do Nordeste em busca de trabalho e aqui desenvolveram câncer. Eles se contaminavam com HPV e infectavam a mulher, que podia desenvolver câncer do colo de útero. A importância desse nosso trabalho é para escrever a história baseado em fatos. Como o senhor entrou no Hospital do Câncer? Passei na antiga Escola Paulista de Medicina [atual Unifesp] em 1942 e me formei em 1948. Meu pai era carpinteiro e marceneiro, um imigrante italiano que saiu da Itália aos 16 anos, em 1897, porque o irmão disse que queria ser padre. Naquele tempo, quando algum membro da família manifestava esse desejo, a família toda passava a viver em função dele e meu pai não queria isso. Ele emigrou primeiro para Nova York (Brooklin) e foi cortar gelo no rio Hudson para as geladeiras da época. Depois de dois anos decidiu ir para a Argentina. Não gostou de lá e veio para o Brasil. Casou no interior de São Paulo e teve 10 filhos. Minha mãe nasceu no sul da Espanha, em Málaga, veio criança para cá, casou com meu pai e começou a ter filhos com 16 anos. Um dia meu pai abriu um anuário e mostrou quanto gastou com cada filho. Dizia com bom humor que se tivesse investido em burros seria um homem rico cercado de burros. Esse tipo de coisa ensina liderança. Liderança é obtida de dois jeitos: por respeito ou medo. Somos nove irmãos e uma irmã. Um deles, Hilário Torloni, foi vice-governador de São Paulo, entre 1966 e 1971. Nasci no interior, em Itapuí, antiga Bica de Pedra, em 1924, e fiz o ginásio em Santos, onde meu pai era representante dos plantadores de café.


E por que escolheu a medicina? Eu não sabia o que fazer. Meu irmão Hilário já estudava medicina e um dia vim para a pensão na avenida Rio Branco onde ele tinha um quarto. Fiz um curso, tentei a Escola Paulista de Medicina e a USP. Entrei na Paulista. Nessa época eu tinha de ajudar meus irmãos a estudar. Então me juntei com um colega e começamos a fazer e vender apostilas para os alunos que mal apareciam nas aulas teóricas. Nessa época meu pai não conseguia mais viver do café em Santos e abriu uma escola de comércio no Brás, a Barão de Mauá. Eu trabalhava lá das 19 horas às 23 horas. Os filhos já formados eram contratados como professores e o salário pagava os cursos dos outros. Todos nos formamos. Os três mais velhos foram contadores e já morreram. Eu e o Hilário somos médicos. Minha irmã Tereza é professora e advogada. Geraldo, que é pai da atriz Cristiane Torloni, escolheu fazer teatro. Meu pai disse que podia fazer o que quisesse, desde que trouxesse um diploma de curso superior. Geraldo se formou advogado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, deu o diploma para meu pai e foi fazer teatro. Outro irmão foi professor na USP e outro no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, de São José dos Campos.

Fui aos bancos e os filhinhos de papai que eram meus concorrentes já tinham ido a todos eles. Como eu dava aula no Brás, à noite, fui para a periferia, visitar as fábricas e tecelagens. Visitei o Brás inteiro e fui até São Bernardo do Campo. Para conseguir recursos, o Antonio Prudente criou o “dia de trabalho”. O funcionário que doasse o valor correspondente a um dia de trabalho, se tivesse câncer no futuro, ele seria tratado de graça quando o hospital estivesse pronto. Com essa moeda de troca fui às fábricas. Contava sobre a campanha de arrecadação para o chefe do departamento de recursos humanos da fábrica e ele me autorizava a falar no refeitório na hora do almoço. Não era preciso dar nada na hora, era só falar com o chefe

venci o Nicolau, meu irmão mais velho, que era contador, para abrir uma conta corrente comigo na Caixa Econômica Federal, na praça da Sé. Se acontecesse qualquer coisa comigo, o dinheiro seria entregue na Associação Paulista de Combate ao Câncer. Eu levava apenas 10% do que arrecadava para a tesouraria e guardava 90% na Caixa. Eram só 10 candidatos. No último dia da gincana, fui à Caixa com Nicolau, peguei o dinheiro e os comprovantes e levamos na tesouraria. Chegamos pouco antes das 18 horas, o tesoureiro já estava nos esperando. Perguntei quanto havia sido arrecadado no geral e disse que na mala tinha mais dinheiro. Ele perguntou se eu era louco de andar com tanto dinheiro por aí e expliquei que estava tudo na Caixa. Ele me levou para conhecer o Prudente, que perguntou o que eu queria fazer e disse que faltava gente na anatomia patológica, um tipo de profissional ligado diretamente ao cirurgião. Eu disse que não sabia se gostaria daquilo. Ele sugeriu que fosse ao professor catedrático de anatomia patológica, Moacir de Freitas Amorim, que tinha feito estágio na Alemanha e era fanático pela patologia alemã. Prudente me indicou e o Amorim disse que eu ia começar aprendendo a lavar cadáver. Lavei, aprendi a costurar, fazer autópsia, ainda durante o curso de graduação. Um negro de cabelos brancos chamado Davi fazia as autópsias e me ensinou, fiquei amigo dele. Como eu fazia apostila na faculdade e dava aula à noite, lavar cadáver foi ótimo. Esse aprendizado foi fundamental quando assumi o departamento de anatomia patológica do hospital.

Aprendi a lavar e a costurar cadáver e a fazer autópsia ainda durante o curso de graduação

E o senhor? Em 1946, no quarto ano do meu curso, pensava o que ia fazer na medicina. Não queria cirurgia, porque eu via que a vida da pessoa estava na ponta do bisturi. Pensei em oftalmologia, mas os equipamentos eram caríssimos. Estava pensando se não devia ir para o exterior quando vi um anúncio no jornal. A Associação Paulista de Combate ao Câncer precisava de dinheiro para fazer um hospital. Era uma gincana para estudantes de medicina e o prêmio era uma bolsa de estudos no final do curso, para onde quisesse. Eu queria ganhar a bolsa e ir para o exterior, porque era algo raro e quem voltava de lá se dava bem.

O que o senhor fez? Onde tem dinheiro?, pensei. Nos bancos.

do RH e autorizar a doação. Eu voltava em três meses para recolher o dinheiro. Também usei a rede escolar, conversava com as professoras, a diretora e as crianças. Esse trabalho me custou três segundas épocas, porque tinha de estudar, trabalhar à noite e ainda recolher dinheiro. Chegou o último dia da campanha. A sede da tesouraria era na rua Benjamin Constant, onde ficava o consultório do Antonio Prudente. A gente tinha de deixar o dinheiro recolhido lá com o tesoureiro. Pensei e depositava apenas uma parte do dinheiro recolhido. Porque imaginava que os filhinhos de papai colocariam mais dinheiro do próprio bolso se soubessem qual a diferença dos concorrentes. Falei e con-

O senhor venceu a gincana e ganhou a bolsa. O que fez com ela? Ela ficou guardada até eu me formar. Era uma bolsa para fazer especialização em anatomia patológica. Depois que treinei aqui, fui para os Estados Unidos. Prudente conhecia um dos melhores patologistas dos Estados Unidos, Lauren Vedder Ackerman, e me mandou para o Saint Louis, Missouri, na Universidade de WaPESQUISA FAPESP 216 | 25


shington. O dinheiro da bolsa era US$ 300 por mês e não cobria as passagens, era só para manutenção. O Prudente me ajudou: fui e voltei de navio, sem pagar, acompanhando carregamentos de café. Dos US$ 300, sobravam US$ 150, porque eu fazia três refeições de graça no hospital e pagava US$ 60 em uma pensão que tinha médicos da Tailândia. Fiquei lá um ano e meio e voltei em 1952, uns 10 meses antes de o hospital ser inaugurado. Nessa volta tive de treinar a turma de patologistas do hospital. Abri um laboratório experimental atrás do consultório do Prudente e foi muito bom porque ele me mandava a clientela dele. Sobrevivi disso, enquanto esperava o hospital abrir. Fiz a lista de tudo que precisava para o laboratório de anatomia patalógica, do hospital e avisei ao Prudente: “Abre a cozinha, a lavanderia e a parte de anatomia patológica porque, quando abrir o centro cirúrgico, pode haver óbitos”. Cirurgião, naquele tempo, queria muito mostrar quem ele era. E na autópsia, lá embaixo no hospital, nós mostrávamos onde ele errou. Fizemos 1.953 autópsias entre 4 de agosto de 1953 e 31 de março 1976, em média 7,5 por mês. Havia uma grande mortalidade por causa do estágio avançado dos casos. Como o hospital do câncer tinha missão tripartite – assistência, ensino e pesquisa – e o sistema de diagnóstico por imagem era insuficiente para o diagnóstico real da doença, usávamos a autópsia como o livro de ensino mais realista. As informações eram registradas à mão neste livro e depois datilografadas e arquivadas [mostra o livro e o primeiro registro]. Em 4 de agosto de 1953, às 5h20 da manhã, morreu uma paciente de 27 anos. Enquanto o hospital era construído, a gente se preparava e treinava equipe no Hospital Santa Cruz. Viemos para cá em junho e em agosto essa paciente morreu. Ela tinha sido operada às 15 horas por dois médicos de coriocarcinoma, um câncer na placenta, hoje muito raro. Já existia o departamento de anatomia patológica, com quatro patologistas. A primeira autópsia que eu fiz foi a número 3, no dia 16 de agosto. Era um tumor maligno no úmero, em um homem

de 60 anos. As autópsias eram feitas pelos patologistas de plantão e assistidas por um residente do departamento responsável pelo tratamento daquele paciente. Os resultados eram selecionados para as reuniões anatomoclínicas, feitas uma vez por mês, das sete às oito e meia da manhã, para indicar que o paciente não era realmente portador de uma única doença, câncer, mas tinha outras comorbidades, como insuficiência renal crônica e cicatrizes pulmonares de tuberculose, além de outros achados inesperados, que participavam na evolução da doença. Fizemos 363 reuniões anatomoclínicas, e o conteúdo era gravado em fita, taquigrafados e depois datilografados e publicados na Revista Brasileira de Cirurgia e mais tarde no Boletim de Cirurgia.

médico particular do Getúlio Vargas, um cardiologista. Gaúcha, escreveu vários livros em que relatava as visitas que fazia acompanhando o marido. Ele viajava muito, tinha bom relacionamento internacional, a tal ponto que em 1954 organizou em São Paulo o 4º Congresso Internacional do Câncer, que, pela primeira vez, trouxe uma delegação de oncologistas da então União Soviética. Esse congresso começou a mudar minha vida. Por quê? Prudente, que tinha de montar toda a infraestrutura do congresso, me disse que eu seria o secretário da mesa sobre padronização da nomenclatura de tumores. Tive de traduzir um manual com nomes de tumores e o código. Na época havia a escola francesa, a alemã e a inglesa e a OMS queria fazer uma classificação para ser usada universalmente. O presidente da mesa era um patologista americano chamado Harold Stewart, mas tinha representantes de vários países. Fui anotando, ajudei Stewart, e quando acabou o congresso ele foi embora. Em 1957, Stewart me escreveu para avisar de uma reunião em Oslo, na Noruega, a pedido da OMS. Quem patrocinava era a União Internacional Contra o Câncer, a UICC, uma agência não governamental. O congresso da UICC obrigou a OMS a correr com a normatização da classificação internacional dos tumores e o Stewart me indicou para o novo congresso. Nessa reunião também haveria representantes da Índia, Austrália, da América Latina e do Oriente. Peguei um avião e depois de 29 horas cheguei a Oslo. A reunião foi mais política, de escola, de linha de classificação de tumores, e eu, que era moço, fiquei calado aprendendo com quem tinha sido meu professor, autores de livros. Em 1961 fui chamado para uma reunião internacional na OMS, em Washington, sobre classificação de leucemias. O chefe da Unidade de Câncer era um russo chamado Aleksandr Chaklin, diretor do Instituto de Câncer de Moscou. Da América Latina fui eu de novo, não entendia muito de leucemia, porque em geral quem

Os resultados das autópsias eram discutidos nas reuniões anatomoclínicas, uma vez por mês

26 | fevereiro DE 2014

Como eram Antonio e Carmem Prudente? Ele era um grande cirurgião plástico. Passou uma temporada na Alemanha e trouxe de lá o bisturi elétrico. Muitos tumores eram ulcerados e infectados. De antibiótico só existia a penicilina e mais alguns poucos. Para diminuir o tamanho do tumor ele usava o bisturi elétrico, para cauterizar. Ele também foi professor na Escola Paulista de Medicina, era muito preparado, e muito simples, não tinha filhos e não ostentava o que ganhava. Muito católico, conservador, vivia em função do trabalho. Dona Carmem era o motor que o empurrava, porque o que ele tinha de sossego e tranquilidade ela tinha de agitada. Era jornalista, filha do


diagnostica é o hematologista. Conheci gente famosa da leucemia e fiquei bem quietinho. O Chaklin me convidou para almoçar e disse, “Nós mandamos uma carta para você pedindo a sugestão de um patologista para trabalhar no projeto de uniformização e nomenclatura de diagnóstico de câncer. Você mandou alguns nomes, mas não foram aprovados”. Perguntou então por que eu não me candidatava. Perguntei se era um convite, ele confirmou. Já estavam me observando e eu não sabia. Foi em 8 de dezembro de 1961. Em 4 de abril de 1962 desembarquei em Genebra com minha mulher e os três filhos, para trabalhar na OMS. Antonio Prudente gostou? Ficou encantado, porque aqui eu estava na rotina, trabalhava e treinava residentes em patologia oncológica. O que eu fazia outro poderia fazer. No Brasil, a anatomia patológica não era muito respeitada. Os professores Alípio Correia Neto e Benedito Montenegro e outros trabalhavam com um patologista como parte de sua equipe. A liderança na anatomia patológica começou a mudar quando vários professores da Europa vieram ensinar nas faculdades de medicina de Ribeirão Preto, Belo Horizonte, entre outras. Aí formaram líderes e reconheceram o valor da anatomia patológica brasileira, que a classe médica daqui não reconhecia.

O coordenador de cada grupo de trabalho (mama, ossos etc.), encarregado da uniformização da nomenclatura de classificação dos tumores, enviava as lâminas para os outros colaboradores examinarem e discutirem nas reuniões. Havia divergência sobre vírgula, ponto, nome. Demorava cinco anos para acertar todos os detalhes e dar uma definição com uma imagem fotográfica como exemplo do que se estava falando. E todos os líderes tinham de estar de acordo com a definição. Quando ficava pronto, a OMS colocava a bandeira, indicando que era a classificação oficial da organização. Os textos eram impressos e distribuídos para os médicos e escolas médicas do mundo inteiro. Um dia fiquei incomodado porque, convivendo com os melhores

para escolher qual era a fotografia que melhor representava o tumor. Chamávamos uma companhia fotográfica para fazer microfotografias com a qualidade da lâmina histológica. Com esse grau de envolvimento nas pesquisas científicas oncológicas, por que o senhor não fez doutorado? Nunca me interessei. Depois me deram o título de notório saber pela USP, assinado pelo governador. Não ligo para essas coisas. Eu disse para o Ricardo Brentani, que na época era o diretor do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e do Hospital do Câncer, que aquilo não adiantava. Você é o que é, não o que aparenta. Eu era uma espécie de “cozinheiro do Grande Hotel”. E nunca lhe cobraram titulação formal? Não. Em 1960, a dois anos de ir para a OMS, havia aqui no hospital um diretor clínico chamado Osvaldo Ramos de Oliveira, um excelente clínico, que Prudente encarregou de chefiar as reuniões anatomoclínicas. Nos conhecemos e, naquele ano, Osvaldo me disse que eu deveria ser professor no curso de medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba. Contei que não tinha título e ele disse que não era problema. Fiquei lá o semestre todo, depois mais um ano, uma vez por semana, dando aula de histologia. Foi quando vi a responsabilidade de ser um professor. Disse para os alunos que se eu não soubesse uma resposta, saberia onde encontrá-la nos livros e leríamos juntos. Professor não pode enganar. Avisei que não tinha ido para ficar, que o curso era responsabilidade deles. No fim do ano, pedi aos alunos para escreverem comentários e críticas. Podia ser anônimo. Todos enviaram os comentários assinados. Havia um canal de comunicação. Depois tive de sair de Sorocaba e São Paulo para Genebra.

Me deram o título de notório saber. Não ligo para essas coisas. Você é o que é, não o que aparenta

O que o senhor fez na OMS? Meu trabalho era de sistematização de critérios de classificação de tumores. Os principais pesquisadores da patologia internacional se reuniam para decidir sobre esses critérios. Aprendi muita coisa. Conheci os papas da anatomia patológica do mundo. Eu era o secretário das reuniões. As sociedades nacionais eram responsáveis por indicar os líderes e nós checávamos se a indicação era por apadrinhamento ou por mérito. Tinha gente de alto nível do mundo todo. Havia um líder fantástico em linfomas da Alemanha, outro líder fantástico de leucemia em Paris, mais outro em leucemia nos Estados Unidos, todos na mesma sala.

patologistas do mundo, com as melhores lâminas, eu não tinha microscópio. Reclamei com o Marcelo Candau, brasileiro, diretor da OMS, e pedi um microscópio. Foi difícil. Um patologista sem microscópio não é nada. Expliquei que meu currículo ia ficar parado se não tivesse um microscópio para acompanhar os trabalhos. Também pedi para ser coautor dos livros por ter participado não só da organização como das discussões. Cada classificação de tumores da OMS demorava em torno de cinco anos com duas ou três reuniões de trabalho com os 10 maiores especialistas da área. Uma vez aprovadas a nomenclatura e a definição de cada tipo de tumor, o patologista líder ficava comigo uma semana

E depois da OMS? Fui para a Opas, em Washington. Meus três filhos pequenos chegaram com 4, 6 e 8 anos em Genebra e lá tiveram a eduPESQUISA FAPESP 216 | 27


Ministério da Saúde e voltei em 1973. Eu estava na Divisão Nacional do Câncer e o ministro Paulo de Almeida Machado me chamou um dia. Um pouco antes, o Golbery do Couto e Silva, ministro-chefe da Casa Civil, tinha avisado ao ministro Paulo Machado para dizer que um milionário excêntrico chamado Daniel Ludwig queria abrir um centro de pesquisa sobre câncer no Brasil. Marcamos uma entrevista com Ludwig e seu advogado. Não sabia quem era ele e fiz algumas sugestões de investimento na área de saúde no Brasil. “Quero um centro de pesquisa sobre a doença do século, que é o câncer”, ele disse. Ele queria no Rio de Janeiro, porque toda vez que descia de avião via uma faculdade enorme, que é a instalação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, na Ilha do Fundão. Contei que aquilo também pertencia ao governo e ele disse que não queria nada. Microscópio portátil: uma lupa para ver slides com imagens de tecidos

cação infantil, na escola pública de Genebra, onde aprenderam francês. Genebra é um paraíso e nós queríamos ficar lá. Mas não daria para meus filhos trabalharem porque as leis suíças são muito fechadas. O colegial [atual ensino médio] eles fizeram em Washington. Na Opas, entrei na área de educação médica, em 1972. Um pediatra carioca que eu já conhecia e morava lá, Maurício Martins da Silva, disse para trabalhar com ele na área de pesquisa e desenvolvimento. Eu disse, “Ótimo, cadê o orçamento?”. “Você tem que achar.” Tinha que criar e desenvolver projetos e conseguir arranjar financiamento do governo americano. Estava chegando de Genebra e o patologista não tem a mesma inserção social do pediatra, do clínico ou do cirurgião. Pensei que não conseguiria sobreviver. Mas entrei em contato com a área de ensino médico e pesquisa da Opas e falei com o Ramón Villareal, um mexicano extremamente dedicado à área. Quando ainda estava em Genebra, na OMS, ele disse que queria fazer uma pesquisa sobre o ensino da anatomia patológica na América Latina. Pediu então para eu fazer um questionário sobre como, onde, quando, o que era preciso fazer para melhorar o ensino de anatomia patológica nas faculdades de medicina. Tirei uma licença de um mês da OMS e viajei a America Latina visi28 | fevereiro DE 2014

tando laboratórios de anatomia patológica. Eu explicava que, dependendo da necessidade, a OMS podia ajudar. Como faltava livro-texto, a OMS fez um acordo com a editora e com o autor para fazer a tradução do Tratado de histologia, de Arthur Ham, um clássico nos Estados Unidos. Trabalhei na comissão que organizou a publicação. Eu disse que não adiantava mandar lâmina, porque não havia microscópio nas faculdades, então fiz uma segunda capa no livro e criei uma lupa com um suporte de papelão preto, no qual se colocam slides de histologia que podem ser vistos contra a luz. Esta lupa era usada para fins comerciais e adaptei para ser usada pelos estudantes. Bolei um instrumento de comunicação para o ensino médico. Essa foi minha contribuição para ensino e pesquisa em Washington, na Opas. Foi o senhor que contratou Ricardo Brentani. Como foi? Queríamos ficar nos Estados Unidos, mas eu ganhava US$ 4 mil por mês e não dava para pagar a universidade dos filhos, de US$ 1.500 cada um. Aí, depois de 6 ou 7 anos em Washington, comecei a procurar outro emprego. Eu pensava sempre em São Paulo, nunca em Brasília, mas um médico, o professor João Sampaio Góes, me convidou para o cargo dele no

Ele não queria nada com o governo? Não. Queria fazer algo na esfera privada. Como eu faria várias viagens para o exterior com o ministro da Saúde, Ludwig me sugeriu que visitasse os institutos que ele já apoiava. Só tivemos tempo de ver dois, em Lausanne, na Suíça, e em Londres, na Inglaterra. Contei que no Brasil havia a possibilidade de fazer pesquisas muito diferentes, porque somos um país tão grande que um câncer que dava no Sul não dava no Nordeste. Quando falei de câncer de pênis, ele se assustou, não sabia nem que tinha. Nessa época saiu um trabalho de um epidemiologista importante de Londres, Richard Doll, chamando a atenção para o possível vírus causador do câncer genital feminino e aqui tínhamos o grande responsável por esse câncer no homem sem saber que era provocado por vírus. Como no Nordeste tinha grande número de câncer de útero e pênis, poderia haver uma relação, mas não tínhamos provas. Quando eu joguei essa possibilidade de investigação para o Ludwig, ele ficou entusiasmado. Fui convidado para ajudar a comissão para selecionar a cidade, o hospital onde funcionaria o novo instituto e o possível diretor. Pedi um tempo, mandei o regulamento de vários hospitais para a equipe do Ludwig em Nova York e disseram que queriam visitar o Hospital do Câncer aqui de São Paulo. O diretor era o Fernando Gen-


til, que viveu muitos anos no Memorial Hospital, nos Estados Unidos, mas não conhecia Ludwig. A comissão veio, fez uma inspeção, aprovaram, mas faltava escolher quem ia comandar. Eu estava no Ministério da Saúde e aceitei fazer uma pesquisa para escolher um diretor. Fiz uma extensa busca sobre bolsistas pesquisadores dos últimos 5 ou 10 anos da área de saúde e adjacências, descobri os que tinham ido ao exterior, procurei em publicações sérias. Cheguei a uns 10 nomes, coloquei o currículo científico, uma planilha com os dados e as minhas observações pessoais, mandei para os Estados Unidos e mandaram entrevistar os candidatos. O Brentani eu já conheci de Washington, no tempo da Opas. Eu tinha muita ligação com o NCI [National Cancer Institute] e como havia brasileiros lá, de vez em quando me indicavam um para eu conhecer e levar para jantar. Era um tal de Brentani, falamos bastante, ele conversou com minha mulher, ficou sentado no sofá de casa com meu gato no colo. Ainda não sabíamos nada sobre Ludwig. Anos depois, quando o entrevistei, ele estava na USP como professor de oncologia. Era um acadêmico, o pesquisador brasileiro mais jovem com trabalho publicado na Science. Quando foi escolhido, ele me ligou para contar e perguntou: “E agora?”. Eu brinquei: “A culpa é sua!”. Ele pediu ajuda para escrever um relatório do que precisava para o novo instituto. Eu aceitei ajudar, mas não escrevendo, porque ele tinha grau acadêmico e um jeito de falar próprio. Brentani chegou ao hospital e descobriu um monte de talentos, que estavam precisando de uma ajudazinha para se tornarem também acadêmicos. “A turma aqui é espetacular, por que não faz graus acadêmicos?”, ele perguntava. Aqui ele formou muita gente. Fui convidado para ser o diretor científico e eu não aceitei, porque não tinha formação científica modernizada para assumir. Me ofereceram então a coordenação de programas, exatamente porque sabia fazer a ponte entre o hospital e o acadêmico Brentani. Disse para Brentani mais tar-

de que foi uma pena eu tê-lo conhecido tão tarde na vida profissional. Era um sonhador, com muita liderança. Tinha um temperamento vulcânico. Ele foi o responsável pela projeção nacional e internacional dos serviços, do ensino e da pesquisa do hospital. O hospital sempre foi apoiado pelo trabalho de assistência e por doações voluntárias que permitiram atravessar anos difíceis, principalmente na década de 1960. Como o ensino dos médicos em suas especialidades era de alto custo, os residentes nos anos 1950 eram subsidiados pela Fundação Antonio Prudente, eles moravam aqui. O reconhecimento do ensino e pesquisa na área de oncologia permitiu o reconhecimento por meio de projetos com instituições do Brasil, como a FAPESP,

Isso aqui não é só para médicos e patologistas. É para sociólogo, poeta, para quem quiser e de outros países, como Itália, Estados Unidos e Inglaterra. Vários médicos e pesquisadores dizem que ainda hoje o consultam quando têm dúvidas. Como é seu papel de conselheiro? A qualquer momento da profissão, devemos responder a algumas perguntas: como eu era? Como estou? São perguntas que obrigam a uma autoanálise, não necessariamente a uma autocrítica. Em qualquer profissão é preciso fazer isso. Em novembro do ano passado dei uma palestra aqui no hospital sobre a relação entre médico, paciente e tecnologia. Hoje estamos falando de uma geração de médicos que, se não for inteligente, vai se esconder atrás da tecnologia para

ganhar dinheiro e deixar que o paciente vá para o inferno. Falei nessa palestra como devia ser a primeira consulta, da importância de saber ouvir e quando falar, saber o que e quando falar. Ter paciência. Do absurdo de se tratar mal o paciente. O paciente fala e sua história tem começo, meio e fim. O médico tem que ter paciência e controle do tempo da consulta. Se você trabalha no convênio tem que atender muitos pacientes para ganhar R$ 100. É um problema. O doente tem sentimento, tem de tratar com dignidade, porque ninguém vai ao médico para pedir atestado, vai porque tem dúvidas. Não adianta ser apenas um especialista em pulmão. Isso é técnica. O paciente é que sabe onde dói no pulmão. Tem uma coisa importante que é o comportamento social comparado com o comportamento celular. Como as células do epitélio se transformam em câncer, nós nascemos para viver em equilíbrio, mas se você consome uma quantidade grande de gordura tem manifestação intestinal, porque desequilibrou a sintonia de função das células. O maior desequilíbrio celular que existe é o câncer, porque não tem volta. A célula endoida, começa a se dividir rápido, atrapalha as outras, acaba com a pele, com o estômago, com o osso e com a vida. Nessa palestra para os médicos contei uma história de uma paciente de 29 anos, doméstica, diagnosticada com uma doença benigna na mama direita. Seis anos depois ela voltou com doença benigna na mama esquerda. Em 1981 retornou com um câncer na mama esquerda. Fez radioterapia, cirurgia e em 1984 veio com metástase óssea, em 1985 espalhou por tudo e em 1986 morreu, com 52 anos. Começou com 29. Durante 23 anos de vida, ou 44%, a vida dela esteve ligada ao hospital. Foi um dos 1.600 casos de câncer registrados naquele ano. Isso aqui não é só para médicos, patologistas. É para sociólogo, poeta, para quem quiser. Porque por trás de cada caso tem um nome, um sexo, uma idade e uma profissão. Essa era doméstica de São Bernardo. Não podemos ler esses registros como um robô. n PESQUISA FAPESP 216 | 29


política c&T  colaboração y

Passo à frente Parceria entre FAPESP e NSF une pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos para conhecerem melhor os processos que afetam a biodiversidade brasileira Rodrigo de Oliveira Andrade 1

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FAPESP e a National Science Foundation (NSF) deram um passo a mais para fortalecer a parceria estabelecida em 2011 voltada ao estudo da biodiversidade no Brasil. Em dezembro passado foi lançada a terceira chamada de propostas de cooperação científica vinculadas às principais linhas de financiamento de estudos sobre a diversidade biológica das duas agências, os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity. O objetivo é estimular a colaboração em pesquisa entre cientistas por meio de projetos que contribuam para o avanço dos estudos em biodiversidade no Brasil e Estados Unidos. Os projetos aprovados receberão até US$ 2 milhões de cada fundação. A ideia é que as propostas integrem as três dimensões da biodiversidade — genética, taxonômica e funcional —, com o propósito de tentar compreender como elas contribuem para a saúde, o funcionamento dos ecossistemas e a adaptação biológica em resposta às mudanças ambientais. “O caráter interdisciplinar que os projetos submetidos precisam atender é um dos principais 30  z  fevereiro DE 2014

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diferenciais dessa parceria”, diz Regina Costa de Oliveira, diretora da área de biologia, agronomia e veterinária da Diretoria Científica da FAPESP e coordenadora da chamada de propostas. Segundo ela, a FAPESP preza as parcerias com grandes instituições, como a NSF, porque envolvem muitos pesquisadores e intensa produção científica. A seleção de propostas integra uma chamada mais ampla, publicada todos os anos pelo Dimensions of Biodiversity, voltada à participação de pesquisadores de instituições americanas em projetos financiados pela NSF ou lançados em parceria com outras fundações. De 2003 a 2007 houve intensa troca de experiências entre a coordenação do programa Biota e a administração da NSF. Esses contatos contribuíram para que, em 2010, a NSF iniciasse um projeto de 10 anos de investimentos em pesquisa, infraestrutura de tecnologia, força de trabalho, coleta e síntese de dados, numa campanha de estudos integrados com o objetivo de caracterizar a dimensão da diversidade biológica da Terra. Na mesma época, a FAPESP renovou por mais 10 anos a continuidade

Árvores da Amazônia (acima) e da mata atlântica (à dir.): projetos pretendem entender melhor a origem e evolução da biodiversidade vegetal


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do Biota-FAPESP. Dentre os objetivos da segunda fase estão as parcerias internacionais, a expansão da abrangência geográfica para além do estado de São Paulo, a ampliação de pesquisas sobre a biodiversidade costeira e marinha e a prioridade à vertente educacional, o que vem sendo feito. Em 2013, o programa organizou, em parceria com Pesquisa FAPESP, uma série de palestras para discutir os desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros, como contribuição para a melhoria da qualidade da educação científica e ambiental no país. Com 13 anos de história em caracterização, conservação, restauração e uso sustentável da biodiversidade, o Biota-FAPESP já financiou mais de 120 projetos de pesquisa, cujos resultados têm contribuído para que tomadores de decisão possam identificar e caracterizar melhor as áreas prioritárias para conservação e restauração no estado de São Paulo. “As relações entre pesquisadores brasileiros e americanos têm promovido avanços importantes quanto a nossa compreensão dos processos que regulam a diversificação, manutenção e perda de biodiversidade no Brasil”, diz Simon Malcomber, coordenador do Dimensions of Biodiversity. A expectativa, segundo ele, é que essas atividades colaborativas promovam o desenvolvimento científico e econômico dos dois países, gerando uma força de trabalho amplamente treinada e internacionalmente engajada na pesquisa ambiental.

fotos  1 e 2 léo ramos 3 e 4 eduardo cesar

PROJETOS APROVADOS

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O resultado da primeira chamada foi anunciado em setembro de 2012. Um projeto ambicioso, coordenado pela bióloga Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), pretende entender o que levou a floresta amazônica a abrigar a maior variedade de plantas e animais do mundo (ver Pesquisa FAPESP nº 200). Para isso, uma equipe multidisciplinar de 30 pesquisadores brasileiros e americanos trabalha para tentar reconstruir o parentesco, história evolutiva e distribuição espacial de grupos animais e vegetais, como as Bignoniáceas, família de plantas que inclui os ipês e os jacarandás, e as Lecythidaceae, grupo no qual está a castanheira-do-brasil. pESQUISA FAPESP 216  z  31


fotos  1 e 2 léo ramos 3 eduardo cesar

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Se o projeto avançar, os pesquisadores esperam poder identificar os principais momentos de diversificação das espécies desses grupos e reconstruir suas histórias biogeográficas. Com isso, pretendem entender melhor a origem e evolução da biodiversidade da região. “Queremos reconstruir a história da Amazônia nos últimos 20 milhões de anos”, conta Lúcia. “Mas antes precisamos entender melhor a história da biodiversidade da região, bem como as transformações que ocorreram no ecossistema. Só assim conseguiremos entender a influência de eventos geológicos específicos, como o surgimento dos Andes, na diversificação de espécies na Amazônia.” A pesquisadora também planeja investigar se esses eventos de diversificação estão associados a fenômenos climáticos e ciclos biogeoquímicos, entre outros aspectos ambientais do passado. análises integradas

Os trabalhos estão bastante avançados e já resultaram em quatro artigos publicados até agora, além de outros cinco que estão no prelo. No ano passado, o projeto foi citado pela revista Science, que enfatizou seu potencial na produção de insights ligados à biodiversidade amazônica. Os grupos ainda trabalham de forma isolada, mas Lúcia pretende reuni-los entre os dias 16 e 21 de fevereiro, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, para discutir os avanços deste primeiro ano de pesquisas e estabelecer novas metas e protocolos de trabalho para 2014. Lúcia está paralelamente envolvida em outro projeto, este de caracterização da distribuição e diversidade de espécies animais e vegetais na mata atlântica. O projeto foi aprovado em 2013, na segunda chamada de propostas FAPESP-NSF. Sob coordenação da bióloga Cristina Miyaki, do 32  z  fevereiro DE 2014

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Instituto de Biociências da USP, pesquisadores de diversas Parceria FAPESP-NSF deve áreas estão trabaampliar as fronteiras da lhando para entender melhor a história ciência da biodiversidade do ecossistema, um dos mais degradados do país. Em fevereiro, eles se reunirão em um workshop na sede da Inseto e flor da FAPESP em São Paulo. “O objetivo é juntar os Amazônia (acima) pesquisadores para delinear o que cada um está e cogumelo da mata atlântica: objetivo é fazendo, de modo a começarmos a pensar como os identificar os principais avanços de cada grupo podem ajudar a melhorar picos de diversificação a documentação dos padrões da biodiversidade de espécies na mata atlântica”, explica Cristina, que também é uma das organizadoras do evento. Essa será a primeira vez que as equipes estarão frente a frente, conta Regina Costa de Oliveira. “Queremos promover esses encontros anualmente”, diz. “Estamos animados com o potencial desse e de outros projetos conjuntos de expandir nosso conhecimento sobre os processos que influenciam a biodiversidade desses dois ecossistemas brasileiros”, comenta Malcomber, do Dimensions of Biodiversity. Apesar de terem apenas dois anos, ele diz estar satisfeito com a natureza colaborativa dos trabalhos. “As equipes de pesquisadores têm feito progressos significativos”, diz. “Esperamos que continuem a empurrar as fronteiras da ciência da biodiversidade.” Para Regina Costa de Oliveira, parcerias como essa aumentam a massa crítica pensante sobre os diversos temas relacionados à biodiversidade. “Estamos usando a biodiversidade brasileira como ponto de partida para uma análise envolvendo uma grande mistura de especialidades, cujas pesquisas reverberarão 3 por vários outros países”, afirma. n


difusão y

Um túnel para o futuro Mostra alemã chega a São Paulo com descobertas científicas que podem mudar o mundo nos próximos anos Bruno de Pierro

eduardo cesar

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ma viagem através de um túnel que perpassa os principais temas da ciência: das origens do universo às idiossincrasias do cérebro, passando pelas fontes de energia sustentáveis. Essa é a proposta da mostra global Túnel da ciência Max Planck, aberta ao público até o dia 21 de fevereiro no Centro de Convenções do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Concebida em 2000 pela Sociedade Max Planck, na Alemanha, a exposição já passou por 20 países, entre eles China, Argentina, Estados Unidos e Chile, e recebeu mais de 9 milhões de pessoas em suas três versões. Esta é a primeira vez que a mostra é instalada no Brasil, como parte das atividades que celebram a temporada da Alemanha no Brasil 2013-2014. Quando foi apresentado pela primeira vez, em 2000, na cidade de Hannover, Alemanha, o Túnel da ciência tinha a missão de mostrar as últimas novidades, naquele momento, da ciência básica, cuja finalidade é gerar conhecimento. Na versão que chega ao Brasil, a 3.0, a preocupação vai além da simples apresentação. “Os resultados da pesquisa básica

O Túnel da ciência: clima futurista para discutir as consequências do avanço científico

pESQUISA FAPESP 216  z  33


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implicarão novas aplicações e produtos daqui a 20 anos. Por isso, nosso objetivo agora é fornecer ao público um vislumbre do futuro”, diz o alemão Peter Steiner, coordenador da mostra, que custou cerca de R$ 2,5 milhões, divididos entre a Sociedade Max Planck, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e patrocinadores do setor privado. Para Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade parceira nesse projeto, o país precisa estar mais aberto para receber, e também criar, exposições como a do Túnel da ciência. “A exposição cumpre o papel de intensificar o diálogo entre a comunidade científica e a sociedade, que é quem de fato financia a pes-

quisa”, diz ela. “A maioria das pessoas tem celular com GPS e outras tecnologias, mas não tem a percepção de como a pesquisa básica foi importante para se chegar a tais produtos. O Túnel da ciência mostra ao público que a ciência deve ser entendida como um processo”, diz Nader. Para provocar questionamentos do tipo “qual futuro nós queremos?”, a aposta foi em um modelo de exposição que privilegia recursos tecnológicos e midiáticos para causar sensações e fomentar emoções no público, explica Steiner, que tem 22 anos de experiência na organização de mostras de ciência, com passagem pelo tradicional Museu Deutsches, em Munique. Por isso, o ambiente futurista do Túnel, cheio de cores e luzes, abriga atrações de todos os

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tipos: imagens, ilustrações, filmes, muitas vezes acionados por tablets ou smartphones. “A exposição não se debruça sobre o processo de ensino e aprendizagem, como em uma escola. Aqui a transmissão de informações ocorre de maneira mais lúdica”, diz Marcus Ferreira, diretor da Asas Produções, uma empresa do Grupo Asas, que organizou a instalação da exposição no Brasil. atrações

Dentre as novidades da mostra está uma réplica do veículo de exploração espacial Curiosity, enviado pela Agência Espacial Americana (Nasa) a Marte em 2012. Trata-se do maior e mais complexo jipe robô já enviado ao planeta, equipado com um espectrômetro a laser e outros oito instrumentos exploratórios. A réplica é acompanhada por dois tablets, que ajudam a explicar o funcionamento do robô. Outro ponto alto do Túnel é o Magic Mirror (Espelho Mágico), criado em parceria com a Universidade Técnica de Munique, na Alemanha. Graças à tecnologia de realidade aumentada, ele cria a ilusão de que é possível visualizar o interior do próprio corpo, como em um raio-x, indicando a posição dos órgãos humanos. Já o Millenium-Simulation


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fotos  1, 2 e 3 eduardo cesar  4 leeo ramos

1 A complexidade do cérebro humano é tema da mostra

mostra como o Universo seria se fosse possível observar a matéria escura que compõe 23% do espaço. Todas as atrações estão distribuídas em oito módulos temáticos, o que facilita o percurso da visita: Universo, matéria, vida, complexidade, cérebro, saúde, energia e, finalmente, sociedade. Steiner ressalta que a mostra tem como preocupação não apenas democratizar o conhecimento. Mais do que isso, ela busca levar o público a discutir o significado do avanço científico para os próximos anos. “A exposição convida a política, a ciência e o público a se reunirem para pensar sobre a aceitação e o papel da ciência e seus avanços em nossa sociedade”, diz ele. Por esta razão, a abertura da mostra, no dia 29 de janeiro, contou com a participação de Erwin Neher, prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1991 e pesquisador da Sociedade Max Planck, que ao todo reúne mais de 5.300 cientistas e teve um orçamento de € 1,5 bilhão em 2012. Em sua palestra, Neher falou sobre o importante papel da colaboração internacional para o desenvolvimento da ciência e sobre a necessidade de se valorizar a pesquisa básica, que, segundo ele, fornece as bases para as principais transformações tecnológicas na sociedade.

Unifesp, por exemplo, esteve envolvido na recepção de Erwin Neher. “Ele é um 2 Recursos dos grandes cientistas que avançaram multimídia a no conhecimento do sistema nervoso, e serviço da como ele veio ao Brasil, meu grupo, que divulgação trabalha com essa mesma temática, foi 3 Réplica do robô escolhido para acompanhar Neher duCuriosity, da Nasa rante sua passagem por São Paulo e pres4 O cientista Erwin tar tutoria ao público”, diz Cavalheiro. Neher na abertura 2 Outra entidade que ajudou a trazer da exposição a mostra para o país é o MCTI, que destinou aproximadamente R$ 318 mil para a contratação dos mediadores “Nosso objetivo é oferecer e outros gastos. Em ao público um vislumbre parceria com a Universidade de São Paudo futuro”, diz Peter Steiner lo (USP), o ministério elaborou uma pesquisa para avaliar a percepção dos visitantes em rela“Infelizmente, as pesquisas podem le- ção à ciência. “Com base nessas inforvar muito tempo para que seus resul- mações, poderemos nos capacitar para tados encontrem alguma aplicação e se criar o Túnel da ciência brasileira, uma convertam em produtos. Por isso temos versão nacional da exposição alemã”, que saber antecipar, hoje, os desafios do conta Douglas Falcão Silva, diretor do amanhã. A ciência feita hoje molda o fu- Departamento de Popularização e Difusão da Ciência e Tecnologia do MCTI. turo”, disse Neher. A ideia, diz ele, é que a médio prazo Uma das preocupações da organização da mostra é que a experiência do público o Brasil seja capaz de realizar uma exnão se resuma apenas a sensações pro- posição nos mesmos moldes do Túnel vocadas pelas atrações. É preciso que o da ciência, mas com o objetivo de aprevisitante receba explicações. Por isso alu- sentar os feitos da pesquisa feita no país. nos de graduação, mestrado e doutorado “O público que visita o Túnel deve saber da Universidade Federal de São Paulo que temos brasileiros que também tra(Unifesp) foram convidados a trabalhar balham com grandes temas científicos. como mediadores dos visitantes na expo- Temos brasileiros nos grandes centros sição, principalmente para receber estu- de pesquisa internacionais e outros que dantes do ensino fundamental. Um grupo atuam aqui no país, fazendo pesquisa de alunos de Esper Abrão Cavalheiro, básica, mas desconhecidos da população professor de neurologia experimental da em geral”, afirma Falcão. n pESQUISA FAPESP 216  z  35


ciência  ecologia y

Rede de proteção Manguezais ganham importância diante de alterações no clima Texto

Maria Guimarães

Fotos

Léo Ramos

36  z  fevereiro DE 2014


Raízes de Rhizophora mangle mantêm árvores de pé no solo instável

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o longo dos estuários, baías, lagoas e braços de mar, árvores enfrentam condições pouco favoráveis e se debruçam sobre a água salobra. Às vezes representado por uma vegetação atarracada que forma uma franja verde, outras pelo emaranhado de raízes que funcionam como muletas em arco para manter árvores bastante altas de pé na lama movediça, o manguezal é berçário para uma grande variedade de animais marinhos e ajuda a proteger a costa dos ventos e das ondas do mar. Em tempos de aquecimento global, a capacidade de absorver carbono da atmosfera e estocá-lo acrescentou mais uma etiqueta de preço ao valor desse ecossistema costeiro que no Brasil existe ao longo de quase todo o litoral, da região Norte ao sul de Santa Catarina. E que agora reage ao aumento do nível do mar resultante das mudanças climáticas, como vem mostrando o grupo do oceanógrafo Mário Soares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Cerca de três vezes por semana, uma equipe do laboratório de Soares, o Núcleo de Estudos em Manguezais (Nema), se dirige ao manguezal de Guaratiba, a 70 quilômetros a oeste da capital fluminense. Ali, às margens da baía de Sepetiba, eles se embrenham na floresta e fazem uma série de medições em uma área monitorada desde 1998, quando Soares estabeleceu pESQUISA FAPESP 2XX  z  37


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uma zona permanente de estudo, descrita em 2013 por Gustavo Duque Estrada na Aquatic Botany. O manguezal de Guaratiba é o único no país acompanhado com tal nível de detalhe por um período tão longo. O trabalho, financiado por CNPq, Capes, Faperj e outras instituíções, vem trazendo resultados inéditos. Uma das observações mais marcantes nesses 16 anos é que a floresta vem avançando continente adentro sobre uma área plana com ares de deserto. É a planície hipersalina, uma feição do manguezal também conhecida como apicum, cujo solo é de duas a quatro vezes mais sal2

gado do que a lama do manguezal. Algumas vezes por mês, nas marés mais altas, o mar invade essa área e não escoa completamente. A água evapora e deixa o sal no solo, que se torna inóspito até para as espécies de mangue. Mesmo assim, com o aumento do nível do mar a inundação dessa área se torna cada vez mais frequente e aos poucos essas plantas se instalam por ali. “A floresta avançou quase 80 metros desde 1998”, conta Soares. Além do trabalho com os pés afundados numa lama cheirando a enxofre, os pesquisadores da Uerj também investigam o que aconteceu por meio de imagens de

satélite. “Imagens capturadas desde 1984 confirmam o que vimos em campo”, diz Soares. “O manguezal pulsa segundo ciclos climáticos.” Em períodos mais úmidos, a chuva lava o solo, dilui o sal e as árvores conseguem se estabelecer nas planícies salgadas. “São janelas climáticas de oportunidade para o avanço mais rápido da floresta”, explica Estrada, que em 2013 terminou o doutorado e agora se tornou professor na Uerj. Para ele, um indício de que o nível do mar está subindo por ali é que ao fim de uma série de anos secos o manguezal para de avançar, mas não perde o terreno conquistado: sem as lavagens pela maré, as árvores morreriam. Ao mesmo tempo que a floresta avança rumo à terra, a água erode a borda da vegetação. Em Guaratiba, porém, esse desgaste tem sido mais lento do que o avanço. O saldo é um aumento da área total de floresta. Rumo aos polos

A expectativa é que o manguezal também amplie a distribuição geográfica à medida que as temperaturas aumentam. É que as árvores desse ecossistema não crescem em baixas temperaturas, e por isso mais da metade dos manguezais do mundo es1 Jovem Avicennia cresce no apicum 2 Projeções das raízes funcionam como snorkels

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infográfico ana paula campos ilustração fabio otubo

Como anda o manguezal

São Caetano de Odivelas, PA

Projeto no Rio de Janeiro começa a ser ampliado para outros estados

Extremoz, RN Barra de São Miguel, AL

Caravelas, BA

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Guaratiba, RJ

Áreas estudadas pelo Nema

Florianópolis, SC Laguna, SC

Fonte nema / Magris & Barreto, 2010 [mapa]

manguezal

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1

Rio Doce, ES

n  Distribuição do manguezal

Mar ou rio

Estudo na baía de Sepetiba já dura 16 anos e revela reação ao crescente nível do mar

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transição

planície hipersalina

restinga

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4

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tendência

O aumento no nível do mar erode a borda da floresta e afoga as árvores

As três espécies típicas do ecossistema no Sudeste brasileiro se organizam nas diferentes zonas

tá entre as latitudes 10°N e 10°S. Como as previsões climáticas indicam que o sul do Brasil se tornará mais quente até o fim do século, o manguezal deve ocupar latitudes mais altas. O que se espera que aconteça no Brasil também vale para o hemisfério Norte e foi recentemente observado nos Estados Unidos por Kyle Cavanaugh, do Instituto Smithsonian. Em artigo de janeiro deste ano na revista PNAS, o grupo norte-americano descreveu um aumento na área de manguezais no norte da Flórida, por volta de 30° de latitude norte, e atribuiu a mudança ao fato de serem cada vez mais raras as temperaturas abaixo de 4 graus Celsius negativos por ali. O aumento da temperatura mínima, portanto, é mais importante do que mudanças na média. Transposta para o Brasil, essa situação corresponderia a encontrar essas florestas no litoral gaúcho perto de Porto

À medida que a água salobra ganha terreno, árvores jovens se estabelecem

Zona pode ser colonizada quando a maré avança e retira o excesso de sal do solo com ajuda da chuva

Alegre, mas por enquanto os manguezais ainda estão longe dali e não parecem ter avançado em latitude. Em estudo de 2012 na Estuarine, Coastal and Shelf Science, Soares e sua equipe identificaram a lagoa de Santo Antônio, no município de Laguna, em Santa Catarina, a 100 quilômetros ao sul de Florianópolis, como o limite sul dos manguezais brasileiros. A mesma localidade apontada por Yara Schaeffer-Novelli, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), com base em observações feitas em 1979. Mercado de carbono

A torcida pelo aumento do manguezal não é insanidade de quem tomou gosto por enfrentar mosquitos em meio à lama. Os estudos do Nema, além dos de outros grupos internacionais, vêm mostrando que esse ecossistema tem uma capacida-

Mata de solo arenoso e sem influência das marés sinaliza área inóspita para manguezais

de importante de absorver carbono do ar. “Desde 2003 temos parcelas permanentes voltadas para avaliar o sequestro de carbono”, conta Soares. Seu grupo desenvolveu vários modelos matemáticos – o primeiro deles ele próprio criou durante o doutorado, que defendeu em 1997 – para estimar a quantidade de carbono armazenada nas árvores de cada espécie típica de manguezal. “Se alguém quiser fazer um estudo específico sobre as folhas, temos um modelo; se quiser avaliar as árvores como um todo, também temos”, diz o oceanógrafo. Com a ajuda desses modelos, basta tirar algumas medidas básicas para obter uma estimativa da biomassa da planta e de quanto carbono ela abriga. Um estudo ainda não publicado do grupo da Uerj mostra que, considerando apenas o caule e as folhas das árvores, pESQUISA FAPESP 216  z  39


1 Trincheira em forma de cubo permite avaliar biomassa de raízes 2 Tubos para monitoramento da salinidade da água no solo 3 Árvore suspensa revela erosão da franja da floresta no rio Piracão 4 Folhas de Avicennia excretam o sal absorvido com a água

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o manguezal tem uma capacidade de armazenamento de carbono pouco menor que a de outras florestas tropicais. O valor total só não é significativo porque a área do ecossistema costeiro é muito menor (pouco mais de 1 milhão de hectares) do que a da Amazônia (aproximadamente 500 vezes maior) ou da mata atlântica. “Mas se considerarmos as raízes e o sedimento, o manguezal ganha por unidade de área”, avalia Soares, com base em dados preliminares. Para obter esses dados, o grupo escava buracos em forma de cubos na lama de Guaratiba, retirando

40  z  fevereiro DE 2014

a cada vez camadas de 10 centímetros. “Um grupo de 15 pessoas leva quatro dias para fazer esse trabalho”, conta. Dali são retiradas as raízes, que depois são secas e pesadas para se estimar a biomassa. Além disso, cilindros de lama também são recolhidos para medir a quantidade de carbono armazenada no próprio sedimento. Os resultados virão nos próximos anos. O que se aprende sobre os manguezais de Sepetiba pode ser usado para entender o que se passa em outras regiões. “Há análises que validamos em Guaratiba e poderemos aplicar em outros estados”, explica o oceanógrafo. Com adaptações, já que a estatura das florestas e a capacidade de estocar carbono aumentam em direção ao equador. O grupo já começou a aplicar esses modelos a manguezais praticamente ao longo de toda a costa brasileira – de Florianópolis, em Santa Catarina, a São Caetano de Odivelas, no Pará. A equipe do Nema viaja muito, mas Soares também busca parcerias. Uma no4 vidade importante é

participar do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Ambientes Marinhos Tropicais (INCT-AmbTropic), implantado em 2012, que tem sede na Universidade Federal da Bahia e se concentra em estudar as respostas do litoral brasileiro às mudanças climáticas. Soares divide a coordenação do Grupo de Trabalho Manguezais com o geólogo Marcelo Cohen, da Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem inicia uma colaboração. Do passado ao presente

“Estamos trabalhando juntos para combinar nossas duas escalas de abordagem”, diz Soares. A especialidade de Cohen é o que aconteceu com os manguezais nos últimos 10 mil anos, no período geológico chamado Holoceno. “Para me certificar do efeito de cada variável sobre a existência dos manguezais, é fundamental conhecer a sua evolução nos últimos 100, 1.000 e 10.000 anos”, explica o geólogo. Ele vem fazendo uma série de estudos nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste, em parte numa parceria com o físico Luiz Carlos Pessenda, da USP, que coordena um projeto sobre como era a costa do Espírito Santo nesses tempos mais remotos. Há 20 mil anos, perto do fim de uma intensa era glacial, o nível do mar estava cerca de 100 metros abaixo do que se vê hoje e começou a subir. “Entre 7 mil e 5 mil anos atrás o nível do mar se aproximou do


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atual e permitiu o início da expansão dos manguezais”, explica Cohen. Apesar de existirem padrões globais, é preciso olhar também em escala local para entender como as condições específicas, que envolvem fluxo dos rios, dinâmica de sedimentos e movimentos tectônicos, influenciaram a vegetação costeira. Na bacia amazônica, de acordo com o geólogo, houve um período com menos chuva aproximadamente entre 10 mil e 4 mil anos atrás. Nessa época, a influência marinha avançou rio acima devido ao aumento no nível do mar e à menor vazão dos rios, e os manguezais foram atrás. Com o aumento das chuvas nos últimos 4 mil anos, a salinidade caiu nos estuários e os manguezais recuaram para áreas com maior influência marinha. Já no Sudeste, por volta de 5 mil anos atrás o nível do mar ultrapassou o atual e produziu muitos estuários com condições adequadas para a expansão dos manguezais. Quando o nível do mar desceu, ali se formaram deltas com predomínio de sedimento arenoso, que se tornaram menos propícios à sobrevivência dessas florestas. Para abrir janelas sobre essas diferentes escalas de tempo, o grupo de Cohen combina uma série de técnicas. Em cilindros de sedimento é possível encontrar pólen de plantas que existiram milhares de anos atrás e reconstituir o ambiente em que esses sedimentos foram acumulados e a vegetação de seu entorno ao longo do

tempo. A equipe de Pessenda, no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, em Piracicaba, analisa isótopos de nitrogênio e carbono para caracterizar a matéria orgânica e estimar a idade dos depósitos sedimentares. Para construir um retrato do que aconteceu nas últimas décadas, o geólogo da UFPA também lança mão de sensoriamento remoto, que revela erosão de áreas de manguezal e migração de bancos de areia sobre os depósitos de lama, empurrando a floresta para áreas mais elevadas. Imagens aéreas e de satélite são um recurso essencial para avaliações mais extensas da cobertura vegetal – foi essa ferramenta que permitiu ao grupo norte-americano detectar a expansão do manguezal para o norte da Flórida. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a bióloga Marília Lignon usa dados de sensoriamento remoto para acompanhar os impactos naturais e de atividades humanas em manguezais de áreas diversas. Depois de olhar de cima, ela não abre mão de olhar de perto. “Cada escala tem suas particularidades, e uma pode dar subsídios à outra”, afirma. Ela recentemente orientou um mapeamento das áreas de transição entre manguezal e mata de restinga no estado de São Paulo. “São de fácil ocupação humana e de fantástica beleza cênica”, diz. Sendo planas e arenosas, é fácil ocupar essas áreas, que podem funcionar como escape para o manguezal diante de mudanças climáticas. Gustavo Duque Estrada conta que isso ocorreu na área da baía de Sepetiba, onde foi construída a Companhia Siderúrgica do Atlântico. “Não houve planejamento considerando alterações no nível do mar, e essa ocupa-

ção torna aquele manguezal altamente vulnerável diante de um cenário de elevação do nível do mar.” Em conjunto, os estudos dos grupos brasileiros chamam a atenção para a necessidade de se considerar a importância das zonas de transição em estudos que visam à conservação no longo prazo do manguezal e de sua capacidade de proteger a costa e a atmosfera. De acordo com o físico Joseph Harari, do IO-USP, o aumento do nível do mar na costa brasileira está próximo da média mundial, cerca de 3 centímetros por década. É impossível generalizar uma previsão sobre o que acontecerá no futuro próximo diante de mudanças ambientais, que incluem fatores locais e globais. Mas uma coisa é certa: o manguezal não ficará parado. n

Projetos 1 Estudos paleoambientais interdisciplinares na costa do Espírito Santo (nº 2011/00995-7); Modalidade Projeto Temático – PFPMCG; Pesquisador responsável Luiz Carlos Ruiz Pessenda – Cena/USP; Investimento R$ 1.008.962,77 (FAPESP). 2 Manguezais do estado de São Paulo: análise da evolução espaço-temporal (1979 – 2009) (nº 2009/05507-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Bolsista Marília Cunha Lignon – Unifesp; Investimento R$ 138.069,95 (FAPESP).

Artigos científicos COHEN, M. C. L. et al. Impact of sea-level and climatic changes on the Amazon coastal wetlands during the late Holocene. Vegetation History and Archaeobotany. v. 18, n. 6, p. 425-39. nov. 2009. ESTRADA, G. C. D. et al. Analysis of the structural variability of mangrove forests through the physiographic types approach. Aquatic Botany. v. 111, p. 135-43. nov. 2013. FRANÇA, M. C. et al. Mangrove vegetation changes on Holocene Terraces of the Doce River, Southeastern Brazil. Catena. v. 110, n. 1, p. 59-69. nov. 2013. SOARES, M. L. G. et al. Southern limit of the Western South Atlantic mangroves: Assessment of the potential effects of global warming from a biogeographical perspective. Estuarine, Coastal and Shelf Science. v. 111, n. 1, p. 44-53. abr. 2012.

pESQUISA FAPESP 216  z  41


Paleontologia y

Passagem para o Caribe Fósseis de bagres sugerem que o rio Amazonas desaguava no norte da Venezuela e Colômbia há cerca de 2,5 milhões de anos Marcos Pivetta

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E

xemplares de espécies extintas de três gêneros de bagres encontradas em áreas desérticas do noroeste da América do Sul podem ser uma evidência fóssil dos últimos tempos em que o ancestral do rio Amazonas tinha um curso muito diferente do atual: desaguava no Caribe. Os vestígios dessas antigas formas de peixes de água doce foram achados em rochas sedimentares das formações geológicas La Victoria, Villavieja, Urumaco, Castilletes e San Gregorio, no norte da Colômbia e Venezuela. Hoje essa zona é árida, não tem rios e a localidade andina exibe altitude de até 3.300 metros. Segundo um artigo publicado em setembro de 2013 na revista PloS One, os bagres faziam parte da fauna de um proto-Amazonas que cortava áreas que agora fazem parte do território desses dois países e apresentam semelhanças anatômicas com espécies vivas de peixes da bacia amazônica. Até por volta de 2,5 milhões de anos atrás, o embrião do hoje maior rio do mundo tinha um braço que nascia no meio da Amazônia e corria para o oeste do continente, onde se juntava com outro trecho que fluía para o norte da América do Sul 42  z  fevereiro DE 2014

(ver mapa). De acordo com essa hipótese, esse segundo braço, que rumava para a porção mais setentrional do continente, atravessava a região entre a bacia de Maracaibo, na Venezuela, e o rio Magdalena, na Colômbia, e desaguava no sul do Caribe. “O Amazonas parecia um grande pântano, com um fluxo lento de água”, afirma o paleontólogo venezuelano Orangel Aguilera, da Universidade Federal Fluminense (UFF), principal autor do estudo. “A biodiversidade da região, como a conhecemos hoje, ainda não tinha surgido.” O rio só teria conseguido mudar seu trajeto, perder seu braço que ia para o norte e passar a correr para o leste, como é seu curso atual, após o fim do longo processo de soerguimento da porção mais setentrional dos Andes. A consolidação da grande cadeia de montanhas teria empurrado as águas do Amazonas para longe de sua porção caribenha, que secaria para sempre e se tornaria uma zona árida, e feito o fluxo do rio romper barreiras que impediam seu acesso à parte centro-oriental da Amazônia brasileira. Dessa forma, o novo trajeto do Amazonas no sentido leste teria se tornado suficientemente forte para ultrapassar duas áreas

1 Região árida de Urumaco, na Venezuela 2 Fósseis dos bagres do proto-Amazonas

2

marcadas por baixas elevações naturais e abrir seu leito rumo ao Atlântico. Para o americano John Lundberg, curador da seção de ictiologia da Academia Natural de Ciências da Universidade Drexel, da Filadélfia, os fósseis de bagres resgatados na Colômbia e na Venezuela reforçam a ideia de que a desembocadura do Amazonas foi, no passado remoto, o noroeste do continente sul-americano. Segundo ele, os geólogos suspeitam, desde os anos 1950, que houve uma grande paleoconexão entre o Amazonas ocidental e o Orinoco, o maior rio venezuelano,


Caminhos do rio Os dois supostos braços do Amazonas, um deles desaguando no Caribe

Proto-Amazonas

Amazonas atual

Andes

Direção do curso d'água fonte Adaptado de Lundberg et al 1998

que desaguava no Caribe. “Também são bem conhecidas as relações de parentesco entre muitos peixes, répteis e mamíferos aquáticos que hoje vivem nas bacias dos rios Amazonas, Orinoco, Magdalena e Maracaibo”, diz Lundberg, autor que também assina o trabalho na PLoS. “Elas sugerem que havia interconexões fluviais antes da ascensão dos Andes na Colômbia e na Venezuela.”

fotos 1 Orangel Aguilera 2 Plos one

Polêmica

Embora venha ganhando evidências e adeptos na comunidade científica nas últimas décadas, a hipótese de que o antigo Amazonas fluiu para o norte e teve foz caribenha permanece polêmica. Há quem acredite que o rio nunca tenha seguido um curso assim. Mesmo entre os defensores da ideia de que existiu uma conexão entre o proto-Amazonas e o noroeste da América do Sul, uma questão permanece sem uma resposta definitiva: até quando essa passagem para o Caribe se manteve aberta? O momento em que o rio começou a correr para o Atlântico é uma espécie de atestado de nascimento do Amazonas atual. O trabalho recente capitaneado por Aguilera e Lundberg fornece uma res-

posta ousada para essa polêmica. Baseados na idade estimada dos sedimentos em que foram encontrados os fósseis de bagre, os pesquisadores sustentam que o Amazonas reverteu seu curso mais tardiamente do que outros autores afirmam. Para o pesquisador da UFF, o Amazonas deixou de banhar a região entre a bacia de Maracaibo e o rio Magdalena somente entre o final da época geológica denominada Plioceno e o início do Pleistoceno, há cerca de 2,5 milhões de anos. Boa parte dos trabalhos sobre o tema costuma situar o desaparecimento dessa conexão caribenha entre 12 e 8 milhões de anos atrás, quando a elevação dos Andes na Venezuela e Colômbia entrava em seu momento derradeiro. A ascensão final da grande cadeia montanhosa teria rearranjado o sistema de drenagem no noroeste do continente, cortado o braço setentrional do Amazonas e pavimentado seu caminho para o leste. Aguilera também acredita que isso tenha ocorrido, só que mais tardiamente do que se supunha. Estudiosa dos paleorrios da Amazônia, a geóloga Dilce Rossetti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), considera válida e coerente a hipótese

defendida no trabalho publicado na Plos. Mas afirma que a origem do curso atual do Amazonas é um tema complexo, ainda sem dados definitivos e incontestáveis. “Não há consenso nem de que o Amazonas corria para o norte no passado”, diz Dilce. A existência de fósseis de bagres amazônicos não significa necessariamente que o rio esteve ligado ao noroeste da América do Sul até esse período. A conexão com o norte da Venezuela e Colômbia pode ter desaparecido antes dos 2,5 milhões de anos atrás e deixado como resquício uma pequena bacia local, já desmembrada do grande rio Amazonas. De acordo com essa interpretação, os novos fósseis de bagres descobertos seriam então remanescentes dessa bacia secundária e independente, que, com o tempo, desapareceu e deu lugar a uma paisagem desértica – e não diretamente das águas de um proto-Amazonas que corriam para o norte do continente. n

Artigo científico AGUILERA, O. et al. Palaeontological evidence for the last temporal occurrence of the ancient western Amazonian river outflow into the Caribbean. PLoS ONE. 13 set. 2013.

pESQUISA FAPESP 216  z  43


44  z  fevereiro DE 2014

ilustraçãO nelson provaziri


Física y

Domadores de

catástrofes Brasileiros ajudam a testar teoria sobre a previsão e o controle de crises financeiras globais Igor Zolnerkevic

A

s piores crises, os piores acidentes, as piores catástrofes naturais e humanas são as que mais causam surpresa. Parece que quanto mais intenso o evento – de um tsunâmi devastador a uma guerra mundial – mais imprevisível e incontrolável ele é. No entanto, o físico e economista francês Didier Sornette, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH), acredita no contrário. Depois de duas décadas comparando a frequência e a intensidade de situações extremas observadas em áreas tão distintas quanto a economia e a geologia, Sornette está convencido de que, embora a sociedade e a natureza sejam complexas demais para permitir prever muitos dos eventos extremos, justamente os piores desses eventos, chamados por ele de dragon kings (dragões reis), teriam características únicas que permitiriam antecipá-los e evitá-los. Em uma palestra na conferência TED Global, realizada em junho do ano passado em Edimburgo, Escócia, Sornette afirmou que aplicar a teoria dos dragon kings na regulação do mercado financeiro poderia evitar crises econômicas como a que se

iniciou em 2007 e causou prejuízos de centenas de bilhões de dólares nas bolsas de valores norte-americanas – até 2008 a perda no produto interno bruto global havia alcançado US$ 5 trilhões. Embora sua teoria seja pouco aceita pelos economistas, as ideias de Sornette têm sido adotadas por pesquisadores de outras áreas, que já encontraram evidências de eventos do tipo dragon kings, e de sinais que os precedem nas ciências naturais, na medicina e na engenharia. A prova mais conclusiva já observada foi divulgada no final do ano passado. Uma equipe internacional de físicos, liderada por pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e integrada por Sornette, conseguiu pela primeira vez gerar, observar, prever e eliminar dragon kings em experimentos totalmente controlados em laboratório. Na Paraíba, os pesquisadores brasileiros construíram um aparelho capaz de gerar oscilações elétricas caóticas e desenvolveram técnicas que permitiram manipular essas oscilações. Eles esperam que estratégias semelhantes às usadas no experimento sejam úteis no controle de eventos extremos em geral.

“Desenvolvemos um sistema eletrônico, relativamente fácil de construir, com o qual testamos experimentalmente as hipóteses do Sornette”, explica o físico Hugo Cavalcante, da UFPB, primeiro autor do estudo, publicado em novembro de 2013 na Physical Review Letters. O segundo autor do artigo, o físico Marcos Oriá, da mesma universidade, acrescenta que o resultado “abre uma perspectiva de que se torne possível identificar e antecipar situações extremas em sistemas complexos, como o mercado financeiro ou o clima do planeta”. Especialista em óptica e em física atômica, Oriá se interessava havia tempos por situações em que equipamentos de laser relativamente simples geravam comportamentos caóticos, semelhantes aos de sistemas mais complexos como o mercado financeiro. Mas Oriá somente se aprofundou no assunto após a chegada de Cavalcante à UFPB em 2011. Cavalcante passara três anos e meio na Universidade Duke, nos Estados Unidos, trabalhando no laboratório do físico Daniel Gauthier, que ganhou notoriedade nos anos 1990 pesquisando a sincronização de sistemas caóticos. pESQUISA FAPESP 216  z  45


de valores à ocorrência de terremotos ou à propagação de sinais elétricos no cérebro humano. As similaridades entre Gráfico mostra a relação entre o número de vezes que as voltagens e fenômenos que acontecem em situações as correntes de dois osciladores diferem e a magnitude da diferença tão distintas levaram os pesquisadores a batizar os sistemas em que eles ocorrem Sem controle como sistemas complexos. Cada um desSem interferência, os eventos ses fenômenos tem um grande número de menor magnitude são mais de componentes – pense, por exemplo, frequentes, exceto os mais nos agentes de um mercado comprando extremos (dragon kings) e vendendo ações ou nos neurônios do cérebro realizando sinapses – e funcioCom controle na de um modo muito característico: as dragon kings Interferências pontuais partes interagem de maneira quase aleaEventos de máxima no funcionamento dos tória, mas a soma dessas interações pode magnitude, vistos com osciladores eliminou gerar regularidades espantosas como as frequência maior que os dragon kings leis de potência. a esperada E, para os físicos, o fato de um fenômeno se comportar segundo uma lei de potência pode significar muita coisa. É que, magnitude do evento de acordo com essa lei, todas as manifestações de um fenômeno – no caso do experimento da Paraíba, Para estudar os fenôas oscilações de voltamenos da teoria do caos, gem e corrente – são Gauthier projetou circuiprovocadas por uma tos eletrônicos simples, Teoria de físico francês sugere que mesma causa. Isso do tamanho de cartões de bolhas no mercado financeiro podem significa, por exemcrédito, nos quais era posplo, que as origens de sível fazer oscilar tanto a ser percebidas com antecedência um grande terremoto corrente elétrica quanto são qualitativamena voltagem de maneira te as mesmas que as aleatória e imprevisível. de um pequeno abalo O comportamento desses osciladores eletrônicos é descrito por de borbulhamento. Gauthier, Cavalcante sísmico. A única distinção entre os evenequações matemáticas simples e bem e Oriá notaram que, na maioria desses tos é sua magnitude ou tamanho. “Como definidas, mas as oscilações são extre- eventos de dessincronização, a diferen- não se sabe de antemão se a magnitude mamente sensíveis a pequenas mudan- ça entre as correntes e as voltagens dos de um evento será grande ou pequena”, ças. Por essa razão, uma pequena inter- dois osciladores era pequena. Mas per- explica Oriá, “disseminou-se a ideia de ferência eletrônica no início da operação ceberam também que, em alguns poucos que todos os sistemas complexos são indo oscilador pode alterar completamen- eventos, essa diferença aumentava muito. trinsecamente imprevisíveis”. Físicos que aplicaram essa ideia ao este o seu comportamento posterior. Na Eles, então, buscaram uma relação enprática, essa característica impede que tre o número de borbulhamentos (fre- tudo do mercado financeiro – fundando se obtenham previsões precisas dos va- quência) e a magnitude que alcançavam. uma disciplina conhecida como econofílores que a corrente e a voltagem podem Concluíram que, na maioria das vezes, sica – chegaram à conclusão de que granalcançar depois do início do experimen- a frequência era proporcional à magni- des flutuações nos preços não precisam to. Mesmo assim, Gauthier descobriu tude elevada a um expoente cujo valor ser causadas necessariamente por uma como conectar dois desses osciladores, era comum a todos os eventos. Essa rela- grande mudança político-econômica. de modo que um deles, o mestre, oscilas- ção matemática é conhecida como lei de Muitas vezes, uma crise financeira pode se de maneira livre e caótica, enquanto potência. Em um gráfico especialmente se originar como uma flutuação de preo outro, o escravo, seguia o mestre de desenhado para acomodar números de ço normal que, por acaso, toma grandes modo sincronizado. várias ordens de grandeza, uma lei de proporções. Crises financeiras, portanpotência assume a forma de uma simples to, seriam inevitáveis. “Essa é uma visão particularmente pessimista e até perigolinha reta (ver gráfico no alto). Sincronia caótica Por onde quer que olhem, seja na na- sa, já que promove uma atitude de irresDependendo de como os osciladores mestre e escravo eram acionados, porém, tureza, seja na sociedade, os físicos cos- ponsabilidade”, defende Sornette, que a sincronia entre eles podia desaparecer tumam encontrar fenômenos oscilatórios vem alertando seus colegas físicos desmomentaneamente, para ser retomada com frequência e magnitude que obede- de os anos 1990 para o fato de que nem em seguida, em uma série de eventos cem leis de potência. São situações que todas oscilações financeiras seguem leis aleatórios breves que Gauthier chamou vão da flutuação de ações de uma bolsa de potência, especialmente as maiores.

frequência do evento

Fora do ritmo

46  z  fevereiro DE 2014


O que Sornette falou do mercado financeiro Gauthier e os dois colegas brasileiros observaram com os osciladores caóticos. De modo geral, os eventos de dessincronização até seguiam uma lei de potência. Mas os eventos mais extremos transgrediam a lei, acontecendo numa frequência muito maior. Esses eventos desenhavam um pico proeminente em uma das extremidades dos gráficos, para o qual os pesquisadores não tinham explicação.

A borboleta e o dragão Funcionamento de osciladores revelam dois regimes de frequência

atrator estranho Esta imagem mostra os valores de tensão e corrente elétrica que os osciladores assumem quando

imagens  cavalcante, h. et al. prl - 2013

sincronizados. Quanto mais Foras da lei

escura a cor, mais vezes os

Gauthier, Cavalcante e Oriá, no entanto, logo se deram conta de que os eventos de dessincronização extremos se encaixavam perfeitamente na definição do que Sornette chama de dragon kings: são os eventos mais extremos que podem acontecer em um sistema complexo e que ocorrem em uma frequência muito maior que a esperada pela lei de potência, que rege os demais eventos do sistema. A ideia de que o surgimento de dragon kings seria mais previsível e controlável do que outros eventos extremos nasceu com a primeira aplicação bem-sucedida da teoria de Sornette: a prevenção da ruptura da fuselagem dos foguetes Ariane, usados pela Agência Espacial Europeia. Durante os lançamentos, engenheiros registravam com sensores acústicos variações de ruído causadas por estresse na estrutura do foguete. Ao analisar esses dados, Sornette observou que o barulho dos eventos de ruptura aparecia em seus gráficos como dragon kings. A partir daí ele e seus colaboradores descobriram como detectar na série de emissões acústicas do foguete os sinais iniciais do desenvolvimento dessas rupturas e como usá-los para prevenir os acidentes. Em seguida, Sornette adaptou seu método, usado até hoje nos lançamentos do foguete, ao monitoramento da economia, em busca de sinais precursores do estouro de bolhas financeiras. Há cinco anos ele coordena o Observatório de Crises Financeiras da ETH, um projeto que monitora os preços de milhares de ações negociadas em diversas bolsas de valores, inclusive na brasileira Bovespa. Uma bolha sempre começa em uma atmosfera de otimismo, em que ocorre uma supervalorização dos bens negociados. Sornette acredita que a melhor maneira de prever a chegada de uma bolha é procurar sinais de que os preços e demais índices financeiros do mercado estão passando por aquilo que

osciladores alcançaram aqueles valores. Depois de funcionar corrente elétrica

por certo tempo, os osciladores desenham esta figura fractal, em forma de borboleta, chamada atrator estranho

tensão elétrica

Frequência

dragon kings O gráfico ao lado mostra

magnitude da dessincronização

o tamanho (magnitude) dos dragon kings

eventos de dessincronização e a frequência com que ocorreram. Tanto os eventos de dessincronização de magnitude pequena quanto os de magnitude máxima, os dragon kings, ocorreram com frequência intermediária (cor verde)

tensão elétrica

ele chama de crescimento superexponencial. É quando, por exemplo, um investimento que em um mês rende 10% passa a oferecer o dobro no mês seguinte (20%) e o dobro do dobro (40%) dois meses mais tarde. Embora pareça óbvio que esse crescimento não pode durar para sempre, no calor dos negócios os investidores tendem a apresentar um comportamento de rebanho: ansiosos por lucrar com as oportunidades que todos a sua volta parecem estar aproveitando, eles – às vezes, até os mais cautelosos – se deixam levar pela euforia. Em algum momento, porém, quando a artificialidade da situação se torna insustentável, os preços despencam, levando a uma desvalorização em cascata em toda a economia.

Fonte cavalcante, h. et al. PRL - 2013

Em seu observatório, Sornette e sua equipe detectam crescimentos superexponenciais nos índices monitorados e analisam sua evolução. O objetivo é obter informações que permitam prever o instante crítico em que o crescimento é substituído por um novo regime – de queda ou estagnação. Sornette afirma detectar o surgimento de bolhas de tamanhos variados e ser capaz de estimar quando elas têm mais chance de estourar. Um exemplo é a bolha do milagre econômico chinês, em que as ações do país cresceram 300% em poucos anos. Em setembro de 2007, durante uma conferência para investidores, Sornette os alertou de que uma mudança de regime estava prestes a ocorrer. A maioria não pESQUISA FAPESP 216  z  47


Atratores estranhos

Além do crescimento superexponencial, Sornette explica que já identificou três outros mecanismos dinâmicos de formação de dragon kings. Um deles é o fenômeno do borbulhamento, observado em detalhe pela primeira vez no par de osciladores construído por Cavalcante e Oriá. Os pesquisadores contaram com um modelo teórico desenvolvido pelo físico Edward Ott, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, outro especialista no comportamento caótico de sistemas eletrônicos, para entender como os dragon kings se formavam nos osciladores e o que exatamente fazia com que esses eventos de dessincronização extrema crescessem muito mais que os demais eventos. De trabalhos anteriores de Gauthier e Ott, os pesquisadores já sabiam que as oscilações caóticas desses circuitos eletrônicos desenham em um espaço abstrato, onde a largura, a altura e o comprimento representam propriedades que

Em pânico: observadores acompanham queda de ações da bolsa de Hong Kong na crise de 1997 48  z  fevereiro DE 2014

caracterizam o par de osciladores em certo instante, uma figura de linhas infinitas conhecida como atrator estranho. Quando em sincronia, as oscilações caóticas dos dois circuitos, apesar de erráticas, permanecem restritas às linhas que compõem o atrator estranho, cuja forma lembra um par de asas de borboleta. “Descobrimos, no entanto, que existe um ponto específico do atrator com uma instabilidade tão forte que domina a dinâmica do sistema”, explica Cavalcante. Esse ponto de forte instabilidade, localizado na junção das asas de borboleta, é o responsável por todos os eventos de dessincronização. Quanto mais os valores de oscilação dos circuitos se aproximam desse ponto, maior a chance de a trajetória que descreve o sistema saltar momentaneamente para fora do plano do atrator. Quanto maior o salto, maior a dessincronização entre os osciladores. A maioria das aproximações do ponto de instabilidade provoca as dessincronizações descritas por uma lei de potência. Mas, em circunstâncias especiais, quando a trajetória se aproxima demais do ponto instável, ruídos eletrônicos e pequenas diferenças entre os componentes dos circuitos podem ser amplificados até gerarem os dragon kings. “A diferença entre os eventos da lei de potência e os dragon kings é complicada e ainda estamos tentando entender os

detalhes”, diz Cavalcante. Mesmo assim a compreensão qualitativa da diferença entre os dois tipos de dessincronização já permitiu aos pesquisadores identificar certa combinação de voltagens e correntes dos osciladores cujo valor serve como um alarme contra dragon kings. Nos testes feitos na UFPB, quando essa variável alcançava um valor limite, sinalizando que um dragon kings estava prestes a se formar, os pesquisadores realizavam uma pequena intervenção na eletrônica dos osciladores. Como resultado, conseguiam manter a trajetória do sistema no plano do atrator, impedindo a dessincronização extrema. Assim, os dragon kings desapareciam completamente (ver gráficos na página 53) “Essa intervenção pequena era aplicada em apenas 1,5% do tempo de operação dos osciladores e era 100% eficaz”, diz Cavalcante. Ovos de Dragão

Embora o sucesso do experimento empolgue, os pesquisadores têm noção da distância gigantesca que existe entre a complexidade de um par de osciladores eletrônicos e um mercado financeiro. “Aplicar esse procedimento a sistemas reais não é trivial”, comenta o economista Daniel Cajueiro, da Universidade de Brasília. Ele, que tem experiência na aplicação de modelos da física em economia e já colaborou com o Banco Central,

jonathan utz / afp

deu ouvidos, confiando que o governo chinês faria de tudo para manter o crescimento, com os preparativos para os Jogos Olímpicos de Pequim, que aconteceriam no ano seguinte. Três semanas depois da conferência o mercado chinês começou a despencar, até perder 70% de seu valor no fim de 2007. De fato, a frequência e a magnitude das variações dos mercados globais dos últimos 30 anos se comportam segundo uma lei de potência, com alguns pontos extremos fora da curva, representando as piores crises financeiras do período, como a “segunda-feira negra” de 1987, quando o índice Dow Jones desvalorizou US$ 500 bilhões em um único dia, e a recessão global de 2007 e 2008, desencadeada por uma crise no mercado imobiliário norte-americano. Para Sornette, essas crises seriam dragon kings, causados por uma série de políticas de facilitação excessiva da expansão de crédito pelos bancos centrais de todo o mundo, que reforçaria crescimentos superexponenciais e outros mecanismos pelos quais dragon kings podem surgir.


diz que, por ora, “esse trabalho pode ser tomado como ponto de partida para uma nova linha de pesquisa”. A esperança dos pesquisadores é que os mercados financeiros possam, ao menos em certas circunstâncias, se comportar como um sistema de osciladores caóticos interligados. Os osciladores, no caso, seriam os agentes do mercado, comprando e vendendo. Suas decisões estariam ligadas por meio do comportamento de rebanho. Nesse cenário, uma crise poderia ser evitada identificando os pontos de instabilidade do atrator estranho do sistema e criando regras no mercado que impeçam que sua evolução passe muito perto deles. “Trabalho com previsões e sei como é difícil fazê-las”, afirma o economista Pedro Valls, diretor do Centro de Estudos Quantitativos em Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. “Acreditar em regularidades é acreditar no determinístico, o que não faz sentido em economia, estatística e finanças.” Valls acha pouco provável que a economia siga leis deterministas. Para ele, aliás, ocorre o contrário: a maioria dos modelos econométricos usados por pesquisadores, governos e investidores são estocásticos, isto é, baseados em probabilidades determinadas por processos aleatórios. Sornette rebate afirmando que modelos estocásticos também podem exibir dragon kings e que o melhor método de previsão de bolhas financeiras seria um modelo híbrido, com componentes determinísticos e estocásticos. O problema, segundo Sornette, é que muitos economistas insistem em acreditar que as soluções matemáticas dos modelos criados por eles deveriam valer o tempo todo. Já os modelos de Sornette, argumenta o próprio físico, valem apenas em alguns momentos críticos, quando o sistema se torna momentaneamente determinístico e previsível. Valls nota, entretanto, que os modelos de Sornette

Modelos teóricos que preveem comportamento do mercado financeiro são de difícil implementação, por questões práticas e até éticas não são os únicos capazes de fazer isso. Existe uma vasta literatura em econometria, segundo ele, discutindo modelos estocásticos capazes de incorporar mudanças determinísticas ou estocásticas. Esses modelos, chamados modelos de mudança markoviana, podem ter diferentes regimes, sendo que um deles pode descrever uma crise. Esses modelos permitem quantificar as probabilidades de o mercado entrar e sair do regime de crise, ajudando, assim, a prever bolhas. Embora considere que a teoria de Sornette tem muitos méritos, Cajueiro aponta pelo menos duas dificuldades para tornar viável o controle desses sistemas complexos. A primeira é que, diferentemente do experimento de Calvancante e Oriá, em que a estatística dos eventos extremos foi identificada pela tomada de milhões de dados, as crises financeiras não são tão frequentes assim. “Nesse caso, seria necessário construir um modelo para o sistema fora da normalidade a partir de uma amostra pequena de eventos”, explica Cajueiro.

E ainda que um modelo inspire confiança suficiente para ser adotado, por exemplo, na regulação do mercado pelo Banco Central, pode ser que as intervenções sugeridas pela teoria sejam simplesmente impossíveis de ser implementadas, por questões práticas e até éticas. “Pouco se sabe qual seria a resposta dos agentes econômicos a uma intervenção e o que ocorreria se esses agentes antecipassem a resposta do Banco Central”, diz Cajueiro. Como o mercado financeiro não é um sistema isolado, uma mudança feita para impedir a formação de uma bolha poderia ter consequências inesperadas em variáveis como inflação, taxas de câmbio e desemprego. Além disso, o próprio Sornette reconhece que as bolhas financeiras têm seu lado positivo. Quando movidas por aumentos reais na produtividade, consequência da descoberta de novas fontes de recursos ou de inovações tecnológicas promissoras, elas fomentam um clima de otimismo que toma conta das atividades econômicas, levando a sociedade a assumir riscos e a alcançar sucessos que seriam impossíveis de outra forma. O modelo da UFPB pode ajudar a testar métodos de intervenções mais realistas, que levem em conta a fascinação pelas bolhas e a resistência da sociedade de interromper o crescimento delas antes de um colapso. “O que fizemos até agora nos osciladores foi usar um método de controle ótimo, que mata os dragon kings ainda nos ovos, antes de nascerem e crescerem”, explica Sornette. “Podemos usar esse sistema para estudar outras intervenções, mais atrasadas e limitadas, de maneira a quantificar os custos e as consequências de nossas ações.” n

Artigo científico CAVALCANTE, H.L.D.S. et al. Predictability and suppression of extreme events in a chaotic system. Physical Review Letters. v. 111, n. 19. 4 nov. 2013.

pESQUISA FAPESP 216  z  49


Genética y

Uma mutação, vários defeitos Brasileiros descobrem gene responsável pelo surgimento de síndrome rara que causa malformação da mandíbula e da laringe

A

causa genética da síndrome de Richieri-Costa Pereira, uma rara doença que provoca anomalias craniofaciais e defeitos na formação das mãos e dos pés, acaba de ser determinada. Um grupo internacional de médicos e geneticistas, coordenado por Maria Rita Passos-Bueno, do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), identificou em 17 pacientes com a síndrome um tipo de mutação presente nos dois alelos (cópias) do gene EIF4A3, localizado no cromossomo 17. A alteração se caracteriza pelo excesso de repetições de um trecho do gene rico nos nucleotídeos C (citosina) e G (guanina), duas das quatro bases nitrogenadas que formam o DNA. A mutação foi descrita em um artigo científico publicado em 2 de janeiro na revista American Journal of Human Genetics (AJHG). Também nesse dia e na mesma revista científica, outra equipe da USP assinou um segundo trabalho em que relata a descoberta de um defeito em um gene do cromossomo 3 responsável por desencadear uma forma pouco frequente de nanismo associado a problemas de visão (ver boxe na página 38). O CEGH-CEL é um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Os pesquisadores ainda não sabem como a mutação afeta o comportamento do gene, ligado ao metabolismo de RNA, e

50  z  fevereiro DE 2014


ilustrações daniel bueno

causa o surgimento da síndrome. Mas acreditam que ela possa levar à produção de uma menor quantidade da proteína associada ao EIF4A3. Esse gene foi parcialmente desativado em colônias de um peixe-modelo da biologia – conhecido como zebrafish ou paulistinha – e os descendentes que herdaram a modificação desenvolveram problemas de formação nos ossos craniofaciais compatíveis com a doença humana, uma evidência de que alterações no EIF4A3 podem desencadear o problema de saúde. Descrita em 1992 pela equipe do médico Antonio da Costa Pereira, do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP de Bauru, mais conhecido como “Centrinho”, a síndrome foi descoberta em habitantes do Vale do Paraíba, no interior paulista. Os 20 pacientes diagnosticados com a doença no país – há um caso relatado no exterior – pertencem a 17 famílias da região. Embora formalmente não sejam aparentadas, as famílias provavelmente descendem de um único ancestral. O traço mais característico da síndrome, que não tem cura, é a malformação da mandíbula e

da laringe. Os ossos que normalmente se fundem para formar a mandíbula, que apresenta um formato em U, não chegam a se unir nos indivíduos com a doença. “Em casos mais graves, os pacientes não conseguem respirar direito e é preciso fazer uma traqueostomia”, diz Maria Rita. Os doentes têm dedos encurvados ou de menor tamanho, pés tortos e baixa estatura. Metade dos afetados pela síndrome também apresenta dificuldades de comunicação verbal e de aprendizado. Antes da identificação da nova alteração genética, os pesquisadores sabiam apenas que se tratava de uma doença de herança autossômica recessiva, cujo risco de transmissão aumenta quando ocorrem casamentos consanguíneos. Para desenvolver a síndrome, o paciente tem de carregar mutações em ambas as cópias do gene associado ao problema de saúde, uma vinda do pai e outra da mãe. Pessoas com apenas um gene defeituoso não manifestam clinicamente a doença, mas podem passar a alteração molecular a seus descendentes. Filhos de casais em que tanto o pESQUISA FAPESP 216  z  51


pai como a mãe são portadores da mutação têm 25% de risco de serem afetados pela síndrome. Encontrar a mutação associada à síndrome foi um processo demorado e complicado. Há anos os pesquisadores do Centrinho tentavam delimitar em que parte do material genético poderia estar a alteração molecular relacionada à doença. Um aluno do Centrinho chegou a passar uma temporada nos Estados Unidos em busca do gene, mas não obteve sucesso. “A mutação deve ter uma origem antiga e provavelmente a região comum entre os pacientes é muito pequena”, diz Maria Rita. O cerco começou a se fechar depois que os pesquisadores usaram uma grande quantidade de marcadores ao longo de todo o genoma, cerca de 500 mil marcadores do tipo SNP (sigla em inglês para single nucleotide polymorphism, ou polimorfismo de um único nucleotídeo). O termo designa as várias formas que um nucleotídeo pode assumir. Com a ajuda de programas de computador, compararam o material genético dos pacientes entre si e também com o de familiares saudáveis e chegaram em uma região de 122 mil bases do cromossomo 17. Esse segmento abrigava quatro genes que poderiam estar relacionados à causa da doença. A repercussão clínica dos defeitos em três desses genes já era conhecida: mutações em um gene estavam ligadas à psoríase, em outro a uma forma de glicogenose (doença do armazenamento do glico-

gênio) e em um terceiro à doença respiratória conhecida como discinesia ciliar primária. Como nenhuma dessas condições clínicas se assemelhava com a síndrome de Richieri-Costa Pereira, as atenções se voltaram para o quarto gene, o EIF4A3.

O

Pessoas com a síndrome apresentam de 14 a 16 cópias repetidas no trecho que regula o funcionamento do gene EIF4A3

ressequenciamento desse gene nos pacientes e a comparação dos resultados com a versão do EIF4A3 encontrada em 520 brasileiros sem a síndrome levaram à localização da mutação. A alteração se situa num pequeno trecho da sequência, composto de 18 a 20 nucleotídeos e rico nas bases citosina e guanina, que regula o funcionamento do gene, denominada região promotora no jargão da biologia molecular. As pessoas sem a doença têm de 3 a 12 cópias desse trecho do gene. Os pacientes apresentam de 14 a 16 repetições do segmento. A confirmação de que a mutação ocasiona a doença foi obtida por um experimento coordenado pela pesquisadora Nora Calcaterra, da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, coautora do trabalho e colaboradora de Maria

Pequeno e com pouca visão Defeito genético provoca uma forma de nanismo associada a problemas progressivos na retina O gene responsável por uma forma

dos Estados Unidos, assinou outro artigo

mutações nos dois alelos (cópias) do gene

muito rara de nanismo associado à perda

na publicação em que igualmente relata a

PCYT1A. Alguns afetados não atingem altura

progressiva da visão, denominada displasia

identificação de outras mutações no gene

superior a 1 metro na idade adulta. O nanismo

espôndilo-metafisária com distrofia de

PCYT1A, também capazes de provocar esse tipo

decorre de alterações ósseas na coluna e

cones e bastonetes, foi descoberto por

de displasia. Os pesquisadores americanos

nos membros inferiores, que são muito

pesquisadores da USP. Depois de

usaram a mesma técnica de sequenciamento

encurvados. Os pacientes apresentam ainda

sequenciar todos os segmentos do genoma

empregada pelos brasileiros e analisaram

alterações em células da retina (os cones e

responsáveis por codificarem proteínas de

o material genético de três pacientes de

bastonetes que fazem parte do nome da

quatro pacientes brasileiros, oriundos

diferentes países. “Os dois trabalhos foram

doença) que minam progressivamente sua

de duas famílias, a equipe coordenada pela

feitos de forma independente e concomitante.

visão. Não existe tratamento efetivo para

geneticista Débora Bertola, do CEGH-CEL

São equivalentes”, compara Débora. “Estamos

evitar o avanço da doença. Apenas cirurgias

e também médica do Instituto da Criança

orgulhosos. Nosso grupo utilizou a mesma

ortopédicas corretivas podem ser feitas

do Hospital das Clínicas, encontrou duas

tecnologia de ponta e chegou aos mesmos

de maneira paliativa.

mutações no gene PCYT1A, localizado no

resultados tão rapidamente quanto um dos mais

cromossomo 3. Os resultados do trabalho

prestigiados centros de estudos de doenças

nunca tinha sido associado a qualquer

foram publicados no dia 2 de janeiro

genéticas dos Estados Unidos.”

doença genética, ser o alvo das mutações

na revista científica American Journal of Human Genetics (AJHG). Nessa mesma data, um grupo da prestigiada Universidade Johns Hopkins,

52  z  fevereiro DE 2014

Até agora existem menos de 20 casos da

Foi uma surpresa o gene PCYT1A, que

implicadas nessa displasia. “Num primeiro

doença em todo o mundo descritos na literatura

momento foi difícil associá-lo diretamente ao

científica. Para que essa displasia se manifeste

problema ósseo e de retina, uma vez que não

clinicamente, é preciso que o indivíduo carregue

havia descrição prévia de seu envolvimento


Rita num projeto financiado pelo acordo de cooperação FAPESP-Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas). Em seu laboratório, ela alterou temporariamente o funcionamento do gene EIF4A3 em colônias de zebrafish, peixe cada vez mais usado como modelo biológico para estudar doenças humanas (ver reportagem de capa da edição 209 de Pesquisa FAPESP). “Usamos uma abordagem que leva à menor expressão do gene”, afirma Nora. “Mimetizamos a síndrome ao diminuir a quantidade de RNA mensageiro (necessário para produzir a proteína associada ao EIF4A3) transcrito pelo gene.”

E

em doenças humanas do metabolismo ósseo ou da formação da retina”, explica Guilherme Yamamoto, primeiro autor do estudo brasileiro. O gene codifica uma enzima que atua em uma via metabólica da formação da fosfatidilcolina, um fosfolipídio importante para o desenvolvimento das membranas

Radiografias de coluna vertebral, pelve, pernas, braço, antebraço e mãos: ossos encurtados e curvados e juntas proeminentes

m seguida, a pesquisadora acompanhou o desenvolvimento das linhagens geneticamente modificadas do peixe com o emprego de microscopia de luz e registrou sua morfologia geral. Os paulistinhas alterados apresentaram malformações em suas cartilagens craniofaciais compatíveis com a síndrome registrada em humanos. Para comprovar que as alterações eram de fato causadas pela deficiência, Nora injetou RNA do EIF4A3 nos peixes. O procedimento equivale a restabelecer o funcionamento padrão do gene e permitiu o desenvolvimento normal das colônias de zebrafish. Dessa maneira, ficou comprovado que a mutação identificada pelo centro da USP na região promotora do gene EIF4A3 é a principal responsável por ocasionar a síndrome. Principal, mas não a única. A equipe de Maria Rita identificou outro tipo de mutação nesse mesmo gene em um paciente que apresenta um quadro clínico mais brando da síndrome (a mandíbula se formou normalmente, mas ele apresenta alguns problemas anatômicos menos graves nos membros e na laringe). Também descrita no artigo científico, essa segunda alteração genética é de natureza distinta da anterior, mas parece ser suficiente para desencadear formas mais leves da doença. Sua descoberta reforça a ideia de que o funcionamento do gene EIF4A3 é chave para o desenvolvimento da rara síndrome. n Marcos Pivetta

celulares. “Nosso trabalho mostra apenas que o gene é o responsável pela doença. Falta ainda demonstrar de que forma

Projetos

isso acontece”, afirma Débora. “Para

1 Investigation of the role of oxidative stress ND the CNBP protein in treacle-deficient mesenchymal stem-cells and in zebrafish models (FAPESP-Conicet) (nº 2010/52446-4); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Pesquisadora responsável Maria Rita Passos-Bueno – USP; Investimento R$ 12.708,67 (FAPESP). 2 CEGH-CEL - Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (nº 13/08028-1); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão – Cepid; Pesquisadora responsável Mayana Zatz – USP; Investimento R$ 2.266.005,51 e US 940 mil por ano para todo o Cepid (FAPESP).

fotos  yamamoto et al. ajhg, 2014

sabermos o real mecanismo de causalidade, estudos sobre como essa proteína funciona deverão ser realizados.”

Artigo científico YAMAMOTO, G.L. et al. Mutations in PCYT1A Cause spondylometaphyseal dysplasia with cone-rod dystrophy. American Journal of Human Genetics. v. 94, n. 1, p. 113-9. 2 jan. 2014.

Artigo científico FAVARO, F.P. et al. A noncoding expansion in EIF4A3 causes Richieri-Costa-Pereira syndrome, a craniofacial disorder associated with limb defects. American Journal of Human Genetics. v. 94, n. 1, p. 120-8. 2 jan. 2014.

pESQUISA FAPESP 216  z  53


Bioquímica y

Contra ferroadas Em São Paulo e no Rio, dois compostos que combatem a ação do veneno de abelhas passam nos testes iniciais Francisco Bicudo e Ricardo Zorzetto

54  z  fevereiro DE 2014

P

esquisadores paulistas concluíram mais uma etapa da complexa tentativa de produzir um soro capaz de proteger o organismo dos danos causados pelo veneno de abelhas. Em testes com células cultivadas em laboratório e em experimentos com camundongos, o bioquímico Mario Sérgio Palma e seu grupo na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro demonstraram que o soro desenvolvido por eles evitou os danos mais frequentes das ferroadas. “Conseguimos neutralizar 95% dos efeitos nocivos do veneno nos camundongos avaliados”, diz Palma. Nos testes os roedores tratados com o soro sobreviveram a doses elevadas de veneno, que em seres humanos equivaleriam a centenas de ferroadas, como é comum nos acidentes graves. Nessas situações, o composto impediu a destruição das células sanguíneas que transportam oxigênio e gás carbônico, um dos efeitos iniciais do veneno. Composto por anticorpos extraídos do sangue de cava-

los, o soro evitou também os danos nas células musculares, uma das primeiras afetadas no envenenamento, e protegeu os rins, o fígado e o coração dos animais das lesões que surgem até 72 horas após o ataque de um enxame. Esses resultados colocam o candidato brasileiro a soro em um estágio que aparentemente não havia sido alcançado por outros grupos – nos anos 1990, equipes da Inglaterra e dos Estados Unidos iniciaram o desenvolvimento de compostos a partir do sangue de ovelhas e de coelhos, mas os trabalhos não avançaram. Apesar do progresso recente, o caminho a ser percorrido até que o soro esteja disponível para o uso em seres humanos ainda é longo. “Precisamos desenvolver o processo de padronização do soro”, diz Ricardo Palacios, gerente de pesquisa e desenvolvimento clínico do Instituto Butantan, instituição que participa do desenvolvimento do soro. Há cerca de dois anos o grupo de Palma iniciou uma parceria com o Butantan, um


Como uma agulha: o ferrão, no final do abdômen, é usado para injetar veneno quando a abelha (Apis sp) se sente ameaçada

STEVE GSCHMEISSNER / SCIENCE PHOTO LIBRARY

O soro, mesmo que seja eficiente em pessoas, não deve eliminar o uso de outros medicamentos para combater os efeitos do veneno

dos maiores produtores de soros e vacinas do país, e com colaboradores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade São Francisco e do Instituto Tecnológico do Paraná, para integrar todas as etapas de teste e produção. “Dominamos a produção do soro para os testes em laboratório”, comenta a médica Fan Hui Wen, do Butantan. “O desafio agora é transpor da bancada para a escala industrial.” Os pesquisadores do Butantan atualmente estão repetindo os testes com células cultivadas em laboratório e com camundongos para confirmar a eficicácia e a segurança do composto. Na fazenda do Butantan, os cavalos que servirão como fábricas do soro para os próximos testes já começaram a ser selecionados e imunizados. Se tudo correr bem, espera-se iniciar os testes em seres humanos em dois anos. Será preciso também definir critérios para a administração do soro, de acordo com a gravidade dos sintomas. Segundo Fan, o soro deve, em princípio, funcionar apenas contra o veneno de abe-

lhas brasileiras, resultado do cruzamento de espécies europeias e africanas, e não para tratar alergias ou reações anafiláticas. “São manifestações distintas, que devem ser tratadas com estratégias diferentes.” Ela insiste: o soro servirá para os acidentes em que há ataques de enxames e múltiplas ferroadas – no Brasil ocorrem por ano 15 mil acidentes com abelhas, dos quais cerca de 750 são graves e, em tese, se beneficiariam do soro. Mesmo que seja eficiente em humanos, o soro por si só não deve combater todos os efeitos do veneno. “O soro neutraliza a ação do veneno, ou seja, a causa dos danos”, explica Fan. “Por isso, quanto mais cedo for aplicado, menos veneno ativo haverá na circulação.” Mas, ela conclui, o soro não deve eliminar a necessidade do uso de anti-inflamatórios, antialérgicos e outros medicamentos para combater os danos já causados nos tecidos. proteção AMPLA

Chegar até aqui não foi simples. Palma e sua equipe tiveram inicialmente de considerar as singularidades de composição do veneno da abelha. Era comum, nos estudos feitos até então, que se tentasse imitar as características químicas do soro usado nas picadas de cobra. Os dois tipos de veneno, no entanto, têm finalidades diferentes: o das cobras paralisa ou mata as presas que servirão de alimento, enquanto o das abelhas funciona como recurso de defesa ante a ameaça de um possível predador. Do mesmo modo, os efeitos de cada veneno são diferentes. “A ferroada da abelha não causa hemorragia nem gangrena”, conta Palma. A tarefa seguinte foi identificar as moléculas ativas do veneno das abelhas e seus possíveis efeitos (inchaço, vermelhidão, dores musculares). A partir daí se pôde fazer um soro de proteção ampla, com anticorpos que neutralizassem cada proteína ou peptídeo (ver Pesquisa FAPESP nº 153).

Em paralelo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe de Paulo Melo observou que um medicamento chamado suramina pode ajudar a bloquear efeitos do veneno de abelha. Desenvolvida há quase um século, a suramina combate algumas parasitoses e ameniza o efeito de picadas de serpente. Os testes na UFRJ foram realizados com culturas de células, tecidos isolados e posteriormente com camundongos, que receberam doses letais do veneno de abelha e, em seguida, a suramina. “Neutralizamos as lesões musculares e os edemas”, diz Melo. Ele acredita que a suramina sirva como complemento do soro desenvolvido pela Unesp e pelo Butantan ou como terapia isolada nos casos de alergia aos soros de origem animal. “Em estudos dessa natureza há sempre gargalos científicos, tecnológicos e regulatórios que precisam ser vencidos. Mas, se tudo der certo, o Brasil, que já é líder mundial na produção de vários soros, poderá se tornar referência também no tratamento dos acidentes com abelhas”, diz Jorge Kalil, diretor do Butantan. Ele conta que o consórcio brasileiro que desenvolveu o soro contra o veneno de abelhas já foi procurado por uma empresa que pretende colocá-lo no mercado dos Estados Unidos, assim que estiver pronto e aprovado. n

Projeto Biologia de sistemas como estratégia experimental para a descoberta de novos produtos naturais na fauna de artrópodes peçonhentos do estado de São Paulo (nº 2011/51684-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Mario Sérgio Palma – Unesp; Investimento R$ 2.207.081,76 (FAPESP) e R$ 1.530.000,00 (CNPq e Finep)

Artigos científicos SANTOS, K.S. et al. Production of the first effective hyperimmune equine serum antivenom against africanized bees. PLoS One. 13 nov. 2013. EL-KIK, C.Z. et al. Neutralization of Apis mellifera bee venom­ activities by suramin. Toxicon. v. 1 (67), p. 55-62. 2013.

pESQUISA FAPESP 216  z  55


tecnologia  Saneamento y

Nas águas da inovação Sabesp cria núcleo de tecnologia e faz parcerias para desenvolver novos produtos e sistemas Marcos de Oliveira

56  z  fevereiro DE 2014

sabesp

S

egunda empresa do mundo em número de clientes num mesmo país, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) só perde para a chinesa Beijing Enterprises Water Group. A empresa, que fornece água para 363 municípios do estado de São Paulo, num total de 27,9 milhões de pessoas, começou em 2009 uma mudança no campo tecnológico. No ano seguinte foi criada a Superintendência de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação com o objetivo de gerar e prospectar tecnologia tanto para a própria companhia como para todo o setor de saneamento. “Existe uma carência específica para saneamento. Hoje muitas das tecnologias são apenas adaptadas para essa área”, diz a engenheira civil Cristina Zuffo, gerente do Departamento de Prospecção Tecnológica e Propriedade Intelectual da Sabesp. “A nossa ideia é desenvolver novas tecnologias e induzir os fornecedores a atenderem o setor de saneamento com os produtos gerados nesse processo”, diz Cristina. Até 2009, a empresa tinha projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de


Estação de Tratamento de Água Guaraú, na zona Norte de São Paulo

pESQUISA FAPESP 216  z  57


forma tímida, sem estrutura no âmbito corporativo para esse fim. As iniciativas eram descentralizadas e pontuais. O processo de criação do núcleo na Sabesp teve a assessoria do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) num projeto coordenado pelo professor Sérgio Salles. Também foi realizado um estudo de prospecção tecnológica sobre saneamento em revistas especializadas e em bancos de artigos científicos, além de saber o que as empresas no Brasil e no mundo estão fazendo nesta área.

A

ntes mesmo que o núcleo de tecnologia da empresa estivesse pronto a Sabesp fez um acordo de cooperação com a FAPESP para apoiar projetos de pesquisa para a área de saneamento por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). O valor da primeira chamada que convidou os pesquisadores de instituições de pesquisa paulistas a apresentarem projetos foi de R$ 10 milhões, sendo R$ 5 milhões da Sabesp e R$ 5 milhões da Fundação. Das 49 propostas, 9 foram selecionadas dentro de temas escolhidos pela empresa como economia no saneamento, eficiência energética, tratamento de esgotos, entre outros. Uma segunda chamada deve ter os projetos escolhidos anunciados nos próximos meses também no valor total de R$ 10 milhões. Um dos temas previstos para os projetos é destinado a colaborar com um dos grandes desafios da empresa, a diminuição da perda de água, principalmente devido a rachaduras nas tubulações da rede de distribuição. A Sabesp em 2012 deixou

de ganhar 25,7 % a mais no faturamento com esse problema. Em 2013, até novembro, deixaram de ser contabilizados 31,4% de água, índice apurado na diferença entre os macromedidores, geralmente instalados na entrada de grandes reservatórios de distribuição, e os micromedidores, que são os hidrômetros residenciais ou comerciais. A companhia estima que 66% das perdas foram principalmente de vazamentos e os 34% restantes relativos a fraudes, falhas em medidores, usos sociais que consistem no fornecimento para favelas, dentre outros. O índice de desperdício atingiu 29,5% em 2007 e a previsão da empresa é de chegar a 13% em 2019, dentro dos padrões internacionais. Diminuir o desperdício é uma forma também de contribuir para o abastecimento em períodos de falta de chuva, como aconteceu em janeiro deste ano na Região Metropolitana de São Paulo. A detecção das perdas por vazamento pode ser mais bem diagnosticada para, além de melhorar o faturamento, contribuir para evitar a chamada escassez hídrica. Para a Região Metropolitana de São Paulo não sofrer desse problema, a empresa começará neste ano uma obra que vai trazer água da represa Cachoeira do França, no município de Ibiúna, a 70 quilômetros da capital. Tradicionalmente, em todo o mundo, quando há suspeitas de vazamento, notado, por exemplo, com as diferenças de volume de água apurado nos reservatórios setoriais e o volume recebido pelos clientes, um funcionário vai até o local onde existe a suspeita de vazamento munido de um geofone. O equipamento é formado por um sensor que, apoiado no chão, capta as vibrações do solo e depois envia para um amplificador e para um fo-

1

Estação de Tratamento de Esgoto em Barueri: despoluição é tema do núcleo de tecnologia da empresa

Os sons do vazamento Aparelho geofone conectado a um celular vai gravar os ruídos característicos de rupturas de tubulações

2

58  z  fevereiro DE 2014

2


fotos 1 sabesp 2 eduardo cesar  ilustração pedro hamdan

Transformar os sinais analógicos em digitais e montar um banco de dados com ruídos obtidos pelo geofone

ne de ouvido. Um técnico treinado para usar esse equipamento ouve os sons captados sob o piso de um quintal ou de uma rua, por exemplo, e se houver um ruído que indique ruptura ou vazamento, uma equipe da companhia de saneamento vai até o local abrir o terreno e fazer o reparo. “Se a água aflora à superfície, é mais fácil identificar o local, mas se for no interior do solo a água vai para o lençol freático. Com o geofone, a localização do vazamento depende da habilidade do operador, que deve ter em volta menos barulho possível. Por isso grande parte desses testes são feitos à noite”, diz Cristina. Mas como avançar nessa tarefa e dar maior precisão tanto ao trabalho de busca de vazamentos como na garantia da necessidade do serviço de reparo? O professor Linilson Padovese, do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo

(Poli-USP), apresentou como proposta a criação de um software que pudesse ajudar os técnicos e a empresa nessa área. Para isso, seria necessário ter um banco de sinais característicos dos problemas apresentados na rede de distribuição e que são conhecidos dos operadores do geofone. “Como não havia esse banco de sinais gravados porque os equipamentos disponíveis são analógicos, nós mudamos o foco no projeto para desenvolver primeiro um equipamento de coleta e gravação digital de sinais”, diz Padovese, que já tinha experiência anterior em sensoriamento vibroacústico em máquinas industriais e na aplicação de métodos de processamento de sinais para detecção de defeitos. “Decidimos criar um equipamento que permitisse digitalizar, gravar e georreferenciar os sons escutados pelos técnicos. Dessa forma, a empresa poderá montar um banco de dados com os sinais digitais, todos marcados com a localização com GPS. Além disso, com a finalidade de baratear o equipamento e tornar a tecnologia mais simples e de fácil utilização, decidiu-se utilizar smartphones como plataforma de base do geofone.” Padovese lembra que embora a escuta, feita por técnicos em campo, seja realizada mediante a utilização de filtros de sinais, a gravação digital é feita com o sinal bruto, sem nenhuma filtragem. Dessa forma os sinais poderão ser estudados e reprocessados pelos técnicos da empresa, de maneira off-line, utilizando os filtros padrões ou outras técnicas de processamento de sinais e reconhecimento de padrões que permitam melhorar o processo de diagnóstico. Com a formação do banco de dados, será possível num futuro próximo até o desenvolvimento de softwares de diagnóstico automático, aumentando assim a eficiência do processo de pesquisa de vazamentos na rede da Sabesp.

“O

ideal é diminuir a dependência da avaliação de apenas um técnico”, diz Padovese. “Para entender os problemas da empresa nós conversamos com os técnicos, o que nos fez direcionar melhor o projeto.” O pesquisador conta que não foi possível, no âmbito do projeto atual, desenvolver um sensor do tipo geofone. Eles utilizam os sensores dos geofones encontrados no mercado. O hardware de condicionamento analógico de sinais e digitalização foram desenvolvidos durante o projeto, além de um aplicativo para plataforma iPhone, da Apple. Os primeiros testes em campo devem começar ainda em fevereiro e vão se estender até julho. O projeto está sendo financiado pelo acordo FAPESP-Sabesp e já resultou em uma possível patente que está para ser depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Ela trata de uso do smartphone em sistemas de geofone e outras modificações técnicas que eles implementaram para produzir e gravar os sinais digitais em campo. pESQUISA FAPESP 216  z  59


Miniaturização do laboratório

3

antena wi-fi

1

computador

boia

Controla a saída da amostra de água microválvula

Software

Detector lê as ondas de luz emitidas na célula de fluxo e gera informações que serão enviadas ao computador para serem decodificadas

DADOS

cartão

Laboratório cabo conectado ao laboratório

Reagente 2

Água

DADOS

Reagente 1

Leds iluminam a amostra de água e a luz transmitida é analisada pelo detector

2 BOMBA Tem a função de coletar a quantidade de água necessária para o teste

Mistura água e reagentes

Bateria para funcionamento do sensor

Fonte  antônio carlos seabra / poli-usp

Outro produto inovador que deve sair dos projetos entre a Sabesp e a Poli-USP financiados pela FAPESP é um microlaboratório eletrônico para medir em tempo real a quantidade de fósforo na água, seja de mananciais ou de estações de tratamento. “O fósforo é um nutriente e sua presença em grande quantidade nos locais de captação de água indica a presença de carga orgânica – possivelmente de esgotos, muitas vezes clandestinos”, diz Cristina. O fósforo funciona como um nutriente para as algas. O monitoramento dessas espécies precisa ser feito com regularidade porque a alta proliferação pode prejudicar o tratamento de água potável e trazer prejuízos para a empresa. Atualmente, o monitoramento dos mananciais demora muito tempo. É preciso colher amostras de água, muitas vezes com barcos, e levá-las para serem analisadas em laboratório. “Isso demora muito”, diz Cristina.

O

que o grupo do professor Antônio Carlos Seabra, do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Poli, propôs foi um monitoramento autônomo e em tempo real com um equipamento do tamanho de um cartão de crédito preso a uma boia. Baseado nos sistemas de tecnologia Lab on a chip, o sistema é uma tendência atual de pesquisa de análises químicas e clínicas, em que se faz a miniaturização de equipamentos com utilização de menos amostras e reagentes. “Transferimos o laboratório para um cartão do tamanho próximo ao de crédito e 60  z  fevereiro DE 2014

um pouco mais espesso”, diz Seabra, que contou também no projeto com a colaboração do grupo da professora Dione Morita, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli. “Utilizamos técnicas de microfabricação e conhecimento de análises químicas”, diz Seabra. O dispositivo possui microcanais em seu interior por onde a água e os reagentes percorrem até chegar a um ponto dentro do cartão onde um conjunto de leds ilumina a amostra e a luz transmitida é captada por um sensor. “Por exemplo, uma determinada reação pode gerar uma coloração azul e, conforme a intensidade da cor, é possível analisar a quantidade de fósforo”, explica Seabra. O trabalho do sensor é preparar a amostra, combiná-la com reagentes e analisar a intensidade luminosa em um comprimento de onda absorvido por moléculas específicas da reação. A entrada de água e de reagentes é controlada por microbombas e microválvulas que captam o líquido do ambiente. O dispositivo também expele a amostra e faz a própria limpeza do sistema. “Deveremos disponibilizar o aparelho para fazer medições de hora em hora conforme demanda da Sabesp”, diz Seabra. O microlaboratório pode ser instalado em uma boia ou em uma base na estação de tratamento. As informações colhidas são repassadas aos técnicos da empresa por sistemas wireless. Na boia também existe um recipiente que armazena os reagentes injetados no aparelho. “Estamos empenhados agora em fazer um protótipo que vamos entregar à Sabesp para os pri-

infográfico ana paula campos ilustração pedro hamdan

Sensor vai informar de hora em hora a quantidade de fósforo existente na água


volver o mercado de produtos para saneamento no país”, diz Cristina. Um dispositivo desenvolvido pelos engenheiros do núcleo de tecnologia da empresa que deve integrar o portfólio de produtos inovadores é um biofiltro para purificar o gás emanado das estações de tratamento de esgoto (ETE) e estações elevatórias de esgotos, responsável por um odor ruim e prejudicial aos moradores do entorno dessa ara fazer o corpo do microlaboratório os unidade. “Ele foi feito com materiais recicláveis e pesquisadores utilizam uma cerâmica ma- sem consumo de produtos químicos”, conta Crisleável que lembra um plástico. Depois de vá- tina. O biofiltro é composto de turfa formada por rias camadas prensadas ela se torna rígida. A con- restos vegetais, madeira e casca de coco, além de fecção dos canais é feita com uma máquina a laser uma camada de brita. Ele é instalado dentro de comprada dentro do projeto FAPESP-Sabesp por um contêiner onde recebe o gás por meio de duUS$ 250 mil. “A largura dos canais precisa ter uma tos. A aspersão de água no interior do contêiner faz com que bactérias presentes perfeição de menos de 0,1 milínos materiais oxidem o gás. Um metro”, diz Seabra. “Queremos protótipo está em funcionamenpassar à empresa um produto to em fase de testes já com bons reprodutível industrialmente Guinada resultados na ETE do bairro de e confiável.” Pelo menos uma tecnológica São Miguel Paulista, na capital. patente já está certa para de“Está praticamente pronto para pósito no INPI. É a integração tem também uso e alguém terá que produzi-lo do microssensor de pH da água em escala”, diz Cristina. que teve uma solução inédita de a meta de A guinada tecnológica da emadaptação no fluxo interno do presa tem também como meta a microlaboratório. expandir expansão dos negócios e particiAs patentes pela USP são feitas os negócios pação na área de saneamento não em conjunto com a Sabesp e FAsomente no Brasil, mas no extePESP com a titularidade dividida na área de rior. Empresa de economia mista, entre as três instituições. Várias a Sabesp tem 50,3% de suas ações possibilidades cercam o destino saneamento em poder do governo estadual dessas novas tecnologias. Elas popaulista e o restante pulverizado dem ser licenciadas ou vendidas no mercado de ações nas bolsas para empresas já estabelecidas de valores de São Paulo e de Nova no setor ou gerar novas empresas York, nos Estados Unidos. A restart-ups. A Sabesp pode também ceita líquida em 2012 foi R$ 10,7 montar até uma outra empresa bilhões com 7,7 milhões de ligapara produção e venda do equições de água e 68 mil quilômetros pamento. “O importante é desende redes de distribuição de água e 46 mil de esgoto. A companhia já tem uma base de operações no Panamá e em alguns países da 2 América Central, aonde quer levar o conhecimento adquirido. Também tem parcerias com empresa de saneamento dos estados do Espírito Santo e Alagoas. n

meiros testes em campo e também diminuir a quantidade de amostra usada no aparelho. Hoje utilizamos 800 microlitros [medida relativa à milionésima parte do litro] e acreditamos que possamos atingir os 20 microlitros”, diz Seabra. A menor utilização de amostra reflete também na diminuição da quantidade de reagentes e consequentemente de custos operacionais.

P

Estruturas internas do microlaboratório: canais com menos de 0,1 milímetro recortados a laser e circuito eletrônico

fotos  1 e 2 eduardo cesar

Projetos

1

1 Sistema especialista para detecção e diagnóstico de vazamentos em redes urbanas de distribuição de água (FAPESP-Sabesp) (n° 2010/507738); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese/USP; Investimento R$ 103.805,40 (FAPESP). 2 Uso de microlaboratórios autônomos para monitoramento de fósforo em tempo real (FAPESP-Sabesp) (n° 2010/50744-8); Modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Antônio Carlos Seabra/ USP; Investimento R$ 263.388,80 e US$ 373.855,47 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 216  z  61


Saúde y

Avanços nos diagnósticos Novos sensores desenvolvidos no Brasil fazem análises clínicas mais sensíveis e detecção precoce da dengue Evanildo da Silveira

62  z  fevereiro DE 2014

ilustrações raul aguiar

D

ois sensores desenvolvidos recentemente podem levar a métodos de análises clínicas e a diagnósticos de doenças mais rápidos e baratos. Em São Carlos, uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) aperfeiçoou um tipo de transdutor químico, chamado sistema de detecção condutométrica sem contato (C4D), tornando-o 10 mil vezes mais sensível. O avanço o deixa equiparável aos melhores métodos existentes para análises clínicas ou químicas em sistemas microfluídicos que utilizam microchips. No Rio de Janeiro, pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), criaram um sensor de fibra óptica para diagnosticar a dengue. O químico Renato Souza Lima, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP e do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, de Campinas, diz que na última década dispositivos microfluídicos têm sido muito usados como ferramenta analítica em áreas diversas como a análise de metais pesados, controle de qualidade de bebidas e alimentos e em aplicações biológicas na área de medicina. Os microchips com o sistema C4D têm outras vantagens, como a facilidade de miniaturização e o seu caráter universal como detector. “Isso faz dessa técnica uma alternativa ideal para uma variedade enorme de análises químicas e bioquímicas”, diz Lima.


Apesar de suas vantagens, a C4D apresentava, no entanto, uma limitação importante quando comparada a técnicas eletroquímicas clássicas como a amperometria e a voltametria: a sua baixa sensibilidade. “Esses dois tipos de análises são milhares de vezes mais sensíveis que a detecção sem contato (C4D)”, explica Emanuel Carrilho, professor do IQSC da USP e orientador do doutorado de Lima. “Por isso, nosso objetivo foi aumentar a eficiência do dispositivo com a expansão da área de cobertura dos eletrodos (responsáveis pela detecção das substâncias em análise) e a redução da espessura do dielétrico (isolante elétrico que os cobre). Ou seja, o que fizemos foi transformar o dispositivo para diagnóstico, que era pouco sensível, em um sistema 10 mil vezes mais eficiente.” Para chegar a esse resultado, os pesquisadores de São Carlos modificaram a arquitetura do equipamento, trocando os eletrodos de lugar. Normalmente, os microchips com C4D são compostos por

uma lâmina de vidro com microcanais, pelos quais corre o fluido que se quer analisar, e uma outra, plana, que serve como “tampa” e na qual estão instalados dois eletrodos. Nessa configuração, eles ficam fora dos microcanais, gravados em outra lâmina de vidro. Assim, a única forma de elevar a sensibilidade do dispositivo seria aumentar a área de detecção dos eletrodos, o que é pouco prático. “Nossa solução foi colocá-los dentro dos microcanais, como um anel concêntrico”, conta Carrilho. Para evitar que o eletrodo entre em contato com a substância a ser analisada, característica do detector C4D, ele é isolado por meio de uma cobertura fina, feita com uma camada de 200 nanômetros de dióxido de silício. Para fazer a análise clínica de sangue ou urina, por exemplo, uma gota do material é induzida a passar pelos canais, onde o eletrodo detecta a presença das substâncias de interesse, sejam endógenas, como glicose ou ácido úrico, por pESQUISA FAPESP 216  z  63


A diferença entre os microchips O sensor tem uma lâmina de vidro com microcanais em que corre o fluido a ser analisado. Os pesquisadores aumentaram a área dos eletrodos e os colocaram dentro do canal, isolados por uma camada fina de sílica Eletrodos externos ao chip

Eletrodos internos ao chip

como é feito o teste

Passando pelo eletrodo, o fluido recebe carga elétrica e, com isso, mede-se

Microcanal

Microcanal

Circuito elétrico

a condutividade das substâncias nele

Lâminas de vidro

Circuito elétrico

presentes. A condutividade varia de acordo com o tipo de substância

Camada de sílica de 200 nm de espessura

e concentração na amostra Eletrodos

Lâminas de vidro

Amostra de sangue

Lâminas de vidro 8 cm

8 cm 2 cm

2 cm

Microcanal

Fonte Emanuel Carrilho / IQSC-USP

exemplo, ou exógenas, como fármacos e poluentes. Isso é feito de forma indireta, porque o sensor (microchip) mede a condutividade elétrica da amostra de microfluido. “Essa condutividade muda de substância para substância e de concentração para concentração de uma mesma substância”, explica Carrilho. “Qualquer uma que alterar a condutividade da solução preenchendo o canal pode ser detectada.” Óptica na dengue

O sensor desenvolvido pelas equipes da PUC-Rio e UFPE, por sua vez, é baseado na ressonância de plasmon de superfície localizado (LSPR, na sigla em inglês), um fenômeno óptico que ocorre quando a luz interage com nanopartículas metálicas, induzindo a uma excitação coletiva de elétrons. A LSPR permite que determinados comprimentos de onda (cores) possam ser absorvidos. A física Isabel Cristina Carvalho, responsável pelo Laboratório de Optoeletrônica do Departamento de Física da PUC-Rio e uma das coordenadoras do trabalho, explica que o dispositivo é feito com um fino filme de ouro com 6 nanômetros de espessura depositado na ponta de uma 64  z  fevereiro DE 2014

A transformação dos sensores em produto ainda exige a execução de outras etapas, principalmente em empresas

fibra óptica e depois aquecido por quatro minutos a 600ºC, o que o transforma em nanopartículas de ouro. “Em uma ponta da fibra, sobre as nanopartículas de ouro, é fixado o anticorpo NS1 da proteína de mesmo nome excretado pelo vírus”, diz Rosa Dutra, professora da PUC-Rio. “A outra ponta é conectada a um acoplador, do qual saem duas outras fibras ópticas, uma que será ligada a uma fonte de luz branca e a

outra a um espectrômetro que detecta o sinal refletido na ponta da fibra contendo as nanopartículas e os anticorpos anti-NS1”, diz Isabel. No teste, se a solução não contiver o antígeno, o comprimento de onda medido pelo espectrômetro não sofre modificação. Caso contrário, o sinal medido sofrerá variações na cor, o que determinará as diferentes concentrações do antígeno NS1. Alexandre Camara, aluno de doutorado de Isabel, explica como esse conjunto funciona. “O efeito LSPR devido às nanopartículas imobilizadas com anticorpos anti-NS1 na ponta da fibra óptica é afetado pelo ambiente externo, ou seja, com a presença ou não de antígeno NS1. A resposta do sensor é altamente dependente desse ambiente externo e qualquer mudança nesse fator faz com que a cor absorvida pelo meio mude e o sinal monitorado se modifique. “Não detectamos diretamente o vírus da dengue, mas sim uma proteína (NS1) que o vírus excreta. Em uma fase aguda da doença essa proteína tem o seu valor aumentado, o que é um indicativo precoce da gravidade da doença.” A física Paula Gouvêa, do Laboratório de Sensores a Fibra Óptica (LSFO)

infográficos ana paula campos  ilustrações raul aguiar

Lâminas de vidro


da PUC-Rio e também uma das líderes do trabalho, conta que o sensor de dengue teve origem em outro, criado anteriormente por seu grupo. “Este é uma adaptação do que começamos a desenvolver em 2007”, lembra. “Naquela época iniciamos uma colaboração entre o LSFO, o Laboratório de Optoeletrônica e o Instituto Real de Tecnologia, da Suécia, para desenvolver um sensor de fibra óptica utilizando nanopartículas de ouro.” Em 2011, Renato Araújo, da UFPE, viu uma apresentação de Paula sobre o dispositivo e teve a ideia de adaptá-lo para detectar dengue. Começou assim, em 2012, a colaboração entre os grupos da PUC-Rio e da UFPE. “Ela teve início com o trabalho experimental realizado pelos alunos Alexandre Camara e Ana Carolina Dias”, conta Paula. Nessa etapa de adaptação do sensor para a detecção da dengue, o trabalho foi desenvolvido nas duas universidades. “O Alexandre aprendeu a técnica na UFPE em Recife e a trouxe para o Rio.” Por enquanto, os testes foram realizados apenas em soluções feitas em laboratório com os antígenos da den-

gue. O próximo passo será a realização de medições in vivo, com amostras de sangue de pacientes infectados. “O que fizemos até agora consiste em uma prova de conceito do novo sensor, que ainda não é um protótipo”, explica Araújo. “Como o nosso, existem alguns poucos métodos demonstrados em laboratório que poderiam ser utilizados no diagnóstico da dengue. A transformação de um resultado como o que conseguimos em um produto exige ainda a execução de vários passos, como a avaliação econômica de produção das diferentes técnicas.” sem sintomas

Pelos resultados obtidos nos testes, o novo dispositivo mostrou-se bem promissor. Uma de suas maiores vantagens é permitir a detecção da dengue desde o primeiro dia de contaminação, quando o paciente ainda não começou a apresentar os sintomas da doença. Isso é muito útil, porque um diagnóstico precoce pode evitar a morte de pacientes por não receber tratamento adequado a tempo de prevenir problemas mais graves como os causados pela dengue hemorrágica.

Sensor detecta dengue com fibra Uso de luz acelera diagnóstico da doença e reduz uso de reagentes Ponta da fibra óptica com sensor Nanopartículas de ouro

1 Fonte de

Anticorpo Antígeno

luz branca Fibra óptica leva a luz

Solução com antígeno da dengue

que ilumina

2 detecção da

luz refletida

a amostra

A luz refletida da

“Outra vantagem do nosso sensor é o fato de que com ele é possível realizar as medições com apenas uma gota de amostra”, acrescenta Camara. “O pouco tempo necessário para o teste (em 20 minutos é possível ter um diagnóstico) e o esperado baixo custo de produção também o tornam atrativo.” Rosa Dutra lembra que o sensor pode ser portátil e usado também em laboratórios. O trabalho foi financiado pela parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Swedish Foundation for International Cooperation in Researchand Higher Education, que apoia estudos conjuntos entre Brasil e Suécia. A pesquisa também contou com recursos das duas universidades, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Um artigo foi publicado na revista Optics Express. O sensor químico para análises clínicas desenvolvido pela equipe da USP de São Carlos também ainda não está pronto. “Ele gerou patente, mas precisa de desenvolvimento”, diz Carrilho. “Está no ponto de sair da universidade e ir para uma empresa de base tecnológica para chegar ao mercado. Uma empresa de São Carlos chamada ParteCurae Analysis demonstrou interesse na transferência da tecnologia.” Segundo Carrilho, há apenas dois pequenos fabricantes de microchip com C4D no mercado, por isso as melhorias que os pesquisadores desenvolveram nesse tipo de sensor poderiam torná-lo mais competitivo. A pesquisa contou com apoio da FAPESP, por meio de uma bolsa de doutorado a Lima, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e resultou em artigo publicado na revista ChemComm, da Royal Society of Chemistry. n

amostra é captada por outra fibra óptica que leva

Projeto

a informação para

Sistemas microfluídicos eletroquímicos ultrassensíveis (nº 2010/08559-9); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Emanuel Carrilho – IQ-USP; Bolsista Renato Souza Lima; Investimento R$ 88.808,87 (FAPESP).

o espectrômetro

Artigos científicos

3 Espectrômetro

O aparelho mede o comprimento de onda refletido da amostra.

Fonte Isabel Cristina Carvalho / PUC-Rio

O sinal contém variações que levam a quantificação da concentração do antígeno da proteína NS1 produzida pelo vírus da dengue

Lima, R.S. et al. Highly sensitive contactless conductivity microchips based on concentric electrodes for flow analysis. Chemical Communications. Publicado on-line em 9 out. 2013. Camara, A.R. et al. Dengue immunoassay with an LSPR fiber optic sensor. Optics Express. v. 21, n. 22, p. 2702331. nov. 2013.

pESQUISA FAPESP 216  z  65


BIOTECNOLOGIA y

Teia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínas 66  z  fevereiro DE 2014


Teias de laboratório Cientistas brasileiros produzem fibras sintéticas que mimetizam os fios de aranhas Yuri Vasconcelos

léo ramos

N

as telas de cinema e nas histórias em quadrinhos, o super-herói se desloca pela metrópole pendurado em resistentes fios de seda, que também são usados para imobilizar os vilões que ameaçam a cidade. No que depender de um grupo de pesquisadores brasileiros, liderado por Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, dentro de alguns anos a ficção poderá, com certas adaptações, tornar-se realidade. Rech está à frente de uma equipe cujo objetivo é fabricar fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha da biodiversidade brasileira. Esse biopolímero artificial, cujo processo de fabricação em escala laboratorial já é plenamente dominado, poderá ser usado como matéria-prima para a fabricação de vasta quantidade de produtos, entre eles fios biodegradáveis para sutura cirúrgica, coletes à prova de balas mais leves do que os atuais, para-choques de automóveis flexíveis e até bagageiros e outros componentes plásticos de aviões. Com um pouco de imaginação, os fios sintéticos poderão inclusive dar origem a cordas ultrarresistentes capazes de ter emprego similar ao dado pelo Homem-Aranha, o super-herói da Marvel Comics.

“Esse novo biomaterial, fabricado com auxílio de ferramentas de biotecnologia e engenharia genética, poderá, em tese, ser utilizado para uma infinidade de aplicações que demandam flexibilidade, resistência e biodegradabilidade em um único material”, afirma Elíbio Rech. “Nós já dominamos a tecnologia da produção de fios sintéticos de teias de aranha em laboratório. Nosso desafio agora é definir uma forma econômica, rápida e segura para sua produção em larga escala.” Iniciadas há nove anos, as pesquisas conduzidas por Rech contam com a participação de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Butantan e da Universidade de Brasília (UnB), além dos cientistas Randy Lewis, da Universidade de Utah, e David Kaplan, da Universidade Tufts, ambas nos Estados Unidos. O interesse em produzir fibras que mimetizam a seda de aranha se dá porque esse material agrega propriedades únicas. Os fios tecidos pelas aranhas são, ao mesmo tempo, resistentes e elásticos – o aço, em comparação, é altamente resistente, mas não é flexível. Feitos de proteínas, são biodegradáveis. Ao fazer a análise molecular desse material, os cientistas brasileiros descobriram que pESQUISA FAPESP 216  z  67


Teias artificiais Cientistas recorreram à biotecnologia e à engenharia genética para criar o biopolímero Genes de interesse da aranha

Genes da bactéria Escherichia coli

Bactéria E. coli

Fiadeiras

Glândulas de seda

1 genes isolados

2 sequências sintéticas de dna

3 bactérias programadas

Os pesquisadores da Embrapa

Por meio de análises moleculares, bioquímicas,

Os genes modificados foram clonados

isolaram os genes das glândulas de

biofísicas e mecânicas, eles estudaram esses

e introduzidos no genoma de bactérias

seda de cinco espécies de aranhas

genes e suas funções, e construíram sequências

Escherichia coli, programadas para

da biodiversidade brasileira

sintéticas de DNA para a produção de fios

atuar como biofábricas

4 produção de proteínas

5 purificação de material

6 imitação de aranha

As bactérias transgênicas Escherichia coli

O passo seguinte consistiu na extração das

Com auxílio de uma seringa que imita o órgão

passaram a produzir em larga escala

proteínas. Para isso, a massa de bactérias foi

das aranhas responsável pela fabricação do

as proteínas recombinantes

diluída em meio líquido e purificada para a

fio, eles utilizaram as proteínas para produzir

que formam os fios das aranhas

separação das proteínas do restante do material

os fios sintéticos em laboratório

ra vez a nanoestrutura desses fios. “Com auxílio da microscopia de força atômica em alta resolução, os detalhes de cada fibra foram ampliados em até 1 bilhão de vezes, o que nos permitiu diferenciar, por exemplo, as fibras mais elásticas das mais resistentes. O estudo permitiu melhorar e acelerar nosso domínio da produção de fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha”, explica Rech.

biofísicas e mecânicas para estudar esses genes e compreender suas funções. A partir dos resultados dessas análises eles construíram sequências sintéticas de DNA para produção de fios com resistência e flexibilidade. Posteriormente, os genes modificados com as novas sequências de DNA foram clonados e introduzidos no genoma de bactérias Escherichia coli, programadas para atuar como biofábricas. Com isso, as bactérias transgênicas E. coli passaram a sintetizar em larga escala as proteínas recombinantes que formam os fios das aranhas, como se fossem fábricas naturais da molécula. O passo seguinte consistiu na extração das proteínas das bactérias. Para isso, a massa de microrganismos foi solubilizada (diluída em meio líquido) e purificada numa coluna de extração, onde ocorreu a separação das proteínas do restante do material. O desafio final foi transformar as proteínas na fibra em si. Nas aranhas, esse processo é feito por um órgão específico

Fonte Elibio Rech/Embrapa

as aranhas da biodiversidade brasileira produzem teias extremamente robustas e flexíveis. “Um cabo da espessura de uma caneta tecido com fios de aranha, por exemplo, poderia ser usado para deslocar um avião grande, tipo Boeing, sem se romper”, conta o pesquisador da Embrapa. “Sabemos que a seda das aranhas tem características de flexibilidade e resistência superiores às de qualquer material existente, inclusive o polímero kevlar, usado para fabricação de coletes à prova de balas”, diz Rech, que é autor de diversos artigos sobre o assunto, o mais recente publicado em dezembro de 2013 na Nature Communications, revista científica do grupo Nature. O estudo publicado revela a complexa organização em escala nanométrica das proteínas contidas nas teias de aranha encontradas no Brasil. É essa organização estrutural que lhes confere resistência e elasticidade. No artigo, escrito em coautoria com o biólogo Luciano Silva, também da Embrapa, é revelada pela primei68  z  fevereiro DE 2014

Biofábricas programadas

O processo de criação das fibras artificiais envolve o domínio de complexas técnicas de engenharia genética. A primeira etapa para fabricação do biopolímero em laboratório foi a identificação e o isolamento dos genes das glândulas produtoras de seda de cinco espécies de aranha (Nephila clavipes, Argiope aurantia, Nephylengys cruentata, Parawixia bistriata e Avicularia juruensis) de três diferentes biomas brasileiros: mata atlântica, Amazônia e cerrado. Em seguida, os cientistas realizaram análises moleculares, bioquímicas,


Análises moleculares de teias de aranha da biodiversidade brasileira vão contribuir para a produção do biopolímero

chamado espirineta. É ele que organiza as proteínas na seda que será usada pela aranha para tecer as suas teias. “O que fizemos foi simular esse órgão. Com auxílio de uma seringa especial, que imita a espirineta, produzimos os fios em laboratório a partir das proteínas extraídas das bactérias”, diz o pesquisador. Esse processo foi detalhado em artigo na Nature Protocols, também do grupo Nature, em 2009. O texto foi assinado por Rech, Daniela Bittencourt, da Embrapa, e outros três pesquisadores da Universidade de Wyoming, dos Estados Unidos. custo elevado

fotos léo ramos  infográficos yuri vasconcellos e ana paula campos  ilustraçãO alexandre affonso

Segundo Rech, além de resultar em aplicações para vários setores da economia, o fato de os estudos serem baseados em aranhas brasileiras tem outra vantagem: agrega valor à biodiversidade nacional. “A sustentabilidade é um aspecto importante do nosso trabalho. Estudamos a biodiversidade brasileira, empregando a tecnologia de DNA recombinante, como modelo de opção viável para a geração de ‘ativos’ e agregação de valor”, diz ele.

1

2

“O uso de biologia sintética e engenharia metabólica abre a possibilidade de realizarmos a engenharia de organismos, entre eles bactérias, como reatores para a produção das proteínas associadas à fabricação de teias de aranha em larga escala e a um custo economicamente viável.” Esse é o maior desafio dos cientistas para dar uso comercial às fibras sintéticas e, com elas, fabricar uma grande variedade de produtos. A principal alternativa é descobrir uma “fábrica natural” que sintetize em

Mil e uma aplicações De medicamentos a peças aeronáuticas, são vários os exemplos de produtos fabricados a partir das fibras sintéticas de aranha

Fios para sutura cirúrgica

Coletes à prova

cujos pontos

de balas mais leves e resistentes

Para-choques flexíveis

não precisam

do que os atuais

para carros capazes

ser retirados

larga escala as proteínas que dão origem ao fio. A técnica que emprega bactérias tem um problema: o elevado custo do processo. Por isso, Rech está testando a fabricação da proteína em sementes de soja e o grupo de Randy Lewis, da University of Utah, faz o mesmo com leite de cabra. Tanto em um como em outro sistema, a molécula seria extraída ao final do processo e transformada na fibra. “Nossas pesquisas estão em andamento e ainda não é possível estimar quanto tempo será necessário para que o material esteja disponível no mercado”, diz ele. Pesquisas com a mesma finalidade também são conduzidas em outros países. O exército norte-americano, por exemplo, adquiriu há alguns anos um projeto criado por laboratórios canadenses para a fabricação de fios sintéticos de aranha e busca uma forma de escalonar sua produção. O cientista Randy Lewis, parceiro de Rech, está envolvido nessa iniciativa. “Esse projeto vai indo muito bem”, diz o pesquisador da Embrapa. “Mas, até onde sei, nenhum grupo de pesquisa do mundo conseguiu até o momento chegar a uma solução de baixo custo. É isso que estamos perseguindo.” n

de suportar elevados impactos Nanoestruturas biodegradáveis Peças e componentes

que transportam

plásticos para aviões,

medicamentos

como bagageiros e

e vacinas dentro

estruturas para poltronas

do corpo humano

Artigos científicos SILVA, L.P. e RECH, E.L. Unravelling the biodiversity of nanoscale signatures of spider silk fibres. Nature Communications. 18 dez. 2013. Teulé, F. et al. A protocol for the production of recombinant spider silk-like proteins for artificial fiber spinning. Nature Protocols. v. 4, n. 3, p. 341-55. 2009.

pESQUISA FAPESP 216  z  69


pesquisa empresarial y

Competência em bicombustíveis Bosch brasileira tornou-se referência mundial ao lançar o sistema flex fuel e a partida com o etanol aquecido no lugar da gasolina Dinorah Ereno

U

m dos maiores fornecedores de peças automotivas do mundo, o grupo Bosch, com sede em Stuttgart, na Alemanha, é composto por cerca de 360 subsidiárias e empresas regionais distribuídas por 50 países. Em 2012, o faturamento do grupo atingiu € 52,5 bilhões e o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) foi de € 4,8 bilhões, com o registro de 4.800 patentes. No Brasil, onde começou a atuar em 1954 como fabricante de autopeças, a empresa tem sede em Campinas, no interior paulista, e conta com nove unidades de negócios. Em 2012, a subsidiária brasileira registrou um faturamento de R$ 4,1 bilhões com a oferta de produtos e serviços automotivos para montadoras e para o mercado de reposição de autopeças, além de ferramentas elétricas, sistemas de segurança, máquinas de embalagem e tecnologias industriais. O investimento em P&D no país foi de cerca de R$ 170 milhões. Projetos inovadores que resultaram em produtos de sucesso relacionados a biocombustíveis, como o do sistema de injeção flex fuel – que permite ao motor do carro trabalhar com álcool ou gasolina ou qualquer mistura dos 70  z  fevereiro DE 2014

dois combustíveis –, tornaram a filial brasileira referência na área de tecnologias de combustíveis alternativos. “Somos um centro mundial de pesquisa e desenvolvimento em sistemas e produtos para combustíveis alternativos, o que nós dá um certo grau de liberdade para escolher tecnologias que serão desenvolvidas na área”, diz o analista de sistemas Bruno Bragazza, de 46 anos, gerente de inovação e propriedade intelectual da Bosch para a América Latina. Outros centros de P&D, que não são eleitos como de competência mundial, têm que discutir suas escolhas com a matriz. “São mais de 300 pesquisadores alocados só para questões relacionadas a bicombustíveis”, diz Bragazza, que desde 1985 está na Bosch, onde começou como estagiário quando fazia um curso técnico em eletrônica. Promovido a técnico, começou a cursar a Faculdade de Análise de Sistemas na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e pouco tempo depois foi transferido para a Alemanha, com a função de aprender e trazer para o Brasil a tecnologia de desenvolvimento de softwares para injeção eletrônica. Na volta retomou a universidade e assumiu a

empresa bosch

Subsidiária brasileira Campinas, SP

Nº de funcionários 9.700

Principais produtos Equipamentos e serviços automotivos para montadoras e para o mercado de reposição de peças, ferramentas elétricas, sistemas de segurança, máquinas de embalagem e tecnologias industriais

Faturamento da empresa em 2012 R$ 4,1 bilhões


léo ramos

gerência do departamento de software e hardware para injeção eletrônica, onde ficou durante 23 anos. “Gerenciei até 2007 uma equipe de 44 pesquisadores, entre engenheiros e técnicos, e desde então estou numa área corporativa, que cuida de inovação tecnológica com um olhar transversal.” Sua tarefa é ver o que as unidades de negócios estão fazendo em P&D e buscar instrumentos de fomento para as pesquisas, além de parcerias com instituições científicas e tecnológicas brasileiras e estrangeiras, como da Índia, China e Alemanha, e proteção para as invenções. “Hoje estamos com 439 pesquisadores espalhados por sete unidades de negócios que fazem algum tipo de pesquisa e desenvolvimento.” Outras linhas de pesquisa desenvolvidas em Campinas englobam segurança veicular, eficiência

energética veicular, direção confortável, além de uma unidade de negócios de ferramentas elétricas que são desenvolvidas no Brasil e exportadas para outros países. A Bosch tem projetos com grandes grupos de empresas da indústria automobilística, mas muitos não podem ser revelados por questão de contrato. Quando o sistema de injeção flex fuel começou a ser desenvolvido em 1992, Bragazza estava na Alemanha e participou do grupo de pesquisa brasileiro vinculado ao projeto, liderado pelo engenheiro mecânico Erwin Franieck, formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e gerente de desenvolvimento na Bosch, onde trabalha desde 1986. “Resolvidos diversos desafios que eram tabus para a viabilização da tecnologia flex, restava ainda um entrave téc-

A partir da esquerda: Celso Fávero, Fernando Lepsch, Omar Del Corsso Júnior, Cleuby Santos, Erwin Franieck e Bruno Bragazza

nico, que era manter a pressão da bomba de combustível. Para isso foi desenvolvido um produto robusto que permitiu ter um carro flex funcionando em 1994 e que ao longo de quatro anos rodou 100 mil quilômetros”, diz Franieck, de 52 anos. “As montadoras testavam o produto, mas diziam que não havia demanda”, relata. Por um bom período, ele se encarregou da divulgação da inovação, fazendo palestras e apresentações do sistema para cooperativas e montadoras. O produto só foi lançado em 2003, oito meses após a promulgação da lei que reduzia o impospESQUISA FAPESP 216  z  71


2

1

to sobre produtos industrializados (IPI) de carros flex no país. “Hoje a bomba de combustível flex da Bosch é utilizada em 85% dos veículos nacionais”, diz. Na avaliação de Bragazza, apesar da grande inovação representada pelo sistema flex fuel, o período transcorrido entre o início das pesquisas e o seu lançamento fez com que, em pouco tempo, os principais concorrentes da Bosch também lançassem produtos com soluções semelhantes. “Não foi feito nenhum depósito de patente para proteção da tecnologia”,

explica. A lição aprendida resultou em um bem tecido esquema para proteger a segunda geração do flex fuel, o sistema Flex Start, que eliminou o tanque de gasolina usado para dar a partida a frio no carro movido a álcool – o etanol é aquecido antes de ser injetado no motor. “Hoje temos 12 patentes para esse sistema, além do registro da marca Flex Start e cerca de 15 proteções de desenho industrial das partes mecânicas que fazem o aquecimento do biocombustível”, diz Bragazza. “O projeto chegou a ter a colaboração de 80 engenheiros de várias áreas”, diz o engenheiro mecânico Fernando Lepsch, de 36 anos, que trabalha no desenvolvimento de produtos e participou das pesquisas desde o início do projeto, em 2002. “Nosso maior desafio foi fazer com que o etanol fosse aquecido rapidamente, para que o motorista não precisasse esperar muito tempo para dar a partida no carro”, diz Lepsch, formado pela Unicamp,

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Bruno Bragazza, analista de sistemas, gerente de inovação e propriedade intelectual da Bosch para a América Latina

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas): graduação

Erwin Franieck, engenheiro mecânico, gerente de desenvolvimento de produtos na divisão de sistemas a gasolina

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação

Fernando Lepsch, engenheiro mecânico, engenheiro de desenvolvimento de produtos na divisão de sistemas a gasolina

Unicamp: graduação

Celso Fávero, engenheiro mecânico, gerente de engenharia de desenvolvimento de produtos

Unicamp: graduação

Omar Del Corsso Júnior, engenheiro eletricista, chefe da área de motores de partida

Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação

Cleuby Santos, engenheiro eletricista, engenheiro de desenvolvimento de produtos na área de bobinas e sensores automotivos

Unicamp: graduação

72  z  fevereiro DE 2014

onde também cursa mestrado na mesma área. O pesquisador, que começou a trabalhar como estagiário na Bosch em 2000, consta como inventor em 10 patentes relacionadas ao Flex Start. Foram sete anos entre o início do projeto e o lançamento do produto em 2009. A aceitação da novidade contou com a ajuda de uma pesquisa de mercado feita pela própria Bosch com o consumidor final – em que era feita uma comparação entre um carro bicombustível com tanquinho de gasolina para partida a frio e outro com o etanol aquecido –, que elegeu a segunda alternativa como a preferida. “Ainda somos os únicos no mercado com essa tecnologia e os pedidos não param de crescer”, diz Bragazza. Como reconhecimento, a subsidiária brasileira ganhou o prêmio mundial da Bosch de Inovação. Exigências distintas

O know-how adquirido com o desenvolvimento da bomba de combustível flex fuel tem sido aplicado agora em motocicletas. O projeto, que está em fase final de validação do produto, é coordenado pelo engenheiro mecânico Celso Fávero, de 51 anos, gerente de engenharia de desenvolvimento de produtos da Bosch, onde trabalha há 26 anos. “A aplicação em motos tem exigências bastante distintas, porque esses veículos possuem um sistema elétrico que não gera muita energia”, diz Fávero, formado pela Unicamp, onde fez especialização em gestão e estratégia de empresas pelo Instituto de Economia. Como o alternador da moto – equipamento que transforma a energia mecânica em elétrica – é pequeno, qualquer carga extra representa um obstáculo à eficiência. “Fizemos um trabalho de pes-


fotos léo ramos

4

1 Sistema de purificação química

quisa focado nessa especificação e conseguimos reduzir o consumo da corrente da bomba de combustível em torno de 15% em comparação com o concorrente nesse segmento”, diz. Espalhados pelo mundo, o grupo Bosch tem 43 mil pesquisadores, dos quais 1.300 trabalham em um centro de pesquisa corporativo na Alemanha. “São quase todos mestres e doutores, especializados em diferentes áreas do conhecimento”, diz Bragazza. No Brasil ainda são poucos pesquisadores com título de mestre e raríssimos doutores. “Menos de 10% são mestres e doutores; a maioria dos engenheiros acaba fazendo cursos de especialização.” Por isso, para alguns desenvolvimentos que exigem conhecimento científico mais detalhado são feitas parcerias com institutos de pesquisa e universidades. No caso do aquecimento do etanol para o sistema Flex Start, por exemplo, a Unicamp foi a principal colaboradora, além do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). Para questões pontuais, a Bosch tem uma rede de conhecimento mundial

10 patentes”, diz o engenheiro eletricista Omar Del Corsso Júnior, de 38 anos, for2 Instalação de bomba de mado pela Faculdade de Engenharia da combustível flex Universidade Estadual Paulista (Unesp) 3 Analisador de de Bauru, no interior paulista, e chefe da emissões de gases área de motores de partida para veícuveiculares los. “Somos uma equipe de seis pessoas, 4 Análise química que trabalha no desenvolvimento de node compostos vas plataformas e novos produtos para o orgânicos mercado”, diz Del Corsso, especialista em gestão e estratégia de empresas pelo Instituto de Economia e em engenharia automobilística pela Faculdade de Engenharia Mecânica, ambos da Unicamp. Ele 3 começou a trabalhar na Bosch como estagiário em 1999 e um ano depois foi contratado para o grupo de desenvolvimento de motores elétricos, onPlataformas de simulação de ficou por seis anos. reduzem o tempo de pesquisa Na avaliação do engenheiro eletricisao antecipar possibilidades ta Cleuby Santos, de 30 anos, engenheiro de desenvolvimento formada por pesquisadores que são re- de produtos da área de bobinas e sensores automotivos, o uso de programas ferência em algum tema. Algumas pesquisas em parceria com de simulação tem contribuído para uma as universidades têm como foco atender substancial economia de tempo nas pesdemandas futuras, a exemplo do projeto quisas. “Essas plataformas nos trazem de um motor de partida para veículos de uma grande competência técnica e com passeio mais eficiente e ao mesmo tem- isso conseguimos identificar e antecipar po mais leve, com o objetivo de reduzir a possibilidades por meio de simulações emissão de dióxido de carbono, feito em térmicas, mecânicas, eletrônicas, elétricolaboração com a Faculdade de Enge- cas e magnéticas de bobinas e sensores”, nharia Mecânica da Unicamp. “Para que o diz Santos, formado pela Unicamp, que motor de partida modelo C60, que subs- entrou na Bosch em 1997 como aprentitui os que já estão no mercado, tivesse diz do Senai. Após quatro anos passou a a mesma resposta dentro das novas es- estagiário e em 2003 foi efetivado como pecificações, desenvolvemos outras tec- técnico de desenvolvimento. Em 2009 conologias, que resultaram no depósito de meçou a trabalhar na sua atual função. n pESQUISA FAPESP 216  z  73


humanidades   CIÊNCIA POLÍTICA y

A mobilidade dos movimentos sociais Análise das redes de organizações da sociedade civil contraria tese da “onguização” Márcio Ferrari

74  z  fevereiro DE 2014

M

ovimentos sociais tiveram papéis ativos nos processos de democratização ocorridos na América Latina nas últimas décadas do século XX. Daquele período até os dias de hoje, muitos passaram por uma evolução amplamente registrada na literatura das ciências sociais, especialmente naquela dedicada ao estudo da sociedade civil na região. Um aspecto quase consensual entre os pesquisadores do setor é que a partir dos anos 1990 houve uma renovação da sociedade civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir dos anos 1990, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais, entre os que estudam esses fenômenos. Em suma, os movimentos populares, formados pelos próprios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros constituintes (atividade chamada de advocacy nas ciências sociais).


ilustraçãO nara isoda

Essas ações teriam acarretado uma despolitização da sociedade civil. O cientista político Adrian Gurza Lavalle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), no entanto, vem conduzindo estudos que contradizem a tese da “onguização”. Um mapeamento das organizações em dois dos maiores conglomerados urbanos da América Latina, São Paulo e Cidade do México, que configuram as “ecologias organizacionais” das cidades da região, demonstrou que as ONGs conquistaram e mantiveram protagonismo, mas os movimentos sociais também estão em posição de centralidade, apesar das predições em contrário. “Nossas pesquisas contrariam diagnósticos céticos que mostram uma sociedade civil de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo de-

senraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda”, diz Gurza Lavalle, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Mais: elas mostram que a sociedade civil se modernizou, se diversificou e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais complexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.” Essas conclusões vêm de uma sequência de estudos comandados por ele nos últimos anos. Os mais recentes foram desenvolvidos em coautoria com Natália Bueno no CEM, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. O trabalho tem como pesquisadores convidados Ernesto Isunza Vera (Centro de Estudios Superiores en Antropología Social, de Xalapa, México) e Elisa Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Concentra-se no papel das organizações civis e na composição das ecologias pESQUISA FAPESP 216  z  75


Atores sociais Entidades civis que atuam nas grandes cidades, como São Paulo e Cidade do México

ONGs Organizações voltadas

Fóruns

para a defesa pública

Espaços fundados

de causas que

por organizações da

favorecem terceiros

sociedade civil, sem

ou interesses difusos

agenda própria e com o objetivo de

Associações

estimular o debate e

de bairro

criar compromissos

Associações de

entre atores sociais

indivíduos que têm em comum a mesma base microterritorial e

Associações

reivindicações

comunitárias

relacionadas à

Organizações microlocais de

infraestrutura e serviços

pessoas com traços comuns,

urbanos desse território

orientadas para o auxílio mútuo (como grupos de faixa etária) e a realização conjunta de atividades (como as de recreação)

Pastorais Associações vinculadas à Igreja

Organizações

Católica e organizadas

populares

para a ação pastoral

Associações

em determinados

dedicadas à

temas e com grupos

defesa de causas

sociais desfavorecidos

de grupos sociais

dos próprios membros

de baixa renda mediante mobilização que operam em nível regional (acima do nível microterritorial)

Associações assistenciais Organizações que prestam serviços a indivíduos e grupos sociais de acordo com suas vulnerabilidades

Organizações articuladoras Reúnem associações e trabalham em benefício delas,

Comitês de bairro

realizando funções

Associações existentes no México,

de coordenação,

derivadas da Lei de Participação Cidadã,

defesas de causas

que têm por objetivo o encaminhamento

e representação

de projetos de melhoria do bairro ao poder público

76  z  fevereiro DE 2014

organizacionais nas sociedades civis de diversas cidades no México e no Brasil. O que o cientista político apresenta nos seus estudos de rede pode ser uma contribuição para que os tomadores de decisão conheçam melhor a heterogeneidade das organizações civis. “Há implicações claras para a regulação sobre o terceiro setor, no sentido de que ela se torne menos uma camisa de força e mais um marco que ofereça segurança jurídica aos diferentes tipos de organizações da sociedade civil que recebem recursos públicos ou exercem funções públicas”, diz o pesquisador. “O trabalho que vem sendo realizado por Gurza Lavalle, seus alunos e colaboradores é especialmente valioso porque, por meio da análise de redes, permite mapear com mais rigor e de maneira mais fina as relações entre os movimentos sociais”, diz Marisa von Bülow, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), especializada no estudo das sociedades civis latino-americanas. “A análise de redes não é necessariamente o melhor método, mas complementa muito bem métodos como as pesquisas qualitativas e de campo, as entrevistas etc. Permite que se vejam coisas que não poderiam ser lidas com tanta clareza pelas vias tradicionais. No caso das pesquisas de Gurza Lavalle, acabaram mostrando que as sociedades civis da região são mais diversas e plurais do que se pensava.” “As análises que tínhamos eram geralmente leituras impressionistas ou dados sem capacidade de produzir inferências”, diz Gurza Lavalle. Ele tirou da literatura local a evolução dos atores sociais na região, que identifica duas ondas distintas de inovação na mobilização social: tomando como plano de comparação as organizações tradicionais como as entidades assistenciais ou as associações de bairro, a nova onda de atores surgida nos anos 1960, 1970 e metade dos 1980, e a novíssima onda de atores que ganhou força nos anos 1990.

A

primeira se caracterizou pelas organizações criadas em razão de demandas sociais de segmentos amplos da população durante a vigência do regime militar. É o caso das pastorais incentivadas pela Igreja Católica e os movimentos por moradia, pela saúde e contra a carestia. As organizações da segunda onda costumam ser agrupadas na denominação de ONGs, que por sua vez deram origem às entidades articuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados – por exemplo, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) ou a Rede Brasileira Agroflorestal (Rebraf ). A análise de redes, segundo Gurza Lavalle, permitiu avaliar a influência das associações, “tanto


no seio da sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos”. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas de centralidade que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. “Quando nos relacionamos, estamos vinculados de forma indireta aos vínculos dos outros”, diz o pesquisador.

ilustraçãO nara isoda

A

análise de redes, de acordo com o cientista político, registrou desenvolvimento acelerado nas últimas duas décadas e é aplicável a diversas áreas do conhecimento. “Graças aos avanços da análise de redes é possível, por exemplo, detectar padrões de difusão de doenças, pois permite identificar estruturas indiretas que não estão à disposição dos indivíduos, mas atuam num quadro maior. É um caminho para superar as caracterizações extremamente abstratas e estilizadas dos atores comuns nas ciências sociais, mas sem abrir mão da generalização de resultados.” Segundo Gurza Lavalle, uma das principais vantagens desse método é complementar e ir além dos estudos de caso e controlar as declarações das próprias organizações estudadas (autodescrição) e investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, bem como as estruturas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação. O método de amostragem adotado para apurar a estrutura de vínculos entre as organizações é conhecido como bola de neve. Cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da entidade entrevistada. Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis, que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais. Essa rede permitiu identificar claramente a vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. Além disso, o estudo detectou quatro tendências da ecologia organizacional da sociedade civil em São Paulo e, em menor grau, na Cidade do México: ampliação, modernização, diversificação e, em alguns casos, especialização funcional (capacidade de desenvolver funções complementares com outras organizações). O que o pesquisador utiliza como aproximação aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Movimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Movimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras. Numa posição de “centralidade intermediária”

estão as pastorais, os fóruns e as associações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organizações de corte tradicional, como as associações de bairro e comunitárias. “As organizações civis passaram Graças aos a desempenhar novas funções de avanços da intermediação, ora em instituições participativas como representantes análise de redes, de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como reé possível, ceptoras de recursos públicos para a execução de projetos”, diz Gurza Lapor exemplo, valle. “As redes de organizações civis detectar padrões examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares de difusão de da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de interdoenças mediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais.” Outros estudos confirmam as conclusões do trabalho conduzido por Gurza Lavalle, como os de Lígia Lüchmann, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina, que vem estudando as organizações civis de Florianópolis. “Eu confirmaria a ideia de que a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que costumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”, diz. Ela cita, na capital catarinense, a atuação de articuladoras como a União Florianopolitana de Entidades Comunitárias e o Fórum de Políticas Públicas. No cenário latino-americano, Gurza Lavalle e Marisa von Büllow veem o Brasil como um caso excepcional de articulação das organizações sociais ao conseguir acesso ao poder público, o que não ocorre no México. Gurza Lavalle cita como exemplos os casos do Estatuto da Cidade, que teve origem no Fórum Nacional da Reforma Urbana, e do ativismo feminista no interior do Movimento Negro, cuja história é um componente imprescindível da configuração do campo da saúde para a população negra dentro da política nacional de saúde, embora sejam mais conhecidos os casos do movimento pela reforma da saúde ou do ativismo de organizações civis na definição das diretrizes das políticas para HIV/Aids. n

Projeto Centro de Estudos da Metrópole - CEM (nº 2013/07616-7); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Martha Teresa da Silva Arretche; Investimento R$ 7.103.665,40 para todo o Cepid (FAPESP).

Artigo científico GURZA LAVALLE, A. e Bueno, N. S. Waves of change within civil society in Latin America: Mexico City and Sao Paulo. Politics & Society. v. 39, p. 415-50, 2011.

pESQUISA FAPESP 216  z  77


Letras clássicas y

O teatro do engano Pesquisadora da Unicamp investiga as comédias do dramaturgo romano Plauto, referência para Shakespeare, Molière, Camões e Suassuna

A

esposa colérica, o escravo astuto, o jovem apaixonado sem dinheiro, a meretriz, o parasita social. Esses são alguns dos personagens mais notórios da comédia de Plauto, dramaturgo romano nascido no século III a.C., cuja obra está entre os textos literários mais antigos preservados em latim. As comédias de Plauto foram retrabalhadas por escritores como William Shakespeare, Molière, Luís de Camões e, no caso brasileiro, Ariano Suassuna, que em 1957 usou como subtítulo de sua comédia O santo e a porca a frase “imitação nordestina de Plauto”. A pesquisadora do núcleo de Letras Clássicas do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), Isabella Tardin Cardoso, estuda a Comédia Nova Romana, da qual Plauto é um dos principais representantes. Em 2006 ela publicou uma tradução para o português da peça Estico (Editora da Unicamp) e orienta duas alunas que lançarão este ano dois outros títulos de obras do autor. O movimento em torno do autor romano deverá levar a leituras dramáticas de suas comédias em São Paulo. 78  z  fevereiro DE 2014

Pouco se sabe da vida de Tito Mácio Plauto (em latim, Titus Maccius Plautus). Sua biografia é conhecida apenas por testemunhos indiretos. Ele teria nascido em Sarsina, na região central italiana da Úmbria, por volta de 255 a.C. Há registros de que foi para Roma ainda jovem, possivelmente para trabalhar em bastidores de teatro, e tornou-se ator. Perdeu todo o seu dinheiro em um empreendimento náutico malsucedido, o que o teria arruinado por completo e o forçado à escravidão por dívida. Um texto do século II d.C. sugere ainda que Plauto começou a escrever peças de teatro justamente para escapar da penúria financeira. Nenhuma das versões pode ser atestada com segurança, diz Isabella. O que se conhece do dramaturgo sobrevive por meio das peças que escreveu. Ao todo, atualmente há 21 comédias de sua autoria. A produção de Plauto faz parte da chamada Comédia Nova Romana, ou comédia paliata. O gênero faz parte do período inicial da dramaturgia latina, entre os séculos III e II a.C. da república romana, um momento de florescimento cultural e literário. O nome vem de pálio, um pequeno manto usado

pelos atores nas encenações, em imitação ao vestuário usado pelos gregos. Já se imaginou que Estico seja uma de suas primeiras produções; as notas de produção informam que a peça foi montada em 200 a.C. Para Isabella Cardoso, autora da tradução anotada em português, essa é uma peça de fato singular, pois vários blocos de cenas, diferentemente de outras produções romanas do período, não apresentam uma conexão direta entre si, atuando mais como esquetes independentes do que como um enredo coeso. “Nessa obra fica mais evidente uma característica de Plauto: ele privilegia o efeito humorístico de cada cena. Não está tão concentrado na progressão do enredo, e sim no efeito cômico”, explica a pesquisadora. O nome da peça é baseado em um dos personagens centrais, um escravo fanfarrão. No momento, Isabella Cardoso está na Universidade de Heidelberg, na Alemanha, onde, junto com os professores Jürgen P. Schwindt, Melanie Möller (Heidelberg) e Paulo S. de Vasconcellos (Unicamp), organiza a criação de um novo Centro de Teoria da Filologia, com sede dupla na Unicamp e na instituição

ilustrações negreiros

Carolina Rossetti de Toledo



alemã. Previsto para ser inaugurado este ano, o centro investigará sobretudo os métodos empregados pela filologia clássica para avançar no conhecimento de obras literárias da Antiguidade clássica, como as comédias de Plauto. Entre os maiores desafios da tradução de Plauto, a pesquisadora aponta a dificuldade em manter as nuances de linguagem, a sonoridade do latim, as aliterações e os jogos de palavras. Sem falar no ritmo das peças, assunto que Beethoven Alvarez, da Unicamp, estuda sob a orientação de Isabella. “Traduzir qualquer comédia é um desafio e muitas vezes o tradutor acaba com a ingrata tarefa de ter de explicar a piada”, diz ela. Sua tradução de Estico recebeu em 2007 indicação ao prêmio Jabuti de Melhor Tradução e, em novembro de 2013, uma leitura dramática do grupo de teatro paulista Instituto Cultural Capobianco. “No Brasil, poucos estudiosos de teatro e literatura conhecem Plauto. Por isso, tem sido fascinante a experiência dos atores, que se mostraram surpresos com a atualidade e graça das peças.” Segundo Nadia Berriel, responsável pela curadoria da leitura dramática de Estico, a expectativa ao se ler uma peça da Antiguidade é encontrar dificuldades na compreensão do vocabulário e dos temas tratados nas peças. “Mas foi sur-

80  z  fevereiro DE 2014

preendente o senso de humor não datado e de fácil compreensão de Plauto, assim como as semelhanças das personagens de Estico com tantos outros tipos cômicos presentes em textos teatrais muito posteriores. Ler Estico foi como beber na fonte dos grandes comediógrafos”, diz ela. Para Nádia, a leitura enriquece o imaginário do leitor contemporâneo. “Também nos permite reconhecer tanto diferenças quanto semelhanças entre nós, indivíduos do século XXI, e a humanidade de períodos tão antigos.” Neste ano, o Instituto Capobianco estuda montar duas peças do dramaturgo, a partir de novas traduções de Anfitrião e Casina feitas por Lilian Nunes da Costa e Carol Martins da Rocha, orientandas de Isabella. O lançamento dos livros está previsto para este semestre. Herança grega

A primeira tradução da épica grega Odisseia para o latim, realizada pelo ex-escravo Lívio Andronico, marca o início da literatura romana por volta de 240 a.C. A Comédia Nova Romana, produção literária surgida também nesse período, é caracterizada sobretudo pela atmosfera familiar, com tipos sociais padronizados (escravo, jovem, pai etc.), contrastando com os personagens políticos ou fantásticos (deuses, heróis) da comédia grega

antiga. Comuns na Comédia Nova Romana (e ausentes de Estico) são os enredos amorosos impossíveis, sobretudo por histórias de um jovem que se enamora de uma moça, em geral uma escrava, meretriz ou mulher com quem, pelas regras sociais, ele não poderia se casar. O jovem, não dispondo de dinheiro para financiar o relacionamento, recebe ajuda de um escravo esperto. De acordo com Isabella, esse personagem, central e recorrente na obra de Plauto, elabora um plano para obter recursos, ação que invariavelmente envolve enganar alguém. As comédias de Plauto são traduções e adaptações de obras gregas anteriores. Em particular, de três grandes dramaturgos: Menandro, Dífilo e Filemão. Indícios da tradição grega se fazem evidentes em trechos dos diálogos e nos personagens, como, por exemplo, o nome do cômico Gelásimo, da peça Estico, deriva do grego “aquele que faz rir”. Segundo Isabella, expressões gregas deste tipo poderiam ser assimiladas com facilidade pela população em Roma em razão das constantes trocas comerciais e da aproximação militar entre Roma e Grécia no século III a.C. As peças de Plauto foram produzidas para ser encenadas durante os jogos cênicos, festivais religiosos organizados pelos políticos locais em homenagem a um ou mais deuses. Uma das qualidades mais notáveis das peças de Plauto, segundo a pesquisadora, é sua habilidade em construir cenas de humor por meio da movimentação e gestualidade dos atores. “Comparado com o que se sabe da comédia grega, o humor plautino é mais caricatural, exagerado, bufonesco”, diz Isabella, que em janeiro terminou um capítulo para o Cambridge Companion to Roman Comedy, detalhando o uso de recursos humorísticos não verbais em Plauto e Terêncio, escritor de uma geração posterior ao do dramaturgo. Brigas, chutes e cenas de comédia pastelão são bem mais frequentes nas obras plautinas do que nas de Terêncio. Outro aspecto que diferencia Plauto dos demais escritores de seu tempo é o modo como ele distribuía os papéis entre os personagens. Diferentemente de Terêncio, por exemplo, que dava voz também aos que expressavam preocupações morais de cidadãos comuns da sociedade romana, os papéis mais importantes em Plauto são, em geral, dedicados a meretrizes, escravos espertalhões, pa-


rasitas sociais e outros tipos populares. Em Miles Gloriosus, Pirgopolinices é um soldado vaidoso e fanfarrão, em Casina uma jovem escrava é disputada por dois apaixonados, em Asinaria, peça também conhecida como A comédia dos burros, o personagem central é o velho avarento Demêneto, que tenta enganar sua mulher em troca de dinheiro. Esse humor contrasta com o tom mais sério da comédia A sogra (Hecyra), de Terêncio, peça que Aline Lazaro, da Unicamp, investiga sob orientação de Isabella. O teatro do mundo

Além de ter obtido reconhecimento como comediógrafo em seu tempo, Plauto serviu de referência para muitos outros escritores. Alguns recursos usados por ele em suas peças, como os enredos sobre triângulos amorosos, a crise de identidade de seus personagens e a referência do teatro dentro do próprio enredo, foram retrabalhados por Shakespeare, Molière, Camões e, no Brasil, por Ariano Suassuna em suas composições. Em Plauto há cenas que funcionam como peças dentro das peças, com referências constantes à encenação, aos atores e espectadores. Esse tipo de metalinguagem produz um efeito de quebra da ilusão dramática e rompe, propositadamente, a sensação de verossimilhança. “Quando Plauto apresenta o ator como um enganador, fica enfatizada a ideia de que o teatro equivale a engano. Essa é uma estratégia muito

desenvolve em Tebas, quando Júpiter é tomado de amor por Alcmena e assume a forma de seu marido, Anfitrião, general grego que comanda legiões tebanas. Júpiter é auxiliado por Mercúrio, que por sua vez assume a forma de Sósia, o escravo de Anfitrião. Júpiter engravida Alcmena, que dá à luz Hércules, um semideus. Quando retornam da guerra, Anfitrião e Sósia deparam com seus duplos, o que em Plauto resulta em situações cômicas e uma sucessão de mal-entendidos. Esta história, observa Isabella, reaparece na literatura readaptada ao ambiente lusitano por Camões em 1587 e na França do século XVII na peça de Molière de mesmo nome. O francês adaptou também Aulularia em seu O avarento, mudando ambientes, renomeando personagens e introduzindo situações compatíveis com o teatro do século XVII. A mesma Aulularia, traduzida como A comédia da panela, foi a inspiração para o pernambucano Ariano Suassuna escrever Plauto já usava metalinguagem, O santo e a porca, a com cenas que funcionam como história do avarento Euricão, devoto peças dentro das peças de Santo Antônio, que guarda suas economias numa porca de madeira. usada por ele justamente para produzir “O interesse pelo estudo das recepções um efeito cômico”, diz Isabella. “Shakes- dos clássicos tem aumentado no Brasil. peare, por exemplo, além de aproveitar Neste sentido, faz parte do estudo atual partes de enredos de Plauto, usa a noção sobre a poética de Suassuna entender code teatro dentro do teatro de modo pare- mo ele retrabalha aspectos da Antiguidacido com como o escritor romano fazia.” de com uma roupagem nordestina”, diz a Essa concepção de que o “mundo é um pesquisadora, que orienta uma pesquisa teatro”, expressão conhecida por mui- específica sobre a recepção de Plauto em tos a partir do segundo ato da peça As Suassuna. Um texto em coautoria com you like it (como gostais), de Shakespea- sua aluna Sonia Aparecida dos Santos sere, seria, portanto, uma possível alusão rá apresentado este ano em conferência a uma ideia antiga, que se destaca em no University College London. n Plauto. Da mesma forma, a última peça shakespeariana A tempestade explora o mesmo enredo de Plauto em Rudens: Projetos 1. Plauto, Anfitrião (nº 2011/17284-6); Modalidade Auxílio um grupo de náufragos chega a uma ilha Regular a Projeto de Pesquisa – Publicações Científicas; desconhecida e misteriosa. As alusões do Pesquisadora responsável Isabella Tardin Cardoso/IELpersonagem Próspero ao teatro e à ilusão -Unicamp; Investimento R$ 5.000,00 (FAPESP). 2. Plauto, Casina (nº 2011/17283-0); Modalidade Auxílio dramática podem ser vistas como igualRegular a Projeto de Pesquisa – Publicações Científicas; mente vestígios de uma relação entre o Pesquisadora responsável Isabella Tardin Cardoso/IELmestre inglês e o dramaturgo romano, -Unicamp; Investimento R$ 5.000,00 (FAPESP). 3. A fuga da sogra: poesia, humor e família em Hecyexplica a pesquisadora. ra (nº 2012/00726-9). Modalidade Bolsa de Iniciação A crise de identidade de Hamlet enCientífica; Pesquisadora responsável Isabella Tardin Carcontra paralelos na troca de identidades doso/IEL-Unicamp; Bolsista Aline Lazaro; Investimento R$ 4.627,92 (FAPESP). de Anfitrião. A trama dessa comédia se pESQUISA FAPESP 216  z  81


Patrimônio y

Outros sertões Estudo revela a arquitetura rural do século XIX no interior do Nordeste Juliana Sayuri


fotos  Nathália Diniz

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sertão é do tamanho do mundo, dizia Guimarães Rosa. Dizia como ainda dizem os que se enveredam pelos tortuosos caminhos dos rincões nordestinos em busca de histórias, respostas, saberes. Não raro, porém, muitos retornam dessas terras ainda mais intrigados com novas questões. A pesquisadora Nathália Maria Montenegro Diniz mergulhou diversas vezes nesse território. Ali nasceram a dissertação de mestrado Velhas fazendas da Ribeira do Seridó (defendida em 2008) e a tese de doutorado Um sertão entre tantos outros: fazendas de gado nas Ribeiras do Norte (em 2013), ambas realizadas sob orientação de Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Nessas empreitadas, ela encontrou não apenas respostas a seus estudos sobre a arquitetura rural do século XIX sertão

adentro, mas também questionamentos novos que deram fôlego para um novo projeto de pesquisa, vencedor da 10ª edição do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival do Prado Valladares, divulgado em dezembro. O projeto O conhecimento científico do mundo português do século XVIII, de Magnus Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz, também foi premiado. Os vencedores foram escolhidos entre 213 trabalhos inscritos pela originalidade dos temas. O prêmio inclui a produção e publicação de um livro, sem valor predeterminado. É difícil desvencilhar a história pessoal de Na­ thália Diniz de seu itinerário intelectual. De uma família de 11 filhos originária de Caicó, na região do Seridó, interior do Rio Grande do Norte, ela foi a primeira a nascer na capital potiguar. Em 1975, a família mudou-se para Natal – professores de matemática por ofício, os pais pretendiam ofe-

Casa da fazenda Sabugi (ao lado) e casa da fazenda Almas de Cima (acima), ambas no Rio Grande do Norte: preservação ainda precária

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Exemplos da arquitetura sertaneja na Paraíba: andar do sótão de casa da fazenda Dois Riachos (à esquerda); sede da fazenda Sobrado (abaixo); e casa da fazenda Santa Casa (à direita)

recer melhores condições educacionais para os filhos. Nas férias e feriados todos retornavam à pequena cidade, onde ficavam em uma das casas das fazendas que pertenceu ao tataravô da pesquisadora. “Logo cedo pude notar as visões diferentes construídas sobre o sertão nordestino. As casas que eu via não eram as mesmas retratadas nas novelas de época, da aristocracia rural. Era outro sertão”, lembra. Graduada em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Nathália quis explorar os outros sertões esquecidos no século XIX, mais especialmente no Seridó, uma microrregião do semiárido que ocupa 25% do território do estado. Lá o povoamento se iniciou no século XVII com as fazendas de gado e o cultivo de algodão. Ainda estudante, deu o primeiro passo nessa direção quando participou de um projeto de extensão que investigou os núcleos de ocupação original do Seridó a partir de registros fotográficos e fichas catalográficas feitas por estudantes e pesquisadores. Descobriram, assim, que essas casas, posteriores ao período colonial, mantinham características herdadas da arquitetura colonial ao lado de elementos ecléticos modernos. 84  z  fevereiro DE 2014

Uma vez bacharel, Nathália viajou a São Paulo para participar de um encontro de arquitetos e deparou com o processo seletivo para mestrado na FAU. Decidiu, então, despedir-se do Nordeste para estudar na capital paulista. “Foi preciso partir para poder redescobrir os sertões”, diz ela. Para seu projeto de dissertação, a jovem arquiteta tinha um trunfo: a originalidade da pesquisa sobre as casas de Seridó. “Quase ninguém conhece aquele patrimônio. Quis apresentar essa realidade nas minhas pesquisas.” Acervo arquitetônico

Nathália investigou o acervo arquitetônico rural do Seridó, de formas simples e austeras, sem o apelo estético de outros exemplares do litoral nordestino. Essas construções, entre casas de famílias, casas de farinha e engenhos, representam um tipo de economia do século XIX alicerçado no pastoreio e no cultivo de algodão. Embora fundamental para a identidade da região, segundo o estudo, esse acervo composto por 52 edificações conta com poucas iniciativas concretas para tornar viável sua preservação. No início do século XVII, com o povoamento do interior do Rio Grande do

Norte, sesmeiros pernambucanos fincaram raízes no Seridó. Foi no século XVIII que surgiram as casas na região feitas de taipa, com madeiramento amarrado com couro cru, chão de barro batido e térreas, com telhado de beira e bica. Lentamente, as casas de taipa passaram a alvenaria, com tijolos apenas na fachada. Por fim, no século XIX, o Seridó ficou marcado pela construção de grandes casas de fazenda, habitadas pelo proprietário, familiares, agregados e escravos. No doutorado, a arquiteta expandiu horizontes, territoriais e teóricos. Por um lado, debruçou-se sobre a arquitetura rural vinculada às fazendas de gado nos sertões do Norte (atuais estados da Bahia, Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte). Ela mapeou um acervo de 116 casas-sede a partir de levantamentos arquitetônicos do Piauí, Ceará e Bahia. A fim de melhor compreender o patrimônio material e imaterial nas habitações rurais dessa região, entrou nos campos da história social e da história econômica. Do inventário de 116 casas-sede alicerçadas em pedra bruta, erigidas em diferentes ribeiras (Ribeira do Seridó, do Piauí, da Paraíba, dos Inhamuns e


fotos  Nathália Diniz

do São Francisco e Alto Sertão Baiano), a pesquisadora notou a heterogeneidade das construções arquitetônicas nas rotas do gado no Nordeste, que mantinham um mercado interno agitado, embora desconhecido, no calcanhar da economia do litoral exportador. Eram ainda construções pensadas para a realidade sertaneja, De acordo com sótãos e outras com a estruturas propícias para arejar os ambienpesquisadora, tes castigados pela alta temperatura e pelo a arquitetura tempo seco. Contornando rirural sertaneja beiras e atravessannão segue do sertões, Nathália Diniz construiu suas modelos investigações a partir de vestígios de tijolo, pedra e barro. Muitas casas de taipa, mencionadas nos arquivos, não resistiram ao tempo e desapareceram. Restaram fazendas formadas por casas-sede e currais. Entre arquitetônica das casas-sede, explorando as características da maioria das constru- uma lacuna na historiografia brasileira ções estavam à disposição dos ambientes: sobre as relações sociais e suas conseos serviços nos fundos do terreno, com quências materiais nos sertões, ainda tachos de cobre, pilões, gamelas; e a in- hoje um universo inóspito e incógnito, timidade da vida doméstica no miolo das marcado por longas distâncias e imensos edificações, com mobiliário trivial, como vazios. Esses territórios ficaram esquecimesas rústicas e redes, assentos de couro dos, apesar de presentes na literatura e e de sola, baús e arcas de madeira. Em nos relatos memorialistas. Daí brotaram muitas fazendas, em paralelo a criação generalizações sobre o Nordeste e sua de gado, cultivaram-se cana-de-açúcar arquitetura rural, ainda compreendida a e mandioca, de onde viriam a rapadura partir dos padrões dominantes da Zona e a farinha, que, ao lado da carne de sol, da Mata pernambucana e do Recôncavo tornaram-se a base da alimentação ser- Baiano – o que, nas palavras da pesquisataneja. “A arquitetura rural não segue dora, não condiz com a realidade. modelos”, diz Nathália. “Os primeiros proprietários dessas casas eram filhos dos Originalidade do tema antigos senhores de engenho do litoral. O novo trabalho será bancado com o Se a arquitetura rural tivesse um modelo, prêmio ganho em dezembro e deseneles teriam construído casas similares às volvido com o apoio de Beatriz Bueno, de seus pais no litoral, o que não ocor- da FAU-USP. “O projeto de Nathália foi reu. A arquitetura dos sertões mostra a escolhido pela originalidade do tema e formação de uma sociedade a partir da pela oportunidade que nos proporciona interiorização dos sertões do Norte, de de compreender o processo de ocupauma economia marcada pelo gado.” ção do sertão brasileiro e suas dimenDepois do doutoramento em São Pau- sões econômica, histórica e social”, diz lo, a pesquisadora retornou a Natal, onde o coordenador do Comitê Cultural da é professora de história da arte e de ar- Odebrecht, Márcio Polidoro. Na econoquitetura no Centro Universitário Facex. mia, ela destacará o ferro que marcava o Seu projeto atual é aprofundar a análise gado e que permitia identificar a fazenda

à qual pertencia – até agora, a pesquisadora já coleciona 653 desenhos de ferro diferentes. “Num sertão disperso, sem fronteiras claramente visíveis, pontuado por tribos indígenas inimigas, o gado carregou a representação do território e da própria propriedade dos que vinham de outros lugares”, define. Na sociedade, ao cruzar os inventários post-mortem encontrados nos arquivos e nas casas, pretende compreender e revelar a vida cotidiana do sertanejo que se desenrolava a morosos passos no século XIX. Fará novas viagens para refazer fotografias e rever anotações. Mais uma vez, um retorno às suas raízes e às terras, tão diferentes das que via nas novelas na sua infância. “Ainda procuro o que buscava desde o início: quero mostrar o que eram esses outros sertões. Nós conhecemos a riqueza da arquitetura litorânea, a arquitetura do açúcar e do café. Falta a arquitetura sertaneja”, conclui. n

Projeto Paisagem cultural sertaneja: as fazendas de gado do sertão nordestino (nº 2009/09508); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno; Bolsista Nathália Maria Montenegro Diniz; Investimento R$ 130.587,92 (FAPESP).

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memória

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Histórias na gaveta Maior parte das pesquisas de Emil Snethlage, realizadas com indígenas em Rondônia nos anos 1930, permanece inédita Neldson Marcolin

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A

Alemanha guarda desde os anos 1930 registros únicos de indígenas do alto rio Madeira e do vale do rio Guaporé, em Rondônia. São informações sobre costumes, localização, anotações de palavras e frases de línguas de etnias em via de desaparecer, além de fotografias, um filme mudo de danças e rituais, músicas gravadas em cilindros de cera, 2.400 objetos e depoimentos de nativos, que auxiliariam os descendentes dos habitantes daquela região a resgatar um período de sua própria história. Parte desse acervo está disponível para consulta no Museu Etnográfico de Berlim e no Arquivo Fonográfico de Berlim. Outra parte, igualmente importante, permanece inédita com Rotger Snethlage, filho do etnólogo Emil-Heinrich Snethlage, pesquisador alemão que realizou um extenso trabalho de coleta e observação durante duas longas visitas ao país. Emil Snethlage (1897-1939) era sobrinho de Emilia Snethlage (1868-1929), ornitóloga alemã contratada por Emílio Goeldi para o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém, no ano de 1905. Emilia é uma das principais cientistas da história do museu, que dirigiu em duas ocasiões. As histórias e cartas da tia inspiraram o filho


fotos  Acervo da família Snethlage

de seu irmão a seguir carreira científica como pesquisador viajante. Aconselhado por ela, Emil estudou botânica e se doutorou em 1923 em Berlim. No mesmo ano ele veio para o Brasil e iniciou uma expedição – acompanhada em parte por Emilia – por vários estados do Nordeste para ajudar a formar uma coleção para o Museu Field de História Natural de Chicago, nos Estados Unidos. Orientado pela tia, Emil catalogou 449 espécies de aves e escreveu três artigos para o Journal für Ornithologie. Também encontrou vários povos indígenas pelo caminho, sempre tomando notas sobre sua cultura. Voltou para a Alemanha em 1926 e uma palestra na Sociedade Berlinense de Antropologia o levou a ser contratado como assistente pelo Museu Etnográfico de Berlim. Rapidamente Emil deixou a botânica e a zoologia em segundo plano para abraçar a etnologia. Em 1933 voltou ao Brasil a serviço do museu berlinense e conheceu o vale do rio Guaporé, na parte fronteiriça entre Brasil e Bolívia, a mesma região visitada por Claude Lévi-Strauss anos mais tarde. Snethlage ficou na área até 1935 e esteve em contato com pelo menos 13 etnias. Nesse período escreveu um extenso diário, além de fazer gravações, fotos e pelo menos um filme mudo. “Os estudos feitos por ele são o único registro científico e sistemático daqueles povos indígenas entre as décadas de 1930 e 1950, mas permanecem inéditos na maior parte”, diz Gleice Mere, jornalista e fotógrafa pós-graduada em

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1 Snethlage na reserva técnica do Museu Etnográfico de Berlim, nos anos 1930 2 Sequência de filme mudo de Snethlage mostra índios Amniapé e Guarategaja jogando bola de látex, que podia ser tocada exclusivamente com a cabeça (s/d) 3 Índio Apinajé, provavelmente no Maranhão (s/d)

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design fotográfico na Alemanha. Ela é a procuradora do acervo de Emil Snethlage no Brasil e pesquisadora independente, sem vínculo institucional. Na edição de setembro-dezembro de 2013 do Boletim do MPEG – Ciências Humanas ela publicou um artigo científico com notas biográficas, análise das duas expedições do pesquisador e cartas do etnólogo Curt Nimuendajú. Emil escreveu 1.042 páginas de diário de campo. Não conseguiu publicar a maior parte dos estudos feitos no Brasil porque morreu precocemente, aos 42 anos, em consequência de uma embolia pulmonar. “De acordo com Rotger”, conta Gleice, “depois da morte do pai, sua mãe, Anneliese, datilografou o manuscrito e o protegeu dos nazistas – Emil não era membro do partido de Hitler – e dos bombardeios a Berlim”. Hoje, Rotger, na Alemanha, e Gleice, no Brasil, tentam obter financiamento para publicar esse material.

“O diário de campo de Snethlage é um material riquíssimo para antropólogos e descendentes dos povos indígenas visitados por ele”, diz o linguista holandês Hein van der Voort, pesquisador do MPEG, que trabalha com os índios do Guaporé e teve acesso ao manuscrito. Em 2009, nove índios daquela região visitaram museus da Basileia (Suíça), Viena (Áustria), Leiden (Holanda) e Berlim. Eles levaram objetos originais de seus povos e conheceram os acervos indígenas dessas instituições. “Uma indígena reconheceu em uma gravação feita por Emil nos anos 1930 as músicas cantadas por seu pai; outro, de uma etnia que quase foi extinta, redescobriu nomes de antepassados, já perdidos no tempo”, conta Gleice, que acompanhou o grupo que viajou por meio de um projeto financiado por museus europeus e um antropólogo alemão. Se conseguirem publicar o diário de Emil em alemão e português, muitas outras informações se tornarão disponíveis. PESQUISA FAPESP 216 | 87


Arte

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Tributo à cultura popular Pesquisador e violeiro, Ivan Vilela lança livro sobre o universo caipira Lauro Lisboa Garcia

88 | fevereiro DE 2014

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ompositor, arranjador, pesquisador e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) na cadeira de viola caipira, história da música popular e percepção musical, Ivan Vilela, paralelamente à carreira de músico e instrumentista, vem contribuindo de forma incisiva para a valorização do instrumento que assumiu em 1995, bem como todo o universo que o envolve. Em 1997, quando lançou o primeiro de uma série de elogiados discos de viola, Vilela começou uma ampla pesquisa desse universo caipira, que transformou em tese de doutorado em 2007 e agora ganhou edição em livro: Cantando a própria história – Música caipira e enraizamento (Edusp). No prefácio, o professor Alfredo Bosi sugere que o livro “deve ser lido como um generoso tributo à cultura popular brasileira”. Vilela introduz o leitor ao universo da viola apresentando a história do instrumento, desde as origens árabes e ibéricas e as variações de modelos e afinações. Em seguida, com citações de vários clássicos im-

Ivan Vilela se apresenta em Goiânia em julho de 2013: a viola foi feita pelo luthier Vergílio Arthur de Lima, de Sabará


fotos  Isabel Vilela

portantes da música caipira, o autor analisa todo o histórico e as transformações por que passou a viola desde que chegou ao Brasil na época do Descobrimento – das raízes, passando pela urbanização diluída no mercado, até uma “volta às origens”. A ideia toda desse trabalho vem do doutorado feito na Psicologia Social da USP sob orientação da Ecléa Bosi, que trabalha com memória oral. “Fiz história antes de estudar música, não cheguei a terminar o curso, mas o que sempre me incomodou foi a falta de a história ser contada pela perspectiva do povo pequeno, que é um povo com o qual sempre lidei”, diz Vilela. A segunda metade do livro é composta de entrevistas com personagens desse “povo pequeno”, migrantes que contam suas memórias a partir de um questionário comum a todos. Muitas lembranças são associadas à música que se ouvia no rádio, veículo que Vilela considera de fundamental importância na difusão da música caipira e de viola a partir dos anos 1920. Centrando sua tese nas figuras do violeiro e do migrante, o pesquisador contesta teorias de estudiosos como a do sociólogo Waldenyr Caldas, especialmente na questão da radiodifusão, bem como a da popularização do disco, que teriam deturpado essa música que vem do sertão. “Quem faz música caipira nunca entrou no mérito da questão musicológica, porque quem escreveu sobre isso normalmente foi historiador, cientista social, sociólogo. Há algo depreciativo na mídia sobre esse tema”, diz. “É um absurdo falar que esse tipo de música foi transmutada, prostituída a partir do disco. Não foi. Na realidade o disco e o rádio foram grandes armas de divulgação.” Na questão da identidade nacional e do regionalismo, ele levanta, entre outras questões, o preconceito com o linguajar do caipira e uma série de características que são tratadas com desdém pela elite urbana. “Com o advento da República, em fins do século XIX, o ideal positivista fez com que toda a tradição oral ligada à escravidão e às relações patrimoniais fosse jogada fora”, diz o pesquisador. “E antes, quando a nossa cultura popular estava sendo criada, nos séculos XVIII e XIX, a elite estava olhando para fora, tentando ser europeia. Ela não presenciou esse processo

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Tipos de viola caipira: Minervino, viola de Queluz e viola do Zé Coco do Riachão

sócio-histórico e ainda hoje vê essa cultura e não a reconhece como sua.” Vilela alerta para o alto grau de complexidade das composições, que se nota a partir da transcrição para a partitura. “Como é uma música que está presa ao texto, as divisões de tempo são totalmente atípicas, muito complicadas, difíceis mesmo de ler”, diz. São outros parâmetros, diferentes da sofisticação harmônica que se valoriza dentro da MPB, segundo ele. “As texturas construídas em música folclórica, em música caipira, a gente que estuda não é capaz de fazer. Há outras sofisticações que nunca foram levadas em conta, principalmente por causa da depreciação sócio-histórica.” Há um CD acompanhando o livro, Paisagens, que o violeiro lançou em 1998, interpretando uma maioria de composições próprias. O refinamento de seu trabalho, desde esse disco complementar ao livro, representa tanto uma abertura como a manutenção de um ideal dentro do universo caipira. O autor diz que a mensagem subliminar que há no livro é a defesa da cultura popular como assunto de segurança nacional, como ele vê nos países desenvolvidos. “Todo esse sentimento de nação, de coletivo, de povo, que existe nesses países, vem de pensar conjuntamente, e não individualmente como fazemos no Brasil”, observa. “Isso está ligado à cultura popular.” n PESQUISA FAPESP 216 | 89


conto

Congresso Internacional do Medo Ivana Arruda Leite

Começa hoje, em São Paulo, o Congresso Internacional do Medo, no teatro da Aliança Francesa. Idealizado pelo filósofo e jornalista Adauto Novaes, o encontro homônimo ao poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940, em Sentimento do mundo, reúne 14 intelectuais estrangeiros e do Brasil para falar da relação entre medo e política. [Folha de S. Paulo, 24 de agosto de 2004]

É

sabido que depois do ataque às torres gêmeas não há quem durma sem remédios, quem festeje o aniversário sem pensar que talvez seja o último, quem ainda queira colocar filhos no mundo. Eu mesma renunciei a esse projeto no dia seguinte ao atentado. Desde o acontecido, o cheiro da fumaça, os gritos, a lembrança dos corpos saltando, a grossa camada de cinzas nas calçadas intoxicam meu espírito e obnubilam meus pensamentos, que nunca foram dos mais cristalinos. Hoje de manhã tudo voltou à lembrança ao receber um telefonema do Brasil me convidando para participar do Congresso Internacional do Medo. O evento será realizado em São Paulo no mês que vem para celebrar o terceiro aniversário da tragédia. O organizador ficou de me mandar a programação por e-mail. Prometi pensar sobre o assunto mas fui logo avisando que nunca mais pus os pés num avião nem passei perto de aeroporto. Não posso nem pensar em voar para um lugar tão longe da minha casa. Outro dia uma sobrinha minha fez aniversário em Elizabethtown, mas cadê coragem pra ir?

90 | fevereiro DE 2014

Cabe a intelectuais como você apontar caminhos para que possamos sobreviver ao medo e não sermos paralisados por ele, escreveu o organizador no e-mail que me enviou. Fiquei lisonjeada ao ver meu nome ao lado de pensadores ilustres que, como eu, têm se debruçado sobre o medo como objeto de estudo. Ah, caro senhor, soubesse eu o caminho para superar o medo e não viveria no estado que tenho vivido. Deus sabe quanto me custa sair da cama pela manhã, ir à universidade, dar aulas, corrigir provas, fazer reuniões e voltar correndo pra casa antes que escureça, tomar meus remédios e dormir até o dia seguinte, quando o despertador toca e o tormento recomeça. Ph.D. em Antropologia pela Columbia University, estudo a história do medo há muitos anos. Tenho centenas de artigos publicados sobre o assunto no mundo todo. O medo primitivo do homem primitivo; O medo médio do homem da Idade Média; O medo da morte nos silvícolas da América Central; O medo moderno do homem do século XX; O medo como pauta para o século XXI; O medo do medo é o pior dos medos e por aí vai. Do primeiro vagido ao último suspiro vivemos sob a égide do medo. Não só ao nível do sujeito, na escala individual, como na escala social, posto que as sociedades civilizadas têm seus pilares fincados no medo. O medo faz parte constitutiva do ser humano. Eu o chamo de exoesqueleto emocional, já que sem ele não paramos em pé. O farol do medo ilumina nossos passos desde que pusemos o pé pra fora da caverna. Graças a ele chegamos sãos e salvos até aqui. Olhando minha produção acadêmica, pode-se ver que sempre tive o medo em grande conta e enalteci-lhe as virtudes.


laura teixeira

Mas hoje isso é página virada. O terrível acidente das torres gêmeas me fez experimentar na carne o lado negro do medo, seu poder paralisante. O medo na verdade é um poderoso instrumento de tortura da alma humana. É assim que tenho vivido. Torturada pelo medo. Pra piorar, pelo que vejo na programação, a tendência do tal congresso é culpar-nos (os Estados Unidos e os americanos) pela instauração do medo como modus vivendi do século XXI. Que loucura! Como podem acusar-nos de espalhar o medo quando somos os que mais sofrem com ele? Somos vítimas e não algozes. O medo veio do Médio Oriente, senhores. Foi a turma do Bin Laden quem trouxe a notícia que o fim do mundo está próximo. Quem quiser achar que isso é fantasia americana, que ache. Um importante físico francês, integrante do Comissariado de Pesquisa Atômica, fará uma palestra sobre a ciência como ameaça da humanidade. Hoje somos capazes de construir bombas capazes de exterminar não sei quantos mundos iguais ao nosso. Mas eu pergunto: seriam os Estados Unidos e a ciência os únicos vilões dessa história? Não vejo na programação, por exemplo, nenhuma alusão à religião como propagadora mundial do medo. Não são elas que nos assustam desde o berço com demônios e ameaças de fogo eterno? Por que não cobrar explicações dos padres, bispos, rabinos e aiatolás que se regozijam em colocar-nos de joelho frente ao poder terrificante do sagrado? E as artes, não são elas também culpadas pelo estado de pânico em que vivemos? O que fizeram Picasso, Schoemberg, Stravinsky, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Kerouak, Ginsberg, Burroughs, Buñuel, Fellini, Godard, Kafka se não jogar uma pedra na plácida superfície do cotidiano e revelar-nos uma dimensão assustadora da realidade que desconhecíamos? E Freud? E Nietzsche? As artes, a psicanálise e a filosofia se dedicam com afinco à tarefa de deixar-nos num estado de insônia permanente.

Até os esportes têm lá sua parcela de culpa. O que são as Olimpíadas se não um espetáculo de horror a todos os que não conseguem alcançar o ideal da perfeição, do tempo recorde, da superação de obstáculos? Os fracos se apavoram diante de corpos com tamanha competência. E as babás, senhores, essas almas perversas que nos mitigam o medo quando ainda somos totalmente indefesos, fazendo com que sejamos perseguidos pelo resto da vida por lobos maus, bruxas com caldeirões ferventes, dragões que soltam fogo pelas ventas, velhinhas que trancafiam crianças em jaulas. Depois disso tudo, um emérito sociólogo português ainda tem coragem de falar que o terror é um “instrumento político do governo dos Estados Unidos”? Quanta insanidade. Pensando bem, nem acho que o Brasil seja o lugar ideal para a realização de um congresso desse tipo. Os brasileiros me parecem folgazões em excesso para analisar um tema tão sombrio. Seu destemor beira a inconsequência. Um povo que consegue chamar de festa um dos espetáculos mais aterrorizantes da face da terra está longe de poder compreender o medo com a seriedade que ele exige. Durante três dias a multidão entope as ruas das grandes cidades com gritos ensurdecedores e fantasias apavorantes ao som de uma música infernal. Isso sem contar os touros que saem desembestados, pisoteando quantos encontram pelo caminho. Eles resolvem o problema do medo na base da cachaça. E nós? Que saída temos? Por fim, leio que o simpósio é aberto a todos os interessados e reconhecido como curso de extensão universitária. Recebem o certificado aqueles que comparecerem a 75% das conferências. Prometi pensar no assunto, mas é certo que não irei. Ivana Arruda Leite nasceu em 1951, em Araçatuba; é mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou os livros de contos Falo de mulher e Ao homem que não me quis e os romances Hotel Novo Mundo e Alameda Santos. Também escreve livros infantis e infantojuvenis.

PESQUISA FAPESP 216 | 91


resenhas

Vertentes do medo, na saúde e na doença Maria Gabriela S.M.C. Marinho

A As doenças e os medos sociais Yara Nogueira Monteiro e Maria Luiza Tucci Carneiro (orgs.) FAP-Unifesp Editora 432 páginas, R$ 60,00

92 | fevereiro DE 2014

s doenças e os medos sociais é um livro que merece ser lido, consultado e indicado. Organizado por Yara Nogueira Monteiro, pesquisadora do Instituto de Saúde (SES-São Paulo), e pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro (FFLCH-USP), a obra é uma coletânea de 16 artigos distribuídos em quatro seções. Produzida por pesquisadores de diferentes instituições, a edição compõe o catálogo da Editora Fundação de Apoio da Universidade Federal de São Paulo (FAP-Unifesp). O livro é resultado de um seminário promovido em 2009 pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo (LEER-USP) – centro multidisciplinar de pesquisa criado em 2005 que se organiza em torno de diferentes núcleos. O Núcleo de Estudos sobre Discriminação promoveu o seminário que originou o livro. Com o propósito de relacionar as doenças, os aparatos de saúde, as intervenções estatais e paraestatais com o preconceito e a discriminação oriundos do temor provocado pela disseminação e contágio de males desconhecidos – ou insuficientemente controlados –, a obra reproduziu e ampliou a participação dos pesquisadores naquele seminário. Em razão do formato original, a publicação não oferece um tratamento estrito dos medos sociais relacionados com as doenças, mas um conjunto de proposições analíticas que convergem ou tangenciam a temática anunciada. A diversidade e amplitude de autores asseguram a variedade dos temas e das abordagens, mas evidenciam também uma acentuada assimetria na densidade dos artigos. A transposição imprimiu certa ambiguidade e tensão ao resultado. Ainda que a obra em seu conjunto mantenha relevância e interesse, alguns capítulos teimam em escapar da temática proposta em direção às áreas de pesquisa nas quais os autores firmaram suas trajetórias acadêmicas. A ambiguidade mencionada pode ser verificada pela presença de conteúdos que não são exatamente inéditos, mas que, ainda assim, propiciam releituras pertinentes e bem-vindas. Para acomodar capítulos que não tratam exatamente dos medos e das doenças, mas de questões paralelas e relevantes para a pesquisa em saúde, as organizadoras adotaram recursos engenhosos na edição do material. Destinaram a última seção Fontes para a História

das Doenças aos artigos que identificam e discutem instituições, acervos e projetos relacionados com a institucionalização e disponibilização de documentos para a pesquisa na área da medicina, saúde, instituições e práticas médicas, de cura e cuidado. Em meio a artigos de grande interesse, entre os quais a excelente abordagem de Ana Maria Galdini Raimundo Oda, que traça o percurso do banzo no capítulo “Escravidão e nostalgia no Brasil: o banzo”, emergem aspectos que, se não comprometem, de certo modo fragilizam a qualidade do conjunto. Trata-se, no caso, da ausência de imagens nos dois capítulos inseridos na parte inicial do livro, O Imaginário sobre a doença. Ambos constroem suas análises a partir de objetos imagéticos: a charge e as artes visuais na expressão de ex-votos e da pintura de A virgem e o menino. Nos capítulos “Doença e medo: charges, sentidos e poder na sociedade midiática”, de Nilson Alves de Moraes, e “Arte e doença: imaginário materializado”, de Maria Izabel Branco Ribeiro, os leitores são privados da substância que compõe a análise, ou seja, as imagens. A omissão se torna uma lacuna praticamente imperdoável quando se confrontam a qualidade geral da edição e o ótimo projeto gráfico desenvolvido. As organizadoras foram hábeis na caracterização das seções que subdividem a coletânea. Além das partes mencionadas, encontram-se ainda as seções Doenças e medos na formação da sociedade brasileira e A difusão dos medos. Ao longo das subdivisões, se alinham trabalhos com novas temáticas, como o capítulo do experiente historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, “O caminho do medo: apagamento das raízes brasileiras do debate sobre o tabaco”. Outros pesquisadores igualmente experientes retomam seus repertórios de pesquisa, como Cláudio Bertolli, André Mota, Rita de Cássia Marques, Beatriz Kushnir e Yara Maria Aun Khoury. Amparados pela competência habitual, atualizaram ou amplificaram suas abordagens e contribuíram para qualificar a obra como referência no campo da história social da saúde, da medicina, da cura e do cuidado. Maria Gabriela S.M.C. Marinho é doutora em história social e docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde coordena o Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade. Atua também como pesquisadora associada do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP.


Trajetória intelectual e vanguarda Lisbeth Rebollo Gonçalves

O

fotos  eduardo cesar

Walter Zanini: escrituras críticas Cristina Freire (org.) Anablume / MAC USP / FAPESP 420 páginas, R$ 50,00

livro reúne um conjunto de textos de autoria de Walter Zanini, professor da Universidade de São Paulo (USP), falecido em janeiro de 2013. Zanini era historiador e crítico de arte, foi o primeiro diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, responsável por sua instalação junto à universidade. Alguns textos constantes da publicação são inéditos; uma grande parte resulta de sua reflexão motivada pelo desafio de construir um projeto para o novo museu que nascia em São Paulo; outros foram elaborados em função das suas curadorias na bienal ou de participação em eventos. Os temas são: museus e museologia, novas tecnologias em arte – em especial videoarte, que surgia na época, bienais, universidade, arquitetura de museus. E há também comentários sobre artistas modernos e contemporâneos, apresentações de exposições que organizou e textos sobre os desafios de um museu atento à atualidade da arte e da cultura. O projeto de publicação é de Cristina Freire, primeira professora titular do MAC. O livro resulta de seu trabalho de pesquisa sobre arte conceitual que a levou a investigar a gestão do professor Zanini, incentivador e introdutor dessa vertente da arte na instituição, ao promover eventos que resultaram na formação do mais importante acervo internacional da América do Sul nesse campo. Com a seleção de textos realizada, Cristina Freire desenha a personalidade intelectual de Zanini, ao mesmo tempo que revela seu perfil vanguardista no desafio de construir um novo museu da USP. O livro traz ainda cronologia de todas as exposições realizadas pela instituição na gestão de Walter Zanini, que se estendeu de 1963 a 1978. Em sua apresentação – um denso estudo sobre a prática intelectual de Zanini — a organizadora põe em evidência que, naquele período, o MAC-USP se tornaria um laboratório para os artistas, assim como seria um espaço de inovações pertinentes a um museu em coerência com as novas tendências da arte. Freire observa que “a serem levadas a outros contextos, essas ideias transformariam radicalmente as maneiras de conceber exposições e instituições nas décadas seguintes no Brasil”. Na leitura do ensaio da autora e dos textos que reuniu em Walter Zanini, escrituras críticas tem-se a oportunidade de conhecer a trajetória de Zanini e

seu legado à cultura brasileira. O livro é fartamente ilustrado com imagens de eventos e documentos de época, o que contribui para a reconstrução histórica dos primeiros 15 anos de trajetória do MAC. Alguns aspectos da prática intelectual de Zanini analisados pela autora devem ser salientados: a ideia de um museu que põe em convivência o acervo histórico e a contemporaneidade, transformando-se em lugar para a ação dos artistas – um museu como espaço operacional onde produção e recepção podem confluir; a procura de uma ação em rede, capaz de causar forte efeito sobre a realidade cultural, criando-se um trânsito de exposições e obras, de ideias e inovações no campo da arte e da museologia, com as mostras de arte postal e exposições itinerantes de acervo ou com exposições internacionais relevantes trazidas ao museu. Desenha-se o perfil de um diretor de museu que pensou a criação da Associação dos Museus de Arte do Brasil (Amab), a qual proporcionaria intercâmbios entre os museus brasileiros; um diretor que, mais tarde, em reunião dos Museus de Arte Moderna (Cimam), lançará a ideia de uma associação de museus latino-americanos e depois, quando foi curador da 16ª e 17ª bienais, projetaria uma associação de bienais. Portanto, um diretor que pensava práticas na esfera das políticas públicas. A autora informa que, para ampliar a comunicação com o público, além do boletim informativo mensal do MAC, Zanini concebeu um programa, que não se concretizou, de mostras para serem realizadas em um vagão de trem especialmente adaptado (o projeto chegou a ser feito por Lina Bo Bardi). Deslocando-se, o trem levaria às cidades do interior do estado de São Paulo exposições de arte e outras atividades culturais como conferências. A construção por Zanini de um acervo multimídia para o museu e suas inovações na organização da Bienal de São Paulo são outros pontos densamente analisados pela autora. O livro é leitura obrigatória para os interessados em arte e cultura, exposições e museologia. Lisbeth Rebollo Gonçalves é professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).

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carreiras

Empresas | Retribuição

Cientistas empreendedores Pesquisadores dividem o tempo entre institutos de pesquisa e as próprias empresas O físico Vladimir Airoldi, de 59 anos, se divide, há quase 17 anos, entre o trabalho como pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a administração de sua empresa, a Clorovale, também instalada na cidade paulista de São José dos Campos. Ele adaptou a tecnologia de diamantes sintéticos utilizados na indústria espacial para brocas odontológicas e outros equipamentos como brocas de perfuração de poços de petróleo. Hoje já exporta para países da América do Sul e Europa, e atingiu o faturamento de R$ 4 milhões em 2013. Airoldi começou a empresa em 1997, quando foi aprovado um projeto dentro do Programa Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe) da FAPESP. 94 | fevereiro DE 2014

“O Inpe tem o regime jurídico único, o que significa trabalhar 40 horas por semana, em período integral, mas não exclusivo”, explica. “Houve dias, quando estava montando a empresa, que trabalhei 20 horas.” Airoldi diz que quase todos os dias passa na empresa às 7 horas e às 8 horas já está no Inpe. Passa novamente na Clorovale na hora do almoço e à noite, depois do expediente no instituto, quando se dedica mais à empresa. Hoje ele tem diretores na administração, na parte comercial e tecnológica da Clorovale, muitos seus ex-alunos de doutorado. “O mais difícil é gerir a inovação, principalmente no início”, diz. Para melhorar a gestão, ele fez um curso de Master Business Administration

(MBA). “Também fui estudar a cultura de inovação em outros países”, diz. Airoldi poderia ter recorrido à Lei da Inovação e pedido licença do Inpe para tocar a empresa. “Mas a saída significa cortar o cordão umbilical do processo de inovação que é constante no Inpe”, explica. Outro físico, Spero Morato, de 70 anos, também montou a sua empresa com os conhecimentos adquiridos em mais de 30 anos de trabalho como pesquisador no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, onde chegou à superintendência, cargo equivalente à presidência. No caso de Spero, a ideia de fazer uma empresa veio após a aposentadoria, em 1995. “Fui chamado pela Organização das


foto arquivo pessoal  ilustraçãO daniel bueno

Nações Unidas (ONU) para dar cursos tecnológicos sobre aplicações de laser. Eu e outros professores demos cursos em vários países, mas eles terminaram em 1998. Quando voltei, percebi que poderia abrir uma empresa e foi o que fiz com um projeto aprovado no Pipe.” A empresa, a Lasertools, foi incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), que fica dentro do prédio do Ipen, na Cidade Universitária, em São Paulo. Ele convidou mais quatro pesquisadores do instituto que trabalhavam com ele na área de laser por algum tempo. Em 2009, Spero voltou para o Ipen depois de ter ganho o título de pesquisador emérito. “Estamos desenvolvendo tecnologias para produtos da área médica e de biotérios que depois poderão ser transferidas para outras empresas.” Hoje ele tem 25 funcionários na Lasertools e fatura cerca de R$ 2,5 milhões por ano na manufatura de peças automotivas, produtos médicos e promocionais com laser. Também criou outra empresa, a Innovatech, que foi a pioneira na produção de stents no país. Esses pequenos cilindros metálicos são colocados nas artérias do coração obstruídas por placas de gordura ou cálcio para refazer a passagem do sangue. No ano passado, ele repassou a tecnologia de fabricação para outra empresa, a Scitech, de Goiás. Para os novos pesquisadores empreendedores, ele recomenda ter a visão do produto final. “É uma condição pessoal ser empreendedor, mas o Brasil não precisa apenas de tecnologia de última geração, tem muita inovação possível de ser feita com a tecnologia importada, que não temos aqui.”

retribuição

Dívida paga Biólogo volta ao Brasil para instalar o primeiro laboratório de neuroproteômica da América Latina O biólogo Daniel Martins-deSouza retornou ao Brasil este mês depois de seis anos no exterior com uma dívida paga e uma missão científica ambiciosa. A dívida refere-se ao apoio que recebeu por oito anos em bolsas e auxílios da FAPESP. “Estudei em universidade pública, recebi financiamento de agência do Estado e creio ser justo trazer para o país o que aprendi nos anos que fiquei fora”, diz ele. A missão é instalar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) o primeiro laboratório de neuroproteômica da América Latina com a meta de desenvolver um método preditivo para a esquizofrenia. O projeto foi aprovado no âmbito do programa Jovens Pesquisadores, da Fundação. Martins-de-Souza percebeu sua predileção pela carreira científica cedo. O Departamento de Bioquímica da Unicamp tinha em seu programa de pós-graduação a política de admitir para doutorado direto os alunos que houvessem publicado artigos resultantes da iniciação científica. “Era exatamente o meu caso”, conta. Seu tema de estudo era a proteômica com a pretensão de descobrir aplicações para a saúde humana. Achou o orientador ideal quando conheceu Emmanuel Dias Neto, do Hospital A.C. Camargo, na época no Departamento de

Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Depois do doutorado, durante o qual passou seis meses na Alemanha, Martins-de-Souza fez um curto pós-doutorado na Unicamp, em seguida outro no Instituto de Psiquiatria do Instituto Max Planck (Alemanha), com bolsa paga pelos alemães, e um último pós-doc na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, a convite de Sabine Bahn, criadora do primeiro teste molecular para o diagnóstico de esquizofrenia. “Isso culminou com meus interesses em esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas”, diz ele. Agora, aos 34 anos, ele está de volta, mesmo com possibilidades reais de conseguir uma posição como professor na Europa e nos Estados Unidos. Vai montar o laboratório de neuroproteômica no Departamento de Bioquímica da Unicamp com auxílios de R$ 208.899,00 e US$ 329 mil, além de um espectrômetro de massa, que será concedido como equipamento multiusuário. A diferença de estrutura entre o que existe de pesquisa no exterior e a encontrada no Brasil ainda é grande. “Estamos começando o laboratório do zero, mas com o financiamento concedido e a colaboração indispensável dos meus colegas, entre eles, os professores Wagner Gattaz, do Instituto de Psiquiatria da USP, e Marcos Eberlin, do Instituto de Química da Unicamp, vamos equiparar essa condição”, conclui Martins-de-Souza. PESQUISA FAPESP 216 | 95


classificados

Concurso público para contratação de docente no CENA-USP O Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA-USP) está com inscrições abertas (entre 15/01 e 17/03/2014) para o concurso público para a contratação de docente junto à Divisão de Desenvolvimento de Métodos e Técnicas Analíticas e Nucleares. O salário é de R$ 9.184,94 para um regime de dedicação integral à docência e à pesquisa, referência MS-3. O programa do Concurso é baseado no conteúdo programático das disciplinas Métodos Instrumentais de Análises Químicas, Metodologia de Radioisótopos e Física Atômica e Nuclear. Maiores detalhes são disponíveis no Edital que pode ser acessado em: http://www.cena.usp.br/pt/concurso-publico http://www.usp.br/drh/novo/recsel/cargosdoc.html E-mail: cristina@cena.usp.br Fones: (19) 3429-4786 e (19) 3429-4611

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