O Brasil resgata a sua história

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Suplemento

Especial

o Brasil resgata a sua hist贸ria



ESPECIAL

O Brasil resgata a sua história Documentos trazidos de Lisboa falam da vida nas capitanias or trás do longo título Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, há um trabalho formidável de mais de uma centena de pessoas que a partir de 1996 vasculharam o acervo do Arquivo Ultramarino de Lisboa, e leram, decifraram, organizaram, microfilmaram e digitalizaram documentos, para ficar apenas nas tarefas mais evidentes que um empreendimento desse tipo abarca. Como efeito de um tal esforço há, no enCarta da costa do Brasil, dos padres Diogo Soares e Domingos Capaci: século 18 tanto, um resultado monumental, muito maior, em múltiplos sentidos, que a carga de trabalho investida: são gues às universidades, entre outras instituições. Mais adiancerca de 250 mil documentos referentes ao Brasil Colôte, essa documentação deverá se tornar acessível também nia, que trazidos ao país cumprem papel fundamental na pela Internet; democratizando ainda mais sua consulta. preservação da memória do Brasil. Mais: cumprem uma Quanto aos produtos mais intangíveis do Projeto, função de democratizar o acesso à informação, na medipor ora é impossível dimensioná-los. Mas os pesquisada em que se tornam acessíveis a qualquer interessado. dores diretamente envolvidos nesse resgate histórico estão convencidos de que ele é um marco referencial. Tanto Os documentos atingem, de certo modo, todos os aspectos da vida pública nas capitanias e mesmo aspectos que o evento organizado para seu encerramento em São da vida pessoal de seus habitantes entre os séculos 17 e Paulo, de 25 a 27 de-setembro, com a participação de historiadores brasileiros e portugueses, tem por título A 19. E por isso tornam-se uma fonte agora próxima e inesgotável de pesquisas em história e outras áreas das ciênHistória que Nasce do Projeto Resgate. Mais: ele está comcias humanas, que poderão lançar novas luzes sobre o binado com o simpósio Agenda da História para o Milêque fomos e o que hoje somos como nação. nio, cujos debates podem delinear uma nova política de Patrocinado pelo Ministério da Cultura, com a particicooperação luso-brasileira para a pesquisa histórica. pação de dezenas de instituições públicas e privadas de toNeste suplemento especial de Pesquisa FAPESP, pesdo o país- e em São Paulo financiado pela FAPESP- o Proquisadores brasileiros- incluindo o ministro da Cultura, jeto Resgate pode ser considerado emblemático dentro das Francisco Weffort - e portugueses expõem em detalhe comemorações dos 500 anos do Descobrimento. Seus prosuas visões sobre o Projeto Resgate, sobre seu significado dutos materiais são os microfilmes guardados na Biblioe prováveis desdobramentos. As entrevistas foram feitas teca Nacional, no Museu Histórico Nacional e nos arquivos pelos jornalistas Maria da Graça Mascarenhas, Mariluce públicos estaduais, abertos à consulta de todo interessado. Moura e Mário Leite Fernandes. O documento da capa é uma planta da baía de ParaSão os CD-ROMs que os reproduzem e os catálogos que connaguá, de 1653, recuperada pelo Projeto Resgate. têm os índices desses documentos e que vêm sendo entre-

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Ainda há mais para ser feito Projeto vai continuar em outros arquivos europeus ministro da Cultura, Francisco Weffort, considera o Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco uma obra emblemática do Ministério. Por isso, ele está sob controle direto de seu gabinete, em Brasília. Weffort pretende agora ampliar a busca e o registro de documentos do Brasil Colônia para outros lugares. • Como teve início o Projeto Resgate?

Francisco Weffort O ministro da Cultura do Brasil é professor titular do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Foi eleito chefe desse departamento em 1994. É também presidente do Conselho Superior da Facuidade Latino-Americana de Ciências Sociais. Paulista da cidade de Quatá, no oeste do Estado, tem o título de doutor em Ciência Política pela USP. Já lecionou e pesquisou nos Estados Unidos, Inglaterra, Chile e Argentina. Tem livros publicados no Brasil, Chile e Costa Rica.

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interessavam pelo Projeto. Estabelecemos diversas parcerias, com instituições privadas e públicas, no âmbito dos governos federal, estaduais e mumC!pats. • E os resultados?

- Os resultados já estão aí. Os documentos referentes a 18 capitanias, que correspondem hoje a 22 estados, já foram microfilmados e digitalizados para sua divulgação em CDROM. Os catálogos com os verbetes-resumo estão sendo publicados. Já se encontram no Brasil mais de 1.500 rolos, com cerca de 200 mil documentos. Eles estão à disposição de todos na Biblioteca Nacional e no Museu Histórico Nacional, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura. Os microfilmes vêm sendo entregues aos arquivos públicos estaduais, e os CDs, às universidades de todos os estados. Os institutos históricos e geográficos estaduais e obrasileiro têm sido igualmente contemplados com os CDs, eles que foram

-Tomei conhecimento das tentativas recentes e dos antigos sonhos relativos ao resgate dos documentos do Período Colonial existentes nos arquivos europeus, notadamente em Portugal, logo que assumi o Ministério. A ocasião era propícia para uma ação conjunta, de caráter nacional, diante da proximidade das comemorações dos SOO anos do Descobrimento do Brasil. Pedi ao embaixador Wladimir Murtinho que atuasse para viabilizar o Projeto. Ele, por sua vez, obteve a colaboração de uma funcionária da Fundação Biblioteca Nacional, Esther Caldas Bertoletti, que desde 1975 atuava como consultora na área de documentação e microfilmagem de documentos em todo o Brasil, com o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros. Então, convocamos todos os que, direta Vila Nova da Fortaleza de Assunção: Ceará, 1730 ou indiretamente, se

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os pioneiros, no século 19, da copiagem dos documentos no exterior. • Qual o significado e a importância disso para o Ministério?

-O significado e a importância do Projeto Resgate são exatamente o apoio à preservação da memória nacional e a facilitação do acesso às fontes, um preceito constitucional que o Ministério da Cultura se empenha muito em ver cumprido.

• Qual o volume de recursos liberados?

- O próprio Ministério da Cultura investiu cerca de US$ 1 milhão, em suas três modalidades, orçamentária, fundo de cultura e lei de incentivo fiscal. Outros ministérios também contribuíram, como o da Ciência e Tecnologia, por meio do CNPq, e o

• Quantas pessoas e instituições foram envolvidas?

nômica Federal, o Banco do Nordeste e o BEM-Fundação Clemente Mariani; de fundações, como a Vitae, a Waldemar Alcântara, a Demócrito Rocha e a Casa da Memória de Campo Grande; e de empresas, como a Auvepar, Telems, Microservice, Tap-Air Portugal e Varig. Houve a participação de algumas instituições portuguesas, públicas e privadas, como a Fundação Calouste Gulbekian e a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, além das luso-brasileiras, como o Real Gabinete Português de Leitura, a Fundação Cultural BrasilPortugal e a Federação das Associações Portuguesas e Luso-brasileiras. Como se vê, ocorreu um verdadeiro mutirão em favor da cultura e da memória nacional, onde todos apartaram alguma coisa e todos saíram gratificados, pelo desdobramento positivo e pela conclusão, dia a dia, de diversos projetas, cujos benefícios para o Brasil, podemos dizer, serão imensuráveis.

- Enumerar todas as pessoas e instituições que foram e estão envolvidas com o Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco não é tarefa das mais fáceis. Mas posso dizer, pelos relatórios fornecidos pela coordenação do Projeto, que mais de cem pessoas estiveram até agora diretamente ligadas a ele. Várias atuaram em Lisboa, lendo, decifrando os documentos em leituras paleográficas e organizando-os em -: : . . . • No âmbito das comemoracaixas após tê-los resumido em verbetes. Outras elaboções dos 500 anos do Desco7~~·.: ·.·.~ ·:.: brimento, como o Ministério raram os índices e organizaram a publicação dos catásitua o Projeto Resgate? Joaquim José da Silva Xavier pede à rainha licença para viajar logos aqui no Brasil. Várias - No momento mesmo empresas, em Lisboa e no Brasil, nos ajudaram na microfilmada Educação, por intermédio de di- · em que o presidente da República lançava em Porto Seguro, em 1996, a gem e na digitalização. A divisão de versas universidades. Não podemos agenda das comemorações, já se inmicrofilmagem da Biblioteca Nacioesquecer os governos dos estados, cluía o Projeto Resgate como um nal assumiu a tarefa de preservar os através de suas secretarias de Estado, microfilmes e duplicá-los para disdos projetos emblemáticos dos SOO principalmente as da Cultura, e suas seminação. Quanto às instituições anos. A essa altura, estava em desenfundações culturais. Tivemos tamvolvimento desde 1994, quando reparticipantes, tivemos seguramente bém as fundações de amparo à pescebeu os primeiros recursos orçauma média de cinco por estado, o quisa do Rio de Janeiro, Rio Grande mentários do Ministério da Cultura que nos dá, só para os conjuntos já do Sul, Minas Gerais e São Paulo, e e os primeiros aportes da Fundação microfilmados, 11 O instituições. Pomesmo alguns municípios, como o Vitae e do CNPq. Fomos buscar os demos somar cerca de 15 para os esde Olinda. Isso trouxe mais US$ 1 professores e pesquisadores que hatados que ainda estão sendo organimilhão. O restante dos recursos, viam sonhado em recomeçar o trabazados e verbetados em Lisboa, Pará, mais de US$ 1 milhão, veio da inilho que, por todo o século 19, ocupou Pernambuco e a segunda parte da ciativa privada, por meio de bancos, ilustres pesquisadores e historiadodocumentação do Rio de Janeiro. como o Banco Santos, a Caixa Eco-

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res, copiando à mão alguns dos mais significativos documentos, para a melhor compreensão da nossa história. Em torno dos trabalhos isolados, fomos formando uma cadeia nacional. Conseguimos vencer um desafio: organizar, identificar, ler, decifrar e elaborar verbetes-resumo, para depois microfilmar, como forma de preservação e de transferência da informação. Seguimos os moldes preconizados pela Unesco em suas resoluções sobre esse tema e em seu programa Memória do Mundo.

centram cerca de 80% dos documentos sobre o Brasil existentes no exterior.

melhor a memória brasileira e como uma forma de entender melhor o Brasil atual?

• E agora?

- Como professor universitário e pesquisador de ciência política, posso dizer da imensa capacidade que tem o povo brasileiro de encontrar em si mesmo as forças de sua permanente renovação. ~ Nada explicaria este g imenso território e es~ ta força sempre renovada se os brasileiros não tivessem um passado do qual podem orgulhar-se. É exatamente para relembrar os momentos do passado, para conhecer e melhor interpretar o que somos hoje, que esses documentos nos ajudarão, e muito, a valorizar a memória brasileira, a valorizar cada construção, cada estrada, cada árvore, cada animal, cada montanha, pois o ambiente que nos cerca é o cenário em que se desenrolou a nossa história. Se passamos por momentos mais difíceis e até incompreensíveis aos olhos de hoje, podemos sempre melhorar com a compreensão dos erros do passado.

-O trabalho do Ministério da Cultura não parou no Arquivo Histórico Ultramarino. No próximo ano,

• As novas tecnologias ajudaram?

-Sim. Com o avanço da tecnologia e da informática, pudemos pensar em duplicar e Cidade de Salvador, por Manoel Roiz Ferreira, 1786 disseminar o mais possível o conteúdo informacional dos documentos, de forma avançaremos com a documentação que ele chegasse a todos os pesquide outros arquivos portugueses, como o da Torre do Tombo, e a de sadores, universitários ou não. A transposição para CD-ROMs permiarquivos espanhóis, franceses, holandeses e italianos. Este ano, estate o acesso onde houver um compumos fazendo um mapeamento nestador com drive de CD. Isso signifises países, para sabermos o que ca que o estudante do interior da microfilmar e onde. Até o final de Paraíba ou do câmpus avançado da Universidade do Amazonas poderá 2000, estaremos com quatro guias ler os documentos da mesma forma publicados. A partir deles, vamos deque o estudante e o interessado em finir, juntamente com os pesquisahistória do Rio de Janeiro ou de São dores, o que microfilmar primeiro. Paulo. Isso significa a verdadeira deCreio que, pela sua importância, mocratização da informação. E já podemos pensar na documentamais. Com a ajuda das secretarias de ção dos arquivos espanhóis de SiCultura dos diversos Estados e de mancas, Sevilha e Tenerife, referenvárias universidades, através de suas tes ao período colonial brasileiro, editoras, pudemos editar os catáe nos documentos da Nunciatura logos, colocando no papel e ao em Lisboa no Arquivo Secreto do alcance de todos as informações Vaticano. O Projeto Resgate situa-se resumidas que remeterão aos docuna linha dos projetas especiais do mentos em verdadeiros fac-símiles, Ministério da Cultura, diretamente captados pela microfilmagem e diligado ao meu gabinete em Brasília. gitalização. Até junho do ano 2001, É um projeto emblemático. estarão no Brasil todos os documentos do Arquivo Histórico Ul• Como o senhor situa o Projeto na tramarino de Lisboa, onde se conimportância de preservar e valorizar 4

• E como isso pode influenciar a autoestima brasileira?

· - Conhecer melhor como foi fundada a nação brasileira, antes e depois da Independência, é talvez a forma de reflexão que levará cada vez mais o povo brasileiro a ser senhor do seu destino. O Brasil depende de nós. Nós somos o Brasil, como no passado colonial foram os habitantes destas terras, índios, negros e brancos amalgamados, que venceram as montanhas, cruzaram os rios e levaram as fronteiras do Brasil de hoje aos extremos nunca sonhados pelos que aqui primeiro chegaram às nossas praias. PESQU ISA FA PES P


Documentos abrem novas oportunidades Material poderá também ser colocado na Internet reocupado com a aproximação entre pesquisadores portugueses e brasileiros, o historiador José Jobson cita uma das grandes vantagens do Projeto Resgate: qualquer pessoa tem agora à mão o que antes exigia longas temporadas no Arquivo Ultramarino de Lisboa.

cumentação nova. Os dois primeiros volumes têm cerca de 400 páginas cada um. O terceiro, cerca de 200.

• As previsões feitas quando o resgate da documentação paulista começou, em agosto de 1998, eram de que seriam encontrados cerca de 6.500 documentos referentes à Capitania de São Paulo, dos quais mais ou menos 1.500 não estavam ainda inventariados. Esses números se confirmaram?

- Este material já está pronto. O trabalho esteve ligado ao projeto de São Paulo, mas foi realizado por pesquisadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Além dos documentos que esperávamos encontrar, foram descobertas mais ou menos 145 latas, com mais de 5 mil documentos, referentes a questões de

P José Jobson de Andrade Arruda O responsável pela coordenação do Projeto Resgate dos documentos da Capitania de São Paulo formou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1966. Nesta instituição fez mestrado, doutorado e livre docência. É professor titular de História Moderna. Ocupa também o cargo de coordenador da cátedra Jaime Cortesão, do Instituto de Estudos Avançados, e é membro do Conselho Superior da FAPESP. Foi chefe do Departamento de História e diretor do Instituto da Pré-História da USP, além de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia. PESQUISA FAPESP

- Sim, eles se confirmaram. Tínhamos antes pouco mais de 5.100 documentos, que faziam parte do catálogo organizado pelo historiador Mendes Gouveia, em 1954. Agora, foram encontradas cerca de 30 latas, que continham um pouco mais de 1.500 documentos. Em termos de números, está confirmado.

• Como os catálogos serão publicados? - Em dois volumes, mais um de índice. O primeiro volume é o catálogo de Mendes Gouveia, reavaliado, recondensado e retomado com procedimentos técnicos e políticas atuais. Quem conduziu esse processo foi a professora Heloísa Bellotto. O segundo volume é o da do-

• E quanto à documentação referente à parte mais meridional do país, subordinada à Capitania de São Paulo? Nenhum dos documentos relativos a essa área estava catalogado.

IMPRENSA ÜOOALI

Documentos C manuscntos avUlsos

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Catálogo 1 r1644 • 18JOJ

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José )obson de Andrade Arruda

Capitania de São Paulo: 6.500 documentos

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fronteira, à Colônia do Sacramento e a contratos referentes ao sal.

• Essa documentação nova trouxe revelações também novas? - Essa é uma preocupação que todas as pessoas têm. Querem saber o que há de novo. O que nós sabemos é o seguinte: essa documentação é uma documentação ampla. Ela fala da vida dos homens que viveram durante esse período aqui na colônia, na Capitania de São Paulo. Então, é claro que somente um trabalho em cima dessa documentação poderá dizer se há algo novo.

globalização; a história econômica; os movimentos sociais; a população, família e migrações; e a relacionada com a historiografia e a memória social.

tre Brasil e Portugal nos próximos 20 ou 30 anos.

• O que resultará disso?

• Qual será, então, o impacto do Projeto Resgate para o estudo da história do Brasil?

- Cada bloco será composto por 50% de historiadores portugueses e

-Acho que isso está mais ou menos consignado no título do congresso, A

• E o que virá agora? - Há o encontro neste mês de setembro: o congresso A História que Nasce do Projeto Resgate e o colóquio Agenda da História para o Milênio. A reunião na FAPESP, no dia 25, é apenas a abertura oficial do evento. Para a tarde, no Departamento de História da Planta de ranchos construídos no caminho de São Paulo a Santos: século 18 Universidade de São Paulo, está marcado um encontro do qual História que Nasce do Projeto Resgate. 50% de brasileiros. Cada pessoa vai participarão cerca de 30 pesquisadoCreio, verdadeiramente, que há uma elaborar um texto individual e todos, res portugueses e 60 brasileiros. Alem conjunto, farão um texto síntese. história nascendo do Projeto Resgate. guns dos maiores pesquisadores porEla vai nascer porque a massa de doEsses textos serão publicados num litugueses participarão desse encontro. cumentos que está chegando e fican São dois os objetivos desse encontro: vro, que deverá estar pronto até o fim do à disposição dos pesquisadores é do ano. Nele, estará o que cada pesconsolidar o Projeto Resgate, no que tão grande que, tenho certeza, grande é, de certa maneira, uma festa de enquisador pensa sobre como deve ser parte da história terá de ser reescrita. cerramento, e pensar na possibilidaa cooperação. de de abrir um Projeto Resgate 2, para • Um objetivo amplo, não é? • Haverá uma democratização? obter documentos sobre o Brasil em outros arquivos portugueses e de - Sim, acho que sobretudo é isso. - Sim, muito amplo. Fazer melhor vários países europeus. Passamos a ter a informação demoseria difícil. Pense, não é fácil trazer cratizada. Os documentos vão estar para um lugar no Brasil e pôr para • Mais alguma coisa? reunidos em CDs, que qualquer pesdiscutir 30 historiadores portuguesoa pode comprar. Além disso, preses de uma vez só. Não são só dois, - Sim, vamos aproveitar a oportutendemos, mais tarde, colocar todo três, cinco ou dez, são 30. Mais os nidade e colocar frente a frente os esse material na Internet. Já há um brasileiros. A lista dessas pessoas historiadores brasileiros e portugueprojeto relativo a isso na FAPESP. Aí mostra o que há de melhor nas hisses. Juntos, eles podem pensar quais será a democratização absoluta dessa toriografias brasileira e portuguesa. serão as diretrizes de nossa cooperação São essas as pessoas que vão pensar e documentação. na área da história, em seis áreas prinescolher nossas diretrizes. Esta será cipais. Temos as áreas da cultura e da • Há dois anos, quando fizemos uma uma espécie de política pública para religiosidade; os trabalhos relacionareportagem sobre o lançamento do a área de história na cooperação endos com o município, o poder local e a 6

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Projeto Resgate de Documentação Histórica Referente à Capitania de São Paulo, surgiu o dado de que o Ar-

quivo Ultramarino era muito mais visitado por pesquisadores brasileiros do que por portugueses. Isso continua a ser verdade? - Bem, foi feita uma estatística no Arquivo Ultramarino. Num período de quatro anos, ele foi visitado por cerca de 2.200 pesquisadores. Os brasileiros eram maioria absoluta. Representavam aproximadamente 1. 700 do total de 2.200.

começaram o contra-resgate em Pernambuco, na Bahia, nas outras capitanias. Ora, nós estamos trazendo de Portugal 250 mil documentos. Talvez, no final, o total chegue a 300 mil. Acho que o número de documentos que os pesquisadores portugueses vão microfilmar no Brasil, transformar em CDs e levar para Portugal

~ • Há exceções? r.::: ;~_~,J

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- Majoritariamente, recursos públicos. Foram bolsas pagas pela Capes, pelo CNPq, pela FAPESP e por outras fundações que permitiram aos pesquisadores ir ao Arquivo Ultramarino nesse período. É um custo que não teremos mais. Esse período se esgotou. O Arquivo e os pesquisadores portugueses terão como um presente, dado por nós, a documentação toda catalogada e microfilmada. Mas existe um contra-resgate. Planta de fortaleza no litoral de São Paulo

-No Brasil, há documentos fundamentais para a história de Portugal. Eles dizem respeito, principalmente, ao tempo em que a Corte Portuguesa se instalou no Brasil, com dom João VI. Eles ficaram, por exemplo, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os portugueses nem tinham noção de quantos documentos eram, nem de quais os interessavam. Então, ao fazermos o resgate de lá para cá, também fizemos um resgate da documentação que está no Brasil e que interessava aos portugueses. Esses documentos vão permanecer aqui. Os portugueses estão fazendo agora o levantamento no Rio de Janeiro. O total chega a perto de 100 mil documentos. Os portugueses ainda não PESQUISA FAPESP

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• Quem bancava isso?

• E qual é esse contra-resgate?

ses são muito caros no Brasil. Os brasileiros não são distribuídos lá. Além disso, também há um problema de língua. A sintaxe do português falado e escrito no Brasil não é muito agradável aos portugueses. A forma como os portugueses escrevem, por outro lado, não é muito agradável para o leitor brasileiro.

será equivalente ao dos que eles nos irão repassar.

• Quais são as perspectivas de um trabalho conjunto entre historiadores brasileiros e portugueses, inclusive a partir de toda essa documentação que vem sendo resgatada? -Bem, durante muito tempo houve um distanciamento. Brasileiros e portugueses se mostraram arredios, uns com relação aos outros. São poucos os livros de historiadores brasileiros que se encontram em Portugal. De forma semelhante, são poucos os livros de historiadores portugueses encontrados no Brasil. Há problemas editoriais sérios. Os livros portugue-

- Sim. Como historiador, eu pertencia à cadeira de História Moderna e Contemporânea, na Universidade de São Paulo. Ocatedrático era o professor Eduardo de Oliveira França. Ele achava que, para se fazer bem a história do Brasil, era necessário ligá-la, entrelaçá-la, à história de Portugal e da Europa. Em sua opinião, era difícil fazer a história do Brasil, sobretudo nos tempos coloniais, nos séculos iniciais da colonização, sem enlaçar a história do Brasil com a da Europa. Para ele, a idéia de que alguém pudesse fazer só história do Brasil, sem conhecer a história de Portugal, era uma idéia estúpida. E efetivamente não é?

• Houve algum resultado concreto desse trabalho? - O próprio professor França começou a fazer uma tese sobre a monarquia portuguesa. Trata-se de um estudo considerado até hoje como -de alto nível em Portugal. É reconhecido, em Portugal, como um excelente trabalho sobre o Estado monárquico português e sobre os fundamentos do Estado português. Ele fez outro trabalho, sobre a restauração portuguesa, que até hoje é considerado um clássico. Além disso, como na época os catedráticos tinham muita força, ele empurrava seus assistentes para prepararem teses sobre os assuntos nos quais tinha mais interesse.

• Há exemplos? 7


- Os professores que fizeram parte dessa cadeira seguiam à risca o menu do mestre França. O professor Fernando Antônio Navais, por exemplo, fez um estudo, chamado Portugal e Brasil na

Crise do Antigo Sistema Colonial, um estudo do sistema colonial e do império português, sobretudo nas suas relações com o Brasil, que é considerado um clássico. Outro historiador conhecido, Carlos Guilherme Mota, também estudou as relações entre Brasil e Portugal, especialmente pelas atitudes de inovação e as questões relacionadas com a Independência e a Revolução Pernambucana de 1817.

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Brasileira Contemporânea.

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• Na década de 1980, o senhor participou de uma espécie de projeto-piloto do Projeto Resgate, não foi?

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• E o senhor? - Bom, também segui esse caminho. Tenho um estudo sobre o império luso-brasiCarta leiro que é uma quantificação das relações comerciais no contexto do império português. Esse trabalho, efetivamente, me levou a estudar não só Portugal, mas, sobretudo, a Inglaterra. No contexto da formação da sociedade, do capitalismo, as relações envolvendo Brasil, Portugal e Inglaterra se tornaram privilegiadíssimas num momento essencial da vida brasileira, aquele que antecede a Independência.

• Isso continuou? - Não. Depois da aposentadoria do professor França, percebemos que as pessoas estavam gradativamente abandonando esse campo. Era, então, necessário formar uma nova geração de pesquisadores interessados em Portugal. Foi assim que tomei uma série de iniciativas junto aos historiadores portugueses. Eles vieram ao Brasil, deram aulas, interessaram os alunos na história de Portugal, e vice-versa. Ultimamente, essa aproximação en8

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- Sim, o pessoal que fez a adaptação é muito competente. O resultado é um texto acessível para um público de estudantes brasileiros. Esse é um caso. Outros certamente virão. Eu mesmo acabo de escrever um livro em conjunto com o historiador português José Penha Arriga. Ele se chama Historiografia Luso-

- Se formos repassar essa história pregressa, vamos encontrar muitas pessoas que tiveram consciência da importância dessa documentação. Mas o movimento mais sistemático começou há cer~· ca de dez anos, quando eu era diretor de Ciências Husobre venda de negros de navio francês apreendido manas e Sociais Aplicadas do CNPq. A propósito de comemorar o centenário de acontecimentre Portugal e Brasil cresceu muito. tos como a Proclamação da RepúbliCresceu a tal ponto que agora já é ca e a Abolição da Escravatura, foram possível trabalharmos em conjunto. organizados vários eventos. Houve congressos, publicações de livros e • E as publicações? documentos. Um acontecimento especial, relativo à Inconfidência Mi- Ultimamente, os livros dos histoneira, foi a publicação da documenriadores portugueses começaram a tação do Arquivo Ultramarino ser publicados no Brasil. A Editora da relativa a Minas Gerais. Foram aberUniversidade do Sagrado Coração de Bauru, por exemplo, publicou o livro . tas cerca de 190 latas. O CNPq, na oportunidade, mobilizou recursos História de Portugal. Trata-se de uma para que um pesquisador, o professor história de Portugal escrita por váriCaio Boschi, fosse a Portugal. os professores. É uma obra coletiva. Os principais historiadores portugueses fizeram sínteses de cada peda• E depois? ço da história de Portugal, dentro de - Em 1994, o Ministério da Cultura sua especialidade. O importante é encarregou Esther Bertoletti de fazer que esses historiadores aceitaram ser o trabalho em escala nacional. A Es"traduzidos" para o português falado ther assumiu o bastão e distribuiu estíno Brasil. Então, o livro foi publicado mulos para que o trabalho fosse realicom grafia usada no Brasil, não na de zado nacionalmente. Em 1997 e 1998, Portugal. achei que estava na hora de fazer o trabalho também em São Paulo. • O resultado ficou bom? PESQUISA FAPESP


A diversidade também é importante Opiniões diferentes ajudam a estudar a história m dos principais historiadores portugueses, Romero Magalhães defende a diversidade de enfoques, diz que a contribuição luso-brasileira passa pelas universidades e adverte que o pesquisador não precisa esperar pela documentação para abrir novas linhas no estudo da história.

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• O que vem marcando, em Portugal,

Joaquim Antero Romero Magalhães O coordenador das comemorações do Quinto Centenário do Descobrimento do Brasil em Portugal é professor catedrático da Facuidade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi deputado à Assembléia Constituinte de 1976, secretário de Estado da Orientação Pedagógica e presidente da Assembléia Municipal de Coimbra. É licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Obteve o doutorado, em História Econômica e Social, pela mesma universidade. Já lecionou como professor convidado na Universidade de São Paulo (USP). PESQUISA FAPESP

as comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil?

-Muito tem sido feito em Portugal para assinalar a efeméride dos SOO anos da chegada de Pedro Álvares Cabral a terras que v1nam a ser parte do Brasil. Instituições oficiais e universidades muito em especial se preocuparam com isso. Mas não apenas. Fundações e outras entidades privadas também procuraram assinalar a passagem desses primeiros cinco séculos de um imenso e portentoso país que fala português. Não tanto apenas quanto ao que interessa à história, mas também ao que nos pode interessar, como pessoas e como cidadãos. • Como o trabalho de catalogação e microfilmagem dos documentos do Arquivo Ultra-

marina relativos ao período colonial do Brasil se vincula com as comemorações do Descobrimento, do ponto de vista de Portugal?

-A Comissão Nacional para asComemorações dos Descobrimentos Portugueses, entidade governamental, colaborou ativamente nesse processo. Foi entendido que o que importa é o que fica feito e publicado. Importa tudo o que contribua para o alargamento dos nossos conhecimentos sobre um passado comum. Isso explica, a aposta feita no projeto, que da parte do Brasil se chama "resgate", e da parte portuguesa, "reencontro".

Homens pardos de confraria requerem licença ao rei

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• Com a catalogação e a microfilmagem dos documentos, um número maior de historiadores brasileiros terá condições de realizar mais estudos sobre o período colonial do Brasil. Os historiadores portugueses também se sentiram estimulados com as comemorações do Descobrimento e propuseram novos trabalhos, tomando por base os documentos do Arquivo Ultramarino?

pectativa quanto a esses documentos e quais perspectivas eles abrem para a historiografia portuguesa?

- Toda a documentação disponível é bem-vinda para os historiadores. Mas não devem estes esperar por novos documentos para se lançarem nas pesquisas que lhes interessam. E,

concordam é na necessidade de estudar a construção do Brasil, muito mais do que a sua descoberta. Não vale a pena pensar em descobrir documentos sobre o que se terá passado em 1500. Eles até podem vir a aparecer. Mas não será muito provável que isso aconteça. • Particularmente, o que o senhor espera quanto ao desenvolvimento de estudos históricos conjuntos de Brasil e Portugal?

-O Arquivo Histórico Ultramarino é apenas uma parte do que foi o arquivo do Conselho Ultramarino, entidade que durante os séculos 17 e 18 era a responsável pelo aconselhamento do rei absoluto de Portugal em matéria de administração do ultramar. Os investigadores brasileiros e portugueses sabem-no. E não precisaram da microfilmagem para iniciarem a busca de documentação em tal acervo.

- Feliz ou infelizmente, as pesquisas históricas passam sobretudo pelas universidades. Tudo correrá bem se entre as universidades portuguesas e as brasileiras se estabelecerem linhas de investigação comuns ou, pelo menos, convergentes. E é bom que assim seja. O contributo do conhecimento do outro é sempre parte indispensável do nosso próprio conhecimento.

• Esse trabalho pode ser ampliado?

- Sim. É bom não esquecer que outros fundos, como os da Torre do Tombo, os dos municípios (como Lisboa, Porto, Viana do Castelo, Braga, ou muitos outros) e misericórdias são indispensá- Animais do Maranhão: no século 17 veis para alargar as nossas fontes de informação. E, como não, os arquivos dos tabeliães. Indispensásobretudo, há que não esquecer o que veis. Todos. Veja-se os recentíssimos há muito nos ensinaram Marc Bloch trabalhos de Ângela Domingues, de e Lucien Febvre: sem história, não André Ferrand de Almeida ou de Máhá documentos. O inverso não é verrio Olímpia Ferreira, que utilizam dadeiro. com apurada minúcia materiais que estavam depositados em arqmvos • Qual a visão predominante da histoportugueses e brasileiros. riografia portuguesa sobre as navegações e o descobrimento do Brasil? • Como uma espécie de contrapartida à liberação para a microfilmagem e envio ao Brasil dos documentos do Arquivo Ultramarino de Lisboa, os historiadores portugueses poderão inventariar e microfilmar documentos do período colonial que permanecem em arquivos brasileiros. Só na antiga capitania do Rio de Janeiro, existem 100 mil desses documentos. Qual sua ex10

- Em Portugal não há uma visão predominante sobre a historiografia. Há visões, plural mais rico e mais enriquecedor. As divergências são possíveis e desejáveis. Por isso, há quem teime em pensar que a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil foi intencional e os que persistem em refutar essa possibilidade. No que todos

• Em que medida a relação de Portugal com o Brasil, sua ex-colônia, continuou a influenciar a história portuguesa depois da Independência, em 1822?

- Até cerca de 1960, o Brasil foi o maior "importador" de emigrantes portugueses. Alguns milhões de portugueses e seus descendentes continuam a ter importância. Isto diz tudo. -• Quais as principais tendências hoje da historiografia em Portugal? Há uma relação maior com a história das mentalidades ou são seguidas outras linhas, como, por exemplo, a fundamentação econômica da história?

- O tempo das tendências de um só sentido já não têm audiência. A historiografia portuguesa continua plural, variada nas suas inspirações teóricas e interesses empíricos. E, como sempre, há que distinguir entre bons e maus historiadores. Porque em todas as correntes sempre os há. PESQUISA FAPESP


Ter sido colônia é a diferença do Brasil Cada país tem características que o tornam único

Fernando Antonio Nova is Um dos mais conhecidos historiadores brasileiros, Novais é pesquisador do Núcleo de Estudos Econômicos do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor da Universidade de São Paulo (USP), instituição onde se formou em Geografia e História, em 1957, e obteve o doutorado em ciências, em 1973. É autor de diversas obras. É dele a obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial e a organização do trabalho História da Vida Privada no Brasil, editado em quatro volumes em 1997 PESQUISA FAPESP

Planta da Igreja Matriz de Vila do Desterro: Santa Catarina, 1747

ara Fernando Novais, as descobertas não terminaram. Milhares de documentos, inclusive os originais de Os Lusíadas, como foram escritos por Camões antes de serem submetidos à censura, ainda esperam nos arquivos de Lisboa.

P

• Na sua tese de doutorado, o senhor trabalhou com documentos de entre 1777 e 1808. Foi muito difícil achar esses documentos? - A posição da documentação em meu trabalho não se distingue em nada de outros trabalhos de história. É característica dos trabalhos de história estarem centrados na documentação. Todos os trabalhos são baseados em fontes de documentação diretas. Elas não têm, necessariamente, de ser inéditas. Mas há uma tradição, sobretudo quando se trata de te-

ses, de que se deve sempre trabalhar com fontes primárias.

• A documentação, então, é central? - Sim, a documentação sempre ocupa uma posição central nas pesquisas de história, mais do que em outras áreas. Em todas as ciências sociais, a - documentação equivale à pesquisa empírica nas ciências exatas, à experimentação na química. Na história, é ainda mais fundamental do que nas outras ciências sociais. Certamente, a história é menos ciência do que elas. Além de tentar explicar o acontecimento, ela procura reconstituir.

• Por que a história é menos ciência do que as outras ciências sociais? - Porque seu objeto não é perfeitamente definível. Como dizem os manuais de metodologia científica, duas 11


coisas caracterizam qualquer ciência: a delimitação de um objeto e a adequação de um método a esse objeto. Qual é o objeto da história? Tudo o que acontece ao ser humano, em qualquer época e em qualquer lugar. Logo, o que caracteriza esse objeto é ele não ter limites.

• Como era na época o Arquivo Ultramarino?

ta do arquivo para o catálogo. Mas, por mais que a catalogação seja bem feita, e considero esta do Resgate muito ampla, ela não destrói de todo a descoberta no Arquivo, pois há coisas que ficam fora do lugar. O pesquisador, por exemplo, está mexendo na documentação do Ministério do Reino e acha uma coisa sobre o Brasil

mães. Ele o enviou para a censura, antes de ser publicado. Na época, a Inquisição arquivava os originais, inclusive para determinar se não fora feita alguma mudança quando o texto era publicado. Os historiadores de Literatura já indicaram vários versos de Os Lusíadas que devem ter sido modificados pela censura. Como? Porque se trata de um assunto perigoso e o verso está num patamar de qualidade muito inferior ao de Camões.

-Não fiz a pesquisa somente nesse arquivo. Trabalhei em outros arquivos portu• Até hoje, então, não se achagueses, em Lisboa e em Évoram os originais de Camões? ra, e em arquivos brasileiros. Mas, no conjunto, o mais - Não. E ele está lá, no Arusado foi o Arquivo Ultraquivo Nacional de Lisboa, na marino. Hoje, ele está muito Torre do Tombo. Só os promelhor organizado. Havia na cessos da Inquisição são deépoca um índice de códices, zenas de milhares, cada um preparado por uma historiacom cerca de 2 mil páginas. dora alemã. Eram mais de 3 Além dos processos, há oumil códices. Não era um catros textos relativos à Inquisitálogo, que descreve o que há ção. Creio que só 10% dos em cada códice, era simplesprocessos estão catalogados. mente um índice. Além desse Imagine o que vai acontecer material, havia a chamada quando alguém, finalmente, documentação avulsa. Eram descobrir os originais de Camaços ou caixas, com indicamões. Além do valor de um ções sumárias, o local e o pedocumento escrito e assinaríodo. Uma enorme parte da do pelo próprio Camões, sadocumentação não estava beremos, finalmente, como nem em maços. Provaveleram os versos realmente esmente, estava totalmente inécritos por ele. dita. Não existe mais isso. Todo o material está pelo • Dos vários documentos existenO governador das Minas: plano contra extravios de ouro menos dividido por área. tes no Arquivo Ultramarino, Mas, na época, boa parte do quais o senhor achou mais inteque consegui foi fruto de um autênque deveria estar no Ministério do . ressantes para sua pesquisa? tico trabalho de garimpo. Um bom, Ultramar. Se até hoje as coisas são catálogo é muito importante. Facilita - Há vários tipos de documento postas no lugar errado, imagine namuito a pesquisa. Chega-se já sabennesse arquivo. Existem, inclusive, doquela época. do o que se vai pedir, não é mais precumentos totalmente avulsos, que ciso garimpar. Mas desaparece um ninguém sabe como foram parar lá. • Então sempre poderá haver uma certo prazer que o historiador tem, de Só com a garimpagem será possível descoberta? ficar garimpando coisas num arquivo avaliá-los. Muitos são cartas pessoais. até achar algo interessante. Nesse sentido, a catalogação facilita - Sim. Além disso, há arquivos que muito o trabalho. ainda não estão totalmente cataloga• A catalogação, então, diminui o endos. Imagine que há entre 35 mil e 40 tusiasmo do pesquisador? • Quais são os documentos básicos? mil processos da Inquisição em Lisboa. Num desses processos deve estar - Não, de forma alguma. A catalo- Creio que são as atas das reuniões o original de Os Lusíadas, escrito pela gação transfere o prazer da descoberdo Conselho Ultramarino. Esse conprópria mão do poeta Luís de Ca12

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selho era o órgão da administração portuguesa equivalente a um Ministério das Colônias. Foi criado pouco depois de 1640, quando houve a restauração e Portugal se separou da Espanha. A restauração ocorreu sem maiores problemas nas colônias. Mesmo assim, o novo governo queria consolidar o poder sobre as colônias. Outros documentos importantes são as consultas dos benefícios, as consultas do Conselho Ultramarino. • O que são essas

consultas? É um documento de assessoria. No regime absolutista, a terminologia reflete o conceito do poder. Por exemplo, a carta régia é um alvará com força de lei. Os docuPlanta do Forte de mentos legais assinados pelo rei tinham uma introdução informando o assunto sobre o qual tratavam. A passagem da descrição do assunto para a determinação é feita pela expressão "sou servido a': Geralmente, "sou servido a ordenar e como rei o faço': A introdução é uma justificativa porque o rei é generoso e acede em dar explicações. Mas ele não precisa explicar nada. O motivo pelo qual ele determina é a sua vontade, por isso é servido a dar uma ordem. -

• Essas justificativas são longas? -Às vezes, sim. A introdução é sempre muito importante, porque define o problema.

• Como era o processo? - Toda a correspondência dos governadores de capitanias, governadores-gerais e vice-reis, no período final PESQUISA FAPESP

da colônia, vai para o Conselho. Só chega ao rei pelo do Conselho. Os conselheiros se reúnem, discutem e encaminham o problema para o rei. Muitas vezes, há reclamações que seguem diretamente para o soberano, pois a gente da alta nobreza podia se dirigir pessoalmente ao rei. Mas o rei encaminhava tudo ao Conselho.

tomar tais e tais providências': O que acontece é o inverso. O rei é quem está consultando. Mas o rei não pode consultar nem pedir o conselho de ninguém. Esses documentos são chamados de consultas. Falamos, por exemplo, na "Consulta do Conselho Ultramarino de março de 1749 sobre tal assunto':

• A correspondência dos governadares não era dirigida ao rei? -Sim, mas ia para o Conselho. As únicas exceções ocornam com parentes do rei ou com pessoas de quem o re1 gostava muito. A correspondência também é muito importante porque registrava os proNossa Senhora dos Remédios, Ilha de Fernando de Noronha: 1739 blemas que ocornam nas capitanias. É interessante comparar a Como o rei, por definição, sabe tudo, correspondência com as leis que ele é rei por direito divino, é represeneram promulgadas. O Conselho Ultante de Deus na Terra, não pode ser tramarino também cuidava de leis. instruído, nem pode ser assessorado. Nem toda a legislação do período colonial já foi publicada. • Ele sabe tudo? - Sim. Mas, na prática, o rei precisa da assessoria do Conselho. Às vezes, ele é um menino, às vezes ele é um débil mental. Mas a terminologia tem de estar de acordo com o conceito. É o rei que é consultado, não o contrário. Digamos que chega ao conhecimento do rei que jesuítas e colonos estão brigando no Maranhão por causa do preço dos estábulos. O rei, então, envia o problema ao Conselho Ultramarino, com a ordem: "Consultem-me sobre esse assunto". Os conselheiros, então, escrevem longos relatórios, onde diziam: "De fato constatamos e consultamos Sua Majestade sobre se talvez não se devesse

• Há mais material? - O material das instruções é muito interessante. Todos os vice-reis que serviram no Brasil, de 1763 a 1811, receberam instruções e fizeram as residências. As residências são documentos nos quais o vice-rei presta contas à Coroa. Quando a residência não era aprovada, ele podia até ser preso.

• Quem aprovava, o rei? -Era o Conselho Ultramarino, que "consultava" o rei. Localizei todas as instruções no Arquivo Ultramarino. Antes, só duas ou três tinham sido 13


a da América do Norte. É por isso que o estudo da colônia é fundamental, porque esse estudo é o estudo da formação do Brasil. Nossa formação é uma formação escravista. É colonial e escravista. Quanto melhor compreendermos isso, melhor compreenderemos o que somos. É a base da nossa sociedade.

publicadas. Algumas estavam catalogas, outras não. Consegui localizar todas e as analisei, uma por uma. Não consegui todas as residências. Mas o que obtive foi suficiente para ter uma visão geral. Além das instruções e residências, há os relatórios. Um dos mais importantes é do vice-rei marquês de Lavradio. Ele foi publicado num dos primeiros números da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em

• E daí?

1841.

• O senhor vê a investigação do

período colonial brasileiro como uma necessidade para compreender mais profundamente a construção do Brasil? - Todo país, toda nação, quando faz sua história, deve procurar aquilo que é específico. O específico, no caso do Brasil, é ter sido uma colônia. É isso que diferencia o Brasil de Mato outros países e aproxima o Brasil dos países da América. É o que distingue o país, também, dos países da Europa. Se perguntarmos o que é específico de Portugal como nação, é o de ter sido um feudo que se transformou num reino e, mais tarde, num Estado moderno. A França, por outro lado, é formada por feudos que se juntaram. Portugal é um feudo que se destacou, a França é um conjunto de feudos que se agregaram. A Espanha não é uma junção de feudos, mas de reinos. Cada país tem seu processo de formação.

• E o Brasil? - O específico do Brasil é ter sido uma colônia. Antes de ser Brasil, era uma colônia de Portugal. Se a colônia se chamava Brasil ou não, não importa. Não era o Brasil nação, era o Brasil colônia. Aliás, o nome Brasil só foi aplicado a toda a colônia depois de certo tempo. O norte foi chamado várias vezes de Estado do Grão- Pará 14

Grosso: proibição para a compra e venda de mulas

e Maranhão e o nome Brasil só se aplicava ao sul. O Brasil, assim, é uma colônia que se transformou numa nação, algo diferente de um feudp que se transformou em reino. A vinculação de uma colônia com sua metrópole não é a mesma de um feudo com seu senhor. A relação do feudo com o senhor é uma relação desuserania, a de uma colônia com sua metrópole uma relação de soberania. Um feudo não se torna independente. Ele se torna autônomo. A colônia, sim, se torna independente. Por isso, o Brasil teve uma independência.

• Isso aproxima o Brasil dos Estados Unidos e da América Espanhola. - Sim, essa é a formação dos países da América em geral. Mas precisamos ver também que tipo de colônia o Brasil era de Portugal. Isso nos aproxima mais da colonização espanhola e da encontrada nas Antilhas do que

- Daí que as pesquisas relacionadas com o período colonial são absolutamente indispensáveis. Qualquer estudo sobre o Brasil contemporâneo, o Brasil nação, tem embutido uma visão da colônia. Não se pode estudar o Brasil atual sem uma visão da colônia, queira ou não queira, seja ela melhor ou pior. A visão do Brasil nos séculos 19 e 20 será melhor ou pior, conforme os estudos dos historiadores sobre a colônia. Sejam estudos de historiadores ou de cientistas sociais.

• E o papel de Portugal? - O estudo da colonização portuguesa é fundamental. O Brasil é uma colônia que virou nação. Para estudar a colonização, é essencial ter uma documentação, a documentação do Arquivo Ultramarino, do qual se está fazendo o resgate. Mas também é preciso dizer algo que talvez distoe das comemorações. Toda documentação é importante. Ela precisa ser conhecida. Mas o conhecimento definitivo de uma realidade não se esgota com o estudo da sua documentação. Por quê? Porque estamos falando de história, não de peixes, pedras ou árvores. Se fosse assim, quando todos os documentos do Arquivo Ultramarino estiverem lidos, não haverá mais história da colonização portuguesa. Não é isso o que vai ocorrer. Os mesmos documentos podem ser lidos de maneira diferente, a qualquer momento. PESQU ISA FAP ES P


A história é um patrimônio comum Brasileiros e portugueses podem colaborar mais istoriador português Rui Rasquilho vê no Projeto Resgate um sinal de aproximação dos pesquisadores dos dois lados do Atlântico e usa argumento de peso para defender os trabalhos conjuntos: só o conhecimento da verdade para substituir os equívocos nas relações entre brasileiros e portugueses.

H Rui Rasquilho Professor de História, Rasquilho ocupa, desde 1995, o cargo de conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Brasília. Faz parte desde 1994 do corpo especializado do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É diretor do Instituto Camões no Brasil e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Lusíada de São Paulo. Poeta, publicou seu primeiro livro de poesias, Do Lado Oposto do Tempo, em 1996, quando já estava em Brasília. O mais recente, O Limite do Fogo, saiu em 1998. PESQUISA FAPESP

• Como as comemorações dos 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil estão ajudando a desenvolver o conhecimento da história comum de portugueses e brasileiros? -

As comemorações conjuntas dos SOO anos do descobrimento do Brasil, unindo portugueses e brasileiros, trouxeram um importante estímulo à investigação histórica. De maneira particular, intensificaram o acesso de equipes brasileiras de pesquisa ao Arquivo Histórico Ultramarino de tisboa. Uma parte substancial deste arquivo, importantíssima para a história do Brasil, estava ainda por ser estudada. Nem mesmo estava classificada. Por isso, a S!Ja reorganização, levantamento e passagem para microfilme e CD-ROM são importantíssimos para futuras pesquisas.

• Em que medida este trabalho, o Projeto Resgate, poderá ser útil também para futuras colaborações entre Portugal e Brasil na área da história?

- Cada vez mais, o Brasil e Portugal descobrem um ao outro. Cada vez mais, historiadores de ambos os países se encontram em congressos. Disso resulta que fazem investigações comuns, escrevem sobre a história dos dois países. A continuação deste trabalho conjunto será, a partir da conclusão do Projeto Resgate, feita a partir dos milhares de documentos agora colocados à disposição dos historiadores.

• Então esse projeto pode ser considerado muito importante para o futuro? - Desde que em 1943 se criou a Comissão de Estudos dos Textos de História do Brasil que nada de tão importante havia sido feito nesse campo de estudos como o Projeto Resgate. As notícias de que o trabalho de microfilmagem será ampliado são muito interessantes. Deve-se assinalar que não é apenas em Portugal que oBrasil tem uma vasta documentação histórica sobre o seu passado. Em outros países da Europa, na Holanda e

Pará: planta e alçada de um trem de artilharia

IS


na França, sobretudo, há conjuntos de documentos muito importantes, que terão inegavelmente uma enorme valia para a compreensão do passado do Brasil. • O trabalho de microfilmagem tam-

bém facilitará o acesso dos historiadores portugueses aos documentos do Arquivo Ultramarino? Podemos esperar novos estudos de historiadores portugueses, nos quais o material recolhido pelo Projeto Resgate será aproveitado? - Não tenho qualquer dúvida de que os historiadores contemporâneos, dos dois lados do Atlântico, poderão, a partir da microftlmagem sistemática dos documentos da época colonial do Brasil, vir a redesenhar novas teorias ou chegar a novas conclusões sobre a história comum luso-brasileira. Falo sobre todos os documentos existentes na Europa, não apenas os que estão no Arquivo Ultramarino ou mesmo em território português.

decidida pela verdade. Compartilhar o passado é prestar um serviço ao futuro.

• Qual é a situação atual do interesse de estudos sobre o Brasil por parte da historiografia portuguesa?

• Foi publicado recentemente um livro de um historiador português, Jorge Couto, sobre os primeiros anos do Brasil, chamado A Construção do Brasil. Esse livro seria um exemplo do apro-

-

É cada vez mais evidente o interesse dos pesquisadores portugueses sobre o Brasil. Ele aparece em diversas áreas do estudo da história. As publicações recentes demonstraram de maneira muito clara o interesse que brasileiros e portugueses manifestam, em sucessivos colóquios e congressos bilaterais, sobre a divulgação mútua de sua história.

• Na sua opinião, como poderia ser alcançada uma maior articulação entre as investigações históricas portuguesas e brasileiras? Quais os grandes temas que deveriam ser estudados em primeiro lugar num projeto comum de pesquisas históricas, envolvendo Brasil e Portugal? É inquestionável que durante cerca de 300 anos Brasil e Portugal viveram em comum. Melhor dizendo, o Brasil fazia parte do território português. Por isso, os projetas comuns luso-brasileiros são fundamentais para que se compreenda o nosso passado comum. Quanto aos grandes temas, os novos levantamentos feitos por meio do Projeto Resgate vão com certeza indicar caminhos para novas e interessantes pesquisas.

-

• Numa espécie de contrapartida à abertura do Arquivo Ultramarino para os pesquisadores brasileiros, os historiadores portugueses terão acesso a documentos, inclusive aos relativos à administração portuguesa que Ofício sobre o padre Nicolau, que exportava ouro em pó permanecem em arquivos brasileiros desde a viagem de dom João veitamento de fontes çomuns, em PorVI para o Rio de Janeiro. O senhor acre• Esses projetas precisariam ter um cadita que esses documentos serão úteis tugal e no Brasil? ráter nacional? para a historiografia portuguesa? -O livro do doutor Jorge Couto, da -Não. É certo que muitos dos pro- A filosofia é a mesma. Isto é, só Faculdade de Letras da Universidade jetas luso-brasileiros poderão ser eshaverá benefícios para Portugal se as de Lisboa, é provavelmente o mais importante estudo contemporâneo taduais ou no mínimo regionais, tal a fontes e documentários existentes no riqueza da documentação escrita leBrasil forem colocados em Portugal, sobre a formação do Brasil e sobre a vantada e tratada nos últimos anos. sua construção, antes e depois da cheà disposição dos nossos historiadoTambém é certo que esse trabalho cogada dos portugueses. O doutor Jorres. O princípio do patrimônio comum entre portugueses e brasileiros ge Couto trabalhou exaustivamente mum, estabelecido pela Unesco para casos como este, é um modelo muito as fontes disponíveis e o seu texto é é de insuspeitado alcance cultural e eficaz para que nos conheçamos meum testemunho evidente do trabalho histórico. Só não uso a palavra exemde pesquisa que os historiadores cosplar porque se trata de um conceito lhor e acabemos com os equívocos, substituindo-os de maneira firme e tumam realizar. que não é de meu particular agrado. 16

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Um Brasil com contornos mais nítidos Aumenta a consistência do retrato do país

Heloísa Liberalli Bellotto A professora Heloísa chefiou, em Lisboa, a equipe encarregada do resgate dos documentos do Arquivo Ultramarino relativos à Capitania de São Paulo. Ela é professora do curso de pós-graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de especialização em Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros, da mesma universidade. Formou-se e obteve o doutorado em História na USP. Tem ainda o grau de bacharel em Biblioteconomia e fez cursos de especialização em Arquivística na França, Espanha e nos Estados Unidos. PESQUISA FAPESP

Planta do novo palácio episcopal: São Paulo, 1743

ara a historiadora que chefiou o resgate dos documentos referentes a São Paulo no Arquivo Ultramarino, não se devem esperar informações espetaculares do Projeto. Mas está para vir um quadro muito mais claro ·e consistente do que era a vida e o jogo do poder no Brasil Colônia.

P

• Qual o ponto de partida para o trabalho de descrição e microfilmagem dos documentos referentes à capitania de São Paulo existentes no Arquivo Ultramarino de Lisboa?

- Os trabalhos de descrição dos documentos referentes à Capitania de São Paulo começaram em 1998. Estavam dentro da seqüência da

programação do Projeto Resgate. Soubemos que teríamos de trabalhar com duas vertentes. Uma era a revisão de um catálogo preexistente, finalizado e publicado em i954, por ocasião do quarto centenário da cidade de São Paulo pelo historiador Alfredo Mendes Gouveia. Seria feito o confronto entre o catálogo e a documentação que ele descrevia. A segunda parte do trabalho seria a descrição de outros documentos, isto é, a elaboração de verbetes descritivos do restante dos documentos referentes a São Paulo. Esse material ainda não tinha sido submetido à descrição porque estava inserido, quando foi feito o trabalho de Mendes Gouveia, em outros conjuntos. Estava em outros lugares do arquivo. 17


• Havia muito material?

• O que é diplomática?

-As peças documentais descritas no catálogo totalizavam 5.113, e as inéditas, a serem trabalhadas, 1.383. Primeiro, fixamos e redigimos os verbetes. Depois, eles foram impressos e recortados. Numa etapa seguinte do trabalho, que já era da alçada dos funcionários do Arquivo Ultramarino, esses verbetes foram presos aos respectivos documentos, para assim constarem na microfilmagem. Isso e a passagem dos fotogramas para CD-ROM foram atividades de grupos portugueses e brasileiros alheios à nossa equipe, que era encarregada apenas do trabalho científico propriamente dito.

- Trata-se da área das ciências documentárias que se ocupa não só da estrutura formal do documento e da sua natureza jurídica, mas que também analisa o seu contexto de produção. Seu raio de ação desenvolve-se entre a actio, isto é, a ação, o fato, o

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• Esse trabalho de Planta geral da nova Sé de São Paulo, em 1743 descrição exige conhecimentos históricos, mas também preparo em paprocesso/procedimento jurídico-asministrativo, e a conscriptio, isto é, a leografia, em muitos momentos. É sua concretização, enquanto veículo possível descrever um pouco o processo de um trabalho dessa natureza e as documental, válido para produzir suas diversas etapas? efeito jurídico. Só fazendo uso desses - A primeira parte é a leitura e análise dos documentos. Depois, vem o trabalho de síntese, aquele que conduz à elaboração de um verbete unitário de catálogo. O verbete, por sua natureza, precisa ser conciso. Mas não pode esconder informações necessárias à compreensão prévia do que a arquivística chama de estrutura e substância do documento. Este trabalho, sim, tem as suas exigências. Além da necessidade do conhecimento da história, há a necessidade de conhecimentos de diplomática. 18

conhecimentos o documentalista, ao redigir o verbete descritivo, será capaz de estabelecer aquele elo suficiente e necessário entre o documento e o pesquisador.

• Quantas pessoas se envolveram no trabalho de descrição dos documentos de São Paulo e quanto tempo levou esse trabalho? -Foram cinco os integrantes do Projeto Resgate a compor a equipe para São Paulo. Dois eram arquivistas do Arquivo do Estado de São Paulo, historiadores e bolsistas do Conselho

Nacional de Pesquisas (CNPq), Eliane Bisan Alves e José Roberto de Souza. Havia também uma historiadora, mestranda em História do Brasil da Universidade Clássica de Lisboa e bolsista da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses de Portugal, a portuguesa Paula Gonçalves. Tínhamos ainda um historiador que já atuara em arquivos brasileiros e no trabalho do Projeto Resgate para outras capitanias, bolsista do CNPq e doutorando em Paleografia da Universidade Nova de Lisboa, Gilson Sérgio Matos Reis. Finalmente, eu, professora da pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e, além disso, bolsista de pós-doutorado da FAPESP.

• Quanto tempo levou o trabalho? - O ciclo completo do trato dos documentos foi de 14 meses. Teve lugar de junho de 1998 a agosto de 1999. O cronograma cumprido foi de cerca de três meses para as tarefas iniciais, oito meses para a elaboração dos verbetes e três meses para a revisão final, que incluía correção de texto, ajustes topográficos, equivalência de notações (chamadas de cotas, na terminologia arquivística portuguesa) e a substituição de unidades de arquivamento, as capilhas.

• Há fatos e situações novas relatados nesses documentos? É possível descrePESQUI SA FA PESP


ver descobertas ou curiosidades neles reveladas? - O que o Projeto Resgate traz de novo é o que poderíamos chamar de um certo preenchimenta, uma certa reintegração entre os cheios e os vazios no tecido esgarçado da história. Foi com essa expressão que alguém já adjetivou aquela construção que o historiador vai elaborando, ao amalgamar os dados obtidos nos documentos com a sua própria percepção e compreensão dos momentos estudados e a partir, mesmo, das outras ferramentas que fazem parte da sua formação profissional. No ponto de vista do Projeto Resgate, não interessa tanto dizer que ele traz à luz fatos ou situações antes não conhecidas, descobertas ou curiosidades, e sim afirmar que ele torna a história do Brasil colonial mais consistente, meConsulta ao príncipe sobre terras no sul do Brasil nos permeável, mais nítida em seus contornos e mais suscetível de ser entendida numa macroviexemplo, os atas das chancelarias, os são de espaço, tempo e circunstânatas dispositivos da Coroa, os regiscias. Isso, a meu ver, é infinitamente tras das outras agências governamenmais importante. tais do governo central. Também não se encontram os atas da área judiciá• Ainda há espaços não cobertos? ria, da área financeira e da área mllitar, mesmo quando dizem respeito às - É preciso ter-se em mente que o colônias. Estes documentos, em PorArquivo Histórico Ultramarino custugal, acham-se nos arquivos naciotodia os documentos produzidos, renais da Torre do Tombo, no arquivo cebidos e acumulados pelo Conselho histórico do Tribunal de Contas e em Ultramarino e pela Secretaria de Esvários outros arquiyos. tado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, no exercício • O que há, então, nesse trabalho? das suas funções, no período em que existiram. Não é um arquivo total da -O que vamos encontrar no Arquihistória do Brasil, mesmo porque vo Histórico Ultramarino é o pulsar isto não existe, os arquivos são semadministrativo, é o dia-a-dia da gopre institucionais. Por exemplo, o vernação colonial. Isso porque o Conselho Ultramarino só foi formaConselho Ultramarino, além de estudo depois da restauração, depois que dar relatos, requerimentos e petições, Portugal recuperou sua independênfaz análises e emite as consultas, que cia da Espanha. Além disso, ele não são pareceres elucidativos para as recobria todas as áreas das relações ensoluções a serem baixadas pelo rei. tre o Brasil e a administração de LisFazia isso, além de exercer outras funboa. Nesse sentido, ali não estão, por ções administrativas que lhe foram PESQUISA FAPESP

delegadas, relativas ao manejo dos domínios ultramarinos. Percorrer a documentação que foi objeto do Projeto Resgate é flagrar, no seu real tempo e lugar, as atitudes e comportamentos dos provedores, ouvidores, governadores, vice-reis e capitães-generais, sargentosmores, oficiais das câmaras municipais e, sobretudo, pessoas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, sejam povo simplesmente. É acompanhá-los, nos relatórios formais, nas queixas e solicitações, nas intrigas e prestação de contas, nas obediências e desobediências ao governo metropolitano. Também é possível detectar, de forma inequívoca, as reações desse governo metropolitano, em suas mais variadas nuances, durante quase 200 anos.

• Como historiadora, como a senhora avalia o Projeto Resgate e as possibilidades de estudo que se abrem para os historiadores brasileiros? - Como historiadora que, para sua tese de doutoramento, anos atrás, utilizou largamente a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e ainda a vem utilizando, compreendo quanto o Projeto Resgate alarga as possibilidades da pesquisa no material existente nesse arquivo. Os novos dados agora revelados e a facilidade de acesso representada pelo suporte em microfilme e em CD-ROM complementam informações e respondem a indagações que, durante anos, haviam ficado sem resposta. Além disso, vai ser possível a pesquisa quase que simultânea em documentos das várias antigas capitanias brasileiras, o que era bastante complicado de ser feito no recinto do próprio arquivo, como é natural. Ora, isto facilita enormemente a confrontação de dados, em qualquer momento em que ela se fizer necessária. 19


tante ampla a pesquisa sobre a história.

• Como a senhora vê a atual situação da historiografia brasileira?

• Como assim? - A historiografia brasileira, durante muito tempo, de certo modo, deixou de lado a história colonial, isto é, a história luso-brasileira dos séculos 16 ao 19. Não sei se esta mudança ocorreu pela oportunidade de revisitação proporcionada pelas comemorações dos SOO anos do Descobrimento do Brasil, ou se apareceu, nos últimos tempos, um esforço voltado para aquele período da nossa história. Havia um problema a mais. Os estudos de história colonial tinham ficado marcados pela sua inserção num tipo de historiografia tradicional, positivista, pouco científica e, num certo período, muito ligada, em suas publicações e em seus congressos e seminários, ao próprio salazarismo, o goCarta verno de tipo ditatorial que dominou Portugal da década de 1930 à de 1970. A atual "saúde", se me for permitido usar essa expressão, que encontro na historiografia colonial, será sensivelmente beneficiada pelo Projeto Resgate.

• Quais áreas ou temas serão mais beneficiados? -Abrem-se na área da história do Brasil possibilidades de pesquisa em campos antes pouco explorados. Posso citar o direito administrativo luso-brasileiro, as relações sociais entre os colonos e os funcionários vindos do reino, as disputas de jurisdição geopolítica entre sesmarias, comarcas, distritos, municípios, capitanias e governos gerais. Vamos poder também estudar melhor as lutas pelo poder entre as autoridades delegadas, sobretudo entre capitães-generais e ouvidores ou bispos, entre provedores e ouvidores, entre estes e os juízes de fora, etc., questões muito freqüentes na documentação do Projeto Res20

- No momento em que se torna senhor dos processos administrativos, que aprende como se originam, atuam e vigoram os atos normativos, comprobatórios e de informação, o historiador pode iluminar sua própria análise e fazer generalizações. Um dos integrantes da equipe de São Paulo do Projeto Resgate, Gilson Sérgio Matos Reis, está preparando seu doutorado, na Universidade Nova de Lisboa, justamente na área da diplomática, com uma tese sobre o funcionamento do Conselho Ultramarino, nos seus 70 anos iniciais. Ele analisa toda a legislação que comanda a empresa da colonização de Portugal, dos meados do século 17 aos iníreclama da falta de trilha para minas de Cuiabá cios do 18. A tese vai levantar e descrever a trama de documentos entre a colônia e a metrópogate. E não serão só os historiadores le, os contextos de produção, a traos que vão ganhar mais recursos. Oumitação e o arquivamento final tras áreas do conhecimento também dos documentos ascendentes (dos terão suas pesquisas facilitadas. súditos para a Coroa) e dos documentos descendentes (da Coroa pa• Com a colaboração de pesquisadofes ra os súditos). dos dois países? - Tudo isso poderá ser objeto de pesquisas conjuntas. Na área da diplomática histórica, que tão pouco tem sido alvo de estudos teóricos ou aplicados no Brasil, há todo um campo virgem a explorar. O estudo do funcionamento das instituições, sua base legal, os documentos que são produzidos, recebidos e acumulados no seu processo decisório não um exemplo. Os interessados poderiam analisar a estrutura formal de cada espécie ou tipo de documento, além de sua tramitação habitual ou homogênea, desde a gênese da conscriptio até a consecução final pretendida pela actio. Isso viria a enriquecer de maneira bas-

• O que podemos concluir?

- Esses estudos revelarão, mais do que as hipóteses há muito levantadas pelos historiadores, que houve, seguramente, nas relações entre o Estado português e a colônia brasileira, uma governação legal, aparente, controlada e sobreposta. Mas nem por isso ela era mais poderosa do que uma outra, que funcionava nas entrelinhas, nos bastidores. Essa autoridade estava à margem dos textos. Mas podemos detectar sua presença até por esses mesmos textos. Contribuir para desvendar toda essa trama é o fascinante trabalho que está à espera dos usuários do Projeto Resgate. PESQUISA FAPESP


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Os pesquisadores diante de um desafio Chegou a hora de repensar a história da colônia

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Esther Caldas Guimarães Bertoletti A coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate é formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Jornalismo pela PUC da mesma cidade. Fez outros cursos em Buenos Aires, Roma e na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Como consultora da Fundação Ford, coordenou e implantou o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, trabalho pelo qual recebeu vários prêmios. Foi diretora de vários departamentos da Biblioteca Nacional e diretora substituta do Museu do Índio do Rio de Janeiro. PESQU ISA FAPES P

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No século 18, o Rio de Janeiro torna-se importante porto e capital da colônia

oordenadora técnica nacional do Projeto Resgate acha que a nova facilidade de acesso aos dowmentos sobre o período colonial vai obrigar os historiadores a examinar outra vez fatos e interpretações e fazer surgir opiniões divergentes sobre o mesmo assunto.

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• O trabalho de registro dos documen-

tos do Arquivo Histórico Ultramarino só começou agora? -Não, ele vem de muito longe. Começou no século 19. Mas os pesquisadores que iam a Lisboa não tinham uma concepção de arquivista de história, de fazer verbetes, como agora. Eles copiavam ipsis litteris os documentos. Iam ao Arquivo Ultramarino, passavam os olhos pelo material, achavam um documento curioso ou interessante e então o copiavam inte-

gralmente, sem fazer um resumo. Um desses pesquisadores foi o poeta Gonçalves Dias. Em várias cartas, ele se queixou do trabalho. Escrevia, por exemplo: "Não suporto mais, minha mão está muito cansada':

• Isso continuou por muito tempo? - No começo do século 20, compreendeu-se que seria impossível copiar à mão todos os documentos. Por essa altura, nem 5% do que havia tinha sido copiado. Só no Arquivo Ultramarino, são 3 milhões de páginas manuscritas. Se formos contar os outros arquivos portugueses, mais o que há na Holanda, na França, na Itália, o total deve ultrapassar os 5 milhões. Por mais que se mandasse gente para Lisboa, o trabalho não terminaria. • O que se fez, então? 21


-Passou-se a contratar pesquisadores portugueses, como Castro de Almeida e Mendes Gouveia, com instruções para que fizessem resumos. Mas, em vez de fazer sumários breves, eles faziam resumos de três ou quatro páginas. Muitas vezes, transcreviam todo o documento e o juntavam ao resumo. Veja o exemplo do Rio de Janeiro. Ele tem, no total, 414 caixas. Castro de Almeida conseguiu completar os resumos de apenas 88. Todas as outras 326 caixas estão sendo feitas agora.

me, quando no Arquivo Ultramarino usamos cerca de 3 mil. Também vamos copiar os documentos da Casa da Suplicação, que recebia todos os processos. Com esses dois conjuntos, o da Inquisição e o da Casa da Suplicação, pretendemos encerrar a massa documental em Portugal. • O trabalho estará completo?

• Como se trabalha atualmente? - Faz-se um resumo breve. Um verbete de São Paulo, por exemplo, diz: "ofício do governador tal ao secretário tal, comentando sobre a epidemia de bexiga e pedindo a chegada imediata de remédios para atender a população': Agora, basta o resumo, pois temos a íntegra do documento em microfilme.

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O trabalho de resgate começou com Minas Gerais

mentação Barão do Rio Branco tem duas etapas. A primeira, a maior, foi o registro dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Ele tem 80% da documentação sobre o Brasil no exterior. São 300 mil documentos, cerca de 3 milhões de páginas manuscritas. Até junho do próximo ano, este trabalho terminará. A última capitania a fechar a microfilmagem será a do Rio de Janeiro. • E depois? - Pretendemos fazer um adendo em Portugal, com os documentos da Inquisição que estão na Torre do Tombo. Relativamente, é pouco material. Serão cerca de 80 rolos de microfil22

- Esperamos terminar até o fim deste ano o Guia de Fontes para a História do Brasil Holandês. Será uma lista dos arquivos holandeses com documentação sobre o Brasil. Logo depois, talvez ainda em 2000, sairão trabalhos semelhantes sobre França, Espanha e Itália. São países que tiveram uma aproximação muito grande com o Brasil. Veja, por exemplo, o caso da França Antártica. A partir desses guias, vamos identificar os grandes acervos de documentos, para que eles, também, sejam microfilmados.

Caio ( . Boschi (Cnord.)

• Qual é a previsão para o fim dos trabalhos? - O Projeto Resgate de Docu-

do preparado?

- Vai faltar um documento aqui, outro ali, mas correr atrás de tudo é impossível. O professor Caio Boschi fez há algumas décadas um guia dos arquivos onde havia coisas de interesse para o Brasil em Portugal. Partindo desse guia e de outros depoimentos, fizemos um levantamento. A conclusão é que praticamente tudo está no Arquivo Ultramarino e na Torre do Tombo. Há outros lugares, como a Cidade do Porto, Évora, a Universidade de Coimbra. Mas são lugares com apenas 30 ou 50 documentos, nada que se compare aos 300 mil do Arquivo Ultramarino.

• Para fora de Portugal, o que está sen-

• Este trabalho já está muito adiantado?

- Sim, algumas partes dos guias já estão até em fase de editoração. Na Espanha, onde a documentação vem sendo trabalhada há mais tempo, já sabemos que os três principais arquivos com material sobre o Brasil são os de Simancas, de Sevilha e de Tenerife. Então, já sabemos que vamos microfilmar esses três arquivos. Na Holanda, os documentos estão em língua holandesa e letras góticas. Mas, mesmo assim, vários pesquisadores brasileiros, como João Cabral de Melo Neto e José Antônio Gonçalves de Melo, estiveram lá e fizeram livros sobre o assunto. Vamos microfilmar esses documentos e trazê-los para cá. Quem quiser lê-los, que aprenda aquela língua, que aprenda a ler aquelas letras.

• Será um trabalho rápido? -Bem, pretendemos começar a microfilmagem já em 2001. Mas o material está muito espalhado. Em Portugal, foi possível concentrar os esforços no Arquivo Ultramarino. Mas, nos outros países, há grupos de PESQUISA FAPESP


1.000 documentos aqui, SOO ali. Se tivermos condições, vamos também microfilmar documentos sobre o Brasil no Arquivo Secreto do Vaticano.

será feita no próprio arquivo. Não será preciso transportar o material.

ca em que Portugal ficou unido à Coroa espanhola estão na Espanha?

• Arquivo secreto?

,. E para trabalhar com o arquivo da Inquisição, em Portugal, houve algum problema?

-Os arquivos sobre o período filipino estão na Espanha, na parte do Conselho de Portugal nos arqmvos de Simancas e de Sevilha.

- Sim, o nome é este mesmo. Os preparativos foram feitos em parceria com Portugal. Durante muito

-Não. Está todo à nossa disposição. O material está na Torre do Tombo. Quando houve a separação entre a

• Como aproveitar esse material?

A documentação recolhida pelo Projeto Resgate estará disponível também em CD-ROM

tempo, esse arquivo era inacessível. Mas, nos últimos anos, o Vaticano fez uma ligeira abertura. Portugal, no fim do ano passado e no começo deste, colocou pesquisadores lá. Eles estão fazendo os verbetes, documento por documento. Estamos em negociação com o arquivo e já conseguimos o dinheiro para o trabalho.

• Em que pé estão as negociações? - Já estive no Vaticano e conversei com o diretor do Arquivo Secreto. Em tese, ele já liberou a microfilmagem. Estamos esperando que os pesquisadores portugueses completem os verbetes, para selecionar o que queremos, calcular a verba necessária e passar a conta para o Ministério da Cultura bancar. Deve ficar em cerca de US$ 20 mil. São pouco mais de 3 mil documentos, a metade da documentação de São Paulo no Arquivo Ultramarino. Com algumas bulas e outro material agregado, o total pode chegar a 4 mil documentos e as despesas a US$ 25 mil. A microfilmagem PESQUISA FAPESP

Igreja e o Estado, o governo português assumiu toda a documentação eclesiástica. Os documentos da Igreja passaram a fazer parte da documentação oficial do governo.

• Mas, mesmo antes do Projeto, já eram feitos microfilmes. - Sim, mas antes eram microfilmados dois processos, cinco processos. O que estamos fazendo agora é uma microfumagem sistemática, de ponta a ponta. Sem nenhuma exceção. Taunay, por exemplo, trabalhou com documentação da Espanha. Publicou alguns verbetes e alguns textos integrais na revista do Museu Paulista. Mas ele pegava um documento, vamos dizer, sobre Palmares, achava interessante, mandava transcrever e publicava. Era um documento no meio de cem. Hoje, a historiografia diz que um documento não fala sozinho. Ele está dentro de um contexto e fala junto com outros documentos.

• Os documentos sobre o Brasil da épo-

- Pense uma coisa. Antigamente, um pesquisador brasileiro ia para a Europa e trabalhava na Espanha, na Holanda ou em Portugal. Não em todos esses países simultaneamente. Mas, com a microfilmagem de todo esse material, o pesquisador vai poder acessar ao mesmo tempo a versão holandesa, a versão italiana, a versão espanhola. A versão francesa é importante. A França estava continuamente tentando invadir o Brasil. Então, o pesquisador vai poder trabalhar pela primeira vez todo um período histórico em conjunto. Antes, não havia tempo, dinheiro ou fôlego para que um pesquisador mergulhasse de quatro a seis anos em vários arquivos europeus para preparar uma tese.

• E agora? - Os verbetes facilitam tudo. Se o pesquisador está preparando uma tese sobre a colaboração entre os índios e os invasores no período colonial, pode ir aos verbetes e escolher os documentos dos quais vai preci23


sar. Ou passar o rolo de microfilme por uma máquina e fazer a mesma coisa. O sonho do Ministério da Cultura é conseguir, daqui a dois ou três anos, consolidar uma grande base de dados, colocar num mesmo lugar todos os verbetes de todas as capitanias. Aí, você vai querer, por exemplo, fazer um estudo sobre a questão de salários durante o período colonial e reunir de uma vez material de todas as capitanias. Atualmente, para fazer isso, é preciso pesquisar capitania por capitania. Esse é o desenrolar normal do trabalho. Veja o exemplo do catálogo do Espírito Santo. Fizemos uma edição de SOO exemplares. Esgotou-se rapidamente. Agora, estamos tentando fazer outra edição. Daqui a 20 anos, será dificílimo encontrar esse catálogo. Talvez só em grandes bibliotecas. Mas hoje, com a Internet, uma grande base de dados pode substituir a ida à biblioteca.

joanino está sendo agora microfilmada por pesquisadores portugueses. É o chamado Projeto Reencontro, coordenado no Brasil também pelo Ministério da Cultura. Há muitas coisas também na Bahia e em Belém do Pará. No Instituto de Estudos Brasileiros da USP, há a coleção Lamego, que deixou pesquisadores portugue-

• Haverá conflitos?

• Inclusive, com acesso de qualquer parte do mundo. - Sim, e isso é muito importante. A Unesco, numa certa altura, se viu enfrentando o problema dos países africanos que adquiAta riam a independência e queriam os documentos sobre seu passado que estavam nas metrópoles. Mas não era possível chegar num país europeu, abrir um armário, reunir os documentos e levá-los para Angola ou Argélia. A Unesco determinou então que, em países de passado comum, o arquivo passa a ser um patrimônio comum. É o caso dos documentos relativos ao Brasil que estão em Portugal.

• E vice-versa? - Sim, os documentos que estão no Brasil também pertencem a Portugal. Como o Brasil foi governado a partir de Lisboa, Dom João VI governou Portugal a partir do Rio de Janeiro. Toda essa documentação do período 24

ser interpretado e confrontado com outros documentos. Hoje o fato já passou, não existe mais a história oral. Trabalha-se com os documentos. Um pesquisador vai ver coisas nas entrelinhas de um documento, conforme a sua formação, e apresentar novas idéias.

de reunião do Vise. de Barbacena em Vila Rica

ses encantados. Lamego era um pesquisador do fim do século passado que comprou, em Portugal e outros países da Europa, muitos documentos sobre o Brasil e Portugal. Ao voltar para o Brasil, levou a coleção para Campos, no Estado do Rio, onde morava. Publicou três ou quatro livros e deixou a coleção lá. Foi comprada pelo escritor Mário de Andrade e hoje está no IEB. As coisas vão mudar, e muito. Antigamente, um pesquisador fazia um livro de história e todos aceitavam o que ele dizia, pois ele pesquisara os documentos, ele fora lá. Hoje, com o acesso mais fácil aos originais, o que um pesquisador disser poderá ser rebatido por outros dez. Pois o documento precisa

-Num julgamento, os advogados interpretam uma peça do processo de maneira diferente. Um documento histórico também pode servir de base a pelo menos duas interpretações. Com isso, muitas coisas serão repensadas, vários fatos ou interpretações serão confirmados ou desmentidos. Antigamente, havia quatro ou cinco professores que eram donos do Brasil holandês. Só eles eram autoridade sobre o assunto. Com os documentos na mão, provavelmente não haverá mais isso. Hoje, aprender uma língua não é tão difícil. Há até fitas cassete ensinando holandês. Além disso, boa parte do material holandês está em latim, uma língua básica, também, para o material italiano. Conheço vários ex-padres que estão ganhando a vida dando aulas de latim para professores de história.

• E para as pessoas? -Não sou historiadora, sou coordenadora do Projeto. Minha função é organizar esse material e jogá-lo nas mãos dos pesquisadores. É a eles que cabe o desafio. Na realidade, os pesquisadores estão hoje diante do desafio de reconfirmar ou reescrever a história do Brasil. A história do índio, por exemplo, ainda está toda para ser feita. Quando o projeto começou, o professor Darcy Ribeiro fez uma carta muito bonita, na qual dizia: "Finalmente, vamos poder conhecer coisas': Hoje, ninguém podemais ficar de 30 a 50 anos trabalhando num só projeto. PESQUISA FAPESP



ESTE SUPLEMENTO ESPECIAL É PARTE INTEGRANTE DA REVISTA PESQUISA FAPESP W 57, DE SETEMBRO DE 2000 - CAPA HÉLIO DE ALMEIDA - DOCUMENTOS PROJETO RESGATE


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