CAOS FORMA DOIS PONTOS

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luciano gutierres pessoa


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caos forma : dois pontos Luciano Gutierres Pessoa mar.2011 Trabalho de conclusão do curso de especialização Design e Humanidade 2009/2011 Centro Universitário Mariantônia - USP Universidade de São Paulo Coord. Maria Argentina Bibas e Minoru Naruto

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a cidade ĂŠ moderna, dizia o cego a seu filho os olhos cheios de terra, o bonde fora dos trilhos ‘Trastevere’, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

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Introdução Este trabalho nasce de uma pergunta sobre a forma. A princípio em um contexto bastante aberto, na relação entre territórios às vezes intercambiantes de percepção, projeto, linguagem, filosofia. A idéia, alimentada também pela perspectiva crítico filosófica deste curso ‘Design e Humanidade’, se desenvolveu a partir da constatação talvez corriqueira de que, como designers, mas sobretudo como seres vivos e humanos, todo o tempo lidamos com forma e suas mutações. Um conceito que se mostra tanto um ente abstrato quanto uma característica expressa na matéria. Um conceito tomado às vezes como significado, às vezes como significante, às vezes como idéia, às vezes como realização. De todo modo um conceito que diz respeito a um contorno, um limite, entre algo manifesto, perceptível, sensível, e algo imanifesto, potencial, indefinido ou mesmo oculto. No dicionário Houaiss vemos referências a “configuração física dos seres e

das coisas, como decorrência da estruturação de suas partes; formato, feitio, algo ou alguém indistinto, percebido imprecisamente, modo, jeito, maneira”... assim como definições oriundas de proposições filosóficas, como: Em Platão: cada uma das realidades transcendentes que contêm a essência

imaterial dos objetos concretos, captáveis somente pelo intelecto que supera

forma

lat. forma,ae ‘aparência, semelhança, imagem, fôrma etc.’ (HOUAISS, 2001) ‘modo sob o qual uma coisa existe ou se manifesta’, ‘configuração, feitio, feição exterior’. (CUNHA, 1997)

morphé

do grego, ‘forma’, sinônimo restrito de êidos. Empregado especialmente por Aristóteles em sentido metafísico: “A substância é composta de matéria e forma”. Em Árquitas, a forma (morphé) é “a causa do Ser”, e a substância (ousía) é o substrato que recebe a forma. (GOBRY, 2007, p.95)

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as impressões sensíveis; arquétipo, ideia. Em Aristóteles: princípio que determina, modela ou delineia a matéria bru-

ta, fazendo com que cada ser adquira uma identidade imagética, um traçado definido, uma configuração característica. Em Kant: cada uma das leis e estruturas inerentes ao espírito humano que

possibilitam o ordenamento apriorístico do material múltiplo e caótico ofereUm conceito que se aproxima do conceito de forma, no sentido de estar associado tanto a ‘objetos’ visíveis como invisíveis, mentais, é o conceito de imagem.

imagem

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lat. imágo,ìnis ‘semelhança, representação, retrato’, pelo genit., cp. imago. (HOUAISS, 2001)

eikón

do grego, ‘imagem’ (Latim: imago, simulacrum). Reprodução de um objeto sensível (por obra de arte) ou de uma realidade inteligível (pela natureza). Sinônimo: mímema, que vem de mímesis, imitação. (GOBRY, 2007, p.51)

cido pelas sensações, viabilizando dessa maneira a compreensão da realidade. Neste estudo, ainda que de modo circular, vamos abordar a forma principalmente sob quatro pontos de vista: – dos mitos ocidentais da origem; – da forma em relação ao corpo; – da forma em relação à cidade; – e retomando de certo modo o primeiro, da forma em relação à linguagem e à potência da palavra como cosmogonia. Paralelamente, há uma sugestão de contraponto ao discurso verbal na pequena série de imagens geradas a partir da idéia de caos, conceito que também permeará todo o trabalho.

Forma, origem, linguagem Em nosso mundo contemporâneo, consumidor e criador de formas ao infinito, cabe talvez um olhar para os vestígios que temos das possíveis formas primeiras, de narrativas e de uma arqueologia que apontam para todos os inícios: do tempo, do espaço, do universo, da terra, dos animais, da humanidade, da cultura. Na mitologia grega, como talvez em muitos mitos da criação, de algum modo


a forma aparece como um estágio subsequente a um tipo de caos ou ‘pré-mundo’ original, amorfo, não criado, não ordenado, não definido, mas igualmente ambiente e fonte geradora de um sem número de entes, formas, objetos e acontecimentos. Onde não há, passa a haver. O que não é, torna-se. Sobre a tradição grega e o Gênesis, nos diz Brandão (1986): No princípio era o Caos. Caos, em grego xa/ov (Kháos), do v. xai/nein (khaínein), abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável. Ovídio chamou-o rudis indigestaque moles (Met. 1,7), massa informe e confusa. Consoante Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o Caos é “a personificação do vazio primordial, anterior à criação, quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo”. No Gênesis 1,2, diz o texto sagrado: “A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas.” Trata-se do Caos primordial, antes da criação do mundo, realizada por Javé, a partir do nada. (p.184)

Sintomaticamente, quando temos algum vislumbre desses inícios imprecisos, ele nos chega formatado nas histórias que ouvimos, ou que nos contam objetos, rituais, geografias, fósseis, arquiteturas, mas hoje especialmente através de narrativas escritas. Embora a linguagem oral humana tenha provavelmente uma história dezenas (talvez centenas) de milhares de anos mais antiga que a da escrita, e seja sua antecessora natural, não à toa o início da chamada ‘História’ humana está de algum modo associado ao surgimento da escrita, dos alfabetos, como sugere Flusser (2008), numa lenta e complexa evolução de sistemas de imagens gravadas que em algumas línguas assumem (literalmente) o papel de fixar e representar o som da fala e o sentido que ela carrega. O sentido habita o som, e é vestido por ele. O sentido e o som habitam a escrita e são vestidos por ela. E de algum modo essa roupa, essa casa, ao serem definidas, formam e informam o sentido primeiro, e uma à outra mutuamente. Como a taça que acolhe, restringe e oferece o vinho do sentido, este também permanece parado-

mundo

1. adj. ‘limpo, asseado’ 2. sm. ‘o universo’ XIII. Do lat. mundus (CUNHA, 1997)

lugar

sm. ‘espaço ocupado, localidade, cargo, posição’ | XIII, logar XIII | Do lat. locális, de locus (CUNHA, 1997)

espaço

sm. ‘distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre limites determinados’ (CUNHA, 1997)

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aparecer xalmente inalcançável em algum quase lugar, de onde surge e volta a desaparecer.

vb. ‘surgir, apresentar-se’ | XIII, appa- XIII etc | Do lat. apparescere (CUNHA, 1997)

parecer

vb. ‘antigo aparecer’ XIII; ‘semelhar’ XIII. Do lat. parescere (CUNHA, 1997)

parente

s2g. ‘pessoa que, em relação a outra(s), pertence à mesma família, quer pelo sangue, quer pelo casamento’ XIII. Do lat. parens -entis | aparentado XVI | aparentar XVI (CUNHA, 1997)

parir

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vb. ‘dar à luz, expelir do útero, gerar’ XIII. Do lat. parere (CUNHA, 1997)

Entre o sentido e o sensível: forma. Visível ou não, imaginável. Ordenações, relações e limites mais ou menos perceptíveis, menos ou mais sensíveis. Forma, e esse limiar em que um sentido toma forma, ganha corpo, e em que uma forma ganha sentido, significado, se configura, se considera, se diferencia de um fundo ‘vazio e sem forma’, como narrado no Gênesis. Formas que usamos e formas que somos. Formas que carregam um ou vários sentidos, às vezes díspares ou contraditórios. Formas que não sabemos que sentido tem, ou se tem algum. Sentidos que habitam formas, sentidos habitantes de objetos, de representações sensíveis e pensáveis. Torrano (1991), em seu estudo e tradução da “Teogonia” (origem dos deuses) de Hesíodo (séc.VIII a.C.), observa as “múltiplas nuances enantiológicas” na origem, assim como nos teria sido legada pelo pensamento grego arcaico. Conceitos que transcendem e integram aspectos contraditórios da realidade, reunindo-os no que chama de coincidentia oppositorum, em modos de articulação e coerência às vezes estranhos ao compreender moderno. Desse modo a origem na Teogonia reúne e contrapõe Kháos, Terra, Tártaro e Éros: potestades, potências das quais se originam linhagens, por união amorosa e por cissiparidade. Na leitura etimológica de Kháos (khaíno, khásko: abrir-se, entreabrir-se, abrir a boca, as fauces, o bico), de Éros (eráo, éramai: amar, desejar apaixonadamente), da Terra e do Tártaro (no fundo do chão), Torrano aponta para uma origem onde já se anuncia a presença de uma unidade quádrupla, em tensa simetria e diversos níveis de espelhamento, de harmonias e contradições, em relações dinâmicas de pares móveis que se identificam e se antagonizam. Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,


dos imortais que tem a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. Hesíodo, “Teogonia”, p.111

Tal como Éros é a força que preside a união amorosa, Kháos é a força que preside à separação, ao fender-se dividindo-se em dois. [...] Se a palavra Amor é uma boa tradução possível para o nome Éros, para o nome Kháos uma boa tradução possível é a palavra Cissura — ou (e seria o mais adequado, se não fosse pedante): Cissor. Jaa Torrano (in Hesíodo, “Teogonia”, p.43)

Torrano sugere a leitura, na Teogonia, de uma analogia entre linguagem e ser, na expressão mesma das Musas, cujo ser se realiza no cantar, no dizer, no lembrarse, e do mesmo modo no silenciar, no ocultar, no mentir, no esquecer. [...] ser é dar-se como presença, como aparição (alethéia), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória. O ser-aparição portanto dá-se através da linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. (p.29) [...] cada ente se determina não tanto pelo que ele é, mas pelo que ele não é e pelo contraste (contiguidade) do que ele é com o que ele não é: tal como uma silhueta, cada ente ou cada coisa se determina e se define contra o pano de fundo (e de dentro e de frente e de fora, — múltiplo fundo) do que ele ou ela não é. (p.48)

A distinção surge do indistinto, a este dá forma, e tem um no outro seu limite e um reflexo de seu sentido. Com a proximidade geográfica, cultural e temporal da Grécia em relação à tradição judaico-cristã, não é improvável imaginar a influência, talvez mútua, desse

Kháos (‘abrir-se’, ‘abrir a boca’) fim e fonte, no imaginário ocidental que gera o mito do deus judaico-cristão que cria o mundo pela fala, pelo verbo divino.

alethéia

do grego, ‘verdade’. Ligado a um sentido de negação de ‘Léthes’ (esquecimento), também nome de um rio na mitologia grega. Aléthes: verdadeiro, veraz. (GOBRY, 2007, p.16) No livro X da República de Platão, Sócrates relembra o mito das Moiras: “... então, sem que pudesse voltar para trás [...] dirigiram-se à planície do Letes [...] Cada alma é obrigada a beber certa quantidade desta água, mas as que não conservam a prudência bebem mais do que deveriam. Bebendo-a, perde-se a lembrança de tudo. (GUINSBURG, 2010, p.415)

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ser

vb. ‘estar, ficar, existir, tornarse’ XIII. Do lat. sedere ‘estar sentado’ ‘assentar’, fundido com formas do lat. esse ‘ser’; o lat. sedere, da idéia original de ‘estar sentado’ passou à de ‘estar’, e, daí, à de ‘ser’. (CUNHA, 1997)

existir

lat. exsisto,is,stìti,ère ‘elevar-se acima de, aparecer, deixar-se ver, mostrar-se; sair de, provir de, nascer de; apresentar-se, manifestar-se; existir, ser; consistir, resultar’; ver exist-; f.hist. sXVII existes (HOUAISS, 2001)

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Do mesmo modo, a questão da abertura, do abrir-se expresso na idéia de caos, me parece carregar certamente esse simbolismo: tanto o do indiferenciado como o de passagem, origem, nascimento e morte. Aparecimento e desaparecimento, animal, vegetal, cósmico, ontológico, refletindo as tantas aberturas físicas que assitimos e vivemos, por onde fluem fluidos e luzes e sons e sementes ao corpo, à mente, à terra, e por onde nascem e morrem gentes, idéias, imagens, sons, plantas, animais. A denominação do nosso meio como ‘natureza’ evidencia a centralidade que tem para o humano o elemento do nascer, aparecer. O que é se afirma como tal no ser da linguagem, no que a/parece. Vivemos num paradoxo entre ser e existir: de algum modo, tudo é, mas existir é também sair (ex-) para fora do indistinto (Ser). No início do século XVIII o filósofo George Berkeley dizia: ’esse est percipi’ —

método ser é ser percebido. Em meados do século XX, elaborando na filosofia o conceito de

gr. méthodos,ou ‘pesquisa, busca, p.ext. estudo metódico de um tema’, de metá ‘atrás, em seguida, através’ e hodós ‘caminho’ (HOUAISS, 2001)

linguagem, Martin Heidegger vai desenvolver a idéia de caminho (odos, em grego), em contraponto à idéia de método (do grego, méthodos, caminho para chegar a um fim). Linguagem como caminho no sentido em que nunca nos colocamos fora dela, mas a habitamos, mesmo quando fazemos uso de um método. Jacques Derrida, leitor de Heidegger, vai dizer: “não há nada fora do texto”. E Umberto Eco, também sobre Heidegger (Eco, 1971): Já existe claramente em Heidegger a idéia de um Ser atingível apenas através da dimensão da linguagem: de uma linguagem que não está em poder do homem porque não é o homem que nela se pensa mas ela que se pensa no homem. (p.339) [...] ‘dizer’ torna-se um ‘deixar ser-posto-diante’ no sentido de des-cobrir, deixar aparecer... (p.340)

Num ponto de vista biológico, Maturana e Varela (2001) sugerem que a linguagem humana nasce já como estrutura metalinguística, ou seja, nasce essen-


cialmente onde o ato de representar é também representado, o que acontece em situação de convívio social continuado, na elaboração da experiência coletiva, no desenvolvimento de vínculos estreitos, na partilha de alimentos etc. Linguagem é saber de si no expressar-se, e se constrói nas articulações linguísticas entre cada indivíduo e os outros. Eles dizem: O fundamental, no caso do homem, é que o observador percebe que as descrições podem ser feitas tratando outras descrições como se fossem objetos ou elementos do domínio de interações. [...] Somente quando se produz essa reflexão linguística existe linguagem (p.233) [...] como fenômeno na rede de acoplamento social e linguístico, o mental não é algo que está dentro de meu crânio. Não é um fluido do meu cérebro: a consciência e o mental pertencem ao domínio de acoplamento social (p.256) [...] não porque a linguagem nos permita dizer o que somos, mas porque somos na linguagem, num contínuo ser nos mundos linguísticos e semânticos que geramos com os outros. (p.257)

corpo

lat. corpus,òris ‘corpo (p.opos. a alma), corpo inanimado, cadáver, qualquer objeto material, substância, matéria, complexo, todo, reunião de pessoas, corporação, povo’; ver corp(or)-; f.hist. sXIII coorpo

texto

Corpo, texto, tecido, lugar Considerado um primeiro ponto de vista mitológico sobre a origem da forma e da linguagem, o corpo humano e a corporeidade do mundo se constituem provavelmente na fonte de nossa mais indelével noção de forma. E forma aqui, enquanto experiência vivida, tendendo a ser apreendida menos como forma objetiva que como ‘realidade’ subjetiva, isto é, menos como forma que como fundo, como ‘vazio’ gerador de forma, mas ‘invisível’. O corpo humano e a corporeidade do mundo são dimensões ontológicas do ser humano, e por isso as habitamos, por isso é incompleto tomá-las como apenas objeto. Vemos o mundo como humanos. Mas em geral não pensamos nas limitações implicadas na observação humana enquanto tal. Ao mesmo tempo, o corpo nos

sm. ‘as próprias palavras de um autor, livro ou escrito’ | XIV, textu | Do lat. textum -i ‘entrelaçamento, tecido’ ‘contextura (duma obra)’ (CUNHA, 1997)

textura

sf. ‘ato ou efeito de tecer’ ‘tecido, trama’ 1813. Do lat. textura (CUNHA, 1997)

linha

sf. ‘fio de linho, de algodão, de metal’ ‘fila, limite, baliza’ ‘norma, regra, série de grau de parentesco’ ‘serviço de transporte’ | XIV, linna XIII, lyna (CUNHA, 1997)

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objeto coloca como presença, como objeto, como tecelões e como fio no tecido da cidade.

lat. objectus,us ‘ação de pôr diante, interposição, obstáculo, barreira; objeto que se apresenta aos olhos’ (HOUAISS, 2001)

Corpo é o que somos desde antes de sabermos de nós e mesmo quando já não sabemos. Corpo é algo que em nós sabe o caminho, mesmo quando não temos onde ir. É o texto tecido da memória antes e depois do texto, o fio antes de ser fia-

objetivo do, a trama por trás da trama e o corte depois do corte. O corpo é nossa referência

lat.escl. objectívus,a,um ‘id.’ de objectus,us ‘ação de colocar adiante’; ver jact-; f.hist. 1720 objectivo; a datação é para a acp. adj. ‘diz-se do que está no campo da experiência sensível’ (HOUAISS, 2001)

observar

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lat. observo,as,ávi,átum,áre ‘observar, espreitar, espiar, trazer debaixo da vista’; ver -serv-; f.hist. 1563-1570 observado, 1572 obseruar (HOUAISS, 2001)

primeira de cheio e vazio, dentro e fora, de gesto, movimento, de limite e abertura. O corpo é nosso lugar, nossa casa, nosso carro, nossa chegada e nossa partida. Falamos hoje quase com naturalidade sobre o pós-humano, clones, cyborgs, mas ainda pensamos em corpo, porque aprendemos a identificar corpo e vida. O corpo humano no mundo e o corpo do mundo são fontes primárias de conhecimento. Não há como viver sem elaborar forma e linguagem, semelhança e diferença. Falando sobre a metáfora ou relações de semelhança como instrumento epistemológico na ciência contemporânea, Lucrécia D’Aléssio Ferrara (2002) vai dizer: Representação ou mediação é estar entre, inter-esse. [...] Esse inter-esse, essa mediação interesseira ou interessada não se impõe, mas uma vez aceita, seduz e prescreve suas regras de jogo que supõem cumplicidade dentro de uma concepção de real e sua possível verdade relativa. (p170) Carregada de sentidos, a representação estabelece com a realidade uma analogia que inventa, ao mesmo tempo, a realidade e a própria ciência. Logo, a representação não é arbitrária em relação à realidade, mas lhe é analógica na clara acepção de Paul Valéry: “Pois a analogia é precisamente apenas a faculdade de variar as imagens, combiná-las, fazer coexistir a parte de uma com a parte da outra e perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas. E isso torna indescritível o espírito, que é seu lugar”. (p.171) Analogia, ficcção, metáfora, representação são termos que adquirem valor na ciência contemporânea para designar outra maneira de produzir conhecimento, abolindo dedução, explicação e necessidade. (p.173)

Como é comum no mundo da forma, identidades e diferenças encontram os encaixes mais curiosos. Uma mesma forma adquire um significado aqui, outro lá.


Por analogias e metáforas relacionamos então um olhar da biologia a um mito da criação, um conto da Távola redonda a teorias sobre cidade e a um diálogo de Platão. A força da função poética da linguagem reside exatamente na intensidade da expressão em territórios menos mapeados ou não mapeados, naquilo que é dito antes de haver um sistema que o diga. Um conteúdo que prescinde de formas préestabelecidas, e inaugura uma linguagem no ato de dizer-se. Lucrécia nos lembra da função poético-epistemológica da representação na criação-explicação do mundo, o que se dá necessariamente em âmbitos de cumplicidade, ou seja, ainda que o conhecimento seja provisório, ele vale dentro de uma dada realidade e situação pela comum aceitação de seus interlocutores. Do mesmo modo, contar uma história, narrar um mito, estão certamente entre os meios mais antigos e mais essencialmente humanos de transmitir experiência e conhecimento. O enredo de uma história, o modo como se conta ou escreve, o tom da voz ou a textura do papel, cuja soma de significados permanece sempre em suspenso, podem revelar profundidades sobre a vida de um povo que dificilmente seriam alcançadas de outra maneira. Sobre formas e significados do corpo, tomo um exemplo de uma das tantas versões dos romances de cavalaria, numa linha escrita há quase 800 anos, sobre o corpo de uma mulher especial: [...] no terceiro dia vêem chegar uma donzela sobre uma mula amarela, que guia com a mão direita, duas tranças negras às costas. Homem jamais viu ser tão feio, mesmo no inferno! Homem jamais viu metal tão baço como a cor de seu colo e das mãos. Outra cousa porém era bem pior: os dois olhos, dois buracos não maiores que olhos de ratos. O nariz era um nariz de gato, os lábios de burro ou boi, os dentes amarelos como gema de ovo. A barba era a de um bode. Peito corcunda, espinha torcida. Ancas e ombros mui bons para o baile. Outra corcunda nas costas, pernas tortas como vara de vime, também próprias para a dança. (p.85) “Perceval ou o Romance do Graal”, Chrétien de Troyes, 1180 d.C.

Foucault (citado em Kate Nesbitt, 2008, p.75) nos lembra de dois sentidos da palavra ‘sujeito’: “sujeito submetido a outro pelo controle e pela dependência e sujeito ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si”.

sujeito

adj. sm. ‘submetido’ ‘indivíduo indeterminado, ou cujo nome se quer omitir’ ‘(Gram.) termo da proposição a respeito do qual se anuncia alguma coisa’ | sogeito XIII, sojeito XIV, soyeito XIV etc. | Do lat. subjectus (CUNHA, 1997)

subjetivo

lat. subjectívus,a,um ‘gram relativo ao sujeito; que se submete a, submisso’, por infl. do fr. subjectif (sXV) ‘relativo a sujeito’, (1801) fil adj. e subst. ‘id.’ (como trad. do al. subjektiv), (1804) ‘relativo à vida psíquica do sujeito’; ver jact-; f.hist. 1858 subjectívo (HOUAISS, 2001)

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Kate Nesbitt (2008), tratando do corpo como um dos focos importantes do pensamento pós-moderno na arquitetura e no espaço da cidade, vai dizer:

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[...] pode-se dizer que as questões do corpo e do lugar não foram reconhecidas pelo movimento moderno devido ao seu foco no coletivo em detrimento do individual, o que se expressava em uma linguagem de universalidade, a um só tempo tecnológica e abstrata. A celebração da máquina como modelo formal, por exemplo, exclui o corpo. A arte desempenha um papel mais importante na arquitetura pós-moderna do que a tecnologia [...] (p.45) Na arquitetura clássica, o corpo humano funciona como um mito de origem e é usado na projetação como modelo figurativo e proporcional para a organização da planta, da fachada e do detalhe. [...] O corpo representa metonimicamente a natureza em geral e seu fino modo de organizar funções complexas. (p.75)

Essa personagem que surge no terceiro dia de uma festa em que Perceval é acolhido pelo rei Artur e pela corte, essa ‘mulher feia’, que de cada animal tem um pouco e a cujo corpo falta um sentido de harmonia que gostamos de atribuir à natureza, é que chega para dizer onde Perceval falhou em dois pontos simples, porém cruciais de sua missão. Essa mulher grotesca que diz a verdade sem rodeios, tem o corpo torto e curvo como o destino, corcunda na frente e nas costas, ‘frankenstein’ de uma fauna curiosamente doméstica, as pernas arqueadas como vime, e afinal ficamos sabendo que ela é muito boa para a dança! Podemos pensar sobre a beleza, sobre harmonia, sobre o que parece agradável, e mesmo sobre o que nos parece forma ou não. Mas uma feiura tão extrema (embora as partes sejam familiares) aliada à clareza de que nenhuma outra pessoa foi capaz, avisa também ao leitor: o corpo é. Não apenas habitamos um corpo cheio de vontades e repulsas, como somos um corpo com a terra, com os animais, e isso por si gera uma poderosa teia de realidade cujo fim, origem e processos obstinadamente nos escapam. Modernos que somos, queremos observar o mundo com objetividade, e nele nos percebemos como parte de um todo a que ignoramos o sentido, os ‘por ques’, assim como muito dos ‘comos’. Observar pressupõe dentro e fora. Nós, sujeitos, observamos o mundo à nossa frente como objeto. Mas como mundo que também somos, como sujeitos e como objetos, pergunta-se: em que reside o limite entre os dois, ou, em que medida podemos observar um objeto (de fora) do qual estamos ‘dentro’ (sujeito). Esta é uma pergunta ‘pós-moderna’ que surge de um procedimento lógico bastante simples, essencialmente moderno, e que vai ressoar no último terço do século XX nas artes, na filosofia, na arquitetura, ecoando também trabalhos anteriores como o de Gödel na matemática, como veremos adiante.


Voltemos nosso olhar sobre a deusa Ártemis, por exemplo, como observada por Vernant (1988) a respeito das figurações do Outro na Grécia antiga. Ártemis é a deusa da alteridade, das margens, dos limites e do além da cidade. Das montanhas, do estrangeiro. Não como os poetas na República de Platão, afastados da cidade por representarem também certos limites da linguagem, mas no âmbito do corpo, do instinto, do humano lidar com a natureza animal. Não no sentido de expulsão, como na República, mas na integração do que é selvagem à civilização. Conforme Vernant, Ártemis é por vezes considerada uma divindade externa ao panteão grego, de origem nórdica ou oriental, mas sobretudo representa esse papel do Outro. Portadora do arco, como da lira, Ártemis preside a caça, a animalidade, a guerra, assim como o parto e a preparação dos jovens para a vida adulta em sociedade. É simbolizada também pela cabra, o mais selvagem dos animais domésticos. Diz Vernant: O outro como elemento constituinte do mesmo, como condição da própria identidade. Por essa razão é que a Soberana das Margens, nos santuários em que leva os jovens a atravessar a fronteira da idade adulta, onde os conduz dos confins ao centro, da diferença à similitude, surge ao mesmo tempo como deusa políada, fundadora da cidade, instituindo — para todos que no início eram diferentes, opostos ou mesmo inimigos — uma vida comum [...] (p.31)

Sobre limite e aberturas, sobre a cidade como corpo e linguagem, podemos relacionar também o Éden à cidade justa (kalípolis) de Platão, em cujo projeto os poetas não teriam lugar. Os poetas trágicos, especialmente por reiterarem aspectos moralmente ‘indesejados’ da alma humana, mas a poesia de um modo geral, assim como a pintura, por estarem a três (ou seriam dois?) graus de separação do Ser, por serem mera imitação das coisas, como uma cama, que por sua vez é uma subtração em relação à idéia de cama, original, absoluta e eterna. Estão aqui colocadas questões em vários aspectos semelhantes às do Gêne-

Uma imagem vinda da biologia e que dá o que pensar sobre corpo, linguagem, cidade e essa questão relativa aos limites de um sistema, é sugerida por Maturana e Varela (2001). Falando sobre a peculiar organização autopoiética dos seres vivos, a capacidade de se auto-gerar, assinalam o que teria sido um ponto crucial no surgimento da vida tal como a conhecemos. O aparecimento, há milhões de anos, de uma estrutura celular ao mesmo tempo plástica, flexível e estável, capaz de manter a integridade da célula e ao mesmo tempo permitir uma complexa interação com o meio.

Somente quando, na história da Terra, ocorreram as condições para a formação de moléculas orgânicas como as proteínas — cuja flexibilidade e possibilidade de complexificação é praticamente ilimitada —, foi que aconteceram as circunstâncias que tornaram possível a formação de unidades autopoiéticas. (p.57)

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sis, tal como veremos examinado adiante por Flusser e Valéry. O afastamento e a separação em relação ao Ser pela via das dobras da linguagem, um sentido de inadequação e exílio compulsório dos agentes/vítimas desse afastamento, mesmo estes sendo personagens operários da matéria central de ambos os mitos: a língua, a palavra, que a um só tempo cria o mundo e nos expulsa dele. Na filosofia, uma outra questão a respeito de corpo, forma e linguagem que podemos relacionar aqui é o conceito de rizoma, em Deleuze, como modelo de articulação móvel e múltipla no pensamento. Analogias entre formas no pensamento, na natureza e em nossa experiência física não são novidade. A própria teoria das idéias na República de Platão, também chamada teoria das formas, ou a alegoria da caverna, refletem esse procedimento na sugestão de fenômenos visuais, utilizando a percepção humana da luz do Sol 20

como referência para ilustrar ou definir uma idéia através de uma imagem. Em Deleuze/Guattari (1995), o conceito de rizoma parece querer espelhar no pensamento estruturas da natureza, tomadas como imagem, não de forma ‘fixa’ ou ‘estável’, como em Platão, se assim podemos dizer, mas como forma em movimento, como possibilidade de forma, como forma-devir, ou algo que poderíamos entender como meta-forma. A propósito, poderemos afirmar que não há, no título mesmo ‘Mil Platôs’, de Deleuze/Guattari, a sugestão de multiplicar, de re-significar de modo múltiplo a teoria platônica? A semelhança desse tipo de estrutura cambiante com o comportamento de conjuntos de raízes de plantas é direta, mas alude também à plasticidade da rede de conexões neuronais no cérebro, para não falar em mapas de trânsito das grandes metrópoles, ou na rede mundial de computadores, posterior aos escritos de Deleuze/Guattari. Novamente nas palavras de Maturana e Varela (2001): A plasticidade do sistema nervoso se explica porque os neurônios não estão conectados como se fossem fios com suas respectivas tomadas. Os pontos


de interação entre as células constituem delicados equilíbrios dinâmicos, modulados por um sem-número de elementos que desencadeiam mudanças estruturais locais. Estas são o resultado da atividade dessas mesmas células, e também de outras, cujos produtos viajam pela corrente sanguínea e banham os neurônios. Tudo isso é parte da dinâmica de interações do organismo em seu meio. (p.187) [...] quaisquer que sejam os mecanismos exatos que intervêm nessa constante transformação microscópica da rede neuronal durante as interações do organismo, tais mudanças nunca podem ser localizadas nem vistas como algo próprio de cada experiência. (p.189)

Maturana e Varela ressaltam não só o fato de que as informações no cérebro estão menos em ‘lugares’ do que em ‘situações’ sistêmicas, como também sugerem uma íntima e ainda inexplorada relação fina e acoplada, interdependente, entre as possibilidades do próprio sistema nervoso e o meio em que vivemos e interagimos.

vazio

Vazio e cidade, caos e cosmos A partir desse início onde vimos algumas abordagens sobre a origem de forma e linguagem, assim como relações entre corpo, pensamento e cidade, queremos direcionar agora nosso olhar um pouco mais sobre o conceito de forma e cidade. Propondo denominar como ‘forma humana’ a forma do ponto de vista humano, uma vez criada ou reconhecida por projeto ou percepção humanos, começamos a aproximar o conceito de forma do conceito de cidade, como sugestão de que, de algum modo, a cidade encarna a esta altura da história muito do sentido e da manifestação da forma criada ou agenciada pelo humano no mundo. Como contraponto a esse conceito de cidade, consideramos também um conceito de vazio, de não manifesto, estabelecendo um espelhamento da relação colocada no início entre forma e sentido, entre manifesto e imanifesto.

lat. vacívus,a,um ‘desocupado, vago, livre; desprovido’ (HOUAISS, 2001)

cidade

lat. civìtas,átis ‘cidade, reunião de cidadãos etc.’ (HOUAISS, 2001)

projeto

lat. projectus,us ‘ação de lançar para a frente, de se estender’ (HOUAISS, 2001)

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Parte desse sentido, desse jogo entre cidade e vazio, se configurou na leitura de “A cidade polifônica”, em que Massimo Canevacci propõe relacionar, ao conceito benjaminiano do aprender a perder-se na cidade, um afastamento, um distanciamento crítico, resultando num processo — que para Canevacci (2009) não é dialético — entre o que chama de máxima internidade e máxima distância, como uma espécie de estratégia complexa ou recurso para abordar um objeto ainda mais complexo, como, no estudo de Canevacci, a metrópole de São Paulo. Não saber se orientar numa cidade não significa muito. Perder-se nela, porém, como a gente se perde numa floresta, é coisa que se deve aprender a fazer. (p.13) Walter Benjamim

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Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas. (p.35) Massimo Canevacci

Sugerindo talvez um atrito entre qualidades do perder-se e do afastar-se, uma para ‘dentro’ da cidade e outra para ‘fora’, Canevacci aponta para a necessidade de explorar tensões e possíveis inversões entre o familiar e o estranho, na busca de um olhar estrangeiro, de um olhar capaz de perceber novas diferenças, ou, no conceito de Gregory Bateson, (nova) informação: [...] muitas vezes o olhar desenraizado do estrangeiro tem a possibilidade de perceber as diferenças que o olhar domesticado não percebe. [...] E são justamente as diferenças (Bateson, 1972) que constituem um extraordinário instrumento de informação. (p.17) [...] Os contornos da cidade atual [...] uma orla em mutação permanente — são ‘visíveis’, e portanto ‘desenháveis’, somente na medida em que os fazemos desaparecer, dissolver nos desertos da abstração. (p.21) Massimo Canevacci


Quais são as partes do território que são transferidas para o mapa? [...] O que realmente é transferido para o mapa é a diferença, seja ela uma diferença de cotas, de vegetação [...] O que entendemos por informação (por unidade elementar de informação) é uma diferença que produz uma diferença. (p.25) Gregory Bateson

Interessava-me construir, não um mapeamento extenso, mas itinerários a respeito de forma e sentido. Questões que poderiam se desenvolver depois em campos específicos, entre saber e não saber nos âmbitos do projeto e da filosofia. Um conceito dialético reunindo e distinguindo pólos complementares, figura e fundo, no desenho, na matéria, na percepção, no pensamento, nos processos de significação.

Cidade e vazio de algum modo como espelho e reflexão para as dicotomias platônicas da linha dividida, da caverna (sensível/inteligível, luz/sombra, realidade/ ilusão), retomadas em certa medida em Merleau-Ponty (visível/invisível), e passando necessariamente pelas tensões e nuances entre conceitos de modernidade e pós-modernidade, que certamente caracterizaram um dos focos de interesse deste curso. Comecei a pensar cidade e vazio como conceitos agentes de um certo limite entre uma separação e uma reunião, de modo dinâmico e potencialmente semelhante a outros duplos: na relação entre terra e céu, entre corpo e mente, feminino e masculino, entre a parede e o carvão, entre a memória e o esquecimento, entre a palavra e o inefável.

Cidade como caractere, caráter, representante possível de uma forma escritura humana no mundo, naquilo em que o humano discerne, escolhe, atua, diferencia o indiferenciado, julga, e escreve, por mais caótica que possa ser essa escritura.

Vazio como anterior, posterior, interno e externo a essa mesma escritura, como a neblina (mist), mistério ou sopro, de onde surgem, dançam, e onde se perdem ou se misturam as línguas, as histórias, e onde todo significado se desfaz e se refaz.

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Língua, letra e cosmogonia Sobre implicações entre o surgimento da escrita e o mundo visto por ela ou pelo homem que a utiliza, Vilém Flusser vai ressaltar a influência do sentido linear de escritura/leitura na noção de história e tempo histórico que temos hoje. Em estudo recente sobre Flusser, Norval Baitello fala sobre as “três grandes catástrofes” como grandes eras de evolução humana: a hominização (uso de ferramentas de pedra), a civilização (vida em aldeias), e uma terceira ainda sem nome (um novo nomadismo, informacional). Diz Baitello (2010) sobre as ‘catástrofes’ de Flusser:

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Na primeira, o homem desenvolve ferramentas e persegue sua caça, é nômade como a caça e como o vento; ao andar (como o vento), toca e apreende o mundo. Na segunda, constrói casas, domestica e cria sua caça; começa a possuir coisas e, como possui, torna-se fixo na terra, não mais pode andar para apreender o mundo; cria as imagens tradicionais e a escrita que substituem o mundo e os seus percursos (e somente apreende o mundo com sua mediação). Na terceira, sua casa fica inabitável, porque por todos os seus buracos entra o vento da informação (com suas imagens técnicas, transmitidas pelas tomadas de eletricidade). Este o conduz a um nomadismo de novo tipo, no qual não é mais o corpo que viaja, navega ou caminha, mas o seu espírito (em latim “spiritus”, em grego “pneuma”, em hebraico “ruach”), seu vento nômade. (p.52)

Baitello nos fala da ‘escalada da abstração’ (ou subtrações) com que Flusser descreve as passagens da humanidade, do mundo espacial, tridimensional, da experiência comum humana para o mundo das imagens, na pré-história, perdendo uma das três dimensões (a profundidade). Em seguida a passagem do mundo das imagens para o mundo da escrita, por meio de pictogramas, ideogramas e por fim letras organizadas linearmente, perdendo mais uma dimensão (do plano para a linha). E finalmente a passagem da escrita linear para o que Flusser chama de ‘escrita’ das imagens técnicas, formada por grãos, por cálculos (pedrinhas), pontos, pixels, já sem dimensão alguma.


Esse mundo granulado em que ainda vivemos, teria tido início com a fotografia, se desdobrado na fotografia sequencial (cinema, televisão), e prosseguido, cremos, na escrita imagético-virtual do mundo microeletrônico. Conforme Baitello, Flusser aponta para essa espécie de resgate do mundo das imagens, agora em registro de não-coisa, e parece natural imaginarmos o próximo passo, a conquista do mundo espaço-temporal como não-coisa, holográfico. Algo próximo da cartografia limite-origem de Borges (1978) no conto “Do rigor na ciência”, estendida a todos os planos do que um dia já se chamou realidade: o espaço-tempo reconstruído ponto por ponto, do corpo humano à cidade. Naquele império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. [...] (p.71)

O lugar representado, descrito, reconstruído, como no mapa de Bateson ou Canevacci, torna-se também o próprio lugar, na medida em que o lê e o traduz. O

ser de linguagem das musas, lugar comum e lugar nenhum (cosmos e caos, convenção e utopia), se apropria do mundo, recria o mundo como linguagem e ‘cai’, com Adão, no abismo mesmo de conhecê-lo. Como já foi dito, o início da história humana (em contraposição à chamada ‘pré-história’) está ligado ao início da história da escrita. Paralelamente à progressiva fixação do homem na terra, do homem que caça para o homem que cria animais e depois cultiva seus alimentos, a linguagem também vai evoluir no sentido de se fixar nesse instrumento a que hoje chamamos simplesmente: escrita.

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Dos longínquos registros rupestres, de dezenas de milhares de anos, riscados nas paredes de cavernas à luz de uma fogueira, aos primeiros sistemas rudimentares de representação pictórica, o convívio, o comércio, o desenvolvimento e estabilização das culturas sedentárias vão longamente gestar e desenvolver os primeiros sistemas propriamente de escrita pictográfica, que por sua vez darão origem aos alfabetos, no mundo ocidental e em toda parte, de formas e por caminhos variados, por heranças e por contaminações. Adrian Frutiger (1999) assinala o momento em que, por volta de 1.000 a.C., o pequeno povoado fenício, que negociava e interagia com diferentes culturas (e escritas) do Mediterrâneo, teria chegado à inovação revolucionária de desmembrar a escrita silábica, tomando vogais e consoantes como unidades sonoras independentes e articuláveis. Disso resulta um sistema de escrita mais simples e com maior pos26

sibilidade de notação dos sons falados, o que o leva a ser adotado por outros povos.

ver

lat. vidèo,es,vídi,vísum,ére ‘ver; olhar; perceber; compreender; examinar’ (HOUAISS, 2001)

O alfabeto grego, descendente dessa linhagem fenícia como o hebraico e o árabe, por exemplo, vai manter a independência entre vogais e consoantes, mas de forma diferente de seus vizinhos, que adotam acentos para designar os sons correspon-

representar dentes às vogais. O alfabeto e a cultura grega chegam aos romanos por intermédio

vb. ‘ser a imagem ou a reprodução de’ ‘patentear, significar’ XIV. Do lat. repraesentare (CUNHA, 1997)

dos etruscos, sofrendo alterações e adaptações no latim. Nas palavras de Meggs (2009): De uma fazenda próxima a Roma, o poeta Horácio (65-8 a.C.) escreveu: “A Grécia vencida conquistou [...] o rude vencedor”. Após a conquista romana da Grécia no século II a.C., eruditos e bibliotecas inteiras se transferiram para Roma. Os romanos capturaram a literatura, a arte e a religião gregas, alteraram-nas para que se acomodassem às condições da sociedade romana e as disseminaram por todo o vasto Império Romano. (p.43)

O alfabeto latino, que usamos no ocidente com a naturalidade de quem colhe uma maçã em um jardim sem história, tem talvez na coluna do imperador


Trajano (c. 114 d.C.), em Roma, seu mais antigo registro preservado, ainda sem o afastamento entre as palavras, mas já com o desenho das letras maiúsculas que conhecemos. Apegados ao uso cotidiano, à lida da língua falada, a um e outro entrave técnico ou social da gramática e da sintaxe, quase não nos damos conta da pegada ancestral, da longa viagem dessas letras, da bagagem escondida nos poucos traços. A cabeça de boi, por exemplo, o gado, elemento estrutural do pastoreio das sociedades nômades, é representada, desde registros pictográficos de 4.000 a.C no Egito (Frutiger, 1999), não só na primeira letra de inúmeros alfabetos (A latino, Alpha grego, Alif árabe, Aleph hebraico, Az eslavo), como também na direção alternada da escrita (boustrophédon) dos hieróglifos egípcios, ao modo das idas e vindas do arado no preparo da terra para a agricultura. A posição da cabeça e os chifres, a princípio voltados para cima, vão sofrendo acomodações com o tempo, e o desenho da escrita se transforma, seguindo às vezes uma simplificação no traço, uma nova tecnologia ou material de gravação etc. No processo de formação de grande parte das letras de nosso alfabeto, senão em todas, é comum observar rotações, distorções, alongamento de um traço, subtração de outro e asim por diante. O boi é elemento essencial tanto na vida nômade como na vida sedentária que a sucederá e desenvolverá também a agricultura, aprofundará a noção de posse da terra e de bens materiais, e acabará por gerar a escrita e as ciências. O Aleph, em hebraico, que também seria um desenho adaptado da cabeça de boi, é uma letra muda (como o nosso H, às vezes aspirada como o J espanhol) de caráter espiritual, aéreo, celeste, anterior, primeiro, ligada aos inícios, ao número 1 (e ao 1.000), à unidade, à totalidade, ao sopro da vida, à primeira respiração. A casa, ícone da sociedade sedentária, está desde os egípcios representada na letra B (Beta, Beth, Beith), ligada ao feminino, ao número 2, à contenção, à restrição, à criação e à forma. Na Cabala, simboliza também a totalidade da criação.

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Tido como último dos cientistasfilósofos e um dos ‘pais’ da filosofia moderna, Descartes utiliza parâmetros visuais para definir conceitos de clareza e distinção no “Principia Philosophia”, de 1644, em que diz (conforme nota do tradutor Paulo Neves no “Discurso do método”, L&PM, 2008): “a visão forte ou clara se produz quando a coisa é vista numa grande luz; ela é fraca ou obscura quando a coisa é vista numa luz tênue, tal como no eclipse do sol ou ao luar”.

À parte toda inferência arqueológica sobre os rastros de sua origem e propagação, um fator que parece inegável na escrita é sua função como instrumento para

fixar uma idéia, gravando-a na pedra, no barro, na madeira, no couro, no metal, no pergaminho, no papel (no écran etc), conferindo a essa idéia durabilidade física, tornando-a passível de ser lida e veiculada por mais pessoas, projetando-a e ampliando seu alcance no espaço e no tempo. Sem enfatizar a histórica vinculação entre religião e poder nas mais diversas sociedades humanas, Frutiger coloca que, mais que a economia, o direito ou as ciências, a religião é quem mais vai desenvolver e ser veículo de propagação da escrita, enfatizando seu caráter sagrado. Aspecto explícito por exemplo nos hieróglifos egípcios (hier(o), ‘sagrado’). Como na simbologia entre céu e terra, a idéia de sagrado costuma envolver

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a relação entre um elemento etéreo e um corpóreo, e de fato podemos observar A palavra Adão significa ‘a terra ocre’. (LELOUP, 2001 p.34) A palavra humano sugere uma relação com a raiz etimológica de húmus (terra, matéria orgânica em decomposição), assim também com humildade.

ánthropos

do grego, ‘homem’, como espécie, oposto ao animal. Em Aristóteles, substância composta, na qual “a alma é causa e princípio do corpo vivo”. (GOBRY, 2007, p.21)

diversas semelhanças entre a tecnologia e sensibilidade do mundo escrito e concepções do mundo espiritual. A ‘descida’ do sentido e do som da fala para a materialidade da escrita, por exemplo, de algum modo espelha imagens compartilhadas entre as tradições grega e judaico-cristã, de uma criação do mundo pela linguagem, assim como da ‘descida’ (encarnação) do sopro de vida para o corpo humano, feito de barro. Essa semelhança vai sugerir uma extensa simbologia entre uma celestial espiritualidade, criatividade e paternalidade do mundo oral, aéreo e sonoro, e uma terrestre corporalidade, materialidade e maternalidade da escrita, física e visual. Na tradição judaico-cristã, onde a palavra assume uma curiosa e ambígua centralidade, o mesmo deus que cria o mundo pela fala vai escrever os dez mandamentos sobre duas tábuas de pedra. E a mesma tradição que tem em seu mito fundador um casal expulso do paraíso por provar o fruto da árvore do conhecimento, também vai assumir as ‘escrituras sagradas’ como veículo principal de seus fundamentos.


À semelhança do mito de Prometeu e Pandora (em Hesíodo), em que Prometeu de diversas formas representa a astúcia humana, num movimento de ‘iludir’ ou ‘roubar’ para os humanos algo que pertence aos deuses, a cena do fruto no Gênesis conta com a participação de uma terrena e rastejante conselheira, a igualmente astuta serpente, que sugere à mulher a sedutora possibilidade de comer tal fruto, não para morrer, como anunciado por deus, mas tornar-se ‘como deus’. Entre tantas outras paisagens, árvores, animais e eventos possíveis para um casal no paraíso, o mito parece se encaminhar justa e diretamente para uma determinada árvore no meio do jardim do Éden e para a situação da escolha entre provar ou não o único fruto anunciado como proibido. A aprendizagem, como o conhecimento, nos lembra Flusser, está ligada ao ato de prender, adquirir, de guardar na memória (ou no estômago talvez). Morder o fruto da árvore do conhecimento em certa medida pode ser lido como um gesto de possuir e incorporar um ‘alimento’ que de outra forma permaneceria intocado, incógnito, e, como fruto, eventualmente apodreceria. Escolhendo pois a via do morder, mais talvez pela sedução que por necessidade, o homem e a mulher (só a partir de então denominados Adão e Eva) percebem, como primeira consequência, que ‘abriram-se seus olhos’, e tomam consciência de que estavam nus. Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se então os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si. Gênesis 3:6,7

Embora a imagem do casal, da árvore, da maçã e da serpente, seja comumente associada ao sexo e ao chamado pecado original, o texto do Gênesis aponta para uma posse num sentido mais amplo e profundo, da qual provem uma ‘queda’ e a

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O paraíso, até então ignorado, surge em seu esplendor no momento em que é perdido. Advém a queda, o cair em si, o dar-se conta, cair ‘na real’, no abismo (caos), com Adão/ Eva machofêmea, agora macho e fêmea, consciente e inconsciente: o abismo de conhecer.

vida tal como conhecemos. A associação entre comer e conhecer, como vemos, não é de hoje, assim como saber tem sua raiz etimológica ligada a sabor (Houaiss). Por essa tortuosa linha é que nos ocorre a sugestão de o pecado, ao mesmo tempo fim e origem, aludir à uma união, também sexual, mas sobretudo a uma união através da boca, do comer/conhecer o fruto/palavra, e à consequente transferência da posse desse conhecimento para os olhos (escrita?). Leda Tenório da Motta (1995), em seu ensaio “O abismo da palavra”, vai dizer,

conhecer citando Paul Valéry: “toda palavra é um abismo sem fim”.

port. ant. conhocer, este, do lat ognósco,is,óvi,ìtum,cognoscère ‘aprender a conhecer, procurar saber, reconhecer’ (HOUAISS, 2001)

Também de Valéry, que explora longamente em sua obra o tema da serpente/ pensamento que morde a própria cauda, é a sugestão do quase anagrama ser-

pent/penser, no poema “Esboço de uma serpente” (Campos, 1984). Satã, príncipe dos ‘caminhos que se bifurcam’, travestido na serpente de língua bipartida, preside toda separação, e no Gênesis introduz na unidade do paraíso a

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dualidade do pensamento, representando tanto a fenda como a chave por onde o casal terá que entrar/sair/cair/nascer/morrer no abismo do conhecimento. Sobre a serpente de Valéry, Campos sugere também o quase anagrama ophis/sophia, serpente/sabedoria. Para Campos (1984): Entre a árvore, a brisa brinca Com a víbora que me veste; Um sorriso, que o dente trinca E o apetite apresta ao teste, Sobre o Jardim arrisca a cauda, E meu triângulo esmeralda Mostra a língua de duplo fio... Cobra serei, mas cobra arguta, Cujo veneno, ainda que vil, Deixa longe a douta cicuta! ‘Esboço de uma serpente’ Paul Valéry, trad. A. Campos

Valéry parte de um mito bíblico — o Demônio, sob a forma de uma serpente, que ele reveste, segundo a Gênese, no Jardim do Éden, censura a Criação, porque ela é um erro de Deus, um ‘defeito na pureza do Não-Ser’: ela destrói a eternidade e a unidade de Deus. Ele odeia o homem e o perverte, insinuandolhe o Orgulho, para vingar-se do Criador. Com júbilo amargo, rememora como seduziu Eva. E desafia a Árvore do Conhecimento a dar outra coisa que não sejam frutos de morte. (p.16)

Flusser retoma o tema da serpente/satã identificada ao tempo, à história e à linguagem em “A história do diabo” (2008): A primeira frase da Bíblia, para ser concebível, deverá rezar como segue: O


Senhor criou espaço e tempo. Ou, para falarmos kantianamente: O Senhor criou as formas de ver (“anschauungsformen”). Ou, para falarmos dentro do espírito deste livro: O Senhor criou o mundo fenomenal e o diabo. Isto me parece tornar concebível não somente a criação, como também a queda do diabo. Essa queda é a própria correnteza do tempo, e o progressivo afastar-se do mundo das suas origens. (p.33) [...] O fundamento do diabo, repitamo-lo pela última vez, é a língua. (p.191)

Em seu estilo que mescla rigor conceitual e uma certa eloquência literária, Flusser desenvolve a questão entre pecado, conhecimento e linguagem, colocando a matemática como “estrutura do pensamento ideal”, “meta de todas as lín-

guas”, e como possibilidade para uma “gramática sem erros”. Uma lógica formal em perfeita sintonia com a música tenderia para uma harmonia, para o zero, o silêncio e o vazio equivalentes à aceitação da morte como conquista da filosofia, e de todo pensamento, vista como uma salvação, não pela fé, mas pela total perda da fé e pela dissolução do sujeito (‘eu’). Embora a forma como se daria essa identificação ou integração entre matemática e música fique apenas sugerida nesse livro de Flusser, e a ‘gramática sem erros’ (do tipo X igual a X) conduza a um vazio ao mesmo tempo ‘salvador’ (soter) e non-sense, cabe salientar, como ele mesmo diz, que mesmo ‘parar o pensamento’ não interrompe a vida, e observamos que esta parece tender a se valer também das ‘imperfeições’ da linguagem para gerar e regenerar a si mesma e, continuamente, gerar novos significados. De modo menos radical do que no projeto de aniquilação do sujeito em Flusser, e onde sobrevive ao menos o sujeito ‘multivíduo’ de Canevacci (2009), a linguagem, de prática e gênese essencialmente sociais, constitui provavelmente a principal referência de conhecimento e reconhecimento de uma cultura, e portanto de um

ethos, de um hábito em um habitat, de um logos em um locus, de uma forma e um sentido de viver de um agrupamento humano em uma determinada situação.

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Ou no conhecido verso de Fernando Pessoa, “minha pátria é minha língua”. Essa concepção do indivíduo indivisível, como é atomon, é uma concepção que pertence à história da cultura ocidental, desde a Grécia e Roma, até a modernidade. [...] O conceito de multivíduo é um conceito mais flexível, mais adequado à contemporaneidade. Por que significa que multivíduo é uma pessoa, um sujeito, que tem uma multidão de eus na própria subjetividade. O plural de eu, não é mais nós, como no passado. O plural de eu, deve ser eus. (p.16) Massimo Canevacci, in ‘A comunicação entre corpos e metrópoles’, 2009

Em termos lógicos, questão semelhante a essa ‘gramática sem erros’ (e suas limitações) é abordada por Kurt Gödel em 1931, que mostra como um sistema lógico consistente depende de pressupostos, que por sua vez vão gerar ‘verdades’ (às vezes contraditórias) internas desse sistema, que não podemos explicar ou provar man32

tendo esses mesmos pressupostos. Por outro lado, quando partimos de pressupostos ‘sabidamente falsos’, ou, de algum modo ‘inconsistentes’ por natureza, podemos provar qualquer coisa, interna ou externa ao sistema, embora a validade ou utilidade desse procedimento seja essencialmente discutível (Bronowski, 1985). Esse é um dilema ontológico de qualquer sistema de representação da ‘realidade’, incluindo a matemática. As linguagens (ou sistemas de representação) são instrumentos, são pontes, substituições, traduções, superfícies, máscaras, e é desse deslocamento, dessa dobra estrutural que lançamos mão para continuamente reconstruir o instrumento dentro da sua imperfeição congênita, e assim mantê-lo vivo, aberto, de modo semelhante a como fica implícito no pensamento de Gödel. Um argumento ‘sabidamente falso’, em outras palavras ‘externo’ a um sistema de realidade (veracidade), pode ser, e costuma ser, um modo ao menos provisório de se elaborar ou contornar questões paradoxais na vida real. Num sistema natural ou indefinidamente aberto como o universo, podemos nos dar ao luxo de construir maquetes fechadas para explicar ou operar o caos?


Mesmo sem compreender suas próprias motivações originais, animais, químicas, metafísicas, o ser humano intenta sobreviver no caos, seja lá o que isso represente. E, para entender, articular-se e conviver no caos, desenvolve sistemas de leitura e ação cada vez mais complexos. Esse é talvez um dos pontos de fundamento do pensamento dito pós-moderno, e que apesar de parecer apontar para uma anarquia epistemológica, aponta antes para a necessidade de lidar com o caos epistemológico que o universo apresenta e representa para a humanidade e para a cultura.

Conclusão, exclusão, inclusão Neste estudo sobre a forma, como colocamos no início, estruturado mais como um conjunto de breves itinerários do que como um extenso mapeamento, discutimos alguns pontos a respeito da forma nos mitos de origem, no corpo, na cidade e na linguagem. E ligando uma ponta à outra, linguagem e origem, à maneira de Hesíodo, quisemos considerar a linguagem como potência cosmogônica, e suas implicações epistemológicas, inclusive no contexto entre a modernidade e a pósmodernidade. Alguns ramos desta pesquisa abrem naturalmente caminhos para possíveis continuações. Além do aprofundamento sobre os significados da forma em contextos específicos, há o enorme campo das relações entre os temas abordados: mito, origem, forma, linguagem, corpo, cidade, modernidade, pós-modernidade, epistemologia. Podem ser aprofundados esses temas em relação à filosofia de Flusser, por exemplo, às implicações entre linguagem e neurociências como na pesquisa de Maturana e Varela, ou entre projeto e epistemologia semiótica como no estudo de Lucrécia Ferrara.

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Nesta breve abordagem de temas tão vastos, a idéia foi guiada ‘deleuzianamente’ pela tentativa de costurar algumas leituras que fizemos, e relacionar alguns nós desse ‘rizoma’. Para terminar, ou fechar momentaneamente o ciclo, gostaríamos de deixar ainda entreaberta uma ou outra porta nas imagens que se seguem, nos jogos e nas analogias que brotam aqui e ali. Caos e Eros, separação e união, desordem e ordem, origem e destino, Caos e Cosmos, Caos e Forma. Do um ao dois ao um: como a serpente/pensamento de Valéry que morde a própria cauda/fruto: mordeSordem.

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Marcel Duchamp, ‘Porte, 11 rue Larrey’, 1927. (ROOB, 1997, p.702) Na página ao lado, poema “mordeSordem” (Luciano Pessoa, 2011) e a serpente-símbolo ‘Uroboro’ (ROOB, 1997, p.426).


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Imagens Todas as imagens © Luciano Pessoa, exceto: Páginas 36-37, 42-43, 46-47: Google Maps. <http:// http://maps.google.com/> Páginas 44-45, 50-51: The human genome: gene families and their evolution. <http://bio.sunyorange.edu/updated2/GENETICS/3%20ions.htm> Páginas 48-49, 54-55, 56-57: University of Tokyo. Research on Intelligent Vision/Auditory/Tactile Sensors. <http://www.alab.t.u-tokyo.ac.jp/~ando/alab99.htm> Página 57: Alfabeto Celeste, Zohar (ROOB, 1997, p.602), sobre mapa de leitura de impressão digital (ver p.56-57). Montagem de Luciano Pessoa.

.............................................. Luciano Gutierres Pessoa mar.2011 / pessoluc@gmail.com

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