T.O.C-me
Marcela de Aquino
T.O.C-me
Marcela de Aquino
Aquino, Marcela de. 2015 a 2018. TOC-me. 1ª edição, independente. Copyright © Marcela de Aquino, 2019. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Projeto gráfico e diagramação: Pétalla Menezes. Fotografias do banco de imagens Unsplash, por ordem de aparição: Capa Tomas Jasovsky pg7 Sasha Freemind pg13 Nathan Defiesta pg17 Lautaro Andreani pg19 Peyman Farmani pg21 Mohamed Nohassi pg23 Daniel H Tong pg27 Jordan Wozniak pg31 Mahbod Akhzami pg35 J Santana pg39 Neel pg 41 Aykut Kilic
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SumĂĄrio Sem Fim Tempos Modernos Sole.dad Por Inteiro C.A.O.S Auto Mati Cidade Dia LĂŠtica Mente T.O.C Saudosismo Poemeto A bailarina
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Sem Fim Solidão é substantivo quando nomeia a ausência, a falta Sujeito quando te despe de tua existência e oculta a sua face Vocativo, sem ter a quem evocar... Interstício por entre os vácuos das categorias nominais Solidão que transpassa as formas verbais o tempo, os modos, as pessoas e seus números até chegar ao infinitivo do imperativo do verbo desejar Predicado que não se sujeita a nenhuma companhia negando uma vez mais o
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sujeito desta oração. Solidão que sussurra bem baixinho com ponto de exclamação ríspida e rouca e muda em seu ponto final Adorável e pensativa como moça reticente em seus três pontinhos miúdos - ser licença poética aclamada de lirismo da desventura, do delírio, da amargura do ponto de interrogação. Mas ao se olhar a proa do navio lá se verá o mar e sua imensidão submersa lá ela habita em segredo e, em segredo, se torna desejada. Como canto das
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sereias mar adentro precipita nosso corpo sĂł ao olhar e em doces cantos nos leva com a fĂşria das ondas para alĂŠm dos arrecifes, desaguar.
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Tempos Modernos Em tempos como esses se deseja a obviedade das ruas, a política dos corpos estranhos à política abjeta do medo. Se deseja seduzir o desejo em versos dilacerados pela pornografia em ato de querer o que nos consumiu de culpa A arte de viver o que não nos foi destinado. Que não nos sintamos aquartelados nem na novidade do passado nem na mesmice do ineditismo Sigamos, apenas, sóbrios Caminhantes que constroem o caminho com seus passos em tempos como esses (...)
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O que nos faz desejar a palavra, as poucas palavras que restam para mensurar um estado arbitrário de leis, reformas e governo Que faça-se chuva, no terreno baldio e infértil dos coveiros Que faça-se sol, perante a nossa vontade de potência na luta Em tempos tão pós-modernos, tão colonial, tão patriarcais.
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Sole.dad Estamos a procura de um lar com carpete de madeira papel de parede florido e uma gaita na entrada da porta somente. E para dirimir o vazio um pouco de uísque, iluminação sóbria com poltronas na sala para os gatos errantes das ruas que passarem Não se preocupe com a mobília Nada trazemos, nem de nada nos apossaremos, ao irmos embora Contudo, deixaremos algum rastro alguma tempestuosidade
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nesse cenário certa desordem salutar Mas o espetáculo é garantido, gratuito e livre esperamos que a excitação seja intensa e as horas sejam apenas regressas companheiras daquela lembrança que fantasias desde tua infância. Somos espectros de desejos que oscilam entre ecos ocos de saciação do que te consomes e do que rejeitas pois assim ainda me defines Digo-te em voz ignóbil e solene: Somos a arte da presença nas lacunas de tua vida. Na existência fantasmagórica das coisas somos as coisas mesmas
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flutuantes de memรณria. E assim, despertos, latentes ou amordaรงados somos o espelho em que miras o teu semelhante.
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Por Inteiro Transição – uma continuidade de quem não se é mais como um imperativo da vida tal qual a correnteza de um rio a tatear margens e porosidades ...quais são os cascalhos relegados ao devir? Um vir a ser há tanto tempo desejoso do presente que se basta por desejar e querer transloucar-se? ainda indeciso, ainda trêmulo, ainda sôfrego afirmando-se na expectativa de negar a si e na espera de mover-se de racionalidades, espaços, temporalidades já enfermas que insistem em principiar um retorno ao lar
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Sim, ao lar, a este lar, ao lar etÊreo tecido de desejos em seu sentido comum a todos: de faltas, de ausências porosas como velhas narrativas que elucidam um mosaico propenso a mudar de figura e forma que teimosamente busca sentido em juntar os tais dos cascalhos que ficou pelo caminho na ânsia de conclamar no presente, o passado.
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C.A.O.S Tem dias que se sente tudo clichê nossa história nossos males nossas mágoas. Onde imprime em nosso tempo a memória de nossos corpos resolutos na luta da luta infligida nos coloridos corpos abjetos a pátria da qual a dor, a paixão, o caos deliberam a ágora em que toda artificial estabilidade institucional apregoa o fim de sua tirania. Pois que como homens já experimentados na arte da vida Não desejaremos a morte pela inércia de nossas vontades O homem se humaniza quando transforma medos em combate.
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Auto Mati Cidade Hora de amar, hora de beber, hora de trabalhar e dentre tantas horas possíveis, hora de sorrir A vida como num [standard/estandarte]* e ao lado dela o assento sempre vazio Folheada por João que vai para longe esquecer Tereza - que preferiu entregar seu amor à Deus pela rejeição de Raimundolê na manchente uma nota no jornal: Raimundo apenas transeunte que um dia amou Maria atropelado por um fusca agora não ama mais ninguém. *sentido indefinido
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E Maria no anúncio da última moda parisiense que um dia fora amada, desterrou-se nas personas de seus folhetins ao saber da morte de Joaquim, morte à navalha por uma outra chamada Lili. Hora de ir, descer do trem, de olhar de frente a vida - pensou João, na maior metrópole do mundonos cadafalsos de concreto, no céu cinza de arranha-céus A multidão de passantes desleixados Sozinhos, esmagados pelos próprios passos estavam ali Lili e João que não se conheciam prestes a se encontrar na mesma calçada separados apenas pelo ritmo ditado dos faróis
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mas J. Pinto Fernandes esbarra sem querer em Lili que nunca amou na vida atĂŠ aquele instante.
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Dia Lética Mente Segues mesmo quando ainda permaneces Sintas enquanto o que é velhaco em ti pragueja Ande para onde teu corpo se esgueirar Sigas no teu mastro, a correnteza Ao banhar-se nas águas do rio prenuncia-se que o mesmo instante jamais retornará Há mais nuances por entre a névoa e as águas turvas Do que nos tempos mais diáfanos das auroras O tempo de agora é o mesmo que tece o amanhã
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O tempo da negação é o mesmo o de se autoafirmar A vida se reafirma perante o que está morto n’alma E o que a morte jaz por direito é o que a vida se alimenta por necessidade A luz ofusca-nos a vista, o caminho, o horizonte E a noite torna translúcidas a alma voraz de desejos E sob a pele, os desejos vorazes de alma Sob o sol - a cegueira ilumina o que por dentro da carne está E sob a lua - as sombras terrenas delineiam seu habitat O mesmo lugar do andarilho, o não-lugar do retirante: No mundo.
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Nessa ejeção de náuseas, de ânsias, de espanto Arremessados entre o espaço dos homens e o tempo dascoisas Entranhados no tempo dos homens Estranhado do espaço das coisas.
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T.O.C Quando se dedilha a mesa afugentando o destino mais irrisório e apocalíptico Quando se assujeita as mãos Ao toque asséptico em corpos incorpóreos Quando se gesticula através de defesas E esconde-se a cara límpida e insone do mundo A poesia é o único reduto do alento A quem não encontra-se sujeito por entre os passos fatigados da multidão alheia dentro da solidão do quarto e de seus ecos vívidos na liquidez dos afetos idílicos
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Tudo aparenta certa performance cênica Certa arte em decifrar-se e, A um só golpe, revelar resquícios Luvas, máscaras, megafones, pás Qualquer interface para tocar o que é externo E no ápice de nossa persona A vã insanidade apodera-se As criações se insinuam contra seu criador após tantos desencontros, os pés desnudos e o rosto pálido, a boca beija a mão toca a pele sente os olhos cintilam a perna treme diante da vida.
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Do que esta tem de mais imoral e impuro Do que esta tem de mais incerto e premente Pois que a sĂŁ sobriedade Trilha caminhos por entre a loucura mais obscena
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Saudosismo Vinte quatro anos em que o Recife marca em minha pele sua atmosfera úmida e quente. Seis anos em que transpassoume os sentidos inertes da inércia do expectador. O Recife que me marcara não era aquele distante, longínquo, que eu só podia observar de sobressalto por entre a multidão estonteante da Boa Vista, nas idas e vindas de ônibus entreolhada pelas pontes da cidade, das segundas-feiras congestionadas pelo ritmo ditado dos faróis vermelhos. Isso não dizia nada a respeito de mim mesma. Apenas que é mais fácil partir do lugar –comum a dos demais conterrâneos: a do estado de letargia. Da pretensa pertença
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de seu lugar nativo como hábito corriqueiro de todo conhecido. Só pude desvelá-la e despi-la na imersão de meus sentidos quando estes despertos. Senti os tijolos desgastados pelo tempo das antigas estruturas do antigo convento do Paço, dos rabiscos nas paredes muradas da outrora Casa de Detenção e as igrejas e casarios ostentando tanta graça e decadência; era a história tão presente, melhor contada pela materialidade de seus símbolos. Em cada viela de herança colonial, fui criando lares afetivos. Morava na praça da República todo dia de domingo. Sob o rio Capibaribe onde meus avôs namoraram em sua juventude, velejava. Vislumbrava as constelações em um recanto da antiga
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Sociedade Hípica, hoje Quartel da Polícia no bairro do Derby. Como dois flâneurs, que se deixam levar pela sedução das ruas, íamos (eu e meu namorado) do Derby ao velho Recife portuário com os próprios passos e o “sentimento do mundo”. Fui apresentada a minha cidade pelo olhar acurado deste salgueirense. Só ao me colocar no lugar de estrangeiro, é que pude despertar do torpor assíduo e resgatar uma fase da vida: o deslumbramento.
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Poemeto Mas que poema é esse? o sentimento, nas palavras incontido versos rasos indigestos ao ouvido sombra errante de ritmos desconexos desacertos sublimes não amparados Ignora o sopro, o aspecto plástico o tom, as auroras e o fiasco mero torpor que nem o frio aço de uma inconsistência atenuante do absurdo da vida se a dor, o medo, a fúria estão presentes pra que mais esperar o instante da compulsão às pulsões do inconsciente pois que a inglória do poeta está em emudecer-se quando sente.
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A bailarina Qual uma bailarina que se mostra Com passos suaves A bailar sob a copa da árvore E rodopia, com a sutileza do vento Respira em um inspirar comedido Se põe a levitar sobre o pó da terra Em um cenário de desolação E baila, e dança, e gira Seus dedos quase alcançam as folhas secas da única vida enraizada defronte ao precipício
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Indiferente ao redore ao abismo tudo silencia... parece convalescer-se não escuta nem a mais sutil brisa só o respirar compassado da eterna procura da inércia (...) A poeira em que está envolta assim como os vãos desvarios a tomam pelos braços carregam,seu corpo pálido, ao despenhadeiro É uma nova cena posta em ato Em que a entrega de si É ritmada a cada passo E a cada instante, a dor não cessa e o corpo, com mais força rodopia em torno de seu próprio eixo, converge Em uma ofegante prece, desatina.
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