RevistAleph Ed.17

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Editorial Conselho Científico: Nacional Célia Linhares (UFRRJ) Presidente de honra

Cecília Coimbra – UFF Clarice Nunes – UFF/UNESA Eliana Yunes – PUC-Rio Elizabeth Barros – UFES Maria Cristina Leal – UERJ Sílvio Gallo – Unicamp Solange Jobim – PUC-Rio

Ecopolíticas e educação: POSSIBILIDADES E EXPERIÊNCIAS INSTITUINTES

Internacional

Estamos em tempo de novo número da RevistAleph. O número

Adriana Püiggrós

17,agora no ar, traz uma coletânea de trabalhos que abordam as

Universidade de Buenos Aires, Argentina

Maria Nazaret Trindade

Universidade de Évora, Portugal

Editores Associados Célia Linhares (UFRRJ) Estela Scheinvar (UERJ) Inês Bragança (UERJ) Maria Lucia Müller (UFMT) Vera Lúcia Campos (UERJ)

Editoras Executivas

múltiplas faces da educação, em seu sentido mais amplo, e as ecopolíticas instituintes, temática de nosso dossiê. Nada mais oportuno, quando acabamos de viver, no Rio de Janeiro, a Conferência Rio + 20. O movimento das sociedades, no mundo, nos indica que o tempo de pensar a ecologia é o tempo de pensar o ser humano. Consideramos, nestaperspectiva, a força da educação como o caminho viável e pos-

Léa da Cruz Rejany dos S. Dominick

sível para construção e reconstrução permanente da ecosofia, como

Conselho Editorial

-política entre o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade.

Bruna Molisani (UFRJ) Célia Linhares (UFRRJ) Dagmar de M. Silva (UFF) Léa da Cruz (UFF) Rejany dos S. Dominick (UFF) Rose Clair Pouchain Matela Vera Lúcia Campos (UERJ)

Isto porque a ecologia está associada aos modos dominantes de va-

Designer Philipe Kling David

em Guattari, que compreende a ecologia a partir da articulação ético-

lorização das atividades humanas em que, certamente, está no centro a produção da existência da vida no contexto de uma sociedade em processo de desenvolvimento. Neste sentido, tratamos o desenvolvimento ultrapassando a compreensão linear de acumulação econômica para avançar em direção às possibilidades ricas de construção do viver. É nesta direção que pensamos a conjugação das múltiplas faces desta nova ecologia e a produção de novas subjetividades, o

Bolsistas Adriana da S. Calazans de Oliveira (Pedagogia – UFF)

que guarda proximidade fundamental com a educação, sob a forma dos grandes agenciamentos institucionais.

Josiane Aguiar da Costa (Pedagogia – UFF)

Apoio

Lições inadiáveis, lições sobre o possível. E, exatamente, a partir do significado destas conexões, enquanto lógicas e práticas, é que trazemos ao leitor textos em que a ecologia é tratada de forma a ampliar as perspectivas de compreensão da educação por seu grande potencial formador, seja em relação ao sujeito, no sentido lato, seja o sujeito educador, em formação permanente. As sessões que compõem este número


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contemplam as variações da temática e guardam a riqueza de análises em que experiências formativas são relatadas. Está no foco o princípio segundo o qual defendemos uma outra educação em que as questões ambientais se instituem como ecosofia. Os textos que compõem as sessões abordam temas tais como a formação de professores mais qualificados para inserirem as questões ambientais na sua prática pedagógica, as crianças e suas formas de brincar, a desconstrução e reconstrução do significado de direitos humanos, a infância e a sexualidade das crianças no contexto escolar, a diversidade étnica e a discriminação social como uma temática inadiável na escola, o filme como elaboração educativa, as lições da educação infantil indígena para o chamado mundo “civilizado”, dentre outros. Estas são apenas algumas pistas sobre os trabalhos que aqui estão publicados e que compartilhamos com nossos leitores. Pareceristas deste número Conselho Editorial

Adonia Prado (UFRJ) Bruna Molisani F. Alves (UFRJ) Célia Linhares (UFRRJ) Dagmar de Mello e Silva (UFF) Estela Scheinvar (UERJ) Gabriela Rizzo (UFRRJ) Inês F. de S. Bragança (UERJ) Isabel Reis Léa da Cruz (UFF) Márcia Nico Evangelista (UFF) Magali Alonso de Lima (UERJ) Maria Lúcia Fortuna (UERJ) Marta D’Angelo (UFF) Rejany dos S. Dominick (UFF) Rose Clair Pouchain Matela Vera Lúcia Campos (UERJ) Waldeck Carneiro da Silva (UFF)


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SUMÁRIO Editorial Dossiê Temático 1. Educação ambiental e a formação de professores Eunice Trein & Marcos Barreto 2. Quando eu invento as coisas Mônica Silvestri 3. Educação Infantil entre parentes Lea Tiriba Pulsações e questões contemporâneas 4. Cinema no currículo escolar: de qual cultura cinematográfica estamos falando? Glauber Resende Domingues 5. Violência simbólica e fracasso escolar: reflexões psicanalíticas na educação Marília Etienne Arreguy, Marina Morena Almeida, Giulia Aguiar Camporez 6. A importância do aprender: juntando e costurando o mundo e a escola Iolanda da Costa da Silva & Isabele Cristina Fonseca Ramos (Orientadores: Rejany dos S. Dominick e Alice Akemi Yamasaki) Experiências Instituintes 7. Relações raciais no cotidiano escolar Malsete Aristides Santana & Maria Lúcia Muller 8. Práticas instituintes na escola pública: a educação em direitos humanos Elione Maria Nogueira Diógenes 9. O cinema e o ensino de Ciências: relato de uma experiência instituinte e construtivista Luiz Antonio Botelho Andrade, Nelson dos Santos Moreira & Antonio do Amaral Serra 10. Narrativas compartilhadas: democratização da leitura literária Adriana B. Guedes


Dossiê Temático

Educação ambiental e a formação de professores Eunice Trein1 - UFF Marcos Barreto2 - UFF

RESUMO Este texto aborda parte de uma pesquisa mais ampla que discute a formação de professores, a luz da ontologia marxiana, buscando estabelecer relações entre educação e questões ambientais que impactam as condições de sobrevivência da espécie humana. Analisamos uma experiência realizada na Faculdade de Educação da UFF, junto aos alunos de diversas Licenciaturas, onde buscamos contribuir para a formação de professores mais qualificados para inserirem as questões ambientais na sua prática pedagógica, independente da particularidade de seu curso de origem. Palavras-chave: Educação Cotidiano escolar.

ambiental.

Formação

de

professores.

Educación ambiental y formación de profesores RESUMEN El texto presenta parte de una investigación más amplia que discute la formación de profesores basada en la ontología marxiana, donde se busca establecer relaciones entre el sistema educativo y las cuestiones ambientales que impactan en las condiciones de supervivencia de la especie humana. Se analiza una experiencia que ocurrió en la Facultad de Educación de la UFF, con los alumnos de diferentes cursos, donde se buscó contribuir a la formación de profesores más calificados para tratar las cuestiones ambientales en su práctica pedagógica, independientemente de su formación específica. Palabras clave: Educación Cotidiano escolar.

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ambiental. Formación

de

profesores.

Doutora em Educação pela UFRJ e pesquisadora do grupo de Pesquisa TRABALHO E EDUCAÇÃO (UFF) Doutor em Educação pela UFF e Vice-diretor da Faculdade de Educação da UFF.

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Introdução

Esse artigo é parte de uma pesquisa mais ampla que discute, à luz da ontologia marxiana, a formação de professores, buscando estabelecer relações entre educação e questões ambientais que impactam as condições de sobrevivência da espécie humana. A ontologia marxiana como nos ensina Lukács (2007), nos permite compreender a essência histórica e material do processo de constituição dos seres humanos enquanto seres sociais. Essa compreensão está baseada no conceito de trabalho, enquanto categoria mais simples para explicitar as relações que os seres humanos estabelecem com a natureza, de forma intencional, visando satisfazer suas necessidades. Nesse processo, a atividade humana de transformar a natureza institui o próprio homem como um ser social. Nesse movimento dialético de transformar a natureza e a si próprio o ser humano vivencia a articulação entre a objetividade e a subjetividade, entre a materialidade e a consciência que se faz histórica, superando sua dimensão estritamente natural. Ao criar uma realidade material humanizada participamos da elaboração

de produtos que

satisfazem sempre novas necessidades num movimento de criação e autocriação. Historicamente o trabalho produz bens materiais e simbólicos úteis à manutenção da vida humana. Assim é uma atividade imprescindível à reprodução material e social da vida, sendo potencialmente criativo e produtor de uma humanidade emancipada. Marx enfatiza essa centralidade do trabalho para a vida humana.

O trabalho, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade – é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana (Marx, 1982, p. 50).

Por outro lado o trabalho, sob o modo de produção capitalista, se expressa como uma atividade que tem sua centralidade no valor de troca, na

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produção crescente de mercadorias que alimenta a manutenção do lucro e a expansão do capital. Nesse expandir-se constantemente o capital expande o processo de mercantilização para todas as esferas da vida, torna o trabalho alienado e expressa a face negativa do mesmo – de elemento ontocriativo ele se converte em elemento destrutivo do ser humano e da base material da vida. Para pensarmos as relações entre a educação e as questões ambientais precisamos analisar, em profundidade, as relações entre trabalho e educação mediadas pelas relações históricas que os homens estabelecem com a natureza e com os outros homens na produção material e social da vida. Só assim será possível compreender os custos sociais e ambientais de um modelo de desenvolvimento que se pauta pelo uso intensivo de recursos não renováveis num cenário de exclusão social, concentração de renda, desigualdade de acesso aos bens naturais como o acesso à terra e aos mananciais da água, e também o acesso aos bens culturais, à educação formal, à arte, à ciência e à tecnologia. Neste sentido, concordamos com Loureiro quando afirma: [...] só há espaço público à medida que os socialmente desiguais se encontrem como sujeitos autônomos e protagonistas políticos e só há ambiente como bem comum à medida que o acesso à riqueza produzida e a natureza seja justo, e os diversos modos de se organizar com base em processos econômicos e culturais sustentáveis sejam respeitados (Loureiro 2012: 46).

Portanto, uma educação ambiental que se pretende crítica, não pode desconsiderar o debate político que aponta para a superação do atual modelo societário, sob pena de propor uma prática educativa centrada no indivíduo, descolando-o da materialidade histórica que o produz e na qual ele age transformando e sendo transformado, constituindo a realidade e se autoconstruindo. Outro elemento a considerar, que permeia as relações em uma sociedade dividida em classes, é o discurso que se tornou hegemônico que, marcado pela mercantilização das relações sociais como forma de organização e controle das relações sociometabólicas entre os homens e a

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natureza já não se expressam na produção, no trabalho, mas no consumo, na fruição. Ao declararmos que vivemos em uma “sociedade do consumo” mascaramos as assimetrias sociais e naturalizamos o modo de produção capitalista. Deslocamos assim a crítica do processo produtivo que impacta o ambiente natural para as consequências da sociedade do consumo e do desperdício. Por isso tantas vezes nos deparamos com a temática do lixo e da reciclagem como eixo dos trabalhos em educação ambiental nas escolas, nas diversas abordagens da mídia sobre a temática da sustentabilidade. Essa é mais uma maneira de centrarmos no indivíduo a responsabilidade ética por sua participação, como cidadão consumidor, e demandarmos do setor produtivo e dos espaços de produção do conhecimento sistematizado, conhecimentos científicos e tecnológicos que equacionam e apresentam soluções para os graves problemas ambientais que enfrentamos atualmente. Numa perspectiva crítica se faz necessário perguntar que parte da população mundial efetivamente participa do consumo e como esse se distribui desigualmente entre as classes sociais e as nações. Como boa parte da sociedade não tem atendida nem suas necessidades básicas de alimentação e moradia, a ideologia do consumo contribui para perpetuar a iniqüidade das desigualdades sociais e naturalizar a subordinação da produção social de valores de uso, para suprir as necessidades básicas de humanidade, às relações de troca, mantendo a dominação do capital sobre o trabalho. Compreendemos como Layrargues (2009) que, aprofundar a discussão sobre uma educação ambiental crítica implica em estabelecer os nexos entre as questões ambientais e as questões sociais. A educação em sua vertente conservadora contribui para a manutenção da desigualdade social. O Brasil, como um dos países marcados pelos maiores índices de desigualdades sociais, penaliza sua população com um acesso deficitário aos bens mais primários, fazendo com que a parte mais empobrecida da população seja a maior vítima das vulnerabilidades ambientais. A classe dominante mais bem aquinhoada pelo acesso a bens de consumo contribui para alimentar a crença na dita sociedade de consumo, e responsabiliza a todos, igualmente,

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pelos desastres ambientais. Como temos visto recentemente quando se discute, por exemplo, o tema das mudanças climáticas, do aquecimento global, quando se atribui às próprias vítimas a responsabilidade pelos acontecimentos, como transbordamento dos rios, deslizamento de terra em encostas, poluição das águas, contaminação dos solos, etc. Pouco se avança, no entanto, no questionamento sobre as causas efetivas de tais eventos e as soluções sugeridas são, além do apelo a mais desenvolvimento científico e tecnológico, também medidas de “gestão da pobreza’” e práticas educacionais que alterem os valores que orientam as ações dos indivíduos incentivando que “cada um faça a sua parte”. Hoje, para entendermos as catástrofes ambientais não podemos dissociá-los das catástrofes sociais, pois em última instância, eles são decorrentes do modelo societário hegemônico que se caracteriza por ser socialmente injusto e ambientalmente insustentável. Uma educação que pretenda transformar essa realidade não pode perder de vista as questões realmente estruturantes do quadro de desigualdade social e vulnerabilidade ambiental a que a classe trabalhadora está submetida. O esforço que temos realizado, junto ao curso de pedagogia onde atuamos, move-se na direção acima delineada. A busca de novos caminhos para a educação ambiental no nível superior, principalmente nos espaços de formação de professores requer de nós clareza de objetivos e uma visão estratégica na sua implementação. Pensamos que Layrargues situa com pertinência o compromisso éticopolítico de que se reveste tal processo quando diz que educação ambiental

É aquela que propicia o desenvolvimento de uma consciência ecológica no educando, mas que contextualiza seu projeto político-pedagógico de modo a enfrentar também a padronização cultural, exclusão social, concentração de renda, apatia política, além da degradação da natureza. É aquela que enfrenta o desafio da complexidade, incorporando na reflexão categorias de análise, como trabalho, mercadoria e alienação. É aquela que expõe as contradições das sociedades assimétricas e desiguais (Layrargues, 2009, p.28).

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Nos trabalhos que temos desenvolvido no ensino superior buscamos ampliar a reflexão de nossos alunos sobre a realidade brasileira e contextualizar as políticas educacionais de forma crítica, propondo uma educação ambiental onde o ambiental não se constitua em mero adjetivo, mas progressivamente substantive a educação.

Assim, consideramos

oportuno esclarecer nossos estudantes sobre as principais tendências que disputam

estrategicamente

as

possibilidades

político-pedagógicas

da

educação ambiental, apresentando uma perspectiva crítica quer na percepção da “crise”, quer nas propostas de formação de educadores ambientais. Trabalhando com alguns autores que procuraram identificar as principais tendências que disputam conceitos no campo ambiental, entre eles o estratégico conceito de desenvolvimento sustentável, procuramos distinguir aquela que tem exercido uma força hegemônica, traduzindo-se em políticas governamentais e não governamentais, que repercutem em muitos projetos de educação ambiental, tanto em espaços escolares, quanto em cenários sociais mais amplos. Podendo ser caracterizada de diferentes maneiras, tal tendência hegemônica, pode ser aproximada à orientação identificada por Loureiro (2000) como a de “tecnicismo”, na medida em que preconiza a primazia das “soluções técnicas e de manejo e gestão de recursos naturais” para resolver os dilemas gerados pela crise ambiental, negligenciando as dimensões políticas, econômicas e éticas das opções tecnológicas em questão. Outro autor que procura discutir “as atitudes diante da crise ambiental da atualidade”, Soffiati (2002) propõe o termo “compatibilismo” para identificar a tendência que “pretende conciliar, em caráter permanente, os estilos convencionais de desenvolvimento com a proteção da natureza”, afirmando o caráter “francamente compatibilista” da própria legislação brasileira. Entendendo como Frigotto (2001), que a “anatomia do capital mundializado” pouco tem a oferecer, “senão mais barbárie e aniquilamento

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das bases sociais e materiais da vida”, impõe-se, quando não por uma questão de sobrevivência, a defesa de uma superação da lógica capitalista em favor de um projeto civilizatório alternativo, reivindicado por alguns setores do ambientalismo, como expressão de uma “sustentabilidade emancipatória”, que liberte as sociedades e a natureza da tirania do capital.

Uma experiência de educação ambiental no curso de pedagogia da FEUFF Fomos responsáveis, enquanto professores da Faculdade de Educação no período 2000/2009, por um componente curricular¹ a que batizamos

Educação e Meio Ambiente , com carga horária de 60 horas, oferecida aos estudantes do curso de Pedagogia.

Aproveitando a flexibilidade de uma

estrutura curricular que prevê a oferta de atividades temáticas livres, cumprindo um papel importante para a introdução de alguns saberes até então pouco contemplados na formação de professores, procuramos desenvolver teórica e metodologicamente um trabalho pedagógico que promovesse “a sensibilização das alunas do curso de pedagogia para questões ambientais, ampliando suas capacidades perceptivas, intelectuais e valorativas sobre o meio ambiente, mobilizando-as para ações críticas na Universidade e nas futuras escolas aonde forem trabalhar”2. Ao iniciarmos os trabalhos, procuramos explorar, inicialmente, o entendimento que as alunas tinham sobre o conceito de Meio Ambiente, sobre a situação ambiental local e planetária, bem como sobre a natureza dos impactos ambientais que degradam a biosfera terrestre. Tal perspectiva pedagógica fundamenta-se diante da necessidade de instaurarmos uma relação dialógica, e não unívoca com os sujeitos a quem pretendemos motivar e mobilizar para ações potencialmente emancipatórias. Se importar, no contexto de uma atividade acadêmica, a definição dos marcos teóricos utilizados pelos autores, a enunciação do lugar de onde fala, tampouco parece pouco importante a identificação do outro, no caso as alunas do curso de pedagogia, considerando-as como interlocutoras no trabalho pedagógico. Nesse sentido, capturar e entender as percepções, os juízos e as representações sobre a “crise” socioambiental que vivemos, de que são

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portadoras nossas alunas, torna-se imprescindível, para não confundirmos o trabalho de formação de uma consciência crítica com a afirmação unilateral dos pressupostos determinados pelo professor, como se passivamente os alunos pudessem ser conduzidos do senso comum à iluminação de um olhar, ao mesmo tempo científico e crítico. Entendemos que, sem a participação dos sujeitos, superando as práticas da “educação bancária”, como nos advertia Paulo Freire, jamais conseguiremos associar de forma orgânica educação a emancipação. Temos clareza que esse objetivo se coloca na contracorrente de uma cultura de gestão e de performance hoje estabelecida, de fora para dentro, no espaço escolar. Atualmente, pensar em uma sociedade sustentável pressupõe se contrapor ao sentimento de incerteza quanto ao nosso papel como educadores

num momento em que o nosso profissionalismo é

questionado pelos sistemas de avaliação que, aparentando objetividade e racionalidade, terminam por fazer introjetar na prática docente padrões de conduta individualistas, eivados de sentimento de culpa, inveja e competição. Acreditamos, no entanto, que a experiência que estamos construindo com nossas alunas tem a possibilidade de confluir com o que Ball expressa como urgente e necessário. A tarefa do pesquisador e do analista dentro deste quadro é recuperar memórias excluídas e interromper a auto-evidência dos discursos dominantes, bem como encontrar formas de falar sobre o ato de ensinar fora desses discursos. Uma tarefa como essa deixa claro que a mudança tanto é muito difícil, quanto bastante viável (Ball 2005: 559).

No contexto de nossa experiência na UFF, realizamos algumas atividades³ em que foi possível detectar as representações associadas à noção de meio ambiente, em que prevaleceu, inicialmente, uma visão naturalizada e antropocêntrica, uma percepção pouco politizada dos diferentes interesses ambientais em jogo na sociedade, assim como a predisposição mental de trabalhar com relações binárias, inevitavelmente opondo natureza e economia, quase sempre numa perspectiva histórica linear e evolutiva, indicando os limites epistemológicos da tradição científica moderna; fundada na dissociação entre sujeito e objeto, entre alma e corpo,

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entre qualidade e quantidade, entre finalidade e causalidade, enfim, na própria cisão entre Homem e Natureza. Nossas alunas são, em certa medida, herdeiras de um habitus escolar4 que limita os movimentos necessários ao pensamento, para apreenderem a complexidade de relações que só podem ser percebidas em outras bases epistemológicas. Construí-las, juntamente com nossas alunas, muitas delas já professoras, exige esforços interdisciplinares, que nem sempre tem sido capazes de superar a estrutura disciplinar e curricular dos cursos de pedagogia e das demais licenciaturas, assim como das escolas aonde trabalham, ainda obedientes ao paradigma científico clássico.

A prática pedagógica: uma experiência fértil na construção de roteiros ambientais Nos limites do presente artigo, apresentamos uma experiência realizada, entre outras que foram mencionadas, que merecem um destaque pela riqueza dos resultados alcançados; quer pela participação produtiva das alunas, com materiais pedagógicos bem elaborados, quer pelos conceitos que foram evocados, tencionados e criticados, e sobretudo, por terem nos mantido animados e solidários na construção de projetos político pedagógicos que respondam aos riscos socioambientais contemporâneos. Durante alguns semestres propusemos às alunas - após leituras, debates, relatos de experiências e problematizações sobre as representações sociais que orientam nossas práticas sociais – a elaboração de “Roteiros Ambientais”, que pudessem servir de apoio pedagógico para professores do ensino fundamental, não como um modelo a ser seguido, mas como um incentivo a que os professores pensem em ações que reforcem uma compreensão ampliada de meio ambiente, desenvolvendo conhecimentos, valores e princípios éticos que fundamentem a indissociabilidade entre as questões ambientais e as questões sociais. Assim, durante os semestres em que realizamos essa atividade, as alunas escolheram elaborar roteiros ambientais que evidenciassem o processo de apropriação e alargamento paulatino do conceito de meio ambiente. Os roteiros de visita propostos e

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elaborados exploraram os seguintes lugares, todos com importantes implicações socioambientais; Jardim Botânico, Jardim Zoológico, Baía de Guanabara, Ilha de Paquetá, Fortaleza de Santa Cruz, Museu Arqueológico de Itaipu, Museu de Astronomia, Museu Antônio Parreiras e a Companhia de Limpeza de Niterói (CLIN). A elaboração dos roteiros obedeceu a alguns critérios, tais como:  elaboração de um texto que expressasse uma concepção crítica de educação ambiental;  apropriação do espaço através de visitas, leitura de bibliografia específica disponível no local ou em algum centro de pesquisa;  participação em visitas guiadas no local;  proposição de sugestões de atividades para as diversas disciplinas do currículo escolar, tendo o local do roteiro como tema gerador. Os roteiros elaborados sempre continham palavras de incentivo aos professores no sentido de elaborarem suas próprias propostas, valendo-se do acervo histórico, cultural e ambiental das regiões aonde se localizam suas respectivas escolas, recorrendo à memória da comunidade e aos arquivos de documentos disponíveis nos bairros, nas prefeituras e nos órgãos estaduais. O trabalho realizado pelas alunas materializou-se em pequenos cadernos, passíveis de serem utilizados como um material didático, tanto para as próprias alunas, quanto para outros professores. Pudemos verificar, ao longo do processo, como as discussões iniciais, o trabalho de pesquisa, as visitas contribuíram para o alargamento dos horizontes da prática pedagógica. As alunas se sentiram motivadas a trabalhar em grupo, a mobilizar os conhecimentos que possuíam e ampliar o olhar interdisciplinar que cada local escolhido suscitava. Durante a avaliação elas destacaram como relevante o fato de, pela primeira vez, pensarem a questão ambiental para além de um viés biologizante, valorizando a idéia de trabalhar com um tema gerador, não como atividade-fim, mas como elemento catalisador de ações educativas ampliadas (Layrargues, 1999). Destacaram, também, o sentido de satisfação pelo grau de autonomia que o grupo alcançou e pela satisfação em ver que é possível propor

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atividades para além do livro didático, plenas de significado e que complexificaram a compreensão do conceito de meio ambiente. Concluímos, concordando com Selles e Abreu (2002), que “articular os conhecimentos sobre um ambiente permite-nos desvendar surpreendentes fios na teia dos aspectos políticos, econômicos, culturais, sociais e éticos que o envolve”. Acreditamos que a referida experiência, que se estendeu por alguns semestres, com turmas diferentes, se constituíram em possibilidades concretas de transformar a visão de mundo marcada pelo paradigma científico hegemônico em direção a sua superação.

Conclusão Ao longo de vinte semestres com muitas atividades desenvolvidas, acabamos por mobilizar o interesse de muitos estudantes pelos temas ambientais, alguns deles pesquisando temas para suas monografias de conclusão de curso. A experiência de orientação dos estudantes para estudos mais sistemáticos e profundos sobre as relações entre educação e meio ambiente, nos revelou, de um lado um impacto positivo na formação dos futuros professores, por outro lado, detectou uma demanda por uma formação mais sistemática sobre as temáticas ambientais nas demais licenciaturas e na formação de professores para a educação básica. Durante o período relatado acima além de termos detectado junto às alunas do curso de pedagogia uma visão a histórica da relação homemnatureza, onde os sujeitos se relacionam com o ambiente numa interação fortemente marcada pela natureza, também observamos que à educação é atribuída uma função de adaptadora. Se os indivíduos são marcados por uma natureza percebida, muitas vezes, como ameaçadora, caberia à educação mobilizar os conhecimentos científicos para minimizar os danos causados pelas ações humanas e promover uma reintegração harmônica entre os seres humanos e o ambiente. Também em monografias elaboradas pelas alunas, fruto de pesquisa junto aos licenciandos de outras áreas do conhecimento e junto aos professores das redes de ensino, podemos analisar a

influência

epistemológica

dos

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conhecimentos

que

professores

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licenciandos mobilizavam ao discutir as questões ambientais e as atribuições que conferiam à educação ambiental. Novamente se apresentou uma concepção de educação pautada numa racionalidade instrumental e adaptativa onde aos sujeitos cabe mobilizar os conhecimentos científicos para, de maneira racional, superar as disfunções de uma ação humana que gera desequilíbrios no ambiente e ameaça a vida. Assim, se avaliamos positivamente a experiência com o componente curricular

“Educação

e

Meio

Ambiente”,

que

permitiu,

além

da

sensibilização de parte dos estudantes para os temas ambientais, um crescente comprometimento de muitos deles com a necessidade de uma educação ambiental crítica nas escolas, por não ser obrigatória e não ter as características de uma disciplina, não permitiu um aprofundamento teórico sobre o campo da educação ambiental, sua história, suas correntes etc. Tal limite nos levou a propor a criação de uma disciplina optativa, agora não apenas oferecida para o curso de pedagogia, mas para as demais licenciaturas. Com esta iniciativa buscamos, para além da sensibilização, uma formação de professores qualificados para inserirem as questões ambientais na sua prática pedagógica, independente da particularidade de seu curso de origem. Entendemos que a oferta da temática na forma de uma disciplina, não desconsidera a natureza interdisciplinar da educação ambiental, na medida em que sendo tratada em seus múltiplos aspectos; sociais, ecológicos, políticos, filosóficos e éticos, de forma articulada e crítica, nos permite ultrapassar os limites disciplinares que comprometem a apreensão da realidade como totalidade. Por

considerarmos

grave

a

crise

socioambiental

planetária,

reivindicamos a importância do seu estudo e de sua crítica no contexto da Faculdade de Educação da UFF que, além do curso de Pedagogia, atua na formação de professores de diversas áreas de conhecimento, recebendo alunos de outros cursos de graduação mantidos pela universidade. Sem pretender superestimar o protagonismo dos professores e das escolas na reversão da crise, cultivando alguma modalidade ingênua de

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otimismo pedagógico, defendemos a perspectiva de que as escolas, e demais espaços educativos, podem se constituir em espaços privilegiados de formação de sujeitos sociais, que advertidos da urgência de transformações profundas nos atuais padrões de produção, consumo e distribuição de riquezas, sejam capazes de elaborarem, planejarem e praticarem estratégias sócio-educativas orientadas para a construção de outra possibilidade civilizatória. Ao longo destes anos estamos consolidando as premissas inicialmente apontadas, ou seja, a educação enquanto prática social se dá no interior das relações sociais de produção e reprodução material e social da vida. Por conseguinte é importante continuar investigando as bases epistemológicas de um conhecimento científico que está longe de ser neutro, mas que é difundido no espaço escolar, muitas vezes de forma acrítica, e apresentado como universalmente válido. Por outro lado, a dimensão ontológica da relação homem-natureza, mediada pelo trabalho, deve expressar as contradições sociais e as implicações destas na construção de uma sociedade transformada,

que

atenda

às

necessidades

histórico-concretas

da

humanidade.

Notas Trata-se do componente que nomeamos Atividades, que atravessam todo o curso, em caráter obrigatório, mas de livre escolha por parte alunos, na medida em que algumas atividades, com diferentes temáticas, são oferecidas por semestre. 1

Do texto Meio Ambiente e Educação: uma relação em construção no curso de Pedagogia da UFF, comunicação apresentada na 53ª Reunião Anual da SBPC, em Salvador, 2001. 2

Dentre as atividades desenvolvidas além da leitura de textos críticos e da análise dos documentos oficiais das grandes conferências, realizamos atividades práticas como: visitas orientadas em espaços degradados (lixão na periferia da cidade de Niterói, Baía de Guanabara) e preservados (Serra da Tiririca, Jardim Botânico/RJ), contatos com profissionais que desenvolvem atividades de educação ambiental, além de um diagnóstico dos problemas ambientais no próprio campus da universidade. A partir dos debates que as diversas atividades suscitaram periodicamente, as alunas realizaram trabalhos de síntese, que foram expostos na Faculdade, num processo de confronto com a realidade e de diálogo com a comunidade universitária. 3

4

No sentido construído por Pierre Bourdieu (1997).

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Referências BALL, Stephen J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n 126, p. 539 – 564, 2005. BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. FRIGOTTO, Gaudêncio. A nova e a velha face da crise do capital e o labirinto dos referenciais teóricos. In: FRIGOTTO,G.; CIAVATTA, M. Teoria e educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. LAYRARGUES, P.P. A resolução de problemas ambientais locais deve ser um tema-gerador ou a atividade-fim da educação ambiental. In: REIGOTA, M.(org). Verde Cotidiano: o meio ambiente em discussão. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. LAYRARGUES, P.P. Educação ambiental com compromisso social: o desafio da superação das desigualdades. In: Loureiro, C.F. B; LAYRARGUES, P.P.; CASTRO, R. (orgs). Repensar a educação ambiental, um olhar crítico. São Paulo: Cortez, 2009. LIMA, Gustavo Ferreira da C. Crise Ambiental, Educação e Cidadania: desafios da sustentabilidade emancipatória. In: LOUREIRO, C.F. e outros. Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania. São Paulo: Cortez, 2002. LOUREIRO, Carlos Frederico B. Teoria Social e Questão Ambiental: pressupostos para uma práxis crítica em educação ambiental. In : LOUREIRO e outros. Sociedade e Meio Ambiente: a educação ambiental em debate. São Paulo: Cortez editora, 2000. LOUREIRO, Carlos Frederico B. Sustentabilidade e educação: um olhar da ecologia política. São Paulo: Cortez, 2012. LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Neto, organização, apresentação e tradução. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2007. MARX, K. O capital. 7ª ed. São Paulo: Difel, 1982. SELLES, S.,ABREU, M. Darwin na Serra da Tiririca: caminhos entrecruzados entre a biologia e a história. Revista Brasileira de Educação. Editora: Autores Associados, nº 20, maio/agosto, 2002. TREIN, E. e BARRETO, M. Meio Ambiente e educação: uma relação em construção no curso de Pedagogia da UFF. Comunicação apresentada na 53ª Reunião anual da SBPC, Salvador, 2001.

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Dossiê Temático

QUANDO EU INVENTO AS COISAS

Monica Silvestri1 RESUMO As crianças e suas formas de brincar são o meu foco. Potencializo sua singularidade e nelas reconheço o engendramento experiênciacriatividade. Reúno imagens com as quais exploro as redes de significação tecidas nesse engendramento, que tem a criança como fazedora de uma cultura que precisa ser compreendida. Encontro as crianças como achadouras daquilo que nos escapa como adultos seres sem jeito de perceber, de fato, a riqueza da experiência. Palavras-chave: Criança; Brinquedo; Experiência; Criatividade

CUANDO YO INVENTO LAS COSAS

RESUMEN Mi foco son los niños y sus formas de jugar. Potencializo su singularidad y en ellos reconozco el engendramiento experienciacreatividad. Reúno imágenes con las que exploro las redes de significación tejidas en ese engendramiento, que tiene al niño como hacedor de una cultura que necesita ser comprendida. Veo a los niños como encontradores de aquello que se nos escapa como adultos - seres sin forma de percibir, de hecho, la riqueza de la experiencia. Palabras-clave: Niño; Juguete; Experiencia; Creatividad

Doutora em Educação, professora da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do CABE - Cetro de Aprendizagens Pesquisa e Extensão Cultura, Arte e Brinquedo em Educação. (21) 8712-1088, mlsrio@uol.com.br 1

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QUANDO EU INVENTO AS COISAS Monica Silvestri

Habita em mim um inesgotável campo de significações, nascido nas experiências que vamos tecendo - eu e as crianças - em nossos encontros nas pesquisas, nos trabalhos extensionistas e em outros momentos que desafiam os tempos e lugares confortáveis e comumente demarcados para as pesquisas com criançasi. O exercício de pensar com a criança tem me tornado uma pessoa melhor. Se ele é espaçotempo que abriga inquietações e medo é, ao mesmo tempo, força que afirma experimentações e resistências, pois olhar as crianças, estar com elas, pesquisar com elas, aprender com elas e com elas, também, sonhar, criar, inventar, experimentar deslimitesii faz estremecer meu lugar adulto, faz meu pensamento exclamar como exclama o de Deleuze A lógica de um pensamento é como um vento que nos impele uma série de rajadas e abalos (...) é o conjunto das crises que ele atravessa, assemelha-se mais a uma cadeia vulcânica do que a um sistema tranquilo e próximo do equilíbrio (Deleuze, 1992, p. 106).

O título deste texto, que traz a fala da criança faz turbilhar o pensamento e nos convida à experiência. Uma posição que não se resume a uma simples escolha é uma opção teórico-metodológica, pois exige paixão, exige o exercício de uma sensibilidade que mobiliza uma razão ampliada no sentido benjaminiano do termo, que envolve a intuição, a imaginação na construção de um saber prático, que é teórico também, e que só a

experiência das crianças anuncia/forja. Definir o sujeito da experiencia como sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação. A experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em forma de práxis. O que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber

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científico e do saber da informação, e de uma praxis distinta daquela da técnica e do trabalho. O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. (LARROSA, 2002, p. 26)

Em meus encontros com as crianças elas são protagonistas e isso tem sido uma das coisas que tenho feito de melhor na minha vida. Sigo com elas caminhos desviantes e, a cada passo dado, vivo a tensão permanente inesperado/esperado.

Exercício

de

dessegregar

diferentes

percursos

afirmando-os como engendramento de formas de pensar e fazer que me conduza a outras inteligibilidades. Quando afirmo os caminhos desviantes, afirmo especialmente o exercício de pensar com a criança o inesgotável campo de significações que nascem de suas/nossas experiências, o exercício de perceber o inusitado, aquilo que pulsa e que metodologicamente Benjamin chama de desvio. Ao optar pelo desvioiii como método de investigação abandono campos empírcos preveamente demarcados e abro mão das zonas de segurança a que Benjamin se refere. ...todo conhecimento deve conter um mínimo de contra-senso, como os antigos padrões de tapete ou de frisos ornamentais, onde sempre se pode descobrir, nalgum ponto, um desvio insignificante de seu curso normal. Em outras palavras: o decisivo não é o prosseguimento de conhecimento em conhecimento, mas o salto que se dá em cada um deles. É a marca imperceptível da autenticidade que os distingue de todos os objetos em série fabricados segundo um padrão. (BENJAMIN, 1993, P. 264)

Quando inicio esse texto com essas afirmações pretendo firmar uma posição e assumir a perspectiva de inacabamento própria daqueles que aceitam o desafio de recriar e refazer muitas respostas elaboradas ao longo da história. Refazê-las, pela experiência com as crianças. Não se trata, portanto, da infantilização da ciência, ainda que a imprevisibilidade e a incerteza sejam companheiras. Afirmo o que aprendo com as crianças sobre as crianças e, porque não dizer, sobre ciência. A fala de uma das crianças da

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pesquisa revela esses vôos de aprendizagem: “quando eu invento as coisas é

a minha imaginação que faz eu inventar... é a minha cabeça que sai de um lugar e vai pra outro.” Ao buscar compreender suas experiências abraço o inusitado, os

desvios que subvertem padrões, pois são eles que apontam a riqueza de diferentes caminhos; são eles os saltos possíveis sobre as escorregadas previsíveis da razão. Assim como Freire (1993), que nos convida à aventura de livres vôos, aposto na imaginação, na criatividade... É necessário que a professora ou o professor deixem voar criadoramente sua imaginação (...). A imaginação ajuda a curiosidade e a inventividade da mesma forma como aguça a aventura, sem o que não criamos. A imaginação naturalmente livre, voando ou andando ou correndo livre. No uso dos movimentos do corpo, na dança, no ritmo, no desenho, na escrita, desde o momento mesmo em que a escrita é pré-escrita - é garatuja. Na oralidade, na repetição dos contos que se reproduzem dentro de sua cultura. A imaginação que nos leva a sonhos possíveis ou impossíveis é necessária sempre. É preciso estimular a imaginação dos educandos (...). Por que não enfatizar o direito a imaginar, sonhar e brigar pelo sonho? Por que a imaginação que se entrega ao sonho possível e necessário da liberdade tem de se enfrentar com as forças reacionárias para quem a liberdade lhes pertence como direito exclusivo? (p. 70-71)

Acredito que o lócus da autoria está mesmo na criança - nos homens e nas mulheres -, naqueles que são restringidos pelas categorias e controles do mundo burguês. Portanto, essa criança enquanto vive suas experiências deixa marcas de uma autenticidade revolucionária que é evidencia na sua autoria ao forjar valores emancipatórios. A criança como um ser produtor de história está na origem do brinquedo, seus jogos recebem a marca das gerações anteriores, pois as crianças usam a sua maneira o universo material e simbólico que encontram. Seus jogos podem ser percebidos como configurações coletivas, entremeando gerações: o brinquedo não narra histórias apenas em sua

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origem, em seus rastros, a brincadeira como origem, evoca aura da criação -

Pois é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos [...] justamente através desses ritmos que tornamos senhores de nós mesmos (Benjamim 1996: 253). A brincadeira confere à infância a dimensão original do humano: a manipulação, as linguagem, os ritmos convidam quem chega a entrar no jogo e apresentam o ritos (hábitos), a conjugação de tempos aion (o brincar) e cronos (o calendário ritualizado e estruturado) e assegura a continuidade da históriaiv.

As crianças e as coisas que elas inventam As experiências das crianças são interessantemente ricas. Se concretizam em uma perspectiva de autoria, aqui entendida como uma proposta original, que é também estéticopolítica, de erigir novas formas de relação social que nos desaproxima das aparelhagens e conteúdos burgueses. Os brinquedos criados e confeccionados com “trastes” ou, se usarmos uma expressão benjaminiana, “com o lixo da história”, são aqueles que subvertem a idéia de valor de troca e se colocam como alternativa às condições capitalistas de exploração do trabalho. Esses brinquedosv criados com reaproveitamento de materiais, construídos pelas mãozinhas das crianças com sobras, são, de fato, um caminho para se fazer outra história, descompor discursos legitimados, já que fazem valer a voz da criança e recuperam possibilidades de expressão cristalizadas na/pela sociedade capitalista. Ao contrário, se constituem em espaços próprios do brincar, em outras palavras, entendo que o percurso de criação, escolha de materiais e confecção dos brinquedos representa a própria brincadeira. ... crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos

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detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas (BENJAMIN, 2001, p. 103-104).

Walter Benjamim fala da criança que brinca e cria seus brinquedos, que são tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos adultos. Em outras palavras, são brinquedos que não perdem seu caráter de objetos de brincar, pois a criança quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se

esconder e se transforma em bandido ou policial (idem p. 108-109) ou, simplesmente, coloca um chapéu e se torna motorista. Sem falar das construções feitas com papelão e outros materiais, que vão ganhando vida e sentido nas mãos das crianças. Benjamin também evidencia o fascínio das crianças por coisas insignificantes as quais, Barros (2001), no poema, chama de traste. Ele diz: Meu desagero é de ser fascinado por trastes. (p. 53). As crianças vivem esse fascínio e adoram os restinhos, as coisas insignificantes. Com eles são capazes de (re)inventar o mundo. Os trates que Barros menciona são, igualmente, importantes para as crianças e extremamente considerados por elas. O poeta busca nos resíduos, as sobras da sociedade capitalista, tudo aquilo que é deixado de lado, e inverte esse sentido, pois atribui ao que é tido como lixo outro sentido e significado, que se distancia daquilo que é valorizado por possuir valor de troca. Ele diz: É

um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata - cresce de importância para o meu olho (BARROS, 2001, p. 27). As crianças apropriam-se das coisas do mundo atribuindo-lhes significados e, desta forma, se constituíam sujeitos sociais ao tempo em que vão formando suas individualidades. Se entendermos que a cultura é uma forma de expressar vida, compreendemos que as crianças produzem uma cultura plural e ao mesmo tempo singular, pois expressam um modo muito particular (próprio das crianças) de apreenderviverpensarproduzir o mundo

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– o seu mundo -, plural, pois são as diferentes redes de significação que tecem esses diferentes modos das crianças viverem suas infâncias. [...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua analise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p.15).

É assim que precisamos compreender as crianças e as suas culturas, nas redes de significação que são constituídas a partir de suas experiências. Vejamos o que elas nos dizem... Vale, antes de tudo, deixar claro que os contextos que abrigam essas experiências são distintos, envolvem crianças de faixas etárias e níveis de escolaridade também distintos e se deram, como mencionei no início deste texto, em atividades de pesquisa, extensão e outros contextos não convencionaisvi.

“O carro que eu inventei trabalha para mim”

Pano

de

fundo:

escola

de

São

Gonçalo,

município do Rio de Janeiro, eu, as crianças e algumas alunas do Curso de Pedagogia da UFF em meio a uma oficina

de

criação

reaproveitamento

de de

brinquedos lixo.

feitos

Vários

com

objetos

disponibilizados, como: garrafas pet, papelão, retalhos de tecido, entre outros materiais reaproveitáveis, crianças em alvoroço, planejavam, combinavam entre si o que iriam construir, testavam alguns materiais, trocavam outros e conversavam sobre o que estavam fazendo. Fabiano, um menino catador de lixo, retirado do trabalho infantil pelo PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, ao criar seu brinquedo, expressa sua experiência (na imagem abaixo vemos Fabiano e seu carro). - Eu inventei um carro que tem roda grande para andar em todo lugar

que é assim alto e baixo. Eu fico no alto, no banco alto e fico olhando as latas

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e as outras coisas lá de cima. Aí o carro, ele chupa as latas pra dentro e amassa logo elas. Eu dirijo o carro e ele trabalha pra mim, minha mão só fica na direção. O que pulsa? O simbolismo e a materialidade das imagens expressas pela fala da criança e revelada nas relações atuais entre os indivíduos, que às vezes não conhecemos, denotam estilos de experiência e comunicabilidade que não podem ser ignorados. Assim, podemos compreender a imbricada trama que une experiência e criatividade.

“Mário, um herói gordo e pequeno” Pano de fundo: As crianças falavam sobre heróis. Em maio às conversas sobre o Batman, o Homem Aranha, e outros heróis, foram convidadas pela professora a criarem um herói. João Vitor um dos meninos do 3ª ano desenhou e escreveu a história de um herói diferente, (a imagem do herói pode ser vista ao lado).

- O Mário herói tem o poder da água. Ele tem um cordão no pescoço que ele usa pra se defender. Esse cordão tem um botão que ele liga e aí começa a soltar água. Ele tem poder de voar e de salvar pessoas em perigo de incêndio. Ele é gordo, pequeno e bem normal. Um dia, um vilão queria pegar o Mário porque ele estava salvando as pessoas, nesse dia ele não conseguiu pegar o Mário, só depois ele conseguiu, aí quando ele pegou, colocou o Mário em uma cadeira elétrica, mas o Mário conseguiu desligar tudo e foi embora salvando as pessoas. Ele entrou na cidade da mata que estava sem energia em uma das casas. Neste momento começou a pegar fogo em tudo. Aí o Mário salvou os moradores apagando o fogo com suas mãos que soltam água. Todos se salvaram. Fim da história! O que pulsa? A formação dos sujeitos é um processo de negociação permanente e dinâmico que ocorre durante todo o percurso de nossa existência, num diálogo complexo e tenso entre nossas experiências e o

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conjunto de normas sociais. O que pulsa está em perceber os valores e referenciais que fazem parte do momento histórico e de que forma dialogamos com eles.

“O corpo humano” Pano de fundo: sala de aula, aula de ciências para o 3º ano do Ensino Fundamental. Assunto: corpo humano. Sala repleta de crianças, professora falando sobre o coração, sua forma e função. No fundo da sala, enquanto copiam do quadro os desenhos e textos sobre o tema, as crianças dialogam:

- Não dá pra entender a forma do coração, aqui no livro é chata, lisa igual papel. (Alexandra) - Mas ela (a professora) tá dizendo que é assim (tentou fazer com o dedo a forma do coração, como no livro) (Ana Julia)

- Mas não dá pra ver como é mesmo. Todo mundo sabe que coração é assim, mas ninguém vê de verdade. (Alexandra) - Num dá pra vê de verdade, né? Só se abrir um morto, porque a gente não vai matar ninguém só pra ver o coração. (Ana Julia) - Não, né! Mas a gente podia ver um. Se tivesse um coração pra vê eu ia era querer pegar com a mão. (Alexandra) - que horas são?(Carlos Vitor) - Porque quer saber a hora? (Dayane) - Quero ir pro recreio. (Carlos Vitor) - Copia logo! (Dayane) - Não quero! (Carlos Vitor) - Minha mãe pintou minha unha... (Jassiene) - Sabe aquele Rodrigo? Ele vai fazer um time depois da aula na

quadra. Já falou com o Antonio que vai liberar a quadra. (Carlos Vitor dirigindo-se a Hugo) - Já copiaram tudo? Tou ouvindo muito barulho. É preciso fazer

silêncio para aprender e copiar certinho. (professora) RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Pulsação: As crianças são invisibilizadas em suas formas de aprender, ser e estar no mundo, ou melhor, na escola. O que de fato é uma criança aprendente na escola? Como trabalhar com as crianças sem esmagar sua curiosidade, sua imaginação, seus movimentos próprios, legitimando aquilo que só elas têm - infâncias?

“As coisas que a gente tem assim no corpo da gente” Pano de fundo: conversa com as crianças sobre a aula de ciências do dia anterior. - O que é corpo humano?

- É as coisas que a gente tem assim no corpo da gente? (Jhenifer) - Coisas?

- Assim tipo, perna, braço, fígado. Minha mãe tem problema de fígado, aí ela vomita. (Jhenifer) - Meu avô tem urina solta. (João Marcos) - A minha mãe tem palpitição (sic) de coração. (Leonan) Outras crianças deram seus depoimentos relacionando alguns órgãos a problemas de saúde vividos em seus cotidianos familiares. - Como a gente pode conhecer o corpo humano?

- Aqui na escola a gente olha o livro e escreve. (Willeny) - Tem outro o jeito? Silêncio geral. Depois de algum tempo, um menino arrisca: - a gente conhece no pensamento e na mão. (Kayo) A conversa com as crianças se desdobrou. A idéia de “conhecer com o

pensamento e com a mão” foi assumindo contornos diferenciados que passaram pela impossibilidade de tocarmos órgãos verdadeiros, pelos livros que não mostravam direito a forma das coisas, lá as coisas “são achatadas” e o coração “não é assim lisinho fino”, até chegarmos à idéia de fazermos

“bonecos do nosso jeito”..

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Pano de fundo: Pátio de escola. Tarefas foram divididas, materiais foram coletados e espalhados no chão (caixas de papelão, retalhos, embalagens plásticas diversas, cola, pincéis, tinta...). Tema: o corpo humano e 3D.

- tia o que é 3D? - é como nós somos. Roliços e não achatados como folha de papel. Nós temos volume.

- já sei como vou fazer o meu! (Bruna) - tou usando essa garrafa, mas ela é dura e meu braço é mole. (Denis) - e se você fizer com pano? Enquanto pensavam

nos

faziam

seus

materiais,

bonecos as

e

crianças

conheciam o corpo humano, pensavam em proporções, dimensões... (um

dos bonecos

criados pode ser visto na imagem ao lado).

- o intestino tem 12 metros, como cabe dentro da gente? (Felipe) - o coração não é como no desenho, assim com aquela forma. (Maysa) - eu olhei na internet do cyber e vi o fígado e a vesícula. Na vesícula dá pedra, sabia? (Daniel) O que pulsa? Pensamos naquelas crianças, como? Infante é aquele que não fala tudo, não sabe tudo, não pensa tudo. Aquele que, como Heráclito, Sócretes, Rancière e Deleuze, não pensa o que todo mundo pensa, não sabe o que todo mundo sabe, não fala o que todo mundo fala. Aquele que não pensa o que já foi pensado, o que “há que pensar”. È aquele que pensa de novo, e faz pensar de novo. Cada vez pela primeira vez. O mundo não é o que pensamos. Nossa “história” está inacabada. A experiência está aberta. Nessa mesma medida somo seres da linguagem, de história, de experiência. E de infância. (KOHAN, 2003p. 246)

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Para as crianças o criar se manifesta em um movimento dinâmico de “destruição” da realidade tal como ela se apresenta. No caso do menino catador de lixo, que para se ver livre do contato com o lixo e ter sua atividade de catador facilitada inventa, cria um carro e, portanto, se coloca e um novo lugar, o de sujeito em relação ao mundo que o cerca. Inventar, produzir uma novidade, gerar uma nova forma de se relacionar com o mundo é, assim, superar os limites daquilo que se apresentava como possibilidade única - colocar a mão no lixo -, e ir além, é arriscar-se em busca de superação do que até então se apresentava como verdade última, como coisa imutável. Criar é como um explosivo e a cada vez que se detona um explosivo tem-se a potência, que, a contrapelo de um contexto social que prioriza o individualismo e a padronização da pluralidade ao partir de dimensão criativa, resulta numa relação diferenciada com a realidade (Deleuze 1999). Como? Potencializando a relação entre os conteúdos criativos e a experiência, pois a relação de mediação entre o sujeito e a realidade tal qual se apresenta abre espaço para uma outra relação, a do real reificado, que inclui, sim, as coisas que a gente inventa.

Referências Bibliográficas BARROS, Manoel de. O apanhador de desperdícios. In. PINTO, Manuel da Costa. Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2001. BENJAMIN, Walter O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Iluminuras, l993. ____________. Reflexões Sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. São Paulo: Editora 34, 2001. DELEUZE, G. & GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, G. Bergsonismo. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34 Letras, 1999. GEERTZ, Cliffort. A interpretação das culturas. SP: Guanabara Koogan, 1989.

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KOHAN, W. O. Infância. Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiencia e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação. jan-abr, número 19. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. São Paulo, Bras, 2002. SILVESTRI, Monica. Criança, brinquedo e professorasbrinquedistas: experiências e deslimites ontemhoje. Tese de doutorado. Programa de pósgraduação em Educação - UFF. Niterói, 2010. i

Em minhas pesquisas com as crianças tenho optado por seguir um rumo teórico metodológico diferente. As pesquisas que venho realizando com as crianças tem significado ruptura, transgressão e abandono de caminhos já trilhados, portanto, a busca por caminhos desviantes que muitas vezes tem-me “obrigado” a seguir seus rastros, a rever visões aprisionadas e não seguir os aportes metodológicos normalmente considerados “confiáveis” e seguros. As pesquisa me tem me levado a busca de uma epistemologia da infância que no fazer pesquisador com as crianças procura a ruptura de monoculturas, e me levam a compreender as crianças e suas infâncias fora de uma relação verticalizada de saber poder. Vou onde as crianças estão e com as crianças construo significados outros de pesquisa por acreditar que pesquisar com crianças exige formas de abordagens não planejadas, não prescritas, feitas de contra-senso, desviantes. Uso o termo deslimite me apropriando da idéia que Barros nos transmite ao usá-lo. Qual seja: os deslimites de Barros possuem caráter de processo, processo de perda dos limites da linguagem representativa, de perda dos limites utilitaristas que as ações interessadas sobre as coisas transformam em hábito. ii

A esse respeito ver Silvestri, Monica. Crianças, brinquedos e professoras brinquedistas: experiências e deslimites otemhoje. Tese de doutorado. Rio de Janeiro.Programa de PósGraduação em Educação. Faculdade de Educação da UFF, 2010. iii

A esse respeito ver PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e ALVES, Luciana Pires. Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano escolar. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro. FAPERJ, 2009, p.12 iv

Vale enfatizar, que diferentemente do que muitos podem pensar os brinquedos feitos com lixo não são uma solução desrespeitosa para a carência, isto é, a falta de acesso aos brinquedos produzidos pela indústria - muitas vezes, considerados como modelos representativos de brinquedo ideal -, nem podem ser vistos como o descompromisso por parte de autoridades no que diz respeito aos investimentos necessários para a infância. v

O projeto de pesquisa do qual retiro algumas experiências para este texto é: “Papelão botão e grão de feijão: ressignificando o brincar no Ensino Fundamental. Ele tem como objetivo buscar compreender as experiências das crianças tecidas em desvios, que evidenciam suas ressignificações sociais/culturais cotidianas, aquelas que as conectam com os espaços/tempos reduzidos do brincar no Ensino Fundamental. Outro projeto também de pesquisa, desenvolvido com o apoio da FAPERJ é “Do jeito que a gente conhece”, a relação brincar-conhecer no ensino fundamental a partir das experiências das crianças tem como foco principal: investigar o jeito singular e único que elas têm de conhecer, suas lógicas operatórias, os movimentos que imputam ou não quando (des)praticam normas próprias do vi

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conhecer na escola. O projeto de extensão: “papelão, botão e grão de feijão: coisas de brinquedos feitos à mão” visa a socialização de saberes e fazeres e o intercâmbio de experiências teórico-prático-teóricas relacionadas ao brincar na educação, promovendo oficinas de criação de brinquedos feitos com reaproveitamento de materiais, durante as quais a reflexão e produção de novas idéias sobre aprendizagens vão se configurando sob as mais diferentes formas, ora bonecos, ora órgãos do corpo humano, ora mapas. Outros projetos com crianças são realizados em Atividades e Pesquisa e Prática Pedagógica, que são dois componentes curriculares do Curso de Pedagogia da Universidade federal Fluminense, que permitem ao grupo de alunos da UFF e professores envolvidos elaborar proposta própria de trabalho articulando a pesquisa e prática pedagógicas durante o semestre letivo. Como as atividades de pesquisa e extensão vêm se dando desde 2005, várias turmas de alunos já participaram dos projetos e proposta de trabalho. Vale ressaltar, que esta é uma iniciativa que vem dando certo e tem proporcionado, de fato, para além da materialização da tríade ensino-pesquisa-extensão, experiências ricas sobre as crianças, o brincar na escola, e formas alternativas de aprendizagens.

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EDUCAÇÃO INFANTIL ENTRE PARENTES

Dossiê Temático

Lições da creche Tupinambá Léa Tiriba1

Resumo Este artigo tem como inspiração a experiência vivida na Conferência Rio + 20, realizada em junho de 2012 no Rio de Janeiro, e retoma dados de uma pesquisa realizada em uma aldeia Tupinambá, em Olivença, na Bahia. Aborda o surgimento da demanda por uma creche na aldeia e a mobilização social que levou a sua criação. Os dados resultantes do trabalho de campo conduzem às análises sobre questões relativas à identidade cultural, ao afastamento da criança dos seus povos de origem e à possibilidade de quebra dos laços com a cultura nativa. Constata como a experiência escolar pode ultrapassar os limites impostos pelo modelo ocidental de organização escolar e respeitar as relações livres, próprias da cultura indígena, superando a obsessão pelo controle. Palavras-chave: educação infantil; práticas educativas; cultura indígena Résumé Cet article a été inspiré par l'expérience vécue dans la Conférence Rio + 20, tenue en juin 2012 à Rio de Janeiro, et intègre des données provenues d'une enquête réalisée dans un village Tupinambá à Olivença, Bahia. Il discute de l'émergence de la demande pour une école maternelle dans le village indigène et la mobilisation sociale qui a mené sa création. Les données recueillies sur le terrain mènent aux analyses sur les questions d'identité culturelle, d'éloignement des enfants de leurs villages d'origine et de la possibilité de rupture des liens avec leur culture native. Il note comment l'expérience scolaire peut surmonter les limites imposées par le modèle occidental d'organisation scolaire et respecter les relations libres, propres de la culture indienne, en surmontant l'obsession pour le contrôle. Mots-clés: éducation de la petite enfance, les pratiques éducatives, la culture indienne

[1] Léa Tiriba - Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; UFRRJ;coordenadora do Grupo de Pesquisa “Infâncias, Tradições Ancestrais de Cultura Ambiental”.

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Introdução Retomo os escritos sobre a experiência de Educação Infantil dos Tupinambá mobilizada pela presença viva dos tantos indígenas – homens, mulheres e crianças - presentes à Cúpula dos Povos2, em junho de 2012. Neste grande evento, realizado numa pequena parte do belo território que, no século XV era habitado pelos Tupinambá, circularam inúmeras das 220 etnias (falantes de 180 línguas) que hoje vivem no Brasil. Trajados e pintados, deram brilho ao evento! E surpreenderam a todos nós com seus cantos e propostas. Ao lado de tantos outros povos - da caatinga, do cerrado, da floresta; misturados aos quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, sem terra, sem teto - os indígenas ganharam visibilidade no horizonte reduzido do modo de ser urbano, consumista, competitivo, em detrimento de outros estilos de viver, sentir e pensar a vida. Portanto, é com a alegria de quem se encontrou com um Brasil de 3

verdade, que reescrevo este pequeno artigo , Inicialmente, apresento brevemente o contexto de vida dos Tupinambá de Olivença, com vistas a situar o surgimento da demanda por Educação Infantil. A seguir, descrevo aspectos do dia a dia da creche Katuana. E, ao final, aponto lições a serem aprendidas com as professoras e crianças Tupinambá, tendo em vista o compromisso de materialização das Diretrizes Nacionais da Educação Infantil, aprovadas em 2009.

A creche como espaço de afirmação da identidade e dos direitos indígenas

Novembro de 2009. Do avião, admiro o belo litoral do sul da Bahia. São quilômetros e mais quilômetros de areia branca emoldurando o verde 2

A Cúpula dos Povos realizou-se entre 15 e 23 de junho, no Aterro do Flamengo, cidade do Rio de Janeiro. Constituiu-se como espaço de articulação de movimentos sociais e populares, sindicatos, povos, organizações da sociedade civil e ambientalistas de todo o mundo interessados em construir uma plataforma de lutas pela preservação da vida, em oposição à proposta de mercatilização dos bens comuns, expressas pelos defensores da “economia verde”. Ver Declaração Final da Cúpula dos Povos na Rio + 20,por Justiça Social e Ambiental, em lhttp://cupuladospovos.org.br/2012/06/declaracao-final-da-cupulados-povos-na-rio20-2/ 3 Uma primeira versão foi publicada em dezembro de 2011, na Revista Infância Latinoamericana. Ver http://www.rosasensat.org/revista.php?tmplng=es&num=3

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das águas. Chego a Ilhéus e, em pouco, tempo percorro a estrada que me leva Olivença. Venho como pesquisadora, conhecer a experiência de uma creche criada pelo povo Tupinambá.4 Estes povos tiveram um papel importante na conquista e na colonização do litoral brasileiro. Quando os europeus chegaram à America, eles ocupavam um amplo território litorâneo das regiões dos atuais estados da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Suas aldeias eram economicamente auto-suficientes, habitadas por 300 a 1000 pessoas que organizavam a produção e a sociedade a partir do trabalho coletivo. Atualmente, cerca de 4.300 indígenas vivem na Aldeia Mãe de Olivença e em outras 23 comunidades situadas nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, situadas, no Estado da Bahia, Brasil. Em 2002, os moradores da região foram reconhecidos como povo Tupinambá pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e agora aguardam a demarcação de suas terras. A situação geral é de muita pobreza: os indígenas não têm onde plantar alimentos e a caça está proibida. As crianças falam das situações de conflito

armado

durante

os

movimentos

de

“retomada”

de

terras

improdutivas, que eram de seus ancestrais e hoje pertencem aos herdeiros dos antigos produtores de cacau. Algumas vivenciam um cotidiano marcado pelo alcoolismo dos pais, vicio comum entre os indígenas da região, apontado como sintoma de fuga frente a falta de perspectivas de vida, gerada por uma história de expropriação territorial e cultural. A creche surgiu da necessidade das mulheres indígenas trabalharem para assegurar o sustento da familia. Em maio de 2009, em mutirão que reuniu professoras, famílias e jovens tupinambás, ergueram uma oca de taipa na mata. Mas, quando as paredes da oca de taipa já estavam de pé, policiais cercaram o grupo e anunciaram a proibição da continuidade da

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A pesquisa, de caráter exploratório, desenvolveu-se no contexto do Projeto “Tendências de políticas de transição em comunidades rurais, indígenas e de fronteiras”, uma iniciativa do Departamento de Educación y Cultura da Organização dos Estados Americanos (OEA), apoiada pela Fundação (FBvL) e em parceria com os governos do Brasil, Colômbia, Chile, Peru e Venezuela. A investigação teve o objetivo de compreender como são vivenciados os processos de transição do contexto familiar e comunitário à instituição de educação infantil.

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obra. Derrubada a creche-oca, e diante da perseverança das lideranças indígenas, a prefeitura alugou o prédio da Creche Katuana. 5 A pesquisa realizada em Olivença teve justamente o objetivo de inquirir e compreender os sentidos desta demanda. Pois, considerando que a instituição creche tem características intrínsecas ao modelo europeu (Rosemberg, s/d, p.23), é preciso questionar: como se dá o processo de inserção de crianças indígenas em espaços institucionais de Educação Infantil? Lideranças indígenas afirmam suas comunidades educativas não podem ser substituídas por espaços escolares. De fato, ao longo da história, a educação oferecida aos indígenas na escola (...) foi o instrumento privilegiado para a catequese, depois para formar mão-de-obra e por fim para incorporar os

índios

definitivamente

a

nação,

como

trabalhadores

nacionais,

desprovidos de atributos étnicos ou culturais (...).(Parecer n°14/99, p.4) Entretanto, há etnias, como os Tupinambá, que demandam creches e pré-escolas. Mesmo tendo em conta que a mobilização de alguns povos pela Educação Infantil se dá num cenário político de afirmação da identidade e dos direitos dos indígenas brasileiros, vale perguntar: o que significa, para as crianças pequenas afastarem-se dos adultos e do contexto de sua grande família tribal para estarem, cotidianamente, em creches e pré-escolas? Em que medida as IEI contribuem para a afirmação da identidade sócio ambiental e cultural das crianças e de seus povos de origem? As primeiras respostas - obtidas em dois trabalhos de campo que incluíram observação participante, visitas às aldeias e entrevistas com crianças, familiares e lideranças indígenas – indicam que não há uma quebra significativa nas transições entre comunidade, família e escola. Pois,

5

A creche integra a Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença, composta de uma Escola Sede e 18 Núcleos, situados nas comunidades indígenas, a maioria dos quais oferece educação infantil para as crianças de 4 e 5 anos. Vinculada à Secretaria Estadual de Educação da Bahia, a Escola Sede articula e coordena o trabalho de educação indígena desenvolvido na região, sob a responsabilidade do governo do Estado da Bahia, com o apoio da FUNAI. Em abril de 2010, eram, ao todo, 33 salas de aula, atendendo a 414 alunos.

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em todos estes contextos, os sujeitos afirmam seus direitos de etnia, enfatizando a necessidade, o desejo de resgate da cultura nativa e, simultaneamente, de inclusão no meio letrado socialmente legitimado, oficial.

O dia a dia dos pequenos na creche Tupinambá

Em Olivença e demais aldeias, adultos e crianças retomam antigos costumes, como o Porancin, ritual tupinambá que reúne todos numa dança circular e cantos, marcados pelo ritmo de um instrumento de percussão, o maracá. No cotidiano da Creche Katuana, no início de cada turno, por cerca de 10 minutos, as crianças, mesmo as bem pequeninas, participam deste ritual com seus professores. Não há separação por faixa etária, nem obrigatoriedade, o ritual funciona como uma espécie de mantra que produz concentração, serenidade, integração. A pintura do corpo, antigo costume que foi resgatado recentemente, também está presente no dia a dia da creche: como seus pais, que circulam trajados pela região, as crianças vão para a escola com o rosto e os braços pintados com a tintura de jenipapo, que, em tupi-guarani, significa "fruta que mancha ou que serve para pintar". A porta da creche está permanentemente aberta, familiares, vizinhos, amigos, entram e saem livremente, num movimento vivo que integra escola e comunidade. Os professores6 são também de origem indígena ou agregados (casados com indígenas ou adotados). Todos se conhecem, partilham um mesmo território. Crianças e professoras utilizam o mesmo transporte para virem e retornarem às suas comunidades: um pequeno caminhão contratado pela FUNAI. As estradas de acesso são precárias, as acomodações na caçamba do caminhão não são confortáveis, mas todos parecem sempre muito dispostos, alegres e integrados. Junto com as crianças, viaja sempre uma

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As professoras têm formação de nível médio e estão cursando instituições de nível superior (licenciatura intercultural indígena, letras, licenciatura em pedagogia, à distância ou presencial).

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das professoras, além de mães e pais das crianças que vêm das comunidades para a Aldeia Mãe, muitos dos quais se integram ao cotidiano da escola depois de realizarem seus afazeres em Olivença, participando inclusive dos passeios, da rotina, o que ocorre de forma espontânea, sem planejamento prévio. A creche está situada na praça central. As instalações físicas reproduzem o modelo urbano, mas em péssimas condições: cozinha e banheiros são inadequados, as vezes há falta de água, as salas são pequenas e abafadas. Nas paredes há desenhos com motivos indígenas e dizeres em tupi, mas também alfabetários, listas de presença, cartazes com sílabas marcadas em pequenos textos, enfim, todo um aparato que está presente na maior parte das creches e pré-escolas brasileiras. Do quintal, desprovido de brinquedos, se avista a beleza das praias com seus coqueirais. Entretanto, fugindo aos limites impostos pelo modelo ocidental de organização escolar, diariamente as crianças saem para caminhar por Olivença: vão à praça central, à praia, ao balneário de Tororomba tomar banho de piscina, lancham na mata... Assim, todo tempo, estão inseridas num universo que é por elas conhecido. Chama atenção a disponibilidade de acompanhar as crianças em atividades de seu interesse. Numa das tardes, acompanho a turma que sai da escola após o lanche:

São cerca de 25 crianças acompanhadas por 5 adultos, entre eles, eu. Seguimos pela calçada, descemos ladeiras e escadarias, atravessamos a pista à beira mar. O combinado é que iríamos para a quadra de esportes situada na areia da praia, cimentada e gradeada. Mas, logo depois, algumas crianças deslocam-se para a areia, procuram conchas, fazem buracos, aproximam-se do mar. Um menino entra na água de roupa e tudo, e depois rola na areia, os adultos não reclamam. Outras crianças vão saindo da quadra e se aproximando do mar, colocam os pés, as pernas, o corpo inteiro na água. Os adultos acompanham. Uma menina pede para ser enterrada na areia, a professora vai cobrindo e cantando, referindo-se a cada parte do corpo. Outros também querem, ela vai atendendo. Não há uma proposta para cada um ou para o grupo, uns estão na areia brincando, outros à beira d’água. Os adultos, atentos, se divertem junto com as crianças, não reclamam, não interferem, a não ser em situação de perigo (diário de campo, 22 de abril de 2010).

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Mesmo quando o objetivo é passear apenas na quadra de esportes, situada na areia da praia, professoras aderem ao movimento de entrar na água do mar, de roupa e tudo, lambuzar-se de areia. Se, muitas vezes, falta intencionalidade pedagógica, transborda sensibilidade dos adultos aos movimentos das crianças: o objetivo inicial é subvertido em função dos interesses que vão surgindo. Entre a atividade de Porancin e a hora do lanche, as crianças permanecem em sala por cerca de 60 a 90 minutos. É quando realizam atividades pedagógicas tradicionais, comuns nas escolas urbanas. São 14hs, faz muito calor na sala das crianças que têm entre 1 ano e 3 meses e 3 anos. Dez estão sentadas em torno da mesa grande. Outras, de 4 ou 5 ocupam carteiras escolares de adultos. A professora vai distribuindo folhas de papel mimeografadas, com um grande cacho de uva ao centro. Oferece lápis cera e as crianças começam a pintura. Elas conversam alegremente entre si enquanto pintam. Outras crianças vão chegando, entre elas, uma menina de pouco mais de um ano, que não adere à atividade. Ela zanza de um lado pra outro, se esconde atrás do pano azul do mural, arrasta uma carteira de um lado para outro. A pequenina pega um livro, a professora tenta impedir, a criança resiste, a professora cede. Um rápido desentendimento entre as crianças gera uma mordida. A professora não se atrapalha, protege quem foi agredido, explica ao agressor que não pode agir assim. Agora já são vinte crianças na sala. Seguem colorindo, alguns começam a gritar, a maioria adere, os gritos continuam por longo tempo. Eu já estava ficando irritada, mas a professora não se altera. Quando param, ela pergunta: vocês ainda querem gritar mais? Não? Ah então vamos fazer outra coisa (...)Neste momento, chega a segunda professora, alegria geral. Forma-se uma fila, mas a organização não é rígida, as crianças saem livremente (diário de campo, novembro de 2009, p.22/23).

Em situações como esta, ou em outras, em que as crianças resistem à ordem adulta, as professoras comportam-se de maneira delicada, paciente, generosa. Não observei qualquer alteração de voz por parte dos adultos, nem birra por parte das crianças. Como lembra Nötzold, os Tupinambá jamais diziam às crianças algo que poderia lhes ofender “nem lhe davam castigo nem os doutrinavam ou repreendiam por alguma coisa que fizessem. (...) essa maneira livre de se criar as crianças as levava a nunca fazerem algo que desagradassem a seus pais,(...) (Nötzold, s/d, p. 3).

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Em vários momentos evidencia-se a semelhança com a escola tradicional, onde há um corte entre conhecimento e vida. Entretanto, o ambiente é de muita tranqüilidade: as crianças circulam livremente pela escola,

as

faixas

etárias

se

integram

espontaneamente,

não

obrigatoriedade, imposição ou pressa. Chama a atenção a disponibilidade de envolvimento, o amor explícito pelas crianças, articulado ao sentimento de pertencimento a um grupo social mais amplo. “Parente”! É esta a expressão que utilizam, para se referirem, afetivamente, a toda a comunidade indígena Tupinambá, não apenas aos entes familiares mais próximos. Também na dinâmica da creche este sentimento de grupo se evidencia na presença cotidiana dos responsáveis, na possibilidade de entrarem e saírem livremente do espaço escolar e participarem das atividades. Esta proximidade, certamente contribui para que meninos e meninas se sintam seguros frente às novas experiências vivenciadas na escola. Se algumas das práticas cotidianas estão distantes de suas tradições culturais – pois as professoras indígenas também foram educadas nas “escolas do branco” - como produzir coletivamente uma creche que assegure a transmissão do conhecimento universal acumulado, assumindo a cultura indígena como ponto de partida e de chegada de todo o processo educativo? Num contexto de compromisso eliminação das desigualdades sociais e a formulação de políticas públicas de Educação Infantil em diálogo com a sociedade, o grande desafio da formação é desenhar, em parceria com os povos indígenas, projetos educativos que inventem novas rotinas cotidianas, possibilitadoras de interações acolhedoras e pesquisas instigadoras. Esta é a educação de que necessitamos não apenas para as crianças indígenas, mas também para as do campo, da cidade, da floresta, do cerrado, da caatinga, da beira de praia. Uma educação que não se organize pela lógica da apropriação privada do conhecimento, pela ideologia do aprisionamento dos corpos e do esmaecimento dos desejos, mas se fundamente na ética do cuidado, aposte na criatividade, na inventividade, na liberdade.

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Lições da creche-oca

Quando oferecidas, aceitas e requisitadas pelas comunidades, como direitos das crianças indígenas, as propostas curriculares na Educação Infantil devem proporcionar uma relação viva com os conhecimento, crenças, valores, concepções de mundo e as memórias de seu povo (CNE/CEB n° 20/2009,p.12). Vários aspectos da realidade escolar tupinambá estudada não condizem com proposição. Ao contrário, reforçam experiências cotidianas desconectadas da realidade e das necessidades infantis. Na contramão das definições legais, alguns pontos críticos merecem destaque: as instalações físicas reproduzem o modelo

da escola urbana, mas em péssimas condições: cozinha e banheiros são inadequados, há problemas de falta de água; as crianças utilizam carteiras de adulto; ninguém desempenha atividades de coordenação pedagógica; não há uma rotina de avaliação e planejamento das atividades desenvolvidas com as crianças. Entretanto, o objetivo, aqui, é focar no que podemos aprender com a experiência Tupinambá, não no que falta. Se é verdade que o entusiasmo das professoras indígenas pelo trabalho, sua relação afetiva com as crianças, seu compromisso com o oferecimento de uma educação diferenciada devem se efetivar em espaços adequados, com infra-estrutura que assegure material pedagógico, alimentação, remuneração justa e formação inicial e em serviço, também é verdade que precisamos evitar o risco de políticas públicas que reproduzam, Brasil

afora o modelo de educação infantil que nasceu com o capitalismo urbano industrial. Como nos ensina a Declaração da Cúpula dos Povos, e m sociedades sustentáveis, será preciso aprender-ensinar conhecimentos muito distintos daqueles que foram necessários para a construção da sociedade industrial. Portanto, não podemos reproduzir para as crianças pertencentes a povos extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, indígenas, e nem mesmo para as da cidade o formato que conhecemos internacionalmente de EI (...) é originário das sociedades européias urbanas, tendo sido constituído para

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responder à necessidades e interesses das sociedades européias e modernas e daqueles que seguem este modelo (Rosemberg, s/d, p.19).

As pesquisas sobre concepções e práticas de educação da infância indígena

em

espaços

institucionalizados

podem

trazer

elementos

importantes para a o campo da Educação Infantil, mesmo quando se trata de povos como os Tupinambá, bastante aculturados. Pois, como aponta Boaventura de Sousa Santos (2001) há resíduos que sobrevivem, ainda que não aparentes, mas submersos. Em Olivença, os resíduos são evidentes: eles se expressam no modo de adultos e crianças se relacionarem entre si e com o universo do qual são parte. Nestes sentidos, e tendo como referencia as definições legais, expressas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, é preciso humildemente reconhecer que temos muito a aprender com os povos tradicionais. Por exemplo, sobre um modo de viver e sentir a vida que assegura o princípio de respeito ético ao meio ambiente, afirmado no Artigo 6º das DCNEI. Ou sobre novas formas de sociabilidade e de subjetividade, comprometidas com a democracia e a sustentabilidade (Art. 7º); subjetividades que não sejam antropocêntricas, individualistas, competitivas e consumistas; que não sejam autocentradas e focadas na posse de objetos, mas voltadas para as interações solidárias entre as pessoas, os povos do mundo, as outras espécies. As práticas educativas da creche Tupinambá nos apontam caminhos no sentido de garantir às crianças o direito à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças, respeitando seus direitos aos deslocamentos e aos movimentos amplos nos espaços internos e externos às salas de referência das turmas e à instituição, como prevê o Art. 8º das DCNEI. A rotina que inclui atividades diárias ao ar livre indica pistas em relação ao objetivo de reinventarmos modos de organização dos espaços e dos tempos

que estejam na contramão à lógica de aprisionamento. Porque é a possibilidade de estar em contato com o mundo natural, que assegura a condição biofílica necessária a que as crianças aprendam “a interação, o cuidado, a preservação e o conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade da vida na Terra, assim como o não desperdício dos

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recursos naturais”, como afirma o Art.9º, no

parágrafo

X do mesmo

documento. Por outro lado, um modo de funcionamento escolar que respeita relações livres entre crianças de diferentes faixas etárias, assim como a possibilidade de escolherem as atividades de que desejam participar, pode constituir-se como referência, no que diz respeito à superação de nossa obsessão pelo controle. Numa perspectiva libertária, ao invés de longos períodos em espaços fechados, enfileiradas, aguardando o comando dos adultos, como num quartel, as interações e brincadeiras poderão, verdadeiramente, se constituir como eixos norteadores da proposta curricular, das escolas do campo, da cidade, da floresta. Em todos estes sentidos, professoras e crianças da creche Tupinambá têm

muito a ensinar!!!

Referências bibliográficas BRASIL. “Políticas Públicas em Educação junto às populações rurais, indígenas e de fronteira no Brasil : avanços e desafios”. MEC/SECAD, Coordenação de Educação Escolar Indígena, s/d, mimeo (2). COHN, Clarice. “Antropologia da Criança”. Rio de Janeiro, Zahar, 2005. FERNANDES, Florestan. “Investigação Etnológica no Brasil e Outros Ensaios”. Petrópolis: Vozes, 1975. NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe. “Cotidiano e Educação dos Jovens Tupinambá”. Revista Virtual de Ciências Humanas - IMPRIMATUR - Ano 1 Nº. 3. Disponível em http://www.cfh.ufsc.br/imprimat/nr.3/pdf/tupinamba.pdf. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE). “Parecer nº 14/99”. Disponível em www.mec.gov.br. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE). “Parecer CNE/CEB n° 20/2009” de 11/11/2009, de autoria do Conselheiro Raimundo Moacir Mendes Feitosa, relativo à Revisão das DCNEI: Disponível em www.mec.gov.br. ROSEMBERG, F. “Educação Infantil e povos indígenas no Brasil: apontamentos para um debate. In “Discutindo políticas de Educação Infantil e educação escolar indígena. MIEIB/Centro de Cultura Luiz Freire, s/d.

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SANTOS. Boaventura S. “A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência”. São Paulo: Cortez, 2001. TIRIBA, Léa. “Educação infantil entre os povos Tupinambá de Olivença. Projeto tendências de políticas de transição em comunidades rurais, indígenas e de fronteira. Estudo de caso Brasil. Brasília, OEA/MEC/COEDI/Fundação Bernard van Leer, 2010. ____ “Crianças, natureza e Educação Infantil”. (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005. ____ “Reinventando relações entre Seres Humanos e Natureza nos Espaços de Educação Infantil”. In: Soraia Silva de Mello; Rachel Trajber. (Org.). Vamos Cuidar do Brasil - Conceitos e Práticas em Educação Ambiental na Escola. 1 ed. Brasília: MEC, 2007, v. , p. 219-228. ____ Crianças da Natureza. Brasília, Programa Currículo em Movimento, 2010. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16 110:i-seminario-nacional-do-curriculo-em-movimento-&catid=195:sebeducacao-basica.

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Pulsações e Questões Contemporâneas

Cinema no currículo escolar: de que cultura cinematográfica estamos falando? Glauber Resende Domingues1

Resumo Este texto pretende apresentar algumas discussões acerca da trajetória do cinema no currículo escolar, que historicamente é tido como um recurso para as aulas. Como uma tentativa de pensar outro modo de lidar com o cinema na escola, discuto algumas questões acerca da cultura cinematográfica, tendo como eixo as discussões sobre currículo e cultura. Palavras-chave: cinema e currículo; cultura; cultura cinematográfica;

Abstract This paper aims at presenting some discussions about the history of cinema in the school curriculum, which has historically been seen as a resource for classes. As an attempt to think of another way to deal with the film school, I discuss some issues about the film culture, with its central discussions about curriculum and culture. Keywords: film and curriculum; culture; film culture.

Glauber Resende Domingues é Licenciado em Música pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente cursa o Mestrado em Educação no Programa de Pós-Graduação em educação da mesma universidade. Faz parte do grupo de pesquisa: “Currículo e Linguagem cinematográfica na Educação Básica”, coordenado pela Profª Drª Adriana Fresquet. Tem desenvolvido pesquisa sobre a representatividade do som do cinema no espaço escolar. É também professor de Educação Musical na Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Telefone: (21)9486-3773. E-mail: glauber.rd@ibest.com.br 1

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Introdução Por conta do avanço da tecnologia nos últimos anos do século anterior e início deste, acredito que qualquer indivíduo que tenha passado pela escola neste período tenha experimentado uma situação na qual pudesse ver um filme. Na maioria das vezes, este foi usado com a intenção de exemplificar um conteúdo de alguma disciplina. Na maioria das vezes, talvez tenha sido este o modo com o qual o cinema tenha sido introduzido na escola. Porém, seu potencial seja tal, que este talvez seja o modo mais simplório. Entrar pela história e rememorar como o cinema se constitui pode nos levar a pensar outro modo de pensar o cinema no espaço escolar. Os criadores do cinema não tinham por intenção fazer com que ele se tornasse uma arte. As contribuições iniciais tinham a intenção de registrar cenas do cotidiano ou tinham objetivo de ser um suporte ao desenvolvimento científico (DUARTE & TAVARES, 2010). Tão logo o cinema se tornou arte, a arte de contar histórias em movimento. À medida que ele foi tomando complexidade, como a introdução de elementos cênicos e, do som mais tardiamente, foi-se constituindo uma linguagem. Segundo Carrière (2006), a possibilidade de relacionar uma cena com a outra, montando os filmes, foi um elemento decisivo para o estabelecimento desta linguagem. Para o autor, a montagem é o elemento disparador para pensar o cinema como uma linguagem, pois “essa técnica aparentemente simples criou um vocabulário e uma gramática de incrível variedade.” (p. 16). O cinema também lançou mão de artifícios outros na constituição de sua linguagem: O cinema fez uso pródigo de tudo o que veio antes dele. Quando ganhou a fala em 1930, requisitou o serviço de escritores; com o sucesso da cor, arregimentou pintores; recorreu a músicos e arquitetos. Cada um contribuiu com sua visão, com sua forma de expressão. Mas ele se formou, antes de mais nada, a partir de si mesmo. Inventou a si mesmo e imediatamente se copiou, se reinventou e assim por diante. (CARRIÈRE, 2006, p. 22-23)

Desta forma o cinema foi se tornando uma arte com uma linguagem própria, mesmo tendo se apropriado de elementos oriundos de outras áreas.

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Compreendendo o cinema como esta linguagem que possui códigos próprios e que produz e reforça elementos culturais, este texto pretende fazer uma discussão acerca da cultura cinematográfica no espaço escolar, sendo iluminado por algumas contribuições dos estudos de currículo e de cultura. Algumas discussões sobre o currículo e cultura(s) Os estudos do currículo deixaram já há algum tempo de ter como base de suas investigações somente as ideias de otimização do ensino, modelos de elaboração curricular, bem como o cumprimento de metas e objetivos (LOPES & MACEDO, 2010, p. 13). As autoras fazem uma incursão na história do pensamento curricular brasileiro, apontando que a tendência do currículo como linha de produção teve força até os anos 1980. Depois disso, passou a receber influências de autores ingleses, trazendo uma discussão que ficou conhecida como teoria crítica do currículo, por conta de retirar o foco dos métodos, que tinha um caráter eminentemente psicológico, dando espaço a um enfoque sociológico (LOPES & MACEDO, 2010). Alguns dos autores que foram expoentes na teorização crítica foram Michael Apple e Henry Giroux. Até os anos 1990 estes enfoques ainda são fortes, mas outras possibilidades começam a eclodir. Segundo as autoras, o que marca os estudos do currículo na segunda metade dos anos 1990 é o hibridismo, que segundo Macedo (2003-2004), passou a “subsidiar discussões sobre a interação entre os diferentes discursos que circulam tanto nas reformas educacionais e no pensamento curricular quanto na escola” (p. 15). Das diferentes perspectivas que também estavam em voga, segundo Lopes & Macedo (2010), a perspectiva pós-estruturalista, adotada pelo professor Tomaz Tadeu da Silva, foi a que contribuiu mais significativamente para a proliferação da(s) ideia(s) que mais contaminaram o campo do currículo: o da centralidade da cultura nos estudos curriculares. Tomaz Tadeu desenvolveu seus estudos impregnado das ideias dos Estudos Culturais, especificamente das ideias de Stuart Hall, pesquisador jamaicano que trabalha no Reino Unido. Hall é um dos principais teóricos do quadro dos Estudos Culturais. Este autor é RevistAleph- ISSN 1807-6211

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responsável pelo que ele próprio chama de “virada cultural”. Sendo assim, Hall (1997) diz que a virada cultural refere-se a uma abordagem da análise social contemporânea, que passou a ver a cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente, provocando assim nos últimos anos, uma mudança de paradigma nas ciências sociais e nas humanidades (...). (p. 27)

O diferencial desta perspectiva adotada por Hall (op. Cit.) está no fato de ele deslocar o local da cultura nas teorizações sociais dos estudos em Educação. O elemento cultura sempre teve grande importância nas análises sociais, mas para o autor, ao invés de ser um elemento periférico, como pouco influente das discussões, assume então um lugar de destaque, central, nas análises sociais. Vimos que a partir dos estudos de Tomaz Tadeu da Silva, esta vertente tomou grande impulso no Brasil. Deste modo, alguns pesquisadores do Brasil começaram a discutir o campo do currículo sob as lentes dos Estudos Culturais. Silva (1995) reconhece que as relações de poder continuam sendo importantes nos processos de negociações acerca do currículo. Porém o fato de a cultura estar no centro das discussões, outros elementos estão em xeque neste jogo, como o conceito de identidade, o de conhecimento, o do próprio currículo, que passa também a ser entendido também como enunciação, como narrativa. Sobre narrativa no/do currículo, o autor diz que Podemos estender o conceito de narrativas para muito além daqueles gêneros formalmente conhecidos como tais: o romance, o conto, o filme, o drama. Existem muitas práticas discursivas não reconhecidas formalmente como narrativas, mas que trazem implícita uma história, encadeiam eventos no tempo, descrevem e posicionam personagens e atores, estabelecem um cenário, organizam os “fatos” num enredo ou trama. (SILVA, 1995, p. 205)

Apesar de o autor considerar outras formas narrativas, ele reconhece a força dos gêneros narrativos tradicionais. Reconhece inclusive o cinema como um deles. O cinema, principalmente o de circuito, tem esse poder de

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engendrar discursos. Esses discursos, por vezes acabam sendo expressos no discurso curricular, quer seja apresentando modos de pensar a escola e o processo educativo, ou formando modos de ver e ser no mundo. A presença da narrativa cinematográfica no currículo escolar é algo que não é recente. Mas como será que foi ou tem sido esta presença? A trajetória do cinema no currículo escolar Já não é de hoje que é possível pensar as relações entre cinema e educação.

Acredito

que

bem

logo

assim

que

aquele

teve

seu

desenvolvimento, teve-se a ideia de se trazer filmes para o espaço escolar. Na verdade foi a escola que se apossou do cinema primeiramente. Foi a escola que começou a “narrar o cinema”, trazendo-o para seu cotidiano e não o contrário. Não precisa ir buscar uma referência de outro país para perceber estas nuances, pelo menos em princípio. Em recente trabalho, Franco (2010, p. 14) faz menção às primeiras iniciativas acerca da inserção do cinema na educação no Brasil, que se iniciaram nos anos 1920. A autora lembra duas obras que foram de extrema importância para a construção daqueles que seriam os primeiros projetos de cinema na escola. Estas obras às quais a autora se refere são “Cinema e Educação”, de Jonathas Serrano e Venancio Filho, de 1930; e “Cinema contra cinema”, de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, de 1931. Segundo a autora, os dois livros comentam a necessidade de integrar o cinema a qualquer projeto de educação para o desenvolvimento e o progresso do país e oferecem detalhados passos para a construção de serviços de cinematografia educativa. (FRANCO, 2010, p. 14) Os projetos que estes livros traziam estavam expressos de alguma maneira nos movimentos da Escola Nova e foram fortalecidos com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Para dar concretude aos projetos, foi criado em 1937 o INCE, o Instituto Nacional de Cinema Educativo. Para o instituto foi nomeado RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Edgard Roquette Pinto como diretor geral. Roquette Pinto era um intelectual que também era adepto dos movimentos escolanovistas e foi um pioneiro na área das comunicações no Brasil (FRANCO, 2010, p. 14). Para cuidar de questões de ordem técnica Humberto Mauro foi nomeado como diretor técnico, pois o mesmo era cineasta e tinha condições de cuidar das questões cinematográficas específicas mais de perto. A intenção dessa instituição era promover o encontro do cinema com a escola a partir de produções do próprio INCE, feitas por Humberto Mauro e por várias produções de outros cineastas. No catálogo da instituição ficaram mais de 500 filmes, que hoje estão sob a guarda do CTAV (Centro Técnico Audiovisual), que é um órgão do Ministério da Cultura. Esses filmes foram relegados por alguns críticos e historiadores do cinema que não reconheciam potencial artístico neles. Ouso dizer que a ideia que está embutida nestas críticas tem de ver com a ideia do filme educativo. Franco (2010) sinaliza que algumas iniciativas em países europeus como França, Itália, Alemanha e Inglaterra tomaram esta postura, a de produzir cinematografias educativas, buscando oferecer filmes para a educação formal, que acabou criando, nestes casos, “uma cinematografia fria, nem bem cinema, nem bem aula.” (FRANCO, 2010, p. 13). No início dos anos 1990 o INCE teve sua falência decretada por conta de questões políticas do governo Collor, governo este que praticamente destruiu a política cultural e a produção cinematográfica brasileira. (FRANCO, 2010). Dos anos 1990 para cá, o que temos visto é uma ausência significativa do cinema na escola, sob o ponto de vista da institucionalização, da proposição de políticas para este fim. A iniciativa do governo foi dissipada na década de 1990. Recentemente a inserção do cinema no espaço escolar tem voltado às discussões. O livro “Como usar o cinema na escola”, de Marcos Napolitano (2009)2

ainda

traz

uma

perspectiva

instrumentalizada

da

arte

cinematográfica, indicando de modo metódico que filmes utilizar para

2

A primeira edição deste livro de Marcos Napolitano data do ano de 2003.

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determinada disciplina. Outro livro que é quase contemporâneo ao anterior é “Cinema e Educação”, de Rosália Duarte (2002). Em sua obra a autora apresenta uma postura mais política do cinema na escola. A autora fala numa “competência para ver”, ou seja, discute elementos para uma formação dos alunos-espectadores e o papel socializador do cinema. E hoje? Qual cinema? Qual cultura cinematográfica? Temos visto ultimamente iniciativas que procurem pensar o cinema não somente como um artefato da indústria cultural, mas como um elemento artístico produzido pela(s) cultura(s). A acepção de cultura de que falo aqui, não é a primeira concepção que tem a ver com a natureza, com o modo com o qual o homem intervém sobre a natureza do outro para agir conforme a sociedade na qual ele está inserido (CHAUI, 2006). O conceito de cultura a que me reporto tem a ver com a concepção de cultura que é dada no século XVIII, como bem aponta, Chaui (2006), dizendo que a cultura acaba passando a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos, de seu trabalho e de sua sociabilidade, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições: as artes, as ciências, a filosofia, os ofícios, a religião e o Estado. (CHAUI, 2006, p. 106) [o grifo é meu]

A partir do grifo que fiz, parto da perspectiva de enxergar o cinema como arte (BERGALA, 2008), como um modo de produção artística de um grupo social, de uma cultura. O que temos visto de cultura cinematográfica ultimamente é a presença maciça da cinematografia americana com filmes para puro consumo, com uma hipertrofia visual e sonora. Diversos países hoje em dia têm produzido filmes, tais como Irã, com Abbas Kiarostami como expoente; Japão, com representativos diretores, tais como Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi, por exemplo. Os filmes destes cineastas até entram no circuito comercial, porém não possuem condições de disputar espaço no ranking de filmes vistos pela maioria das pessoas. Como a cinematografia americana é a que tem presença marcante nas grandes salas, a maioria das pessoas optam por ver tais filmes. Como as outras

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cinematografias concebem a obra fílmica de outros modos – com um outro modo narrar, com outras sonoridades, com outro tempo –, os espectadores normalmente não se permitem experimentar outros tipos de filmes. O sentido de cultura tomado por Chaui que até então tenho utilizado, pode ter um desdobramento, segundo a autora. Para ela, num segundo lugar, cultura pode significar a relação que os humanos, socialmente organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com os outros humanos e com a natureza, relações que se transformam e variam em condições temporais e sociais determinadas. Agora, cultura torna-se sinônimo de história. A natureza é o reino da repetição; a cultura, o da transformação racional; portanto, é a relação dos humanos com o tempo e no tempo. (CHAUI, 2006, p. 107) Penso que estabelecer um contato com obras de arte cinematográfica que um dia tiveram seu prestígio é parte da relação do homem com o tempo. Por mais que o homem contemporâneo esteja na maioria esmagadora das vezes tentando estabelecer relações somente com sua contemporaneidade, é inevitável que ele lide com o tempo passado. Às vezes para revisitar sua própria história, ou para entender de alguma forma o seu tempo presente. No caso do Brasil ver um filme de Glauber Rocha, por exemplo, significa revisitar um período de censura, de proibição às pessoas o direito de falar, de se impor, de se expor. A ditadura militar foi um período da história do Brasil que deixou marcas profundas no modo tímido como os brasileiros percebem e se relacionam com diversas esferas da sociedade, como a política, a cultura, a educação. Haja vista que as salas de cinema em sua maioria não dão espaço para que tais filmes sejam exibidos, veiculados, discutidos, re-significados, qual seria o espaço onde eles poderiam ganhar vida longa? A escola. Bergala (2008) reconhece que a escola, tradicionalmente tem sido vista como espaço de regulação, com pouco espaço para fruição estética, mas “ao mesmo tempo, ela representa hoje, para a maioria das crianças, o único lugar onde esse encontro com as artes pode se dar”. (BERGALA, 2008, p. 32).

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Reconhecer a escola como o espaço para o encontro com diversas culturas cinematográficas nos motiva a pensar que tais encontros engendram naturalmente novos modos de lidar com as formas de arte, com o modo de ver cinema, por exemplo. Entendo o currículo escolar atualmente como um espaço híbrido, um espaço onde as diferentes culturas convivem, onde, de certo modo, influenciam umas às outras. Experimentar outras cinematografias, neste caso, acaba engendrando outros modos de ver – e porque não fazer – cinema. Concluindo Concluo afirmando que a relação dos alunos com a cultura cinematográfica pode ser diferente da que é até então oferecida pelos circuitos de cinema comercial e pela própria escola. Pensar diferentes cinematografias convivendo no mesmo ambiente escolar, torna-se um poderoso meio de os alunos entrarem em contato com outros modos de ver e fazer filmes. Também é possível se relacionar com as diferentes culturas e com os hibridismos cinematográficos que acabam advindo desses encontros. Deste modo, é possível perceber a força política que o cinema pode receber e em contrapartida engendrar. Tal questão acaba, de certo modo, influenciando também as pesquisas acadêmicas na área de Cinema e Educação. Creio que os pesquisadores e estudantes que estão pesquisando este assunto atualmente têm uma responsabilidade muito grande, pois com as portas abertas para um outro espaço para o cinema na escola, resignificando conhecimentos, desconstruindo

e produzindo outros, as

pesquisas podem até tomar outros direcionamentos. Nas palavras da professora Eliany Salvatierra, “estamos vivendo uma crise epistemológica no campo, mas ao mesmo tempo uma constituição dele”i. Sinto-me muito tentado a concordar com Salvatierra, pois creio que seja exatamente isto que esteja acontecendo. Referências

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BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Trad. Mônica Costa Netto, Silvia Pimenta. Rio de Janeiro: Booklink, CINEAD-LISE-FE/ UFRJ, 2008. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. trad. Fernando Albagli e Benjamim Albagli . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. CHAUI, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. DUARTE, Rosália. Cinema & Educação . 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. Coleção Temas & Educação. __________________ & TAVARES, Marcus. A dimensão político/educativa das opções estéticas nos manifestos fundadores do cinema como arte. Revista Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro, v.5, n. 9, p. 24-38, 2010. FRANCO, Marília. Hipótese-cinema: múltiplos diálogos. Revista Contemporânea de Educação , Rio de Janeiro, v.5, n. 9, p. 9-23, 2010. HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade , Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez. 1997. LOPES, Alice Casimiro & MACEDO, Elizabeth. O pensamento curricular no Brasil. In: __________________. Currículo: debates contemporâneos. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2010. MACEDO, Elizabeth. Currículo e hibridismo: para politizar o currículo como cultura. Educação em Foco , Juiz de Fora, v. 9, n. 1 e 2, p. 13-30, 2003/2004. NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2009. SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: _________________. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

Depoimento pessoal da Professora Eliany Salvatierra, da Universidade Federal Fluminense, dado no dia 01/06/2011 durante a aula da disciplina Cinema e Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ i

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Pulsações e Questões Contemporâneas

Violência simbólica e fracasso escolar: reflexões psicanalíticas na educação Marília Etienne Arreguy1 Marina Morena-Torres2 Giulia Aguiar Camporez3 RESUMO: O conceito de “violência simbólica” presente na socioantropologia pode ser articulado ao de “transferência” em psicanálise, na medida em que ambos se manifestam maciçamente na área da educação, principalmente quando se pensa no problema da “produção do fracasso escolar”. Para tratá-los, partiu-se da base metapsicológica freudiana, contando também com diversos autores que estabelecem a interface entre psicanálise e educação num âmbito transdisciplinar. Teve por objetivo consolidar o conhecimento do problema da violência nas escolas, sobretudo no intuito de analisar alguns elementos da transferência envolvidos na relação professor-aluno. Essa transferência aparece como um protótipo de um modus operandi violento que os ultrapassa. Em paralelo, postula-se o papel da instituição escola como local privilegiado para se estabelecer um diálogo acerca desses conflitos, apostando em sua dissolução pela via da circulação da palavra e do desenvolvimento da sensibilidade para a escuta das manifestações inconscientes repetitivas e duradouras, expressas em um modo de agir violento, porém silencioso. As divergências existentes nas teorias em relação ao papel desse tipo de violência na sociedade nos levam ao caminho dialético de investigar em que medida a violência simbólica pode ser vista como parte inerente do processo de ensinoaprendizagem e, por outro lado, em que medida estabelece um interdito do pensar. Palavras-chave: Violência simbólica; transferência; fracasso escolar; Psicanálise; Educação. Abstract: The concept of “symbolic violence” present in the field of Socioanthropology can be articulated to the concept of “transference” in Psychoanalysis, because both are strongly present in Education, mainly when we consider the problem of the “production of failure in school”. To work over these concepts, we start from a freudian metapsychological basis and we rely on many other authors who establish the relation between Psychoanalysis and Education in a transdisciplinary approach. This article aims to consolidate a certain knowledge about violence in schools, specially in order to analyze some elements involved in the transference within the student-teacher relationship. This transference may reflect a prototype of a modus operandi of violence that exceeds the intersubjective relationship in itself. In parallel, the article postulates the role of schools as a privileged place to establish a dialogue about these conflicts, betting on their dissolution by way of the circulation of ideas and the development of a sensibility in listening to some repetitive long-term manifestations of the unconscious, expressed by a violent but silent attitude. The divergences in the theories related to the role of this kind of violence in society take us to a dialectical way of investigating to what extent the symbolic violence could be seen as an inherent part of the teaching-learning process and, on the other side, to what extent it establishes an interdiction to thinking. Key-words: Symbolic violence; transference; scholar failure; Psychoanalysis; Education.

1

Associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; Doutora Universidade Paris VII e pelo IMS – UERJ (cotutela); Professora Adjunta II – Faculdade de Educação da UFF; e-mail:

mariliaetienne@id.uff.br 2 3

Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-CNPq / 2010-2011, Graduanda em Psicologia – UFF. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-CNPq / 2010-2011; Graduanda em Psicologia – UFF. RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Modelo higienista e a normalização da subjetividade escolar O presente estudo pretende discutir e investigar as relações que criam condições para a eclosão da chamada “violência simbólica” nas escolas, de modo a contextualizar a hipótese inicial da pesquisa em uma perspectiva crítica. Jurandir Freire Costa (1984), no capítulo “Saúde mental, produto da educação?”, do seu livro Violência e Psicanálise, defende que a educação não produz saúde mental, mas reproduz a ordem social, afirmando que a ideia de “uma boa educação para uma boa saúde mental” não é original. Acrescentaríamos que tampouco a educação em si possa ser um antídoto contra a eclosão da violência. Autores de tradição foucaultiana, como Maria Helena Souza Patto (1990) e Jacques Donzelot (1980), compartilham da ideia de que uma educação de cunho “disciplinar” se desenvolveu juntamente com o nascimento da clínica psiquiátrica e das psicologias num movimento higiênico-pedagógico apoiado nas práticas educacionais existentes nas escolas e nas famílias (FOUCAULT, 1974; 1975; 2000). Esse processo passou a intensificar a dimensão de reprodução das relações de “micropoder” na esfera do ensino via manipulação e domesticação da consciência (PATTO, 1990), principalmente a partir do século XIX. A histórica ação do movimento higiênico-pedagógico perdura, ainda hoje, dissimulada sob o pano de fundo da dialética culpabilização X desculpabilização do sujeito na modernidade, fazendo com que as medidas tomadas em aliança entre educação e medicina psiquiátrica sejam consolidadas com o pretexto de dar conta das modernas “doenças do nosso tempo” (ROUDINESCO, 1998), as doenças da alma, resultando enfim numa dupla naturalização-normalização dos comportamentos, com a produção

de

subjetividades pré-formatadas

e

alienadas.

Nesse

sentido,

os

comportamentos agitados de uma determinada criança, por exemplo, rapidamente são identificados e taxados como “hiperatividade”, o que frequentemente culmina com a prescrição e o uso de remédios. Na escola, por conta do diagnóstico, essa criançaproblema é, ela própria, vista como a responsável por seu insatisfatório desempenho escolar. Assim, a patologização das crianças é usada como explicação para o fracasso escolar, que na verdade depende de inúmeros outros fatores, como: salário de professores, condições de trabalho, infraestrutura da escola, quantitativo profissional, presença de profissionais das ciências humanas (psicólogos, assistentes sociais, psicopedagogos, psicomotricistas, etc) e de saúde (enfermeiras, nutricionistas, fonoaudiólogas, etc), condições de vida das famílias, presença dos pais, etc, etc, etc. RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Entretanto, síndromes e doenças são deliberadamente atribuídas a crianças e adolescentes, bem como lhes são ministrados remédios psiquiátricos sumariamente, como a primeira e principal técnica a se recorrer. Prática esta que perdura ao menos desde o início do século XX e vem se intensificando nas primeiras décadas do terceiro milênio. Em contraponto a essas práticas, Patto (1988) analisa o progresso dos estudos sobre o dito “fracasso escolar”, contextualizando as mudanças sofridas nesse conceito e suas respectivas práticas, levadas a cabo com o intuito de diminuir a ocorrência dessa exorbitante perda em relação ao aprendizado sobremaneira dos mais pobres. A autora salienta que educadores de tradição escolanovista pautavam-se na crença da igualdade de oportunidades e que cabia à escola promovê-la para torná-la um lugar dos mais aptos, independentemente de suas origens sociais. Baseados nesse ideal, os estudiosos da área ocuparam-se de diagnosticar a situação do ensino no Brasil, realizando reformas educacionais de grande porte. No entanto, fracassaram na tentativa de atingir tais objetivos (PATTO, 1988). A partir da segunda metade da década de 1970, as pesquisas sobre o “fracasso escolar” passaram a levar em consideração os fatores intraescolares tais como organização e gestão, práticas pedagógicas e professorado, assim como o ethos do ambiente escolar. Apesar dos dados encontrados não terem afetado tanto a instituição escola ao ponto de desestruturar a tendência de responsabilização da clientela, de algum modo, somou-se a esta a responsabilidade do sistema educacional (PATTO, 1988). Ou seja, as inúmeras inculpações atribuídas aos alunos não saíram de foco, porém, os fatores intraescolares foram adicionados a este tema, no intuito de compreender a ocorrência do alto índice de desempenho escolar insatisfatório. O enrijecimento contínuo do ensino tradicional a partir de padrões normativos ligados ao imperativo do mérito e da excelência foi assim fortalecendo aos poucos a institucionalização do “fracasso escolar”, na medida em que se buscava conformar tipos psicológicos padrão, moldados pelo social, o que Costa (1984) chama de “identidade psicológica”, revelando um contínuo interesse em controlar os afetos, sentimentos, relações, sexo, liberdade, etc. Buscava-se a universalização do particular e, assim, criava-se o que Costa chamou de “Tipo Psicológico Ordinário” (TPO), ou seja, um perfil moldado segundo a classe social ou subgrupo cultural dominante. Para esse autor, tal construção científico-cultural pode ser causa de sofrimento, mas não é sinônimo de doença mental. RevistAleph- ISSN 1807-6211

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No processo de socialização das crianças, essa expectativa de corresponder a um determinado padrão pré-estabelecido pode levar o educando a internalizar plenamente a exigência de reprodução de um sujeito ideal, segundo os moldes do grupo a que pertence, ou ao qual pretende ascender. Por outro lado, o aluno pode divergir da maioria e propor outro “Tipo Psicológico Ideal”, por vezes, seguindo exigências superegóicas cruéis e inatingíveis, ainda mais normatizantes do que a própria sociedade exige, dado que são redobradas pela onipotência narcísica (FREUD, 1914; ARREGUY, 2010). Assim, na educação psicológica de crianças, transmitem-se os ideais de vida que formam tipos psicológicos ordinários segundo os preceitos institucionais advindos da escola, da religião e da família. Por sua vez, as divergências subjetivas ao padrão normativo hegemônico, podem ser geradoras de sofrimento, seja porque os sujeitos tentam corresponder a um modelo espetacular idealizado embora impossível, tornado hegemônico pelas sugestões tirânicas da mídia de massa (BIRMAN, 1998), seja porque tentam se opor ao status quo através de condutas inadequadas, apressadamente taxadas como expressão de uma psicopatologia, como a hiperatividade e o déficit de atenção (CALIMAN, 2009), ou ainda, como um desvio de conduta detectável na esfera escolar, tal como sugere a tarja do bullying, termo utilizado para detectar e rotular o que se chamou: mentes perigosas nas escolas (SILVA, 2010). A violência simbólica como transferência do fracasso Importante destacarmos que a criança depende do adulto para que suas experiências se tornem significativas e esta relação está exposta a um campo de forças que pode caracterizar uma forma comum, a princípio justificada, de educar e condicionar as crianças, mas que também pode ser prejudicial para elas mesmas: a aparentemente invisível violência simbólica. A respeito da violência simbólica, Costa (2003) nos diz: Por este termo entendemos toda imposição de enunciados sobre o real que leva a criança a adotar como referencial exclusivo de sua orientação no mundo a interpretação fornecida pelo detentor de saber. O individuo cronifica a posição de dependência e perde ou amputa a capacidade de criar seu próprio elenco de significados. O mundo representado sofre restrição, fruto da privação sinalética. O funcionamento mental do sujeito, simbolicamente violentado na infância, torna-se inibido, paralisado ou distorcido, em maior ou menor extensão, conforme a natureza e intensidade da violência. (Costa, 2003: 97)

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Por se tratar de um conceito-chave, faz-se necessário especificá-lo mais. Ao pensarmos a relação professor-aluno podemos destacar o embate de forças, que muitas vezes se dá através da fala, da postura e da forma de se relacionar, constituindo instrumentos figurativos de um habitus encarnado como expressão do exercício de poder simbólico (BOURDIEU, 2000). Para compreender essa concepção de violência simbólica, é importante lembrar a descrição socioantropológica ligada à dominação das classes populares, postulada por Bourdieu (2000):

Sendo instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e conhecimento, os "sistemas simbólicos" cumprem sua função de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que ajudam a garantir a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica), fornecendo o reforço de seu próprio poder para as relações de poder que as fundam, contribuindo, assim, nas palavras de Weber, para a “domesticação dos dominados (tradução própria).

É importante ressaltar que a violência simbólica, para Bourdieu, não se apóia exclusivamente na intersubjetividade, mas sim em uma dominação estrutural ligada ao jogo capitalista. Contudo, combinando uma perspectiva que leve em consideração tanto os fatores político-econômicos, como faz o materialismo dialético, quanto fatores ligados ao interacionismo simbólico (vide WACQUANT, 2003, p.15), supomos que a violência simbólica possa estar contida no cerne da atitude e do posicionamento de muitos professores para com seus alunos, e, vice-versa (ARREGUY, 2010), como forma de garantia de um poder hierárquico e da expressão de preconceitos de classe herdados cultural e historicamente, ainda que isso não se manifeste de modo explícito. Pensando a lógica institucional, seria possível compreender melhor as interações que configuram um sistema de ensino-aprendizagem coercitivo produtor de alienação e de fracasso escolar? A imposição de diagnósticos estigmatizantes aos alunos não seria justamente uma forma de violência simbólica? Para melhor compreensão das diversas formas de violência existentes na escola e no cotidiano, recorremos às construções teóricas de Zizek (2008), que podem ser associadas às definições de violência simbólica presentes nas obras de Bourdieu (2000) e de Costa (2003). Zizek (2008) define a princípio duas formas de violência – subjetiva e objetiva (ZIZEK, 2008) – as quais se constituem a partir dos padrões de normalidade da sociedade, subjacentes por sua vez a um modelo socioeconômico neoliberal desigual

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e excessivo. Por violência subjetiva, o autor entende aquela que é dirigida a alguém diretamente,

como

por

exemplo,

os

inúmeros

casos

de

“humilhação”

e

“constrangimento” do professor para com algum alunos ou mesmo agressões verbais a um aluno em específico, tais como o uso de palavras pejorativas, ou até a agressão física. Esta é fácil de ser percebida e, por isso, muito mais questionada. A violência objetiva, segundo Zizek (2008), é a manutenção das formas silenciosas de exploração da sociedade pelos meios de produção e controle do poder, que alimentam a tolerância “das coisas como elas são” e sustentam um estado sistêmico e perpetuado de violência capitalista. Nas palavras de Zizek (2008, p.10): A principal preocupação da atitude tolerante liberal que predomina hoje parece ser contra todas as formas de violência, da violência física direta (o assassinato em massa, o terror) à violência ideológica (racismo, incitação, a discriminação sexual). (tradução própria)

Essa forma mais “objetiva” de violência – ou seja, a socioeconômica - é “tolerada” como se não tivesse efeitos, o que deve ser objeto de nossa preocupação, ao invés do usual e sistemático silenciamento que paira sobre essas práticas. Desse modo, o autor desconstrói a ideia de que uma violência subjetiva, direta, esteja no cerne do problema, contrariando a perspectiva hegemônica de que devamos a priori “atacar e eliminar” a violência subjetiva. Essa visão destoante nos deixa atentos em relação a definições deterministas que ancoram o foco da violência no contexto escolar no indivíduo isolado – principalmente no aluno – através do já aclamado conceito de “bullying” (SILVA, 2010). Nesse sentido, é preciso questionar a ideia de que existam “mentes perigosas nas escolas” (idem) e de que a superação de situações de violência imprimidas pelos sádicos “bullies” possa ou deva levar a um super desenvolvimento compensatório nos seus pares complementares, os alunos violentados e oprimidos, como advoga Silva (2010). Essa autora cita exemplos de sujeitos de sucesso e de fama extraordinária para exemplificar a “volta por cima” dada por sujeitos vítimas de maus-tratos. Chama a atenção o fato de que, na visão de Silva (2010), as vítimas dos bullies que superam o trauma de terem sido mau-tratados por seus colegas violentos e perigosos, são todos, invariavelmente, representados por estrangeiros famosíssimos e ultra “bem-sucedidos”, como, por exemplo, Madonna e Michael Phelps, representantes típicos do sucesso

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obtido competitivamente no modelo da dita “sociedade do espetáculo”. Tal idolatria à resposta positiva e compensatória desses ídolos americanos, leva a crer que, no bojo mesmo de suas formulações, haja uma certa submissão e anuência frente a um modelo ultra competitivo, o que acaba por atualizar e revigorar as mesmas formas de dominação e de violência objetiva e simbólica pelas quais a sociedade capitalista se estrutura. A mesma sociedade que produz ídolos a serem copiados é a que mais produz situações reais de violência maciça, não só num plano bélico mais amplo, mas também na mídia, na arte, no cinema, na família, no cotidiano, logo, dentro das próprias instituições escolares. A reprodução das diversas formas de violência se dá não só entre alunos, mas também entre alunos e professores, como mostram os assassinatos em massa reproduzidos, por exemplo, no documentário Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore (2002), e no filme Elefante, do diretor Gus Van Sant (2003), apenas para citar alguns dentre os inúmeros episódios aterrorizantes de chacinas em escolas, cada vez mais comuns na contemporaneidade. Contudo, focar exclusiva ou preferencialmente nos indivíduos para atacar e reprimir as diversas formas de violência na escola é um equívoco histórico justificado pelo interesse das classes dominantes em subjugar e manter indivíduos ignorantes e controlados para mais explorá-los, facilitando os mecanismos de dominação e de punição (WACQUANT, 2003). Zizek (2008), em sua distinção dos dois tipos de violência, subjetiva e objetiva, atenta para a “violência objetiva”, que age silenciosamente e que entendemos aqui de modo semelhante à “violência simbólica”, um tipo de violência que aparece na língua e em suas diversas formas de manifestação, sobretudo na divisão de classes (ZIZEK, 2008). Esse tipo de violência está nas relações de dominação social, reproduzidas em nossas formas habituais de discurso, que impõem certa universalidade do sentido. Vemos, assim, estas formas de violência no campo educacional se perpetuarem ainda como resquícios de uma sociedade disciplinar estruturada com o objetivo de criar corpos dóceis, hábeis e produtivos (FOUCAULT, 1975; 1993; 1999; 2000), dentro de um modelo hierárquico que em si mesmo é reprodutor de inúmeras formas de violência, desde o bem intencionado “controle social”, até a sutil categorização dos sujeitos “aptos” e “não aptos” ao pleno exercício do consumo, do exibicionismo dos corpos, da competição narcísica por sucesso, da acumulação de capital, e desfile exibicionista conhecimentos tomados enquanto bens (capital cultural) e, sobretudo, RevistAleph- ISSN 1807-6211

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incessante pelo poder. No sentido de evitar a estigmatização, a medicalização e a polarização do problema do aluno dito violento, é importante lembrar Freud (1930) que, ao afirmar a existência de um mal-estar na cultura, justifica, em tese, o fato de que não há como eliminar por completo as dificuldades, os embates e os conflitos nos relacionamentos humanos. Freud (1930) afirma que a forma mais penosa de sofrimento advém de seus relacionamentos com os outros, sobretudo os mais íntimos e próximos, constituintes de identificações imaginárias e simbólicas determinantes da subjetividade. Sendo assim, para abordar a questão da violência na relação professor-aluno como um dos indícios do fracasso escolar, não podemos excluir as manifestações inconscientes presentes nessas mesmas relações, tanto do ponto subjetivo quanto do ponto de vista institucional. Para isso, apropriamo-nos do conceito psicanalítico de transferência que, segundo a comentadora Maria Cristina Kupfer (1995), depende de manifestações ambivalentes que se fundam tanto no ódio quanto no amor, e, portanto, que têm sua manifestação privilegiada não só na família, mas também nas relações escolares, sobretudo, as relações verticalizadas com os professores. Desse modo, sem negligenciar a complexidade do conceito de violência simbólica, é importante analisar os efeitos inconscientes intersubjetivos que estão entranhados no sujeito pela cultura que o constitui. Que fatores estão mais associados ao desempenho — sucesso ou fracasso — na escola e em que medida são indícios de uma violência simbólica na relação professor-aluno? Nesse sentido, é também importante questionarmos até que ponto a violência simbólica pode ser considerada necessária para o aprendizado.

A fundação inconsciente da violência simbólica Para consolidar sua formulação sobre o Complexo de Édipo, Freud busca algumas noções acerca do sistema do totemismo, reconstituindo o mito das origens da família com base em algumas teorias antropológicas sobre tribos aborígenes australianas. O autor escreve, então, o livro Totem e Tabu (1913), no qual tece de modo verossímil uma história da evolução do totemismo à família tradicional, pois, para ele, esse sistema seria a base da organização social de todas as culturas. A interpretação freudiana do mito da horda primeva remonta à transição, em tempos arcaicos, de uma modalidade de laço coletivo em que haveria um pai tirânico possuidor de todas as mulheres, para uma cultura familiar regulada pelo interdito ao incesto e ao parricídio. Após a revolta dos filhos e assassinato do pai, o caos eclode, e para preservar a ordem e RevistAleph- ISSN 1807-6211

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a coletividade, são criados interditos primordiais: não matar o pai e não desposar a mãe ou as irmãs” (FREUD, 1913; ARREGUY, 2006).

Esse processo depende da

disseminação de tabus e da construção simbólica de alguma espécie de totem, que vem a ser adorado como se representasse a figura que suscitaria o arrependimento pelo pai morto. A hierarquia do pai totêmico em relação a seus filhos pode ser analisada como um tipo de violência real, cuja submissão se faria pela força bruta. Entretanto, com a constituição da família nuclear, essa mesma violência teria sido internalizada, ou seja, estaria nas origens arcaicas de uma herança inconsciente, sendo a culpa e a perda pelo assassinato do pai tirano vividas como o espectro da violência que passa a ser aparente apenas de forma simbólica. Na vida relacional, o humano teve de se desfazer de, ou melhor, teve que recalcar sua condição animal, cuja familiaridade com o assassinato é evidente. Nesse sentido, podemos dizer que a violência se encontra na base das relações familiares, pelo retorno de uma dívida de vida e de morte, presente de modo perene em todo laço social. A essa violência arcaica, primitiva, que se encontra no cerne da sociedade, associamos as formulações de Bourdieu (1989) sobre poder simbólico. Pierre Bourdieu (1989) afirma em sua teoria a existência de um poder invisível, ignorado, todavia um poder de construção da realidade, o poder simbólico. Ele analisa os sistemas simbólicos enquanto estruturas sistematizadas de produção simbólica, sendo esses: a língua, a arte, a religião, etc. Esse autor sustenta que sua função política é a de impor ou de legitimar a dominação, assegurando a dominação de uma classe sobre a outra (1989/ 2007: 11). Porém, “o poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos, (...) mas se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos (...)” (BOURDIEU, 1989/ 2007: 14). Nesse sentido, o poder invisível do qual estamos falando mantém uma ordem social definida pelos interesses de certas classes. Ora, os sistemas simbólicos são comunicados e o uso de palavras é imprescindível para que isso ocorra. Portanto, sendo as relações de comunicação relações de poder (BOURDIEU, 1989), buscamos compreender a ligação existente entre as palavras e a dominação, compreendendo que ambos se atrelam à noção de violência simbólica, tanto no que representa uma alienação dita produtiva, logo normativa, quanto no que representa do fracasso escolar. Entendendo que as leis de uma sociedade são internalizadas pelas pessoas que nela vivem, convém investigarmos mais a fundo, fugindo do discurso da naturalização dessas leis, como elas funcionam. Lacan, ao afirmar que o inconsciente é o discurso do Outro – com O maiúsculo (1957) —, compreendendo esse Outro como manifestação da RevistAleph- ISSN 1807-6211

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cultura, dos valores e hábitos de uma sociedade (KAUFMANN, 1993:385-387), traduzidos por uma imposição que se retém no campo do inconsciente, podemos afirmar que este Outro se faz presente no inconsciente dos sujeitos e em seus atos. A esse Outro, de certo modo, podemos estar mais ligados do que a nós mesmos, visto que, no seio de nossa identidade, é ele quem nos agita (LACAN, 1957/1988:255). Considerando que o sintoma pode ser resolvido numa análise pela via da palavra, já que o inconsciente é estruturado como uma linguagem (LACAN, 1953/1988:133), temos a pista do principal dos instrumentos utilizados para a legitimação das imposições sociais, as trocas linguísticas. Em O avesso da psicanálise, Lacan (1969) introduz a noção de significante mestre, exemplificando-o com a dialética hegeliana do escravo e do senhor. No exemplo lacaniano, o saber do escravo é considerado inútil e, mesmo após a revolução, seu saber não é restituído, mas antes lhe é dado um saber de senhor, que deve ser seguido. Isso nos leva à conclusão de que, nesse processo, o escravo não faz mais do que trocar de senhor, sendo seu senhor agora o “discurso do mestre”, representante por sua vez da troca de uma violência factual (escravidão), por uma “violência simbólica” (dependência e submissão consentida), conforme vimos em Freud (1913) e Bourdieu (1989). Lacan conclui que a comunicação humana não é igualitária. Ou seja, os participantes não estão em posições iguais, onde seguem as mesmas regras e justificam suas reivindicações com razões proporcionalmente estabelecidas. Isso acontece, pois o significante mestre, irracional, não é pautado profundamente em razões esmiuçáveis, pois chega um momento em que a pessoa tem de dizer “é isso, porque sim”, obedecendo ao significante mestre sem ter conhecimento das razões que o levam a tal afirmação. O conceito de significante mestre pode ser facilmente visualizado no contexto escolar, devido ao fato de que muitas vezes o professor ensina ao aluno coisas das quais nem ele mesmo sabe bem o porquê. Temos, como exemplo, matérias da matemática que se pautam em axiomas complexos simplesmente reproduzidos pelo professor, o que, por sua vez, lhe foi dito, transmitido, como uma espécie de certeza, ou seja, sem que ele mesmo tivesse recebido uma explicação plausível, passível de ser internalizada de forma complexa. Assim, ao invés de transmitir um saber do qual se apropriou, transformando-o criticamente a partir de seus próprios valores, o professor apenas repete, exigindo o mesmo de seu novo aluno, ou seja, que decore e continue reproduzindo aquele conhecimento cristalizado. Concluímos, então, que a linguagem RevistAleph- ISSN 1807-6211

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encontra-se silenciosamente perpetuando as relações de poder, por meio de manifestações aparentemente sutis. No entanto, o rumo de nossa pesquisa nos leva a crer que essas manifestações de asseguramento de poder podem resultar em violência simbólica, o que muitas vezes tem graves consequências para o agente passivo da relação.

Essa

“violência

simbólica”

pode aparecer

na

escola

até

mesmo

independentemente do conteúdo, na postura do professor em relação ao “tipo” de aluno que se depara, carregando em seu corpo, em seus gestos e seu olhar, a marca de seus preconceitos de classe arqueados pela empáfia do saber dominante encarnado em seu poder simbólico. Para Lacan (1969), essa tirania do saber resulta necessariamente em violência, cujas formas se revigoram em expressões diretas, virtuais, linguageiras e invertidas, de volta do aluno para com o professor.

Da transferência violenta ao encontro na relação professor-aluno Partindo de um estudo que não pretende esquecer as condições históricoculturais e sócio-econômicas, perguntaríamos: em que medida as condições intersubjetivas são complementares na relação entre violência e fracasso escolar? Em que medida poderíamos, enquanto psicanalistas e pesquisadores voltados não só para a teorização, mas também, para a pesquisa-intervenção, ajudar a deslindar alguns nós que marcam a insistente repetição das cenas de violência nas escolas? O embate e as identificações travadas na relação professor-aluno podem ser característicos da repetição inconsciente de uma ambivalência afetiva outrora experimentada na relação entre pai e filho, expressa tanto como reedição narcísica quanto no complexo de Édipo (FREUD, 1914, 1914a). Na primeira fase da infância, as crianças são extremamente e/ou estritamente ligadas aos seus pais e irmãos. Contudo, quando um pouco mais velhas, são capazes de estender essa relação para com seus professores e colegas. A criança, indefesa e dependente do adulto, para sobreviver, elege-o como figura de autoridade. Em uma relação de análise, o analisando deposita no analista a crença e a expectativa de que este poderá provê-lo emocionalmente e libertálo da dor (MORGADO, 2002). Semelhante à relação em análise, o aluno elege o professor, cujo conhecimento é visto como maior e distante do conhecimento do aluno, como autoridade, facilitando assim, a concretização dos objetivos da relação (idem). No entanto, nem todas as relações transferenciais atingem tais objetivos, como no caso do aluno que deposita no professor sentimentos hostis, que o impedem de reconhecer sua autoridade para ensinar. Freud afirma: “Estes homens, nem todos pais na realidade, RevistAleph- ISSN 1807-6211

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tornam-se nossos pais substitutos. (...) Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa.” (1914:249). A relação professor-aluno depende, portanto, de um processo inconsciente que pressupõe a reedição dos impulsos e fantasias infantis de transferência (KUPFER, 1995), podendo “um professor tornarse a figura a quem serão endereçados os interesses de seu aluno porque é objeto de transferência e o que se transfere são as experiências vividas primitivamente com os pais” (KUPFER, 1995:88). Os professores surgem já como figuras substitutas para uma relação que em si está repleta de significados e idealizações. Além disso, os professores favorecem a manifestação precoce de uma ligação afetiva com outra pessoa distinta daquelas da família (KAUFMANN, 1996:258). Ou seja, tal ligação provoca a eclosão de identificações tanto simbólicas — tributárias à interdição de impulsos agressivos e eróticos primários —, como também imaginárias, narcísicas, em que o aluno idealiza o professor e não o saber (KUPFER, 1995; ARREGUY, 2007; 2010), podendo o mesmo ficar paralisado por uma fantasia em relação a essa figura de saber, entendida como intransponível. Uma expressão do fracasso na relação transferencial entre professor e aluno, é quando o professor fica identificado narcisicamente na posição de detentor do conhecimento, e não permite, portanto, que nenhum aluno o “ultrapasse”. Considerando que, para haver aprendizagem, é necessário alguém que ensine — um Outro, que transmita esse desejo de saber ao aluno (KUPFER, 1995) —, o fracasso do professor em prover o sujeito de um olhar desejante, pode vir a fazer com que alguns alunos não se engajem no processo de busca de conhecimento, ou, simplesmente, desistam de tentar ultrapassar uma figura professoral tomada de modo onipotente, seja por excesso de idealização do mestre, seja por medo e falta de identificação. Em suma, a literatura especializada (KUPFER, 1995; IMBERT & CIFALI, 1998:119-120) aponta que, sem o desencadeamento de um processo identificatório com o mestre, os alunos podem não se “desenvolver” de maneira esperada pela instituição, aumentando o número daqueles com baixos desempenhos, desinteresse pelos estudos, atitudes de violência, falta de atenção, etc. Ao contrário do pressuposto no paradigma piagetiano em que o professor poderia ser visto como um mero “facilitador” (LAJONQUIÈRE, 1992), nas palavras de Kupfer (1995), a criança: [...] não aprende sozinha. É preciso que haja um professor para que esse aprendizado se realize. Ora, nem sempre esse encontro é feliz. Então, a pergunta “O que é aprender?” supõe, para a Psicanálise, a RevistAleph- ISSN 1807-6211

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presença de um professor, colocado numa determinada posição, que pode ou não propiciar aprendizagem. O ato de aprender sempre pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina. (p. 84)

É necessário considerarmos a importância da ação do professor, ou melhor, sua posição na identificação criada pelo aluno numa época em que suas relações se expandem para além da família, especialmente distanciando-se um pouco de pai e mãe, pois o professor ocupa o lugar desse Outro que vem possibilitar o desencadeamento do “desejo de saber” (KUPFER, 1995; LAJONQUIÈRE, 2010) pela via sublimatória. Ou seja, as pulsões sexuais, através de um processo dito de “dessexualização” derivam para um alvo (objeto) não sexual, assim como para atividades “espiritualmente elevadas” (FREUD, 1908), possibilitando a “produção cientifica, artística, e todas aquelas que [supostamente] promovem um aumento do bem-estar e da qualidade de vida dos homens” (KUPFER, 1995:42). Contudo, a maneira que esta transferência é estabelecida pode vir a ampliar ou mesmo provocar a eclosão do “fracasso escolar”. No que tange a incontornável vivência da sexualidade na relação com o outro, Freud (1913) defende que os educadores precisam ser informados de que “a tentativa de supressão das pulsões parciais não só é inútil como pode gerar efeitos como a neurose (p.133)”. Historiadores da relação entre psicanálise e educação chegaram a afirmar que: A educação deveria evitar cuidadosamente reprimir essas fontes de forças fecundas e se restringir a favorecer os processos por meio dos quais essas energias são conduzidas ao bom caminho. Está nas mãos de uma educação psicanaliticamente esclarecida o que se pode esperar de uma profilaxia individual das neuroses. (IMBERT & CIFALI, 1998, p.120, grifos nossos)

Tomando essa citação por uma visão crítica, é possível notar, portanto, que nosso objeto de estudos é de extrema complexidade e não arrefece diante de nenhuma fórmula disciplinar, determinista, nem tampouco pode ser circunscrito por uma única teoria, que defina rapidamente o “bom caminho” das pulsões, a melhor teoria para lidar com alunos, muito menos quem é ou não é violento, apenas do ponto de vista factual observável. Ora, o renomado psicanalista e pensador brasileiro Jurandir Freire Costa (2003) é crítico da ideia de que se possa produzir uma profilaxia (prevenção) das neuroses através da Educação formal, bem como outros autores de tradição freudlacaniana francesa (IMBERT & CIFALI, 1998; MILLOT, 1982) veem com desconfiança a ideia de que a aplicação da psicanálise na educação possa “curar as RevistAleph- ISSN 1807-6211

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neuroses”, o que podemos transpor, de certo modo, para a falaciosa pretensão de se prevenir a violência com base em fórmulas psicodiagnósticas e suas respectivas medicações milagrosas. Sem desconsiderar as importantes precauções não dogmáticas desses autores, entretanto, há também uma nova tendência em autores que se voltam para os estudos de psicanálise e educação, que acredita ser sumamente importante levar em conta a implicação de uma escuta psicanalítica em apoio, junto com os sujeitos viventes nas escolas (KUPFER, 2000; VOLTOLINI, 2009; LAJONQUIÈRE, 2010), no sentido de tentar, de algum modo, minimizar e elaborar as eclosões das mais diversas formas de violência, sobretudo, pelo exercício de uma circulação “assistida” da palavra, pela via da escuta e da troca de ideias em conversações. Para tanto, o pesquisador orientado psicanaliticamente se oferece a ouvir, se põe a conversar (vide VASCONCELOS, 2010). Uma escuta que leve em conta a instituição em suas especificidades e também uma escuta diferenciada que possa auxiliar na transformação de um sofrimento psíquico inerente à singularidade dos alunos e dos professores. Esse processo depende da instauração de laços transferenciais positivos, seguros, desprovidos de preconceitos e abertos ao encontro com o outro.

Em busca de conclusões críticas Avançamos em uma discussão teórica que visa investigar se os significados atribuídos discursivamente para o fracasso escolar (PATTO, 1990) denotam uma violência simbólica (BOURDIEU, 2000) na relação professor-aluno no contexto educacional. Concluímos que certa “violência simbólica” é parte inerente da constituição de relações hierárquicas, seja no seio da família, seja nas escolas, nas instituições ou na sociedade, de um modo geral. Por outro lado, a simples proibição legal da violência subjetiva (física ou psíquica), como ocorreu com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com o interdito definitivo da “palmatória”, não significa que a violência será eliminada das relações educacionais, mesmo porque a própria forma como nossa sociedade capitalista, narcísica e de espetáculo (DEBORD, apud BIRMAN, 1998) se estrutura é, justamente, através de uma “violência objetiva” (ZIZEK, 2008), assegurada pelas estruturas de poder e de controle, do predomínio do capital (valor de uso), do imperativo do consumo e da desigualdade social. Para problematizar as relações entre violência e fracasso escolar, não basta também apelar para a importação de um conceito “ad hoc”, seja esse, o “bullying”, em que supostamente se deveria RevistAleph- ISSN 1807-6211

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detectar, enquadrar e tratar (ou punir) a criança, ou jovem algoz, portador (ou depositário) de um excesso de violência, já que a violência simbólica aparece disseminada nas mais diversas relações sociais, incitando a “violência subjetiva”, ou seja, entre os sujeitos. Aliás, o âmago da violência encontra-se na própria constituição do laço cultural (FREUD, 1913). Como nos ensina Freud (1913, 1920), a agressividade é indissociável do humano. Ao longo desta pesquisa, algumas de nossas hipóteses iniciais foram questionadas, como por exemplo a ideia de que a violência “simbólica” aparecia como um dos fatores geradores de fracasso escolar. Será possível educar sem repressão, ou então, sem a interferência da chamada violência simbólica? A pesquisa nos levou para um caminho em que se reconhece a existência da violência simbólica na própria constituição do laço social, portanto, é também inerente ao processo de ensino e aprendizado. De algum modo, o professor precisa que seu conhecimento seja assegurado por alguma instância que lhe conceda e reconheça em seu poder simbólico. Nesse caso, a diferença geracional (LAJONQUIÈRE, 2010) e a hierarquia em que os professores se diferenciam em relação aos alunos permite que estes possam se identificar simbolicamente com seus professores e, por conseguinte, efetuar uma transferência positiva, indispensável para o aprendizado. Porém, esses laços hierárquicos estão extremamente fragilizados na atualidade. Como resquício (ou retorno do recalcado) do ensino tradicional, vemos que o excesso de poder simbólico (BOURDIEU, 1989), surge inconscientemente reinvestido no professor como um poder sádico. Em muitos casos, por meio da anuência das instituições de ensino, esse sadismo não ultrapassado, das formas de educação pela punição, pode levar a complicações na relação transferencial entre professores e alunos, e, assim, ao insatisfatório desempenho escolar do aluno, que não se identifica com a temeridade docente, portanto, se esquiva de seu próprio desejo de saber. Entender e atenuar a violência nas escolas, portanto, supõe um entendimento dialético, complexo e transdisciplinar, de suas múltiplas facetas, num espaço de troca suficientemente contextualizado em que os sujeitos são ouvidos ao invés de prioritariamente medicados, punidos e estigmatizados.

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A IMPORTÂNCIA DO APRENDER: JUNTANDO E COSTURANDO O MUNDO E A ESCOLA

Pulsações e Questões Contemporâneas

Iolanda da Costa da Silva1 Isabele Cristina Fonseca Ramos2 Orientadoras: Rejany Dominick3 e Alice Akemi Yamasaki4 Resumo: O texto tem como objetivo refletir e problematizar a visão predominante entre os docentes e gestores escolares sobre o grupo de referência do 2° ciclo de uma Escola Municipal de Niterói. No início do ano de 2011 o grupo de referência era formado por alunos com idades entre 10 a 13 anos e nos foi apresentado como aqueles que eram os mais desinteressados pelos estudos. Nossa pesquisa no espaço escolar dialogou com a pesquisa-ação e com a pesquisa participante, por meio das quais buscamos construir um diálogo com a escola, com o trabalho do professor de referência e com as necessidades trazidas pelos estudantes. No desenvolvimento do projeto, todos puderam ser ouvidos durante as vivências. Percebemos, inicialmente, uma dificuldade de diálogo entre os estudantes, os gestores da escola e os professores de referências. Realizamos atividades lúdicas e reflexivas visando instigar o pensamento crítico dos alunos. Os alunos se interessaram pelas atividades, principalmente quando se sentiam agentes ativos do processo da construção do conhecimento. Acreditamos que nossa parceria com a professora ao longo do ano contribuiu com uma releitura da visão inicial sobre o grupo de referência e com a construção de uma percepção mais positiva sobre os alunos. Identificamos que a professora de referência apresentou um trabalho educativo com mais diálogos, reflexão e ludicidade, oportunizando a formação da autonomia dos discentes. Palavras chaves: aprendizagem, cotidiano escolar, diálogo, formação docente. Résumé : Le texte vise à réfléchir et à remettre en question l'opinion dominante parmi les enseignants et les directeurs d'école sur le groupe de référence du 2e. cycle d'une école municipale à Niterói. Au début de 2011, le groupe de référence composé d'élèves âgés de 10 à 13 ans nous a été présenté comme celui qui étaient le plus désintéressé aux études. Notre recherche à l'école s'est entretenu avec la recherche-action et la recherche participative, à travers lesquelles nous avons cherché à établir un dialogue avec l'école, avec le travail de l'enseignant de référence et avec les besoins engendrés par les étudiants. Lors de l'élaboration du projet, tous ont eu l’opportunité de s’exprimer au cours de l'expérience. Nous nous sommes rendues compte, d'abord, que le dialogue était difficile entre les étudiants, les administrateurs scolaires et les enseignants de référence. Nous avons joué des activités et de la réflexion dans le but d'inculquer la pensée critique aux élèves. Les étudiants étaient intéressés par des activités, en particulier quand ils se sont senti les agents actifs du processus de construction des connaissances. Nous croyons que notre partenariat avec l'enseignant tout au long de l'année a contribué pour une réévaluation de la vue initiale sur le groupe de référence et la construction d'une perception plus positive sur les élèves. Nous avons déterminé que le professeur a présenté une référence éducative plus dialoguée, réfléxive et ludique, permettant la formation de l'autonomie des élèves. Mots-clés: l'apprentissage, quotidienne de l'école, dialogue, la formation des enseignants

1 Estudante

do curso de Pedagogia – UFF. Bolsista PIBIC-CNPq/UFF.

2 Estudante

do curso de Serviço Social – UFF.. Bolsista Apoio à Prática Discente-UFF. em Filosofia, História e Educação (UNICAMP), Pesquisadora do Aleph - Programa de Pesquisa, Aprendizagem-ensino e Extensão em Formação de Profissionais da Educação e do Centro de Aprendizagens, Pesquisa e Extensão - Cultura, Arte e brinquedo em Educação/CABE. 4 Doutora em Educação (USP), Lider do grupo de pesquisa Linguagem, Educação e Política. 3 Doutora

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A IMPORTÂNCIA DO APRENDER: JUNTANDO E COSTURANDO O MUNDO E A ESCOLA5

Introdução

Os adultos tendem a ver a escola como oportunidade de uma vida melhor no futuro. Uma visão que muitos estudantes não conseguem alcançar, uma vez que se tratam de pré-adolescentes. A escola, por vezes, parece focada unicamente em conseguir fazer com que os alunos aprendam a ler, a escrever, a resolver problemas matemáticos e a obedecer. Parece que esquece que deve também contribuir para a formação social e humana dos estudantes. Não temos certeza se há ou não questionamentos e reflexões sobre os objetivos da escola. Partindo dessa compreensão, desejávamos, ao iniciar nosso trabalho de pesquisa, conhecer o ponto de vista dos educandos sobre a instituição de ensino. Outro fator que nos chamava a atenção eram os relatos sobre o excesso de conversa na sala de aula e a falta de interesse pela aprendizagem na escola. Mas, a falta de interesse seria pelo aprendizado ou pela escola? A aprendizagem também não se dá no dia a dia, em todos os ambientes por nós frequentados e não somente na escola?

A vida é uma eterna

aprendizagem. Os relatos inicialmente colocados despertaram a hipótese de que a falta de interesse dos alunos seria decorrente do trabalho desenvolvido pela escola, pela forma como os conteúdos são trabalhados e pelos próprios objetivos da escola. O presente trabalho abordará e problematizará situações vivenciadas em uma Escola Municipal de Niterói, com o grupo de referência do 2° ciclo com idades entre 10 a 13 anos no ano de 2011, formado por 24 alunos, sendo 6 meninas e 18 meninos. Na sala, entre as meninas, havia uma aluna autista, acompanhada por uma professora de apoio.

5

Esse texto foi encaminhado para avaliação para o XVI Endipe e foi aprovado para publicação em livro do encontro, no formato e-books e com ISBN. Para ser publicado nesta revista houve alguns ajustes.

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Nosso projeto esteve articulado às ações do Projeto de Docência, Extensão e de Pesquisa “As ‘artes de fazer’ a educação em ciclos”, coordenado pela Professora Rejany dos Santos Dominick, da Universidade Federal Fluminense. O que nos levou a escolha do tema foram os constantes relatos de uma integrante do projeto “As ‘artes de fazer’ a educação em ciclos”, que já trabalhava na escola, sobre as falas de determinados professores como “os alunos não querem nada”, “eles não gostam de estudar”. Essas falas inquietavam-nos profundamente, despertando o interesse por sabermos o porquê dessas falas tão negativas a respeito dos alunos da escola. Precisávamos saber quem eram esses estudantes rotulados de desinteressados e de não quererem “nada” com os estudos. Trabalhamos a partir dos princípios da metodologia da pesquisa-ação (THIOLLENT, 1947) e, desta forma, nossas ações nas escolas foram guiadas pelas necessidades e desejos dos sujeitos da escola. A participação de todos viabilizava a realização do projeto. Assim como afirma THIOLLENT (1947, pág: 23): “a realização de uma pesquisa-ação é facilitada nas organizações de cultura democrática, quando já existe o reconhecimento e a participação de todos os grupos”. A pesquisa-ação nos possibilitou construir novos conhecimentos e trocas de saberes a cada participação dos envolvidos no projeto. Através dessa metodologia, foi possível refletir sobre nossa prática pedagógica, ou seja, sobre nosso fazer, teorizando e fazendo a ação pedagógica. A articulação de nossas ações ao planejamento do professor e ao projeto pedagógico da escola, juntamente com as necessidades trazidas pelos alunos, tornou mais viável a participação de todos no projeto, possibilitandonos ouvir os alunos, professores, coordenadores e pessoal de apoio.

Ações do projeto na escola: realidades e necessidades Durante a conversa inicial com os sujeitos sociais da escola, nossa proposta foi apresentada, avaliada e aceita sem solicitação de mudanças, RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 73


embora estivéssemos abertas para fazê-las, caso houvesse demanda.

Ao

término da conversa nos foi indicado o grupo de referência do 2º ciclo. Um breve relato nos foi feito sobre os estudantes pela equipe pedagógica. Os alunos eram considerados “os mais inquietos da escola”, “os menos interessados pelas atividades escolares” e “os alunos impossíveis de se fazer qualquer trabalho”. O que mais nos impressionou foi o fato dessas falas serem unânimes e comungadas por professores que circulavam na sala em que nos encontrávamos reunidas. Esses relatos deixaram-nos um tanto ansiosas e preocupadas e, ao mesmo tempo, desafiadas a desenvolver um trabalho consistente com o grupo de referência indicado. A impressão que ficou era que nenhuma atividade desenvolvida com este grupo daria certo, que ninguém conseguia fazer um trabalho com eles. E talvez nem nossa proposta. Mas, aceitamos ficar com o grupo, pois consideramos ser uma experiência nova, desafiadora e que o grupo tinha o perfil que o projeto almejava. Após o diálogo com os sujeitos da escola, refletimos sobre tudo que nos foi relatado a respeito dos alunos e tentamos não nos afetar e nem nos abalar pelas falas negativas a respeito dos estudantes, por mais difícil que as características descritas fossem. Procuramos, assim, construir o nosso próprio olhar a respeito do grupo de referência, não tomando as primeiras descrições dos alunos como sendo a única ou como uma verdade única. Assim, fez-se necessário compreendermos como os alunos viam a escola e qual a opinião deles sobre a instituição de ensino. Buscávamos despertar, de forma

lúdica,

os

interesses

dos

alunos

pela

escola;

trabalhar

a

conscientização sobre a importância do aprender na vida social e humana; promover debates com o grupo de referência visando motivar os alunos a expressar suas vontades e desejos em relação à escola; desenvolver atividades que os fizessem sentir participando ativamente do processo de construção do conhecimento. Diante das nossas inquietações iniciais recorremos a alguns autores e encontramos em CODO & GAZZOTTI (1999, pág:50) o seguinte RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 74


pensamento:

“...o papel do professor acaba estabelecendo um jogo de

sedução, onde ele vai conquistar a atenção e despertar o interesse do aluno para o conhecimento que ele está querendo abordar.” Antes de cada início de aula, passamos a tentar conquistar a atenção de cada aluno, sabendo que tal conquista precisa ser diária, não bastando planejar e desenvolver as atividades mecanicamente. Identificávamos que seria necessário criar um desejo pela aprendizagem em cada aluno. Ensinar é um ato de conquista, de afetividade e de provocação. Temos interesse por algo que nos provoca a curiosidade, a atenção e o desejo. Na sala de aula não é diferente. Segundo FREIRE (1996) um dos primeiros passos para um educador seduzir seus alunos é procurar conhecê-los. Quem são esses alunos? A quais culturais pertencem? Quais são os seus interesses? Para conquistar a curiosidade e a atenção, temos que conhecer. Outro passo importante é legitimar as suas falas e seus saberes, valorizando todos os seus conhecimentos e as culturas às quais pertencem. Ouvir os alunos é muito importante, mas percebemos que essa escuta não acontecia. Havia somente um a falar, e esta voz era dos gestores da escola, os alunos só ouviam...

Nossa primeira ação Como um dos objetivos era conhecer o olhar dos alunos em relação à escola e identificar os pontos negativos e positivos que tinham sobre a instituição de ensino, solicitamos que os pré-adolescentes fizessem um trabalho de colagens.

Sugerimos que se dividissem em grupos e

representassem a “escola dos sonhos”. Durante a elaboração da atividade os grupos conversavam o tempo todo; a impressão que tivemos era a de que eles não se entendiam. Mas essa impressão foi desfeita logo que um dos grupos, que se mostrou mais agitado durante a atividade, entregou o trabalho e este foi um dos mais expressivos. No cartaz desse grupo havia alguns desejos em relação à escola e algumas obrigações dos alunos como: respeitar o professor, a merendeira e um pedido RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 75


de menos violência. Acreditamos que essa última se deu devido à escola se localizar em uma área de risco. Ao término, solicitamos que cada grupo falasse sobre o mural da “escola dos sonhos” e essa orientação não pôde ser concluída, pois os alunos falavam ao mesmo tempo e ninguém se ouvia. Os relatos sobre o mural foram feitos no decorrer de outras aulas. Ao avaliarmos essa atividade, enquanto pesquisadoras, percebemos que os alunos interagiam bem entre si; notamos que o fato de falarem muito não interferiu na elaboração das atividades. Questionamos-nos sobre o excesso de conversa e nos deparamos com o mesmo desejo de silêncio que todos os professores sonham. Desta forma, foi preciso sair da nossa zona de conforto e acomodação, no qual queríamos que os alunos fossem algo de nosso sonho e não pessoas que são como são. O pensamento dominante associa o silêncio à aprendizagem e a conversa à falta de atenção. O silencio é associado ao controle e a conversa ao descontrole. Segundo FOUCAULT (1996), os alunos sentados em fileiras, sem conversar, sem se mover é sinal de controle. Sendo assim, tudo que foge a essas características é considerado fora do controle. É ausência de atenção. Assim como o trabalhador bom é aquele que trabalha quieto, estudante bom é aquele que se comporta como a escola e os professores querem. Como professores pesquisadores, precisamos estar atentos, pois nem sempre o aluno que está quieto aprende e se interessa pela atividade realizada. Também não podemos afirmar que aquele que fala o tempo todo não aprende e não se interessa pala atividade proposta. Ainda durante a avaliação da atividade, nos demos conta de que os alunos tem noção das obrigações deles na escola. Tem noção de como eles deviam se comportar e o que chamou a nossa atenção foi o fato de todos os cartazes deixarem claro a falta do espaço lúdico na escola. Por que a ludicidade é tão esquecida no ensino fundamental? Segundo FROEBEL (apud, ZATZ, ZATZ & HALABAN, 2006, Pág.: 15) “a

brincadeira não é trivial, ela é altamente séria e de profunda significância”. RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 76


Através da brincadeira a criança se constitui como sujeito e estabelece relações com o outro, mas não só as crianças, os adolescentes também. A brincadeira não tem unicamente a finalidade de divertir, mas também de ensinar. Há necessidade do lúdico ser levado mais a sério pelos educadores e escolas. Para ALMEIDA: Uma aula com características lúdicas não precisa ter jogos ou brinquedos. O que traz ludicidade para a sala de aula é muito mais uma "atitude" lúdica do educador e dos educandos. Assumir essa postura implica sensibilidade, envolvimento, uma mudança interna, e não apenas externa, implica não somente uma mudança cognitiva, mas, principalmente, uma mudança afetiva. A ludicidade exige uma predisposição interna, o que não se adquire apenas com a aquisição de conceitos, de conhecimentos, embora estes sejam muito importantes... (ALMEIDA , 2009)

Durante as atividades lúdicas há um novo olhar dos alunos em relação à aula. As experiências, as trocas de conhecimento e a socialização de saberes ocorrem com mais facilidade e, como citado pelo autor, para tal acontecimento não se faz necessário brinquedos ou jogos, mas uma nova postura do professor. Quando o professor propõe atividades que envolvam a ludicidade, passa a estimular a criatividade, a criticidade e a liberdade de expressão do aluno. Esse aluno passa a ser sujeito ativo da sua aprendizagem. Sem contar que o brincar, segundo VYGOTSKY, age sobre a zona de desenvolvimento proximal do ser humano, tendo enorme influência em seu desenvolvimento (OLIVEIRA, 1997 p. 66). Em um dos nossos encontros seguintes, trabalhamos conteúdos da disciplina de matemática. Era sabido que grande parte do grupo apresentava dificuldades nas tabuadas e, desta forma, levamos a proposta com o Relógio da Matemática, cedido pela professora Maria Antonieta Pirrone, docente da Universidade Federal Fluminense. A finalidade do relógio era auxiliar no trabalho com a tabuada, cada tabuada correta e completa formava uma figura geométrica. Desta forma, os alunos se ajudavam e as tabuadas eram trabalhadas de uma forma lúdica e ao mesmo RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 77


tempo de forma responsável. A responsabilidade das figuras estarem corretas estava em cada tabuada falada com exatidão pelos alunos. Nesta atividade realizada com os discentes a ludicidade foi o principal apoio. É sabido que a brincadeira é relevante no cotidiano do aluno. E na escola, a ludicidade também contribui no processo da construção do conhecimento do estudante. Seja em qualquer ciclo escolar que esse aluno se encontre, pois em todos os momentos a brincadeira oportuniza a aprendizagem. Em outro encontro optamos por uma atividade que tivesse como finalidade promover o desenvolvimento da sensibilidade e na qual os alunos trabalhassem a audição, a atenção e os limites. Trabalhar a audição foi o nosso principal foco, pois os alunos aparentemente não sabiam ouvir e nem dialogar. Desta forma, procuramos promover o diálogo por meio de atividades nas quais os alunos fossem ouvidos e seus saberes divididos. Quando o educador ouve seus alunos, contribui para uma formação autônoma, crítica e participativa para sua construção como sujeito reflexivo, que pode contribuir amplamente para a construção de uma prática docente democrática, inclusiva, que respeite as diferenças e a subjetividade dos educandos. Para tal, trabalhamos com as obras e a vida do pintor brasileiro Romero Britto. Suas pinturas são conhecidas e suas obras não estão voltadas somente para o público adulto. Este trabalho se deu em 2 (dois) encontros. No primeiro, trabalhamos a vida de Romero Brito, onde ele nasceu dentre outras informações. No segundo, conhecemos suas obras, cujas pinturas associam animais e personalidades públicas com formas geométricas e, no final do encontro, os alunos fizeram uma releitura em papel de algumas das obras. Buscamos desenvolver a autonomia dos alunos, mediando a organização das atividades e eles próprios dividiram as tarefas. Eles escolheram quem faria a leitura dos textos (área de português), os responsáveis para trabalhar com o mapa (área de geografia) e quem faria a análise das imagens pintadas (área de RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 78


matemática). Ao final da atividade, após a troca de conhecimentos, todos sabiam um pouco de tudo que foi trabalhado na sala de aula. Uns dominavam mais uma área do que outros, mas a aprendizagem foi coletiva e a união dos saberes fazia com quem o grupo de referência soubesse todo o assunto trabalhado na sala de aula. Como afirma KORCZAK (1983, pág.: 49) “... só a turma inteira sabe

de tudo”. Não é difícil “um” aluno saber todos os assuntos trabalhados na sala de aula, mas cada aluno tende a se interessar mais por um assunto do que por outros. Quando todos os estudantes fazem o relato dos conteúdos trabalhados na sala e os demais ouvem ativamente, o grupo consegue aprender e dar conta de todo o assunto, ou quase todo.

Há trocas de

aprendizagem, há oportunidade dos alunos serem escutados e reconhecidos seus saberes. E uma fala leva a outra, curiosidades vão surgindo, relatos de vivências vão ocorrendo. Esta atividade nos faz refletir sobre o que é gostar de estudar e como sabemos se um aluno gosta ou não de estudar. A experiência de pesquisaação com este grupo de referência nos mostrou que os alunos tinham interesse pelas atividades propostas. Então, qual o motivo da fama ruim na escola na visão dos adultos? O que levou esse grupo a ser visto como os alunos que nada queriam da escola? Passamos a observar como eram trabalhadas as atividades na sala de aula com a professora de referência e sem perder o foco do projeto. Nessa observação, percebemos que a professora chegava à escola cansada, pois vinha de outra escola e assumia a turma logo em seguida. No começo da aula a turma ficava alguns minutos sem atividades, aguardando a professora para início dos trabalhos do dia, o que os levava a conversar. Quando a professora começava a trabalhar com o grupo, eles já estavam demasiadamente envolvidos nas conversas, o que dificultava o início da aula e a atenção dos alunos para com a professora. O grupo de referência era, na maior parte, formado por meninos. Não há como negar que eles, em alguns momentos, faltavam com respeito à RevistAleph- ISSN 1807-6211 Julho 2012 - ANO VI - Número 17 79


professora e conversavam muito. Mas, o desgaste da professora prejudicava o rendimento do grupo. Não culpamos a professora ou estamos protegendo os alunos. Trata-se de um fato real e muito desgastante para todos os docentes: a jornada dupla e até tripla de trabalho, sem tempo para planejamento e para o cuidado de si. Contudo, é preciso destacar que a ociosidade dos alunos era muito grande no início da aula. Esse olhar direcionado ao docente nos faz refletir sobre nosso futuro profissional e sobre a falta de política pública que valorize o trabalho docente e diminua os prejuízos discentes e aos docentes também. Percebemos que havia a necessidade de atividades em que os alunos se sentissem ativos no processo de aprendizagem e exercessem a autonomia. Dialogando com Freire, percebemos que o papel dos alunos na sala de aula não é apenas de meros ouvintes daquilo que lhes é ensinado, mas sim de pessoas que possuem opiniões, conhecimentos e querem ser ouvidas. Para Freire (1996), o estudante não apenas ouve, mas questiona. Questionamento este que o ajuda nas suas reflexões tornando-o, dessa forma, agente ativo na construção do conhecimento e não mero ser passivo. Outro atrativo para os alunos é dialogar sobre os conteúdos a serem trabalhados. Por vezes, os discentes aprendem temas que não apresentam a utilidade em seu dia a dia. Simplesmente ouvem que é importante. Mas, importante para quem e para quê? Dialogando com CERQUEIRA: Um dos objetivos da educação não é simplesmente o de efetivar um saber na pessoa, mas seu desenvolvimento como sujeito capaz de atuar no processo em que aprende e de ser parte ativa dos processos de subjetivação associados à sua vida cotidiana (GONZALEZ REY, 2001 apud CERQUEIRA, 2006). Essa afirmação nos leva a enxergar o aluno como aquele sujeito ativo na sua aprendizagem, uma vez que ele se apropria do conhecimento, o mesmo terá a ousadia de utilizá-lo na sua vida prática. É por isso que reafirmamos que devemos aprender e ensinar aquilo que tem sentido para o estar no mundo dos alunos. Não adianta dizer que a terra é redonda, se para aquele sujeito essa informação não faz o menor sentido, como também é inútil impor silêncio numa classe em que os pensamentos estão borbulhando e precisam ser compartilhados. (CERQUEIRA, 2006)

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A aprendizagem significativa é aquela que podemos por em prática, é uma aprendizagem concreta na qual percebemos importância para a vida. Muitas vezes os alunos não encontram tais aprendizagens, encontram informações que não fazem sentido e são obrigados a memorizar, pois se não souberem dar a “resposta certa” são reprovados. É sabido que há um conhecimento escolar a ser apreendido, mas há modificações possíveis que podem dar ênfase aos assuntos associados à vida do estudante. Aprender por aprender não leva ninguém a entender determinado assunto. Porém, aprender para por em prática ou com uma aprendizagem significativa contribui para que o aluno não perca o interesse pela escola. Não que a escola tenha de ter como finalidade só trabalhar objetivamente, mas

quando

conseguimos

associar

as

aprendizagens

escolares ao cotidiano o estudo passa a fazer mais sentido.

Conclusão Nossas vivências na instituição de ensino nos permitiram perceber que todos gostam de ser ouvidos. Entretanto, essa não é uma prática comum em muitos espaços escolares e na escola estudada a prática de ouvir os alunos não se mostrou comum. Houve participação ativa dos alunos durante as atividades e esta nos fez constatar que os jovens são interessados pela aprendizagem e a dinâmica da escola, em geral, os desmotivavam. As atividades realizadas pela pesquisa-ação conferiram ao espaço da sala de aula uma possibilidade de diálogo. Este abre as portas para o entendimento, abre caminhos para a compreensão dos motivos de atritos e potencializa que respostas a questionamentos existentes dentro do espaço escolar comecem a ser dadas. Os gestores escolares, quando não dialogam com os questionamentos e desejos dos estudantes, não percebem que os alunos são interessados pelos estudos, só que de uma maneira diferente daquela que é predeterminada pela racionalidade administrativa. Os estudantes gostam de participar das RevistAleph- ISSN 1807-6211

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atividades, principalmente quando se sentem sujeitos ativos no processo de ensino e aprendizagem. Nossas ações na escola possibilitaram uma aproximação dialógica entre a professora e o grupo de referência. Acreditamos que esta era bem limitada no início da pesquisa, pois apesar do compromisso e afetividade da professora com seu trabalho, a estrutura de trabalho docente é bem alienante,

estressante

e

arrasta

os

docentes

para

uma

lógica

administrativista do tempo-espaço da sala de aula. Nossa parceria com a professora, acreditamos, reverteu a visão negativa dos adultos e estimulou uma percepção positiva em relação aos alunos, possibilitando um trabalho que incluiu o diálogo e atividades lúdicas que oportunizaram a formação da autonomia dos discentes. Sabemos que em nossa sociedade a participação democrática e ativa dos jovens está crescendo, mas no espaço escolar a participação é tímida, principalmente dos alunos mais novos. Pois tendemos não ouvir os alunos, mas esperamos que eles nos ouçam sem nos questionar. Esquecendo, por vezes, que os discentes tem opinião, vontades e querem ser ouvidos. Há a necessidade das instituições de ensino adotarem o diálogo como eixo fundamental de uma prática educativa que contribua para uma formação democrática e que possibilite uma boa relação entre o ensino e a aprendizagem.

Nós,

professores,

precisamos

gerar

movimentos

que

potencializem o ambiente escolar como um espaço para reflexões, discussões e comunicação entre saberes das diferentes culturas e gerações. Nós precisamos desenvolver uma consciência de que cada um precisa ser ouvinte e locutor, pois ainda domina na escola a lógica de que os estudantes são ouvintes e os docentes são locutores. No nível da relação gestores, professores e Secretaria-Escola, esta lógica de interlocução também precisa estar viva. Realizar o diálogo demanda tempo, disposição e humildade para reconhecer que no processo político há diferentes possibilidades de interpretação dos fatos! RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Referências Bibliográficas: ALMEIDA, A. “Ludicidade como Instrumento Pedagógico”. 2009 Disponível em: http://www.cdof.com.br consultado em 19/02/2012. CERTAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. “O professor em sala de aula: reflexão sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível”. Psic, São Paulo, v. 7, n. 1, jun. 2006 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167673142006000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 21 fev. 2012. CODO, W. (Coord.) Educação: carinho e trabalho. 4 ed. Petrópolis, RJ.: Vozes/Brasília, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Universidade de Brasília, Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 14. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. KORCZAK, Janusz. Como amar uma criança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. OLIVEIRA, Martha Kohl de. Vygostsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. São Paulo Scipione,1997. THIOLLENT, Michel. Pesquisa – ação nas organizações. São Paulo: Atlas, 1947. ZATZ, Silvia, ZATZ Andre & HALABAN, Sergio. Brinca comigo! Tudo sobre brincar e os brinquedos. São Paulo: Ed. Marco Zero. 2006, disponível no site: http://books.google.com.br/books?id=Qd8VPF2XpHsC&pg=PA15&dq=%E2% 80%9Ca+brincadeira+n%C3%A3o+%C3%A9+trivial&hl=ptBR&sa=X&ei=8EJAT6zaB4WcgQfM9KW7CA&ved=0CDgQ6AEwAA#v=one page&q=%E2%80%9Ca%20brincadeira%20n%C3%A3o%20%C3%A9%20triv ial&f=false

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Experiências Instituintes

Relações raciais no cotidiano escolar: dizeres de alunos de duas escolas públicas municipais de Cuiabá Malsete Arestides Santana1 Maria Lúcia Rodrigues Müller2 Resumo O artigo apresenta dados de uma pesquisa qualitativa, tendo como métodos a observação e o grupo focal. Analisa as relações raciais no cotidiano escolar na percepção de alunos de duas escolas municipais de Cuiabá. Os resultados sinalizam para a existência de discriminação racial nas relações raciais entre os alunos. Pôde-se verificar que a falta de trabalhos acerca das relações raciais na escola leva muitos alunos negros a serem vitimizados, ocasionando até mesmo a autonegação de sua identidade. Palavras-chave: discriminação racial; cotidiano escolar; alunos

Summary The article presents given of a qualitative research, having as methods the comment and the focal group. It analyzes the racial relations in the daily pertaining to school in the perception of pupils of two municipal schools of Cuiabá. The results signal for the existence of racial discrimination in the racial relations between the pupils. It could be verified that the lack of works concerning the racial relations in the school takes many black pupils to be vitimizados, causing even though the autonegação of its identity. Word-key: racial discrimination; daily pertaining to school; pupils

1

Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. malsete@ibest.com.br Pós- doutora em educação pela Universidade Federal Fluminense, UFF, Brasil. mlrmuller@gmail.com 2

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Relações raciais no cotidiano escolar: dizeres de alunos de duas escolas públicas municipais de Cuiabá

O objetivo deste artigo é trazer algumas situações de discriminação racial dos alunos nas relações raciais no contexto escolar por meio das quais é possível compreender como estes alunos lidam com a discriminação racial e como esta marca as suas relações na escola. Este artigo apresenta resultado de parte de pesquisa de mestrado sob a orientação da pro.Draª Lúcia Müller.3 Situações de discriminação racial no espaço escolar são freqüentes e ocorrem na presença de professores, coordenadores e diretores, sem que esses muitas vezes tomem atitudes. Geralmente os apelidos pejorativos são relacionados à cor da pele ou cabelo. A

discriminação

racial

é

uma

ação,

uma

manifestação

de

comportamento, ato, que prejudica determinada pessoa ou grupo de pessoas em razão de sua raça/cor (BEGHIN e JACCOUD, 2002). Impedir uma pessoa negra de ocupar uma posição de destaque no mercado de trabalho por motivos injustificáveis é um exemplo de discriminação racial. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a discriminação tem o sentido de separar, distinguir, estabelecer diferenças, segregar. Traduz-se em ações negativas concretas, em práticas individuais e institucionais que violam os direitos sociais e humanos e a igualdade de tratamento, com base em critérios pré-estabelecidos, de forma singela ou não (GONÇALVES, 1987). Mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso, defendido em março de 2012 com o título “Relações Raciais no cotidiano escolar: percepções de diretoras e alunos de duas escolas municipais de Cuiabá. 3

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O caminho percorrido Foi realizado grupo focal com os alunos das turmas do 3° ao 6° anos, eles falaram sobre as situações de discriminação racial vivenciadas no cotidiano escolar. Esse grupo focal foi realizado nas Escolas A e B com 05 grupos, sendo 04 grupos com 10 alunos e um grupo com 08 alunos, no período matutino. A princípio seriam 05 grupos com 10 alunos, mas um grupo foi composto por 08 alunos porque os responsáveis não autorizaram a participação dos seus filhos na pesquisa. No dia marcado e no momento da realização do grupo focal foi feita uma breve explicação aos alunos e começamos os trabalhos. Foram feitas duas perguntas: a) Vocês sabem o que é discriminação? b) Vocês já sofreram alguma discriminação na escola? Conte como aconteceu? Com as respostas dos alunos sobre discriminação racial, o que se compreende é que ela perpassa a vida desses alunos no espaço escolar e em outros que ultrapassam esse contexto, ou seja, na comunidade. No início, ninguém falou sobre o assunto. Quando perguntava se alguém já passou por situações de discriminação, a princípio os alunos negavam. Após um tempo de conversa, começaram a falar das situações de discriminação vivenciadas por outras pessoas, colegas, parentes. Professora, eu sei o que é discriminar […] um dia a professora foi trabalhar sobre escravos, foi uma bagunça, os alunos começaram a rir e falar que a B. era escrava, preta tinha que apanhar. A professora mandou parar, ela chorou. (Aluno negro, 5° ano, Escola A). […] tem um guri, professora, na sala, ele fala para o outro, o L. que ele é macaco, e ele fica quieto, fosse eu batia nele, a tia deixa. (Aluno negro, 6° ano, Escola A). Professora, eu acho que discriminar é colocar apelido, xingar o outro de preto, fedido. Tem um guri lá perto de casa que fala que preto é macaco, fedido, sujo. (Aluno negro, 4° ano, Escola A). Minha avó não gosta de preto, ela fala que preto é bagunceiro, preguiçoso ela é racista. (Aluna negra, 6° ano B, Escola A). RevistAleph- ISSN 1807-6211

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O que se observa é que os alunos têm consciência da discriminação racial presente nas relações. Alguns alunos falam sobre as situações de discriminação decorrentes das suas próprias experiências. […] eu não gosto que eles falam que eu sou biscoito torrado, carvão, eu brigo com eles, na hora do lanche eles ficam me perturbando. A coordenadora foi na sala e pediu para eles pararem, mas eles continuam me chamando por apelido. (Aluna negra 5° ano A, Escola A). […] o C. fica falando que eu sou preto, macaco, eu falei para a tia, ela não fala nada. (Aluno negro 3° ano A, Escola B). […] o tia, A. falou que eu sou feia, bruxa, ela não brinca comigo, na educação física ela não brinca de roda comigo. (Aluna negra do 3° ano, Escola B)

O depoimento de um aluno negro me chamou a atenção, ele disse que não sofre discriminação, que na escola não há discriminação. Os colegas insistiam para ele dizer que sofre discriminação: […] eu não sinto nada, eu não ligo, eu não acho que é discriminação, meu irmão é branco, porque meu padrasto é branco, minha mãe é morena, eu sou moreno. Eu não sou preto. Eu sou mais claro do que o W., eu acho que ele é preto. (Aluno negro, 6° ano B, Escola A).

Esse aluno estava sempre sozinho, era muito calado, não participava das brincadeiras, comemoração e, poucas vezes, conversava com outros alunos. O silêncio denuncia situação de discriminação. Esse aluno pode estar passando por um processo de internalização de estigma de ser negro. É como se o aluno vivenciasse um ostracismo a ele imposto, como nos traz Elias e Scotson (2000), quando se referem à internalização dos estereótipos pelos

outsiders, imputados pelo grupo estabelecido. Segundo esses teóricos, a estigmatização a que os indivíduos são submetidos faz com que se “sintam, eles mesmos, carentes de virtudes, julgando-se humanamente inferiores” (2000, p. 20). Havia outros alunos negros também isolados nos espaço da escola, no momento do recreio, nas aulas de educação física, estavam sempre sozinhos; também percebi que alguns alunos não saiam da sala no recreio. O RevistAleph- ISSN 1807-6211

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isolamento desses alunos no contexto escolar é gerado por um sentimento de inferioridade decorrente da interiorização de estereótipos negativos acerca da imagem do negro que circulam nos ambientes de convivência desses sujeitos. O mito da democracia racial no Brasil traz a idéia de que neste país há uma relação harmônica entre as pessoas, isto é, não há preconceito nesta sociedade. Para D’ Adesky (2005, p. 174), numa sociedade em que a idéia de cordialidade é disseminada, na qual o mito da democracia racial persiste como um ideal, a ausência de conflitos é uma norma de comportamento. Como também nos assinala Gomes (2001, p.92) “[...] o racismo no Brasil é um caso complexo e singular, pois ele se afirma pela sua própria negação. [...] mas mantém-se presente no sistema de valores que regem o comportamento de nossa sociedade”. Nas falas dos alunos, alguns casos exemplificam situações de discriminação nas relações entre eles. […] tia, no trabalho em grupo a G. e P. não quer sentar com a A. nem com a M. fala que ela é preta. (Aluno negro do 3° ano B, Escola A). […] o W. fica me chamando de preta, fedida, a professora não fala nada (5° ano A)

De acordo com Silva (2001), “as pessoas agem com preconceito, desenvolvem crenças simplificadas sobre as minorias, essas crenças simplificadas são o que chamamos de estereótipos e nesse sentido eles podem produzir preconceitos”. Compartilhando com essa afirmação, Fazzi (2004) diz que a discriminação, por sua vez, é o aspecto comportamental do preconceito e, no que diz respeito ao preconceito racial, abrange relações de exploração, comportamento competitivo, agressão e comportamento de evitação. A percepção da discriminação racial pelos alunos, evidenciada nas entrevistas, leva a concluir que o mito da democracia racial não vigora no contexto nas relações entre os alunos, porém as práticas de discriminação RevistAleph- ISSN 1807-6211

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racial persistem no cotidiano escolar. A discriminação racial é percebida pelos alunos em vários contextos sociais das suas relações. No entanto, a consciência da existência do racismo não impede a manifestação do preconceito e discriminação racial entre eles. As percepções dos alunos sobre as relações raciais e as análises de como eles percebem essas relações passam a ser elementos importantes para apreender sobre os conflitos na escola.

A vivência dos alunos negros com a discriminação racial no espaço escolar O cabelo foi motivo de muitos relatos de discriminação racial dos alunos durante o grupo focal e nas observações. Eles falavam de cabelo bonito, arrumado e se dirigiam às crianças de cabelo crespo como cabelo ruim, feio, desarrumado. A escola estabelece padrões como o cabelo que, para ser símbolo de beleza, deve ser liso, comprido. É exigido dos alunos um padrão uniforme. Uma das exigências é arrumar o cabelo. Mas o que é cabelo arrumado para a escola? Na escola, a exigência de “arrumar o cabelo” não é novidade para os alunos e para a sua família. Mas essa exigência, muitas vezes, chega até a família com um sentido muito diferente daquele atribuído pelas mães ao cuidarem dos seus filhos e filhas. Em alguns momentos, o cuidado das mães não consegue evitar que, mesmo apresentando-se bem penteada e arrumada, a criança negra se torna alvo das piadas e apelidos pejorativos no ambiente escolar. (GOMES, 2002, p. 45). Nas observações, as meninas aparecem como os principais alvos de discriminação por causa do cabelo. Constatei uma situação na escola que me chamou muito a atenção. Essa situação aconteceu durante a entrada da aula. Uma aluna negra chega à escola com os cabelos soltos. Os alunos começaram a rir. Um mostrava para o outro e continuava rindo. A aluna foi para o final da fila. Uma professora comenta com a outra professora e

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também ri/sorri. Nos outros dias, percebi que a aluna não soltou mais os cabelos. O fato de tratamento irônico em relação às crianças negras representa um dado a ser considerado, pois todo comentário realizado no espaço escolar, principalmente diante de outras crianças, poderá ser por elas absorvido e entendido como um comportamento que pode ser reproduzido, visto que suas professoras o fazem. Ofensas e ironias ocultam preconceito latente. São freqüentes as situações de discriminação ocorridas nos espaços da escola referentes ao cabelo, praticadas por crianças e professores, de maneira direta ou velada. “… tia, os meninos falam que o meu cabelo é duro, cabelo de repolho.” [Como você se sente] eu fico muito triste, lá em casa minha avó cortou o meu cabelo, eu não queria cortar, mas ela cortou, e todo mundo riu. (aluna do 5° ano, negra).

Os alunos negros, mesmo com os cabelos penteados, são alvos de apelidos pejorativos e piadas no ambiente escolar. “[…] uma coisa é nascer negro, ter cabelo crespo e viver dentro da comunidade negra, outra coisa é ser criança negra, ter cabelo crespo e estar entre brancos” (GOMES, 2000, p. 45). No espaço escolar, as relações interpessoais e a aprendizagem das crianças negras muitas vezes são prejudicadas devido aos apelidos pejorativos dirigidos a essas crianças pela sua cor ou seu cabelo. “[…] a rejeição do cabelo, muitas vezes, leva a uma sensação de inferioridade e de baixa autoestima” (GOMES, 2002, p. 47). Fazzi (2004), em sua pesquisa, perguntou a uma menina se ela gostava do seu cabelo, ela disse que não, que ele necessitava de tratamento: […] a gente tem que cuidar do nosso cabelo assim ele vai ficar igual ao de qualquer um. A expressão ficar igual ao de qualquer um denuncia a tentativa de igualar o cabelo crespo ao cabelo liso, constituindo este último tipo de cabelo um modelo natural a ser seguido. (Fazzi, 2004, p. 118).

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Na realização da entrevista uma aluna fez um depoimento cheio de sentimento de negatividade, de inferioridade sobre si mesma e o seu tipo de cabelo. […] tia, eu não gosto do meu cabelo, minha mãe vai alisar. [Porque você não gosta do seu cabelo?] Ele é feio, eu sou feia, minha prima alisou o cabelo dela. Agora o menino não fica rindo dela. Eu quero o meu cabelo liso. (Aluna do 4° ano, negra).

O tipo de cabelo, no contexto desta pesquisa, demonstro ser requisito para ser aceito pelo grupo. As crianças de cabelo liso tinham poder de escolher ou rejeitar quem participava do grupo. O tipo de cabelo era o critério mais utilizado para discriminar e segregar. A sociedade valoriza e padroniza determinadas qualidades e aquelas que fogem a esses padrões geralmente não são aceitas:

Sabemos que em nossa sociedade de maneira geral, as concepções sobre o negro são bastante negativas. Elas dizem respeito à estética, morais e intelectuais. São essas concepções, que ocorrem de maneira difusa em nossa sociedade, que criam todas as maneiras e formas de evitação, de mal estar, de “antipatia” que teimam por penalizar aqueles que não possuem um fenótipo evidentemente branco. (MÜLLER; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2006, p. 14).

As referências negativas aos cabelos dos alunos negros aconteceram em vários momentos no espaço da escola. As alunas negras percebiam e sofriam com a discriminação com relação ao seu cabelo, mas prevalecia o silêncio. Às vezes reclamavam para a diretora, mas nenhum trabalho era realizado; a discriminação continua no espaço escolar. Diretora, o K. falou que o meu cabelo é de bombril, seco. (aluna negra do 4º ano). Deixa pra lá, vai brincar. (diretora da escola B).

Nas escolas pesquisadas, fazem parte do calendário as datas comemorativas. As salas preparam apresentações com os alunos para acontecerem nos dias marcados e os responsáveis são convidados para assistir. Nas entradas das aulas, também fazem pequenas apresentações com músicas, orações em que cada dia uma sala é responsável. Percebi que RevistAleph- ISSN 1807-6211

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os alunos que estavam nas apresentações eram sempre os mesmos. O que não pude deixar de observar foi que alguns alunos não participavam das apresentações, mesmo levantando a mão indicando que queriam participar. Para Gonçalves (1987, p. 28), “na escola existe um ritual pedagógico que vem reproduzindo a exclusão e, conseqüentemente, a marginalização escolar de crianças e de jovens negros”. Na ocasião da Páscoa uma cena me chamou a atenção. Durante o ensaio, um aluno não queria pegar na mão de uma aluna negra. Fazia brincadeira fingindo que ia pegar na mão da aluna e soltava. A professora começou a falar para o aluno não fazer isso, que todos deveriam pegar nas mãos dos coleguinhas, que todos são iguais, um tem que respeitar o outro. A aluna saiu do ensaio, a professora continuou e não chamou a aluna para retornar. No dia da apresentação, aquela aluna não apareceu. Já em outra situação ocorrida no dia das mães, percebi que os alunos negros estavam todos nas últimas filas e à frente estavam os alunos brancos. A escola dispõe de roupas para algumas apresentações e estas estavam com os alunos da frente. Perguntei por que só os da frente estavam com as roupas da apresentação. As professoras disseram que a escola não tem roupa para todos os alunos. Observei que uma aluna se aproximou da professora e pediu para participar dizendo que uma aluna havia faltado. … tia, deixa participar, eu sei dançar [você não sabe nada, erra tudo]. Deixa, eu nunca danço, a P. faltou [não]. (Aluna negra).

Durante toda a observação, os alunos das apresentações eram sempre os mesmos. A rejeição dos colegas para com os alunos negros e a não percepção dos professores e da diretora reforçavam isso. Segundo Cunha (1987), as crianças negras são impedidas de assumir posições de destaque em festividades e demais eventos na escola: Ocorre também situação em que a criança é impedida de ocupar posição de destaque por ser negra. É muito freqüente em festas escolares onde, por exemplo, a noiva da dança da quadrilha não pode ser uma menina negra; ou nos enquetes RevistAleph- ISSN 1807-6211

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de teatro, quando os anjos também não podem ser negros (CUNHA, 1987, p. 53).

O que se percebeu é que a escola e os seus profissionais ainda não estão preparados para lidar com as diferenças, ainda trabalham com alunos idealizados. No recreio, o que pude perceber é que nas “brincadeiras” acontecem muitas discriminações. Alunos negros ficam isolados das brincadeiras, se constrangem ao falar dos seus apelidos e tratamentos discriminatórios que enfrentam nas escolas. Os profissionais da escola, inclusive as diretoras, negam que há práticas racistas na instituição. Xingamentos e apelidos são justificados por esses profissionais como “brincadeiras”. […] eles fazem muitas brincadeiras nas salas de aula e no recreio, os alunos negros não gostam, ai saem às brigas. E complementou: … eu não vejo muita discriminação na escola, às vezes tem uma briga por causa de apelidos, ou porque chamou de preto, mas a gente resolve ou às vezes nem interfiro, pois logo estão brincando”. (Diretora da escola A).

Segundo Abramovay (2006), mais problemático do que posturas que alimentam o racismo é a miopia social, ou seja, o não reconhecimento que a diferença, a discriminação e o preconceito existem e a falha em considerar brincadeiras, apelidos e tratamentos violentos aos que são negros podem, na prática, significar a produção do racismo. Durante o recreio, observei que as crianças negras, na sua maioria, brincam com as negras e são excluídas das brincadeiras das crianças brancas. Quando aceitas, elas não podem escolher ou opinar sobre as brincadeiras. Em alguns momentos, percebi que os alunos negros, para participar da brincadeira, devem dar algo em troca: […] dá um pouco de Skiny que eu deixo você brincar” (Aluna (branca) da escola B). […] deixa ficar com a sua bolacha, eu que mando nesta brincadeira” (Aluna (branca) escola A).

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Sobre os conflitos entre alunos negros e brancos na hora do recreio, Santos faz a seguinte observação: […] mesmo com essas cenas de conflitos, o recreio não deixa de explicitar uma aparente integração, exprimindo a dualidade das interações raciais. É observável alguns dos alunos anteriormente envolvidos em desavenças, participando do coletivo das brincadeiras durante o recreio, como pega-pega, polícia e ladrão e outras. (SANTOS, 2006, p. 76).

Durante o recreio, foi possível observar várias situações de discriminação. As crianças formavam grupos para brincar, alguns alunos negros ficavam próximos, mas não eram chamados para participar e muitas vezes esses alunos se tornavam motivo das “brincadeiras”. […] tia, o V. puxou o meu cabelo (aluna negra) [não importa, ele é bobo, deixa este menino], mas ele não para. [ele está brincando com você.] (escola B). […] oh, oh, o P. tomou o meu lanche (aluna negra) [que lanche menina, você não traz lanche] o meu salgadinho [sossega, você não estava com salgadinho nada] vai brincar, come o lanche da escola (escola B).

No ambiente escolar os estereótipos sobre o negro são amplamente difundidos sob brincadeiras. Mesmo os alunos denunciando as práticas de discriminação, as diretoras interpretavam estas atitudes como brincadeiras. As “brincadeiras” naturalizam os preconceitos na escola. Assim a discriminação racial passa a ser minimizada escamoteando o sofrimento dos alunos alvos dessas brincadeiras. As manifestações depreciativas em relação ao negro estão presentes nas relações entre alunos por meio de apelidos, de xingamentos que muitas vezes constituem instrumentos na propagação do racismo.

Considerações finais Os relatos dos alunos permitiram entender no movimento das suas relações que estereótipos sobre o negro circulam entre eles por meio de piadas, apelidos entre outros. Nesse sentido, características como a cor, RevistAleph- ISSN 1807-6211

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cabelos, formato dos lábios, nariz dos alunos negros são referências negativas que atuam anulando o negro. Com relação à percepção dos alunos, evidenciou-se que eles têm consciência de que a discriminação racial existe e que ela vigora tanto no cotidiano escolar quanto fora dele, mas essa preocupação não os impede de práticas e atitudes de preconceito e discriminação, como xingamentos e apelidos de cunho racista como “brincadeiras”. Os depoimentos dos alunos permitiram perceber que os estereótipos sobre o negro circulam entre eles por meio de piadas, apelidos, entre outros. Desta forma, características como a cor e cabelos dos alunos negros são referenciais negativos que agem anulando o ser negro. A análise dos dados indica que na percepção dos alunos foi possível verificar que a falta de trabalhos educativos acerca das relações raciais na escola leva muitos alunos negros a serem vitimizados, ocasionando até mesmo a autonegação de sua identidade.

Referências CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam (coord.) Relações Raciais na escola: reprodução de desigualdade em nome da igualdade. Brasilia: UNESCO, 2006. CUNHA Jr, Henrique. “A indecisão dos pais face a percepção de discriminação racial na escola pela criança.” Cadernos de pesquisas Carlos Chagas, São Paulo, 1987. D’ ADESKY, J. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo: Racismo e antiracismo no Brasil. Rio de Janeiro, 2005. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. RevistAleph- ISSN 1807-6211

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FAZZI, Rita de Cássia. O drama racial das crianças brasileiras: socialização entre pares e preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? In: Revista Brasileira de Educação. Campinas: autores associados, 2002, v.21, p.40-51. ____________________. “Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade”. In: Cavalleiro, E. (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: Repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. O silêncio: um ritual pedagógico a favor da discriminação racial como fator de seletividade na escola pública de primeiro grau de 1º a 4ª série, 1987. JACCOUD, Luciana Barros e BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental/ Luciana de Barros Jaccoud e Nathalie Beghin. Brasília: IPEA, 2002. MÜLLER, Maria Lúcia Rodrigues e Paixão, Lea Pinheiro (orgs.). Educação diferenças e desigualdades. Cuiabá: EdUFMT, 2006. SANTOS, Ângela Maria. Vozes e silêncio do cotidiano escolar: as relações raciais entre alunos negros e não negros. Cuiabá: EdUFMT, 2006. SILVA, Maria Aparecida da. “Formação de educadores/as o combate ao racismo: mais uma tarefa essencial”. In: Cavalleiro, Eliane. Racismo e antiracismo na escola: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

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Experiências Instituintes

PRÁTICAS INSTITUINTES NA ESCOLA PÚBLICA: A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Elione Maria Nogueira Diógenes1 RESUMO Comunica uma experiência instituinte relativa ao projeto “Práticas de Educação em Direitos Humanos nas Escolas Públicas” cujo objetivo se configurou em estabelecer uma dinâmica instituinte na comunidade com base no saber emancipatório. Metodologicamente trabalhamos com a pesquisa-ação (THIOLENT, 2007) e chegamos à conclusão de que a escola pode se tornar um espaço de ruptura da lógica perversa de reprodução da violência. Palavras-chave: Experiência instituinte – Educação em direitos humanos – Violência. RESUMEN Comunica la institución de una experiencia en el proyecto “Práctica de la Educación en Derechos Humanos en las escuelas públicas”, que tiene por objeto establecer un conjunto dinámico en el que se establece basado en la comunidad emancipadora saber. Metodológicamente, se utilizó la investigación-acción (THIOLENT, 2007) y llegó a la conclusión de que la escuela puede convertirse en un espacio de ruptura de la lógica perversa de la reproducción de la violencia. Palabras clave: la institución de la experiencia - la educación en derechos humanos - la violencia.

Doutora em Políticas Públicas. Profa. Adjunta II do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atualmente é membro do Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos do estado de Alagoas. É líder do grupo de pesquisa Estado, Políticas Sociais e Educação Brasileira (GEPE) em que discute temáticas relativas à educação em direitos humanos. Contato: (82) 32141198 e (82) 96229866. E-mail: elionend@uol.com.br. 1

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PRÁTICAS INSTITUINTES NA ESCOLA PÚBLICA: A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS 1. Narrativas emergentes: o lugar da educação em direitos humanos Com o golpe de 1964 as garantias do Estado de direito são postas abaixo e em seu lugar instaura-se uma ordem que legitimou a violação dos direitos humanos, que só ressurge no quadro de questionamentos dessa mesma ordem. Levando em consideração essa nova realidade é possível afirmar

que

a

redemocratização

política

no

Brasil

trouxe

novas

configurações sociais no campo da educação que emergem e se fortalecem tanto mais se consolida a democracia, pois “(...) não há democracia sem respeito aos direitos humanos, assim como não é possível garantir quaisquer direitos fora do regime democrático.” (GENEVOIS, 2003, p. 9). Conforme Piovesan (2000) a temática dos direitos humanos é recente no Brasil. Entretanto, no cenário político e social tal abordagem nasceu no contexto das lutas das classes trabalhadoras em prol de melhoria de condições de trabalho e de vida. Assim, ao tratar de direitos humanos, hoje, referimo-nos a um amplo leque de direitos sociais que têm sido conquistados por meio da organização política da sociedade. Por isto que quando falamos de educação em direitos humanos referendamos um espaço amplo e lento de luta pelo respeito à dignidade do ser humano. Não é algo que diz respeito apenas à liberdade no campo abstrato, mas à forma humana de ser no interior das práticas sociais. Assim, essa dignidade é o valor mesmo da pessoa humana, por isso que não se pode destituir o humano de seu direito a uma vida digna. O caráter do humano enquanto tal relaciona-se com essa condição que lhe é intrínseca, indissociável da forma de se viver em sociedade. Em nome do poder seja ele qual for não se pode amputar o direito à existência enquanto um valor próprio (SARLET, 2002). O teólogo da libertação, Leonardo Boff (apud OLIVEIRA, 2005, p. 15) expõe muito bem tal questão ao colocar o ultraje à vida humana perpetrada pelo poder abusivo dos RevistAleph- ISSN 1807-6211

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aparelhos estatais no Brasil do regime de exceção no contexto da desigualdade social: Nada mais violento que impedir o ser humano de se relacionar com a natureza, com seus semelhantes, com os mais próximos e queridos, consigo mesmo e com Deus. Significa reduzi-lo a um objeto inanimado e morto. Pela participação, ele se torna responsável pelo outro e con-cria continuamente.

O fato de o Estado brasileiro assumir enquanto política pública de educação a formação em direitos humanos leva a pensar em duas questões: 1) os formuladores de políticas admitem a necessidade urgente de se inserir tal temática no currículo escolar; e, 2) a sociedade civil organizada está conseguindo adentrar o campo oficial da disputa em torno de tendências conteudísticas e atitudinais no que diz respeito ao que é importante ensinar e aprender na escola e fora dela. Sim. Porque não se trata só da educação formal, e sim da que também não é. O Plano Nacional da Educação em Direitos Humanos – PNEDH (BRASIL, 2007, p. 43) estabelece que a educação em direitos humanos tem como objetivo abordar

a perspectiva dos direitos humanos, visando a

promoção da autonomia e emancipação humana: A educação não-formal em direitos humanos orienta-se pelos princípios da emancipação e da autonomia. Sua implementação configura um permanente processo de sensibilização e formação de consciência crítica, direcionada para o encaminhamento de reivindicações e a formulação de propostas para as políticas públicas, podendo ser compreendida como: a) qualificação para o trabalho; b) adoção e exercício de práticas voltadas para a comunidade; c) aprendizagem política de direitos por meio da participação em grupos sociais; d) educação realizada nos meios de comunicação social; e) aprendizagem de conteúdos da escolarização formal em modalidades diversificadas; e f) educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser humano.

Em tal prisma, a educação não formal que se processa em diferentes espaços societais ganha expressão privilegiada e pode desenvolver a educação em direitos humanos atentando para questões como: sensibilização e mobilização políticas; capacitação e qualificação para o mercado de trabalho e o desenvolvimento de práticas pautadas no espírito de RevistAleph- ISSN 1807-6211

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solidariedade e companheirismo humano. Enfim, atitudes de respeito e de ajuda mútua devem e podem ser instauradas no âmbito da educação em direitos humanos promovidas em processos não formalizados de formação humana. Nesse contexto, o PNEDH (BRASIL, 2007) traz elementos preciosos para o entendimento dessa questão na ambiência escolar e fora dela, visto que “abriram-se novas oportunidades para o reconhecimento dos direitos humanos pelos diversos atores políticos” (idem, p. 21). A educação em direitos humanos assume as seguintes dimensões: a) historicidade da temática dos direitos humanos; b) defesa dos valores e crenças que defendem a cultura dos direitos humanos como ação cotidiana; conscientização política dos diferentes sujeitos sociais; d) intertextualização, interdisciplinaridade e contextualização

metodológica

na

abordagem

conteudística;

e,

e)

desenvolvimento da ética individual e coletiva de respeito aos direitos humanos. Quanto aos objetivos são assim abreviados: 1) fortalecer a educação em direitos humanos no sentido de consolidar o Estado Democrático de Direito; 2) ressaltar que os direitos humanos são essenciais na promoção de uma sociedade justa, equitativa e democrática; 3) estimular a sociedade na promoção de ações de fortalecimento aos direitos humanos; 4) efetivar a agenda de compromissos internacionais e nacionais que consolidam a política de educação em direitos humanos; 5) cooperar nacional e internacional na implementação de ações de educação em direitos humanos; 6) articular as ações constantes do PNEDH nos espaços institucionais e interinstitucionais; 7) prosseguir nas ações e propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) especialmente às que se referem a educação em direitos humanos; 8) nortear políticas educacionais voltadas à difusão da cultura de direitos humanos; 9) definir linhas de ação na área da educação em direitos humanos; 10) incitar o desenvolvimento de pesquisas acerca da educação em direitos humanos; 11) estimular a criação e o fortalecimento de instituições e organizações nacionais, estaduais e municipais na perspectiva da educação em direitos humanos; 11) delimitar o RevistAleph- ISSN 1807-6211

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ciclo de formação dos Planos de Educação em Direitos Humanos dos estados e municípios; e, 12) impulsionar o acesso às ações de educação em direitos humanos a pessoas com deficiência. Com esses objetivos a intenção do PNEDH é instituir de modo irreversível a cultura dos direitos humanos. Há que se perguntar: isto é possível? Sim. Mas não é fácil porque o Brasil tem secularmente naturalizado condições de opressão e dominação com base nas desigualdades sociais. Fundado sob o signo da escravidão africana e do massacre de populações nativas, o país ainda amarga dívidas históricas que insistem na inadimplência social. Poucas conquistas se têm. E as questões sociais sempre foram entendidas pelo Estado brasileiro como “caso de polícia”. Hoje a realidade é um pouco diferente, porém nem tanto. Discutir, pois, a temática dos direitos humanos na escola e fora dela tem sido um desafio. É o que se pode colocar como prática instituinte, tendo clareza que a travessia é longa e que muitas vezes poucos são os resultados positivos. Em tal perspectiva, vivenciamos uma experiência no campo da educação em direitos humanos em uma escola pública da rede estadual de educação de Alagoas. No próximo tópico é disto que tratamos. 2. O projeto e as práticas instituintes nas escolas públicas

Direitos Humanos é uma expressão que assusta! Esta é uma experiência no campo do conhecimento que vamos levar para as nossas vidas, em se tratando de discutir Direitos Humanos na escola pública em Maceió, capital de Alagoas, estado pobre do Nordeste, mas com uma das mais poderosas economias da atualidade. O projeto intitulado “Formação Continuada em Direitos Humanos para Professores do Ensino Médio” tem uma filosofia bem simples: introduzir a questão dos direitos humanos em sala de aula. O objetivo central foi exatamente este: debater em curso de formação voltado para

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professores a possibilidade de introduzir os Direitos Humanos como tema gerador de conhecimentos em sala de aula. De tal modo, o primeiro passo foi conversar com os responsáveis pela escola sobre a possibilidade de realização de tal curso. Fomos bem recebidos e conseguimos matricular em torno de 30 professores. O curso foi desenvolvido em forma de encontros quinzenais na própria escola onde debatíamos questões relacionadas com três perspectivas: teórica, prática e pedagógica. Muitos professores admitiram que não se sentiam à vontade para discutir a questão dos

direitos humanos na escola. Vejamos esse

depoimento que se constituiu (de certa forma) no sentimento da grande maioria dos professores entrevistados2:

Aqui é muito difícil tratar disto (direitos humanos). Há um sentimento de impunidade. Os bandidos são protegidos pela lei enquanto nós, cidadãos sofremos com o descaso das autoridades até mesmo na escola. Pelo depoimento percebemos que há uma distorção conceitual e política com relação ao termo. Em verdade, os professores não se sentiam dispostos a trabalhar com essa temática porque estavam assumindo uma concepção conservadora quanto a esse assunto. A mídia invade as casas das pessoas com cenas violentas de crime e assassinatos e deste modo validam a “caça aos bandidos” como se essas pessoas não fossem vítimas de uma sociedade perversa. Assim, o curso foi particularmente inovador, vez que não trouxemos fórmulas e receitas de como se trabalhar tal temática em sala de aula. Em verdade, estávamos juntamente com os professores aprendendo. Neste caso, deparamo-nos com uma narrativa marcadamente subjetiva, posto que, também nos fizemos parte “aprendente” do projeto.

Conversamos com 12 professores para compreender a perspectiva desses com relação aos direitos humanos e a educação em direitos humanos. 2

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De toda forma alertamos para o fato de que, aqui, o leitor vai encontrar um relato emergente de uma vivência na área dos Direitos Humanos e Educação em Alagoas que merece no mínimo uma reflexão coletiva, visto que muitas são as singularidades históricas, culturais e sociais que atravessam e que compõem o tecido existencial das pessoas que moram e educam nessa parte do Brasil. Aqui, não há ‘nada acabado’ no sentido de que as coisas se cristalizaram sem permitir outros olhares e vozes, mas a compreensão que norteia este relato é exatamente esta: “(...) muita coisa em nossa experiência não pode ser pronunciada de forma acabada (...)” (GOETHE, 2007, P. 22). Outra questão importante ao longo do desenvolvimento do projeto diz respeito à forma como as questões relativas à violência, ao desamparo estatal quanto à garantia dos direitos sociais (que são mais do que humanos) vieram à baila. Pelo depoimento abaixo constatamos a importância desse tipo de ação pedagógica:

Estou começando a compreender que essa temática (direitos humanos) também nos diz respeito. Isto é, somos parte dela, não podemos, pois consumir essa ideia de que só direitos para

bandidos. Afinal os direitos

humanos são também conquistas sociais e de luta dos trabalhadores. A desmistificação com relação à temática dos direitos humanos e da educação em direitos humanos foi possível mediada pela pesquisa-ação com base nas ideias de Michel Thiollent (2007) que foi o nosso guia procedimental. Desde o primeiro momento da realização do projeto até o seu término a pesquisa-ação norteou todo o desenvolvimento das ações. O intuito foi: propiciar aos professores um entendimento de seus problemas para que eles possam percebê-los e levantar alternativas que vão ao encontro de seus interesses pedagógicos.

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3. Olhar analítico sobre os resultados Alagoas é reconhecidamente um estado que tem sérios problemas no que toca a questão educacional voltada para o nível médio de ensino. Conforme Acioli (2003) Alagoas é um estado em “decadente situação econômica” (idem, p. 109). Com relação a esse nível de ensino, o Estado enquanto poder público somente assumiu sua função para com o ensino médio a partir da década de 1990 em que teve um crescimento de 100% nas matrículas em relação às outras redes: “Apesar do crescimento de 100%, observa-se que a rede estadual começa a apresentar um crescimento a partir do ano de 1998 (...)” (idem, p. 112). As unidades escolares onde o projeto está sendo desenvolvido localizam-se em bairros periféricos de Maceió com problemas de violência, de tráfico de drogas e alto índice de criminalidade juvenil, a saber: Clima Bom e Santos Dumont que têm, juntos, uma população de 61.650 habitantes, conforme dados do Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000). As escolas atendem alunos e alunas de classe social baixa em sua maioria. Foram entrevistados 12 professores que têm nível superior e podemos perceber que há um preconceito muito grande com relação a essa abordagem na sala de aula. Dos 12 professores entrevistados, 62% não têm qualquer conhecimento sobre tal temática. 58% acham desnecessário discutir tal questão, pois favoreceria a marginalidade e 45% veem com desconfiança tal temática. A preocupação central de nosso projeto é construir uma cultura favorável aos Direitos Humanos dentro das escolas, vez que essas são espaços de sociabilidade humana, que não raras vezes contribuem para o favorecimento ou não de uma pratica pedagógica fundada na valorização da dignidade humana. Assim causou-nos perplexidade, o fato de muitos professores guardarem ressalvas quanto à temática. É importante deixar

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claro que os direitos humanos, dizem respeito antes de qualquer coisa à vida e ao direito a ela, de forma plena e saudável. Uma das consequências sobre a falta de conhecimento dos próprios direitos é a impossibilidade de exercer o direito essencial que assinalou Hannah Arendt (1983): o direito a ter direitos. Os dados mostram que para a maior parte da população a democracia está reduzida a uma competição eleitoral. A mídia conservadora consegue manipular a mentalidade dos professores de forma que não raro se expressam da seguinte forma: direitos

humanos é coisa de bandido. Outra resposta interessante: deviam-se ensinar aos alunos os deveres e não os direitos. Apesar dessa resistência que entendemos ser fruto das distorções que o tema Direitos Humanos sofre na grande mídia compreendemos ser possível continuar com o projeto inclusive alargando-o para outras escolas. Sabemos também que o poder público local não tem contribuído muito para reversão dessa situação, pois há uma crescente dicotomia entre o projeto político pedagógico da Secretaria de Educação e a realidade social do povo alagoano. Há também uma ausência de políticas públicas voltadas para resolver as problemáticas da miséria e da situação de risco em que vive a grande maioria das crianças e dos adolescentes. Em suma, o nosso projeto tem demonstrado que há muito por fazer e poucos colaboradores. De todo modo, a escola é um espaço geofísico complexo e como tal precisa ser compreendida, pois, quem sabe a partir dela é possível transformar socialmente a dura realidade vivida?

4. Conclusão: desafios em jogo A realização do projeto “Formação Continuada em Direitos Humanos para Professores do Ensino Médio” foi de suma importância no sentido de que tomamos conhecimento com uma realidade profundamente complexa no RevistAleph- ISSN 1807-6211

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interior da escola pública alagoana, qual seja: a precariedade no que diz respeito às condições de trabalho dos docentes. Assim, a realidade nos instiga a entender que não podemos parar. Os Direitos Humanos é uma temática em construção! Tudo está ainda em caráter embrionário. Não é a realidade síntese de múltiplas determinações (Karl Marx, 1818-1883)? Para nós, sim. Esta só é compreensível por meio de infinitas aproximações cognoscitivas. Por isso é preciso ter clareza de que não acabamos o projeto, apenas começamos! Igualmente, sabemos que se fazem necessárias duas abordagens ao longo desse processo. Primeira: implantação de políticas de educação no sentido de formar permanentemente os professores no campo dos Direitos Humanos, tornando essa temática o princípio pedagógico por excelência da ação educativa. Segunda: garantia do direito de todos os cidadãos a uma educação de qualidade seja em qual nível ou essa ou aquela modalidade. Um amplo processo de garantia de direitos voltados especificamente para o campo educativo, com certeza, reverteria a atual condição de degradação humana a que está submetida considerável parcela da população alagoana. Pode ser utópico acreditar que isso pode ser possível. É que Os ‘fatos’, a cada nova abordagem, se apresentam como produtos de relações históricas crescentemente complexas e mediatizadas, podendo ser contextualizadas de modo concreto e inseridos no movimento maior que os engendra. A pesquisa, portanto, procede por aproximações sucessivas ao real, agarrando a história dos processos simultaneamente às suas particulares internas. (PAULO NETTO, 2004, p. 58).

Deste modo acreditamos que, antes de tudo o conhecimento é fundamental. E o conhecimento sobre os Direitos Humanos é condição sine

qua non para a conscientização em defesa dos mesmos. Em certo sentido é impossível defender algo que eu não conheço que eu não sei onde e como se origina, que eu não tenho como válido socialmente e constituído como histórico. Daí que os professores entrevistados ao falarem que direitos humanos é coisa de bandido e que as vítimas não têm direitos RevistAleph- ISSN 1807-6211

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estão nada menos nada mais que demonstrando desconhecimento de causa e do sentido da causa. Por isto que a formação continuada aqui se coloca como essencial vez que nos cursos de graduação de professores não se aborda tal questão. De modo que a compreensão dos direitos humanos no tempo e no espaço vai desvelar a verdadeira face desses qual seja: que diz respeito ao estatuto da humanidade, da garantia da vida e do viver, do viver e do amar, do amar e do ser feliz em uma sociedade que sistematicamente atravessa com uma lança os direitos básicos como saúde, trabalho e educação. O Estado Democrático de Direito no Brasil institucionalizou os Direitos Humanos, pelo menos em Lei. Agora, o que nos cabe? A defesa e a promoção dos mesmos. A vigilância cidadã no sentido de não permitir que se transforme essa conquista em uma conquista neutra, onde apenas subsiste o seu conteúdo em forma de retórica. A nossa prática inicial nesse projeto demonstra que os Direitos Humanos é um desafio porque a realidade nossa é ainda desigual e profundamente aniquiladora dos Direitos Humanos. Não

importa muito

para

as

pessoas no

atual

contexto

de

individualismo neoliberal o que ocorre com o outro, pois em geral o outro é visto como um inimigo em potencial, pois é o concorrente de uma vaga, de um ponto comercial, de uma falsa concepção de mérito. Nesse contexto, as cenas comuns assistidas, de forma assustadora, por todos são a negação dos direitos e o acirramento dos conflitos sociais, raciais

e

étnicos

que

provoca

uma

verdadeira

guerra

social

institucionalizada. É neste quadro que devemos e precisamos lutar pela vida e pelo direito de ter direitos seja em que circunstancia histórica vivamos. Trata-se de manter-se uma inflexível prevenção no âmbito da cidadania para garantir a defesa e preservação da liberdade humana: essa palavra que o “sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Entretanto, é a liberdade um sonho? É a liberdade um RevistAleph- ISSN 1807-6211

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fetiche? É a liberdade uma abstração? Pode ser que sim e acreditamos nisso, mais do que isto o ser humano almeja a liberdade para dela fazer sua bandeira em prol da dignidade humana que só será plenamente efetivada quando, enfim, os direitos humanos forem uma realidade universal.

Referências

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NETTO, José Paulo Marxismo impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. Fé e Política: fundamentos. São Paulo: Ideias e Letras, 2005. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de todos e para todos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. SARLET, Wolfgang Ingo . Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. THIOLLENT, Michel. A metodologia da pesquisa-ação. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

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Experiências Instituintes

O CINEMA E O ENSINO DE CIENCIAS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA Luiz Antonio Botelho Andrade1 Nelson dos Santos Moreira2 Antonio do Amaral Serra3 Resumo O presente artigo teve como objetivo a produção, a socialização e a aplicação de dois filmes educativos, de cunho científico, com vistas à melhoria do ensino de ciências. Os filmes foram produzidos numa perspectiva construtivista, com a participação efetiva de estudantes e docentes. Embora os filmes tenham sido amplamente socializados, no âmbito universitário eles foram aplicados em três disciplinas: Biologia do Conhecimento, Tópicos Especiais de Biologia e Evolução. No conjunto, nossos resultados mostram a viabilidade de se produzir material didático interdisciplinar, intercultural e lúdico no âmbito universitário, com a participação de atores amadores. Palavras chave: cinema; ensino de ciências; construtivismo, vida; autopoiesis. Summary The objective of the present article is to discuss the production, socialization and application of two educational films aiming at the improvement of science teaching. The films were produced in a construtivist perspective, with the effective participation of students and teachers. In addition to being widely socialized, the films were used in three disciplines: Biology of Knowledge, Special Topics of Biology and Evolution. Our results demonstrate the feasibility of producing ludic, interdisciplinary and intercultural didactic materials at the university, with the participation of amateur actors. Keywords: cinema, autopoiesis.

science

education,

constructivism,

life,

O CINEMA E O ENSINO DE CIENCIAS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA 1

Doutor em Immunobiologie - Universite de Paris VI (Pierre et Marie Curie). Professor Associado II da Universidade Federal Fluminense. 2

Professor de Química do Colégio Pedro II - RJ.

3

Mestre em Comunicação (UFRJ), Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Embora Jan Comenius, autor da Didactica Magna, tenha sido um dos pioneiros no uso da imagem para fins pedagógicos, por muito tempo este recurso didático foi encarado pelos educadores como secundário e complementar e, no juízo mais austero, como diversão, diversionismo ou meio de suprir as deficiências do professor. É bem certo que a contradição entre atenção/diversão teria que esperar por uma nova síntese nos tempos futuros e dependeria dos assuntos a serem ensinados e da área do conhecimento, em questão. Assim, por exemplo, a imagem que era indispensável aos estudos das belas artes passou a ser também fundamental ao ensino de anatomia e de história natural, sobretudo com a crescente qualidade da tecnologia gráfica. Para que Vesálio pudesse nos oferecer a visão inédita da intimidade do corpo humano em centenas de pranchas, na sua obra clássica intitulada “De Corporis Humani Fabrica” (1543), foi necessário ao autor um estágio no ateliê de Ticiano, assim como a colaboração de inúmeros discípulos daquele famoso pintor. Ao longo da história da educação, sobretudo no processo de ensino aprendizagem de ciências, não bastavam mais as palavras escritas e lidas pelo mestre, era preciso também que se pudesse visualizar aquilo que se nomeava. A aula antiga, calcada na leitura do tratado médico e na observação à distância dos movimentos dos cirurgiões barbeiros cortando cadáveres, foi substituída pela exposição pictórica do que se via. A valorização da iconografia deveu muito à Igreja e, já no século V, o Papa Gregório Grande, rebatendo argumentos iconoclastas, muito comuns na época, proclamou que as imagens têm a virtude de instruir iletrados, os ignorantes do latim e os analfabetos, para os quais “ver” o que está escrito nas Escrituras seria um meio poderoso de aprendizado. Foi graças ao apoio crescente da Igreja à iconografia religiosa que as artes da representação icônica (pintura, escultura e desenho) ganharam o impulso que, desde meados da Idade Média, delas fizeram um componente glorioso da cultura européia. Assim, não é de se estranhar a explosão criativa na produção artística que se avolumou e que ganhou expressão generalizada no RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Renascimento, retroalimentada pelo esmero do registro gráfico da imagem. Engenho e arte facultaram aos europeus se admirarem e deliciarem com os desenhos, ao mesmo tempo realistas e fabulosos, colhidos por viajantes das paisagens naturais e humanas das terras recém-descobertas. Com

a

invenção

e

o

progresso

dos

instrumentos

ópticos,

particularmente o microscópio e o telescópio, ampliou-se o pouco que se sabia do macrocosmo e descortinou-se o que era até então inimaginável - o microscomo. Para além das imagens produzidas, outra vertente contribuiu para relativizar o papel antes soberano da linguagem verbal. Ao recorrer à metáfora do livro, Galileu afirmou que o livro da natureza não é escrito à maneira literária, pois sua linguagem é a da matemática – o que, naquele momento, significava figuras geométricas. À medida que as fórmulas matemáticas começaram a ser utilizadas como expressão de leis universais e foi possível fazer previsões de acontecimentos astronômicos, a linguagem verbal comum, escrita ou falada, não conseguiu mais acompanhar, com a mesma

desenvoltura,

a

aceleração

cognitiva

das

ciências

e,

por

consequência, de seu ensino. Na contemporaneidade, consolidou-se o uso de instrumentos para intermediar o que era antes a interface entre a nossa visão desarmada e o objeto observado. Para aprofundar o conhecimento do microcosmo, inventouse a microscopia eletrônica. Para o estudo do macrocosmo, poderosos telescópios e outros tipos de sensores são lançados ao espaço nos fornecendo os dados com que compomos imagens computadorizadas de galáxias e outros corpos tão imensos e tão distantes que nossa concepção ordinária, de leigos, não consegue sequer mesmo imaginar. Para além desta intermediação tecnológica, a ciência foi institucionalizada, valorizada, arregimentou para si um grande número de pessoas, algumas das quais brilhantes, e passou a ser confundida com o próprio conhecimento. Porém, o acúmulo do conhecimento científico e a sua produção cada vez mais acelerada gerou um estranhamento desta nova realidade com o meio social, composto muitas vezes por contingentes humanos secularmente privados de expressão, de registros ou experiência sistemática para lidar RevistAleph- ISSN 1807-6211

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com estes conhecimentos. Isto foi percebido pelo próprio Galileu que, ciente do fosso que a sofisticação matemática imporia, inseriu os desenhos do que vira pelo telescópio como meio de ilustrar, informar e arregimentar o público em favor das descobertas dos cientistas, idéia que, sob outra forma, encontrou na Royal Society um sustentáculo notável com suas descrições sintéticas e ilustradas das experimentações. O diagnóstico deste problema – o fosso entre o que é produzido e o que é socializado – nos compromete a todos na atualidade, particularmente os educadores. Ainda que esta questão não tenha uma solução rápida, nem fácil, há de se utilizar de todos os recursos imaginários, criativos, includentes e instituintes, se quisermos caminhar na direção de uma sociedade mais justa e igualitária. Entre nós, no Brasil, merecem destaque duas iniciativas simultâneas, pautadas pela mesma avaliação e compromisso ético, apoiadas na modernidade tecnológica e levadas à cabo por uma mesma trinca de entusiastas. Estamos nos referindo a Edgar Roquette-Pinto, Humberto Mauro e Henrique Morize, os quais, sob a liderança do primeiro, deram os passos inaugurais e implantaram o radio educativo e o cinema educativo no Brasil. Roquete-Pinto trazia de suas viagens de antropólogo pelos fundões do Brasil os primeiros ensaios de uso da radiofonia e do registro cinematográfico de povos indígenas. Ele via o rádio como o veículo moderno capaz de abarcar a dimensão continental do país e de ensinar e motivar a educação de uma população predominantemente analfabeta. Assim, em 1922, Roquete-Pinto fundou a Rádio Sociedade do Rio de

Janeiro, emissora destinada precipuamente à educação e à propagação da cultura. Esta Rádio foi doada ao governo federal e transformada no que hoje é a Rádio MEC. Noutra vertente, o mesmo Roquette-Pinto convenceu o ministro Capanema e este conseguiu de Getúlio Vargas a criação, em 1936, do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), para cuja direção o antropólogo indicou o cineasta Humberto Mauro. Utilizando o formato do 16 mm - pois era o que permitia montar rapidamente uma exibição cinematográfica em qualquer sala escolar do Brasil - Humberto Mauro RevistAleph- ISSN 1807-6211

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realizou e promoveu a realização de quase uma centena de filmes didáticos, de cunho científico, socializados na rede escolar, tratando dos assuntos mais variados, inclusive de temas de medicina, área que rapidamente incorporou o cinema como instrumento não só de ensino como também de pesquisa. Infelizmente o INCE perdurou somente até 1947 e, desde então, o Brasil não possui um setor ou instância estratégica responsável em produzir, apoiar ou mesmo sistematizar a escassa produção deste gênero de filme. Considerando

o

grande

potencial

do

cinema

na

criação

de

representações coletivas e mitos urbanos e a lacuna existente na produção de filmes educativos de cunho científico no Brasil, decidimos nos aventurar na produção deste gênero de filme para utilizá-los como material didático no ensino de ciências. Para justificar tal empreendimento, partimos de duas constatações e de duas premissas, quais sejam: (a) o ensino de ciências está em crise e isto pode ser mensurado pelo fraco desempenho dos estudantes brasileiros nos testes do “Programme for International Student Assessment” (PISA) (Academia Brasileira de Ciências, 2008); (b) parte desta crise se deve à alienação dos estudantes frente aos conteúdos científicos que lhes são apresentados de forma monótona e descontextualizada (Bizzo, 2009); (c) “tanto na ciência, como na arte, o que buscamos é um elo com o mundo” (Bachelard, 1989) e (d) este elo pode ser facilitado e fortalecido pelas atividades lúdicas, como o cinema (Duarte, 2006). O ensino, definido como uma relação entre educandos e educadores, na acepção de Paulo Freire (1998), se alimenta da conexão e intercambio de saberes. Esta rede de saberes e de conversações (Maturana, 1992) entrelaça tanto os conhecimentos técnicos e científicos, particularizados aqui na produção cinematográfica de cunho educativo, quanto os saberes que dão suporte a estas atividades complexas, interdisciplinares, multidimensionais, que caracterizam o fazer cinema. Atualmente, são inúmeras as iniciativas visando aproximar os campos da ciência com as diferentes formas de expressão artística. São contextos de criação nos quais as metáforas são bem vindas como ferramentas poderosas para potencializar a cognição e a sensibilidade. A RevistAleph- ISSN 1807-6211

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arte, como um processo de produção criativa e simbólica, é geradora de múltiplos questionamentos acerca da comunicação, em seu sentido lato, e compartilha, com a ciência, um fundamento essencial - a criatividade. Como um fenômeno cultural complexo, as manifestações artísticas possibilitam experimentações mais livres nos processos comunicativos, produzindo novos conteúdos, valores e signos. Considerando a potencialidade da arte, tanto no campo produtivo – uso de materiais tradicionais e das novas mídias, em interfaces intercambiáveis – quanto no campo emocional e afetivo, com arranjos singulares e diálogos inusitados entre a técnica, a estética e a poética – é possível revisitar certos conteúdos científicos (discursos e práticas), considerados densos, descontextualizados e herméticos, para torná-los mais palatáveis e mais próximos da realidade dos estudantes. Revisitar conteúdos de aprendizagem, na perspectiva que estamos propondo, implica que tanto os docentes quanto os discentes possam aprender e exercitar, em situações concretas, todo o processo de decodificar, resignificar e contextualizar os conteúdos de aprendizagem. Acreditamos que este processo possa gerar uma transformação radical no conceito de ensinar, que passa da idéia equivocada de instrução, de memorização, para a de construção. O mais fundamental deste processo, no entanto, não é o produto (os filmes) mas a mudança que se espera na relação entre os estudantes para com o objeto, de uma passividade imobilizada e imobilizadora, para uma interatividade criativa e apropriação intelectual do objeto de estudo. Esperamos que o trabalho produzido no coletivo deixe de ser o antigo objeto do olhar contemplativo, algumas vezes alheio e desinteressado, para converter-se em práxis operacional que insere o sujeito numa situação de experimentação inédita, enriquecida pela possibilidade de integrar outros registros

da sensibilidade

corporal

na invenção

do

produto

novo.

Acreditamos que este produto novo e o processo de sua produção é, em si mesma, uma genuína construção do conhecimento no universo escolar. É importante ressaltar que este processo não é trivial, posto que exige muito trabalho individual e coletivo, e não deve ser entendido como uma

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simplificação caricatural da atividade científica ou do papel, supostamente secundário, do professor no processo do ensino-aprendizagem. Destarte, o que está se propondo é uma aposta em novos caminhos pedagógicos possíveis (que já vem sendo testados, com sucesso, em diferentes contextos educacionais), com vistas a tornar os conteúdos científicos mais palatáveis e mais integrados, posto que eles são passíveis de serem racional e emocionalmente re-elaborados, e mais integradores, posto que no processo de decodificar, re-significar e contextualizar, o objeto de estudo se revela mais interdisciplinar e o produto final, seja ele uma redação, relatório, roteiro, filme ou peça teatral - é sempre um construto coletivo, o que faz da educação e do conhecimento uma verdadeira aventura sócio-histórica mas, também, prazerosa. Nesta perspectiva, traçamos três grandes objetivos para a realização de nossa proposta pedagógica, levada à cabo na Universidade Federal Fluminense: (a) produzir filmes educativos de cunho científico, envolvendo os próprios estudantes na criação e produção; (b) socializar os filmes de forma ampla e gratuita e (c) aplicá-los no ensino formal. Ainda que de forma não linear, a realização de nosso trabalho seguiu as seis etapas enumeradas a seguir: 1a) Envolvimento dos estudantes e docentes no processo de escolha de conteúdos de aprendizagem desafiadores do ponto vista educacional e lúdico, com vistas à produção dos filmes educativos; 2a) Produção de roteiro literário e técnico a partir da pesquisa bibliográfica, decodificação e resignificação de conteúdos educacionais; 3 a) Captação de recursos financeiros junto às agencias de fomento e/ou fundações educacionais; 4a) Construção de cenários, ensaio de elenco e produção de imagens e cenas; 5a) Produção, divulgação, distribuição e socialização dos filmes em Portal apropriado, como o Vimeo e 6a) Aplicação dos filmes em espaços educacionais formais e informais. Partindo de nossa experiência didática com estudantes de biologia, decidimos abordar dois temas inter-relacionados: o conceito biológico de vida e a origem da vida (Andrade & Silva, 2003 a e b). A escolha do primeiro

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tema se deveu a uma ausência, quase que completa, de material didático específico sobre o conceito biológico de vida. A escolha do segundo – a origem da vida – se deveu a duas razões principais: uma relacionada à riqueza deste tema para o ensino de ciências – uma questão aberta, plena de hipóteses explicativas; a outra relacionada ao tensionamento provocado pelas concepções prévias de matiz religioso no campo laico da educação que, se não forem bem conduzidas pelo professor, se tornam um obstáculo para o livre pensar. A participação voluntária e gratuita de mais de 200 estudantes universitários e secundaristas - na produção de nossos dois filmes é o melhor indicador do envolvimento do corpo discente. Considerando que 98% destes participantes nunca estiveram na frente de uma câmera e o roteirista e diretor não é um cineasta profissional, nosso trabalho é, assumidamente, amador. Apesar deste amadorismo ter dificultado a realização de algumas cenas, ele nos proporcionou uma maior liberdade na criação, posto que as exigências, cobranças e expectativas eram menores. Há de se ressaltar, no entanto, que isto é válido somente durante o processo de criação. Quando o filme é divulgado pela mídia, a qualidade do filme (imagens, som e conteúdo) torna-se o fator preponderante para o sucesso ou insucesso do empreendimento – a aceitação do público. O primeiro filme, intitulado “Quem foi que disse: sobre a vida e o viver” (Filme 1), com 55 minutos de duração, foi realizado durante o ano de 2008 e divulgado a partir de 2009. Ele pode ser visto integralmente no Vimeo (http://vimeo.com/28168576). O segundo filme, intitulado “Quem foi que disse: sobre a origem da vida” (Filme 2), com 38 minutos de duração, realizado em 2010, está disponível no Vimeo (http://vimeo.com/28032795). Considerando que a nossa produção é marcada pela polifonia e pelo convite à reflexão, fizemos da pergunta “quem foi que disse?” nossa marca. Com ela chamamos atenção para a importância do observador. Quem diz? Um observador. Para quem? Para outro observador. Sobre o que? O tema a ser apresentado e discutido. Assim, quem foi que disse deixou de ser parte do título de um filme para se transformar em uma série educativa. Neste RevistAleph- ISSN 1807-6211

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contexto, as perguntas e os argumentos produzidos nos diálogos são mais importantes do que as respostas prontas e acabadas. Assim, na discussão entre religião e ciência, por exemplo, tentamos mostrar que a questão principal não é vencer ou “derrubar” os argumentos religiosos com fatos científicos ou, de outro modo, “subjugar”, pelo racionalismo científico, a crença religiosa de uma criação divina. Para nós, o melhor encaminhamento para este debate é mostrar aos estudantes e ao público em geral que os discursos destes dois sistemas de conhecimento, religião e ciência, são diferentes, seja pela forma pela qual eles são construídos, seja pelos critérios de validação de suas proposições (cenas: 43’35” a 47’20” do Filme 1; 34’40’’ a 37’ do Filme 2). Com relação aos conteúdos científicos, procuramos ressaltar a importância dos conceitos, a contextualização histórica das perguntas (Figura 1), e a criação de modelos e alegorias para conceitos mais densos, de difícil compreensão como, por exemplo, a auto-catálise de Kauffman (1995) (cenas: 29’30” a 31’55” do Filme 2) e a autopoiesis de Maturana (1970) (cenas: 37’26” a 39’15” do Filme 1; 32’ a 34’37” do Filme 2).

Figura 1 – “Stanley Miller” simulando a atmosfera da terra primitiva / Filme 2

Várias estratégias foram utilizadas para divulgar e socializar os conteúdos dos dois filmes da série educativa “quem foi que disse?”. Assim,

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foram produzidos e distribuídos cerca de 1000 cópias DVD para os atores, professores e instituições escolares. Seguindo o mesmo objetivo de socialização, os filmes foram postados, na íntegra, no Portal do Vimeo e vinculados, através de links, às redes sociais e a um blog educacional de mesmo nome (http://quemfoiquedisse.blogspot.com.br/). Para além desta divulgação na internet, nossos filmes foram veiculados na TV Universitária da Universidade Federal Fluminense (http://www.uff.br/uniteve/), no Teatro desta mesma Universidade e em diversos colégios da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Figura 2- Participantes do Filme 2, em pré-estreia do filme realizado no CIEP 122 / SG

Não dispomos dos registros da aplicação de nossos filmes nos diferentes contextos da educação formal ou não-formal no Brasil. É possível fazer, no entanto, um breve relato das experiências de uma comunidade virtual de práticas - a ComPratica - coordenada pelo Professor Charbel ElHani, da Universidade Federal da Bahia (El-Hani & Greca, 2011) e de

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algumas experiências realizadas no seio de nossa própria Instituição, a Universidade Federal Fluminense (UFF). Assim, na comunidade virtual de prática, pensada e criada como uma ferramenta para diminuir a lacuna existente entre a pesquisa e a prática docente na sala de aula, os vídeos da serie educativa “quem foi que disse” foram utilizados como um desafio na preparação de planos de aula (http://www.moodle.ufba.br/mod/forum/discuss.php?d=18531&parent=3090 57). Na Universidade Federal Fluminense, o filme “Quem foi que disse: sobre a vida e o viver” foi apresentado e discutido na disciplina de Evolução pelo Prof. Edson Pereira da Silva (EPS), abrangendo um contingente de 80 estudantes do Curso de Graduação em Biologia e nas disciplinas de Biologia do Conhecimento e Tópicos Especiais em Biologia, ministradas pelo Prof. Luiz Andrade (LA), abrangendo cerca de 200 estudantes do referido Curso. Na disciplina de Evolução, o filme foi utilizado para suscitar discussões específicas como, por exemplo, as ideias de transformismo e progresso, muito arraigadas nas concepções prévias dos estudantes. Para além destas discussões, o Prof. EPS aplicou um questionário, com questões específicas, para avaliar a compreensão dos estudantes da disciplina de Evolução em relação ao conteúdo do Filme 1. A avaliação e quantificação das respostas dos estudantes, em relação a um gabarito previamente definido, permitiu mensurar o nível de compreensão dos estudantes para as questões formuladas. Quando as respostas para estas questões foram analisadas no seu conjunto, os estudantes (41) da turma de 2009 ficaram com média geral 9,19 (conceito A) e os estudantes (39) da turma de 2010 ficaram com média geral 8,74 (conceito B). Nas disciplinas “Biologia do Conhecimento” e “Tópicos Especiais de Biologia”, ambas ministradas pelo Prof. LA, os filmes são utilizados para suscitar discussões em torno dos conceitos de vida, autopoiese, organização biológica, clausura operacional e linguagem. O Filme 2 é utilizado para apresentar e discutir o conteúdo relativo à origem da vida. De uma forma geral, buscamos as concepções prévias dos estudantes para análise e RevistAleph- ISSN 1807-6211

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desenvolvimento de estratégias pedagógicas e, na seqüência, os filmes são apresentados pausadamente, ressaltando-se as cenas que exigem maiores explicações ou que vão de encontro às concepções prévias dos estudantes, previamente identificadas e analisadas. Quanto à aceitabilidade dos dois filmes pelos estudantes e pelo público, podemos afirmar que ela é maior no público mais adulto do que na juventude, acostumada com os filmes de ação. A parte isto, nossos filmes têm sido elogiados por professores do ensino médio e universitário, dentro e fora

do

Estado

do

Rio

de

Janeiro

(http://www.moodle.ufba.br/mod/forum/discuss.php?d=18531) e por setores científicos

e

educacionais,

como

a

própria

(http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=7687) Ciência

Hoje

e

FAPERJ o

Instituto

(http://cienciahoje.uol.com.br/alo-

professor/intervalo/2011/12/luz-camera-ciencia). O nosso trabalho mostra que é possível produzir material didático interdisciplinar, intercultural e lúdico em ambiente universitário, através da arte cinematográfica. Contando com o apoio institucional, é possível construir cenários e envolver estudantes e docentes nas produções cinematográficas, mesmo que eles sejam amadores. Esta experiência construtivista, vivenciada junto aos nossos colegas docentes e graduandos, desmistifica a exclusividade da linguagem cinematográfica para o uso de poucos iniciados e o próprio uso da técnica, cada vez mais facilitada e socializada pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Podemos concluir, também, que o filme educativo é um bom recurso didático para o ensino de ciências, especialmente nas situações em que ele é utilizado com objetivos pedagógicos claros e, fundamentalmente, quando o seu conteúdo é bem discutido e avaliado. Em síntese, nosso trabalho sinaliza a importância de se produzir e de se utilizar filmes educativos nacionais como recurso didático, sem abrir mão, no entanto, da supervisão de um docente, posto que todo filme, para além do seu conteúdo científico, estético e poético é, também, portador de

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mensagens

politico-ideológicas

que

devem

ser

decodificadas

pelos

professores e estudantes.

Notas e Agradecimentos Parte deste texto foi apresentado no “International Conference of New Horizonts of Education”, realizado em Praga, Republica Checa, em junho de 2012. Os autores são, respectivamente, professores do Instituto de Biologia da UFF, do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro e do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF. Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), às Pró-Reitorias Acadêmicas da Universidade Federal Fluminense (PROPPI e PROEX), à Fundação de Educação de Niterói (FME Niterói) e ao Espaço UFF de Ciências. Agradecemos aos estudantes do Ensino Médio e Universitário que, com muito entusiasmo, compartilharam conosco desta construção coletiva. Agradecemos também a participação e colaboração dos seguintes docentes: Alfredo Teixeira, Alphonse Kelecom, Carlos Alberto Andrade, Cicero Mauro Fialho Rodrigues, Claudia Marcia Borges Barreto, Edson Pereira da Silva, Elizete Mascarenhas, Fernando Silva, Guerlinde Agate Platais Brasil Teixeira, Gutemberg Gomes Alves, José Henrique Antunes, José Raymundo Romêo, Mauricio Afonso Vericimo, Rafael Pessoa Sao Paio, Saulo Bourguinon, Sidney Augusto Vieira Filho e Waldeck Carneiro.

Referências Academia Brasileira de Ciências (2008). O ensino de ciências e a educação básica: propostas para superar a crise. Academia Brasileira de Ciências – Rio de Janeiro. Andrade, L. A. B. & Silva, E. P. (2003a) O que é vida? Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v.32, pg 16-23 Disponível em:> http://www.lnh.ufsc.br/PDF/vida.pdf<Acesso em 30 de março de 2012. Andrade, L. A. B. & Silva, E. P. (2003b). Metálogo: Vida, cotidiano e linguagem. Revista de Psicologia Clínica 15(1):29-43. Andrade, L.A.B. & Silva, E.P. (2005) O conhecer e o conhecimento: comentários sobre o viver e o tempo. Ciências & Cognição 4:35-41. Disponível em: >http://www.cienciasecognicao.org/< Acesso em 20 de março de 2012. Bachelard, G. (1989) A Água e os Sonhos - Ensaio sobre a imaginação da matéria. Martins Fontes, São Paulo. Bizzo, N. (2009) Ciências: fácil ou difícil? Editorabiruta, São Paulo. Cunha, M. B & Giordin, M (2009) A imagem da Ciência no Cinema. Química Nova na Escola 31(1). Disponível em:

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Experiências Instituintes

NARRATIVAS COMPARTILHADAS: DEMOCRATIZAÇÃO DA LEITURA LITERÁRIA

ADRIANA BITTENCOURT GUEDES 1

Resumo O artigo propõe uma reflexão sobre a força do discurso político do professor em sala de aula, e em todo o espaço escolar, a partir da democratização da leitura literária como fonte inesgotável de conhecimento, provocação do pensamento subjetivo e criação. Criação como resistência ao mecanicismo superficial da língua e da sociedade e como um movimento instituinte de construção de diferentes pensamentos. Palavra-chave: leitura literária, criação, resistência, formação de professores e reconstrução do espaço escolar, movimentos instituintes.

Abstract The article proposes a reflection on the strength of the political discourse of the teacher in the classroom and around the school area, from the democratization of literary reading as an inexhaustible source of knowledge, thought provoking subjective and creation. Creation as surface resistance mechanism of language and society and as a movement instituting construction of different thoughts. Keywords: literary reading, creating, strength, teacher training and reconstruction of the school, instituting movements

1

Doutora em Literatura Comparada pela UFF, Pos Doc em Educação na UFRRJ (em curso), membro do grupo “Devires da Baixada Fluminense” da UFRRJ, sob a orientação da professora Célia Linhares.

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NARRATIVAS COMPARTILHADAS: DEMOCRATIZAÇÃO DA LEITURA LITERÁRIA

Leite, leitura letras, literatura, tudo o que passa, tudo o que dura tudo o que duramente passa tudo o que passageiramente dura tudo, tudo, tudo não passa de caricatura de você, minha amargura de ver que viver não tem cura Paulo Leminski

1. Introdução A marca histórica de nossa humanidade é a transmissão de experiências, não apenas aos que estão próximos de nós, em uma rotina transbordante de sinais, atividades e trabalho, como também para quem vive muito longe, distante no tempo e no espaço. Para além dos limites da oralidade, a humanidade precisou da escrita para avançar em suas redes sociais, registrar suas aventuras, criar outras e seguir tecendo memórias dessa caminhada. A partir do século XV, a civilização ocidental avançou rapidamente para se constituir como cultura grafocêntrica. O texto escrito passa a ocupar a cena social e histórica, estimulando o desejo de acesso à leitura como um bem incondicional de nossa civilização. Alberto Manguel em seu livro, Uma história da leitura (1997), inicia cada um dos capítulos com uma reflexão sobre como as travessias coletivas, realizadas pela humanidade, se estruturam em experiências individuais que se potencializam no humano. Manguel toma depoimentos de grandes escritores e de sua relação com a leitura e evidencia como essa rede é formada por “imagens, frases, situações e pensamentos que vêm de muito RevistAleph- ISSN 1807-6211

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longe.” Tomemos nós aqui a Graciliano Ramos, inspirados por tese de doutoramento da professora Márcia Cabral (s/d). Em Infância (escrito em 1945, reeditado em 1993), seu romance de memórias, Graciliano Ramos revela o quanto foi árdua a sua experiência de criança, nos fins do século XIX e início do século XX, vivida praticamente no interior de Alagoas. Primogênito de um casal sertanejo de classe média, cresce em meio a muitos irmãos, distanciado de afeto, aventuras e peraltagens infantis. Em

meio

a

muitas

adversidades

-

ambiente

cultural

incompreensível, tensas relações familiares, debilidade física - têm início as suas primeiras experiências com a leitura: Minha mãe lia devagar, numa toada inexpressiva, fazendo pausas absurdas, engolindo vírgula e pontos, abolindo esdrúxulas, alongando ou encurtando palavras. Não compreendia bem o sentido delas. E, com tal prosódia e tal pontuação, os textos mais simples se obscureciam. (Ramos, 1993, p. 63).

Na escola, espaço vazio de afeto e vida, a relação com a leitura parece não ter sido favorecida também. O lugar de estudo era cinco horas de suplício que escola primária do aterraram. Abandonei moscas me comessem. (Ramos, 1993, p. 188)

isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: uma crucificação (...) Não há prisão maior do interior.A imobilidade e a insensibilidade me os cadernos e auréolas, não deixei que as Assim, aos nove anos ainda não sabia ler.

A leitura começa a fazer sentido para Graciliano quando a palavra feminina, marcada pela voz de sua prima Emília, transforma seu meio tão adverso – familiar e escolar – em uma nova aventura recoberta e inaugurada pelo afeto: Era necessário que a priminha lesse comigo o romance e me auxiliasse na decifração dele. Emília respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que não me arriscaria a tentar a leitura sozinho? Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam (...) Emília combateu a minha RevistAleph- ISSN 1807-6211

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convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu (...) E tomei coragem, fui esconderme no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas percorridas. E as partes que esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa, vagarosamente (Ramos, 1993, p. 190, 191).

E assim percebemos como vai se formando o leitor Graciliano e suas tramas solitárias, como memórias do cárcere, histórias incompletas, inspiradas por uma leitura criadora e transformadora: o leitor é antes de tudo um corajoso. Ler é uma atividade que está a serviço de quem tem diferentes intensidades de poder. E aí reside a sua força, apresentar o mundo informativo ou inventado a todos, em sua transparência ou opacidade, em seus entrelaces objetivos ou subjetivos, em sua danação ou redenção: “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (Freire, 1985, p.11). O escritor, em que se transformou Graciliano, guarda o leitor em espanto que formou sua narrativa. A leitura, especialmente a literária, pode criar resistências e deter a automatização da linguagem, muitas vezes causada pela repetição vazia, de ideias igualmente vazias, fruto de uma sociedade espetacular e especular de consumo e devoração. Sonho é, como nos sugere Paulo Leminski, em epígrafe, promover a mistura entre o leite, a leitura, as letras e a literatura, numa sinfonia democrática entre as necessidades e as realizações, já que viver não tem cura.

2.

Principais conceitos As experiências na escola pública brasileira, felizmente, são muitas

e diferentes. Há inúmeras atividades nos espaços escolares que se aliam a preocupações éticas de valorização da autonomia, da heterogeneidade, dos costumes de uma comunidade e que, sutilmente, vão agregando sonhos e

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somando delicadezas; ações que inauguram, pouco a pouco, uma nova realidade escolar, e a leitura literária é uma delas. O leitor se constrói na experiência do indivíduo que tem, em seu meio, a leitura como ação presente e necessária à vida, motor que desejamos que impulsione redes sociais mais justas, e a criação, como resistência e epifania. A alfabetização, o letramento e o pleno acesso à leitura se constituem, no século XXI, como indicadores e valores necessários à construção e reconstrução permanentes de uma sociedade. É fundamental que o acesso democrático à leitura seja uma política do Estado brasileiro, mas também de todos nós, que acreditamos na força instituinte dos movimentos que carregam em suas orientações e metas o desejo de transformar, de resistir, criando. Quando falamos sobre a importância da leitura literária nas casas, nas escolas e nas bibliotecas de todo o país, estamos reconhecendo seu potencial transformador e democrático. Mas precisamos esclarecer sobre quais

conceitos

de

leitura

estamos

falando.

Alguns

estudiosos,

pesquisadores, escritores e intelectuais marcam a história da leitura no nosso país e norteiam caminhos possíveis para o processo de sua democratização.

2.1.

Ler e escrever: uma construção A

prática

alfabetizadora

do

início

do

século

XX

era

predominantemente mecanicista e calcada na convicção de que para cada som da fala há uma letra e para cada palavra, um conjunto de letras. Sob tal convicção, o ato de alfabetizar assumia que a simples transposição de códigos (oral e escrito) seria bastante para capacitar o indivíduo a construir e interpretar mensagens. Paulo Freire (1921-1997), o mais célebre educador brasileiro, defendia como objetivo da escola ensinar o aluno a “ler o mundo” para poder transformá-lo. Conhecido pela sua participação política e por sua forma RevistAleph- ISSN 1807-6211

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inovadora

de

pensar

a

educação,

principalmente

pelo

método

de

alfabetização de adultos que leva seu nome, ele desenvolveu um pensamento pedagógico coerentemente e assumidamente político. Para Freire, o objetivo maior da educação é conscientizar o aluno. Isso significa, em relação às parcelas desfavorecidas da sociedade, levá-las a entender sua situação de oprimidas e agir em favor da própria libertação. O principal livro de Freire se intitula justamente Pedagogia do Oprimido e os conceitos nele contidos baseiam boa parte do conjunto de sua obra. Freire foca sua reflexão no fato de que o aluno, alfabetizado ou não, chega à escola levando uma cultura que não é melhor nem pior do que a do professor ou da professora. A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. (Freire, 1987- P.22)

Em sala de aula, os dois lados poderão aprender um com o outro, a partir de relações construídas de forma afetiva e democrática, garantindo a todos a possibilidade de se expressar. O processo de alfabetização, portanto, deve acontecer relevando situações de vida significativas para os integrantes da comunidade em que se atua para que possa revelar, além da decifração da palavra, o seu sentido, de modo amplo e sensível: Me parece indispensável, ao procurar falar de tal importância (do ato de ler), dizer algo do momento mesmo em que me preparava para aqui estar hoje; dizer algo do processo em que me inseri enquanto ia escrevendo este texto que agora leio, processo que envolvia uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. (Freire, 1983, p11)

Paulo Freire quando se refere a sua famosa expressão "ler o mundo", explica: "Trata-se de aprender a ler a realidade (conhecê-la) para em seguida poder reescrever essa realidade (transformá-la)" (1987). A alfabetização é, para o educador, um modo de os desfavorecidos romperem o

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que chamou de "cultura do silêncio" e transformar a realidade, "como sujeitos da própria história". Em meados dos anos 1980 a psicolinguista argentina Emilia Ferreiro, e a divulgação de seus livros no Brasil, causou também um grande impacto sobre a concepção que se tinha do processo de alfabetização, influenciando as próprias normas do governo para a área, expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais. As pesquisas de Emilia Ferreiro, que estudou e trabalhou com Piaget

(1896-1980),

concentram

o

foco

nos

mecanismos

cognitivos

relacionados à leitura e à escrita. De maneira equivocada, muitos consideram o construtivismo um método. Tanto as descobertas de Piaget como as de Emilia levam à conclusão de que as crianças têm um papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio conhecimento daí a palavra construtivismo. A principal implicação dessa conclusão para a prática escolar é transferir o foco da escola e da alfabetização, em particular, do conteúdo ensinado para o sujeito que aprende, ou seja, o aluno. Se uma criança não chegou de fato a compreender que um dos fundamentos da escrita alfabética é a relação letra-fonema, essa informação não lhe servirá de nada se for apenas transmitida e não construída. Conhecer o nome das letras é necessário para poder ler e escrever, mas há todo um processo de reconstrução do sistema de escrita que ultrapassa o conhecimento das letras. Da mesma maneira, ler é muito mais que sonorizar as letras e relacioná-las aos aspectos da fala, pela simples razão de que nosso sistema de escrita não representa apenas sons, mas também outras questões vinculadas ao significado. Aceitar que a criança pode ler ou escrever de diferentes formas, sem ter de passar obrigatoriamente pelo domínio do código, significa reconhecer que ela pode gerar conhecimentos próprios e complexos sobre a escrita, não se limitando ao reconhecimento da letra ou ao

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tipo de unidade (letra, sílaba, palavra, frase), uma vez que já traz um repertório ao entrar na escola. É de fundamental importância, para Emilia Ferreiro, a leitura de textos literários, o que apresenta como uma aprendizagem inteligente, com agudo aprofundamento sobre o pensamento mais reflexivo e criador. O livro confirma que, ao trazer um novo panorama para a educação, essas práticas precisam de profissionais preparados para lidar com elas. É, portanto, a partir de uma história da leitura (de seu passado) que se pode compreender e atuar sobre as formas do presente, em toda a sua complexidade No Brasil, Magda Soares, por volta dos anos de 1990 aprofundou a discussão com o livro Letramento: um tema em três gêneros (2005) e considera o letramento “um conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”. Nesse sentido, o letramento é visto como um fenômeno cultural que abrange uma série de atividades sociais que envolvem não só a língua escrita como também as exigências sociais de seu uso. O conceito de alfabetização para Magda Soares é restrito, refere-se apenas ao aprender/ensinar a ler e escrever, ao domínio do código, no que discorda Emília Ferreiro que luta para que o termo alfabetização não se esvazie e se divida com letramento. Para Emilia Ferreiro alfabetizar é potencializar o indivíduo com o código, mas também com a força e a dimensão dos usos sociais que este código traz como ato transformador para sua vida. Apesar da divergência nos usos das nomenclaturas alfabetização e

letramento o que se evidencia é que tanto Emilia Ferreiro quanto Magda Soares propoem o mesmo caminho: a língua materna lida, escrita, compreendida e interpretada em todas as suas variações e possibilidades de uso sociais e culturais.

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2.2.

Leitura literária aqui, ali, em qualquer lugar Antônio Cândido em artigo intitulado “O direito à literatura” (2004)

nos apresenta a literatura da forma mais ampla possível: todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações (2004). E assim como nos apresenta, ela aparece como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos e em todas as sociedades e nos garante que não há homem que possa viver sem alguma espécie de fabulação: E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. (...) Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. (Cândido, 2004 p. 174/175)

Também Tzvetan Todorov (2009) nos convoca a pensar sobre a importância do discurso literário: Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. (...) Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incitanos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano. (Todorov, 2009 p. 23/24)

Sobre pensar a literatura como entretenimento, Luiz Percival Leme Britto (2008), professor e pesquisador de língua e literatura, nos alerta: Na lógica da existência moderna o tempo do entretenimento é o tempo de consumo ligeiro, o tempo em que, supõe-se, ficamos sem responsabilidades. Tempo de distração, evasão e gozo imediato. Há, portanto, um conflito indissolúvel entre a literatura que se faz para RevistAleph- ISSN 1807-6211

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conhecer a vida e a literatura para o simples entretenimento, sem compromisso existencial, em que se busca a satisfação e, em certa medida, o esquecimento. (Britto, 2008 p. 99)

A leitura literária se

constitui num fator de liberdade e

transformação: com uma permanente circulação de percepções e indagações, de uma pessoa, ou de muitas, a literatura faz com que pensemos na vida, nos modos de ser e estar no mundo. A literatura, para além do entretenimento sobre o qual nos alerta Luiz Percival, se faz como resistência contra os estereótipos e luta por uma educação melhor, como nos ensina a escritora Ana Maria Machado (2001): A literatura – infantil, juvenil, adulta ou senil, esses adjetivos não têm a menor importância – é constituída por textos que rejeitam o estereótipo. Ler literatura, livros que levem a um esforço de decifração, além de ser um prazer, é um exercício de pensar, analisar, criticar. Um ato de resistência cultural. Perguntar “para onde queremos ir?” e “como?” pressupõe uma recusa do estereótipo e uma aposta na invenção. Pelo menos, uma certa curiosidade diante de uma opinião que não é exatamente igual à nossa – e o benefício da dúvida, sem a convicção do monopólio da verdade. Só a cultura criadora, com sua exuberância, pode alimentar permanentemente essa variedade pujante e nova. E só a educação pode dar elementos para distinguir com clareza os protótipos dos estereótipos. (Machado, 2001 p. 88).

2.3.

O texto como avenida O caminho para a modernidade foi (e vem sendo) construído pela

incontida vontade do indivíduo de buscar sempre novas e ilimitadas possibilidades - ultrapassando fronteiras - de ampliar o conhecimento e avaliação sobre as suas conquistas diante de um projeto que não se poderia frear. A industrialização, as novas formas de produção capitalista, a dinâmica de aceleração das informações vão imprimindo uma realidade que supera um modo de convívio enraizado nas experiências coletivas e inaugura uma realidade solitária, de vivências que se resolvem num espaço burguês “privado”, atestando o declínio do encontro, muitas vezes, impossível com o outro.

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A linguagem artística nos inclina a ver uma verdade que se apresenta na força ficcional. Por isso nos debruçamos sobre leituras que dialogam com enredos/imagens - espaço de descoberta e revelação de nossa existência tão precária e provisória, mas que, dialeticamente, se perpetua no tempo narrativo, nas invenções e reinvenções que um discurso criador e transgressor pode consumar. Por tudo isso, entendemos que a literatura não é o espaço de uma só língua. Não é o lugar de empreendimentos objetivos e organizados de acordo com uma estrutura social. Assim como na passagem bíblica, suscitada por Roland Barthes (1987), a literatura é o topos da desconstrução e da diversidade de línguas que precisam descompreender-se para encontrar o sentido da vida. “É bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”. (Barthes,1987, p.49)

Descer da torre que indica poder e compreensão significa, no texto, elaborar um espaço que garanta a coexistência das diferentes linguagens, dos diferentes códigos, que exceda a sua contingência e vá além, considerando sua natureza libertadora. É nessa “travessia da escrita”, nessa avenida onde se cruzam paralelas e transversais que se desfaz a objetividade do texto e instaura o jogo dinâmico da escritura. Não há leitura que não devaneie para o mundo. Que não carregue em seu bojo a consciência social de pertencer e estar definitivamente ligada a uma ideologia. É entre esse mundo da ideologia e o mundo que subverte e escamoteia seu

poder

que

se

a

leitura

intertextual.

Na

fenda

entre

História/Tradição/Invenção, a literatura constitui sua teia: “(...) a invenção (e não a provocação) é um ato revolucionário: este só se pode cumprir na função de uma nova língua.” (Barthes, 1990, p. 118) Portanto, em seu destino intertextual, a literatura assume seu papel peculiar de abertura para o mundo e permite que, nessa abertura, se façam

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ouvir todas as vozes ou quantas forem possíveis, numa polifonia interminável e intemporal.

3.

Escolas invisíveis Há o registro, nos compêndios de história que, no século 13, após

uma viagem que teria durado 30 meses, o mercador veneziano Marco Polo chegou às portas do Extremo Oriente e conheceu a capital do imenso império de Kublai Khan: Cambaluc, atual Pequim. Lá Marco Polo permaneceu por 17 anos, desempenhando importantes funções diplomáticas na corte do Grande Khan. Em As cidades invisíveis, Italo Calvino extrapola os fatos possíveis e imagina um diálogo fantástico entre "o maior viajante de todos os tempos" e o famoso imperador dos tártaros. Melancólico por não poder ver com os próprios olhos toda a extensão dos seus domínios, Kublai Khan faz de Marco Polo o seu telescópio, o instrumento que irá projetar-lhe as maravilhas de seu império. Marco Polo então descreve, nesta obra, minuciosamente, 55 cidades por onde teria passado, agrupadas numa série de 11 temas: "as cidades e a memória", "as cidades e o céu", "as cidades e o mortos" etc. O desejo de Kublai Khan é montar o império perfeito a partir dos relatos que ouve. São lugares imaginários, sempre com nomes femininos: Tamara, Pentesiléia, Cecília, Leônia... Vale lembrar com Evandro Monteiro (2009) que o livro Cidades

invisíveis, de Calvino, tem sido utilizado, mundo afora, não apenas como uma obra literária profunda e inspiradora, mas também como substrato para reflexões e pesquisas do fenômeno urbano, e, ainda, como ponto de partida didático para ensinar os alunos de arquitetura a olhar e a pensar sobre a cidade. Seduzidos pelo texto, amadurece neles a compreensão de que, diante dela, estão diante de algo muito mais complexo do que o projeto de um edifício, e de que o universo urbano se estende muito além até mesmo do que o “urbanismo” possa abarcar. RevistAleph- ISSN 1807-6211

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Assim, as cidades invisíveis de Ítalo Calvino nos inspiram a entender que “o odor dos elefantes depois da chuva” só é possível sentir quem tem os sentidos projetados para um espaço que se anuncia para além da geografia. A cartografia traçada por Calvino nos salva e nos lança sobre os símbolos de uma cidade imaginária possível de se ver, de se contar, e, fundamentalmente, de se sonhar. As cidades de Calvino são invisíveis porque não são óbvias e previsíveis, são, ao contrário, surpreendentes, porque nascem da cumplicidade entre um homem que narra como sherazade (e partilha suas experiências) e um homem que ouve (com desejo de palavras). E nós, professores e professoras, como percebemos os signos, os símbolos invisíveis que nos convidam intimamente a fazer uma leitura diferente, criativa e, sobretudo, pessoal de nossa escola? Que detalhes nos fascinam (ou repudiam) na estética do prédio e na ética da prática onde trabalhamos? Que valores conseguimos decifrar nos olhos dos alunos que chegam assustados com a tarefa de aprender? Que nome daríamos, se pudéssemos inventá-lo, ao espaço em que nos estendemos como professores e professoras atuantes? Que movimentos ondulam nossa percepção da vida escolar, que esgarçam e tensionam as certezas, e nos consomem como preocupação de formadores em formação que somos? As palavras experiência e educação , já em sua origem, apresentam uma curiosa identificação: 'educar' vem do latim "educare" , por sua vez ligado a "educere", verbo composto do prefixo "ex" (fora) + "ducere" (conduzir, levar), e significa 'conduzir para fora', ou seja, preparar o indivíduo para o mundo. Na palavra portuguesa 'ex(peri)ência', temos o radical latino peri, que, como o seu correspondente grego peira significa 'obstáculo' e 'dificuldade'. Este significado aparece claramente na palavra latina periculum (que significa 'perigo') e no verbo aperire (que quer dizer 'abrir'). Nos dois casos, temos a idéia de uma ação que enfrenta dificuldades ou remove obstáculos. Portanto, em sua significação etimológica, a palavra experiência quer dizer: 'vencer dificuldades',

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'superar obstáculos', 'abrir novas perspectivas' e, por conseguinte, lançar-se aos riscos. (Cunha, 2007, p. 122/123)

Compostas de prefixo

–ex, ambas indicam um caminho que se

arrisca para fora do indivíduo; marcam a ligação com o mundo e uma honesta disposição para a vida em toda a sua grandeza e perigo. E, de fato, quando trabalhamos ou visitamos escolas públicas, são muitos os obstáculos que se lançam diante de nós, desde um espaço físico duro, triste, que precisa ser revisitado por tintas generosas e coloridas, até profissionais, alunos e pais igualmente endurecidos e tristes que, muitas vezes, esmorecem diante de tantas dificuldades. Além disso, a popularidade que o fracasso escolar assume

(algumas

décadas

depois

do

golpe

militar)

vai

minando

profundamente a esperança dos que acreditam que pode haver uma escola inclusiva, democrática e solidária. Pequenas pinceladas podem inaugurar, pouco a pouco, uma nova realidade escolar, com uma disposição amorosa para ensinar, como nos ensina Paulo Freire. Essas experiências que nutrem um novo olhar sobre a educação, que não temem o confronto com as regras estabelecidas e engessadas e investem em projetos que visam à transformação do instituído são o que Célia Linhares (2007) chama de experiências instituintes: Se as experiências instituintes não são puras, não se protegem em redomas e, por isso mesmo, se misturam sem parar com as dimensões já instituídas, mesmo assim, não podemos abdicar de pesquisar seus impulsos criadores de uma forma civilizatória, onde convivam múltiplas culturas, outros processos educativos e outras modalidades de escola, reforçadoras da autonomia institucional e pessoal. (Linhares, 2007, p 145)

A autonomia precisa ser princípio e prática fundadora das relações de ensino: o professor e a professora que não respeitam a curiosidade do educando, sua singularidade, seu diálogo pessoal com o mundo, a escolha das palavras, da sintaxe, da linguagem enfim, transgride os princípios fundamentalmente éticos da própria existência. Mas a leitura literária nas escolas pode ser um dos alicerces a serem reconstituídos, dia após dia, com novas pinceladas, no resgate de nossa consciência e de nossa capacidade de abstrair conceitos, criar possibilidades ficcionais remanescentes da própria RevistAleph- ISSN 1807-6211

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realidade e pode, ela mesma, ajudar a construir uma outra realidade cheia de aventuras e encantos possíveis. Pela leitura literária, em sua plena democratização, seja por políticas de Estado, seja promovida pelas comunidades, poderemos instaurar nas escolas brasileiras um espaço de visibilidade do que nos consome, nos recria, nos realiza. Portanto, a leitura literária é, desde sua formação, um movimento de resistência (como Graciliano em seu cárcere, como Paulo Freire em sua luta contra a ditadura, como Leminski em sua subversão lingüística, e tantos outros) contra os instituídos que não caminham para a construção de uma escola feliz. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. BARTHES, Roland. Sade Fourier Loyola. São Paulo: Brasiliense, 1990. BRITTO, Luiz Percival Leme. Literatura, conhecimento e liberdade in: Nos Caminhos da Literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008. CALVINO, ÍTALO. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. São Paulo: Lexikon, 2007. FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 2001. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: _____________. A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3.ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983. (Coleção Polêmicas do nosso tempo.) FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1987. LEMINSKI, Paulo. O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 1996.

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