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MOACIR Um romance de Philipe Ribeiro

VersĂŁo 20170311 1


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Martim, 40 anos, é um empresário em falência. Todo o dia sai do escritório e afoga as amarguras num bar na Praia de Iracema. O telefone do bar toca. O dono do bar grita. - Martim! Corre! É do hospital! Martim vai cambaleando até o telefone. Jurandir, seu cunhado, dá a notícia. - É minino, macho! - É minino... É minino! - Mas vem logo que a Iracema perdeu sangue que nem presta... Martim desliga o telefone. O dono do bar traz uma rodada de bebida para todos. - Uma rodada de cerveja pelo filho do Martim! 2


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- Agora que eu me embriago na conta desse féla da gaita... – diz um papudinho. - Macho eu não tenho como pagar não... - Essa é por conta da casa! - Dotô, como é mermo o nome do herdeiro? – pergunta o papudinho. Martim, pensativo, responde. - Herdeiro? Ele olha para os quatro cantos do bar, vê uma felicidade artificial em meio aos problemas que enfrenta. Decidido, retruca. - É Moacir. - Um briiinde ao Moaciiir! Todos brindam. Martim vira o copo e olha no 3


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rumo da praia. Cabisbaixo, sussurra. - Moacir... O filho da dor. (***)

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Moacir, criança, brinca de bola na rua com os amigos Dudu, Léo e Farinha. - Passa a bola, má! – diz Dudu. Moacir dribla Farinha e Léo. - Olé! Olé! - Passa, má! Deixa de ser fominha! – reclama Dudu. Moacir, após driblar os dois adversários, entra com bola e tudo. - Goooooool! ÉÉÉÉÉÉÉ, do Moaciiiiiiir! Farinha e Léo começam a discutir. - Macho tu deixou ele fazer o gol sozim? – pergunta Farinha. - Ó ú doido! Ele meteu uma nas tuas perna e tu ainda reclama? 5


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- Aí dentu, Léo! Dudu reclama com Moacir. - Bé isso, má! Tu qué jogar sozim, tu joga! Iracema, do portão, chama por o filho. - Passa pra dentro, Moacir, não quero saber de briga no mei da rua não! - Acabô o jogo, negada! O Clube de Regatas de Messejana goleou o Buchada Sporting Club! - Mozovo! Amanhã tem revanche! – proclama Léo. - Eu vou é fazer um gol de bicicleta, doidim! – completa Farinha. - Gol de bicicleta em travinha? – pergunta 6


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Dudu. - O Farinha viajou agora... – finaliza Moacir. Risos.

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A casa de Iracema fica na periferia da região metropolitana de Fortaleza e é repleto de árvores frutíferas e pequenos animais. - Tu deixa de arrumar confusão na rua, minino! - É que os minino não sabe perder... - Tu pensa que eu não vi tu jogando bem dizer sozim? - É que quando entra em campo o craque do Clube de Regatas de Messejana não tem pra ninguém! Iracema sorri e beija o filho. - Amanhã só deixo você brincar na rua se passar a bola pro Dudu! No futebol a gente tem que dividir. Aprenda isso e você vai fazer gol dentro e fora de campo... - Amanhã a tabelinha Moacir e Dudu vai 8


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golear de novo o Buchada! Risos. - Pois vรก banhar que teu pai jรก chega do trabalho e o banheiro tem que tรก desocupado! Moacir vai pro banheiro correndo imitando um aviรฃo. A porta do banheiro bate.

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Martim chega em casa e vai para o banheiro. Iracema prepara a janta. - Porque tu demorou tanto hoje? - Passei na Praia de Iracema pra falar com os pessoal... Moacir, de longe, ouvindo a conversa, se intromete. - Pai, leva eu pra ver o mar! - Macho, toda sexta-feira é a merma coisa! Levar o minino pra praia tu não leva, mas beber com aqueles fuleiragem tu não perde uma! - É que do serviço pro bar eu vou andando, mas pra levar criança pra praia é um gasto medoim! Um cará véi é sessenta conto! - E nesses 12 anos não deu pra juntar não, foi? 10


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- Juntar? Tu sabe que num tá dando nem pra pagar as conta! Lá na firma agora tá só eu e o João fazendo tudo. Nem pagar cobrador a gente pode! É os dois vendendo livro, batendo duplicata, cobrando os veaco, tudo! Depois dessas internet, ninguém quer mais comprar dicionário, enciclopédia... Até bíblia a negada tá lendo no computador! Diz o João que tem uns pessoal que acende é vela pela internet! - Pois eu vou acender uma vela pra Santo Expedito pra ver se essa causa ele resolve daqui pra amanhã!

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Martim e Moacir andam pelas ruas da periferia, entram no trem e observam a paisagem. Descem no centro da cidade e andam até a Praia de Iracema. - Eita açudão medoim, pai! Moacir corre pro mar. - Perainda, macho, que mar não tem cabelo não! - Pai, vou entrar no mar dando mortal pra dar sorte! - Tá doido, minino, se tu quebra o pescoço tua mãe mais tarde quebra o meu também! Martim alcança Moacir e entram juntos no mar. Pai e filho brincam nas pequenas ondas da Praia de Iracema. 12


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A beleza da praia e o amor de pai e filho se confundem.

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Martim leva Moacir pro bar do Seu Alberto que sempre frequenta. - Seu Alberto, esse aqui é meu rapaz! - Já tá um homem! Seu Alberto olha para Moacir. No dia que tu nasceu foi uma festa medonha aqui! O menino sorri, envergonhado. - Homi... Prepare aí dois PF de peixe e agora me arrume um guaraná pro minino e uma dose da pôdi pra lavar peritônio... Seu Alberto traz o refrigerante, o litro de cana dosado, dois copos e vai preparar o almoço. Pai e filho almoçam com vista para os carros apressados que passam à beira-mar. Moacir 14


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adormece na mesa enquanto Martim bebe o litro de cana.

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Martim volta bêbado da praia com Moacir. Iracema está na porta da casa à espera. Os dois se aproximam. - Mãe! Mãe! O mar é mais grande que a lagoa de Messejana não sei quantas vezes! - É bem grande... Pois agora vá tomar banho e lave o cabelo com creme pra não ficar mermo que pau! Moacir entra correndo. Martim vai entrando atrás e Iracema interrompe. - Tu tá melado, é? - Tomei uma só pra abrir o apetite... - Quem tomou uma agora fui eu! Tu tá pôdi a cachaça! - Que é isso, meu amor, bebi só enquanto chegava o almoço... 16


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- Cabra sem-vergôin! Tu enche a cara na praia, gasta o que não tem e eu que me lasque nas casa de família fazendo faxina pra pagar as conta! - As coisa vão melhorar... - O ramo do livro já deu, macho... Tu tinha que arrumar era outro mêi de vida...

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Martim, falido, deixa a família no Ceará e vai embora para São Paulo. - Pai, leva nóis pra São Paulo! - São Paulo é terra de ganhar dinheiro, meu fí, não presta pra morar não. Vou ajuntar um dinheiro e voltar pra melhorar nossa vida... - Assim que você chegar lá, ligue pro primo Jurandir que ele vai arrumar um canto pra ti... Martim beija Iracema, pega a mochila velha e entra no ônibus. A família tem esperança de dias melhores.

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Iracema, em casa, prepara o jantar. - Agora que teu pai tá longe, tu tem que me ajudar nas coisas de casa. Tu vai guardar a louça e botar o lixo na calçada. - É pra botar o lixo lá fora e guardar a louça, é mãe? - É. Mas primeiro lave as mãos, guarde a louça limpa e só depois vá botar o lixo lá fora. Na volta lave as mãos que o lixo é sujo! - Mó limpeza! Moacir começa a guardar as coisas. - Tão botando ficha lá na fábrica de couro. Vou ver se me arrumo por lá porque só com as faxinas não tá dando... - Eba! Com dois emprego a mãe vai ficar rica e me levar pra ver o pai de avião! 19


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Risos. O telefone toca. Iracema atende. - Alô. - Meu amor as coisa tão é aperreada aqui... - Arriégua... - Faz mais de uma semana que não arranjo nada e o aluguel da pensão tá atrasado... A Dona Carminha só me deu até depois de amanhã pra arrumar o dinheiro. - E o primo? - Tá avulso num restaurante chique lá pelo Morumbi, mas não sabe até quando vão ficar com ele lá... - Eu botei uma ficha na fábrica de couro 20


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porque só as faxina não tão dando... - Sei... Num tinha como tu me mandar uns trocado pra pagar o quarto enquanto eu pego serviço? Iracema chora no canto do quarto enquanto separa as parcas economias pra mandar pra São Paulo.

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Iracema entra na fábrica de couro. - Edilene, tu acha que o supervisor me encaixa nas horas extra? Tô precisando de dinheiro pra pagar umas conta... - Muiézinha se tu quiser ele dobra é teu turno! Aqui eles querem que a gente trabalhe até dá uma dor... - Ôxe, pois eu vou querer demais... - Só não cresça os zói quando sair a bolada senão tu termina é se lascando de tanto trabalhar... Iracema se vira e fala para si. - É só umas conta... Em São Paulo...

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Moacir chega animado para a aula de história e caminha até a sala de aula. O professor inicia a aula. - A Capitania do Ceará foi doada em 20 de novembro de 1535 ao provedor-mor da Fazenda Real, Antônio Cardoso de Barros. Assim como os seus vizinhos, por diversos motivos, ele não chegou a ocupar o seu lote e as terras ficaram abandonadas por 60 anos. Em 1603, Pero Coelho de Souza veio para cá com intenção de iniciar a colonização da capitania do Ceará, porém seus planos não deram certo. Houve uma grande resistência dos índios Tabajaras, além da seca entre os anos de 1605 e 1606 que causou muitas mortes por fome e sede. E o que aconteceu com Pero Coelho? Moacir responde o professor. - Pegou o beco, professor! Risos. 23


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- Isso mesmo, com todos esses problemas Pero Coelho decide se retirar de nossas terras. Em 1607 vieram dois padres da Companhia de Jesus, Luís Figueira e Francisco Pinto. Eles chegaram a habitar com os índios Tabajara, mas numa emboscada, os índios Tocarijús mataram o padre Francisco e por pouco não matam também o padre Luís, que fugiu. Alguém sabe quem, finalmente, conseguiu iniciar a colonização da capitania do Ceará? Moacir rasga uma folha de papel e constrói um barquinho. Os pensamentos estão longe dali.

(***)

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Moacir, já adolescente, na sala de aula discutindo sobre os fatos históricos do Ceará. - E foi aí que Martim Soares Moreno, em 1612, com a intenção de obter pontos estratégicos e ainda explorar os índios, quer dizer, catequizar os índios da região, constrói o forte de São Sebastião e uma capela de Nossa Senhora do Amparo. Mas em 1637 sobre o comando de Mauricio de Nassau, os holandeses tomaram o forte de São Sebastião e a região ficou sobre domínio Holandês até 1654, quando os holandeses foram expulsos para nunca mais voltar! - Muito bem, Moacir, obrigado pela explanação. Você fica com dez e o resto do grupo que contribuiu segurando o cartaz, sete. Risos na sala de aula. O sinal toca. - Os outros grupos ficam pra próxima aula. 25


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Estudem pra falar sem ler no papel. Quero ver todo mundo falando. Não quero ver mais ninguém vindo aqui pra frente só pra segurar o cartaz. Moacir sai da sala.

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Moacir caminha pela rua e na esquina de casa encontra Léo e Farinha. Qual é Moacir, massa? – diz Léo. - Tudo tranquilo... Moacir cumprimenta Léo e Farinha. Vai fazer a presença e cair uma tartaruga nesse bolso? – pergunta Farinha. Moacir fica desconcertado. - Macho tô só com o do busão de amanhã, doido... - Tá vendo aí, Léo, sujando com o nego... - Bé isso, má, tu mermo diz que dá umas aula pros lesado da escola? - É mixaria! O dinheiro mal dá pro busão... - É assim mermo... Faz mó tempão que tu não cola mais com a galera, faz nem as intéra do 27


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bagúi... – indaga Farinha. - Nada a ver, macho, eu tô é liso mermo. Pois bora domingo lá na lagoa e dá uns mortal doidera? - Ó a lombra do cara, Farinha? - Isso que tu fumou com os lesado da tua turma tinha era palha de bananeira, era? Nem fumar eu fumo... - E esses zói vermelho é de que, pivete? – pergunta Farinha. - Do computador, má, eu tava fazendo um trabalho em grupo e penei que só pra arrumar o slide... - E isso lombra, lombra? – pergunta Farinha; Macho tá foda falar com vocês... Vou indo, falô! 28


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Moacir se despede dos amigos de infância. Ei! A gente vai dá esse tibum domingo... – fala Farinha. - Vamo de bike! - Podicrê... – afirma Farinha. - É nóis! – completa Léo. Moacir se afasta. Vai-te bora, prego! – insuta Farinha.

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Iracema chega a casa, cansada. - Mãe, domingo eu vou com os meninos tomar bãe na lagoa... - Num vai de jeito nenhum! - Armaria, eu fico trancado só dentro de casa, nã... - E num adianta se zangar. Tu sabe muito bem que eu num gosto de você zanzando com o Léo e o Farinha. Já basta o que aconteceu com o Dudu... - Tem nada a ver! A mãe sabe que quem fez aquilo com o Dudu foi a polícia... - E ele tava andando com quem? Néra com aqueles dois carga torta, não? Se ele tivesse dênti casa isso não tinha acontecido! Moacir vai pro quarto contrariado.

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Iracema vai lavar roupa no quintal. É domingo. Moacir pega a bicicleta e sai escondido. - Que nada cumpade! Iracema corre até o portão. - Moaciiir! Moacir vira à esquerda e some.

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Moacir encontra Léo e Farinha perto da praça do bairro. De lá vão apostando corrida até a lagoa. - Vruuuuuuum! – diz Moacir. - Deixa ele passar não! – fala Léo. - Assunga, má! – completa Farinha. Moacir chega em primeiro na lagoa. - Vitóóória do Messejana Bike Team! Mais uma pisa no Buchada Pedal Clube! - Aí dentu! – insulta Farinha. - Mas no mortal tu ganha é porra! – desafia Léo. Léo, que joga capoeira, dá um mortal impecável. Moacir dá um mortal depois. Farinha dá uma tainha. - Cadê o mortal, Farinha? – provoca Moacir. 32


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- Perdeu o fôlego de lá pra cá! – responde Farinha. Risos. Os meninos tomam banho de lagoa e fazem piruetas.

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Moacir chega se mansinho e guarda a bicicleta. Ele vai para o quarto. Iracema está sentada no canto à sua espera. - Já tinha comprado as velas. Moacir faz cara de desentendido. - Vála, pra que? - Pra botar no teu caixão, miseráve! Tá de castigo até eu esquecer o que tu fez hoje! Iracema sai do quarto. Moacir sorri. - Lascou-se, cumpade...

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Na escola municipal, Moacir conversa com colegas de sala sobre o ENEM. - Chicão, tu vai fazer ENEM pra que? - Pra não morrer chapando sanduíche... Risos. - Que é isso, má, toda profissão é digna! – diz Moacir. - Pois vai trabalhar de graça, abestado! – provoca Chicão. - Tá fresquim hoje, comeu foi carne de palhaço, foi? Gabi entra na conversa. - Eu vou fazer arquitetura pra construir uma casa bem bonita pra minha mãe... – sonha Gabi. - Tá viajando é, Gabi? Arquitetura é só pros barão... – provoca Chicão. 35


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- Tem nada a ver! Eu entro, arranjo estágio e compro as coisas de desenho com esse trampo. – responde Gabi. - E tu, Zé Graça, vai fazer o que? – pergunta Moacir. - Vou fazer agronomia pra plantar capim e te dá de comer! – responde Chicão. - Aí dentu! Vá vacilando é? – pergunta Moacir. - Calma meninos, não briguem agora não, deixa eu entrar em medicina pra remendar vocês na lá UPA! – interrompe Ju. Risos. - Vai sonhando, Ju. Tu já viu liso fazer Medicina? As vagas ficam só com os playboy das Aldeota! – diz Chicão. - Macho tu não vê jornal não? – pergunta Ju. 36


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- A TV dele só pega o Big Brother... – provoca Moacir. - Sou de escola pública, querido, vou estudar pra passar na nota de corte e entro nas cotas! – afirma Ju. - Toma! Vacilão! – provoca Moacir. - E tu sabidão, vai fazer pra qual? - pergunta Chicão. - História! - Tu quer morrer pobre, é? – provoca Chicão. - E dá onde professor de História é pobre? – responde perguntando Moacir. - Me diz aí um professor estribado? - Macho, tudim que eu conheço ganha melhor que meus pais... - Tá vendo aí? Haja capim pra esse jumento! 37


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- Vai te lascar, doido! Risos. - Bó pra fila da merenda que essa conversa não enche bucho não... – convida Gabi.

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Iracema passa mal na fábrica. - Me acóde, Edilene! - Ave Maria! – responde Edilene, aflita. Iracema desmaia e cai em cima de caixas de papelão. Edilene abana a amiga. - Haroldo, traz uma a-guí-nha com sal que a muié passou mal! Haroldo traz água com sal e volta a trabalhar. Iracema bebe e melhora um pouco. - Muiézinha tu tá trabalhando demais! - Mais eu tô precisando... - Sim... Desse jeito tu papóca e aí? Haroldo chega. - O Seu Praxedes disse que você fosse pra casa descansar. – diz Haroldo. 39


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- Eu tô melhor. E hoje vou dobrar o turno... - Seu Praxedes disse que tu tem que sossegar o juízo e não vai dobrar teu turno até o fim do mês... - Vixe Maria... E minhas contas? – responde preocupada Iracema. - Vai pra casa, Dona Iracema, enquanto ele ainda te quer aqui... - Vai logo, muiézinha, porque quando ele abusa da cara dum ele manda a carteira é direto pro RH! Iracema sai mais cedo do trabalho e vai pra casa.

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Moacir chega da escola muito animado e percebe que tem alguém em casa. - Quem descobriu o Brasil, meus alunos? Pedro Álvares Cabral, Cabrel ou Cabril? Moacir encontra Iracema em casa, deitada, numa rede na sala. - Vála... Qué que a mãe tem? Chegou mais cedo do serviço... - Tive uma pilôra, mas já tô melhor... - A mãe tá trabalhando muito, tem que dá um tempo pra desestressar e tal... - E tu, menino, tá tão animado por quê? Dando aula pras paredes... - Eu vou fazer ENEM pra história. Vou ser professor! - Amém! E tu já tá é treinando, né? - E num é não? Vou dar aula logo no primeiro 41


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semestre pros pivetes até me formar. Depois pego ensino médio até passar no mestrado e dar aula na faculdade! - Eu já tô é te vendo todo importante dando aula nas Aldeota... - Assim que eu entrar na faculdade eu começo a dar aula e a mãe sai daquela fábrica véa! - E como é que vou pagar as contas da casa? - Ora, eu ajudo a senhora! - Seu Deus quiser, meu filho... Agora guarde a louça limpa pra já ir treinando... - E não sou eu que guardo todo dia não? Risos. Moacir vai para cozinha guardar a louça limpa enquanto Iracema se vira para descansar.

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Iracema liga para Martim. - Martim... - Oi meu amor, como tão as coisa aí? - Hômi, dei uma pilôra na fábrica e eu ia me lascando... - Vixe, foi mermo? E aí? Foi aumeno na UPA pra te darem um remédio pros nervo? - Fui nada... Minhas pernas tavo bambinha e só tive força pra vim pra casa. - Mande Moacir ir com você na emergência tomar uma píula e pegar uns dias de atestado pra tu descansar... - Descansar? Eu preciso é de alguém que me ajude! Hômi, não tá mais dando pra sustentar a casa e ainda mandar dinheiro pra ti... - Aqui as coisas tão melhorando, tô pegando mais bico... - Bico? E isso lá resolve? Faz mais de ano que 43


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eu mando dinheiro pra tu e nada de assinarem tua carteira... - As coisa vão melhorar... Eu tô precisando de ti! Venha simbora! - Agora que tão quase assinando minha carteira eu ir mimbora? - Se fosse pra melhorar já tinha melhorado... - E como é que liso viaja? - Ó, venda o bujão e a bicicleta e compre a passagem. O resto das coisa deixe pra Dona Carminha por conta do resto da quinzena e venha logo que eu não tô bem não!

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Martim volta pra casa com mais problemas que soluções. Iracema, com uma bacia de roupa para estender, vê que Martim deu uma saidinha. - Moacir! Vem cá, menino! - Tô indo, mãe! Moacir desliga o computador, anda pela casa e vai até o varal. Ele passa por baixo das roupas estendidas. - Oi mãinha! - Cadê teu pai que não tô ouvido a zoada da televisão? - Tá na calçada jogando dominó... - Chame ele já aqui! Moacir vai chamar o pai enquanto Iracema estende as roupas. - Diga meu amor... 45


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- Eu mandei tu vim simbora foi pra me ajudar, não foi pra ficar jogando dominó com esses fuleiragens não! - Hoje é domingo, Iracema! Nem domingo eu posso me distrair? Iracema entrega um baldo de cueca pra Martim. - Pois tome aqui esse balde de cueca que eu já lavei. Tem distração aí que nem presta! Martim faz cara de reprovação, mas estende todas as cuecas e depois vai até a sala ver TV. - Ele voltou pior do que foi... Parece um esmoléu... Martim, deprimido, dorme e acorda vendo TV. O alcoolismo avançou e ele se torna um moribundo dentro de casa. Sons de tiroteio são ouvidos.

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Moacir se arruma e vai, cedinho, comprar o pão. Na frente de casa encontra Léo em estado de choque. - Que foi, macho? – pergunta Moacir. - Os cana passaram o Farinha ontem... – diz Léo. Os olhos de Moacir começam a lacrimejar. - Táqueopariu! Como foi isso? - Estosdías mataram um cana lá no São Miguel. Aí os hômi tão passando geral... - Pegaram ele onde? - Lá na lagoa, perto da estáuta... O padre deixou velar ele lá na igreja. Moacir lembra dos jogos de bola que faziam quando eram crianças. - Vou só fazer um mandado da mãe e depois vou lá ver ele... 47


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- Leva o RG porque ainda tem muito cana no bairro... - Vixe... Moacir anda pela rua atĂŠ sumir no horizonte.

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Iracema, bem debilitada, está sempre deitada na rede armada na sala. Moacir estuda no quarto com a porta aberta. - Moacir, e teu pai? - A mãe já sabe a resposta... - Ave Maria... Eu chamo ele pra vim simbora me ajudar e ele fica é bebendo nas esquinas... - Num sei porque a mãinha se zanga ainda... O pai é desse jeito desde que eu me entendo por gente! - Não fale assim do seu pai, não... Respeite ele que ele é seu pai! - Ele é quem devia se dar ao respeito... - Olhe... Só quem pode falar dele sou eu, viu? Vá lá atrás dele... Bote ele pra casa... - Arriégua... Moacir vai atrás de Martim nos bares do 49


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bairro.

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Bar do Neguim é um boteco do bairro onde o principal produto é a venda de dose de cachaça para os papudinhos da vizinhança. Moacir caminha até o bar e, de longe, já avista o pai. - Bora pra casa, pai, a mãe tá chamando... - Vai lá, barriga branca, que tá na hora... – diz um papudinho. Risos no bar. - Vou é porra! Quem manda naquela casa é eu! É eu! - Bora má, a mãe num tá bem não... – diz Moacir. - Num disse que num vou agora! - Aí é macho! – fala outro papudinho. - Vá indo que vou já! Moacir sai do bar contrariado. 51


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As luzes dos carros clareiam o rosto de Moacir. (***)

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Moacir volta para casa com os olhos vermelhos de choro. Ele acaba de enterrar a mãe. Moacir encontra Martim, bêbado, dormindo na porta de casa. - Acorda, macho... - Hum... - Bó pra dentro... - Iracema... Iracema... - Bó pra dentro... - Iracema... Iracema... Moacir levanta Martim que vai cambaleando até cair na rede de Iracema.

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Moacir entra no site do Sisu pra ver o resultado do vestibular. Ele é aprovado em História. - Passei... Moacir olha ao seu redor e não vê ninguém. Ele não tem com quem comemorar. A tristeza da perda da mãe é maior que a aprovação no vestibular. Sai de casa e caminha pelas ruas do bairro sem destino.

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Moacir chega no bar do Neguim visualmente arrasado. Com a camisa no ombro e os chinelos nas mãos, senta do lado do pai. - Já... já vou... Moacir não diz nada. - Num precisa brigar... É a derradeira... Moacir abraça o pai. Martim vira o copo de cana. Moacir se levanta e paga a conta do bar. Eles saem, abraçados, no rumo de casa.

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Moacir pega a bicicleta e vai para a estação do metrô. Léo está na esquina da rua observando o movimento. - Qual é a boa de hoje, cumpade? – pergunta Léo. - Meu primeiro dia de aula na faculdade! - Aê, doido, agora vai ser barão... Tu vai ser doutor em que? - História! - Vixe, professor, mais fudido do que eu! - Né assim também não... - Mas vai passar o rodo nas doidinha tudim que eu tô ligado... - Ó o doido! Ei má, vou nessa! - Falô comedorzim! Moacir segue de bicicleta até o metrô e 56


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embarca com a bicicleta. Ele admira a paisagem férrea da periferia até o centro da cidade. Moacir desce na estação São Benedito e segue pela Av. Imperador até a Av. 13 de Maio. Ele observa os muros grafitados e a juventude universitária até entrar na UFC. Moacir guarda a bicicleta e caminha até a sala de aula.

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Veteranos recepcionam calouros com corredor de chulipa na entrada da sala de aula. O professor inicia a aula. - Bom dia a todos e a todas. Vamos fazer um cĂ­rculo porque aqui ĂŠ um ambiente de ensino democrĂĄtico! Moacir arruma sua cadeira e fica de frente para o professor.

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Moacir chega em casa empolgado com o primeiro dia na faculdade e encontra Martim bĂŞbado, dormindo. - Carai, vĂŠi, todo dia ĂŠ a merma coisa... Moacir prepara um cuscuz pra jantar. O telefone toca.

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Moacir vai de bicicleta até a Lagoa de Messejana. Ele passa pela olha para a estátua de Iracema e lembra da mãe que dizia: - Num vai de jeito nenhum! Moacir baixa a cabeça e fica introspectivo. - E num adianta se zangar... – outra frase que lembra da mãe. Moacir amarra a bicicleta num pé de pau e vai tomar banho de lagoa. Ele boia na água enquanto pensa na vida.

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Moacir entra no laboratório de pesquisa da faculdade. - Dando continuidade com a tutoria nesse laboratório de pesquisa, hoje temos mais um novo bolsista, o Moacir, que vai trabalhar na linha de pesquisa de literatura regional. Qual autor, Moacir, você teria interesse em estudar? - Eu queria estudar algum escritor cearense, mas se tiver algum outro que o senhor quiser indicar... - Não temos nenhum bolsista trabalhando as obras indianistas de José de Alencar e acho que essa é uma oportunidade de você, no início do seu curso, iniciar seus estudos. O bom de começar numa linha de pesquisa dessas no início da faculdade é que você já está trabalhando no seu trabalho de conclusão de curso e é meio caminho andado para o mestrado. - Mestrado? Os olhos de Moacir brilham. 61


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- Sim, Moacir, mestrado. A maioria dos alunos do mestrado vem de grupos de pesquisa como esse. Siga direitinho o cronograma de estudos e você vai longe... Lucas pergunta. - Professor, eu tô meio enganchado aqui com O Quinze, não entendi muito bem o que a autora quis dizer na frase “uma cabra, uma cunhã à-toa, de cabelo pixaim e dente podre!...” - O que tu não entendeu, Lucas?

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Moacir dá aulas particulares para os outros alunos. - Moacir, tu pode me ajudar na resenha de A Viuvinha que eu não tô conseguindo fazer... – pede Simone. - Eu tô meio sem tempo porque peguei um monte de aulas particulares... - Dá uma lida aqui e ver se eu tô indo bem ou tenho que mudar alguma coisa... Moacir pega o caderno e lê a resenha da colega de sala. - Tá meio CTRL+C, CTRL+V... - Vixe Maria, tu se tocou? É que eu pesquei de um artigo aqui, outro acolá... - Tá igual aos lençóis de retalho que a mãe fazia pra mim... Risos. Moacir devolve o caderno. 63


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- Anda, comeรงa o zero, da tua cabeรงa, do que tu jรก leu...

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Moacir entra com o pai numa clínica de reabilitação. Martim para e quer desistir. - Bora, pai, já tamo aqui tem que ir em frente... - Eu tenho medo de ter recaída... - Pra ter recaída tem que primeiro parar de beber e aqui é o lugar pra começar... Moacir beija e pai e vai à administração pagar o internamento. - Cuide bem do meu pai porque é a única coisa que tenho nesse mundo... - Aqui ele vai se sentir em casa... – diz o coordenador da clínica. (***)

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Moacir chega na faculdade apressado e encontra Lucas que corre ao encontro do amigo. - Fí de rapariga cagado! – diz Lucas. - Que foi, macho, que foi? - Pode balançar as calças! Moacir olha com cara de espanto. - Tu passou no mestrado, com bolsa e tudo! - Não acredito não. Caralho! É agora que eu ando de avião!

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Moacir chega no aeroporto sozinho. Vai até a companhia aérea, faz check-in e sobe para o embarque. Sentado na sala de embarque, folheia O sertanejo enquanto o embarque não é autorizado. - Vou ver o que encontro do povo cearense no velho mundo...

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Moacir senta na praça do Império, em Lisboa, e observa as pessoas. - O que estás a mirar, Moacir? – pergunta Joaquim. - Tô vendo se encontro alguém lá do Ceará... - Estás bobo? Estamos do outro lado do Atlântico! São mais de 5 mil quilômetros! - Isso lá é nada, má! Prum cearense basta uma saca de Farinha e uma latada d´água no lombo dum jumento e antes do ano virar o cabra chega aqui! - E o que é jumento? Um tipo de locomoção brasileira? - É um bicho, macho! Aqui vocês devem chamar de jegue, asno, sei lá! - Asno! (Risos). Estás de brincadeira! - Macho... Já teve cearense lá no topo do Himalaia quem dirá aqui que é bem baixim... 68


MOACIR

Risos. - Me diz aí quem foi que projetou o helicóptero? - Ah... Não lembro o nome, mas com certeza foi um francês! - Quem construiu o helicóptero foi um francês mesmo, o Étienne, mas o projeto quem fez foi o Justa e ele é o que? Que? Que? Cearense! - Não sabia... - E quem inventou o bioquerosene de aviação que hoje é o futuro da aviação mundial? Quem? Quem? Quem? - Um cearense? - E não foi não? E o cara ainda criou o biodiesel só pra tirar de tempo... Risos. 69


MOACIR

- E ainda digo mais, se não é cearense, tem cara de cearense! Tu sabe o Nietzsche? - Sim, o filósofo... - É a cara dum vizinho meu lá de Itapipoca! E o Nicolas Cage, ator... Já viu algum filme dele? - Só 8 Milímetros... - É mesmo que não tá vendo a família de um amigo meu lá de Morada Nova! Risos. - Um dia eu quero ir nessas cidades aí do Brasil só pra conferir... - Sim, a gente vai! E ainda te levo em Tauá pra tu conhecer um primo do pai que é a cara do Napoleão! Risos. (***) 70


MOACIR

Na universidade em Lisboa, Moacir entra na sala de defesa de dissertações de mestrado. Ele cumprimenta o professor-orientador e os demais membros da banca examinadora. - Bom dia a todos e a todas. É com enorme alegria que estou hoje aqui, há mais de 5 mil quilômetros de casa, apresentando a minha defesa de dissertação de mestrado sobre as obras indianistas de José de Alencar... Moacir termina a explanação e sai da sala para que os professores deem as notas. - Foste muito bem, Moacir, parabéns! – diz Joaquim. - Acho que foi mó paia... - Paia é ruim? - Olhaí! Tá bem dizer um cearense mermo lá do Beco do Cotovelo! - De onde? 71


MOACIR

O orientador abre a porta da sala. Moacir entra e recebe a aprovação. - Bora comemorar, Joaquim! Me leve pro canto mais fuleiragem de Lisboa que eu quero é botar pra voar as banda! - Eu não entendi nada, mas vou te levar num lugar que gosto de me divertir com os amigos... Moacir e Joaquim saem da universidade a pé.

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MOACIR

Joaquim e Moacir vão para uma balada noturna em Lisboa. Ele apresenta Moacir a Marta. Eles dançam um pouco até Moacir puxar Marta de lado pra comprar bebida e conversar. - O Joaquim me disse que você é do Brasil... - É, sou do Ceará... - Não sei onde fica... - Tu já ouviu falar de Jericoacoara, Canoa Quebrada? - Tenho uns amigos que já foram em Jericoacoara... - Essas duas praias ficam dentro do estado do Ceará, aqui chama de distrito, né... Moacir e Marta continuam a conversa entre luzes e reflexos da boate.

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MOACIR

Moacir acorda no apartamento de Marta. Ele levanta e vai até a cozinha. - Cachaça véa doida... Marta está preparando o café da manhã. Moacir senta e bebe água enquanto conversam. - Tu deverias continuar com os estudos aqui e ir logo para o doutorado. O Joaquim me disse que os professores gostam muito de ti... - Gostei muito de vir pra cá, estudar, conhecer gente nova, mas tô morrendo de saudade de tomar um banho de lagoa, de rever os parceiros e ir pro jogo do Leão! - Tu poderias fazer isso nas férias. Com o doutorado tu arranjas emprego na faculdade e vai pro Brasil sempre que quiser... - Não é a mesma coisa... Tem um sanduíche que vende na entrada do estádio, a gente chama de “cai duro”, que só tem lá! Não é saudável, não tem muita higiene, mas o gosto 74


MOACIR

é único! Mata a fome e engorda as lombrigas, uma delícia! - Tu vais deixar de fazer o doutorado por causa de um sanduíche? - Claro que não... Eu sinto falta é da minha terra, do meu povo, de um frescar com a cara do outro... Aqui na Europa o pessoal é muito sério, frio, não tem a molecagem lá do Ceará... - Não sei... Acho que tu estás a perder uma grande oportunidade... - Pois deixa eu agarrar essa oportunidade de jeito de novo! Moacir beija Marta e eles transam na cozinha.

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MOACIR

Três semanas depois, nas ruas de Lisboa, Moacir passeia com Marta. - Andei conversando com meu orientador lá de Fortaleza. - E ele disse o que? - Ele disse que se eu quisesse ficar aqui e ir pro doutorado ia ser muito bom pra mim, mas se eu quisesse voltar logo, ele ia arrumar umas aulas pra mim em alguma faculdade particular... - E o que você decidiu? - Eu quero passar uns tempos por lá, depois eu volto e faço o doutorado... - E eu? - Você viria comigo? - Nós vamos com você!

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MOACIR

Moacir fica feliz com a boa notĂ­cia. Vai se ser pai.

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MOACIR

Marta observa, da janela do avião a faixa de praia do Caça e Pesca até a Praia de Iracema. Moacir dorme.

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MOACIR

Moacir e Marta vão para a Praia de Iracema. Eles passam por um carrinho de vendedor ambulante e pedem pra “guardar as coisas”. O casal senta na areia da Praia de Iracema e fica admirando o mar. Moacir alisa a barriga de Marta. - Eu acho que é menino. - Como você sabe? Eu nem fiz o exame ainda... - Eu acho que é porque é, né não? - Eu fiz o exame... - É menino? É menino? Marta olha com cara de mistério. - Hum... É menino! Moacir, eufórico, completa. - É menino! É menino! 79


MOACIR

Marta sorri. - E vai se chamar Benjamim! O filho da felicidade! Moacir puxa Marta e entram no mar de Fortaleza.

FIM

=)

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