IDOSOS DEMENTADOS

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CUIDADORES FAMILIARES DE IDOSOS DEMENTADOS: UMA REFLEXÃO SOBRE A DINÂMICA DO CUIDADO E DA CONFLITUALIDADE INTRA-FAMILIAR

SILVIA MARIA AZEVEDO DOS SANTOS THEOPHILOS RIFIOTIS

CRÉDITOS DOS AUTORES

SILVIA MARIA AZEVEDO DOS SANTOS - Enfermeira, Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, membro efetivo do Grupo de Estudos sobre Cuidados de Saúde em Pessoas Idosas - GESPI/PEN/ UFSC. Mestre em Enfermagem pela UFSC e Doutora em Educação pela UNICAMP, com área de concentração em Gerontologia. Tem o título de Especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.

THEOPHILOS RIFIOTIS - Antropólogo, Professor Adjunto do Departamento de Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - UFSC. Coordenador do Laboratório de Estudos das Violências - LEVIS - UFSC. Mestre em Antropologia Social na Université René Descartes - Paris V e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP.

RESUMO

Esse artigo apresenta e discuti as tensões, dilemas e conflitos experienciados por famílias cuidadoras de idosos portadores de demência. As reflexões contidas nesse trabalho tem por base uma pesquisa qualitativa realizada junto a doze famílias, onde utilizou-se a etnografia como referencial metodológico. O objetivo foi investigar como se instituí o papel de cuidador no contexto familiar e quais são os significados atribuídos pelas famílias à experiência de cuidado. O estudo do universo dos cuidadores de pacientes dementados nos mostra o grau de dificuldade da sua condição, sua insatisfação com o diagnóstico, o cansaço com as situações imprevisíveis criadas pelo portador, o sentimento de impotência e mesmo de inutilidade da sua condição frente a uma doença degenerativa. Deste quadro complexo emergem conflitos que poderiam levar ao rompimento familiar, porém esses geralmente são condições

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fundamentais para enfrentar e resolver divergências, tendo como conseqüência o fortalecimento das relações dentro do núcleo familial.

Palavras-chave: Cuidador, Idosos, Demências, Família, Conflito.

Cuidadores Familiares de Idosos Dementados: uma reflexão sobre a dinâmica do cuidado e da conflitualidade intra-familiar

Silvia Maria Azevedo dos Santos Rifiotis

Theophilos

1 – INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA

O crescimento da população idosa é certamente um dos fenômenos mais marcantes do século XX, cujas implicações

sociais são multifacetadas e já se fazem presentes no nosso quotidiano. O enfrentamento diário das transformações micro e macro-societais, para além da metáfora da inversão da pirâmide etária, geralmente acompanhada de discursos sobre os custos sociais (pensões e medicalização), tem colocado concretamente para um grande número de pessoas uma série de problemas decorrentes da reconfiguração das relações inter-geracionais e familiares, da busca de novos modelos valorativos do envelhecimento, da ressignificação do envelhecimento, da doença e da morte. Uma das dimensões que merece especial atenção, porque ainda é pouco conhecida na sua dinâmica quotidiana, é o aumento do grau de dependência de uma parcela crescente da população, das doenças crônico-degenerativas, assim como uma maior demanda de cuidados públicos e privados. Do ponto de vista da saúde, destacam-se as mudanças significativas no quadro de morbimortalidade, isto é, redução da incidência e morte por doenças infecto-contagiosas e aumento da incidência e morte por doenças crônicodegenerativas típicas de idades mais avançadas. Entre elas, as cérebro-vasculares, que embora não sejam as principais causas de mortalidade, apresentam efeitos devastadores com altos custos afetivos e financeiros para o indivíduo e sua família. Entre as doenças cérebro-vasculares, as demências do tipo Doença de Alzheimer, Demência

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Vascular, Demência Mista (Alzheimer e Vascular), Demência Fronto-temporal, Demência por Corpos de Lewy e Demência na Doença de Parkinson são as mais freqüentes e acometem milhões de pessoas em todo mundo, a ponto de terem sido eleitas como o principal foco de pesquisa dentre todas as doenças que afetam o cérebro nas últimas duas décadas (HINTON et al., 1999). Essas doenças têm um comportamento de doenças idade-dependente, isto é, sua prevalência aumenta à medida em que a idade também aumenta. De maneira geral, os estudos epidemiológicos apontam uma prevalência de demências em idosos que variam de 1 a 2% nos indivíduos na faixa dos 60 a 65 anos; 20% na faixa dos 80 a 90 anos e 40% aos 91 anos ou mais (LUDERS & STORANI, 1996; BRIGGS, 1996; ALMEIDA, 2000; SAVONITI, 2000). Vale destacar, que os casos de demências de etiologia desconhecida são mais freqüentes em indivíduos nonagenários, ficando em torno de 48% (CRYSTAL et al., 2000). Foi encontrada uma pequena prevalência de demências (1%) na população idosa na faixa dos 60 anos, porém a partir dos 85 anos ou mais a prevalência salta para aproximadamente 40% (BOLLA et al. 2000) . Mister se faz lembrar que, a prevalência de demências na velhice extrapola o evento biológico em si, uma vez que elas têm diferentes representações e repercussões no contexto econômico, político, social e cultural das pessoas e famílias por elas afetadas. Especialmente porque a família ainda é o lócus preferencial no processo de cuidar dos idosos, sejam eles dementados ou não, conforme apontam os estudos da literatura internacional e brasileira. O que difere, no caso dos idosos dementados, é o fato desses requererem cuidados integrais diuturnamente. Assim, assumir a função de cuidador de um idoso dementado não é um papel transitório, porque na maioria dos casos o portador irá viver 10 ou 20 anos em situação de crescente dependência, requerendo atenção contínua nas 24 horas do dia. A maneira como as famílias lidam e se organizam para assumir estes cuidados é muito variada e muitas vezes envolvem outras pessoas que fazem parte do grupo doméstico, como as empregadas domésticas. É exatamente sobre as práticas concretas desenvolvidas no cuidado dos idosos dementados, com suas estratégias, seus dilemas e conflitos, que desenvolvemos o presente texto. Procuramos assim colocar em evidência não um caráter prescritivo sobre como devem atuar os cuidadores, mas recuperar através da pesquisa a sua fala, com seus reclamos, necessidades e soluções quotidianamente construídas. No Brasil essa talvez seja uma situação um pouco mais caótica do que em outros países da Europa e América do Norte, porque aqui as famílias não contam com qualquer tipo de rede suporte de saúde ou social. Ainda que a Política Nacional de Saúde do Idoso, regulamentada pela Portaria 1395 de dezembro de 1999, reforce a importância de se estabelecer uma “parceria” que envolva “cuidadores profissionais” e “cuidadores leigos”. De tal modo, que a assistência domiciliar aos idosos fragilizados, oferecida pelos profissionais, compreenda também esclarecimentos e orientações aos cuidadores quanto aos cuidados que devem ser prestados aos idosos, bem como o que fazer para garantir a manutenção de sua própria saúde. No caso da Doença de Alzheimer, demência que mais comumente afeta a população idosa (algo em torno de 50% dos casos de demências), foi criada a Portaria Nº 703/GM/2002. Essa propõe um programa de assistência aos portadores desta doença e suporte a seus familiares dentro do âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS -, mas que até o momento praticamente não saiu do papel, a exceção da distribuição gratuita de medicamentos, que mesmo assim ocorre de forma irregular. Assim, o vir-a-ser um cuidador de um idoso dementado no contexto domiciliar implica numa multiplicidade

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de interações, negociações, aproximações e separações, dilemas e conflitos interpessoais, que precisam ser melhor estudados. É importante lembrar que, num sentido mais amplo, a situação de dependência tende a crescer com a idade, levando a estimativas de que 40% da população com mais de 65 anos requer auxílio para atividades como compras, cuidar das finanças, preparar refeições, limpar a casa e que 10% necessita de auxílio para tarefas tão básicas quanto como tomar banho, vestir-se, ir ao banheiro, alimentar-se, etc. (RAMOS et al., 1993). O que mostra a importância de estudos de práticas quotidianas e a necessidade de uma ampliação das pesquisas junto à população idosa para conhecer seus círculos domésticos, suas relações sociais e o tipo de apoio e ajuda mútua que podem contar. Aliás, neste mesmo sentido o envelhecimento populacional deveria nos preocupar mais acentuadamente no que tange a vitimização de idosos, seja no âmbito familiar ou outro, que pode estar crescendo seja pelos maus-tratos e abusos de familiares, ou apropriação financeira realizada pelos mesmos[1]. É exatamente nos termos de situações limites, especificamente aquelas que envolvem um acentuado grau de dependência de pessoas idosas e as modalidades de atenção e cuidado que elas necessitam que colocamos em debate o presente texto. Trata-se de um estudo sobre as práticas dos cuidados com pessoas idosas com demência e a dinâmica familiar dos seus cuidadores, seus dilemas, estratégias e conflitos. Destacamos, em termos teóricos, a necessidade de uma revisão conceitual no campo da violência e da conflitualidade como expressão de tensões e dilemas, geralmente considerados como momento de negação das relações sociais. Na perspectiva teórica adotada aqui, o conflito é uma categoria analítica de relações sociais, e não a sua negação como no discurso moral. Em outros termos, procuramos colocar em evidência a capacidade produtiva do conflito, como um dos autores deste trabalho vem defendendo nos últimos anos (RIFIOTIS, 1997, 1999). Seguindo a tradição inaugurada por Simmel (1992), procuramos mostrar que o conflito, assim como a cooperação, faz parte da sociedade, é uma espécie de regulador social e fonte de mudanças sociais e é uma solução de tensões, restabelecendo unidades em crise. Como mostramos no presente texto, os sentimentos e as cobranças e incompreensões são causa dos conflitos entre familiares e são os elementos de dissensão. Uma vez desencadeado o conflito, passamos por um movimento de proteção contra o dualismo que separa, abrindo-se a possibilidade de uma via que pode levar a uma nova unidade, ou nas palavras de Simmel: “o conflito é uma resolução das tensões entre contrários” (1992,p.20). Em síntese, a tendência de crescimento da parcela da população, cuidadores e portadores, envolvidos em situação de dependência, coloca a necessidade de um melhor conhecimento das suas dificuldades para que possamos pensar modalidades de suporte social que possam contribuir para um melhor enfrentamento das dificuldades e possibilitar o desenvolvimento de uma melhor qualidade de vida para todos. Por esta razão consideramos oportuno focalizar as experiências quotidianas dos cuidadores familiares de portadores de demências, a dinâmica do cuidado e da conflitualidade intra-familiar, a partir de um diálogo interdisciplinar e um exercício de reflexão a quatro mãos.

2 – SINOPSE DA PESQUISA EMPÍRICA

Frente a este contexto, tivemos o interesse de pesquisar os significados atribuídos pelos cuidadores familiares ao processo de cuidar de um idoso dementado, no espaço doméstico, e sua implicação no modo de vivenciar os dilemas e tensões nas experiências concretas quotidianas das famílias. Na busca de uma melhor compreensão dessas

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questões um dos autores deste trabalho realizou uma pesquisa qualitativa inspirada no pensamento interpretativista de Geertz (1989) e nos referenciais da antropologia da saúde, utilizando a etnografia como referencial metodológico. O estudo foi realizado com doze famílias, das quais seis famílias eram de origem nipo-brasileira e seis famílias de origem brasileira, residentes no Estado de São Paulo. A coleta dos dados foi feita nos domicílios, mediante agendamento e consentimento prévio, no período entre abril de 2000 e julho de 2001, com um mínimo três e um máximo de sete visitas a cada grupo familiar. Para essa etapa do estudo foi utilizada as técnicas de observação direta de cuidadores e entrevistas abertas com os membros das suas famílias, procurando caracterizar-se as práticas e representações mobilizadas em torno do cuidado aos idosos dementados. Optou-se por entrevistar outros membros de cada grupo familiar, além daquele que a literatura chama de “cuidador familiar primário”, para que pudéssemos alargar o horizonte da pesquisa restituindo a complexidade das relações, dilemas e conflitos mobilizados nas práticas dos cuidados. Assim, pode-se perceber ao longo da pesquisa que a doença afetava não somente a pessoa idosa e o “cuidador primário”, mas a toda sua família e que seria necessário buscar compreender melhor como ela repercutia nos outros membros da família. Por este motivo, em vários momentos, foram entrevistados os demais membros de cada família a fim de poder se compreender como ocorriam as interações com outros familiares e suas relações com o idoso dementado, bem como a organização familiar dos cuidados, formando uma rede de suporte, como eles se articulavam para tomada de decisões, e como avaliavam as suas experiências de cuidadores. Em outros termos, como se definem os papéis de cuidadores, as suas responsabilidades e como elas são aceitas e rejeitadas, no processo de definição da atribuição da posição de cuidador na sua pluralidade. Essas diferentes situações produziram registros de campo, representações da relações de parentesco entre os membros das famílias (heredogramas) e um corpus inicialmente constituído pela transcrição literal do conteúdo das entrevistas. Todo esse material foi utilizado no processo de análise dos dados, tendo sido realizada uma análise de discurso com o apoio do programa computacional - QSR NUD*IST (Non-Numeric Unstructured Data, Índex, Searching and Theorizing). Através de uma análise profunda desse material foi possível identificar os principais eixos temáticos que derivaram das falas desses cuidadores, que foram: a construção da demência como doença e a ressignificação do familiar como doente, o cuidador familiar na sua pluralidade, a complexidade do processo de cuidar, o grupo doméstico e a dinâmica de interações com o cuidador familiar, tensões, dilemas e conflitos vividos pelos cuidadores2. Desta forma, nossa proposta neste artigo é apresentar e discutir as relações interpessoais e os conflitos identificados a partir de entrevistas e observações diretas junto a famílias cuidadoras de idoso dementados. Assim, buscamos investigar os conflitos que mais comumente acontecem nas interações do cuidador com o portador; cuidador e os demais membros da família; o cuidador com ele mesmo, ou seja, com os seus dilemas éticos e pessoais.

3 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

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A partir da revisão da literatura, de nossas observações de campo e das entrevistas realizadas, consideramos que a primeira grande questão a ser abordada é a eleição da pessoa que exercerá as função de cuidador familiar principal. Buscamos dialogar com a literatura especializada no sentido de descrever como se estabelecem as interações interpessoais, com suas tensões e conflitualidades, e como acontece efetivamente a definição do cuidador de um idoso portador de uma Síndrome Demencial. A dimensão fundamental da eleição do “cuidador familiar” está intimamente ligada ao campo das estruturas de parentesco e dos modelos de relações de intimidade, e a definição de modelos de distribuição de obrigações e deveres. No âmbito destas relações a questão de gênero ocupa posição central, o que fica evidenciado nos trabalhos e pesquisas da literatura gerontológica, pois são as mulheres a grande maioria do contingente de cuidadores das pessoas idosas fragilizadas3. É digno de nota, no entanto, que nas doze famílias com as quais trabalhamos encontramos também homens assumindo o papel de cuidadores principais, ainda que, para tanto contassem com a ajuda de outros elementos da família ou de terceiros, geralmente do sexo feminino. Entendemos que esta questão mereceria um estudo específico que nos permitisse compreender melhor como atua o cuidador do sexo masculino e se há diferenciação significativa na prática do cuidar. No que tange ao grau de parentesco lembramos que, o que interfere na escolha dos cuidadores familiares são as relações de parentesco que estes mantêm com o idoso, pois geralmente é em torno da família, das articulações de gênero e das gerações que se estabelecem ao longo de uma vida em comum que isso irá se definir. Estudos e pesquisas realizados apontaram que em primeiro lugar é o cônjuge quem mais assume o papel de cuidador primário, não apenas pela proximidade afetiva, mas também pelas responsabilidades assumidas no matrimônio e por obediência às normas e padrões sócio-culturais4. Na nossa pesquisa observamos um comportamento bastante semelhante ao citado na literatura, mas cabe destaque especial para o fato de que em 60% das famílias existia a figura da “empregada doméstica”, que além de desempenhar as funções para as quais fora contratada, tinha também um significativo papel no processo de cuidar do idoso dementado. Isso só foi possível perceber-se porque fomos aos domicílios não apenas para fazer as entrevistas, mas também para fazer a observação in loco de tudo o que envolvia o processo de cuidar de um idoso dementado no contexto domiciliar. Dessa maneira, procuramos identificar como se estabelecia a rede de suporte ao cuidador e as suas interações não somente no interior da família mas com todos os elementos do grupo doméstico. Parece-nos, que a figura da empregada doméstica ainda é bastante invisível na literatura referente a cuidadores, porém ela é uma grande facilitadora do trabalho do cuidador possibilitando a esse inclusive assumir outros compromissos. Em síntese, a empregada doméstica está envolvida nas atividades de cuidado e atua como um mediador importante, inclusive para diminuir as tensões do cuidador principal. As faixas etárias dos cuidadores familiares primários variam de acordo com a relativa hierarquia que existe em relação a sua escolha entre as gerações: entre os cônjuges a idade média está em torno dos 70 anos, mas oscila na

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faixa dos 60-75 anos. Vale lembrar que, não raramente, encontramos cônjuges cuidadores com 85 anos ou mais. Já entre as(os) filhas(os) e noras a faixa etária é uma pouco mais elástica, estendendo-se entre os 40-60 anos, com casos eventuais de pessoas com idade um pouco superior, também. Ao nos referirmos a netas(os) como cuidadores devemos pensar que se trata de indivíduos saindo da adolescência e entrando na vida adulta e, portanto, numa forte quebra de expectativas dos projetos indivíduais5. A escolha do cuidador está intimamente ligada à “proximidade física”, ou seja a pessoa da família que está mais próxima do portador, geralmente aquela que mora junto com o idoso ou com quem ele passa a residir, como por exemplo, no caso de uma nora. A proximidade física está intimamente ligada a relações de parentesco e mais especificamente à uma “proximidade afetiva”, destacadamente conjugal ou filial. Além desses critérios, citados por Mendes (1998) é possível encontrar-se em uma mesma família vários tipos de cuidadores (primários, secundários, terciários)6 que ocupam posições diferentes de acordo com as circunstâncias, os diferentes períodos de evolução da doença e/ou da dinâmica familiar. Através das observações realizadas na pesquisa de campo o que parece se evidenciar é que em uma mesma família vamos encontrar as mais diversas configurações de cuidadores, que ocuparão maior ou menor destaque de acordo com a demanda de cuidados requeridos pelo portador e/ou condições do cuidador em executá-los. Poderíamos chamar esta estrutura de "rede de cuidadores" e a dinâmica de posições assumidas pelos diversos cuidadores chamamos de "balé de cuidadores". Um cenário que longe de ser totalmente equilibrado e harmonioso está, como temos procurado mostrar até aqui, marcado também por controvérsias e pela falta de sincronia. As situações com maior tensão entre o cuidador e os demais membros da família foi observada quando o cuidador principal não tem relação conjugal com o portador. A responsabilidade e o conseqüente desgaste físico e emocional que acompanham o desempenho das atividades diuturnas de cuidado, assim como a adaptação dos projetos individuais à condição de cuidador principal, são percebidos como mais problemáticos quando a relação entre cuidador e portador modifica modelos de relacionamento intra-familiar. Apenas para dar um exemplo, podemos imaginar que uma filha mais nova pode passar a ter ascendência sobre os demais membros da família na definição de cuidados e de gastos. Porém, a conflitualidade expressa em constantes reclamações e cobranças, geralmente acompanhadas por um reconhecimento do sacrifício, conferem ao cuidador uma certa ascendência no interior do grupo familiar. Aliás, não é raro que tal posição seja até mesmo disputada quando está envolvida uma herança. Como todos os quadros conflitivos, as situações de crise confundem temporalidades, fazendo ressurgir disputas antigas que se cruzam com situações atuais. Tal situação é possível de ser percebida nos seguintes relatos: "Minhas irmãs e meus irmãos vem todos os finais de semana aqui para casa para ajudar a cuidar de minha mãe, nesses dias minhas irmãs assumem todos os cuidados, é quando eu posso sair. Mas minhas irmãs não são boas cuidadoras, ficam fazendo corpo mole, a que mais ajuda é a mais velha, ainda assim precisa ser lembrada. Eu já experimentei não lembrar o horário da troca de fraldas e elas deixaram minha mãe quase todo dia sem trocá-la, foi necessário que eu perguntasse na metade da tarde quando elas iriam trocas as fraldas da mãe? O mesmo acontece com a alimentação e o banho!...isso me incomoda, pois não consigo ficar totalmente descansada e despreocupada."

(Brinco-de-

Princesa - 42 anos - filha - Fnb7 4)

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"Minha vida mudou muito depois que eles (sogros) vieram morar aqui, não temos uma folga e nos finais de semana sempre temos que passar lá e eles estão sempre se queixando de solidão. O meu marido esperava que outras pessoas da família fossem nos ajudar, mas o meu cunhado só passou a assumir mais depois que as coisas pioraram muito. Ele quase não os procurava, mas eu ainda tive que ouvir dele que ele não fazia mais pelos pais porque eu não deixava espaço...ele chegou a dar a entender que eu fazia tudo isso contando em receber ou ficar com parte da herança, isso ainda está trancado aqui..."

(Lis - 34 anos - nora - Fb8 1)

"Meu marido está com grandes dificuldades para entender a doença que sua mãe vem enfrentando e tenta negar tudo isso tratando-a com o máximo de normalidade possível, porém exigindo dela o que ela não tem mais condições de corresponder. Esta talvez seja uma forma de negação da realidade e de um problema que está sendo muito difícil de enfrentar...uma vez que só restou ele e uma irmã que mora nos EUA. Minha sogra foi passar uns tempos lá, mas minha cunhada não agüentou por muito tempo e antecipou sua viagem de volta para o Brasil." (Papoula - 44 anos - nora - Fb 6)

"Eu gostaria muito de estudar, me especializar, meu marido cobra inclusive isso de mim, mas no momento eu não posso pois tenho que cuidar das crianças, faço todo o serviço da casa e trabalho fora todas as tardes. Além disso não temos dinheiro sobrando que me permita pagar nada, pois assumimos todas as despesas dos meus sogros." (Lis - 34 anos - nora - Fb 1)

Por outro lado, foi possível também perceber que o cuidador surge através de uma relação, digamos, dialética com o não-cuidador, isto é, a medida em que um dos membros da família vai se comprometendo cada vez mais com o processo de cuidar do idoso, outro ou outros se desvencilham dele. O que não quer dizer que se omitam em participar ou em compartilhar questões financeiras, opiniões e sugestões quanto a encaminhamentos ou mesmo críticas quanto ao cuidado executado. Este tipo de dinâmica nunca acontece de forma tranqüila e linear, ou seja, as relações interpessoais quase sempre são bastante afetadas e possuem momentos de maior e menor conflitualidade, quase sempre relacionados as mudanças ocorridas na evolução da doença do idoso.

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"A minha filha fala mãe, mas que paciência! Eu não agüento, eu não agüento ela diz! Então eu peço a Deus todo dia para me conservar enquanto ele existir, porque todo mundo tem ocupação fora de casa, e outra, paciência não são todas as pessoas que tem!...quero dizer que eu não tenho ninguém que diga olha eu vou ficar aqui algumas horas para você descansar um pouco...eu não tenho!" (Bromélia - 75 anos - esposa - Fb 8)

"Eu decidi assumir os cuidados com os meus sogros porque esperei que os filhos tomassem alguma providência. Ninguém, ninguém se manifestou. Eu nunca perguntei o porque? Talvez eu até devesse ter perguntado! Bom, desculpas é que não faltam! A filha é quem mais demonstra algum sentimento de culpa e também de reconhecimento...Tomei para mim os cuidados com os meus sogros porque achei que era minha responsabilidade...Eu gostaria que todos ajudassem a cuidar!" (Margarida - 53 anos - nora - Fnb 7)

Uma outra fonte importante de tensão para os familiares em geral e especialmente para os cuidadores é uma insatisfação com o diagnóstico da doença. Nas entrevistas são recorrentes as referências a falta de informações prestadas pelos médicos e profissionais da área da saúde. Entendemos que a informação dada é considerada insatisfatória, ainda que claramente comunicada ao portador de uma síndrome demencial e a seus familiares, quando esta se resume a um diagnóstico e a afirmação da inexistência de tratamento efetivo e da impossibilidade de cura. Há uma recusa por parte dos familiares do quadro fechado contido no diagnóstico cujas únicas perspectivas são o seu caráter progressivo e degenerativo. A questão não deve ser encarada apenas como uma simples recusa da realidade por parte dos familiares. Entendemos que os profissionais estão sendo solicitados a pensar no significado concreto do diagnóstico para a vida quotidiana dos cuidadores familiares, e a contribuir para o desenvolvimento de estratégias de ressignificação e mudança de comportamento que decorrem de um tal diagnóstico. Para além de uma trajetória terapêutica, na qual são mobilizados os familiares em busca de outros diagnósticos ou de modalidades terapêuticas, cuja análise é fundamental para compreensão da concepção de doença dos cuidadores, vejamos a seguir a complexidade do quadro e suas implicações nas práticas quotidianas dos cuidadores. A família e o portador só vão tomar consciência efetivamente das repercussões de tal doença à medida em que passam a conviver diariamente com alterações de comportamento que muitas vezes confundem os cuidadores. De fato, dado o seu caráter intermitente, os distúrbios de cognição e memória na sua fase inicial pouco distinguem-se de comportamentos intencionais de desatenção, descuido ou simplesmente de teimosia, aumentando o stress do cuidador, elevando o seu grau de irritabilidade e de tensão na sua relação com o familiar portador. Os depoimentos coletados com cuidadores familiares na pesquisa mostraram a importância desta dimensão geradora de tensão e de conflitos:

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"A gente demorou a achar que ela estava doente porque ela sempre foi de fazer intrigas na família, inventava histórias e colocava uns contra os outros. Nós pensávamos até que ponto ela estava doente até que ponto estava mentindo?! Ai eu ficava intrigada, era difícil separar o que era doença e o que era fofoca." (Liz - 34 anos - nora - Fb 1)

"Eu também brigava com ela porque quando ela ia me ajudar na cozinha ela nunca conseguia guardar as coisas no lugar certo, misturava tudo." (Petúnia - 61 anos - filha - Fnb 5)

O quadro crônico-degenerativo da demência é um elemento crítico da situação do cuidador, pela grave quebra de expectativa nos seus planos e projetos para um período que seria marcado pelo afastamento das exigências da vida quotidiana e a realização de um estilo de vida mais tranqüilo. Fato este fortemente marcado para os cuidadores cônjuges, sobretudo porque se dá principalmente num momento da vida em que os limites e o adiamento constante do lazer por causa do trabalho ou das demandas dos filhos estaria superado. Muitos entrevistados relutaram em admitir que se trata de uma doença crônica e sem possibilidade de cura, saem desesperados em busca de todo tipo de tratamento, gastam todas as reservas financeiras disponíveis, mas principalmente exigem do portador muito mais do que ele pode oferecer, isto é, querem a todo custo que ele se mantenha bem, que apresente algum tipo de melhora, que dê conta das atividades que comumente desempenhava com grande habilidade. Assim, temos um quadro de tensão, pois o cuidador é altamente exigente e o portador não consegue corresponder e dá a esse a sensação de que na verdade não quer corresponder, o que podemos verificar nos seguintes exemplos:

"Eu conheço minha mulher há mais de 30 anos, ela era excelente costureira e muito boa dona de casa...eu sonhei em usar nossas economias para reformar a casa, trocar de carro e viajar com ela. Eu já gastei toda minha poupança com a doença dela. Eu já procurei todas as ajudas possíveis e continuo procurando tratamento para ela...não sei quando nós vamos pode viajar juntos! " (Girassol - 55 anos - marido - Fb 2)

"Sempre que eu esqueço alguma coisa ele(marido) briga muito comigo, deixando-me mais nervosa e ai mesmo que eu não lembro de mais nada." (Begônia - 71 anos - portadora - Fb 10)

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"Eu digo você sabe, você sabe mais do que eu. Eu empurro assim mais que eu posso, só que tem hora que a gente se perde um pouco, tem hora que esgota...Eu faço tudo, tudo o que eu posso. O que ela está mais atrapalhada mesmo é para trocar a roupa. Ontem eu percebi que ela não tomou banho direito, ai eu falei: hoje você vai tomar banho e eu vou junto com você porque eu percebi que a bucha que a gente usa no banho ficou seca."

(Lírio - 75 anos - marido - Fb 10)

Para termos uma noção mais precisa da dificuldade desta experiência, sobretudo nos seus momentos iniciais, é importante levar em conta que o próprio portador pode estar percebendo seus lapsos e que ele mesmo procura desesperadamente dissimula-los e ocultar suas falhas. Ao ser descoberto, geralmente pelo cuidador, ele tenta eximirse da responsabilidade pelo atos cometidos. O que aumenta a desconfiança do cuidador e por conseguinte pode desencadear situação de confronto, pois a responsabilização perde-se na dificuldade de compartilhar com o portador algo que ele nem está mais lembrado de ter feito ou dito. Percebe-se a grande dificuldade que ambos têm de compreender a doença e, para o familiar cuidador, de aceitar o doente. Como é possível constatar-se nestas falas:

"Muitas vezes eu já pensei que minha sogra não está tão atrapalhada porque como é que ela não consegue fazer as coisa certas, mas sempre tem uma resposta pronta para dar onde todo mundo tem culpa menos ela, a razão é sempre dela, como consegue pensar assim?!" (Madressilva - 44 anos - nora - Fnb 5)

"Meu marido perdia a paciência com a mãe e ficava danado com as coisas que ela me dizia...ele achava que não era doença e sim do temperamento dela...eu não ligava, não me ofendia, sabia que era da doença...eu tinha dó dela." ( Sempre-Viva - 55 anos - nora - Fnb 3)

"Meu marido exige coisas da mãe dele que ela não está podendo mais fazer...a ficha dele ainda não caiu com relação aos reais limites dela. Eu já percebi que há muito tempo ela não está mais conseguindo se servir direito, então eu passei a fazer o prato dela, mas mesmo assim ela deixa cair comida na toalha e no chão, ai ele começa a chamar a atenção dela e ela diz: quem fez isso? Eu não fui! Ai ele revida...e eles vão batendo boca...ela sempre coloca a culpa em terceiros." (Papoula - 44 anos - nora - Fb 6)

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Para a família a fase inicial é especialmente difícil porque, neste momento, a imagem que possuem do idoso é aquela construída ao longo de anos de convivência e fortemente relacionada com os papéis desempenhados por essa pessoa no contexto familial. Portanto, é ao longo do processo de evolução da doença e no exercício do papel de cuidadores que a família vai lentamente refazendo essa imagem do idoso ao mesmo tempo em vai elaborando as perdas que essa mudança acarreta na vida de cada um deles. Nos relatos isso aparece sempre através da comparação entre “como ele era” e “como ele está”, bem como nos seguidos questionamentos sobre até que ponto isso é realmente da doença ou um traço de personalidade.

"Quando o médico aqui disse o que era a doença dele eu fiquei muito triste, chorei muito, muito, muito, eu só chorava...então meu filho falou que tinha um médico especialista nisso em São Paulo...eu tinha que ir levar ele a São Paulo toda vez, isso era muito difícil porque eu nunca tinha ido a São Paulo e não sabia andar lá, além disso tinha que cuidar dele porque senão ele se perdia...Passei um dia lá e não consegui tomar nem um copo d'água, cheguei em casa cansada, desesperada e chorei muito, muito, muito. Assim, eu entendi que não podia mais contar com ele para nada, não tinha mais com quem dividir, eu tinha que resolver tudo sozinha e tinha que ser forte, pois tudo dependia de mim dali para frente, ai pouco a pouco eu fui me acostumando e aprendendo a lidar com ele. Por isso eu digo que ele é o meu nenê, pois depende para tudo." (Amor-Perfeito - 63 anos - esposa - Fnb 12)

"Ele está completamente abobado, tem oras que fala bobagem, tem oras que não entende as coisas, assim também é muito triste, pelo amor de Deus! É doloroso, eu choro porque eu falo, ele não merecia meu Deus! Ele sempre foi uma pessoa dinâmica, trabalhador, bom pai e bom marido, nunca fumou, nunca bebeu e agora está imprestável, é duro viu?!"

(Bromélia - 75 anos -

esposa - Fb 8)

Nas entrevistas com os cuidadores são constantes os relatos das dificuldades em lidar com o doente, que são sistematicamente acompanhados por descrições de momentos de impaciência. Percebemos, que na intensa interação que se constitui o ato de cuidar de alguém diuturnamente haja um limite de paciência, onde a repetida persistência de comportamentos considerados inadequados, realizados pelo portador, leva ao rompimento desse limite. Tal fato muitas vezes faz com que o cuidador venha a manifestar a sua raiva e até mesmo agredir o portador. Junto com esta situação de conflitualidade o cuidador passa a experimentar sentimentos de raiva em relação ao doente e a doença, ao mesmo tempo em que se culpa por sua falta de paciência e habilidade em lidar com a situação, e percebe, que procura desesperadamente interagir com uma pessoa que não está mais ali.

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Um sentimento amplamente relatado pelo cuidadores, associado a situações tidas como incompreensíveis, é o de vergonha e de evitação do convívio social mais amplo. São situações particularmente constrangedoras para os cuidadores ver o familiar dementado despir-se em público, abordar inesperadamente pessoas desconhecidas na rua, não atender aos hábitos rotineiros de comer à mesa e mesmo não usar o banheiro para as suas necessidades fisiológicas. Em tais situações diríamos que a discussão com o portador é ao mesmo tempo inútil e um modo de expressar o seu desagrado e embaraço, levando a um aumento de isolamento que provoca um aumento da tensão na relação com o portador. Os depoimentos dos familiares quase sempre descrevem essas situações com bastante emoção. Podemos afirmar que, geralmente, estas manifestações de inconformismo, são eivadas de sentimentos contraditórios, notadamente um sentimento de culpa quando o cuidador volta a se dar conta dos limites efetivos do seu familiar, o que nos foi descrito em várias situações da pesquisa e que retratamos sumariamente nas falas a seguir: "As vezes ele acerta e faz no vaso sanitário, mas sempre sou eu que tenho que limpá-lo e lavá-lo, mas as vezes eu não vejo e ele faz no bidê ai me dá muito trabalho porque entope tudo. E ele fala: tem obrigação, é obrigação tua, faz mesmo! Eu falo: mas já estou cansada! E ele retruca: é para estar cansada mesmo! De vez enquanto eu tenho vontade de dar um soco nele viu?! De vez enquanto eu dou um soquinho nele, e ele diz: não faz Bromélia! Não faz isso que eu te pego Bromélia! Porque, ah! Tenha dó, não é Sílvia! Cansada do jeito que eu estou e ele ainda fala que é obrigação minha, o que é isso?!" (Bromélia - 75 anos - esposa - Fb 8)

"Eu pedia para ela me ajudar a preparar o almoço ou o jantar e não dava, ela não fazia nada certo! Eu tinha que dizer o tempo todo não é assim mamãe é desse jeito, não é isso mamãe, é aquilo...eu falava tudo e ela errava sempre, eu tinha que repetir toda vez a mesma coisa e ela errava sempre e ainda não gostava quando eu corrigia, ela fechava o rosto ia e se fechava no quarto...Eu via que ela ficava chateada porque eu corrigia ela! ...agora ela não está fazendo mais nada, nada, nada porque quando queria me ajudar acabava que nós duas sempre brigávamos, mas a gente cansa, né!" (Petúnia - 61 anos - filha - Fnb 5)

"Muitas vezes eu fiquei com sentimento de culpa, agora mesmo quando eles foram para casa do meu irmão eu pensei porque eu não tive mais paciência com mamãe? Será que não sou eu que não sei tratar com eles? Eu tinha que ter mais paciência eu sei que ela está doente, as quando as coisa acontecem, na hora a gente acaba brigando. Eu senti e sinto muita culpa!"

(Petúnia - 61

anos - filha - Fnb 5)

Um aspecto crítico da situação de conflitualidade é possibilidade ou necessidade de institucionalização do familiar dementado. Trata-se de uma questão intrínsicamente polêmica pois através dos pontos de vistas divergentes

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se consolidam as posições de sacrifício do cuidador principal, as reclamações de falta de apoio, a reafirmação do amor filial e do valor das relações e dos compromissos intra-familiares. Na realidade, assiste-se a uma espécie de dramatização de dilemas próprios da situação e que se apresentam para os familiares como sem solução conclusiva. É digno de nota neste sentido que raramente alguém assume a responsabilidade pela institucionalização e que o cuidador principal, que tanto sofre com a sua condição, é quem mais se opõe à institucionalização. Mesmo nos casos em que se opta por cuidados profissionais em instituições especializadas, resta ainda uma polêmica sobre a escolha da instituição e a divisão dos custos, quando os recursos do portador não são suficientes. "Eu sei de gente que ficou falando é porque tem que botar num asilo porque senão a sua mãe não vai agüentar! Eu já acho que não...a minha mãe já está com idade, mas ela tem condições de estar lá perto dele...eu sei que ele gosta da casa dele."

(Sempre-Viva - 55 anos - filha - Fnb 3)

"Ai me falaram interna ele, mas onde eu vou internar ele? Uma que eu tenho dó e outra que eu não tenho condições! Eu não vou internar ele em qualquer lugar! Colocar ele numa clínica por 1 ou 2 meses para eu descansar eu não tenho condições porque uma clínica é caro." (Bromélia - 75 anos - esposa - Fb 8)

"Eu tive que internar a Camélia depois que a empregada foi embora, eu não tinha condições de cuidar dela. Ela está muito bem cuidada na clínica...eu vou ficar com ela lá todos os dias. Eu estou fazendo das tripas o coração para pagar a clínica e o resto das despesas." (Girassol - 55 anos - marido - Fb 2 )

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como apontamos no início desse trabalho a rapidez e a intensidade com que está se dando a transição demográfica no nosso país tem por conseqüências fortes implicações societais, para as quais nos faltam informações

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sobre a sua extensão e implicações no âmbito público e privado. Semelhante situação vem exigindo quotidianamente e num curto espaço de tempo reconfigurações de modelos e práticas sociais, com mudanças de valores, formas de convívio e de interação intergeracional, inclusive no interior das famílias. Múltiplas foram as demandas e necessidades dos idosos e seus familiares identificadas em nossa pesquisa, sendo que para grande maioria dessas não havia preparação adequada de meios e de formação. Observamos que a ausência de uma rede de suporte de saúde ou social, que oferecesse o apoio necessário à essas famílias, tornava mais difícil a vida quotidiana dos cuidadores de idosos dementados no domicílio. O que confirma o fato de que os únicos serviços disponíveis eram as instituições de longa permanência também chamadas de "casas de repouso". Constatamos, que essa era a última opção desses cuidadores, pois desejavam continuar cuidando de seus familiares e só deixaram de fazê-lo quando se encontravam no limite de suas capacidades. Podemos dizer, que tal situação ainda se faz presente porque o pouco suporte disponível as famílias cuidadoras está restrito ao que é oferecido pelos planos de saúde e serviços privados. No entanto, a Política Nacional de Saúde do Idoso (regulamentada pela Portaria 1395/ 99) define que o cuidado com os idosos seja prioritariamente realizado pelos familiares, no contexto domiciliar, através de uma "parceria" que envolva cuidadores profissionais e cuidadores leigos. Além do mais, a referida "parceria", que sintetiza a Lei, pressupõe a figura de um único cuidador, não levando em consideração a importância de se estabelecer uma relação com toda a "rede de cuidadores familiares" que cada grupo familiar desenvolve. Conforme observamos nessa pesquisa não existe a figura "do cuidador", mas uma "rede de cuidadores" que se organizam para prestar o cuidado ao seu familiar através de uma dinâmica que ousamos chamar de balé de cuidadores. Isto posto, fica evidente que toda e qualquer medida de orientação, suporte social e emocional deve buscar envolver o maior número de familiares que fazem parte dessa rede a fim de que efetivamente se possa otimizar um trabalho em parceria. A reflexão aqui proposta aponta para a necessidade de estudos específicos sobre as mudanças nos modelos de família e suas relações com o aumento de um segmento populacional com crescente grau de dependência, sobretudo num contexto como o brasileiro no qual os serviços públicos não têm conseguido atender as demandas sociais, construindo na figura do “cuidador familiar” um campo de intervenção social sem o devido apoio público, o que tem onerado significativamente os familiares. Concretamente, estão sendo multiplicadas as situações conflitivas sem que tenhamos apoio para que elas sejam moduladas, podendo resultar no limite crises até mesmo violentas, pela simples falta de um suporte técnico para os familiares. Afinal, como temos procurado destacar na nossa análise, há uma "dança de cuidadores" no contexto familiar, ainda que ela não ocorra livre de tensões, dilemas e situações de conflitualidade ao longo de todo o processo. Ressaltamos a partir de nossa reflexão que os serviços de apoio aos cuidadores familiares que visem minimizar as situações de conflitualidade deveriam observar basicamente a seguinte pauta: 1. Distúrbios de cognição e memória dificultam a interação cuidador e portador. 2. A família não consegue ter uma real compreensão sobre o que é a doença e como ela afeta o doente. 3. Existe a necessidade de reconstrução da imagem que possuem do idoso, uma vez que associado a perda de papeis ocorre simultaneamente uma inversão dos mesmos. O cuidador busca insistentemente

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por uma pessoa que não está mais ali. 4. Há falta de paciência com a repetição de erros cometida pelo portador e a dificuldade do cuidador em trabalhar com os sentimentos de raiva e culpa. 5. A família busca o isolamento social por sentir vergonha pelos comportamentos inadequados do portador e por não saber como lidar com essas situações. 6. O cuidador sente grande frustração por perceber que há necessidade de alterar seus projetos de vida pela falta de perspectivas futuras para ele e o portador, ainda assim, busca insistentemente mantê-lo ativo no desempenho de suas atividades e competências. 7. Ocorre disputa pelo poder e competição entre os cuidadores. 8. Existe a necessidade de resolver-se questões financeiras. 9. Tensões na relação dialética da mútua definição do cuidador com os não-cuidadores. 10. Dificuldades do cuidador na tomada de decisão pela institucionalização do portador.

Em resumo, no universo dos cuidadores de pacientes com Síndrome Demencial as dificuldades são quotidianas e nada pode resolvê-las definitivamente. São quadros de longa duração sem possibilidade de reversão que precisam ser ressignificados para a constituição de novos arranjos intra-familiares, de uma revisão e redimensionamento de projetos pessoais, da construção de um novo lugar para a pessoa do parente dementado, para as perdas e o sentimento de impotência frente a uma doença degenerativa e progressiva, a limitação do convívio social, os sentimentos ambivalentes, entre outros. Em uma palavra, um quadro de tensões e dilemas que poderia levar a um rompimento das relações familiares, e que no entanto, na maioria dos casos, gera condições de diálogo fundamentais para a expressão e o enfrentamento das divergências, com ganhos para os cuidadores e para o fortalecimento das relações intrafamiliares. Os momentos de crise, de conflito aberto, potanto podem ser comparados como uma dramatização que permite aos agentes sociais cuidadores uma revisão de suas posições e o estabelecimento ou renovação dos seus pactos de intimidade, mostrando-se concretamente o caráter integrador do conflito. Entendemos que o suporte e acompanhamento dos familiares cuidadores por profissionais deveria levar em conta que os momentos de conflito ao invés de serem interpretados como rupturas, podem ser trabalhados como momentos de, digamos, reconciliação, nos quais são questionadas as bases dos relacionamentos e dos valores subjacentes, possibilitando a renovação, a mudança ou a reafirmação de pactos anteriormente acordados entre os familiares. Em síntese, é preciso possibilitar aos cuidadores familiares, no sentido amplo identificado nesse trabalho, o conhecimento da dinâmica concreta do cuidado de familiares dementados, incluindo a sua dimensão conflitiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1]

Neste sentido é da maior urgência o desenvolvimento de estudos sobre as demandas específicas de segurança pública da população idosa, pois, por sua presença crescente no cenário político e social, ela atua cada vez mais como definidora da agenda e das prioridades sociais como tem mostrado os estudos internacionais neste campo (KINNON e MacLEOD, 1990). 2 A discussão detalhada da pesquisa foi publicada por um dos autores deste trabalho, SANTOS ( 2003).

3 KRAMER e KIPNIS, 1995; HOOYMAN e KIYAK, 1995; ROSE-REGO et al., 1998; MENDES,1998; HINTON e LEVKOFF, 1999; YUASO, 2000; CALDAS, 2002; JANEVIC e CONNELL, 2001; SOMMERHALDER, 2001; ALVAREZ, 2001; NERI e SOMMERHALDER, 2001.

4 BAUM e PAGE, 1991; PENNING, 1991; SILVERSTEIN e LITWAK, 1993; RAMOS, 1993; KRAMER e KIPNIS, 1995; SOMMERHALDER,2001; ALVAREZ, 2001.

5 ROSE-REGO et al., 1998; HINTON e LEVKOFF, 1999; SOMMERHALDER, 2001; ALVAREZ, 2001; JANEVIC e CONNELL, 2001.

6 Tipologia cunhada por SILVERSTEIN e LITWAK (1993).

7 Fnb - sigla que utilizamos para designar as famílias de origem nipo-brasileira.

8 Fb - sigla que utilizamos para designar as famílias de origem brasileira.

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