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Volume

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Os Pioneiros da Habitação Social no Brasil Nabil Bonduki [coord] Ana Paula Koury [coord. adjunta]


O Volume 3 é dedicado à apresentação detalhada e análise de onze empreendimentos habitacionais, realizados entre 1930 e 1964, que apresentam particular interesse do ponto de vista da qualidade arquitetônica, inserção urbana, diversidade de soluções tipológicas e construtivas e valorização do espaço público. Nesses projetos, as diretrizes formuladas pelas divisões de engenharia dos órgãos promotores foram colocadas em prática, gerando conjuntos residenciais de excelente qualidade e que ainda hoje apresentam grande atualidade e interesse como soluções para enfrentar a questão da habitação. O critério utilizado para a escolha dos conjuntos analisados contemplou também a presença de empreendimentos promovidos por diferentes órgãos, a relevância dos profissionais envolvidos nos projetos e certa variedade das cidades onde estão localizados. Os empreendimentos selecionados permitem visualizar as principais propostas do ciclo de promoção habitacional realizadas no momento em que o país começou a tratar a moradia como uma questão social. Embora os onze empreendimentos analisados sejam alguns dos mais importantes conjuntos residenciais produzidos no período, eles estão longe de esgotar a extensa lista de projetos de grande interesse arquitetônico e urbanístico levantados na pesquisa Pioneiros da Habitação Social no Brasil. O inventário sistematizado no Volume 2 revela muitos outros de igual relevância que, por limitação de espaço e tempo, não puderam ser analisados em profundidade. Entre eles, podem ser citados os conjuntos Marquês de São Vicente e Vila Isabel (DHP), Vila Guiomar, Honório Gurgel, Mooca e Salvador (IAPI), Coelho Neto (IAPC), Juscelino Kubitschek (IPASE), Vila dos Marítimos (IAPM), Cruzada São Sebastião, Catumbi (IPESP) e vários edifícios dos bancários, promovidos pelo IAPB em diversas cidades. Além desses, alguns projetos não construídos apresentam também grande interesse, como Cidade Jardim, Sesc e Casa da Comerciária (IAPC), Vila Ipiranga (IPASE), Edifício dos Bancários em Niterói (IAPB), Conjunto Residencial Teófilo Freitas (IPSEP) e Conjunto Residencial CAPSATC (CAPSATC). Esta lista, que poderia ser muito mais extensa, mostra que ainda existe um enorme campo de investigação e análise para ser desenvolvido no país no aprofundamento da pesquisa sobre a produção de habitação social no período.


A análise desses empreendimentos foi realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Pioneiros da Habitação Social no Brasil, sob orientação e coordenação do professor Nabil Bonduki, coautor de vários capítulos e responsável pela redação final de todos. Alguns desses textos resultaram do amadurecimento de uma reflexão originada de pesquisas de iniciação científica, mestrados e doutorados, realizadas pelos membros do grupo entre 1995 e 2010. A metodologia de análise foi desenvolvida de maneira coletiva, em um amplo processo de debate intelectual realizado pelos integrantes do grupo, que estabeleceu um método e roteiro comum de abordagem e de organização dos textos. Buscou-se situar o empreendimento na conjuntura política, no quadro institucional do órgão promotor e no contexto urbano; traçar a trajetória dos autores do projeto; identificar as influências, conceito de habitação e o partido urbanístico e arquitetônico; descrever e analisar o projeto, a construção, a gestão e o uso social dos conjuntos; e, finalmente, mostrar a situação atual do local e refletir sobre a relevância de cada uma dessas propostas para o debate contemporâneo da questão habitacional no Brasil. Visto que os projetos desses empreendimentos foram apresentados de forma sistemática no Inventário do Volume 2, com o redesenho de todas as peças gráficas, optou-se por incluir no presente volume apenas croquis elaborados pelos próprios autores e modelos tridimensionais dos projetos originais, realizados pela nossa equipe de pesquisadores. Com esses modelos, pode-se conhecer melhor os projetos, muitos não realizados integralmente conforme a intenção dos autores ou profundamente alterados ao longo do tempo. De qualquer forma, a consulta ao Inventário pode oferecer informações complementares, sobretudo no que se refere ao detalhamento dos projetos, que não foi repetido neste volume. Entre 2010 e 2011, todos os empreendimentos foram registrados pelo fotógrafo Bob Wolfenson, em ensaio realizado especialmente para ser incluído nesta obra. A contribuição de Wolfenson serve de contraponto às imagens dos mesmos locais realizadas nos anos de 1940 e 1950, período em que foram implantados. Embora a análise realizada não tenha tido o objetivo de detalhar a situação em que os conjuntos se encontram no presente, nem de aprofundar a questão da sua manutenção e obsolescência, temas que devem ser objeto de uma pesquisa específica, o ensaio do fo-

tógrafo e as reflexões sobre essa questão são contribuições adicionais que o trabalho proporciona. Os empreendimentos que foram analisados, em ordem cronológica que leva em conta a data de início da elaboração do projeto implantado, informando ainda a localização, o órgão promotor, autores e data do projeto, são os seguintes: Conjunto Residencial Operário em Realengo Rio de Janeiro, IAPI, projeto do arquiteto Carlos Frederico Ferreira, 1938. Conjunto Residencial Várzea do Carmo São Paulo, IAPI, projeto de Attilio Corrêa Lima e equipe, 1939. Bairro Industriário de Lagoinha Belo Horizonte, IAPI, projeto da CASA (Companhia Auxiliar de Serviços de Administração), com adapta- ção da Divisão de Engenharia do IAPI, 1940. Vila Passo d’Areia Porto Alegre, IAPI, estudo urbanístico do engenheiro Otacílio Saboya Ribeiro; plano urbanístico do engenheiro Marcos Kruter; projeto das unidades e direção das obras do engenheiro Edmundo Gardolinski, 1942. Cidade Jardim dos Comerciários em Olaria Rio de Janeiro, IAPC, projeto do engenheiro Ulysses Hellmeister, 1944. Edifício Japurá São Paulo, IAPI, projeto do arquiteto Eduardo Kneese de Mello, 1945. Conjunto Residencial Pedregulho Rio de Janeiro, DHP, projeto da engenheira Carmen Portinho e do arquiteto Affonso Eduardo Reidy, 1946. Conjunto Residencial da Penha Rio de Janeiro, IAPI, projeto do escritório MMM Roberto (1ª versão, 1939), e da Divisão de Engenharia do IAPI (2ª versão), 1947. Conjunto Residencial de Deodoro FCP, Rio de Janeiro, projeto do arquiteto Flávio Marinho Rego, 1953. Casa da Bancária IAPB, Rio de Janeiro, projeto do arquiteto Carlos Leão, 1953. Conjunto Residencial Paquetá Rio de Janeiro, DHP, projeto do arquiteto Francisco Bolonha, 1949.


Realengo, Rio de Janeiro, RJ

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Casas em fileira Nesta solução o arquiteto avança na sua “didática da coletividade”, já que o módulo formado por duas casas de planta espelhada se repete articulando fileiras, que comportam de oito a dezoito unidades residenciais, conforme a disponibilidade de espaço definido pelo arruamento. Nesse tipo, a varanda funciona como continuação da sala, como um recorte, um vazio escavado no volume. A imagem “nicho para dois leitos” foi estudada para essa planta, indicando um quarto para abrigar duas pessoas em um beliche, direcionado, ao certo, para os filhos de uma família nuclear. O outro quarto abrigaria o casal. Essa unidade, como todas as outras, é estudada e articulada com a disposição do mobiliário. Apesar de terem a mesma área que as casas geminadas duas a duas, possuem um corredor de acesso às peças, tornando menor seu espaço útil, com a vantagem de resguardar e separar as áreas mais íntimas da casa. O correr de casas em fileira sugere duas apreensões diferentes. Na fachada frontal, da altura do olhar, tem-se a impressão de um paralelepípedo, como se a unidade fosse coberta por uma laje, pois o telhado de uma única água cai para o fundo. A vista remete às habitações modernas alemãs, ideia reforçada por uma antiga foto, que revela uma “haste” demarcando a separação entre as unidades, por onde corre uma trepadeira. Esse elemento demonstra o requinte de uma arquitetura preocupada inclusive com os aspectos paisagísticos, bem de acordo com os ideais de obra de arte total do movimento moderno. Nos fundos do correr de casas, a estética mais tradicionalista é recuperada, pois o telhado, agora bem visível, confere rusticidade à construção, composta apenas pelas aberturas das janelas e das varandas, sugerindo a figuração de antigas construções de colonos.

Vista das casas em fileiras, implantadas no alinhamento da rua.

Modelo eletrônico das casas em fileira. Elevações e perspectiva axionométrica da planta.


Várzea do Carmo, São Paulo, SP

A concepção de habitação do urbanista Convidado para elaborar o plano para a Cidade Operária da FNM (Cidade dos Motores), Lima estava determinado a adotar uma concepção moderna, depois de ter cedido em Volta Redonda. O trabalho foi interrompido pela morte do arquiteto, que apenas elaborou um Parecer Técnico, verdadeiro manifesto a favor dos princípios urbanísticos modernos como elementos norteadores da construção de cidades novas e conjuntos residenciais, com uma forte influência corbusiana. O parecer é fundamental para entender a visão de Lima sobre habitação. Com habilidade, o urbanista convenceu o idealizador e responsável pela implantação da fábrica e da nova cidade, Brigadeiro Guedes Muniz, associando a modernidade representada pela nova indústria com a proposta urbanística a ser adotada: “A era industrial que atualmente se inicia no Brasil, de que a FNM é uma das mais audazes pioneiras, não deve avançar e subir às alturas sem arrastar consigo tudo que lhe é acessório. Espírito novo! criando indústria nova! em ambiente novo! este deve ser o critério, para que o ciclo formidável de realizações do brigadeiro Antônio Guedes Muniz seja completo” (Lima, 1963:7). A preferência inicial do brigadeiro era por alternativas mais tradicionais: “Habituados a ouvir por todo o Brasil louvores às habitações individuais,(...) nossa primeira inclinação foi para essas habitações, onde o operário possuísse sua casinha branca e seu quintalzinho pequenino, e se sentisse, assim, mais em casa, mais possuidor da habitação em que morava” (Muniz, 1945, apud Ramalho, 1986). Lima conseguiu reverter essa posição ao defender o princípio de que a habitação não se restringe à célula individual, mas se estende aos equipamentos coletivos. Argumentou que a produção seriada de edifícios garante maior densidade e menor taxa de ocupação do solo, reduzindo os custos da construção, urbanização e manutenção das moradias, além de motivar um padrão de vida moderna: “as construções feitas em série, formando conjuntos densos, apresentam as mesmas vantagens da produção industrial em massa, baixam o custo unitário permitindo elevar o padrão da unidade de habitação e criar o parque coletivo de grandes proporções (...), com uma vida social diferente, com campo de esporte junto à porta, que trará o gosto pela camisa esporte” (Lima, 1963:6-7).

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Após comparar custos e qualidade das duas opções, comprova a viabilidade pela habitação coletiva. Num caso raro de um militar se curvar às ideias de um urbanista, conseguiu que o brigadeiro mudasse de opinião: “(...) o brilhante urbanista (...) Corrêa Lima e o livro La Ville Radieuse, de Le Corbusier, convenceram-me totalmente. Na mesma área de terreno onde poderíamos abrigar 5 mil pessoas, em casas individuais, modestas, era possível alojar 25 mil em apartamentos modernos e confortáveis. Em lugar do quintal sujo e pequenino, os operários poderiam ter à sua disposição grandes parques com piscinas, jardins, campos de esportes e recreio” (Muniz, 1945, apud Ramalho, 1986). As diretrizes urbanísticas desse plano guardam relação com a proposta do Conjunto Residencial Várzea do Carmo e antecipam as propostas de Lúcio Costa no Plano Piloto de Brasília, feitas quinze anos depois. Lima utiliza o conceito americano de unidade de vizinhança, propondo superquadras, rede descentralizada de escolas e áreas comerciais, constituídas para atender a população num raio de 400 a 500 m, sistema viário hierarquizado (com fluxos divididos entre veículos pesados, bicicletas e automóveis) e blocos habitacionais de quatro pavimentos, com um espaçamento entre os edifícios equivalente ao dobro de sua altura, atingindo uma densidade de 500 hab./ha e uma taxa de ocupação de 18%, garantindo áreas livres e verdes. A morte prematura de Lima, num pouso no Aeroporto de Santos Dumont (Rio de Janeiro), interrompeu não apenas o plano para a Cidade dos Motores, como ainda outro projeto habitacional para 16 mil moradores, que desenvolvia para o IAPI, no bairro de Heliópolis (São Paulo), citado no livro Brazil Builds (Goodwin, 1943). Nada se sabe sobre esse plano; é possível que sua documentação, que não foi encontrada nos arquivos do INSS, tenha desaparecido no próprio acidente que vitimou o arquiteto, que tinha ido a São Paulo, em companhia do engenheiro Guy Danin Wellisch, para tratar com o prefeito Prestes Maia da execução do Várzea do Carmo e, quem sabe, também do projeto de Heliópolis. Ao longo da curta, mas profícua, trajetória profissional de Attilio Corrêa Lima, o Conjunto Residencial Várzea do Carmo é um marco que consolidou sua conversão definitiva ao ideário moderno e representa uma proposta singular nos projetos habitacionais realizados no período.

Esquema teórico apresentado por Walter Gropius no III CIAM, realizado em Bruxelas, em 1930, dedicado ao debate sobre a tipologia para a habitação social: edifícios baixos, médios e altos. Adotando uma implantação moderna, o arquiteto da Bauhaus propõe uma relação matemática entre a altura e o distanciamento dos blocos, necessária para garantir insolação e uma equilibrada ocupação da área. No plano urbanístico do Várzea do Carmo, reproduzido na página ao lado, Lima seguiu rigorosamente essa orientação, com afastamento de 55 metros entre os edifícios altos, com onze pavimentos, e 23 metros entre os blocos de quatro pavimentos.


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APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DA PROPOSTA D

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O pioneirismo do plano urbanístico L

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O plano urbanístico é, provavelmente, o primeiro integralmente baseado na Carta de Atenas desenvolvido no Brasil. Tratava-se de ocupar um grande vazio urbano de 185 mil m² com base em princípios modernos, iniciativa precursora do projeto desenvolvido por A. E. Reidy para a Esplanada de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, que, em outro contexto urbano, possui características semelhantes.

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Abandonando a trama cartesiana tradicional de quadra, lote e rua, assim como o padrão horizontal predominante na cidade e particularmente no seu entorno, a proposta adota uma solução verticalizada que libera o solo, elimina a noção de propriedade privada da terra e transforma toda a área não edificada do terreno, bem como os térreos livres junto aos pilotis, em espaço público, aberto para a cidade.

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L B Planta de conjunto (2a fase)

A Habitação Edifícios de 12 pavimentos 198 apartamentos tipos 1, 2, 3 e 4 B Habitação Edifícios de 4 pavimentos 24 apartamentos tipos 5 e 6 C Habitação Edifícios de 4 pavimentos 32 apartamentos tipo 7 D Habitação Edifícios de 12 pavimentos 132 apartamentos tipos 1, 2, 3 e 4 E Escola F Cinema G Estação rodoviária H Hotel

I Escritórios, consultórios, etc J Habitação Edifícios de 12 pavimentos 88 apartamentos tipo 8 K Habitação Edifícios de 12 pavimentos 110 apartamentos tipo 8 L Edifício para comércio M Club P Puericultura e creche R Restaurante popular S Posto de gasolina e lubrificação T Reservatório d’água

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A implantação integral do projeto dependia da aquisição pelo IAPI de um terreno ocupado por uma indústria têxtil, que ficava no meio da gleba, ao norte, e uma vila de sobrados geminados, situada na parte sudeste. Embora essa aquisição fosse possível, para garantir a unidade da composição no âmbito da mesma proposta urbanística, a equipe elaborou um plano completo e dividiu a obra em duas etapas, a primeira com a gleba já de propriedade do Instituto. O plano está baseado em quatro elementos urbanísticos principais: reestruturação viária com a criação de superquadras; organização racional do setor residencial, numa trama que combina edifícios altos e médios, utilizando a linguagem do III CIAM; criação de uma centralidade urbana, formada por uma praça fechada por quatro edifícios, junto à estação rodoviária; e organização de um centro de caráter local, aglutinando os equipamentos sociais no setor sudoeste, nas franjas de formato irregular da gleba.


Vila Passo d’Areia, Porto Alegre, RS

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Os blocos multifamiliares

Por outro lado, sintonizado com as preocupações econômicas que regiam os projetos do IAPI, Kruter defende a redução do tamanho do lote, antecipando o que veio a ser no futuro a legislação da habitação de interesse social: “Seria injusto que o IAPI, procurando inverter vultosa soma de capital num empreendimento de tão alta finalidade de assistência social, não só para com seus contribuintes como para com a própria cidade, fosse tolhido de diminuir o custo unitário das moradias geminadas ou isoladas, em benefício de um maior número de associados, por um menor adensamento da futura população do conjunto” (Kruter, 1944). Considerando apenas as casas unifamiliares, foram identificadas, no mínimo, treze variações, podendo existir outras pela combinação dos diferentes elementos compositivos. As duas tipologias básicas são a casa isolada e a geminada duas a duas, ambas podendo ter dois ou três quartos. A casa isolada situa-se no meio do lote, podendo variar de acordo com a área e o número de cômodos, desenho da varanda − presente em quase todas as alternativas, com arco pleno ou reta −, telhado, com duas ou quatro águas, existência de porão habitável ou não habitável e ornamentação na fachada. As casas geminadas duas a duas apresentam menor número de variações, alternando apenas a área e o número de cômodos e o desenho da varanda. De uma maneira geral, essas tipologias e variações não eram novidade no país, tendo sido adotadas em inúmeros conjuntos residenciais. O que é notável na Vila Passo d’Areia é o esforço para personalizar as casas, buscando criar maior identidade entre a família e sua moradia, preocupação que caracteriza esse conjunto residencial. A busca da personalização dessas tipologias, como ressaltou Fayet (1994), leva a uma influência de gosto eclético. “Elementos compositivos assumem formas variadas nas diferentes tipologias e frequentemente possuem uma função estritamente decorativa (...). A fachada frontal repete o modelo de cheios e vazios da casa colonial tipo porta e janela (...) com o acréscimo de uma segunda janela em algumas variantes (...). A implantação com recuos e a presença de varandas já são elementos compositivos herdados das moradias do período eclético, em que a casa se desloca no lote para a obtenção de um maior conforto ambiental. Do conjunto destas referências podemos dizer que as habitações unifamiliares são arquiteturas neocoloniais acrescidas de elementos compositivos de gosto eclético (...)”.

Como pode ser visto na implantação, os blocos multifamiliares foram localizados junto aos elementos estruturais do conjunto: na sua entrada, ao longo das avenidas que cortam o conjunto formando um Y (sobretudo a Avenida Brasiliano Índio de Morais) e no entorno do centro cívico e esportivo. A localização buscou facilitar o acesso ao transporte e aos serviços para as áreas residenciais mais adensadas. Os blocos foram implantados em quarteirões comuns, recuados em relação à rua, de modo que não rompem a trama urbana tradicional. Na implantação nota-se uma preocupação em variar a posição dos blocos para evitar a organização excessivamente uniforme das construções. Vários blocos seguem o alinhamento das ruas que, sendo curvas, geram uma grande variedade de possibilidades. Entretanto, talvez devido à necessidade de elevar o número de unidades e, em consequência, de blocos, nota-se uma aglomeração excessiva em alguns quarteirões junto à Avenida Brasiliano, onde a relação entre a distância entre as construções e sua altura é menor do que o recomendável. Como afirma Fayet, em relação às casas unifamiliares, os blocos multifamiliares estão bem mais próximos da linguagem moderna, com elementos simplificados do protomoderno e art déco, que estilizaram as matrizes clássicas do neoclassicismo e do ecletismo. “A partição fortemente horizontal, o ritmo dos vãos na composição das fachadas, a relação entre cheios e vazios, o tratamento dado aos corpos centrais, ao embasamento e às platibandas, todos esses elementos possuem referências naquelas matrizes. Também os frisos horizontais, de forma escalonada, delineando os acessos principais e a marcação de janelas, são elementos tipológicos reduzidos e simplificados de matrizes clássicas presentes no protomodernismo” (Fayet, 1994). Já a presença de beirais, varandas e pérgolas evidencia uma preferência mais próxima ao neocolonial. Apesar das linhas retas e da significativa redução da ornamentação em relação às casas, os blocos estão ainda muito distantes do movimento moderno, tanto no que se refere à sua implantação como na edificação. A trama urbana é tradicional, e os edifícios ocupam os quarteirões de forma pouco ordenada, buscando acompanhar o alinhamento irregular. Mesmo no setor mais denso de blocos, junto à Avenida Brasiliano Índio de Morais, onde as ruas são estreitas e os blocos são paralelos, fica a impressão de uma certa improvisação, com uma pequena distância entre os blocos.

Vista de alguns dos tipos de blocos multifamiliares, em que se vê um dos poucos blocos em “L” utilizados no período.


121 Foram projetadas catorze variações de blocos, com dois, três e quatro pavimentos. Dessas, sete são de blocos baixos, de dois pavimentos, com quatro unidades no total – que se caracterizam como unidades sobrepostas e se assemelham a sobrados geminados, sobretudo nas variações, muito frequentes, em que as entradas para as unidades do térreo são independentes do acesso para a escada que liga o térreo aos dois apartamentos do 2o pavimento. Solução semelhante de acesso independente para as unidades do térreo surge também em uma variante de três e quatro pavimentos.

Na foto no pé da página, crianças brincam junto à escola, com blocos residenciais ao fundo. A inexistência de muros e cercas separando os equipamentos sociais dos setores residenciais reforçava a concepção de que as áreas públicas eram uma extensão da unidade habitacional.

Os blocos são maciços, totalmente fechados no térreo, reforçando a rua-corredor, tão criticada por Le Corbusier, mas que garante uma impressão de acolhimento próprio da trama urbana tradicional. O pedestre se sente envolvido pelas construções, situação reforçada pela disposição irregular dos blocos e pelas ruas curvas, que impedem a percepção espacial, evitando as perspectivas abertas. Malgrado a dimensão da Vila Passo d’Areia – o maior empreendimento em número de unidades e em área implantado no Brasil até o advento do BNH –, não se tem a impressão de vastidão, de impessoalidade ou de solidão ao percorrer suas ruas, que remetem a bucolismo e a um sentimento de pertencimento pouco presente nos conjuntos habitacionais orientados pelo urbanismo moderno. Da mesma forma, na utilização dos materiais e sistemas construtivos nada lembra as propostas do movimento moderno. Quase todos os elementos construtivos são tradicionais: cobertura de telha de barro, janelas tipo guilhotina com venezianas, embasamento em pedra e utilização de elementos decorativos, como tijolos à vista marcando o contorno da portada principal. Uma das poucas referências ao modernismo brasileiro é a utilização, frequente na grande maioria dos blocos residenciais dos IAPs, de elementos vazados (neste caso, de vitradas) no fechamento das escadas que, com acentuada verticalidade, rompem a forte horizontalidade que caracteriza os edifícios. Mas, no contexto do projeto dos blocos da Vila Passo d’Areia, essas peças são mais vitradas do que os cobogós que distinguem a arquitetura moderna brasileira, em especial a Escola Carioca. O clima frio de Porto Alegre determinou essa opção, absolutamente correta do ponto de vista da adequação da construção ao contexto regional.

É interessante notar que os autores do projeto buscaram recriar, na medida do possível, uma unidade unifamiliar autônoma no âmbito de um bloco coletivo. Além das entradas independentes para os apartamentos do térreo, nos edifícios de quatro unidades, é reservada uma porção de terreno privativo para cada apartamento (inclusive para os do 2o pavimento), na perspectiva de reproduzir, também nas edificações coletivas, o modelo quintal/horta/galinheiro. Para facilitar o acesso a esse quintal de fundo, em algumas variantes foram previstas portas na parte posterior da edificação. Outro elemento que aproxima esse bloco das casas é a presença, em algumas das alternativas, de uma varanda entalada na unidade do térreo, solução inexistente nos conjuntos residenciais do período. Nos blocos de três e quatro pavimentos, a marcação horizontal é menos acentuada, não só pela altura maior, mas também pelo caráter vertical da portada e da torre da escada, fechada pela vitrada. Os elementos decorativos são menos frequentes, com exceção dos quadros das esquadrias e a cantaria de pedra das portadas. Em algumas variantes, verifica-se um revestimento de tijolo à vista entre as janelas. Nos blocos mistos e comerciais – quatro tipos – acentuam-se os elementos protomodernos. Ao contrário das demais edificações, aparece a preocupação em esconder o telhado pela utilização de platibandas, de linhas retas, em geral mais altas no centro da edificação. Elementos art déco, como formas escalonadas, também são utilizadas. Em um dos tipos, surge um surpreendente terraço sobre as lojas, que Fayet considera “um conjunto tipológico muito articulado: linhas verticais e horizontais alternam-se misturando aqui também elementos de gosto neocolonial com elementos mais modernos”. Nas edificações da Vila Passo d’Areia, seja nas casas unifamiliares, nos blocos residenciais ou nos blocos comerciais, fica evidente a preocupação do IAPI e dos seus engenheiros gaúchos em criar construções de qualidade superior, implantadas em espaços agradáveis e personalizados. Trata-se de uma referência indispensável para pensar maneiras adequadas de enfrentar a questão urbana e habitacional no Brasil.


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Nesse sentido, as questões levantadas a partir da concepção desse conjunto revestem-se da maior atualidade. O principal aspecto refere-se à questão da implantação de projetos de habitação social nas áreas de expansão urbana, pois as cidades brasileiras enfrentam o desafio de crescer com qualidade, revertendo o tradicional processo de crescimento periférico, marcado por loteamentos populares precários, conjuntos habitacionais homogêneos e desprovidos de adequada inserção urbana e condomínios fechados de média e alta renda, símbolos do apartheid social. A observação do processo de implantação da Vila, revelada dia a dia pela excelente documentação fotográfica do engenheiro Gardolinski, mostra que o tempo é um grande aliado dos bons planos e projetos, sobretudo em áreas que passam por profunda transformação física. A intensa vegetação que enriquece hoje o bairro inexistia na década de 1940, quando o empreendimento estava sendo implementado. Fica claramente demonstrado que conjuntos que aparentam aridez quando são implantados podem se transformar em lugares aprazíveis e agradáveis no futuro.

Figueira centenária, uma das árvores pré-existentes na gleba original, que foi mantida na implantação do conjunto. Acima, em foto do final dos anos 1940; ao lado, sessenta anos depois, em 2011: opções corretas de projeto geram resultados positivos que se mantiveram a longo prazo.

Passo d’Areia é um excelente exemplo de que é possível implantar grandes conjuntos habitacionais nas áreas de expansão urbana, desde que eles sejam adequadamente inseridos no planejamento municipal e que sejam concebidos com projetos de qualidade, com equipamentos e serviços públicos. Traçado adequado ao meio físico, articulação com o sistema viário e de transportes coletivos da cidade, diversidade de tipos habitacionais, apropriação e identidade dos moradores com o local, profusão de espaços e equipamentos públicos são alguns dos requisitos que a Vila do IAPI oferece como base da concepção de projetos de grande dimensão, nos quais a cidade possa ser tecida a partir de empreendimentos habitacionais e a terra possa ser apropriada, não para fins especulativos, mas com o objetivo de cumprir sua função social.


Olaria, Rio de Janeiro, RJ

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Modelo eletrônico de um renque de oito unidades.

Acima, perspectiva axionométrica da planta do pavimento superior. Abaixo, elevações das duas faces do renque. Acima, perspectivas axionométricas das duas faces de um renque. Abaixo, corte transversal em perspectiva axionométrica.


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