Índice Nota introdutória . .................................................................. 07 Enquadramento
do encontro de reflexão sobre o papel da educação popular no processo de desenvolvimento. O caso de Cabo Verde........................................................................ 11
Educação para cidadania global. A realidade cabo-verdiana - Florenço Mendes Varela ........................................................... 19
Conceito e práticas de educação popular. breves referências - Jacinto Santos.............................................................................. 41 FICHA TÉCNICA
Educação/participação/desenvolvimento: A situação actual em cabo verde
Título Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
- Orlando Borja . ............................................................................ 65
Copyright © Plataforma das ONG de Cabo Verde
Olhar crítico sobre o trabalho desenvolvido pelos actores não governamentais cabo-verdianos em matéria de educação popular
Coordenação Editorial Gabinete de Apoio às ONG Secretariado Executivo da Plataforma das ONG - Achada São Filipe C.P.: 76-C - Fazenda - Praia - Santiago u Tel.: 261 78 43/45 u Fax: 264 84 19 Email: platongs_05@yahoo.com.br u Site: www.platongs.org.cv Delagação em Mindelo - S. Vicente Centro Social de Madeiralzinho u Tel.: 231 32 45 Layout, Paginação e Capa SERVICENTER, Projecto em Harmonia Digital Tiragem 1.000 exemplares
– Ramiro Azevedo . ....................................................................... 83
Experiência do Citi-Habitat – Olívia Mendes ............................................................................ 99
Experiência da OMCV em matéria de educação Popular u
Fax: 232 65 22
– Paulino Moniz . .......................................................................... 119 Relatório Final do Encontro ..................................................129
Impressão Tipografia Santos
Anexos I. Relatório do Seminário de Formação de Coordenadores Regionais de Alfabetização - Exposição de Paulo Freire sobre as tarefas dos coordenadores........................................ 145
Patrocínio Solidarité Socialiste - ONG Belga
II. Biografia de Paulo Freire.......................................................163
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
Nota introdutória Há sensivelmente 90 anos, a educação popular vem sendo defendida como um direito das pessoas excluídas e desfavorecidas. Todavia, foi só a partir dos anos 60 do século XX que o grande educador e pedagogo brasileiro Paulo Freire deu consistência à tese da educação popular e seus princípios, apresentando-a como um processo de conscientização e de emancipação social, cultural e política das classes mais desprotegidas. Partindo dos ideais de Paulo Freire, a educação popular constitui, nos dias de hoje, um poderoso instrumento de autonomia e de empoderamento de sujeitos individuais e colectivos. A sociedade civil organizada é vista como um pilar da sua promoção e consolidação a favor de uma sociedade mais justa, mais incluída e mais solidária. Trata-se, pois, de uma educação comprometida e orientada pela perspectiva de realização dos direitos humanos de todos os cidadãos, principalmente os excluídos, razão porque ela visa a formação de todos aqueles que têm conhecimento e consciência cidadã e incentiva o diálogo entre eles. Em Cabo Verde, são as ONG e organizações comunitárias de base as grandes responsáveis pela educação popular ou educação para o desenvolvimento que vem sendo desenvolvida nos 35 anos do país independente. Enquanto estratégia de construção da participação dos cidadãos, a principal característica dessa educação tem sido utilizar o saber da comunidade como matéria-prima para a aprendizagem e ensino, partindo da sua vivência e convivência quotidianas.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
Ao cruzar a fronteira da escolarização, a educação popular tem contribuído para o resgate da cidadania, promovendo a inclusão, através do fortalecimento dos processos pedagógicos para aumentar a sua contribuição na construção dos poderes locais e nacionais e no sentido de mobilizar toda a sociedade para a defesa dos valores da justiça, da solidariedade e da igualdade, entre outros. O grande desafio da educação popular no nosso país é o fortalecimento de uma cultura cívica de maior participação dos cidadãos na vida social, cultural e política e consequente adopção, pelos caboverdianos, de uma atitude mais inclusiva, para uma sociedade cada vez mais plural e democrática. Fruto de uma jornada nacional de reflexão realizada em finais de 2008, na Praia, a brochura que ora se publica pretende ser um contributo para um debate necessário sobre a educação popular no nosso país e as suas perspectivas nesta nova etapa de desenvolvimento de Cabo Verde. Ao juntar-se ao movimento pela dignificação e consolidação dos princípios da educação popular, a Plataforma das ONG reafirma o seu engajamento no reforço da participação popular nas comunidades locais com vista ao redirecionamento da vida social. E porque vale a pena todo o esforço para a mudança de atitudes e de comportamento que vem sendo feito ao longo de décadas, vamos fazer da educação cidadã uma arma de intervenção da família ONG cabo-verdiana na certeza de que ela será fundamental na construção de uma sociedade mais inclusiva e mais justa: um Cabo Verde mais equitativo e solidário, que respeita os direitos fundamentais dos homens e das mulheres destas ilhas.
ENQUADRAMENTO DO ENCONTRO DE REFLEXÃO SOBRE O PAPEL DA EDUCAÇÃO POPULAR NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
- O CASO DE CABO VERDE RUI VAZ, 1 E 2 DE DEZEMBRO DE 2008
1 – Justificação Reconhece-se que, em Cabo Verde, as Organizações da Sociedade Civil têm sido parceiras activas em todo o processo de consciencialização/responsabilização da população cabo-verdiana, com vista a uma cada vez maior participação (de forma consciente e responsável) na vida social, económica e cultural do país. Trata-se de um trabalho de EDUCAÇÂO que tem acompanhado todo o processo de transformação de Cabo Verde e que provavelmente não reúne consenso em termos da clarificação do conceito, do público-alvo, das estratégias e dos instrumentos adoptados. Mas de que é que estamos a falar? Da Educação Popular para uns, da Educação para o Desenvolvimento, para outros, ou, ainda, da Educação Cívica, Educação Para a Cidadania, Educação Para o Desenvolvimento Local, entre outras formas de designação. Quanto à EDUCAÇÃO POPULAR, diz-se que ela constitui o elo de ligação entre a acção colectiva e a posição que o indivíduo ocupa na sociedade, a sua identidade. Diz-se, ainda, que ela visa a emancipação dos pobres enquanto grupos sociais discriminados, excluídos e explorados. Como estratégia de intervenção, ela considera que a satisfação das necessidades das populações passa por uma intervenção de ordem técnica e/ou material que deve ser associada a intervenções de outra dimensão como a participação, as mudanças sociais e a dimensão relacionada com a identidade que valoriza a auto-estima e o sentimento de pertença a grupos sociais mais frágeis. De referir que o conceito de Educação Popular foi ‘desenvolvido’
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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pelo grande pedagogo brasileiro, Paulo Freire, através do sua obra “A
tão da educação enquanto factor de desenvolvimento e sobre o
pedagogia dos oprimidos”.
papel dos actores não governamentais nessa área.
Considerando a importância da EDUCAÇÂO no processo de desenvolvimento, a Plataforma, com o apoio da Solidarité Socialiste, ONG Bel-
3 – Objectivos
ga, decidiu promover um Encontro de reflexão, de âmbito nacional, com o propósito de permitir às diferentes categorias de organizações da sociedade civil uma reflexão aturada sobre o que tem sido feito nessa maté-
Com esta actividade, a Plataforma propõs-se atingir os seguintes objectivos:
ria, aprofundar e clarificar o conceito de educação popular e a sua aplicação prática em Cabo Verde ontem e hoje, bem como a definição de
a) Clarificar o conceito de educação, em geral, nas suas diferentes
conteúdos, estratégias e suportes que melhor se adaptem ao trabalho
vertentes (económica, social, cultural, ideológica, política) com
de educação que vem sendo desenvolvido pelas ONG e associações,
tónica particular na educação popular, tendo sempre como re-
em geral, no quadro dos respectivos programas de intervenção.
ferência o contexto cabo-verdiano, mais precisamente o período que vai da independência a esta parte;
Desenvolver e valorizar a participação a nível local, regional e nacional, num quadro de diálogo e aproveitamento de sinergias em
b) Avaliar o trabalho das ONG e associações no domínio da edu-
relação a este tema - EDUCAÇÃO - que é transversal aos projectos
cação das populações em termos de objectivos, conteúdo,
e programas dos actores não governamentais é a finalidade última
estratégias metodológicas, suportes técnicos e pedagógicos e
desta iniciativa da Plataforma.
articulação dos diferentes parceiros junto de um mesmo grupo alvo, entre outros aspectos de interesse;
2 - Grupo alvo
c) Fornecer pistas para uma maior e melhor cooperação/articulação entre os diferentes actores com vista a uma maior eficiência
Foram associadas a esta reflexão as ONG e associações de todas as ilhas que, de uma forma ou de outra, participaram no pro-
e eficácia dos programas de educação na perspectiva de uma cidadania plena e responsável a todos os níveis.
cesso de afirmação e participação consciente e responsável das populações no processo de desenvolvimento da sua comunidade, do seu concelho, da sua ilha e de Cabo-Verde, em geral.
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4 – Resultados
Foram, igualmente, envolvidos académicos (docentes e pesqui-
a) Um Encontro Nacional sobre a Educação Popular, com a du-
sadores ligados a universidades), que têm reflectido sobre a ques-
ração de dois dias e a participação de cerca de 50 pessoas
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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realizado na data prevista; b) Experiências do trabalho de educação a nível comunitário de
governamentais cabo-verdianos em matéria de educação; e) O caso prático do CITI-HABITAT;
duas ONG apresentadas e debatidas durante o Encontro; f) O caso prático da OMCV. c) O resumo do conteúdo das discussões havidas durante o Encontro, bem como as conclusões e recomendações do mesmo compilado num relatório; d) O relatório do encontro multiplicado e distribuído no seio das ONG’s e dos diferentes actores, sejam eles públicos e/ou privados que trabalham directamente com as populações.
5 – Temas tratados Durante o Encontro, quatro temas foram abordados e duas experiências socializadas: a) O conceito de educação nas suas diferentes vertentes (económica, social, cultural, ideológica, política, ... ). A realidade caboverdiana ontem, hoje e perspectivas futuras; b) O conceito e práticas da educação popular. Sua aproximação e distanciamento em relação a outras perspectivas de educação - A experiência cabo-verdiana; c) A relação entre Educação/Participação/Desenvolvimento. Situação actual em Cabo Verde; d) Um Olhar crítico sobre o trabalho desenvolvido pelos actores não
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA GLOBAL. A realidade Cabo-verdiana
Florenço Mendes Varela
Educador e estudioso do legado freiriano, mestre em Ciências da Educação pela Universidade de Caen – França. Actualmente é Director Geral de Alfabetização e Educação de Adultos. Foi professor de Ciências da Educação e Praxis Educativa na Universidade Jean Piaget de Cabo Verde (2001 – 2005) e Deputado da Assembleia Nacional na VI Legislatura, 2001 – 2006.
Resumo Com esta comunicação, pretendo, em jeito de introdução ao debate, partilhar com os participantes do “Encontro de reflexão sobre o papel da Educação Popular no processo de desenvolvimento de Cabo Verde” o amplo conceito da educação na sua dimensão económica, social, cultural, política e ideológica, a partir de reflexões teóricas e práticas, realçando o seu papel relevante no contexto de Cabo Verde, território arquipelágico, 10 ilhas crioulas, africanas, atlânticas e sahelianas, marcado por lutas pela sobrevivência e independência, a emergência da “educação popular”, sob o signo da educação extraescolar e a nova concepção da educação para a cidadania global.
1. Educação O que é a Educação? Eis uma pergunta que pode parecer uma provocação. Mas não é. À primeira vista, parece uma definição simples. A educação é algo de que todos nós temos um conhecimento directo pela experiência. Nenhum ser humano pode existir e viver uma vida propriamente humana sem uma forma qualquer de educação. Segundo Kant, na sua obra Reflexões sobre a Educação: “o homem só pode ser homem através da educação. Ele é aquele que a educação o faz. É no fundo a educação que guia o grande segredo da perfeição da natureza humana”. De uma forma geral, a educação engloba “a formação do corpo e do espírito”. Além da definição genérica, utiliza-se também o conceito de educação, no sentido restrito: educação da memória, educação estética, educação cívica, educação moral, educação religiosa, educação sexual, educação familiar, educação ambiental, etc.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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A palavra educação vem do latin educatio que significa “acção
Além dessa definição genérica, utiliza-se também o conceito de edu-
de educar”. Educatio deriva das seguintes palavras: - educare, que
cação no sentido restrito. Assim, temos: educação da memória, educa-
significa alimentar (aleitar uma criança, por exemplo), cuidar (de uma
ção estética, educação cívica, educação moral, educação religiosa,
árvore), criar (animais); - educere, que significa criar (uma casa), dirigir,
educação sexual, educação familiar, educação ambiental, etc. De uma
conduzir (alguém para a sua casa), pôr a andar (um tropa), trazer ao
forma geral, a educação engloba “a formação do corpo e do espírito”.
mundo (dar à luz, fazer nascer uma criança). Em conclusão, podemos reter a seguinte definição da educação: A educação da criança significava, inicialmente, criá-la no sentido de responder às necessidades de alimentação, necessidades físicas
“Acção que consiste em ajudar o ser humano a formar-se, desenvolver-se, educar-se; é também o resultado dessa acção”.
e corporais. De seguida, educacio tomou um sentido moral (a formação do carácter) e um sentido intelectual (a formação do espírito). Passou-se, assim, do corpo ou do físico para o espírito ou o psíquico:
Gaston Mialaret, pai fundador das Ciências da Educação em França, apresenta quarto significados essenciais da educação:
a palavra que significava a acção de ajudar o crescimento corporal passou a designar-se desenvolvimento do espírito.
a. Educação – instituição enquanto conjunto de estruturas que têm por finalidade a educação das pessoas, que funcionam segundo re-
No essencial, a palavra educação engloba dois aspectos principais: o físico e o psíquico.
gras, mais ou menos preestabelecidas, num dado momento. É neste sentido que falamos de educação cabo-verdiana e podemos compará-la com a educação portuguesa, brasileira, etc.
Os sucessivos autores e dicionários definem a educação como sendo:
b. Educação – acção é a designação mais corrente da educação, quer no sentido amplo (através das gerações), quer no sentido restrito
- Os cuidados que temos para instruir as crianças, seja no que se refere aos exercícios corporais, seja no que diz respeito aos exercícios espirituais.
(escola). A educação-acção integra vários aspectos: finalidades, métodos e técnicas, processos pedagógicos.
A implementação de meios próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento de um ser humano (Academia Francesa, 1649).
c. Educação – conteúdo, ou seja, aquilo que chamamos programas. Quando falamos de educação científica ou de educação artística, do
- A educação é a acção que permite a um ser humano desenvol-
humanismo clássico ou moderno, abordamos a noção de programa.
ver as suas atitudes físicas e intelectuais assim como os sentimentos
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sociais, estéticos e morais, com a finalidade de atingir, tanto quanto
d. Educação – produto, ou seja, o resultado do processo ensino-
possível, a sua tarefa de homem; é também o resultado dessa acção
aprendizagem que é educação-acção aplicada à educação-con-
(Olivier Reboul).
teúdo no quadro da educação-instituição.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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2. Educação em Cabo Verde
indicadores bem expressivos, reconhecidos a nível internacional e que justificam plenamente os investimentos feitos e as ajudas inter-
A educação tem sido, desde a independência de Cabo Verde,
nacionais disponibilizadas.
uma permanente aposta estratégica, constituindo a prioridade das prioridades. A reconstrução do país, saído de uma condição de coló-
Os ganhos em educação, de 1975 até ao presente, são inegáveis
nia, despido de riquezas naturais, exigiu, como sendo um imperativo
e os indicadores de qualidade e de quantidade do sistema educati-
nacional e de sobrevivência da própria população, na sua maioria
vo, com uma população estudantil actual – do Pré-escolar ao Ensino
analfabeta, um forte investimento no sector da educação, a todos os
Superior, passando pelo Básico e Secundário –, testemunham os avan-
níveis, mas, muito particularmente, a nível da educação básica e da
ços verificados.
alfabetização e educação adultos. Cabo Verde inscreve a sua política de educação no princípio da A proclamação da independência do país em Julho de 1975 foi
justiça social, da democratização da educação e no fundamento fun-
testemunhada por uma população analfabeta superior a 60%, servida
cional segundo o qual não há verdadeiro desenvolvimento enquanto
por um ensino básico elementar de quarto anos, não acessível a todas
a maior parte da população susceptível de participar efectivamente
as crianças, por um ensino secundário circunscrito a um número muito
e de beneficiar desse desenvolvimento fica privado desse direito.
reduzido de alunos e, ainda, um corpo docente para os dois níveis de ensino com apenas 19% de professores com formação considerada adequada para o exercício da docência.
Essa vontade política traduz-se na sensibilização do país à volta da problemática da alfabetização e educação de adultos, na mobilização de recursos e na planificação integrada do programa no seu
Apostando desde cedo no que considera a sua maior riqueza, o país enveredou por uma política acertada de valorização dos recursos
conjunto, na implementação do sistema educativo e no desenvolvimento económico e social.
humanos, investindo fortemente na educação e na formação, sendo estas consideradas sectores chaves do desenvolvimento cabo-verdiano, tendo o orçamento do Estado consagrado à educação um cres-
3. Educação extra-escolar
cimento contínuo, passando sucessivamente de 9,4% em 1980 (4,4% do PIB) para 10,0% em 1985 (5,6% do PIB), 13,0% em 1990 (5.9% do PIB), 20,2% em 2000 (7,1% do PIB) e 23% em 2005 (7,1% do PIB).
A Lei de Bases do Sistema Educativo de Cabo Verde (Lei n.º 103/ III/90, de 29 de Dezembro, alterada pela Lei 113/V/99, de 18 de Outubro) estabelece que o Sistema Educativo cabo-verdiano compreende
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Decorridos que foram pouco mais de 33 anos de independên-
os subsistemas: educação pré-escolar, educação escolar, educação
cia, Cabo Verde apresenta, hoje, um quadro no sector da educa-
extra-escolar, complementados com actividades de animação cultu-
ção e formação bem diferente do de outrora, com resultados e
ral e desporto escolar numa perspectiva de integração.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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O subsistema de educação extra-escolar compreende as activida-
É vista como um acto de conhecimento e transformação social, tendo
des de educação de base de jovens e adultos e a aprendizagem e
um certo cunho político e o resultado desse tipo de educação é obser-
formação profissional, numa perspectiva de capacitação para o exer-
vado quando o sujeito pode situar-se bem no contexto de interesse.
cício de uma profissão, de luta contra a pobreza e exclusão social. A educação popular pode ser aplicada em qualquer contexto, A educação extra-escolar compreende:
mas as aplicações mais comuns ocorrem em assentamentos rurais, em instituições socioeducativas, em aldeias indígenas e no ensino de jo-
a. A educação e formação de adultos, que abrangem a alfabeti-
vens e adultos.
zação, a pós-alfabetização e outras acções de educação ao longo da vida, numa perspectiva de elevação do nível cultural. b. A aprendizagem e as acções de formação profissional, numa perspectiva de capacitação para o exercício de uma profissão.
Educação e formação de adultos A educação e formação de adultos é um conjunto de instituições, processos e recursos orientados para facilitar a aprendizagem formal, não formal e informal dos adultos, graças aos quais as pessoas que o
Educação popular
meio social envolvente considera adultas desenvolvem as suas capacidades, enriqueçam os seus conhecimentos, as suas competências
No caso de Cabo Verde, a educação extra-escolar, inspirada na pedagogia libertadora de Paulo Freire, abrange a educação popular.
técnicas e profissionais ou as reorientem a fim de atenderem às suas próprias necessidades e às da sociedade.
Conforme a enciclopédia livre Wikipédia, a educação popular é uma educação comprometida e participativa orientada pela perspectiva de realização de todos os direitos do povo.
A educação e formação de adultos compreendem a educação ao longo da vida, a educação formal, não formal e toda a gama de oportunidades de educação informal e ocasional existentes numa so-
Não é uma educação fria e imposta, pois baseia-se no saber da comunidade e incentiva o diálogo. Não é “educação informal” por-
ciedade educativa multicultural, na qual se reconhecem os enfoques teóricos e os baseados na prática.
que visa a formação de sujeitos com conhecimento e consciência cidadã e a organização do trabalho político para afirmação do sujeito.
Educação formal, não formal e informal
A educação popular é uma estratégia de construção da participação popular para o redireccionamento da vida social.
A educação formal abarca todos os ensinos conducentes a um título reconhecido. A administração pública cabo-verdiana facilitará,
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A sua principal característica é utilizar o saber da comunidade como
sobretudo, o desenvolvimento do ensino básico e os conducentes a
matéria-prima para o ensino. É aprender a partir do conhecimento do su-
diferentes títulos de formação profissional específicos, particularmen-
jeito e ensinar a partir de palavras e temas geradores do quotidiano dele.
te, à população activa que deles necessita.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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A educação não formal orientar-se-á, nomeadamente para a pre-
Educação geral de adultos
paração das provas livres estabelecidas para as pessoas adultas e das provas de acesso a outros níveis de ensino, a fim de possibilitar a aqui-
A educação geral de adultos abarca tanto o ensino básico como
sição de conhecimentos, habilidades e atitudes que permitam melho-
o ensino secundário do subsistema escolar. A educação geral corres-
rar a empregabilidade, a adaptação à sociedade da informação e
ponde à vertente da educação extra-escolar que, de uma forma or-
de conhecimentos, a aquisição dos bens culturais, o exercício de uma
ganizada e segundo um plano de estudo, conduz à obtenção de um
cidadania activa e a aprendizagem permanente.
grau e à atribuição de um diploma ou certificado, equivalentes aos conferidos pelo subsistema escolar.
A aprendizagem informal é realizada de forma autónoma pelos adultos através da auto aprendizagem, de acordo com as suas ne-
Através da modalidade especial de ensino, presencial ou à distân-
cessidades e interesses, em especial, através das novas tecnologias
cia, é assegurada uma nova oportunidade de acesso à escolaridade
da informação e da comunicação, ou adquirida através da sua pró-
e aos indivíduos que, para todos os efeitos, são considerados adultos,
pria experiência em diversos contextos sociais ou laborais.
a título de exemplo, os que abandonaram precocemente o sistema educativo e aqueles que a procuram por razões de desenvolvimento
A educação formal faculta o acesso à certificação do ensino bá-
pessoal, social ou profissional.
sico. A educação não formal e as aprendizagens informais, especialmente aquelas relativas ao acesso a provas de ensino formal e ao de-
O ensino geral de adultos organiza-se de forma autónoma no que
senvolvimento pessoal – educação familiar, educação para a saúde
respeita a condições de acesso, currículos, programas e avaliação. Visa,
e a participação política, cultural, económica e social – promovem o
evidentemente, adaptar-se aos diferentes grupos, às suas experiências
desenvolvimento de uma cidadania activa.
pessoais, profissionais e conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
Permitem aceder às actividades educativas destinadas ao co-
O ensino geral de adultos caracteriza-se por unidade capitalizável.
nhecimento da realidade cabo-verdiana e aquelas vinculadas à
É uma modalidade que apela à flexibilidade, à adaptabilidade dos
conservação, recuperação e evolução da sua identidade cultural,
ritmos de aprendizagem, à disponibilidade, aos conhecimentos e às
bem como às acções desenvolvidas com a finalidade de permitir a
experiências de vida dos jovens e adultos.
integração das mulheres, das pessoas incapacitadas, dos colectivos em situação de desigualdade social e dos os imigrantes e minorias
Educação e ideologia
culturais, como forma de fomentar a tolerância e o intercâmbio com
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outras culturas e ao desenvolvimento comunitário, entendido desde
Moarci Gadotti (1986) argumenta que a educação é política. A
a aquisição da educação básica à formação ao longo da vida, nas
educação sempre foi política. O que precisamos é ter clareza do pro-
comunidades, no território e em todos os seus âmbitos.
jecto político que ela defende, politizando-a. Outrora, defender que
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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“educação é política” passava por uma profissão de fé revolucionária
4. Educação para a Cidadania
e causava certos escândalos.
Cidadania Hoje, falar disso não causa mais escândalo. É uma “banalidade pedagógica”. Tanto mais que, algumas vezes, os políticos recorrem a um suposto “discurso pedagógico” para fazer demagogia!
Aristóteles dizia que o Homem se define como um animal político, isto é, a sua natureza deve ser procurada nas comunidades de que faz parte e é reconhecido como membro pelos seus pares.
É preciso saber em quê a educação é política. Pode-se argumentar que educação é política baseando em quatro aspectos: a educa-
O termo cidadania, de origem latina (status civitatis), define, desde
ção transmite os modelos sociais; a educação forma a personalidade;
finais do século XVIII, o vínculo que liga os indivíduos a um Estado e
a educação difunde ideias políticas; a educação é encargo da es-
se corporiza num dado estatuto jurídicopolítico, que lhes confere um
cola, instituição social. Assim, é fácil concluir que a educação numa
conjunto de direitos e deveres.
sociedade de classes transmite os modelos sociais da classe dominante, forma os cidadãos para reproduzirem essa sociedade, difunde as
Entre os deveres de qualquer cidadão, aquele que possui uma
ideias políticas dessa classe e reproduz, por isto tudo, a dominação
dada cidadania, está o dever de participar na vida da sua comu-
de classe.
nidade, contribuindo, por todas as formas ao seu alcance, para a manter e melhorar. Este dever é simultaneamente um direito: o de
Antes de pensarmos em formar profissionais do ensino deveríamos indagar que modelos sociais vão ser transmitidos, que conteúdos vão
participar nas tomada das decisões que afectem a comunidade no seu conjunto.
ser veiculados, que classe se está a defender, de que ponto de vista está pensada a educação: do ponto de vista da população beneficiária ou do sistema?
Os nossos conceitos actuais de cidadania começaram a forjar-se na antiga Grécia. As revoluções políticas que aqui ocorreram após o século VI a.C. foram no sentido de definir o cidadão como aquele
Para Paulo Freire, a educação é ideológica. “Ensinar exige reco-
que tinha um conjunto de direitos e deveres, pelo simples facto de ser
nhecer que a educação é ideológica”, porém, dialogante para que
originário de uma dada cidade-estado. Estes direitos eram iguais para
se possa estabelecer a autêntica comunicação da aprendizagem
todos e estavam consignados em leis escritas.
entre gente com alma, sentimentos e emoções, desejos e sonhos. Defende uma pedagogia “fundada na ética, no respeito à dignidade e na própria autonomia do educando”.
Assim, o conceito de cidadania foi evoluindo sucessivamente da Grécia antiga para o império romano, da idade média para a idade moderna e da época contemporânea para a globalização. Hoje, num período de enorme mobilidade de pessoas à escala mundial,
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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caminhamos para um novo conceito de cidadania, identificada com uma visão cosmopolita.
O direito social refere-se “a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar económico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de
O que significam os termos “cidadão” e “cidadania”? O cidadão é um
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.
membro de um Estado ou comunidade politicamente organizada. Tornamo-nos cidadãos pelo nascimento, residência, família,... A cidadania é um
Educação para a Cidadania
estatuto político e legal (ter/obter/aplicar/recusar) que confere direitos e responsabilidades definidos na lei (votar, pagar impostos,...). Cidadania significa cidadão com uma consciência crítica a respeito da vida na sociedade. Assim, cidadania significa:
A educação para a cidadania está associada a três dimensões de aprendizagem: a. Responsabilidade social e moral – aprender desde cedo a ter autoconfiança e comportamentos social e moralmente responsáveis den-
• Envolvimento na vida pública, que se refere ao conjunto das ac-
tro e fora da sala de aula, perante a autoridade e perante si próprios.
ções que vão desde votar à participação na vida pública e outros comportamentos sociais e morais, não apenas direitos e deveres, que as so-
b. Participação na comunidade – aprender como tornar-se útil na
ciedades esperam dos cidadãos. O debate acerca do que deverão ser
vida e na resolução dos problemas que afectam as comunidades de
estes direitos, responsabilidades e comportamentos está em curso...
pertença e através das quais também se aprende.
• Acção educativa, ou seja, o processo de ajudar as pessoas a tor-
c. Alfabetização política – aprender acerca das instituições, pro-
narem-se cidadãos activos, informados e responsáveis. Neste sentido,
blemas e práticas da democracia e das formas de participar efecti-
a cidadania é uma educação para a cidadania nos diversos con-
vamente na vida política a diferentes escalas, o que envolve capaci-
textos formais e informais... A cidadania é constituída por três direitos:
dades, valores e conhecimentos. A sociedade (democrática) precisa
civil, político e social (Marshal, 1967).
de cidadãos activos, informados e responsáveis para assumirem o seu papel na comunidade e contribuir para o processo político.
O direito civil “é composto por direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça”.
Perante a diversidade e complexidade das sociedades do nosso tempo a experiência de vida não chega para formar o cidadão. É preciso uma educação integral, inclusiva e ao longo da vida. A
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O direito político é “o direito de participar no exercício do poder
educação para a cidadania é uma aprendizagem ao longo da
político, como um membro de um organismo investido da autoridade
vida. Começa em casa e no meio próximo das crianças com as
política ou como um eleitor dos membros de tal organismo”.
questões da identidade, relações interpessoais, escolhas, justiça,
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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bem e mal e desenvolve-se na medida em que se expandem os
dental, branco, negro, com necessidades educacionais específicas
horizontes de vida.
ou não – ao seu grupo social e cultural de origem.
Nos primeiros anos, a cidadania está relacionada com o desen-
Esses determinantes existem e geram diferenças entre as pessoas.
volvimento pessoal, social e emocional das crianças. Em geral, nos
O mais importante, porém, é que as pessoas podem tornar-se cons-
primeiros ciclos da escolaridade, a educação para a cidadania pode
cientes desses condicionamentos e então reflectir sobre eles, seja res-
ganhar mais peso curricular contribuindo para o desenvolvimento
peitando e sendo respeitados nas suas diferenças, seja modificando a
pessoal e social, o que inclui o desenvolvimento de um estilo de vida
sua visão do mundo, revendo preconceitos e adoptando uma postura
saudável e seguro. O desenvolvimento da confiança, da responsabili-
crítica em relação à sociedade.
dade e o respeito pelas diferenças são alguns dos tópicos a incluir na aprendizagem da cidadania.
A educação, embora seja um direito conquistado enquanto cidadãos, não é suficiente para afirmar, “que a educação cria a cidada-
Para além do currículo escolar nos diferentes ciclos de estudos,
nia de quem quer que seja. Mas sem a educação é difícil construir ci-
são diversos os contextos onde a educação para a cidadania
dadania (...) A educação não é a chave para a transformação, mas
pode ocorrer. Exemplos: conferências, fóruns, trabalho intergeracio-
é indispensável. A educação sozinha não faz, mas sem ela também
nal, participação em projectos, regeneração e problemas locais,
não é feita a cidadania” (Paulo Freire).
dinamização de jovens, campanhas acerca de temas de interesse local, nacional e internacional...
A Comissão Internacional para a Educação para o séc. XXI (Jacques Delors) identificava os pilares básicos da educação de futuro:
Independentemente do contexto e da ênfase, as experiências de educação para a cidadania devem ser articuladas de forma
- Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral suficien-
a contribuírem para um processo de formação coerente. É preci-
temente ampla com a possibilidade de aprofundar os conheci-
so estar atento e aproveitar a multiplicidade de oportunidades de
mentos num restrito número de materiais, o que pressupõe, além do
aprendizagem da cidadania do pré-escolar ao ensino secundário,
mais, aprender a aprender para poder aproveitar as possibilidades
técnico, profissional e superior. Com frequência, as iniciativas de
que a educação ao longo da vida oferece.
educação para a cidadania envolvem a colaboração de diversos profissionais em diferentes sectores da educação.
- Aprender a fazer, a fim de adquirir não só uma qualificação profissional, mas também uma competência que capacite o indivíduo para
Se, a princípio, considerarmos as pessoas individualmente, veremos
fazer frente a um grande número de situações e a trabalhar em equipa.
que, ao nascer, o homem está sujeito a uma série de determinantes que englobam desde o seu tipo físico – homem, mulher, oriental, oci-
34
- Aprender a ser para que a própria personalidade se desenvolva
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
35
em condições propícias a uma crescente capacidade de autonomia,
não saberão dizer não ao individualismo das sociedade sustentadas
de faculdade intelectual e de responsabilidade pessoal.
sobre sistemas económicos implacáveis, de dizer não ao consumismo desenfreado, de não serem capazes de escolher livremente e torna-
- Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das formas de interdependência – realizar projectos
rem-se escravos de mensagens publicitárias e de à violência responderem ainda com mais violência.
comuns e preparar-se para tratar os conflitos, respeitando os valores relacionados com o pluralismo de ideias, a compreensão mútua, a paz e a solidariedade.
Aos educadores, por sua vez, pede-se disponibilidade para ouvir e que privilegiem metodologias que criem na criança o gosto por aprender a aprender atributos, com certeza, importantes na socie-
É, pois, nesta nova missão da escola que a educação para a cida-
dade de hoje. Aos educadores pede-se ainda, que procurem formas
dania tem de (re) nascer, quer através das disciplinas de Desenvolvi-
negociadas de resolução de conflitos, educando, desta forma, para
mento Pessoal e Social e de Educação Cívica, quer em todas as ou-
práticas de não-violência. Numa palavra: que nos impliquemos nesta
tras áreas curriculares através da relação professor/aluno e escola/fa-
tarefa tão difícil que é a “Aventura de ENSINAR, CRIAR E EDUCAR” (cf.
mília. A educação para a cidadania faz-se através dos currículos, mas
Madalena Freire).
faz-se, sobretudo através do currículo oculto. Ela extravasa as quatro paredes da sala de aula e faz-se nos espaços de lazer, nas bibliotecas, nas cantinas, nos recreios, no dia-a-dia.
É obvio que educar para a cidadania e para os valores implica tomar decisões, fazer escolhas. De alguma forma como o relatório, Jacques Delors afirma: “a educação para a cidadania constitui um
Não começa na escolaridade obrigatória, mas nos jardins-de-in-
conjunto complexo que abarca, ao mesmo tempo, a adesão a valo-
fância, para falarmos apenas de instituições que têm por missão aju-
res, a aquisição de conhecimentos e a aprendizagem de práticas na
dar a crescer crianças pequenas. A educação pré-escolar é uma das
vida pública. Não pode, pois, ser considerada como neutra do ponto
etapas privilegiadas para ajudar a criança a criar hábitos de cidada-
de vista ideológico”.
nia, sendo os jardins-de-infância uma das instituições que não pode demitir-se desse papel. Espera-se que estas instituições, conjuntamen-
A educação para a formação da cidadania não pode, assim, ser
te com a família, ajudem a criança a desenvolver hábitos de solida-
prisioneira de uma ou duas disciplinas curriculares, mas deve constituir
riedade, de partilha, de justiça, de verdade, de respeito por si e pelos
a base de um projecto educativo, onde as opções devem ser claras e
outros e de respeito pela diferença e pelo bem comum.
assumidas por todos. A educação para a nova cidadania deve fazer parte da vontade de todos, pois só desta forma o valor da pessoa hu-
A educação para a nova cidadania passa, ainda, por ensinar à criança a expor as suas ideias, a saber escutar os outros e a desen-
mana e a sua dignidade constituirão os alicerces de uma verdadeira cidadania global.
volver condutas de tolerância, sem o qual, num futuro muito próximo,
36
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
37
Referências: FREIRE Paulo, Pedagogia da Autonomia, Saberes necessários à prática educativa, Edição especial de 1.000.000 exemplares, S. Paulo, Paz e Terra, 36ª edição, 2007 FREIRE Paulo, Pedagogia do Oprimido, São Paulo, Paz e Terra, 27ª edição, 1987 GADOTTI Moarci, Concepção dialéctica da educação. Um estudo introdutório, S. Paulo, Editora Cortez, 1986 MIALARET Gaston, Les Sciences de l’Education, Paris, PUF, 4ª edição, 1998 MORIN Lucien, Philosophie de l’Education. 1. Les Sciences de l’Education, Bruxelles, De Boeck Université, 1992 VARELA Florenço, Concepção dialéctica da educação, 40 olhares sobre os 40 anos da Pedagogia do Oprimido, S. Paulo, Instituto Paulo Freire, Cadernos de Formação, 2008. Desenho Curricular de Educação e Formação Geral de Adultos, Direcção - Geral de Alfabetização e Educação de Adultos, Praia, 1998 http://pt.wikipedia.org/wiki/Educa%C3%A7%C3%A3o_popular
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CONCEITO E PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO POPULAR
– Breves referências
Jacinto Santos
1. Conceito e práticas de Educação Popular Antes de nos debruçarmos sobre o(s) conceito(s) e práticas de educação popular talvez seja de interesse fazer breves referências, ainda que sucintas, sobre o próprio conceito educação. É comum dizer-se que a educação é um processo de ensino aprendizagem. «É um fenómeno visto em qualquer sociedade, responsável pela sua manutenção e perpetuação a partir da passagem, às gerações que se seguem, dos meios culturais necessários à convivência de um membro na sua sociedade. Nesse sentido, educação coincide com conceitos de socialização e de endoculturação» Também é comum distinguir-se a educação ou prática educativa formal da educação informal, hoje mais comumente designada por educação de adultos, na medida em que é dirigida para os indivíduos que, por razões de idade ou de trabalho, se encontrem impedidos de prosseguir os estudos no sistema formal. Reconhecendo que existem elementos comuns a qualquer processo de aprendizagem, seja ele formal ou informal, a educação popular distingue-se básicamente das demais pelas suas premissas de base, actores ou sujeitos, conteúdos, metodologia de abordagem, contextos ou quadros de realização, organização, pedagogia, objectivos e finalidade. Na educação popular, a aquisição do conhecimento dá-se num processo de interacção, partilha e de complementaridade entre os sujeitos/destinatários portadores de experiências de vida e os actores detentores do conhecimento sistematizado, entenda-se técnico ou científico. Um dos traços distintivos dos processos de participação Wikipedia-acessado no dia 16.11.08
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
43
popular/educação popular são a sua capacidade de tecer redes de
tividade e a articulação entre as diversas associações da sociedade civil,
relações e de criar espaços de poder.
com os indivíduos aprendendo a política do autogoverno e a gestação de valores democráticos. Aqui, entra a questão de consciência histórica
O objectivo é a busca da mudança do quadro vida e o desenvovolvimento de actvidades que permitam às populações acederem a
da realidade e a correspondente «acção política voltada para elevar a condição intelectual e moral das massas».
recursos necessários à satisfação das suas necessidades e aspirações, com base nos princípios da participação e da co-responsabilização. A finalidade é a (auto) preparação do sujeito enquanto AGENTE de mudança das suas condições de vida e da comunidade onde se insere.
2. Educação Popular em Cabo Verde – construção do Estado e lançamento das bases do desenvolvimento
Mais do que uma mera adesão, a participação, neste contexto, apresenta-se, simultâneamente, como meio/intrumento e uma finali-
Um rápido recuo ajuda-nos a melhor contextualizar a problemá-
dade. Meio/instrumento porque só com um envolvimento conscien-
tica da participação popular em Cabo Verde. A Constituição de
te e responsável dos sujeitos/destinatários é possível encetar um pro-
1980, revista em 1990, definiu a República da Cabo Verde como
cesso de mudança. Uma finalidade porque não há desenvolvimento
um «Estado de democracia nacional e revolucionária fundado na
sem a participação activa, individual e colectiva dos cidadãos, por-
unidade nacional e na efectiva participação popular, no desempe-
tanto o fim é a construção de uma sociedade participada com altos
nho, controle e direcção das actividades públicas e orientada para
níveis de confiança.
a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem».
A educação popular idealizada por Paulo Freire é entendida como «um processo de conscientização política do povo buscando
Mais adiante, a Constituição fixa que o «Estado apoia e protege
a emancipação social, cultural e política das classes menos favore-
as organizações de massas e as outras organizações sociais reco-
cidas. De facto, as ideias de Paulo Freire, os princípios de educação
nhecidas por lei que, organizadas em torno de interesses específi-
popular estão relacionadas com a mudança da realidade opressora,
cos, enquadram e fomentam a iniciativa popular e asseguram a
o reconhecimento, a valorização e a emancipação dos diversos sujei-
ampla participação das massas na Reconstrução Nacional» .
tos individuais e colectivos»
Diz, ainda, o texto constitucional em referência que o «Estado, A visão Gramsciana é, no fundo, coincidente com o postulado de
na sua acção, apoia-se nas organizações de massas e outras orga-
Paulo Freire. Efectivamente, para Gramsci, o que mais interessa «é a cria Giovanni Seraro – Da sociedade de massas à sociedade civil,acessado no dia 16.11.08 Rita Cristina Barbosa – Educação Popular e a construção de um poder ético.http/espaçoacademico.com.br/078/ 78barbosa.htm,acessado em 16.11.08
44
Constituição da República – Artigo 3º, pag.6-ANP, CDB, Praia, 1990 Idem – Art 7º nº1, pág.7
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
45
nizações sociais às quais poderá transferir determinadas activida-
nacional, com o Estado/Governo a assumir a direcção, orientação,
des que elas aceitem assumir». Em consequência, para garantir a
enquadramento e controlo de todo o processo.
realização dos imperativos constitucionais, o Estado é obrigado a criar as «condições para o desenvolvimento da base material das
Portanto, tratava-se de um processo abrangente de mobilização
organizações de massas e outras organizações sociais e proteger o
das massas, entendidas, naquele contexto, por amplas camadas da
seu património».
população. Sendo assim, estávamos em presença de um processo de participação social, uma vez que todos os segmentos da sociedade
No que concerne ao poder local, a Constituição define que os órgãos do poder local «baseiam-se na participação popular, apoiam-se
eram chamados a participar do esforço colectivo de construção do Estado e do lançamento das bases do desenvolvimento do país.
na iniciativa e capacidade criadora das comunidades locais e actuam em estreita coordenação com as organizações de massas e outras organizações sociais».
Por outro lado, nunca é demais referir-se ao ponto de partida. O ponto de partida resume-se no seguinte: a sociedade cabo-verdiana, durante todo o período colonial, não desenvolveu práticas sociais de
Da leitura do texto constitucional, na parte que nos interessa, po-
auto-promoção ou tradição de movimentos sociais, enquanto acção
dem-se identificar elementos que nos permitem (re)construir o con-
colectiva de transformação da realidade, assentes em organizações
ceito, designadamente: participação popular, controlo social das
autónomas das populações.
actividades públicas; organizações de massas; organizações sociais; descentralização; comunidades locais, etc.
Herdámos, sim, uma sociedade com valores anacrónicos, de relações verticais e elitista onde as manifestações culturais, as mais ge-
Contrariamente ao que ocorre no Brasil e, mais extensivamente, na
nuínas do povo, eram proibidas e reprimidas. Como escreveu Gabriel
América Latina, o conceito educação popular em Cabo Verde não
Fernandes «...existe para nos lembrar que, em algum momento e lugar,
se desenvolveu numa relação dicotómica oprimido/opressor e tão-
alguém recrutou, submeteu, dominou o outro, para além de lhe esva-
pouco se desenvolveu numa lógica de antagonismos de interesses ou
ziar a alma».
de luta de classes. Neste contexto, o conceito educação popular de Paulo Freire, Efectivamente, em Cabo Verde, a dinâmica do envolvimento
entendida como um processo de conscientização de um povo,
das populações no processo de desenvolvimento dá-se no quadro
enquanto Nação soberana, com identidade cultural própria e um
do processo da construção do Estado nascente e da (re)construção
território, aplica-se em Cabo Verde com as devidas adaptações, impostas pelas nossas particularidades histórico-culturais.
Idem – Art.7º nº2, pág.7 Idem-Art.7 nº3,pág.7 Idem-Art.88º nº1,pág.30
46
GABRIEL FERNANDES: Em busca da NAÇÃO-notas para uma reinterpretação do Cabo Verde crioulo, Editora da UFSC, pág.56
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
47
A terminologia popular não se aplicava em exclusivo às popula-
realização dos objectivos do Estado, mas, pela natureza do regime,
ções pobres ou às chamadas massas populares, mas sim a todo o
e isto não é um caso específico de Cabo Verde, não foi e nem seria
povo/Nação, com base na seguinte constatação factual e históri-
possível um processo participativo auto-regulado pela sociedade civil,
ca: na sua fase crítica de construção do Estado, a Nação precisa-
com missão e visão próprias e com autonomia de acção, enquanto
va, como do pão para a boca, da participação e da generosidade
esfera pública da sociedade civil porque, simplesmente, punha em
militante e patriótica de cada um e de todos.
causa os fundamentos ideológicos do regime.
Nesta fase, a vontade colectiva e eufórica, entendida como o (re)
Essas limitações do regime e o facto de ter sido o sector público
surgimento ou de exaltação da Nação e de afirmação da identidade
– administração do Estado e empresas públicas - responsável directo
nacional superava toda e qualquer preocupação de natureza ideoló-
por todas as acções de desenvolvimento do país fez com que a esma-
gica e representava, de certa forma, um estado de alma da Nação.
gadora maioria dos processos participativos ocorresse no âmbito de projectos de desenvolvimento e de programas públicos.
Coerente com a ideologia que caracteriza os sistemas ou regimes de partido único, a mobilização popular impôs-se como uma tarefa
Sendo a direcção da sociedade e a construção do Estado uma
do regime. Em consequência, era corrente e normal a aplicação das
tarefa do regime, sob a direcção de um único partido político, todo
terminologias como «mobilização popular», «mobilização das massas»,
o processo participativo em Cabo Verde, nos anos 70 e 80, é enqua-
«enquadramento», «engajamento», «emancipação», etc.
drado e controlado, tendo o Estado criado, para o efeito, instituições e mecanismos de promoção, formação, apoio e financiamento aos
Ultrapassado o momento de euforia dos anos 70, reflectindo um
processos participativos, no quadro de projectos sectoriais de desen-
certo amadurecimento social e político e por imposição constitucio-
volvimento, sobretudo no meio rural e programas de natureza cívica,
nal, o «Estado apoia-se nas organizações de massas e certas orga-
como as campanhas de plantação de árvores, campanhas de limpe-
nizações sociais na realização da sua acção». Aqui, reside a ques-
za, campanhas de vacinação, campanha de alfabetização,etc.
tão fundamental, a saber: é possível, num regime de partido único, a existência de uma verdadeira participação, por definição libertária,
Neste particular, quando se formou o primeiro núcleo de alfabeti-
dos cidadãos e das suas organizações de forma autónoma na esfera
zadores, de que fazia parte, sob a orientação directa de Paulo Freire
pública do país? É possível, no quadro do regime de partido único, a
(1978/79), o país assumiu o método do Mestre, mas não numa óptica
emergência e afirmação da sociedade civil sem que sejam anulados
de conscientização política ou libertária ou uma acção voltada para
os seus espaços de liberdade e de intervenção na sociedade?
os oprimidos. Talvez seja por isso que a terminologia educação popular não tivesse implantado no nosso léxico político e pedagógico.
Respondendo a estas duas questões, diria o seguinte: era possível aquela participação utilitarista e institucionalizada porque visava a
48
Do meu ponto de vista, muito cedo, a alfabetização em Cabo
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
49
Verde transformou-se num processo de superação académica. Pa-
Nacional das Cooperativas (INC) e o Fundo de Apoio às Cooperativas
rece estar confirmada esta posição com a dimensão e dinâmica que
(FAC), instituições dotadas de autonomia administrativa, financeira e
a educação de adultos ganhou em Cabo Verde. Em algumas situ-
patrimonial, colocadas sob a tutela do Ministro do Desenvolvimento
ações, nomeadamente no sector cooperativo, a alfabetização era
Rural e não do Ministério.
de natureza estritamente funcionalista. Ensinar um camponês de 60 anos a assinar o seu nome em 45 dias tinha por objectivo garantir que
De facto, o cooperativismo representou a expressão mais avança-
o presidente da cooperativa assinasse o cheque, juntamente com o
da do fenómeno participativo e de animação cultural no meio rural,
tesoureiro. Era obra, mas não tinha nada a ver com a conscientização
de 1975 a 1989. Codé de Dona foi lançado publicamente pelo INC. O
política, pelo menos de forma directa.
grande Catchás serviu-se dos nossos registos magnéticos para a gravação do primero venil do Bulimundo, as primeiras investigações de
Como já se disse, nos anos setenta do século XX, regista-se o pre-
Manuel Figueira sobre a panaria em Santiago contou com o apoio do
domínio das grandes campanhas de mobilização e um processo virti-
INC, assim como Leão Lopes contou com a colaboração do INC para
ginoso de criação de cooperativas de consumo, ficando a estas reser-
o seu trabalho com as oleiras de Fonte Lima.
vadas o papel de garantir o aprovisionamento das populações rurais em géneros alimentares de primeira necessidade face à desarticula-
No entanto e apesar do forte dinamismo das cooperativas, o INC
ção do sistema de abastecimento, já no período de transição (1974)
chega à conclusão de que estas acções, por si sós, não asseguravam o
para a independência nacional.
desenvolvimento local de forma integrada e multisectorial. Assim, surgem as primeiras experiências em matéria de desenvolvimento local e comu-
Para coordenar, promover e apoiar este processo foi criada a Cen-
nitário «Loura/Dacabalaio e Achada Ponta», na perspectiva de inserção
tral das Cooperativas de Cabo Verde, uma instituição híbrida, uma
das empresas cooperativas num movimento mais vasto, designado por
vez que dependia do Partido, mas fundou a sua autonomia no desen-
Sector da Economia Social ou simplesmente o Terceiro Sector.
volvimento de actividades próprias de aprovisionamento das cooperativas e através da venda directa aos consumidores, funcionando,
As abordagens experientalistas aplicadas na busca de métodos e
neste particular, como se de uma estrutura de integração cooperativa
técnicas eficazes que assegurassem a participação no desenvolvimento
tratasse: União ou Federação.
das comunidades e na gestão das suas organizações tiveram a sua ancoragem predominantemente no INC e no sector cooperativo.
Nos anos oitenta, regista-se uma evolução, tanto em termos institu-
50
cionais e jurídicos como no que se refere ao conceito e à abordagem
No plano político, João Pereira Silva, numa “conspiração” positiva
da problemática de desenvolvimento. A promoção e o apoio ao sec-
com certos quadros da sociedade civil, submetia, em 1988, ao Con-
tor cooperativo passa a ser uma tarefa do Estado, tendo como qua-
gresso do PAICV a tese da economia social e da sociedade civil que
dro orientador a Lei de Bases das Cooperativas, através do Instituto
foi liminarmente rejeitada.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
51
A experiência do cooperativismo lançou as sementes de um pro-
Habitat, a SAMBUNA e a SOLMI. Em São Vicente, o Atelier-Mar fazia um
cesso que levaria a uma prática social mais abrangente e diversifica-
percurso pioneiro enquanto organização da sociedade civil promoto-
da, infelizmente ainda pouco estudada ou valorizada. Neste particu-
ra do desenvolvimento local e da formação profissional.
lar, salienta-se a publicação, em 1987, da lei sobre as associações. A lei define, num dos seus articulados, que as associações «colaboram
Sabendo que o grosso do processo participativo realizava-se no
com a administração na realização de atribuições do Estado ou dos
âmbito dos projectos de desenvolvimento sob a responsabilidade
municípios designadamente no âmbito do desenvolvimento comuni-
directa do Estado, a problemática da participação popular come-
tário».
ça a ser tratada numa perspectiva de eficácia e eficência dos pro-
10
jectos e, sobretudo, como forma de prevenir o pós-projecto, isto é, Uma nuance fundamental era introduzida e alguns elementos de mudança começavam a dar sinais dentro do próprio sistema. Efecti-
como garantir uma dinâmica autónoma das populações após a conclusão dos projectos.
vamente, a Constituição de 80, revista em 1990, definia que «o Estado, na sua acção, apoia-se nas organizações de massas», portanto, es-
Este é o dilema de todos os processos participatórios no qua-
tas eram vistas como instrumentos de realização das suas políticas, ao
dro de situações de contingência que são os projectos. A par-
mesmo tempo que, paradoxalmente, estabelecia que a participação
ticipação não pode ser um processo com prazo de validade! As
popular, de entre outras funções, devia exercer «o controlo e a direc-
questões eram aparentemente simples: como cuidar das áreas
ção das actividades públicas».
(re)florestadas; como cuidar e gerir os equipamentos colectivos; como explorar uma área de sequeiro transformada num perímetro
A lei ordinária diz outra coisa: «as associações colaboram com a
irrigado; como cuidar e gerir um reservatório de água para a rega,
administração na realização de atribuições do Estado», lançando, as-
enfim, como assegurar uma dinâmica autónoma e sustentada do
sim, as bases para o ‘separar de águas’ entre o Estado e a sociedade
desenvolvimento local e comunitário.
civil, ainda em construção. Preocupado com estas questões, é criada a Coop-Agir, sob a liEm consequência e também devido a uma nova visão quanto à
derança de João Pereira Silva, e uma série de pesquisas de campo
participação das populações no desenvolvimento, as primeiras orga-
foram realizadas. Uma delas prendia-se com a problemática da parti-
nizações da sociedade civil de apoio ao desenvolvimento local foram
cipação popular no âmbito de projectos de desenvolvimento de que
criadas por técnicos, quadros e activistas oriundos do movimento co-
sou co-outor.
operativo e do ex-Ministério do Desenvolvimento Rural (MDR). Na tentativa de criar um conceito que fosse claro e operacional São criadas a Coop-Agir-Cooperativa de Estudos e Pesquisa, o CITI-
definiu-se a participação como «engagement effectif d’une population définie dans un processus de décision (initiative, prise de décision,
10 Lei nº28/III/87, de 31 de Dezembro – Artigo 14 nº1
52
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
53
application et évaluation), s’accompagnant d’une prise de responsa-
desenvolvimento comunitário, etc. Projectos importantes foram im-
bilité et de l’occupation d’un espace de pouvoir».
plementados, tais como FORPROSA na preparação dos técnicos do
11
então MDR em abordagem participativa, Extensão Rural, através da Mas, uma outra evolução qualitativa, nos anos oitenta, teria tido
criação de centros de extensão espalhados pelo país, Centros Técni-
lugar quando o Ministério do Desenvolvimento Rural entendeu que o
cos e Sociais de Apoio às Pesca (Porto Mosquito, Achada Ponta, Pe-
desenvolvimento rural passava pela aplicação de uma filosofia de in-
dra Badejo, Ribeira da Barca e Chão Bom), projectos de conservação
tervenção que assegurasse a participação efectiva das populações
de solos e água financiados por agências multilaterais e pela coope-
no processo de modernização da agricultura cabo-verdiana.
ração bilateral, seminários diversos sobre a participação das populações na realização de infraestruturas que aplicam a mão-se-obra
Assim, com o apoio da FAO, implementou-se um programa de sen-
intensiva na sua execução, estudo/avaliação sobre a participação
sibilização/formação dos técnicos do MDR em matéria de abordagem,
nos projectos de construção e gestão das infra-estruturas de abasteci-
técnicas e métodos de envolvimento das populações nos projectos de
mento de água potável, feito a pedido do UNICEF.
desenvolvimento e de difusão de técnicas de cultivo, tendo como suporte e objectivo a organização das comunidades e dos produtores.
No quadro político e institucional de participação popular 1974/1988 e referindo-se ao estudo, as nossas conclusões eram as seguintes:
Seminários e ateliers foram realizados com vista à definição do conceito de bacias hidrográficas, tendo como premissa a abordagem
«le régime capverdien définit la participation, simultanément,
participativa do seu desenvolvimento. Portanto, o que se procurava
comme un moyen et une finalité de son projet politique. La participa-
não se resumia a um mero processo de adesão, mas sim a capacita-
tion populaire au développement est donc institutionnalisée et toutes
ção para o auto-governo das comunidades e das organizações es-
formes modernes d’organisations économiques et sociales (coopéra-
pecíficas, envolvendo diversos protagonistas. Surgia, assim, a noção
tives, associations, etc.) sont assumées et définies comme elements
de participação assente em lógica de ACTORES, numa perspectiva
caractérisant le régime. En somme, les diverses formes d’organisations
de valorização das várias racionalidades que se entrecruzam e intera-
de la participation populaire au développement sont des instruments
gem no processo de desenvolvimento local e comunitário.
de la politique de développement du Cap-Vert»;13 Como falar de uma
12
participação popular autónoma quando « toutes les formes institutionFalava-se, nessa altura, acerca de conceitos como auto-promo-
nalisées de participation au développement sont, dans la plupart des
ção, sustentabilidade, reflexão-acção, desenvolvimento na base,
cas, suscitées, encouragées et appuyées par les institutions de l’Etat, du Parti ou des Eglises».14
11 Jacinto SANTOS & Jacques BASTIN: La participation populaire au développement des iles du Cap-Vert- Projets, Acteurs et Pouvoirs: 3 études de cas sur l’ile de Santaiago, pág.12, Praia, Décembre 1988 12 Le pouvoir réside donc dans la marge de liberté dont dispose chacun des partenaires engagés dans une relation de pouvoir...Et la force, la richesse, le prestige, l’autorité, bref, les ressources que possèdent les uns et les autres n’interviennent que dans la mesure où ils leur fournissent une liberté d’action plus grande. Michel Crozier – L’acteur et le système – Editions du Seuil,1977, pág.59-60
54
13 Idem - Jacinto Santos & Jacques Bastin, pág.212 14 Idem – Jacinto Santos & Jacques Bastin, pág. 212/213
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
55
Apesar dessas contradições de fundo, entendíamos que a partici-
mudando as condições de vida das populações locais, nos domínios
pação popular no desenvolvimento de Cabo Verde era possível des-
da agricultura, pecuária, equipamentos sociais, saúde, educação, in-
de que fossem respeitados os princípios como a responsabilidade, a
fra-estruturas de rega, formação profissional, crédito, habitação, pro-
autonomia e a organização autónoma das populações.
tecção social, luta contra a pobreza, etc. Elas são, hoje, organizações
Vinte anos depois pode-se dizer que o associativismo e as diversas práticas de desenvolvimento local e comunitário da actualidade são
incontornáveis do processo de desenvolvimento local, regional e nacional.
partes de um processo que evoluiu e se adaptou ao novo contexto político, económico e social marcado pelo advento da IIª República.
São cada vez mais profissionais no execrcício da sua missão e começam a estruturar uma sociedade civil enquanto espaço de poder e
Trata-se, efectivamente, de um “aprendizado” social, envolvendo
esfera pública diferente do Estado ou da sociedade política. A função
indivíduos, comunidades, instituições e organismos de cooperação
de promoção, formação e apoio técnico e financeiro é, hoje, maio-
governamental e não governamental internacionais e estrangeiros.
ritariamente assumida pelas organizações da sociedade civil sem fins
Vinte anos depois seria interessante avaliar em que medida este pro-
lucrativos, nomeadamente as ONG.
cesso e os seus principais protagonistas contribuíram para a democratização do país.
Os domínios de intervenção alargaram-se substancialmente. Dessa nova vaga de associativismo, surgiu uma nova geração de líderes locais e dirigentes associativos, fazendo com que a liderança do pro-
3. Emergência da Sociedade Civil – Nova vaga do associativismo, desenvolvimento comunitário e participação popular
cesso de desenvolvimento local deixasse de ser, um ‘privilégio’ dos técnicos e quadros exteriores às comunidades. Hoje é realidade viva e sentida o que, para muitos, era um utopia
A experiência social de participação no desenvolvimento do país,
irrealizável, uma exaltação ideológica de uma certa ‘elite’ ou prática
desenvolvida nos anos setenta e oitenta do século passado, ganhou
escamoteada de suberversão do regime: efectivamente, as comuni-
novo vigor nos anos noventa, tendo o país registado um crescimento
dades locais se organizam, auto governam o seu desenvolvimento, re-
exponencial de associações de base comunitária, tanto nas zonas ru-
gulam os seus conflitos e criam espaços de poder e rede de relações.
rais como nos centros urbanos. Os cidadãos escolhem livremente a maneira como participar na A evolução dá-se, também, a nível estrutural: as associações cria-
vida do país. Este, sim, é o resultado de um processo de capacitação
ram estruturas de coordenação e de integração, nomeadamente a
do povo para o desenvolvimento. É este o sentido que atribuo à edu-
Plataforma das ONG, uniões e federações de associações de base,
cação popular em Cabo Verde.
bem como confederações, com intervenções e resultados que vêm
56
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
57
De facto, regista-se menos intervenção do Estado em termos de
Neste particular, a Constituição da República em vigor impõe ao
estruturas e mecanismos de promoção e de apoio institucional. O sa-
Estado as seguintes tarefas: « ... garantir a democracia política e a par-
ber fazer associativo e comunitário, a capacidade de gestão conquis-
ticipação democrática dos cidadãos na organização do poder políti-
tada, o poder negocial conseguido ditaram um novo tipo de rela-
co e nos demais aspectos da vida política e social nacional; incentivar
cionamento com os poderes públicos, algumas vezes com tensões,
a solidariedade social, a organização autónoma da sociedade civil, o
conflitos e disputas estéreis de protagonismo, mas globalmente, im-
mérito, a iniciativa e a criatividade individual»15.
pactante na vida das pessoas e das comunidades e no processo de desenvolvimento do país.
O Estado mais liberal na sua concepção e no seu relacionamento com os cidadãos e a sociedade deixou de se identificar com a socie-
Caminhamos, paulatinamente, para a edificação da esfera pública da sociedade civil, condição essencial para a qualificação
dade civil, libertando as energias dos cidadãos e provocando uma maior disponibilidade de participação.
da nossa democracia, um factor importante na luta pela redução das desigualdades, promoção da inclusão e da solidariedade.
Em Cabo Verde, a problemática da participação das populações no desenvolvimento poderá ser analisada em dois momentos históricos diferentes da vida nacional, mas não de forma fracturante ou de
4. Conclusões
ruptura, mas sim numa perspectiva metodológica em busca de uma melhor compreensão do fenómeno.
A participação dos cidadãos na vida associativa, assumindo a quota parte de responsabilidade na resolução dos problemas sociais das
Se, hoje, a sociedade cabo-verdiana regista uma forte dinâmica
pessoas e das comunidades, constitui, hoje, um elemento estruturante
da sociedade civil, uma maior autonomia de actuação é porque hou-
da sociedade cabo-verdiana e expressão da afirmação de uma cida-
ve uma aprendizagem colectiva e um amadurecimento político, so-
dania que vem contribuindo para o aprofundamento da democracia,
cial e cultural de todo um povo.
ampliando espaços e domínios de intervenção dos cidadãos. Por razões de ordem histórica, a educação popular tem-se traduziO crescimento exponencial do associativismo deveu-se a mudan-
do num esforço, processos e práticas de envolvimento activo e respon-
ças de paradigmas na definição das tarefas do Estado e na sua relação
sável dos cidadãos em projectos e actividades de desenvolvimento,
com a sociedade. Com efeito, na Iª República, numa visão hegeliana e
em contextos político e ideológico diferentes, ainda bem, mas visan-
marxista, preconizou-se a participação a partir do Estado. Na IIª Repú-
do o mesmo objectivo: a construção de uma sociedade participada,
blica, na perspectiva gramsciana, mas sem defender a anulação do Es-
com cidadãos preparados, responsáveis e comprometidos com o de-
tado, a participação resulta da iniciativa da sociedade civil e dispensa
senvolvimento do seu país. Um processo sem prazo de validade.
estruturas de enquadramento de natureza pública ou para-estatal. 15 Constituição da República, revista em 1999 – als. d) e f) do artigo 7º, pág. 9/10
58
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
59
Talvez, hoje, face às desigualdades sociais e espaciais, com ris-
reno de intervenção neste processo. Não podemos olhar o avanços
cos de quebra de coesão social, à degradação do meio ambiente,
do país numa perpectiva redutora de estatísticas económicas e finan-
à exploração irresponsável dos poucos recursos naturais de que dis-
ceiras, mas estendê-los para o campo de valores e comportamentos.
pomos, ao desemprego, à violência juvenil, à violência doméstica, ao abandono e insucesso escolares, ao abuso sexual de menores,
Não é possível que, em pleno século XXI, continuemos a assistir pas-
à ditadura das concessionárias de serviços públicos, ao VHIV/SIDA,
sivamente e por todo lado, adultos, crianças, indivíduos com respon-
à toxicodependência e ao alcoolismo, a educação popular, tal
sabilidades públicas, a fazerem xixi e a defecarem na via pública ou a
como concebida por Paulo Freire, vem a ter uma forte dimensão
deitarem ao chão pastilhas elásticas e tocos de cigarros. Não se pode
política, reflectindo uma luta social das camadas mais pobres da
admitir que cidadãos tirem os seus animais de estimação das suas ca-
população ou dos segmentos da sociedade que se sentem excluí-
sas para pô-los a conspuscarem a via pública. Não podemos exigir
dos ou marginalizados.
organização e disciplina às vendedeiras de rua que tiram as pessoas dos passeios e mandam-nas para o meio da estrada quando são as
Uma grande franja das populações urbana e rural continua a ne-
supostas elites os primeiros a comprar na rua e fora dos mercados.
cessitar de apoio técnico e organizativo assegurado por actores exteriores às suas comunidades mas oriundas da sociedade civil, nomea-
Não podemos continuar a tolerar a danificação intencional de
damente ONG. Da mesma forma que se condena o dirigismo do Es-
equipamentos e espaços públicos. Não se pode admitir a dilapidação
tado, instrumentalizando as diversas formas de organização e práticas
dos recursos e a degradação do ambiente, ignorando que, depois de
de participação popular, condena-se, também, toda a prática que
nós, haverá muitas gerações com direito a um país habitável. O Esta-
leve a criação de novas relações de dependência que impossibilitem
do, que somos nós, não tem recursos para pagar os serviços de segu-
a afirmação de espaços de poder autónomo das população e de
rança privada de praças, pracetas, escolas e demais equipamentos
cidadania.
públicos durante 24 horas.
Num contexto de pobreza e de fragilidade económica quem dá
Uma outra vertente de educação para a cidadania tem a ver com
pão pode dar castigo, uma vez que o relacionamento torna-se de-
o desenvolvimento da esfera pública da sociedade civil, ou seja, as
sigual, pendendo a balança do poder para o lado da associação
associações devem transformar-se num movimento social capaz de
promotora e gestora dos recursos.
exercer um efectivo controlo sobre as políticas públicas, questioandoas ou apoiando-as, utilizando os mecanismos democráticos e legais.
Por outro lado, os desafios da educação dos cidadãos, uma edu-
60
cação para a cidadania em todos os sectores da vida nacional, deve
A ADECO começa a trilhar este caminho difícil, é certo, mas que
orientar-se pelos valores, pela ética e pelo civismo. As organizações
tem de ser feito. É importante que as associações continuem a tra-
da sociedade civil, OSC, e particularmente as ONG têm um amplo ter-
tar de assuntos como abastecimento de água, apoio social escolar,
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
61
formação profissional e outros, mas é fundamental que o movimento tenha a sua própria visão de desenvolvimento e seja capaz de dialogar e partilhar as suas propostas, ideias e projectos com os poderes públicos, posicionando-se como parceiros privilegiados na resolução dos problemas das comunidades locais e promoção da justiça e equidade no acesso aos serviços e bens públicos. Mais do que nunca a questão de empoderamento local, exercício da democracia e da justa aplicação dos recursos do Estado interpelam a sociedade civil organizada como um imperativo ético. Mais do que educar é preciso que sejam criadas condições que facilitem um processo de auto-educação dos cidadãos, levando-os a orientarem a sua conduta social, utilizando a expressão de Francesco Alberoni: por uma «ética de responsabilidade».16 Cabo Verde dispõe, hoje, de uma rica experiência de participação social no desenvolvimento associativo, comunitário e sindical, bem como de um saber fazer acumulado em termos técnico e metodológico que nenhuma política pública inteligente e sensata hesitaria em incorporar em medidas de política de desenvolvimento do capital humano, de inclusão social e de promoção do bem-estar das populações. Seria de todo o interesse que o movimento associativo analisasse a possibilidade e a necessidade de criação de um organismo especializado nos domínios da formação e pesquisa aplicada sobre o associativismo, desenvolvimento comunitário e outras páticas sociais de interesse local, através do qual seria sistematizado, desenvolvido e divulgado todo o saber fazer social e profissional que vem sendo construído, numa articulação com as universidades, os institutos e os municípios.
16 Quem age deve estudar com cuidado os efeitos da sua acção e escolher aquela que obtém o resultado que se deseja.Francesco ALBERONI-Valores-BE,1994,pág.36
62
EDUCAÇÃO/PARTICIPAÇÃO/ DESENVOLVIMENTO:
A situação actual em Cabo Verde
Orlando de Borja
“A reflexão só é legítima quando nos remete como sempre ao concreto, cujos factos busca esclarecer, tornando, assim, possível nossa acção mais eficiente sobre eles.”
Paulo Freire
1. Entender os conceitos para analisar a problemática Antes de mergulhar no tema proposto, impõe-se, em primeiro lugar, esclarecer os conceitos de “Educação”, “participação” e “desenvolvimento”. A educação é um conceito dinâmico, multifacetado, reflexo da evolução das ciências sociais e humanas, particularmente da pedagogia, ao longo da história da humanidade. Contudo, no meio a diversas perspectivas e correntes da educação, permanece a ideia essencial que define a educação como um processo que visa o desenvolvimento do ser humano em todos os aspectos: físico, intelectual, moral, espiritual e a sua inserção na sociedade. No passado, durante um longo tempo, a educação foi um conceito prisioneiro da escola, fruto de uma visão mais estreita, centrada numa aprendizagem linear. Mas é, sobretudo, no século XX que, com o avanço das ciências sociais, a emergência e consolidação da democracia, que se desenvolvem abordagens críticas, que analisam e avaliam a educação, conduzindo a mudanças profundas na sua concepção. Dessas abordagens críticas, destacam-se algumas vozes provenientes do Sul, particularmente da América Latina, cujo maior expoente foi o pedagogo brasileiro Paulo Freire, que, nos finais da década de 60 e início da década de 70 do século XX, iniciou uma experiência de educação denominada “educação popular” baseada numa nova pedagogia, na qual defendeu um “método de alfabetização de adultos” assente no “sujeito-aprendiz” e cujos princípio foram expostos na sua obra-referência intitulada “Pedagogia do Oprimido”. DE OLIVEIRA, Rosiska Darcy, DOMINICÉ Pierre, (1977) Ivan Illich e Paulo Freire: A opressão da Pedagogia, A Pedagogia dos Oprimidos. Livraria Sá da Costa, Lisboa, Cadernos Livres no11.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
67
Esse movimento pedagógico (e político) influenciou bastante as
Intimamente interligados a esses dois conceitos (educação e
ideias educativas nos tempos posteriores, particularmente na região
participação) está o conceito de “desenvolvimento”, cuja sentido
da América Latina e nalguns países africanos, recém-independentes.
primeiro se relaciona com as ideias de progresso e avanços de uma
É uma análise que nasceu de um contexto socio-político diferente e
sociedade que tendem ao seu bem-estar.
que propunha “uma educação crítica, orientada para a decisão e para a prática da responsabilidade social e política”. Por outras palavras, o objectivo era “educar para a concientização”.
É um conceito que se tem modificado ao longo da história, gerando teorias e visões diversas, algumas delas divergentes. Na sua evolução, passou de um sentido mais economicista e etnocêntrica
Hoje, pode-se afirmar que existe um consenso, a nível de países e organismos internacionais, de que a educação é: - um direito humano fundamental; - um processo que deve conduzir ao desenvolvimento integral do ser humano; - uma estratégia para capacitar o indivíduo para a vida social; - um processo que se propõe a moldar/“transformar” o indivíduo/ cidadão;
(europeísta e americana) para chegar à visão mais alargada do Desenvolvimento Humano (anos 80). Nos últimos tempos, apesar das suas variações, esta noção de desenvolvimento tem sido difundido e prevalecido. Os seus defensores argumentam que o desenvolvimento humano é “um processo de alargamento de escolhas das pessoas. Em principio, podem ser infinitas e podem mudar ao longo do tempo. Mas, em todos os níveis de desenvolvimento, as três escolhas essenciais são: ter uma vida longa saudável, adquirir conhecimento e ter acesso aos recursos necessários para um padrão de vida decente”.
Essa nova visão de educação engloba o elemento “participação” do indivíduo/sociedade enquanto:
E alertam que “se estas escolhas essenciais não estiverem disponíveis, muitas outras oportunidades permanecem inacessíveis”.
• Atitude intrínseca ao indivíduo-cidadão; Para além dessas três escolhas, “o desenvolvimento humano inclui, • Elemento indispensável na estruturação da democracia e do desenvolvimento de qualquer sociedade moderna; • Indicador do nível de desenvolvimento de um povo/país/ democracia.
ainda, liberdade política, económica e social, oportunidade para se ser criativo e produtivo, para o gozo do auto-respeito pessoal e garantias de direitos humanos”. CAPUL, Jean-Yves, GARNIER, Olivier (1996). Dicionário de Economia e de Ciências Sociais. Lisboa, Paralelo Editora.pp124-127. PROGRAMA DAS NAÇOES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, Relatório do desenvolvimento, 1995, p.117. citado por CORREIA, Virgílio, (2007). Educação e Desenvolvimento. Edições Colibri, Lisboa. p.31.
Idem.
68
Idem. p. 32
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
69
Essa noção de desenvolvimento procura ser coerente e vai às últimas
A opção por esse enfoque deve-se à convicção de que a edu-
consequências, advogando que “enquanto processo de aumento das
cação formal produz efeitos duráveis que se reflectem nas atitu-
escolhas para todo o povo, e não apenas para uma parcela da socie-
des e comportamentos dos indivíduos e na sociedade, ou seja, é
dade, o desenvolvimento humano não aceita qualquer forma de injusti-
um factor que, devidamente analisado, oferece elementos que
ça, de discriminação ou exclusão de alguma parte da população”.
ajudam a melhor entender determinadas situações da realidade cabo-verdiana actual.
Os proponentes desse novo conceito argumentam que “é um paradigma holístico de desenvolvimento” e que “A estratégia do Desen-
Quanto ao segundo período, a análise será sobre a relação edu-
volvimento Humano é considerar e analisar todos os temas económi-
cação-participação-desenvolvimento, tendo como base as associa-
cos em estreita relação com os objectivos últimos do desenvolvimento
ções e ONG cabo-verdianas do pós 90.
que são as pessoas” , ou seja, o desenvolvimento é apreendido como
um processo de transformação social.
Importa referir que, sobre esta temática, existem várias abordagens, assentes em teorias – da modernização e da dependência – que se debruçam sobre o papel da educação no desenvolvimento.
2. Educação e desenvolvimento. O contexto caboverdiano
De um lado, a abordagem desenvolvimentista que defende que “o ensino constitui o elemento crucial para a conversão do crescimen-
Neste ponto, procura-se fazer uma leitura da relação entre educação,
to económico em desenvolvimento social” . De outro, as teorias da
participação e desenvolvimento em Cabo Verde, considerando dois pe-
dependência sustentam que, para os países pobres, a educação fun-
ríodos: o pós-independência, no qual vigorou o regime monopartidário
ciona “como um instrumento de penetração exploração capitalista
(1975-1990) e o período de abertura política, de 1991 ao presente.
ocidental, (…) operando contra o desenvolvimento e a independência económica desses países e como factor de dependência tecnoló-
Relativo ao primeiro período, far-se-á o enfoque da educação
gica e como factor de subdesenvolvimento dos mesmos”.10
no seu sentido mais restrito, isto é, a educação formal, com base na análise feita pelo antropólogo cabo-verdiano Virgílio Correia sobre
No entanto, os novos estudos sobre a situação dos países afri-
as políticas de desenvolvimento, cingindo-se a uma leitura objec-
canos saídos da colonização puseram em causa as duas teorias,
tiva dos dados sobre a educação formal e as interacções com a
baseadas no pressuposto de que existe uma relação automática
participação e o desenvolvimento.
entre o crescimento económico e o desenvolvimento nacional. Es-
sas investigações vieram mostrar que, nesses países, apesar de um Ibidem.
70
Idem, p.33.
CORREIA, Virgílio, idem, p.38.
O livro “Educação e Desenvolvimento” é fruto da sua dissertação de mestrado em desenvolvimento africano.
10 Ibidem.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
71
grande investimento na educação, “os resultados obtidos ficam
cação para o desenvolvimento” fez investimentos e conseguiu avan-
muito aquém das expectativas, designadamente: muitos jovens
ços no ensino universal, gratuito e obrigatório, mas houve uma estag-
permanecem desenraizados, desempregados e alienados, sem
nação ou recuo no ensino secundário.
uma preparação adulta e autoconfiante”.
11
O Estado apostou na formação de professores cabo-verdianos, na Partindo de uma abordagem em que o desenvolvimento é enten-
promoção da extensão da cobertura escolar em todo o país e na for-
dido como um processo de mudança social, os estudiosos defendem
mação geral, mas negligenciou a formação sistemática de recursos
que, “em África, essa mudança social foi tentada, na maioria das ve-
humanos em todos os domínios úteis.
zes, por um processo de substituição ou desenvolvimento transferido, isto é, “importação de modelos do exterior”, centrado numa “Eestra-
Quase duas décadas depois, em 1987, o governo inicia uma Re-
tégia de transferência para países “subdesenvolvidos” de tecnologias,
forma do Sistema Educativo, tendo como prioridade “fazer do ensi-
instituições e modelos culturais”.
no uma estratégia que torne Cabo Verde economicamente viável” e
12
“responder, com maior eficiência, às necessidades de desenvolvimenPorém, observam, verifica-se que tanto nos países desenvolvi-
to social, económico e cultural e ao desafio da modernização”.15
dos, como nos ditos subdesenvolvidos os processos de desenvolvimento trouxeram o “agravamento das desigualdades económicas, sociais e políticas”.13
Decorridos alguns anos o balanço feito mostrou que, apesar de algumas inovações, essa reforma criou alguns problemas: tinha um “carácter selectivo elitista e injusto”, situação que “podia levar aque-
É precisamente nesse contexto de estados africanos pós-coloniais que
les que fossem capazes de beneficiar de um tal sistema a se verem a
Cabo Verde se enquadra e deve ser analisado. Ao fazer essa aborda-
si próprios como indivíduos superiores em relação aos outros cidadãos
gem, o investigador Virgílio Correia parte de um conceito de desenvolvi-
e reclamarem para si os privilégios daí decorrentes”.16
mento como um “processo de mudança social que reflecte as relações de produção numa divisão social harmoniosa e sem exploração e cujo
Após a análise dos resultados em termos de custos-benefícios, a
objectivo principal é a satisfação das necessidades básicas: a alimenta-
conclusão do autor é que “as práticas de desenvolvimento em Cabo
ção, a habitação, a saúde, a educação e o trabalho”.14
Verde, conduzidas pelo Estado, ficam aquém dos objectivos de desenvolvimento perseguidos”. Não foram alcançados os objectivos de
Os dados recolhidos e analisados nesse período, ou seja, de 1975 a
diminuição das desigualdades entre as diversas camadas sociais e
1985, indicam que Cabo Verde, com base numa estratégia de “edu-
regiões do país, tendo-se verificado um grande desequilíbrio na distribuição de rendimento.
11 Idem, p.53. 12 idem. p.34
72
13 ibidem.
15 Idem, p. 131
14 Idem, p.139.
16Idem, p.136-137.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
73
No entanto, o projecto estratégico de desenvolvimento de Cabo
contexto de dirigismo tecnocrata e político, houve alguma mobiliza-
Verde apoiava-se na educação como um factor decisivo para atingir
ção da sociedade civil, mas segundo orientações do partido dirigente
os seus objectivos:
da sociedade. Era um contexto histórico específico.
“Formar uma mão-de-obra qualificada capaz de responder às ne-
Para o sociólogo Daniel Costa, “os grupos da sociedade civil que
cessidades de desenvolvimento económico, transformar as estruturas
surgiram após a independência nacional, nomeadamente sindicatos,
sociais e reforçar a identidade social e nacional segundo os princípios
associações de bairro, associações juvenis e de mulheres, foram co-
da igualdade, da liberdade e da emancipação” .
optados e/ou mesmo criados como organizações satélites do partido
17
dirigente do país, na altura o PAIGC/CV”.19 Quando se fala da relação entre educação e desenvolvimento, já não há mais dúvidas e a conclusão é clara: “Não existe uma re-
Esse condicionante político limitou bastante a participação da so-
lação simples e estável entre esses dois elementos”. Outros factores
ciedade civil nos vários campos de acção teoricamente existentes.
intervêm no desenvolvimento. A educação é apenas um deles e
Todavia, não se pode esquecer outros constrangimentos, nomeada-
pode funcionar ao contrário.”
mente as “frágeis condições económicas de Cabo Verde e o peso
18
excessivo do Estado na vida económica do pais que constituem também fortes empecilhos à autonomia da sociedade e à própria cons-
3. O papel das associações e ONG no desenvolvimento de Cabo Verde
tituição de uma sociedade civil autónoma e plural. O Estado é o principal provedor e distribuidor de recursos económicos e financeiros20 e o grande empregador. Os tentáculos do Estado atingem o sector
Alguns estudiosos consideram a “participação das populações”
privado que tem como principal cliente e fornecedor o próprio Esta-
como um elemento fundamental nas questões de desenvolvimento.
do. Nestas condições de dependência quase total face ao Estado,
Entendem que ela é um indicador importante na definição do tipo e
as possibilidades de contestação do status quo são poucas. Este peso
nível desse desenvolvimento.
do Estado é uma situação que se estende ao período democrático (Correia e Silva, 2001; Furtado, 2001).”21
Para a análise da participação das populações no processo de desenvolvimento de Cabo Verde toma-se em consideração duas fases: de 1975 a 1990 e após 1990.
Ou seja, nesse período, a participação da sociedade civil caboverdiana estava igualmente condicionada às reais condições de existência do país.
Anote-se que, no primeiro período, após a independência, num
74
19 COSTA, Daniel (2007). Pesquisa Sobre a Sociedade Civil em Cabo Verde. CODESRIA. Doc. Policopiado. P13.
17 Idem, p.139.
20 Sem base interna a partir da qual se possa financiar o Estado caboverdiano funciona grandemente com recursos financeiros provindos do exterior, da cooperação internacional, principalmente da cooperação bilateral e das organizações multilaterais.
18 Idem, p.39.
21 Idem, p.14.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
75
Atente-se que, a nível do projecto nacional de alfabetização de
o sucesso e tornaram-se referências junto do governo e outras insti-
adultos, houve um ensaio de “educação popular”, mas com limita-
tuições, públicas e privadas, de tal forma que, hoje, em Cabo Verde,
ções. Por motivos vários, a prática de uma pedagogia libertadora e
existe um leque de instituições e organizações não governamentais
conscientizadora não conseguiu efectivar-se.
activas que “intervêm para a resolução dos mais variados problemas sociais do país e que constituem uma garantia segura de aprofunda-
Contudo, é no período da abertura política e económica iniciado
mento da democracia e dos direitos humanos.”23.
em 1990 que aparecem novos desafios para a sociedade cabo-verdiana, com exigências a todos os níveis, inerentes à própria democra-
E pode-se afirmar que aquelas que hoje são casos de sucesso, de-
cia, quais sejam a iniciativa privada, a competitividade, a autonomia
vem-no à adopção de uma pedagogia de intervenção na linha da
(pessoal e organizacional), a participação e a cidadania como ala-
“educação popular” ou educação para a cidadania. Todavia, simulta-
vancas do desenvolvimento.
neamente, verificam-se muitas contradições e muitos obstáculos mantêm-se. Analisando o percurso de muitas dessas ONG e associações
A sociedade civil sentiu a necessidade de se libertar de uma certa apatia em termos de participação e iniciar uma conquista do seu es-
comunitárias, nota-se que os avanços são lentos e existem recuos. De facto, constata-se que:
paço nessa nova dinâmica imposta pelo processo histórico. • A participação dos cidadãos e das comunidades ainda é É nesse contexto muito particular que as ONG marcam a diferen-
muito frágil;
ça, relativamente ao Estado, no campo da educação para a cidadania ou para o desenvolvimento. Os sinais dessa diferença são visíveis no próprio aumento das organizações e associações surgidas em pouco tempo. Efectivamente,
• Muitas ONG ainda não consolidaram o seu lugar; • Existem resistências e recusas de participação por parte dos cidadãos;
o número de ONG passou de 8 em 1985 para 13 em 1990, 63 no ano 2000. Chegou a 80 em 2002, e, actualmente, são aproximadamente 600 associações locais actuando em todo o país.22
• Nota-se muita desconfiança, passividade e apatia por parte de muitos cidadãos que se refugiam no auto-isolamento, atitudes que indicam uma clara resistência à participação na vida das suas co-
Reflexo da tomada de consciência do seu papel no novo contexto sócio-politico, as ONG apetrecham-se, recorrendo aos instru-
munidades ou do país (a título de exemplo, veja-se a abstenção nas eleições que, ainda, é uma percentagem considerável).24
mentos da educação popular e à troca de experiências entre si, para a melhoria da sua forma de actuação. Algumas conquistaram 23 COSTA, idem, p.7 22 COSTA, idem. P 5.
76
24 Nas autárquicas de 2008 houve 19,98% de abstenção, que totaliza 50.386 eleitores (www.ine.cv).
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
77
Aliás, segundo o Inquérito do Afrobarometer de 200525, ainda persiste uma fraca participação dos cidadãos nas organizações da sociedade
oxigénio para uma vivência democrática e um desenvolvimento mais equilibrado.
civil e em acções de cidadania activa. Esse mesmo inquérito mostra que, nesse mesmo ano, 85% dos inquiridos nunca participou em protestos de rua ou marcha.
Mas a cidadania e a solidariedade nascem e consolidam-se quando existem atitudes críticas e espíritos inconformados que, ao tomarem consciência de determinadas realidades, são capazes de atitudes pró-
No entanto, verificou-se uma tendência de aumento de filiação partidária, um facto que, na explicação do sociólogo Daniel Costa, denuncia
activas, assumindo a sua condição humana de ser-social, convictos de que, tal como afirmou de forma categórica Nha Násia Gomi:28
uma certa mentalidade em que “as pessoas delegam o exercício da cidadania política aos partidos políticos, revelando a fraqueza do exercí-
“Sima nu kre nu ka podi sta
cio da cidadania em Cabo Verde”.
Sima nu sta nu ka podi fika”29
26
O fraco nível de engajamento e de participação dos cidadãos aponta para um problema social não resolvido e que pode perigar a vivência democrática. Hoje, é um dado assente que “participar é uma troca simbólica positiva entre um indivíduo e a sua comunidade. Quando acontece o contrário, estamos perante um claro sinal de mal-estar social, pois o cidadão não conseguiu criar o seu espaço de afirmação solidária”. Nota-se um silêncio por parte do citadino anónimo, uma não resposta do cidadão. Embora, na sua casa, nas esquinas, nos bares e nas tabernas vai acontecendo algum debate e, sobretudo, muita lamentação. No entanto, algumas tentativas de cidadania activa estão sendo ofuscadas por um ambiente socio-político desgastante e alienante”.27 Por isso, é urgente o resgate da solidariedade e da cidadania,
25 AFROBAROMETER/AFROSONDAGEM. (2005), Atitudes em Relação à Democracia em Cabo Verde, Praia.
78
26 COSTA, Idem, p.20.
28 Cabo-verdiana, natural da ilha de Santiago, cantadeira do Finason.
27 BORJA, Orlando, idem.
29 “Nunca estamos como desejamos, mas como estamos não podemos continuar!” (tradução livre).
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
79
Bibliografia AFROBAROMETER/AFROSONDAGEM. (2005), Atitudes em Relação à Democracia em Cabo Verde, Praia. CAPUL, Jean-Yves, GARNIER, Olivier (1996). Dicionário de Economia e de Ciências Sociais. Lisboa, Paralelo Editora. CORREIA, Virgílio, (2007). Educação e Desenvolvimento. Edições Colibri, Lisboa. DE OLIVEIRA, Rosiska Darcy, DOMINICÉ Pierre (1977) Ivan Illich e Paulo Freire: A opressão da Pedagogia, A Pedagogia dos Oprimidos. Livraria Sá da Costa, Lisboa, Cadernos Livres no11. PLATAFORMA das ONG (2007), Guia das ONG’s de Cabo Verde. Praia. Plataforma das ONG. COSTA, Daniel (2007). Pesquisa Sobre a Sociedade Civil em Cabo Verde. CODESRIA. Doc. policopiado.
Artigos: BORJA, Orlando de (2004) “Moradores na cidade ou cidadãos?”, in Boletim A CAPITAL, nº. 0, Junho 2004. Praia. http://propraianet.blogspot.com/2009/03/moradores-da-cidade-oucidadaos.html.
80
Olhar crítico sobre o trabalho desenvolvido pelos actores não governamentais caboverdianos em matéria de educação popular
Ramiro Azevedo
Educação Popular Este trabalho tem como objetivo principal apresentar algumas reflexões sobre a actividade em matéria de educação popular desenvolvido pelas Organizações Não Governamentais, ONG, cabo-verdianas. Deve-se registar que essas reflexões não configuram uma análise tão distanciada, isenta e baseada em inquéritos quanto é usual em documentos do tipo académico tradicional. Procuro partilhar convosco a percepção que tenho deste processo baseado em convicções que se consolidaram ao longo de vários anos de envolvimento com esse tipo de actividade e que me permitiram reforçar a ideia de que é necessário avaliar o trabalho realizado e identificar as carências das metodologias utilizadas, visando criar mecanismos que possibilitem uma mudança de atitude das populações face aos desafios do desenvolvimento. Certamente que nos outros painéis terão discutido e clarificado o conceito de educação popular. Contudo, gostaria de relembrar que se trata de uma educação comprometida e participativa orientada pela perspectiva de realização de todos os direitos do povo. A educação popular baseia-se no saber da comunidade e incentiva o diálogo. Ela visa a formação de sujeitos com conhecimento e consciência cidadã e a organização do trabalho político para afirmação do sujeito. É uma estratégia de construção da participação popular para o redirecionamento da vida social. A principal característica da educação popular é utilizar o saber da comunidade como matéria prima para o ensino. É aprender a par-
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
85
tir do conhecimento do sujeito e ensinar a partir de palavras e temas
selho Económico e Social das Nações Unidas, através da Resolução 288
geradores do quotidiano dele.
(X), de 27 de Maio 1950, sendo definida como “uma organização internacional a qual não foi estabelecida por acordos governamentais”.
A educação é vista como acto de conhecimento e transformação social, tendo um certo cunho político. O resultado desse tipo de
O facto de as ONG desenvolverem actividades de cunho so-
educação é observado quando o sujeito passa a ser actor e respon-
cial sem conotações lucrativas, não gerando recursos financeiros
sável pelo seu desenvolvimento.
próprios,determina que elas fiquem dependentes do financiamento externo para a viabilidade material dos seus programas.
As Ong e a educação popular
Deste modo, as ONG buscam nas agências de cooperação internacional a base de sustentação material para o desenvolvimento das
Refletir sobre o papel das ONG no processo de conscientização/
suas actividades. Os financiamentos concedidos são condicionados
responsabilização da população cabo-verdiana requer, em primeiro
ao princípio de que as actividades desenvolvidas pelas ONG devem
lugar, a definição acerca da compreensão e da delimitação da ter-
contribuir para uma mudança na qualidade de vida e do padrão de
minologia ONG e do seu universo.
desenvolvimento das comunidades.
Nos últimos anos, variadas instituições abarcando práticas as mais di-
Neste quadro, as ONG são compelidas a desenvolver um traba-
fusas se autodenominaram organização não governamental. Na reali-
lho que visa fortalecer e dar autoconfiança aos grupos populacionais
dade, para além de uma definição formalista, ONG configuram-se,
desfavorecidos, capacitando-os para a articulação dos seus interes-
historicamente, como um campo de práticas sociais comuns a entida-
ses e para a participação na comunidade, o que lhes facilita o acesso
des que interagem no sentido de apoiar actores sociais emergentes
aos recursos disponíveis e o controle sobre estes, a fim de que possam
na luta pelos seus direitos.
levar uma vida autodeterminada e auto-responsável e participar no processo político.
Assim, tais instituições devem ser compreendidas pelas suas ações e actividades engendradas na esfera pública. Desta forma, ao nos
Estaremos todos de acordo que as ONG desempenham um pa-
remetermos às ONG em Cabo Verde, devemos abranger uma gama
pel fundamental na modelagem e implementação da democracia
de instituições que foram construindo uma identidade comum, apesar
participativa. As organizações formais e informais, bem como os movi-
de comporem um campo extremamente heterogéneo do ponto de
mentos populares devem ser, cada vez mais, reconhecidos como par-
vistas de suas ações mais imediatas.
ceiros na implementação da Agenda 21 (texto assumido oficialmente por vários países e, simultaneamente, pelo Fórum das Organizações
O termo ONG foi utilizado, oficialmente, pela primeira vez, pelo Con-
86
Não-Governamentais, por ocasião da Cimeira do Rio/92).
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
87
São estes desafios que as Ong cabo-verdianas vêm perseguin-
O processo de abertura política deu lugar à afirmação da identi-
do, ao longo dos anos, e que vêm realizando com maiores ou me-
dade das ONG, concebida como um fenómeno institucional especí-
nores resultados tendo em conta a fragilidade de meios de que
fico, com características próprias e autónomas em relação a outros
elas dispõem.
actores sociais.
Numa atmosfera nacional e internacional marcada pelo aumento
A consciência de que o Estado não é capaz, de por si, resolver os
da exclusão social e a retirada progressiva da regulamentação do
graves problemas da sociedade explicam a existência de dezenas
Estado, acreditamos que as ONG possuem um papel fundamental na
de Organizações Não Governamentais que têm tido um papel funda-
sociedade cabo-verdiana.
mental na prossecução de esforços e implementação de acções de apoio ao desenvolvimento.
Na década de oitenta do século XX, começam a nascer, em Cabo Verde, organizações de fins públicos e não lucrativos, com capaci-
Por outro lado, o Estado há muito reconheceu que não deve ser
dade de gerar projectos em diversos domínios como da educação,
o executor único da política de desenvolvimento, o que pressupõe
formação, acção social, habitação, etc. Essas organizações tinham
concorrência com o sector privado e organização da sociedade civil,
como objectivo assumir responsabilidades, empreender iniciativas e
maximé, as ONG. A continuidade na execução de acções e progra-
mobilizar recursos necessários ao desenvolvimento social do país, ten-
mas de desenvolvimento por parte das ONG é uma exigência, nome-
do sido, “de facto”, classificadas de ONG.
adamente da luta contra a pobreza e a exclusão social, que não se compadece com acções pontuais e desgarradas que não asseguram
Essas organizações eram caracterizadas, na sua maioria, por possuírem uma função social na sua comunidade ou sociedade; actua-
a promoção de um efectivo desenvolvimento que se quer participado pelas populações envolvidas.
rem em vários campos e de diversas formas, com objectivos e missões
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diversas; possuírem uma estrutura formal e legal; relacionarem-se e
Não se ignora que tais objectivos só poderão ser atingidos com
ligarem-se à sociedade ou comunidades através de actos de solida-
recursos financeiros e humanos que assegurem para a continuidade
riedade; não terem fins lucrativos; e preservarem como valores funda-
de solidez das acções empreendidas. Esta é talvez uma das maiores
mentais a autonomia e a independência face ao Estado.
dificuldades que enfrentam as nossas ONG.
A origem das ONG cabo-verdianas está ligada a uma diversidade
Nos grandes debates sobre a estratégia de reformas do Estado,
de motivações em que se destacam o espírito humanitário, a habita-
tem havido consenso que é determinante para a devolução à socie-
ção, a luta contra a pobreza, a exclusão social, a cultura e a partici-
dade civil da responsabilidade pelo exercício de atribuições classica-
pação na sociedade e nunca a política.
mente a cargo do Estado.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
89
O conceito de educação popular começou a tomar corpo no seio
Segundo a teoria de T.H. Marshal, o status de cidadania comporta
dos actores sociais cabo-verdianos, aliado ao conceito de educação
três elementos ou dimensões: civil, política e social. Estes três elemen-
para o desenvolvimento e desenvolvimento local, na sequência de
tos são definidos em termos de direitos e das instituições sociais que
propostas do paradigma territorial e, sobretudo, da multiplicação de
dão o sentido e o contexto onde se exercem esses direitos.
experiências práticas protagonizadas por associações. 1. O elemento civil da cidadania reporta-se ao conjunto de direitos, O papel desses protagonistas na educação de adultos e no combate ao analfabetismo, na dinamização do emprego, na luta contra
os direitos civis, necessários ao exercício das liberdades individuais e as instituições a eles ligadas são a lei e o sistema judicial.
a pobreza e a exclusão social e na promoção das comunidades mais desfavorecidas reforçou a importância da sociedade civil e das di-
2. O elemento político é constituído pelos direitos que asseguram a
nâmicas locais de desenvolvimento em resposta aos seus problemas
participação no exercício do poder político, desde o voto à elei-
mais urgentes, nomeadamente em matéria de competitividade, coe-
ção para cargos públicos e é contextualizado nas instituições
são social, sustentabilidade e respeito pela diversidade cultural.
parlamentares.
Considerando a importância da educação no processo de de-
3. Por fim, o elemento social da cidadania é constituído pelos direi-
senvolvimento, este fórum certamente irá permitir às organizações da
tos que defendem a participação no nível de vida predominan-
sociedade civil uma reflexão sobre o que tem sido feito nessa matéria,
te numa dada sociedade e na construção e usufruto do seu pa-
aprofundar conceitos da educação popular e a sua aplicação práti-
trimónio social. Este elemento encontra-se ligado às instituições
ca em Cabo Verde, bem como a definição de conteúdos, estratégias
relativas ao sistema educativo e ao bem estar social.
e suportes que melhor se adaptem ao trabalho de educação que vem sendo desenvolvido.
Estes três elementos da cidadania apresentam desenvolvimentos históricos independentes e inter-relações nem sempre harmoniosas.
Deste modo, cabe-nos a tarefa de trazer pistas para a avaliação do trabalho das ONG no domínio da educação das populações.
A actividade das ONG tem enquadramento no 3º ponto que tem a ver com o elemento social da cidadania. Neste quadro, certamente
Assim,começaria por relembrar um dos aspectos importantes do
concordarão comigo que a educação popular faz parte da genese
processo de educação que é a capacitação dos comunidades para
das ONG. Elas são um interveniente implicado no processo de mudan-
o exercício da cidadania entendida como uma construção social di-
ça que tem um papel de mobilização educação e organização das
nâmica que se reporta ao conjunto de direitos e de deveres que um
comunidades. Mesmo quando as intervenções são de natureza sec-
membro de uma comunidade ou sociedade possui enquanto tal.
torial, abarcando temáticas como a mulher, a criança, o ambiente, etc., constatamos a componente educação.
90
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Podemos ir mais além e dizer que todas as acções em prol do de-
ficar os seus próprios problemas e soluções. SARAR, como é do vosso
senvolvimento requerem uma componente educação popular. Resta
conhecimento, é uma metodologia de educação para adultos, que
avaliarmos em que medida ela é feita conscientemente como acção
visa o restabelecimento da auto-estima, optimizar a habilidade das
prioritária, secundária ou mesmo marginal.
pessoas para terem acesso, priorizar, planear, auto organizar-se, e ter iniciativas e responsabilidade.
No expectro das ONG cabo-verdianas encontramos exemplos diferenciados de priorização do trabalho de educação. O Citi-Habitat,
A questão de fundo é saber em que medida as metodologias vêm
por exemplo, define como seu objectivo prioritário a educação orga-
sendo aplicadas correctamente e vêm sendo adaptadas às carac-
nização e participação, enquanto a OMCV define como objectivo
teristicas de cada grupo-alvo. Existirão indicadores que nos permitem
primeiro a promoção da mulher, tendo em conta o seu público-alvo.
medir o impacto real da aplicação dessas metodologias? Estarão os animadores suficientemente capacitados para o manuseanento des-
Mas se avaliarmos as acções das várias ONG encontramos a com-
sas ferramentas?
ponente educação sempre presente. Encontramos sempre uma perspectiva multidimensional e multidisciplinar da intervenção social. E to-
Estou convencido de que existem falhas e que todos devemos as-
das as ONG assumem o seu papel de mobilizador e organizador dos
sumir a responsabilidade de melhorar a eficácia e a eficiência dos
seus grupos-alvo.
métodos de trabalho para que possamos, cada vez mais, fortalecer a capacidade de organização, a consciência política e a compe-
O CITI-Habitat, que devem ter conhecido a experiência ontem,
tência técnica dos grupos carentes da população. Porque democra-
centraliza a sua intervenção num programa de “Animação concienti-
cia e o desenvolvimento sustentável andam de mãos dadas. Aqui, os
zante” baseado na trilogia educação, organização para a participa-
actores da sociedade civil, como organizações não governamentais,
ção, em parceria com associações de desenvolvimento comunitário
movimentos sociais e igrejas, desempenham um papel importante, na
e núcleos locais de desenvolvimento, organizadas em rede (“Rede
medida em que apoiam os pobres a articular os seus interesses e a
Animar”, constituída, neste momento, por 21 associações), construin-
reivindicá-los junto dos responsáveis políticos.
do em bases sólidas, a auto-promoção das populações, através de um processo de “Desenvolvimento de Proximidade”, utilizando como
Outro aspecto que julgo merecer a vossa reflexão tem a ver com
ferramentas os ensinamentos da “Educação Popular/Educação para
o facto da generalidade das ONG cabo-verdianas trabalharem na
o Desenvolvimento”.
lógica de projectos, o que condiciona todo o seu trabalho. O projeto torna-se um meio para se conseguir recursos externos, não um esforço
As ONG utilizam diferentes metodologias no trabalho de educação. O Citi-Habitat tem utilizado, prioritariamente, a metodologia
planeado de um grupo de pessoas para alcançar um objetivo e modificar uma determinada situação.
SARAR como forma de apoiar as comunidades a pesquisar e identi-
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Além disso, a necessidade de escrever projectos e administrar recursos marginaliza o pobre que não sabe escrever, nem possui conhe-
das como procedimentos infalíveis, capazes de sempre proporcionar soluções adequadas para problemas de todos os tipos.
cimentos próprios para administrar, gerando dependência e perda de dinamismo.
Importa relembrar que a qualidade das decisões obtidas por meio da participação sempre dependerá do grau de capacitação da co-
Neste particular, a relação entre as partes também passa a ser desvirtuada diante do contrato estabelecido: a doação dá para os líde-
munidade ou dos seus representantes para identificar soluções adequadas para os problemas que a afetam.
res intermediários um poder maior dentro de um determinado grupo; as doações substituem a criatividade e o esforço próprio dos sujeitos
Processos mal concebidos ou mal implementados não só podem
populares, fazendo da apresentação de projectos um meio mais có-
levar a resultados evidentemente inadequados, mas também podem
modo do que iniciar um processo de poupança.
gerar descrença quanto à própria viabilidade, conveniência e credibilidade das práticas participativas.
De certo modo, a cooperação para o desenvolvimento corre o risco de se transformar em mercadoria. A relação entre as ONG e os
O facto de as ONG de Cabo Verde actuarem segundo a lógica
seus colaboradores corre o risco de passar a ser uma relação de troca
de projectos condiciona, à partida, o trabalho de educação para o
de dinheiro pela força do trabalho dos seus agentes, que exige, além
desenvolvimento. Verifica-se que existe uma vontade manifesta de
de um conhecimento específico, uma dedicação quantificada em
uma intervenção pautada pela educação para o desenvolvimento,
horas de actuação e resultados.
mas não podemos afirmar que as ONG cabo-verdianas conseguem realizar, de forma sistemática, esta actividade e que têm um plano
Estou crente que o que se deve procurar com os projectos é uma
estratégico de educação.
participação activa dos destinatários em decisões e processos políticos como factor-chave para um desenvolvimento eficiente, susten-
Está, à vista de todos, que houve uma grande mudança de com-
tável e autónomo, não só nos projetos direcionados explicitamente
portamento na sociedade cabo-verdiana, consequência de um tra-
para a promoção da participação, mas também nos sectores clássi-
balho empenhado ao longo dos 33 anos da independência. É fácil-
cos como desenvolvimento rural, habitat, saúde e educação.
mente verificável, que nas comunidades onde existem associações que lideram o desenvolvimento, existe uma mudança comportamen-
A participação deve, portanto, ser vista como um instrumento im-
tal das comunidades, no sentido de uma maior participação, assump-
portante para promover a articulação entre os actores sociais, for-
ção das responsabilidades e uma avaliação positiva da realidade
talecendo a coesão da comunidade e para melhorar a qualidade
através da valorização das conquistas e da definição das prioridades
das decisões, tornando mais fácil alcançar objectivos de interesse co-
para o trabalho futuro.
mum. No entanto, as práticas participativas não podem ser encara-
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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O advento da independência trouxe novos desafios e um espirito de mobilização geral no processo de consolidação da indepen-
uma desigualdade no diálogo entre os níveis quando o propósito deve ser precisamente ao contrário.
dência, ambiente favorável a uma mudança de atitude perante a vida. A abertura politica verificada em 1991 parecia ser, à partida,
Creio estarmos todos de acordo que o grande desafio de nós to-
uma grande oportunidade para as ONG e outras organizações da
dos é fazer com que cada cidadão tome consciência de que o seu
sociedade civil tendo em conta a política de desengajamento do
desenvolvimento é, em primeiro lugar, da sua responsabilidade.
Estado de certas responsabilidades de índole local, bem como da descentralização.
Deste modo, poderemos afirmar que a acção das ONG em matéria de educação para o desenvolvimento tem sido pontual e algo
Apesar do ambiente favorável que se verificou ao longo destes anos, estou convencido que muita coisa ficou por fazer e as associa-
avulso embora tenhamos que aceitar que tiveram impacto no desenvolvimento das diversas comunidades.
ções tiveram dificuldades em definir uma estratégia bem como em aplicar metodologias adequadas ao processo de educação para o
Urge, pois, uma maior assumpção do papel das ONG em matéria
desenvolvimento. Prova disso é espirito individualista que vem conhe-
de educação para o desenvolvimento, com a definição de planos de
cendo um crescimento acentuado. Basta ver o imediatismo em tirar
trabalho que possam ser avaliados e corrigidos.
partido das acções dos programas das Ong com que as populações pautam a sua participação. Todos querem saber quando e como é que vão beneficiar directamente.
Termino formulando votos para que deste Encontro possam sair recomendações que nos permitam melhorar o processo de educação para o desenvolvimento, optimizando as capacidades e a experiên-
Outro aspecto que me preocupa é o nivel de participação das
cia adquirida ao longo destes anos de trabalho.
populações na vida associativa. As associações funcionam muito de acordo com o engajamento dos líderes, o que representa um sério risco ao aparecimento de novos caciques que acabam por condicionar a vontade colectiva impondo as suas ideias e interesses. Podemos dizer que muitas das associações têm acabado por ser pessoalizadas, afectando, sobremaneira, a democracia interna, desvirtuando o movimento que, pelo contrário, deveria contribir par o fortalecimento da participação dos cidadãos. Outro aspecto tem a ver com uma relação de interdependência que se estabelece entre os vários niveis associativos, estabelecendo
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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EXPERIÊNCIA DO CITI-HABITAT
Olívia Mendes
O conceito de educação popular foi trabalhado e aplicado por Paulo Freire e outros estudiosos latino americanos e esteve sempre ligado à educação de massas, às reivindicações sociais das classes exploradas e oprimidas, à problemática da conscientização e à vontade de transformação social. É uma educação de interacção que propicia a participação, em que um aprende com o outro, pois, segundo Paulo Freire, ninguém ensina ninguém, mas todos aprendem uns com os outros. Em Cabo Verde, a educação popular esteve ligada à educação de massas, mais concretamente à educação de adultos. No mundo associativo, o termo “educação popular” é pouco utilizado para não se dizer desconhecido. Utiliza-se, sim, a expressão educação para o desenvolvimento ou educação para a cidadania. Uns consideram-nas a mesma coisa, outros acham que essas duas vertentes educativas fazem parte da educação popular. No entanto, a maioria das organizações não governamentais trabalha a temática educação nas suas intervenções, com o intuito de despertar a consciência e motivar a participação dos cidadãos no processo de promoção pessoal e social. O papel tanto dos protagonistas na educação de adultos, no combate ao analfabetismo e na dinamização do emprego como dos actores na luta contra a pobreza e a exclusão social reforçou a importância da sociedade civil e das dinâmicas locais de desenvolvimento em resposta aos seus problemas mais urgentes, no que tange à melhoria da qualidade de vida. Neste particular, a educação popular trouxe à luz um conceito de
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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desenvolvimento local que se assume como:
• Contribuindo para a valorização das competências individuais
• Um processo de mudança;
e colectivas locais, nomeadamente através da promoção de formas
• Centrado numa comunidade territorial de pequena dimensão;
de participação efectiva da população;
• Desencadeado a partir da constatação da existência de necessidades não satisfeitas na comunidade; • A que se procura responder, prioritariamente a partir das capacidades locais; • Privilegiando a participação dos actores locais; • Mas reconhecendo a importância de recursos exógenos numa perspectiva de fertilização das potencialidades endógenas;
• Segundo uma diversidade de situações e caminhos (não existem soluções únicas, pois cada caso é um caso e cada comunidade tem as suas características específicas próprias, pelo que os caminhos e as respostas devem ser de acordo com as situações e características locais); • Implicando, por isso, uma lógica de aprendizagem e avaliação permanentes (aprendendo constantemente com a prática, corrigindo-a e alterando-a em consequência).
• Segundo uma lógica de integração de actividades e abordagens; • Implicando, portanto, um trabalho de parceria;
É, pois, com essa visão do “Desenvolvimento Local” propiciador
• Com impacto tendencial em toda a comunidade;
de mudanças qualitativas e quantitativas, que o CITI-Habitat (Centro
• E com grande diversidade de caminhos, processos e resultados.
de Investigação e Tecnologia para a Habitação) centraliza a sua intervenção num programa de “Animação/Educação Concientizante”
Portanto, um desenvolvimento local de forma a:
baseado na trilogia Educação, Organização, Participação.
• Viabilizar um conjunto coerente e articulado de actividades eco-
Educação, para despertar a consciência do ser como parte inte-
nómicas, (um processo de produção de bens e serviços, com criação
grante de um processo, com direitos, mas também com deveres a
de postos de trabalho, distribuição de rendimentos e satisfação das
cumprir;
necessidades e preservação dos equilíbrios e valores ambientais); • Baseados em recursos e/ou valores culturais patrimoniais e de identidade local (que valorize as culturas e os valores locais, a tradi-
Organização, pois que isoladamente não se tem expressão, mas juntos constitui-se uma força e uma voz;
ção e a modernidade); • E em processos que não ponham em causa, antes preservem e promovam os recursos e/ou valores ambientais, contribuindo para uma inte-
Participação, porque todos devem ter espaço e vez para se exprimirem, opinarem e exigirem.
racção positiva entre as populações e a natureza; (processos de desenvolvimento ecologicamente sustentáveis, que se renovam e mantenham a longo prazo os recursos necessários para as gerações futuras); • Com impacto na melhoria das condições sociais (bem estar so-
A essa animação/educação concientizante está subjacente o desenvolvimento de capacidades de capa indivíduo, o despertar das suas potencialidades, para a sua promoção.
cial das comunidades locais);
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Para a promoção da capacidade organizacional local, o CITI-Habi-
cessos políticos locais e da importância da participação e do lobby.
tat tem utilizado, prioritariamente, a metodologia SARAR como forma de apoiar as comunidades a pesquisarem e a identificarem os seus próprios problemas e soluções.
A cidadania e o exercício dos direitos e deveres constituem também abordagens importantes desse processo de aprendizagem e de construção interactiva, pois o enfoque está na capacitação local na
SARAR é uma metodologia de educação para adultos, que visa o restabelecimento da auto-estima, optimiza a habilidade das pessoas,
valorização das competências do indivíduo e de grupos para que tenham capacidade de:
valoriza a planificação e priorização das acções, promove a auto-organização, a iniciativa e a responsabilização.
• SER (ter boa conduta pessoal); • ESTAR (ter boa conduta social e ambiental);
A sigla SARAR é uma palavra inglesa cujos conceitos fundamentais significam:
• SABER (ter capacidade de conceber, analisar e criticar); • FAZER (ter capacidade de realizar); • CRIAR (ter capacidade de empreender);
S: (self esteem) Auto-estima – a recuperação do auto estima, reconhe-
• TER (ser um recurso pois têm capacidade aquisitiva).
cimento das capacidades criativas e analíticas de indivíduos e grupos na comunidade, independentemente do seu grau de escolaridade; A: (associative strength) Força Associativa – reconhecimento de que as pessoas têm mais poder através de acções colectivas; R: (ressourcefulness) Habilidade - valorizando cada indivíduo como um recurso para a comunidade; A: (action planning) Planeamento de Acções – o planeamento é
No entanto, a educação deve ser sempre ligada à prática e à resolução de problemas concretos das pessoas e comunidades, pois estas estão fartas de conversas e promessas não cumpridas e querem ver acções concretas. Assim, paralelamente à educação/concientização, um conjunto de acções organizadas são levadas a cabo pelo Citi-Habitat, em cinco áreas, a saber:
essencial, o desenvolvimento não acontece espontaneamente; R: (responsability) Responsabilidade – Os líderes e grupos devem agir de forma planeada e concertada e, como tal, validar os resulta-
1. Formação Organizacional
dos e assumir plenamente os seus compromissos e responsabilidades para assegurar a continuidade do processo na comunidade.
Agindo isoladamente, os cidadãos podem ficar sujeitos a condescendência por parte das instituições. Na pior das hipóteses, são
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O CITI-Habitat fornece treinamento e informação aos líderes locais
completamente ignorados. Para reforçar e direccionar as reivindica-
e grupos de interesse, permitindo-lhes estar bem informados e questio-
ções dos cidadãos, o CITI-Habitat encoraja processos de formação
nar a metodologia antes de tomarem uma decisão. Esse treinamento
organizacional através de formação e treinamento. Estes permitem
incluiu, também, o desenvolvimento da compreensão sobre os pro-
a formação das consciências cívicas, formalização e planeamento
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
105
das actividades das associações comunitárias e o desenvolvimento
contra a erosão do solo até à operacionalidade de jardins infantis e
de meios para aprenderem com outras associações comunitárias.
de ciclos de educação de adultos passando pela formação profissional e profissionalizante de jovens.
Antes de organizar as suas actividades práticas, o CITI-Habitat tem em consideração a qualidade das organizações comunitárias. O CITI-
Para além das associações formais de desenvolvimento comu-
Habitat dá início aos seus esforços com uma abordagem não forçada
nitário, o CITI-Habitat procura encorajar a vida associativa de dife-
de “liderança por trás”. Deixa os membros activos da comunidade to-
rentes formas. Isso inclui grupos de interesse tais como associações
marem a iniciativa antes de se apresentar. Frequentemente, o conhecimento acerca dos serviços prestados é difundido oralmente entre as comunidades adjacentes a locais onde a organização já está activa, o que reflecte a estratégia do CITI-Habitat para se expandir natural-
de pais e encarregados de educação, associações funerárias (de seguros), equipas de futebol e grupos culturais tradicionais de batuque. Nestes agrupamentos informais, a maioria dos membros e os seus líderes são mulheres.
mente, propagando-se como uma ‘mancha de azeite’. O seu principal trabalho envolve encorajar e conduzir pequenos gru-
2. Sensibilização e Formação
pos de residentes activos a criarem associações formais com participa-
Entre as populações mais pobres, a iliteracia e a ignorância em rela-
ção alargada a todo o bairro. O processo passa, normalmente, por atrair
ção a conceitos básicos de relacionamento do homem com o seu meio
o interesse da população por um serviço público concreto, acabando
social e geopolítico condiciona a participação. Apesar dos progressos
por atrair mais pessoas, construindo-se, assim, uma força social.
conseguidos pelo governo na redução da iliteracia e no fomento da sensibilização pública, há, ainda, muitas lacunas.
O CITI-Habitat oferece oportunidades para a preparação e formação de líderes locais para várias dimensões da vida associativa: • Elaboração de estatutos formais e legalização da associação; • Gestão interna, incluindo eleição de líderes em assembleias-gerais, funcionamento dos órgãos, liderança, controlo financeiro e responsabilização perante os seus membros; • Relações com membros da comunidade, (auto) avaliação local das necessidades, animação e comunicação; • Relações com entidades do sector público, o que inclui a elaboração de propostas orçamentadas e tecnicamente sólidas e a assistência na difusão das vozes dos cidadãos locais; • Gestão de projectos de serviços públicos, desde a prevenção
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O CITI-Habitat proporciona formação e serviços de sensibilização para questões de saúde pública, meio ambiente, gestão de água para abastecimento, produção agrícola e conservação do solo. Estas actividades contribuem, também, para a resolução de questões de isolamento social entre populações pobres e reforçam o sentimento de pertença comunitária. A formação profissional de jovens também é uma das acções prioritárias do CITI-Habitat como forma de inclusão social pelo trabalho, pelo que, nos últimos anos, formou centenas de jovens das várias localidades dos municípios da Praia, São Domingos e Ribeira Grande de Santiago,
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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3. Promoção do empreendedorismo local através do micro-crédito
O CITI-Habitat baseia grande parte do seu trabalho na construção de ligações eficazes entre o sector público e entidades internacionais, por um lado, e as organizações comunitárias, por outro.
Excluídos do mercado de emprego formal, uma grande parte da população pobre atinge os seus fins através do comércio informal. A falta de crédito acessível pode ser um obstáculo essencial à participação. O CITI-Habitat atribui créditos de pequena escala, essencialmente a mulheres chefes-de-família e jovens à procura do primeiro emprego, identificados com a ajuda das associações comunitárias. Três linhas de crédito estão à disposição dos pequenos empreendedores, sendo uma para os muito pobres (AGR), cujo valor é de 50.000 escudos, outra para os pobres, que vai até 300.000 escudos e a terceira é para micro-empresários já estabelecidos e que queiram reforçar as suas actividades.
5. Construção e melhoramento de infra-estruturas sociais O CITI-Habitat, com o apoio dos seus parceiros externos e em parceria com as associações comunitários de base, constrói infra-estruturas sociais locais como centros sociais comunitários, jardins infantis, centros de saúde, chafarizes, padarias e promove a construção de habitações sociais e melhoria de habitações das pessoas vulneráveis para lhes proporcionar melhores condições de habitabilidade. No seu programa de educação, a mulher tem sempre espaço e voz e, hoje, quase 50% das associações com as quais o CITI-Habitat
4. Intermediação
trabalha tem mulheres nos órgãos directivos e algumas como dirigentes associativos.
Desde 2001, as entidades do sector público têm vindo a aumentar o investimento em obras públicas dependentes de mão-de-obra intensiva, na área de educação, serviços de saúde, água potável, formação vocacional, reabilitação de habitações e outros bens e serviços públicos.
O CITI-Habitat tem prestado especial atenção à construção de parcerias e relações ao nível do poder local, especialmente entre os líderes comunitários, autoridades municipais e serviços desconcentrados do Estado, de forma a haver uma concertação de actu-
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Para serem realmente efectivos, estes esforços financiados pelo governo necessitam de envolver as comunidades. No entanto, muitas das entidades públicas não possuem o pessoal e a experiência para se relacionarem ao nível local.
ações e procedimentos e de forma a fazer valer as reivindicações
O CITI-Habitat complementa estas falhas, assumindo-se como intermediário entre as entidades governamentais e internacionais e as aspirações das organizações comunitárias, ajudando estas últimas a procurar subsídios ou serviços públicos.
um caminho e de uma experiência na luta contra a pobreza e exclu-
das comunidades. Todo esse processo tem favorecido e propiciado a construção de são e na democratização social, consubstanciadas em actividades que têm conduzido a:
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
109
- criação de postos de trabalho e do reforço da empregabilidade,
de saúde nas localidades, promovendo a solidariedade local com a
consolidando o sistema local de emprego – formação profissional e
comparticipação mais justa nos custos e a estruturação dos serviços
profissionalizante e o micro-crédito;
de saúde de proximidade;
- igualdade de oportunidades, em geral, e de género, em particu-
- valorização dos sistemas locais de educação e luta contra os fac-
lar – formação, educação, acesso a bens e serviços de base e alarga-
tores de abandono e insucesso escolar – com garantia de apoio para
mento do espaço de participação às mulheres;
a melhoria das condições das escolas e promoção de hortos escolares para garantir uma refeição quente aos alunos e apoio a círculos de cultura para adultos;
- promoção das condições de saúde – construção e equipamento de postos de saúde e negociação com a Delegacia de Saúde no sentido de colocarem enfermeiros permanentes e programarem visitas médicas periódicas nas comunidades; organização de mútuas
110
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
111
- garantia de condições de habitabilidade para os mais vulnerá-
- valorização dos saberes e das competências dos indivíduos incor-
veis – com a melhoria de casas dos pobres e construções de habita-
rectamente considerados não produtivos (domésticas, reformados,
ções sociais;
deficientes) - com formação e apoio para a integração sócio profissional e abrindo espaços de participação;
- existência de equipamentos e serviços de resposta à infância,
112
à juventude e à terceira idade – construção e equipamento de
- promoção do trabalho voluntário, sensibilizando e mobilizando a
centros sociais multiusos, jardins infantis e abertura de espaços de
solidariedade local e o voluntariado juvenil para trabalhos e causas
formação e lazer;
comunitárias;
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
113
- protecção e valorização do meio ambiente – através da educa-
Concluindo:
ção, da informação e de trabalhos de saneamento do meio, reflorestação e de protecção de solos e água;
Dada a diversidade dos problemas e potencialidades das áreas urbanas e rurais, as actividades do CITI-Habitat têm tomado diversas formas de acção. No entanto, os seus objectivos fundamentais estão bem delimitados: capacitar os cidadãos para se organizarem entre si; consciencialização, desenvolvimento de conhecimentos técnicos e outras vantagens como créditos; e participação em acções colectivas relevantes e desejáveis para que respeitem as capacidades dos cidadãos. O CITI-Habitat não impõe o ritmo, permitindo, assim, que os seus princípios de desenvolvimento comunitário SARAR façam o seu trabalho. Deste modo, enfatiza-se as capacidades das pessoas para escolher, planear e assumir responsabilidades. Ao promover a federação de associações comunitárias e a primeira rádio comunitária
- promoção de actividades produtivas – sensibilização/formação,
de Cabo Verde, o Citi-Habitat demonstra capacidade de inovação
incremento de novas técnicas agrícolas e de irrigação, apoio ao em-
enquanto, simultaneamente, se mantém na trajectória das comuni-
preendedorismo local, com o micro-crédito e a instalação de peque-
dades por muitos anos.
nas unidades femininas de transformação de produtos. No entanto, as associações podem enfraquecer, principalmente depois do entusiasmo inicial, e desaparecer. As responsabilidades podem ficar concentradas nas mãos de pequenos grupos. Os líderes podem falhar na comunicação com os seus membros. A estabilidade financeira pode ser difícil, uma vez que os financiamentos são cada vez mais difíceis. Esta análise autocrítica foi realizada através da Rede Animar, a federação das associações ligadas ao CITI-Habitat. Autocrítica e reflexão são sinais de amadurecimento da liderança e das capacidades para aprender com a experiência, da recusa de acusar os outros e do desejo de combater os problemas em conjunto.
114
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
115
O problema de democracia interna, de transparência deve ser melhor reflectido e equacionado. Questiona-se de facto se se fez o melhor ou o desejado. Certamente que não, mas fez-se o possível com os meios que se tinha e com limitações de ordem social e cultural. O impacto é positivo, é extremamente positivo, mas, ainda, há muito a fazer para que as populações assumam, de facto, o seu processo de desenvolvimento e se libertem do comodismo, do pessimismo e da falta de interesse. É preciso sacudir toda a carga negativa e abrir-se para a participação e para a co-responsabilização. Isso só será possível com um trabalho persistente, de educação e concientização. Todas as ONG e associações locais de desenvolvimento são interpeladas a seguir esse caminho, se se quer que haja, de facto, uma verdadeira transformação e democratização social.
116
Experiência da OMCV em matéria de educação popular Paulino Moniz
A OMCV foi criada a 27 de Março de 1981. Tem por objectivo contribuir para defesa dos interesses específicos da mulher cabo-verdiana e a sua auto-realização, incentivando, apoiando e adoptando medidas que visem a sua promoção social, cultural, política, económica e a sua integração plena no processo de desenvolvimento de Cabo Verde. Para a prossecução dos seus fins, propõe realizar o seguinte: – Identificar situações, adoptar e ajudar a procurar soluções que contribuam para dar resposta a matérias relacionadas com a igualdade na família, na educação, no trabalho e no acesso a saúde; – Pesquisar, estudar e adoptar medidas que possam contribuir para a consciencialização da mulher sobre a sua real situação na sociedade e para a eliminação de qualquer tipo de discriminação e violência de que possa ser alvo;
Fig3. Sessão I VBG
– Estimular e apoiar as mulheres na luta pela sua independência económica, social e cultural no seio das comunidades;
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
121
– Promover a solidariedade entre as mulheres e a colaboração en-
pré-escolar, Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, mi-
tre as organizações nacionais, regionais e internacionais que se preo-
cro-crédito, actividades geradoras de rendimento, género, popula-
cupam com a informação, formação, bem como toda a problemáti-
ção e desenvolvimento, empreendedorismo feminino, agricultura e
ca da promoção da mulher e da sua participação no desenvolvimen-
criação de gado, entre outros.
to sócio-económico do país; Para esta apresentação, escolhemos algumas das acções desta – Incentivar a criação de serviços de assistência técnica e con-
organização para mostrar até que ponto a OMCV tem contribuído e
sultoria nas áreas de identificação e acompanhamento de projectos
contribui na educação popular. Pegamos alguns projectos em execu-
que dizem respeito à melhoria das condições de vida da mulher;
ção, nomeadamente Pograma do Micro-crédito, os Gabinetes GOIPMulher (Gabinete de Orientação e Insersão Profissional da Mulher) e os
– Mobilizar recursos internos e externos para a prossecução dos
projectos no âmbito da luta contra o VIH/SIDA.
seus fins através de assinatura de acordos de cooperação e de representação com organizações nacionais e/ou estrangeiras;
O Programa do Micro-crédito tem uma dimensão nacional, abrange todos os concelhos das ilhas de Santiago, Santo Antão, São Vicen-
– Ser interlocutor entre as entidades individuais e/ou colectivas
te, Fogo e Brava. Tem um staff composto por 19 técnicos, entre os
promotoras de iniciativas de desenvolvimento e parceiros nacionais
quais 1 coordenador nacional, 2 contabilistas, 1 assistente administra-
e/ou estrangeiros, sem prejuízo da representatividade e da inde-
tivo e 15 agentes de crédito.
pendência das partes. O programa iniciou em 2000 e, até agora, já beneficiou 2.666 pesA OMCV encontra-se estruturada da seguinte forma: Assembleia-
soas, com um total aproximadamente 5.500 créditos concedidos, cir-
geral, Conselho de Direcção e Conselho Fiscal. A nivel concelhio, dis-
culando cerca de 364.000.000$00. Actualmente, dispõe de um fundo
põe de delegações em quase todos os municipios do país, que traba-
no valor de 50.000.000$00, beneficiando, aproximadamente 1.00 clien-
lham sob a orientação da direcção nacional.
tes com o financiamento de crédito para realização das actividades geradoras de rendimento.
No que tange às infra-estruturas, esta organização de âmbito
122
nacional possui, actualmente, Centros de Promoção Feminina em
Todos os beneficiários deste programa são educados para que
14 municípios do país. Ao longo dos tempos, tem trabalhado em
saibam gerir, da melhor forma, os recursos financeiros colocados à
diferentes áres, como forma de prosseguir os seus objectivos, nome-
sua disposição de modo a que tenham cada vez menos necessi-
adamente: alfabetização, saúde, saúde sexual e reprodutiva/SIDA,
dade de recorrer ao crédito para implementar as suas actividades
direitos da mulher, formação e capacitação profissional, educação
geradoras de rendimento.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
123
Esses projectos contribuem para a prevenção da propagação deste mal social através das sessões de IEC de proximidade, sensibilização da comunidade acerca do uso do preservativo, da importância do teste de SIDA, bem como para a melhoria da qualidade de vida dos afectados e infectados pelo VIH/SIDA, através de apoios em cabaz, pensão de sobrevivência, apoio em propinas, materiais e transporte escolares, financiamento e actividades geradoras de rendimento, acompanhamento médico e psicológico, entre outros.
Fig4. Sede GOIP Mulher, na Praia
O projecto GOIPMulher foi orçado em mais de 50.000.000$00, é composto por três gabinetes de orientação e inserção profissional da mulher na Praia, em São Vicente e em Santo Antão, por um período de 15 meses. Tem como objectivo principal, favorecer o empoderamento (autonomia e capacidade) da mulher, com o objectivo prioritário de luta contra a pobreza em Cabo Verde. Fig2. Atelier de Reflexão em “Técnicas de Apoio à V”
O Programa de luta contra o VIH/SIDA vem sendo executado pela OMCV, em parceria com CCS-SIDA, gerindo vários projectos no valor superior a 20.000.000$00, a destacar: • Prolecto de apoio aos órfãos da SIDA, crianças em situação de risco e pessoas infectadas e afectadas pelo VIH/SIDA; • Projecto de apoio aos infectados e afectados do VIH/SIDA e pessoas em situação de risco com financiamento para AGR; • Projecto Bacias Hidrográficas/realização de acções de formação e sensibilização das comunidades em matéria de combate ao HIV-SIDA.
124
A população cabo-verdiana vem enfrentando desafios de vária ordem, designadamente nos domínios do emprego, saúde, educação dos filhos, habitação, alimentação, direitos, ou seja, em áreas importantes para o bem-estar e qualidade de vida dos cidadãos. Neste sentido, cada cidadão é convidado a dominar competências básicas para a vida como forma de saber enfrentar, da melhor forma possível, os desafios que a modernidade nos impõe. Se entendermos por educação a acção exercida pela sociedade
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
125
sobre os indivíduos, esta propõe-se dotá-los de competências para a vida social, com o objectivo de suscitar o desenvolvimento de um certo grau de condições a nível físico, intelectual e moral, ou seja, da capacidade de saber fazer, saber ser e saber estar. A OMCV, desde a sua criação, vem trabalhando incansavelmente, dando a sua contribuição para a implementação das políticas traçadas pelos sucessivos governos no sentido de educar a população cabo-verdiana em diferentes domínios que promovem o exercício pleno da cidadania. A educação da população tem sido o prato forte da OMCV, pois esta entende que um verdadeiro desenvolvimento passa não só pelo acesso a recursos financeiros, mas também pela capacidade de gerir outros recursos não financeiros, nomeadamente os recursos socioculturais.
Fig1. Encerramento do curso de estética
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Relatório Final do Encontro
Promovido pela Plataforma das Organizações Não-Governamentais Cabo-verdianas decorreu de 1 a 3 de Dezembro de 2008, na Sala de Reuniões do Hotel Quinta da Montanha, sito em Rui Vaz, concelho de São Domingos, um Encontro Nacional de Reflexão sobre o Papel da Educação Popular no Processo de Desenvolvimento – O Caso de Cabo Verde. A cerimónia de abertura foi presidida pela Sra. Ministra do Trabalho, Formação Profissional e Solidariedade Social, Dra. Madalena Neves. Dirigindo-se aos presentes, aquela governante disse que sem a formação e sem a educação nenhum investimento terá a sustentabilidade desejada. Daí ter-se congratulado com a iniciativa da Plataforma das ONG de Cabo Verde em promover este Encontro de reflexão sobre o papel da educação popular no processo de desenvolvimento.
1. O conceito da Educação nas suas diferentes vertentes Após a sessão de abertura, os trabalhos do Encontro iniciaram-se com a apresentação do tema “O conceito da Educação nas suas diferentes vertentes (económica, social, cultural, ideológica, politica,…). A realidade cabo-verdiana ontem, hoje e perspectivas futuras”, apresentado pelo Dr. Florenço Varela, Director-Geral de Alfabetização e Educação de Adultos. O Dr. Florenço Varela começou a sua explanação definindo o conceito de educação baseado em algumas teorias filosóficas, segundo as quais nenhum ser humano pode existir e viver uma vida propriamente humana sem uma forma qualquer de educação. Dissertando sobre a educação em Cabo Verde, desde a independência a esta parte, recordou que esta tem sido uma permanente aposta estratégica, constituindo a prioridade das prioridades por parte dos sucessivos governos de Cabo Verde. Lembrou que a independência do arquipélago, em Julho de 1975, foi presenciada, na altura, por uma população tocada por um nível de analfabetismo superior a 60%, servida por um ensino básico elementar de quatro anos, não acessível a todas as crianças e por um ensino secundário circunscrito a um número muito reduzido de alunos e, ainda, um corpo docente para os dois níveis de ensino com apenas 19% de professores com formação considerada adequada para o exercício da docência. Segundo o orador, apostando desde cedo no que considera a sua maior riqueza, o país enveredou por uma política de valorização dos recursos humanos, investindo fortemente na educação e na formação, sectores esses considerados de transcendente importância para o desenvolvimento de Cabo Verde.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
131
Na sua explanação, o sr. Director Geral de Alfabetização e Edu-
Para o orador, a educação popular idealizada por Paulo Frei-
cação de Adultos sublinhou, ainda, que, devido ao investimento feito
re é entendida como um processo de conscientização política do
no sector educativo, hoje, o país apresenta um quadro bem diferente
povo, buscando a emancipação social, cultural e política das clas-
daquele que herdou em 1975, isto é, há 33 anos, com resultados e
ses menos favorecidas.
indicadores bem expressivos e reconhecidos, a nível internacional, e que justificam, plenamente, os investimentos feitos e as ajudas internacionais disponibilizadas.
Em seu entender, em Cabo Verde, o cooperativismo representou a expressão mais avançada do fenómeno participativo e de animação cultural no meio rural, de 1975 a 1989.
O orador fez, ainda, notar que, hoje, os ganhos obtidos a nível de educação são inegáveis e os indicadores de qualidade e de quanti-
Citou o caso de actores da cultura como Codé di Dona, que foram
dade do sistema educativo, com uma população estudantil actual,
lançados publicamente pelo extinto Instituto Nacional das Coopera-
testemunham os avanços verificados.
tivas (INC). O próprio Carlos Alberto Martins (Katchás), o precursor do funaná, serviu-se dos registos magnéticos então existentes no INC para
No que concerne à educação extra-escolar, deixou entender que, no
gravar o primeiro disco vinil do Bulimundo, assim como as primeiras
caso de Cabo Verde, esta foi inspirada na pedagogia libertadora do gran-
investigações de Manuel Figueira sobre a panaria em Santiago con-
de estudioso brasileiro Paulo Freire, que abrange a educação popular.
tou com o apoio do INC. De igual modo, o artista plástico Leão Lopes contou com a colaboração daquela instituição cooperativa para o
A apresentação deste tema foi seguida de debates entre os pre-
seu trabalho com as oleiras de Fonte Lima.
sentes e uma das recomendações feitas vai no sentido de se envolver, cada vez mais, os órgãos de comunicação social no processo edu-
Para o apresentador, a experiência do cooperativismo lançou
cativo em Cabo Verde, já que estes desempenham um papel funda-
as sementes de um processo que levaria a uma prática social mais
mental na mudança do comportamento das pessoas.
abrangente e diversificada que, segundo ele, infelizmente, é, ainda, pouco estudada ou valorizada.
2. O conceito e práticas da educação popular: sua aproximação e distanciamento em relação a outras perspectivas de educação. A experiência cabo-verdiana
Em jeito de conclusão, o Dr. Jacinto Santos reconheceu que Cabo Verde dispõe de uma experiência rica de participação social no desenvolvimento associativo, comunitário e sindical, bem como de um saber fazer acumulado em termos técnico e metodológico que nenhuma política pública inteligente e sensata hesitaria em incorporar
Este tema esteve a cargo do Dr. Jacinto Santos, tendo como moderadora a Dra. Maria dos Reis Tavares Moreno.
132
nas medidas de política de desenvolvimento do capital humano, de inclusão social e de promoção do bem-estar das populações.
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
133
Como proposta, deixou o apelo no sentido de o movimento as-
Em seu entender, a origem das ONG cabo-verdianas está ligada
sociativo analisar a possibilidade e a necessidade da criação de um
a uma diversidade de motivações em que se destacam o espírito hu-
organismo especializado nos domínios da formação e pesquisa apli-
manitário, a habitação, a luta contra a pobreza, a exclusão social, a
cada sobre associativismo, desenvolvimento comunitário e outras prá-
cultura e a participação na sociedade civil e nunca política.
ticas sociais de interesse local, através do qual seria sistematizado, desenvolvido e divulgado todo o saber fazer social e profissional que vem sendo construído, numa articulação com as universidades, institutos e os municípios.
5. Educação/Participação/Desenvolvimento: A situação em Cabo Verde Este tema foi apresentado pelo antropólogo Orlando Borja que,
3. As experiências do Citi Habitat e da OMCV
entre outros assuntos, abordou a educação na vertente qualitativa. Segundo ele, a educação para o desenvolvimento foi e continuará a
As experiências das duas mais antigas ONG do país, ou seja, o CITI-Habitat e a OMCV, marcaram o início do segundo dia dos trabalhos deste
ser uma das grandes apostas que Cabo Verde fez nas primeiras décadas após a sua independência em 1975.
Encontro nacional. A experiência do Citi-Habitat foi apresentada pela administradora Olívia Mendes, enquanto a da OMCV esteve a cargo
Na opinião deste especialista, a participação dos cidadãos em
do Dr. Paulino Moniz. Quer a OMCV, quer o Citi-Habitat acumulam uma
Cabo Verde é, ainda, algo muito frágil, pelo que se regista alguma re-
rica experiência no domínio de educação para o desenvolvimento só-
sistência quanto a uma participação activa. Aliás, foi peremptório ao
cio-comunitário e com resultados palpáveis em prol das comunidades
afirmar que falta à sociedade cabo-verdiana uma consciência clara
beneficiadas.
sobre a sua participação, sobretudo naquilo que diz respeito. Reconheceu, porém, que a participação para a cidadania é, muitas vezes, ofuscada e condicionada pelos políticos e, logo, põe-se a questão de
4. Olhar crítico sobre o trabalho desenvolvido pelos actores não governamentais cabo-verdianos em matéria de educação popular
falta de espaço para uma participação efectiva. A sessão de encerramento deste fórum foi presidida pelo presidente da Plataforma das ONG de Cabo Verde, Dr. Avelino Bonifácio Lopes. Na
Foi efectivamente um olhar crítico que o Dr. Ramiro Azevedo, um
ocasião, manifestou alguma preocupação pelo facto de serem sempre
dos fundadores do movimento associativo em Cabo Verde, lançou
as mesmas pessoas a participar em seminários e fóruns promovidos pela
sobre as acções desenvolvidas pelos actores não governamentais
Plataforma e deixou o apelo no sentido de haver uma diversificação de
cabo-verdianos em matéria de educação popular.
participação, a fim de proporcionar a todos a mesma oportunidade de formação e contacto com a realidade nacional.
134
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
135
Por outro lado, chamou a atenção para a necessidade de aqueles
vidades de educação popular, o qual passa pelo diagnóstico e
que tiveram a oportunidade de participarem em acções formativas
priorização das necessidades, bem como a definição de estra-
produzirem pequenos relatórios e distribuí-los pelos associados, a fim
tégias de monotorização e avaliação;
de lhes darem a conhecer sobre o que aconteceu durante um determinado seminário de formação.
6. A educação popular deve ser tida como um processo que começa no berço;
Quanto à utilização do site da Plataforma, o Dr. Avelino Bonifácio Lopes disse que os membros das ONG associações devem tirar melhor partido deste instrumento de comunicação para uma maior e melhor
7. É necessária uma melhor articulação entre as ONG e instituições públicas para que estas sejam porta-vozes perante o Governo;
interacção entre as organizações. Chamou, igualmente, a atenção para a necessidade de uma maior colaboração por parte das ONG e associações, com vista à alimentação do site.
8. Desenvolver acções de sensibilização junto dos órgãos de tomada de decisão. 9. Criação de um espaço de participação das ONG na planifica-
Conclusões: Do Encontro saíram as seguintes conclusões:
ção curricular; 10. Que o conceito de educação popular defendido pelo pedagogo Paulo Freire é muito superficial em Cabo Verde;
1. Pouca visibilidade dos trabalhos das ONG e associações em matéria de educação popular;
11. Que neste momento a comunidade vê a associação/ONG como uma organização que ela cria para resolver os seus pro-
2. Pouco domínio do conceito de educação popular;
blemas.
3. Em Cabo Verde, a educação popular nunca teve uma forte carga ideológica, isto devido às particularidades sócio-culturais do
Recomendações:
próprio país; 1. Criação de uma rede de ONG e associações que intervêm no 4. Necessidade de sistematização de conhecimento e experiên-
domínio da educação popular;
cias em matéria de educação popular; 2. Maior valorização dos conhecimentos e competência locais no 5. Necessidade de um maior investimento na planificação de acti-
136
quadro dos programas de educação popular;
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
137
3. Necessidade de maior utilização dos meios de comunicação social no processo de educação popular;
13. Que a Plataforma das ONG faça um estudo e sistematize as diversas práticas da educação popular desenvolvidas pelas ONG/associação, no sentido de se conhecer a verdadeira si-
4. Inclusão de uma disciplina “Educação para a Solidariedade” no curriculum escolar; 5. Criação de espaços de divulgação das experiências positivas das ONG e associações nos mídia;
tuação e adoptar uma estratégia comum para as actividades futuras em matéria de educação para o desenvolvimento; 14. Envolver líderes religiosos, desportivos e outros na questão da educação popular.
6. Uniformização de estratégias em relação à educação popular por parte dos diferentes intervenientes no processo; 7. Incentivar a prática de pesquisa sobre a educação popular; 8. Criação de espaços de concertação e cooperação entre os actores públicos e privados no processo de educação; 9. Promoção de intercâmbios com países experimentados no domínio da educação popular, nomeadamente o Brasil; 10. Diagnóstico sócio-comunitário como forma de facilitar a pesquisa; 11. Criar condições que facilitem o intercâmbio entre associações nacionais que praticam a educação popular e as organizações internacionais, em que o nível de educação popular seja mais avançado; 12. Investir na formação e educação dos membros das associações de forma a conhecerem os seus direitos e deveres e criar uma sinergia em prol do desenvolvimento da comunidade;
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Moção
4. Considerando a necessidade de, “mapear” na obra de Paulo Freire, ideias, conceitos e categorias sobre educação popular e
Os participantes do Encontro de Reflexão sobre o papel da Edu-
o percurso de Paulo Freire em Cabo Verde;
cação Popular no processo de Desenvolvimento decidiram a provar uma moção, corroborando a ideia da criação do Instituto Paulo Freire
O Encontro decidiu:
de Cabo Verde, que será uma organização civil, sem fins lucrativos, associada à rede internacional de pessoas e instituições distribuídas em mais de 90 países em todos os continentes, com o objetivo principal de
• Contribuir para a preservação, divulgação e recriação (actualização, aprofundamento e ampliação) do legado freiriano;
dar continuidade e reinventar o legado de Paulo Freire. • Identificar e recolher as experiências, os discursos e as memórias A referida moção foi aprovada na base dos seguintes pressupostos: 1. Considerando que Cabo Verde foi seleccionado pelo Conselho
produzidos em torno da pedagogia freiriana. Rui Vaz, 02 de Dezembro de 2008
Director do Instituto Paulo Freire para preparar e realizar, em 2010, o VII Fórum Internacional Paulo Freire, um encontro mundial que, há dez anos, reúne pessoas e instituições que compartilham e vivenciam as concepções freirianas; 2. Considerando Paulo Freire, educador e pensador brasileiro (1921-1997) um dos maiores pedagogos do século XX, pai da educação popular, ocupando, deste modo, um lugar central na história da educação e no pensamento pedagógico contemporâneo; 3. Considerando a necessidade de aprofundar as reflexões sobre a educação popular em Cabo Verde e de capitalizar o vasto trabalho desenvolvido pelas Organizações da Sociedade Civil em matéria de educação popular, educação para desenvolvimento e educação para cidadania, entre outras formas de designação;
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Anexos
Anexo I Exposição de Paulo Freire sobre as tarefas dos coordenadores feita durante a Formação de Coordenadores Regionais de Alfabetização
São Vicente, 04 a 12 de Outubro de 1979
Fonte: Relatório do Seminário de Formação de Coordenadores Regionais de Alfabetizadores, Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Educação Extra-Escolar
Temos feito um esforço de, tanto quanto possível, ligar prática e teoria, teoria e prática, acção e reflexão, desde a sessão de abertura. Neste seminário, que foi organizado de uma maneira simples, humilde, concreta e realista, nós estamos colaborando – quando digo nós, é nós do IDAC- com o departamento de Educação Extra-escolar numa tentativa de introduzir um pouco, na formação dos coordenadores regionais, um certo tipo de prática dentro do programa geral de alfabetização que se vem desenvolvendo em Cabo Verde de acordo com a orientação política do PAIGC. Por isso mesmo, é que a preocupação deste seminário tem sido a de executar uma forma cada vez mais concreta de pensar. Quando digo pensar, digo apreender a realidade em que estamos. A nossa preocupação tem sido muito mais a de criar situações em que pensemos sobre a prática social ou individual, porque é exactamente pensando na prática que aprendemos a pensar melhor. E, na tarde de hoje, não é necessário recapitular certos momentos do seminário. De qualquer maneira, talvez fosse interessante mostrar como desde o começo os diferentes momentos do seminário têm sido encadeados entre si. Quer dizer, tem havido sempre uma certa unidade que se estabelece entre o pessoal e o seminário. Hoje, vou fazer alguns comentários a propósito do coordenador e da coordenação, para quem este seminário foi estruturado, para cujo começo de formação este seminário foi pensado. Antes porém de reflectir um pouco sobre o papel do coordenar e da coordenação, seria talvez interessante fazer uma reflexão simples sobre a própria palavra coordenador. Olhar para a própria grafia da palavra e pensar
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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um segundo sobre a sua origem, a sua formação e o que é que ela
e recriar alguma coisa que está a ser ordenada ou planejada, implica
normalmente significa em função da sua origem. O que é que ela
numa responsabilidade que se assume, implica então também, necessa-
sugere em função da sua origem.
riamente, em tarefas a cumprir, implica, em princípio, que não devem ser inflexíveis, mas sem as quais não é fácil engajar-se na prática da coorde-
COORDENADOR, em primeiro lugar, faz-nos lembrar o próprio ver-
nação, porque os princípios estabelecem precisamente o caminho e os
bo COORDENAR: E COORDENAR leva-nos a um verbo mais simples
objectivos a ter que alcançar no exercício da prática de ordenamento.
que é ORDENAR. Então implica em princípio a seguir, implica em prestar contas do COORDENAR, na medida em que ORDENAR é dar ordem, ordenar
que se faz, implica na avaliação da própria prática constantemente,
alguma coisa é planificar, é possibilitar, criar e recriar no esforço do or-
uma vez que toda a prática exige a avaliação de si, sem a qual a
denamento, é ordenar algo com alguém. Então, é muito interessante
prática posterior possivelmente não melhora.
pensar, antes de penetrar nas tarefas dos coordenadores, nas possíveis contradições entre a prática de um coordenador e o que a palavra
Por tudo isso, ordenar envolve autoridade e liberdade. Ordenar a
normalmente significaria do ponto de vista estritamente linguístico, se-
prática da ordenação. O ordenamento implica o jogo entre a autori-
mântico. ORDENAR, então, é dar ordem a alguma coisa, criar, recriar
dade e a liberdade.
algo. COORDENAR é fazer essas coisas com alguém. Agora seria interessante ver o que vimos antes: coordenar é ordeAgora pensemos no seguinte: tentar dar ordem a alguma coisa ou
nar algo com alguém. Se ordenar implica o jogo entre a autoridade e
informar, criar, recriar, tudo isso implica, por parte de quem faz ou ten-
a liberdade, coordenar sugere que a relação entre a autoridade e a
ta fazer esse tipo de prática de acção, uma certa responsabilidade
liberdade se dê em termos harmoniosos, respeitosos. Uma autoridade
assumida. Quer dizer que não posso coordenar se não assumo respon-
respeitando as liberdades e a liberdade reconhecendo o papel da
sabilidade de fazer esta prática da coordenação. Eu não crio nem
autoridade.
recrio sem a assumpção da tarefa da coordenação. Quando digo assumir, digo inserir-me na prática com consciência crítica do que estou fazendo.
Toda esta harmonia de autoridade - liberdade está implícita na palavra coordenar, coordenação, que constitui um bom exemplo de uma experiência democrática. É certo que estou falando de uma cer-
Portanto, sabendo mais ou menos, pelo menos, o que estou fazendo e sabendo mais ou menos, pelo menos, para quem estou fazendo
ta abstracção. O seminário tem momentos de abstracção e precisa mesmo de ter.
e buscando na prática cada vez melhor aprender como fazer, que é
148
exactamente fazendo que eu aprendo melhor a fazer. Tudo isso, repetin-
A origem da palavra coordenar que implicita essa relação harmo-
do, é tentar o ordenamento de alguma coisa, implica na busca de criar
niosa entre autoridade e liberdade, em Cabo Verde, por exemplo, o
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
149
coordenador relaciona-se com o alfabetizador enquanto autoridade
e do ponto de vista da própria alfabetização. Quer dizer que se se
e o alfabetizador com o coordenar enquanto liberdade. Da mesma
rompe a harmonia entre a autoridade do coordenador e a liberda-
forma que o departamento se relaciona com o coordenador enquan-
de do alfabetizador (a liberdade de falar, de dizer, de participar, de
to autoridade e o coordenador enquanto liberdade.
criticar, de sugerir), se essas liberdades do alfabetizador são abafadas pela autoridade do coordenador, que passa a exercer só a sua au-
Vamos estudar um pouco estes dois níveis de relação, essa abs-
toridade (de criar, de falar, de contribuir, de criticar, de sugerir, etc.)
tracção do real. Seria interessante chamar a atenção para a política,
e se nega, se abafa essas mesmas liberdades ao alfabetizador, assim
para a coincidência entre a origem da palavra e a opção política do
como se o alfabetizador nega, também, essas mesmas liberdades ao
PAIGC. A origem da palavra como dissemos, revela a presença da
alfabetizando e se o Departamento também as nega ao coordena-
proposição com, que é a proposição de campanha.
dor e se o Ministério da Educação as nega ao Departamento e se o Primeiro-Ministro nega essas liberdades aos Ministros, rompe-se a har-
Assim, coordenar implica ordenar algo com alguém e não para alguém, não a despeito de alguém, não contra alguém. Efectivamente,
monia entre a autoridade e a liberdade sem a qual não há nem democracia nem desenvolvimento.
é claro que toda a coordenação implica um trabalho contra um ou outro tipo de interesse.
Essa ruptura pode-se dar a despeito da opção política do PAIGC. Essa ruptura caracteriza a contradição entre o que muitos de nós di-
A coordenação sugere harmonia entre a autoridade e a liberda-
zemos, entre a explicitação verbal da nossa opção política e a nossa
de. Quer dizer que toda a vez que se rompa toda essa origem da pa-
prática. Podemos dizer um discurso bonito, revolucionário e termos
lavra e a opção política do partido, do governo e do próprio trabalho
uma prática reaccionária. Somos contraditórios. Falámos em povo, fa-
de vocês na alfabetização, então a coordenação deixa de ser um
lámos em revolução, falámos em democracia e achamos que o povo
acto em que os coordenadores trabalham com os outros para avaliar
é fedorento. Saímos de junto do povo porque achamos que o povo
uma acção e não os outros. Se destorcer, então a coordenação e
tem um cheiro que não nos agrada. Pensamos que somos revolucio-
toda a opção democrática passa a ser só autoridade.
nários, progressista e exercemos um tipo de prática de interpretação do real que é reaccionária.
Dizia que há uma coincidência entre a opção política democrática do partido e o que a palavra coordenação significa. O que é
Isso dá-se constantemente entre nós. Daí a importância de termos
preciso é que na relação entre a autoridade e a liberdade haja har-
que ser coerentes com a nossa opção política e com a nossa prática.
monia. Vamos concretizar agora, a autoridade do coordenador e a
Que a prática desdiga a nossa verbalidade. Mas se essa ruptura se dá
liberdade do alfabetizador.
entre a autoridade e a liberdade então vai-se negar, é a negação da própria disciplina, é a negação da ordem.
É possível o desvio mesmo a despeito da opção política do PAIGC
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Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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Há alturas em que as autoridades são autoridades em nome da
De um lado, quando se relaciona directamente com o Depar-
ordem, mas é a falsa ordem. Porque evidentemente a real ordem só
tamento ele é autoridade diante de uma autoridade maior e está
existe na real disciplina e é a criação e participação, assumpção de
em jogo mais a sua liberdade. É interessante isso. É mais na sua liber-
práticas transformadoras que só se dão no respeito entre a autoridade
dade que ele tem interesse, porque só o Departamento efectiva-
e a liberdade.
mente poderia obrigá-lo a fazer concessões que poriam em perigo a sua liberdade.
Quando a ruptura se dá em um dos pólos, a autoridade ou a liberdade se exacerba, é a autoridade que se exacerba, temos auto-
A esse nível, então, o coordenador relaciona-se com a autoridade
ritarismo; se é a liberdade que se exacerba, então o que temos é a
maior que está no Departamento e que tem também uma responsa-
licenciosidade, a libertinagem, que nega a disciplina tanto quanto o
bilidade maior – porque a autoridade maior engendra maiores res-
autoritarismo e o que se instala é o caos.
ponsabilidades. A autoridade maior do Departamento dá-lhe esfera maior de responsabilidades e de deveres. Portanto deveres a cumprir
Vamos tentar reflectir sobre os dois níveis em que o coordenador
e tarefas a fazer, maiores que os do coordenador.
experimenta a sua autoridade e a sua liberdade, porque todas as vezes que está em jogo a minha liberdade e que me experimento na minha liberdade também me experimento na minha autoridade.
Assim, o coordenador tem também uma esfera maior do que o alfabetizador. Mas na relação com Departamento então é imperioso que o Departamento não trave a capacidade criadora do coordena-
Como pai, a minha autoridade de pai não é outra coisa senão a
dor, porque se ele determina as regras, os princípios, se burocratiza o
minha liberdade: ontem de filho que se constituiu, hoje, em autorida-
coordenador com regras a cumprir, se todo o Departamento se reduz
de de pai, assim como as liberdades, hoje, de meus filhos se estão pre-
a documentinhos escritos, com princípios a ser seguidos; se reduz todo
parando para se constituírem, amanhã, em autoridades paternas e
o comportamento do coordenador a um esquema rígido a ser cum-
maternas. É verdade que os filhos só compreendem seus pais quando
prido, ele limita a capacidade criadora do coordenador e contradiz
passam também a ser pais, quando se tornam pais.
tudo o que faz para uma pedagogia libertária.
Vamos pensar um pouco nos níveis diferentes em que o coordenador se vai experimentar enquanto autoridade. Os níveis principais são:
Tudo isso é muito complexo, muito exigente. Uma coordenação que fala numa pedagogia democrática, mas que limita a capacidade criadora dos seus auxiliares através de uma burocracia opaca e
a) Nas suas relações com o Departamento de Educação Extra-
opacizante é contraditória e não provoca criatividade nenhuma.
Escolar; A tarefa do Departamento é muito mais difícil, porque também b) Nas suas relações com os alfabetizadores.
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não pode deixar de exigir o que é da responsabilidade do coordena-
Educação Popular - O Caso de Cabo Verde
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dor. A harmonia entre a autoridade e a liberdade não significa que
sa forma, que encarna uma autoridade em relação consigo mesmo,
a autoridade deixa que a liberdade faça o que quiser. Não, há que
com a liberdade de si mesmo, respeitando a liberdade do alfabetiza-
haver responsabilidade. Quer dizer, há algo a ser feito e que tem que
dor este tem nesse testemunho um padrão também para as suas rela-
ser feito. O que é preciso é que o outro que vai fazer assuma este ter
ções com o alfabetizando. Inclusivamente há uma certa autoridade
que fazer, assuma-o em termos de responsabilidade. É nesse aspecto
do alfabetizador, não há que negar isso; não aceito um certo tipo de
que ordenar e coordenar implica na responsabilidade assumida.
pedagogia que pretende negar a existência do educador, do professor, porque diz que ninguém precisa disso mais. Essa pedagogia é
Agora vejamos o que essa relação entre o coordenador e o alfa-
profundamente idealista, sem base histórica.
betizador vai exigir. Imagine-se um coordenador que obstaculiza o alfabetizador de tentar, de experimentar uma forma diferente de traba-
Estou convencido que o professor tem uma tarefa a cumprir en-
lhar, porque o coordenador acha que só se pode alfabetizar fazendo
quanto professor enquanto educador. Agora ele não pode ensinar
aquilo que ele determina. E se encontra o alfabetizador fazendo uma
se não aprender. E não é só isso. Ele não ensina, se não assume que
coisa de forma diferente, diz que ele está fora da norma, a dele que
aprende ao ensinar. O que ele tem é que assumir que não é favor
ele ditou, que ele fez. Então uma das coisas fundamentais para nós, é
aprender ensinando porque faz parte da essência mesmo do acto de
não aceitar a rigidez de esquemas. É praticar, é o teste da prática, é
educar, aprender com quem se educa. É uma complementaridade
a prática que ajuíza do meu acerto ou desacerto e não a autoridade
que faz parte do acto, do processo mesmo e não da vontade de
do coordenar nem a do Departamento.
certos educadores.
Agora o que é preciso é que isso se dê em termos de solidarieda-
Então esse tipo de relação entre autoridade do alfabetizador, e a
de, em termos de militância, de intenção militante numa tarefa que
liberdade do alfabetizando é absolutamente fundamental. Imagine-
eu aceito para cumprir porque é fundamental para nós todos e não
se que um dos objectivos fundamentais de uma educação libertária
para mim só. Não porque estou querendo causar um maior efeito ou
é exactamente estimular a criatividade de fazer, de pensar, de actuar
porque estou pensando em fazer algo com o intuito de, daqui a cinco
de interpretar a acção dos alfabetizandos.
anos, conseguir alguma bolsa da UNESCO. Não, eu tenho que fazer isso porque, como cabo-verdiano tenho que me integrar no processo
Na medida em que um alfabetizador diminui a capacidade dos
de reconstrução do meu país. E para isso tenho que aprender fazendo
alfabetizandos de pensar, de criticar, de actuar, de participar, de
cada vez melhor e em irmandade com os outros, em …
recriar, esse alfabetizador transforma-se no agente mecânico da transferência o BA, BE, BI, BO, BU e isso não tem nada que ver com
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É interessante também observar depois o que significa o compor-
o esforço de recriação que esta sociedade exige de todos nós, in-
tamento do coordenador para o alfabetizador. Na medida em que o
clusive de Elsa, de Miguel, de mim. Desde o próprio momento que
alfabetizador se relaciona com o coordenador que se comporta des-
aceitamos colaborar com o povo de Cabo Verde, fomos integra-
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dos nesse espírito como se fôssemos também cidadãos cabo-ver-
mentas, a determinar em lugar de participar. Mas isso só nos casos
dianos. Mas, ou assumirmos isso, ou não temos que estar aqui, não
excepcionais em que uma autoridade estabelece realmente assumir
temos porque voltar.
a responsabilidade ou então se perde o trabalho. E aí não há porque a autoridade temer virar autoritária. Não, ela faz aquilo no momento
Com estas considerações estou querendo é realmente, provocar,
que é preciso.
desafiar, estimular. Podem discordar. É por isso que estou dando muito mais atenção a esta parte introdutória do que a uma análise, a uma
Então esta é uma das principais preocupações permanentes do
descrição do que poderia ser as tarefas do coordenador. A minha
coordenador. Participar criadoramente na programação dos círculos
preocupação aqui foi muito mais em fazer uma introdução de carác-
de cultura com os alfabetizadores. Para isso então é preciso que os
ter mais teórico do que enumerar um certo número de tarefas que o
coordenadores tenham convivência com os círculos de cultura, com
coordenador possa ter e deve ter mesmo. Porque acho que hoje, na
a comunidade, com os alfabetizandos. Daí então que ele deva assistir,
etapa do trabalho dos coordenadores que vai começar, para além
com os alfabetizadores, os círculos de cultura, e ajudá-los a superar as
de uma duas ou três responsabilidades que o Departamento pode
dificuldades encontradas. Por isso mesmo precisam visitar constante-
apontar o resto deve-se constituir na prática.
mente os círculos de cultura.
Deve-se deixar que os coordenadores comecem a praticar e a ser
Um coordenador de uma zona que fica em casa e depois inventa
então eles que comecem a juntar as diferentes tarefas que vão sendo
um relatório e manda ao Departamento não assume a responsabilida-
cumpridas e aí se estabelece uma espécie de carta de princípios. Mas
de. O seu trabalho está precisamente nessa convivência com os seus
de qualquer maneira vou apontar umas três ou quatro preocupações
alfabetizadores, com os seus alfabetizandos, seus camaradas. Daí a
que o coordenador aqui, ou na Guiné-Bissau deve ter.
necessidade das visitas aos círculos de cultura. Mas essas são visitas de coordenação de acção e não de coordenação de alfabetizador.
A primeira tarefa que ele tem é de participar criadoramente na
É preciso ver-se isso, é preciso deslocar o campo, o objecto. Eu co-
programação das actividades dos círculos de cultura existentes na sua
ordeno uma acção com os outros e não aos outros. O coordenador
área. Digo participar e não organizar ou estabelecer. Se tivesse dito es-
que coordena os alfabetizadores tem uma assumpção autoritária da
tabelecer, eu estaria dizendo que os alfabetizadores não teriam de for-
coordenação.
ma nenhuma outra alternativa senão fazendo o que os coordenadores quisessem, assim como os coordenadores não teriam outra coisa a fazer senão receber as determinações que o Departamento desse.
A tarefa do coordenador não é coordenar os alfabetizadores, é coordenar a acção dos alfabetizadores, e mais ainda, é coordenar a própria educação de adultos, acção rural da alfabetização que en-
Evidentemente que em certas circunstâncias, de um lado o departamento, do outro o coordenador serão obrigados, em certos mo-
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volve os alfabetizadores, os alfabetizandos e a comunidade em que se insere isso.
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Então o coordenador, deve ser muito mais um artista na tarefa de
razão de ser dos círculos de cultura. Então o que é preciso é que se
retirar as esquinas, de limar as arestas dos problemas, de superar as
informem de um processo de avaliação da prática de que eles são a
dificuldades de antecipar a solução de certos problemas, sem abafar
maior razão de ser.
a criatividade do alfabetizador. Mas não é inspector, não é policial. As visitas que ele faz aos círculos de cultura são visitas de camarada, são
Então é preciso trazê-los também para os seminários de avaliação
visitas de quem chega para aprender sem o que não é possível ensi-
o que significa inclusive uma experiencia altamente político-democrá-
nar aos alfabetizadores. São visitas de quem chega para ajudar e não
tica; uma tarefa de ajudar ao partido, extraordinária. Finalmente uma
para tomar nota exclusivamente das deficiências do alfabetizador; o
das tarefas também prováveis do coordenador será de estabelecer
que é preciso é que o coordenador veja muito mais os aspectos positi-
relações directas entre o programa mesmo da alfabetização geral e
vos do trabalho do camarada alfabetizador do que os negativos.
da comunidade em que os círculos estão inseridos. Vamos tomar por exemplo a Ribeira Bote.
Não quero com isso dizer que esqueça os negativos, mas deve debruçar-se sobre os aspectos positivos e não só sobre os negativos. A
Por exemplo o coordenador que trabalha na zona de Ribeira Bote
outra tarefa que decorre de si mesma é a de realizar encontros nor-
terá necessariamente de a pouco e pouco ir familiarizando institui-
mais, regulares, sistemáticos entre os diferentes alfabetizadores para a
ções, organizações locais daquela área, e trabalhar não apenas o
avaliação das actividades de todos.
círculo de cultura que existe lá, com a própria acepção de educação que se está desenvolvendo não só lá mas fora da área local. Seria im-
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Eu sugeriria que em certos momentos, inclusive, equipes de al-
possível um coordenador aí daquela área deixar de ter contacto com
fabetizandos fossem convidados a fazer parte desses seminários
aquele povo através do qual se pode fazer uma série de coisas com
de avaliação.
relação à actividade educativa.
Então num certo dia do mês, em reuniões prévias com os anima-
Do outro lado, o coordenador estará tentando vincular o consenti-
dores dessa zona se estabelece que num sábado, por exemplo, se
mento, as actividades da sua área ao comité mais próximo do partido,
faria uma reunião com uns 15 animadores de círculos de cultura para
ou às organizações de massa que haja na zona onde ele está ou na zona
se fazer a avaliação do trabalho realizado até então, para ver como
mais próxima. Não havendo comité do partido na zona que ele coman-
superar algumas das dificuldades.
da, então busca ligação com o comité da zona mais próxima.
É preciso então estimular alguns alfabetizandos para que viessem
Ainda há uma série de tarefas, como por exemplo tarefas de or-
participar desses seminários de avaliação desde que se está tentando
dem, aparentemente burocráticas, administrativas, mas que são posi-
avaliar uma prática de que eles fazem parte fundamental, porque
tivas para o complemento da acção pedagógica, como, por exem-
sem eles não estaríamos aqui discutindo isso. Os alfabetizandos são a
plo, a de estimular a redacção de pequenos relatórios por parte dos
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alfabetizadores e, baseado nos relatórios dos alfabetizadores, fazer um relatório nada burocrático que deve ser mensalmente encaminhado ao Departamento. Em linhas gerais estas são as considerações que podem ser feitas, ou pelo menos como eu vejo, sobre alguns aspectos da tarefa, do trabalho dos coordenadores em suas relações com o Departamento, com o alfabetizador, com o alfabetizando e com a comunidade.
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Anexo II Biografia de Paulo Freire
Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de Setembro de 1921, no Recife, Pernambuco. Pelo seu empenho em ensinar os mais pobres, Paulo Freire tornou-se uma inspiração para gerações de professores, especialmente na América Latina e na África. Pelo mesmo motivo, sofreu a perseguição do regime militar no Brasil (1964-1985), sendo preso e forçado ao exílio. O educador apresentou uma síntese inovadora das mais importantes correntes do pensamento filosófico de sua época, como o existencialismo cristão, a fenomenologia, a dialética hegeliana e o materialismo histórico. Essa visão foi aliada ao talento como escritor que o ajudou a conquistar um amplo público de pedagogos, cientistas sociais, teólogos e militantes políticos. A partir de suas primeiras experiências no Rio Grande do Norte, em 1963, quando ensinou 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias, Paulo Freire desenvolveu um método inovador de alfabetização, adoptado primeiramente em Pernambuco. O seu projecto educacional estava vinculado ao nacionalismo desenvolvimentista do governo João Goulart. A carreira no Brasil foi interrompida pelo golpe militar de 31 de Março de 1964. Acusado de subversão, ele passou 72 dias na prisão e, em seguida, partiu para o exílio. No Chile, trabalhou por cinco anos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA). Nesse período, escreveu o seu principal livro: “Pedagogia do Oprimido” (1968). Em 1969, leccionou na Universidade de Harvard (Estados Unidos) e, na década de 1970, foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), em Genebra (Suíça). Nesse período, deu consultoria educacio-
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nal a governos de países pobres, a maioria no continente africano, que viviam na época um processo de independência. No final de 1971, Paulo Freire fez sua primeira visita à Zâmbia e Tanzânia. Em seguida, passou a ter uma participação mais significativa na educação da Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Também influenciou as experiências de Angola e Moçambique. Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil, onde escreveu dois livros tidos como fundamentais na sua obra: “Pedagogia da Esperança” (1992) e “À Sombra desta Mangueira” (1995). Leccionou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, foi secretário de Educação no Município de São Paulo, sob a prefeitura de Luíza Erundina. Paulo Freire teve cinco filhos com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira. Após a morte de sua primeira mulher, casou-se com uma ex-aluna, Ana Maria Araújo Freire. Com ela viveu até morrer, vítima de enfarto, em São Paulo. Doutor Honoris Causa por 27 universidades, Paulo Freire recebeu prémios como: Educação para a Paz (das Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (da Organização dos Estados Americanos, 1992).
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