As palavras do amor

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AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER Amor é um fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem-querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se e contente; É um cuidar que ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? LUÍS VAZ DE CAMÕES in Rimas


LI UM DIA, NÃO SEI ONDE

Li um dia, não sei onde, Que em todos os namorados Uns amam muito, e os outros Contentam-se em ser amados. Fico a cismar pensativa Neste mistério encantado... Digo para mim: de nós dois Quem ama e quem é amado?...

FLORBELA ESPANCA in Trocando Olhares (1916), p. 120


O AMOR, QUANDO SE REVELA O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente... Cala: parece esquecer... Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse P'ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar... 1928

FERNANDO PESSOA In Poesias Inéditas (1919-1930). Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio. Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).


NÃO POSSO ADIAR O AMOR Não posso adiar o amor para outro século não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sob as montanhas cinzentas e montanhas cinzentas Não posso adiar este braço que é uma arma de dois gumes amor e ódio Não posso adiar ainda que a noite pese séculos sobre as costas e a aurora indecisa demore não posso adiar para outro século a minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação Não posso adiar o coração.

ANTÓNIO RAMOS ROSA [1924-2013] in Viagem através de uma nebulosa, 1950


TERNURA Eu te peço perdão por te amar de repente Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos. Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos Das noites que vivi acalentando Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente. E posso te dizer que o grande afeto que te deixo Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

VINICIUS DE MORAES [1913-1980]


POEMA DA AMANTE Eu te amo Antes e depois de todos os acontecimentos, Na profunda imensidade do vazio E a cada lágrima dos meus pensamentos. Eu te amo Em todos os ventos que cantam, Em todas as sombras que choram, Na extensão infinita dos tempos Até a região onde os silêncios moram. Eu te amo Em todas as transformações da vida, Em todos os caminhos do medo, Na angústia da vontade perdida E na dor que se veste em segredo. Eu te amo Em tudo que estás presente, No olhar dos astros que te alcançam E em tudo que ainda estás ausente. Eu te amo Desde a criação das águas, desde a ideia do fogo E antes do primeiro riso e da primeira mágoa. Eu te amo perdidamente Desde a grande nebulosa Até depois que o universo cair sobre mim Suavemente.

ADALGISA NERY [1905-1980]


AMOR COMO EM CASA Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que não é nada comigo. Distraído percorro o caminho familiar da saudade, pequeninas coisas me prendem, uma tarde num café, um livro. Devagar te amo e às vezes depressa, meu amor, e às vezes faço coisas que não devo, regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no amor como em casa.

MANUEL ANTÓNIO PINA in Ainda não É o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma É Apenas um Pouco Tarde


BLUES DA MORTE DE AMOR já ninguém morre de amor, eu uma vez andei lá perto, estive mesmo quase, era um tempo de humores bem sacudidos, depressões sincopadas, bem graves, minha querida, mas afinal não morri, como se vê, ah, não, passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, ah, sim, pela noite dentro, minha querida. a gente sopra e não atina, há um aperto no coração, uma tensão no clarinete e tão desgraçado o que senti, mas realmente, mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, eu nunca tive queda para kamikaze, é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim. há ritmos na rua que vêm de casa em casa, ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha no lusco-fusco da canção parar à minha casa, o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, minha querida, toda a gente do bairro, e então murmurarei, a ver fugir a escala do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim. VASCO GRAÇA MOURA in Antologia dos Sessenta Anos


TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser Ridículas. Mas afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas. A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. (Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.

ÁLVARO DE CAMPOS


PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o terror da morte Para ver a verdade para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rápida noite meu silêncio Minha pérola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraíso Cá fora à luz sem véu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN in Livro Sexto


A MULHER MAIS BONITA DO MUNDO estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram flores novas na terra do jardim, quero dizer que estás bonita. entro na casa, entro no quarto, abro o armário, abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio de ouro. entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como se tocasse a pele do teu pescoço. há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim. estás tão bonita hoje. os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios. estás dentro de algo que está dentro de todas as coisas, a minha voz nomeia-te para descrever a beleza. os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios. de encontro ao silêncio, dentro do mundo, estás tão bonita é aquilo que quero dizer. JOSÉ LUÍS PEIXOTO in A Casa, a Escuridão


POESIA: Ó VÉSPERA DO PRODÍGIO! IV Creio nos anjos que andam pelo mundo, Creio na Deusa com olhos de diamantes, Creio em amores lunares com piano ao fundo, Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes; Creio num engenho que falta mais fecundo De harmonizar as partes dissonantes, Creio que tudo é eterno num segundo, Creio num céu futuro que houve dantes, Creio nos deuses de um astral mais puro, Na flor humilde que se encosta ao muro, Creio na carne que enfeitiça o além, Creio no incrível, nas coisas assombrosas, Na ocupação do mundo pelas rosas, Creio que o Amor tem asas de ouro. Amém.

NATÁLIA CORREIA [1923-1993] «Poesia: Ó Véspera do Prodígio», in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II, Círculo de Leitores, p. 392


HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.

ALEXANDRE O’NEILL [1924-1986] «No Reino da Dinamarca» (1958), in Poesias completas: 1951/1986, 3ª edição. Lisboa: IN/ CM, 1995, p. 75


PRIMEIRAMENTE Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus. E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo. Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca – e sempre a tua boca – comece de novo a nascer na minha boca. Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

EUGÉNIO DE ANDRADE [1923-2005] in Poesia, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pp. 55-56


SEM QUE SOUBESSES

Falei de ti com as palavras mais limpas, viajei, sem que soubesses, no teu interior. Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres, tropeçavas em mim e eu era uma sombra ali posta para não reparares em mim. Andei pelas praças anunciando o teu nome, chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada. Em tudo o mais usei da parcimónia a que me forçava aquele ardor exclusivo. Hoje os versos são para entenderes. Reparto contigo um óleo inesgotável que trouxe escondido aceso na minha lâmpada brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.

FERNANDO ASSIS PACHECO [1937-1995] in A Musa Irregular, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 31


NÃO TENHAS MEDO DO AMOR. POUSA A TUA MÃO Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão devagar sobre o peito da terra e sente respirar no seu seio os nomes das coisas que ali estão a crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro e as campainhas azuis; a menta perfumada para as infusões do verão e a teia de raízes de um pequeno loureiro que se organiza como uma rede de veias na confusão de um corpo. A vida nunca foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo. Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor da tempestade que faz ruir os muros: explode no teu coração um amor-perfeito, será doce o seu pólen na corola de um beijo, não tenhas medo, hão de pedir-to quando chegar a primavera.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA [1959-] in Nenhum Nome Depois, Lisboa: Gótica, 2004, p. 11


CURIOSIDADES ESTÉTICAS O mais importante na vida É ser-se criador - criar beleza. Para isso, É necessário pressenti-la Aonde os nossos olhos não a virem. Eu creio que sonhar o impossível É como que ouvir uma voz de alguma coisa Que pede existência e que nos chama de longe. Sim, o mais importante na vida É ser-se criador. E para o impossível Só devemos caminhar de olhos fechados Como a fé e como o amor.

ANTÓNIO BOTTO [1897-1959] in Canções


NEOLOGISMO Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo o verbo teadorar. Intransitivo; Teadoro, Teodora.

MANUEL BANDEIRA [1886-1968] in Meus poemas preferidos, SĂŁo Paulo: Ediouro, 2002


PROMESSA

És tu a Primavera que eu esperava A vida multiplicada e brilhante, Em que é pleno e perfeito cada instante.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN [1919-2004]


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