Coeduca 5 a construção de um projeto de dizer na alfabetização

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Fabiana Giovani

A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE DIZER NA ALFABETIZAÇÃO: A AUTORIA POR MEIO DA CIRCULARIDADE DOS GÊNEROS DISCURSIVOS


Editores Eld Johonny Mônica Baltazar Diniz Signori Texto Fabiana Giovani Revisão Daniel Perico Graciano Lívia Beatriz Damaceno Capa e Diagramação Eld Johonny

GIOVANI, Fabiana. Coeduca - A construção de um projeto de dizer na alfabetização: a autoria por meio da circularidade dos gêneros discursivos / Fabiana Giovani. São Carlos - PNAIC UFSCar, 2017. ISBN 978-85-923424-2-5 1. Alfabetização 2. Educação 3. Ensino de Leitura


Fabiana Giovani

A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE DIZER NA ALFABETIZAÇÃO: A AUTORIA POR MEIO DA CIRCULARIDADE DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

1ª edição


A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE DIZER NA ALFABETIZAÇÃO: A AUTORIA POR MEIO DA CIRCULARIDADE DOS GÊNEROS DISCURSIVOS Fabiana Giovani1 (Universide Federal do Pampa)

PRIMEIRAS PALAVRAS Alfabetizar tem sido uma prática analisada sob a ótica de diferentes correntes teóricas. Defendemos, nesse texto, que o alfabetizar tendo como pano de fundo a teoria dos gêneros do discurso de Bakhtin (2003) é garantir a existência de um projeto de dizer do sujeito, o que implica considerar uma criança como sujeito autor em constituição, que se apropria do texto escrito na/a partir da interação com a escrita e, principalmente, com o outro. Além disso, é a partir desse pilar teórico que podemos compreender melhor as representações dos aprendizes sobre o texto escrito, as hipóteses que eles (re)elaboram, as particularidades e convergências de seus percursos marcados por uma subjetividade socialmente constituída, como postula também Vygotski (1991). Neste âmbito, é a linguagem, enquanto processo de constituição da subjetividade, que marca as trajetórias individuais de sujeitos que se fazem sociais também pela língua que compartilham (Geraldi 2005). Assim, concebemos a autoria não como um lugar de abandono e solidão a que, muitas vezes, são submetidos os alunos em práticas escolares de escrita, mas como um modo de se relacionar com o texto que, por sua vez, é um modo de se relacionar com as pessoas e, consequentemente, com a própria existência. Nesta perspectiva, o texto produzido por um sujeito – autor – 1 Professora adjunta do curso de Letras.


manifesta-se como o produto que busca estabelecer um determinado tipo de relação com o seu interlocutor. Ser, portanto, sujeito autor, é dar lugar à compreensão responsiva do outro, esperar dele algum retorno, não um retorno qualquer, mas algo capaz de permitir uma dialogia, entendendo-a como um momento de produção de sentido, de dizeres e de trocas significativas. Nas palavras de Bakhtin (1992, p. 294), “o locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro”.

OS GÊNEROS DO DISCURSO DE BAKHTIN E A GARANTIA DA CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE DIZER A linguagem enquanto atividade constitutiva dos sujeitos, cujas consciências são sígnicas – ideológicas - é marcada pelos processos interativos de que participam esses sujeitos, implicando aí desde um sentido mais estrito como o diálogo face a face até um sentido mais amplo que abrange um tempo, um espaço e uma história, portanto, social. Considerar a alfabetização nesse cenário é dar espaço à interlocução: lugar de constituição dos sujeitos. Nesse sentido, o processo ensino/ aprendizagem deve partir do enunciado, sendo que as fronteiras que delimitam os enunciados são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, isto é, na interação do “eu” com o “outro”. Diferente da concepção da linguística de enunciação de Benveniste (1995) em que o homem se constitui sujeito apenas quando enuncia, quando assume o turno “eu” na enunciação, na perspectiva bakhtiniana, tanto locutor quanto interlocutor são sujeitos da enunciação. Em outras palavras, para Bakhtin (2003) o enunciado encontra suas fronteiras na troca de turnos na interação entre os interlocutores e é através das contrapalavras que um sujeito dá ao outro na linguagem

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que o processo de compreensão e resposta se dá. O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou até mesmo para dar espaço à compreensão responsiva dele. Sendo assim, o enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, exclusivamente delimitada pela alternância dos sujeitos. Assim, a fronteira do enunciado permite que se crie o novo, mas não sem se desvencilhar do já dito: Na realidade, o locutor serve-se da língua para as suas necessidades enunciativas concretas [...] Trata-se, para ele, de utilizar as formas normativas [...] num dado contexto concreto. Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto (BAKHTIN, 1992, p.96).

Então, trabalhando com a questão da enunciação em Bakhtin (1992), podemos afirmar que o sujeito locutor vai adaptar-se ao contexto que lhe dá uma forma relativamente estável ao gênero discursivo. Produzir um enunciado, já relacionando isto com a questão do ensino, implica que o sujeito daquele discurso tenha além do acesso as unidades formais da língua, acesso às unidades concretas e vivas da língua. Somente no enunciado que há sentido, é através dele que é garantida a constituição do sujeito na e pela linguagem. “Ser humano” presume “ser na/para a linguagem”. Por fim, a questão da interlocução, das trocas entre falantes socialmente constituídos em um diálogo infinito, é garantida porque os sujeitos são eticamente comprometidos com o seu dizer. É somente na perspectiva de um sujeito responsável e responsivo que podemos afirmar que na escola pode haver um aluno que tenha projeto de dizer próprio, com a própria assinatura. O que acontece, em caso negativo é um aluno que devolve à escola, isto é, um sujeito que devolve o discurso da escola via repetição das

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palavras do professor, leituras permitidas por ele e não outras. É assim que podemos dizer, em diálogo com Miotello (2011), que a escola está silenciando os sujeitos que ali se encontram. É um sujeito-aluno que se anula, que se desfaz de seus compromissos frente ao processo de que faz parte.

O PROJETO DE DIZER INSTAURADO Para ilustrar nossa posição, no interior desta seção, mostraremos um texto produzido por uma criança em fase de alfabetização, no ano de 2009, que demonstra questões relacionadas ao projeto de dizer que ela teve ao ser submetida a um processo de alfabetização a partir dos gêneros do discurso2. Vemos abaixo o texto escrito pela criança denominada F.

2 O texto faz parte do corpus construído por Giovani (2010) na ocasião do seu estudo de doutoramento.

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Transcrição: O dia dos brancos O dia dos brancos foi legal. Ah, é dia vinte e dois de abril.” Entendeu ou não, hein? Sim ou Não? Eu sei que foi legal. Está bom ou não, hein?

O tema gerador dessa enunciação de F. foi uma notícia - direcionada ao público infantil - a respeito de uma proposta que cria datas para celebrar as três etnias que formam o povo brasileiro. Essa notícia foi selecionada para discussão em sala de aula porque, na época, estava ocorrendo uma discussão na escola sobre o possível feriado no dia da consciência negra. Após a discussão, a turma foi convidada a escrever sobre a discussão travada na turma. É possível notar, no texto 1, que a criança recorta como tema de sua enunciação o fato de a notícia ter comentado que o dia vinte dois de abril - data do descobrimento/invasão - poderia ser reservado para comemorar também o “dia do branco”. Tema confirmado pelo título atribuído ao texto: O DIA DOS BRANCOS3 Esse indício nos remete a uma hipótese: até que ponto o recorte tem relação com a vida de F.? Seria significativo dizer que F. é da cor branca? Será que se F. fosse negra o recorte seria outro? Estruturalmente e estilisticamente esse texto de F. assemelha-se a um diálogo face a face com um interlocutor. Essa afirmação é proferida segundo os fortes indícios de interação deixados em seu enunciado. Assim, após uma afirmação, ela abre a oportunidade das contrapalavras do leitor: 3 As transcrições do corpo do artigo de trechos do enunciado das crianças serão feitas em caixa alta.

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Afirmação: O DIA DOS BRANCOS FOI LEGAL A interação: ....A E... (Esse ‘A’ tem extrema importância, uma vez que significa: Ah, é....) Afirmação: E DIA VINTE E DOIS DE ABRIL.” A interação: EN TEN DEU OU NÃO EN SIM OU NÃO (EN que significa ‘hein’) Afirmação: EU SEI QUE FOI LEGAU. A interação: TABÃO OU NÃO EN (está bom ou não hein) Essa posse, manifestação de um estilo individual ao manipular a língua escrita é um indício que comprova o diálogo que F. tem travado com leituras e escritas nos mais diversificados gêneros discursivos. Esse desempenho, principalmente de: i) manter o diálogo; ii) garantir o seu projeto de dizer e; iii) alternar turnos com o interlocutor são itens que crianças de séries mais adiantadas têm dificuldade de manter.

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Os indícios dessa produção nos permitem levantar outra hipótese: Estaria F. utilizando a ironia nessa enunciação? Assim, poderíamos pensar numa leitura do tipo: EN TEM DEU OU NÃO (a gozação)? EM SIM OU NÃO? Nota-se ainda que apesar de não utilizar a pontuação adequada – até porque isso não foi algo ensinado sistematicamente –, parece que há uma entonação interrogativa nestes enunciados. Essa mesma entonação aparece na situação “TABÃO OU NÃO EM”. De qualquer modo, se a hipótese da ironia for consistente4, podemos concluir que F. já está conseguindo fazer uso da escrita da mesma forma que se usa a fala, na qual há, entre muitas coisas, gozações e implícitos. Reforça-se ainda a escolha lexical que F. utiliza para manter esses turnos com o leitor: A para ‘ah’ e EN para ‘hein’, que foram retiradas da interação oral, face a face. O uso da aspas também se faz presente nesta enunciação: A E DIA VINTE E DOIS DE ABRIL. Enfim, podemos notar que, embora F. esteja em seu primeiro ano escolar - em fase de alfabetização –, ela não só tem um projeto de dizer instituído como responde a ele, especialmente na interação que mantém com o leitor. Assim, ela diz o que tem a dizer e pede/espera as contrapalavras de seu interlocutor. Claro que as unidades reiteráveis da língua ainda merecem atenção, já que a criança não está totalmente alfabetizada. Porém, o importante é que o fato de não dominar o sistema alfabético da língua escrita não foi empecilho para a constituição de seu projeto de dizer e, consequentemente, para a sua autoria. 4 Por trabalharmos com indícios, não temos como afirmar positiva ou negativamente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A alfabetização - porta de entrada para o mundo da escrita – tem sido vista a partir de diferentes lentes teóricas. Dessa forma, podemos dizer que a porta é uma só, mas as vias de acesso a ela são inúmeras. Nosso objetivo com esse texto foi o de mostrar mais uma via de acesso - a alfabetização como construção de um projeto de dizer - o lugar do sujeito autor por meio da circularidade dos gêneros do discurso. Sob esse viés teórico, defende-se que refletir sobre questões de linguagem – desde o momento inicial que é a alfabetização – é dialogar com enunciados concretos, reais, oriundos das esferas sociais da vida. É pensar que esses enunciados, com características relativamente estáveis – gêneros do discurso –, nos dão a chave para abrir a nossa possibilidade de responder responsavelmente não só frente às demandas que temos no decorrer da vida escolar, mas àquelas que aparecerão por toda a vida. Abrir a oportunidade de dialogar com textos e com discursos é construir um projeto de dizer que tenha sentido para além dos muros escolares. É preciso deixar, enfim, as crianças serem autoras de seus dizeres... desde a alfabetização!

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REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak. Campinas: Pontes, 1995. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1995. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. GERALDI, J. W. A linguagem nos processos sociais de constituição da subjetividade. In: ROCHA et al. (Org.). Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto. Belo Horizonte: Autentica, 2005. GERALDI, J. W. (Org.) O texto em sala de aula. São Paulo: Ática, 2011. GIOVANI, F. A ontogênese dos gêneros discursivos escritos na alfabetização. Tese (doutorado em Linguística e Língua Portuguesa). Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências e Letras (UNESP). Araraquara: Brasil, 2010. MIOTELLO, Valdemir. Discurso da ética e a ética do discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. VIGOTSKI, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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