BRICOLINGUAGEM M E N I N A , A PA L AV R A VA R I A
Editores Mônica Baltazar Diniz Signori Eld Johonny Texto Lívia Beatriz Damaceno Revisão Daniel Perico Graciano Lívia Beatriz Damaceno Capa e Diagramação Eld Johonny
DAMACENO, Lívia Beatriz Bricolinguagem - Menina, a palavra varia / Lívia Beatriz Damaceno. São Carlos - PNAIC UFSCar, 2016. ISBN 978-85-921588-5-9 1. Alfabetização 3. Educação 4. Preconceito Linguístico
BRICOLINGUAGEM M E N I N A , A PA L AV R A VA R I A
1ª edição
MENINA, A PALAVRA VARIA: A VARIAÇÃO E O PRECONCEITO LINGUÍSTICO Livia Beatriz Damaceno Não usamos a linguagem apenas para fins de comunicação, essa função é só uma das facetas do uso que fazemos dela. Nossa fala reflete nossa identidade, nossa cultura, a comunidade da qual fazemos parte. Isso implica dizer que, dependendo do contexto, modulamos a forma como falamos ao nosso ouvinte – a maneira que falamos com nossos amigos é diferente da que usamos ao nos dirigir a uma autoridade, por exemplo. Nos adequamos aos ambientes em que estamos inseridos e também nos modalizamos de acordo com a nossa intenção. Além disso, o espaço geográfico determina nossas fronteiras linguísticas, não há um dialeto superior ou inferior. Por que em certas regiões do estado de São Paulo, por exemplo, a palavra tia tem som de Tia /ˈtiɐ/ e em outras o som é parecido com Tchia /ˈtʃiɐ/? No âmbito dos estudos linguísticos, a sociolinguística se preocupa com o fenômeno da variação, em que duas formas (denominadas variantes) diferentes podem ser usadas com o mesmo propósito comunicacional. E isso ocorre porque a variação é inerente à língua – e não impede que as pessoas se comuniquem e se entendam. Mas, ao contrário do que possa parecer, a variação linguística não acontece do nada e nem é aleatória, existem agentes responsáveis para que ela ocorra, e são chamados de condicionadores que podem ser linguísticos (aspectos internos da língua como elementos fonéticos, sintáticos, semânticos) ou extralinguísticos (referem-se aos aspectos externos a língua como fatores sóciohistóricos, geográficos, sexo/gênero, faixa etária, grau de escolaridade). Por exemplo, no poema podemos ler a seguinte estrofe:
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Menina, as palavras têm tribos: parole, paraula, wort, palabra, lexi, word, parola, sermo, cuvânt, têm línguas que nem tem nos livros.
Quando o poema fala que “as palavras têm tribos”, ele quer dizer que cada povo tem sua língua, ou seja, cada língua tem seu povo. Por exemplo, o conceito “palavra” aparece aqui traduzido para vários idiomas, no caso de “parole”, “paraula”, “palabra” e “parola”, todas essas “palavras”, muito provavelmente eram no início, variantes de “parábola”, devido à influência dos gregos sob o império romano, lembrando que o império romano colonizou boa parte da Europa, por isso, em todas essas línguas as formas são tão parecidas. Com esse exemplo, podemos observar como aspectos sócio-históricos e geográficos interferem na formação das línguas, todas essas formas já foram variantes, antes de virar padrão (assim como o “a gente fomos” que o seu vizinho fala). Mesmo existindo tanta diversidade, há uma desvalorização das variantes nãopadrão que tendem a se afastar do grupo das variedades cultas da língua, que, por sua vez, possuem prestígio e tendem a serem conservadoras, ao passo que as variantes não-padrão são inovadoras, mas são estigmatizadas e seus falantes são vistos negativamente. Entende-se por variedades, características que formam a fala de determinado grupo, a variedade culta da língua é falada pelas camadas mais altas da pirâmide social que moram nas cidades grandes, são mais escolarizados e bem remunerados, mas é só uma variação como qualquer outra, ou seja, o preconceito linguístico é, na verdade, um preconceito de classe, etnia, gênero, etc. Podemos observar então que a língua é fluida, podemos notar essa fluidez nos usos da modalidade oral, enquanto que nos usos da modalidade escrita é mais uniforme. No contexto escolar, aprendemos a norma culta padrão, nesse âmbito temos como referência
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a gramática normativa (normativa porque ela prescreve o uso da língua), esquecemos que ela é só uma parcela pequena da língua, existem outras “línguas” circulando por aí. O perigo reside em achar que só a nossa é a “certa” e discriminar e silenciar as que são diferentes.
Preconceito linguístico: o apagamento da diversidade O preconceito pode ser definido como um conjunto de comportamentos (atitudes agressivas) com base em componentes cognitivos (crenças e julgamentos generalizantes), que segregam e discriminam. Apesar de ter um processo cognitivo envolvido na criação de preconceitos, este fenômeno é historicamente construído a partir de ideias hegemônicas que determinam o que é bom e bonito e, por conseguinte, o que é mau e feio em uma determinada sociedade. Gordon Allport foi um dos grandes estudiosos do preconceito. Sua obra The Nature of Prejudice, publicada em 1954, é referência para os estudos da área de Psicologia Social. Segundo o psicólogo estadunidense, o preconceito seria “uma atitude hostil ou preventiva a uma pessoa que pertence a um grupo, simplesmente porque pertence a esse grupo, supondo-se, portanto, que possui as características contestáveis atribuídas a esse grupo” (1954/1962, p. 22). Apesar da relevância de sua obra, devemos nos abrir a outros autores, para entender a configuração atual do fenômeno do preconceito, temos que olhar para as contribuições recentes que ao invés de olhar para os processos psicológicos presentes na criação do preconceito, olha para as relações de poder entre os grupos sociais e os discursos ideológicos que ao se apropriarem de componentes afetivos, fundamentam diferenças sociais existentes que servem de apoio para os mecanismos de exclusão social. Na sociedade contemporânea o preconceito adquiriu formas mais sutis e veladas na sua forma de expressão, pois é determinado por lei que qualquer forma de preconceito está sujeita a condenação e prisão.
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O preconceito linguístico é uma das imagens negativas que o falante tem de si, sob a vigilância entre “certo” e “errado”. Essa prática é uma forma de segregação social, cultural e econômica. Para Marcos Bagno: “muitas vezes, os falantes das variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos.” (2007, p. 17). Podemos dizer que há segregação cultural quando, por exemplo, dizemos que uma língua ou um dialeto é mais bonito que outros; econômico ao se relacionar às superestruturas sociais, como quando atribuímos à língua de um país ou região, que detêm maior poder econômico, um status de superioridade. Além disso, deixamos de considerar a individualidade adquirida segundo as experiências de cada sujeito. No poema temos um bom exemplo disso: Menina, a palavra varia: de “fomos” pra “fumos”, de “menos” pra “menas”, de “somos” pra “semos”, pra fazer prosa e poesia.
O uso de “fumos”, “menas” e “semos” são variantes muito usadas na língua falada, mas nada indica que quem faz uso dessas variantes seja uma pessoa intelectualmente inferior em qualquer aspecto, muito pelo contrário, ela está rompendo com as formas padrões, antecipando a mudança linguística.
Referências bibliográficas ALLPORT, G. La naturaleza del prejuicio. Universitaria: Buenos Aires, 1962. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é e como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
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