Formação de mediadores de leitura 01

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Caderno Complementar 1

CAPES/SECADI/UAB/MEC e a Universidade Estadual Paulista (NEAD/Reitoria) Processo FNDE 400166-2010 UNESP/2014

Caderno Complementar 1 Organizadores Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira Juvenal Zanchetta Júnior Ricardo Magalhães Bulhões Rony Farto Pereira Thiago Alves Valente

SECADI

UAB

UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL

NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA

NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA

2015



NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA

2015


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

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Formação de mediadores de leitura: caderno complementar 1 / Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira et. al. (organizadores). Assis: ANEP - Associação Núcleo Editorial Proleitura, 2015. 118 f. : il. ISBN: 978-85-67196-01-5 1. Mediação de leitura. 2. Leitura. 3. Professores - Formação. 4. Literatura infanto-juvenil. 5. Formação de leitor. I. Ferreira, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. II. Zanchetta Junior, Juvenal. III. Pereira, Rony Farto. IV. Valente, Thiago Alves. CDD 028.9


SUMÁRIO Apresentação...................................................................................................................05 Capítulo 1 – A narrativa ficcional 1. Introdução .............................................................................................................08 1.1 Atividades .................................................................................................08 2. O papel da narrativa .............................................................................................08 3. Os elementos estruturais da narrativa ..................................................................14 3.1 Personagem ....................................................................................................14 3.2 Tempo ............................................................................................................18 3.3 Espaço ............................................................................................................23 3.4 Narrador .........................................................................................................23 3.5 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................28 Referências ...........................................................................................................30 Capítulo 2 – Gêneros provenientes da oralidade: conto popular, conto de fadas e fábula 1. Introdução ............................................................................................................33 1.1 Atividades feitas oralmente .........................................................................33 2. O diálogo entre os campos culturais ......................................................................34 2.1 Atividades (para serem feitas oralmente) ......................................................36 2.2. O caminho da dialogia ..................................................................................37 3. O conto popular ......................................................................................................38 3.1 As classificações do conto popular ................................................................42 3.2 A estrutura do conto popular...........................................................................45 3.3 Atividades de leitura e interpretação de textos................................................47 4. O conto de fadas ....................................................................................................49 4.1 A estrutura do conto de fadas .........................................................................51 4.2 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................63 5. A fábula .................................................................................................................66 5.1 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................76 5.2 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................78 Referências ................................................................................................................80 Capítulo 3 – Gêneros provenientes da tradição escrita: conto, crônica e romance 1. Introdução .............................................................................................................83 2. O romance .............................................................................................................84 2.1 A chegada do folhetim ao Brasil ....................................................................87 2.2 Balzac como referência para o romance ........................................................89 2.3 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................91 3. O conto ..................................................................................................................92 3.1 Atividades de leitura e interpretação de textos ...............................................97 3.2 Os diferentes estilos do conto ........................................................................99 4. A crônica .............................................................................................................101 4.1 A crônica e o jornal ......................................................................................102 4.2 Os temas da crônica .....................................................................................102 4.3 Atividades de leitura .....................................................................................105 4.4 Classificações da crônica .............................................................................106 4.5 Atividades de leitura e inte rpretação de textos ............................................112 Referências .........................................................................................................115



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APRESENTAÇÃO

Este caderno complementar de estudos foi produzido originariamente como recurso didático do Curso “Mediadores de Leitura Literária”, promovido pelo Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, em convênio com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação (MEC). O curso foi realizado entre os anos de 2014 e 2015, reunindo alunos de polos da Universidade Aberta do Brasil (UAB), localizados no Estado de São Paulo e no Paraná. Seus três capítulos conferem ênfase a atividades de leitura, debates e interpretação de textos verbais e não-verbais. O primeiro capítulo, intitulado A narrativa ficcional, aborda, de forma introdutória, o papel da narrativa, bem como seus elementos estruturais. Também, procura demonstrar que a narrativa não se configura apenas nas formas tradicionais da prosa, mas se manifesta em modalidades diversas. Além disso, preocupa-se em distinguir gênero textual de tipos textuais e conceituar domínio discursivo. O segundo capítulo, denominado Gêneros provenientes da oralidade, ocupa-se com a conceituação de conto popular, conto de fadas e fábula. Também, discute a noção de dialogia entre os campos culturais, responsável pela criação de histórias em suas diferentes manifestações artísticas verbais, visuais e vocais contemporâneas, como o cinema, quadrinhos, jogos eletrônicos, entre outras. O conceito de intertextualidade embasa as atividades desenvolvidas no capítulo que visa ao estudo de manifestações culturais em suas relações dialógicas. O último capítulo, Gêneros provenientes da tradição escrita, após a introdução, que ressalta diferenças entre formas simples e formas cultas, sob a perspectiva de André Jolles, trata da história e dos elementos fundamentais de cada gênero estudado: romance, conto e crônica. No que se refere a esses gêneros, os tópicos tratam de aspectos relativos às origens, à etimologia da palavra e aos principais representantes na produção literária brasileira. Pelo exposto, pode-se deduzir que este caderno, ao apresentar conceitos fundamentais amarrados por práticas de leitura de modalidades textuais diversas, cumpre


6 seu papel de instrumento de aprendizagem, embasando e enriquecendo o processo de ensino a distância e os sujeitos que nele atuam: professores, tutores e alunos. Os organizadores


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A narrativa ficcional

Primeiro capĂ­tulo


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1. Introdução ...o texto é uma máquina preguiçosa que espera muita colaboração da parte do leitor. (ECO, 1994, p.34)

Este Caderno Complementar tem por objetivo abordar, neste primeiro capítulo, aspectos teóricos ligados à narrativa ficcional. Salvatore D’ Onofrio (2005) lembra que a narrativa vem do verbo latino narrare, segundo ele, uma narrativa é uma história real ou imaginária, um fato, um acontecimento contado para alguém, ouvintes, leitores ou espectadores.

1.1 Atividades (para serem feitas oralmente) a) Relate para seus colegas de sala uma história que permaneceu em sua família através do tempo, com o objetivo de transmitir um ensinamento. b) Confronte as histórias e veja se pelo menos duas se assemelham. Aponte as narrativas semelhantes. 2. O papel da narrativa Walter Benjamin (1986) destaca o papel da narrativa como uma forma de transmissão de experiências mantidas pela tradição, histórias contadas pelas mães e avós. Logo, desde criança, estamos acostumados a que nos contem histórias diversas, de encantamento, contos de fadas, crônicas, fábulas, anedotas, piadas, “causos” etc. Esses textos inserem-se na categoria de narrativa. Entre os textos ouvidos na infância, que compõem nosso imaginário, estão os contos de fadas. Vejamos abaixo um exemplo de texto publicitário, que visa favorecer a venda de ingressos para uma peça teatral, apropriando-se de um desses contos, mais especificamente de A bela e a Fera, de Willian e Jacob Grimm, adaptado pela Walt Disney, sob a forma de musical da Broadway:


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Figura 1 – Texto Publicitário1

No ambiente escolar, além de contar histórias, estas são lidas pelos alunos e mediadas pelo professor. Denominamos o professor de mediador, pois atua como um primeiro leitor que, na contação de histórias, transmite e comenta os eventos da narrativa. Além disso, por meio de suas performances, os alunos têm acesso à produção cultural. Para tanto, o papel desse professor é o de um leitor em desenvolvimento que exerce, na sala de aula, o papel de estimulador, observador, mediador e criador de situações de ensino-aprendizagem, repensando constantemente o ensino da leitura, seus conteúdos e levando em conta, necessariamente, a natureza do curso que quer ministrar, os indivíduos que pretende formar, como fazê-lo e para quê. Essa preocupação alia-se à da formação do aluno crítico, consciente, capaz de atuar significativamente, interferindo 1

(Fonte: O Estado de São Paulo, Caderno 2, 10 out. 2009, p.D6).


10 e contribuindo para o desenvolvimento da sociedade de que faz parte (FERREIRA, 2009). Antes de qualquer análise é importante lembrar que a narrativa, enquanto tipo textual, não se restringe apenas aos gêneros tradicionais da prosa (conto, novela, romance), mas ela também está presente nas anedotas, nas telenovelas, nas histórias em quadrinhos, enfim, elas são inumeráveis. Vale destacar que os tipos textuais, segundo Marcuschi (2008), são definidos pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas, estilos), caracterizam-se mais como sequências linguísticas do que como textos materializados. Eles se fundam em critérios internos (linguísticos e formais). Abrangem, geralmente, categorias como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Quando ocorre o predomínio de uma dessas sequências linguísticas em um dado texto concreto, diz-se que é argumentativo ou narrativo, ou expositivo, ou descritivo, ou injuntivo. Os gêneros textuais, por sua vez, possuem função social e se referem aos textos materializados em situações comunicativas recorrentes, por exemplo, em telefonemas, sermão, carta comercial, romance, bilhete, horóscopo, receita culinária, piada, conferência, entre outros. Eles se fundam em critérios externos (sociocomunicativos e discursivos). Em síntese, na noção de gênero textual, predominam os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade. Já na noção de tipo textual predomina a identificação de sequências linguísticas típicas como norteadoras (MARCUSCHI, 2010). Faz-se necessário observar, ainda, que os gêneros enquadram-se conforme o domínio discursivo, concebido do ponto de vista bakhtiniano como uma esfera da atividade humana que indica as instâncias discursivas como, por exemplo, os discursos jurídico, jornalístico, religioso, publicitário, entre outros. A instância discursiva dá origem a vários gêneros. Marcuschi (2010) acrescenta que os domínios não são textos, nem discursos, apesar disso, propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Eles constituem práticas discursivas institucionalizadas, no interior das quais identificamos um conjunto de gêneros textuais. Representam grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam. Na leitura, os mecanismos de busca de informação acionados pelo leitor, bem como o reconhecimento do tema central, da metodologia e do marco teórico, constituem práticas de interação com gêneros que exigem dele não apenas a decifração dos signos


11 verbais ou visuais inscritos na tessitura do discurso, mas uma prática dialógica e interdiscursiva que se impõe sobre o território do letramento. Como assegura Soares (1998), o letramento, contempla mais que a aquisição da habilidade de ler e escrever visto que absorve toda a apropriação da escrita e das práticas sociais, permeadas de dialogismo e intertextualidade. Na mediação de leituras, esclarecer para o aluno o conceito de gênero textual e incentivá-lo a reconhecer os diversos existentes na sociedade, auxilia-o na interpretação de textos e construção de hipóteses. Nem sempre um texto precisa ser verbal para ser narrativo, o texto não-verbal, constituído somente por imagens ou com o predomínio delas, também pode ser narrativo, como se pode observar a seguir:

Figura 2 – História em quadrinhos2

A história em quadrinhos, de Maurício de Souza, é exemplo de narração. Pode-se observar que, mesmo nos quadrinhos em que não há diálogo, existe uma progressão discursiva que instaura a temporalidade das ações na narrativa. O efeito de humor é produzido pela quebra de “esquema”, de conceitos prévios que o leitor possui em relação 2

(Fonte: O Estado de São Paulo, suplemento infantil: Estadinho, 10 out. 2009, ano 23, nº 1.137, p.8).


12 a acidentes com pedestres. Não se espera que vasos sejam atirados propositadamente em transeuntes, menos ainda, que o sejam pela Morte acompanhada de um auxiliar: a personagem Penadinho. Pelo contexto, pode-se notar que o humor também advém do fato de se tratar de uma narrativa cujos personagens são familiares aos brasileiros, ocupam seu imaginário. Dessa forma, para os leitores familiarizados com as personagens de Maurício de Souza, o humor também provém do reconhecimento das personagens Morte e Penadinho, e da verificação de que, na narrativa, como em outras, nas quais a Morte é protagonista, seus planos geralmente fracassam. Há vários discursos narrativos incorporados por outros suportes textuais como no exemplo abaixo retirado da primeira página do jornal O Estado de São Paulo:

Figura 3 – Chamada Jornalística3

Nota-se, na manchete, o recurso ao “era uma vez” próprio dos contos de fadas. Essa conjugação verbal permite ao leitor uma remissão a um tempo indistinto, adequado, portanto, ao imaginário. Assim, pode-se imaginar que “vez é essa”, de acordo com o desejo do interlocutor. Na manchete, entretanto, alerta-se para o fato de que uma jovem americana, Julie Poweli, que gosta de cozinhar, decidiu testar todas as receitas do tratado culinário Mastering the Art of French Cooking, de Julia Child, a mais famosa cozinheira dos Estados Unidos. Ao fazê-lo, postou em um blog suas impressões acerca das receitas, seguidas de informações sobre sua vida. Seu blog tornou-se um sucesso, seu conteúdo

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(Fonte: O Estado de São Paulo, Caderno Paladar, 10 out. 2009, p.1).


13 foi adaptado em livro. Este tornou-se best-seller e deu origem ao filme Julie & Julia, de Nora Ephron, com Meryl Streep, no papel de Julia Child, e Amy Adams, no de Julie. Nota-se que o título da manchete também estabelece intertextualidade com o poema de Drummond, intitulado Quadrilha:

Quadrilha4 Carlos Drummond de Andrade João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

Durante a leitura, o processo de compreensão do texto vai acontecendo aos poucos a partir de uma espécie de cumplicidade entre o leitor e o seu objeto. O texto acima, Quadrilha, um dos poemas mais conhecidos de Drummond, está dividido em duas estrofes. Na primeira, as pessoas estão interligadas pela paixão, vivem provavelmente a fase da adolescência. Nessa primeira fase, existe uma relação de dependência construída por meio das orações subordinadas adjetivas. Na segunda estrofe, mesmo não havendo uma marcação temporal explícita, as personagens já atingiram a maturidade e se deparam com os possíveis desencontros que a vida oferece. O narrador constrói um poema narrativo sem descrever os personagens, os espaços, mas induz o leitor a imaginá-los. O leitor começa a perceber, no encadeamento da narrativa, certo tom de ironia, pois Lili, que não amava ninguém, casou-se com J. Pinto Fernandes, único personagem que apresenta um sobrenome. A presença desse sobrenome, por sua vez, reforça o tom irônico, pois conota estatuto, provavelmente, adquirido pelo poder aquisitivo da personagem.

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(Disponível em: <http://www.pensador.info/frase/Mzk0MDY/>, 2009).


14 3. Os elementos estruturais da narrativa Neste primeiro capítulo, vamos estudar os seguintes elementos estruturais da narrativa: personagem, tempo, espaço, narrador e focalização. 3.1 Personagem As personagens são sedutoras para o leitor, de acordo com Forster (1998), porque lhe dão a ilusão de perspicácia e poder. Uma obra permite ao leitor analisar e observar presas em um universo uma raça humana mais compreensível e consequentemente mais dócil. Ao tornar as personagens mais compreensivas para o leitor, a obra o consola, pois na vida diária nunca nos compreendemos uns aos outros, não existe a completa clarividência ou a confissão completa. Mas as personagens em uma obra podem ser completamente entendidas pelo leitor. Se o escritor quiser, a vida interior da personagem, assim com a exterior, pode ser exposta. A personagem é um elemento estrutural indispensável à narrativa. Na sua origem etimológica – persona –, manifesta-se a ideia de ficção. Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1993) atesta que, nos textos narrativos, as personagens nunca são “formas vazias”, na medida em que carregam propriedades psicológicas, morais e culturais pré-existentes à ação narrativa. As personagens atuam e esta atuação é relatada por alguém, pelo narrador que pode ou não participar da ação. O narrador, por meio de seu discurso, revela-nos as ações praticadas pelas personagens. A personagem, geralmente, é uma imitação do ser humano, mas nada impede que venha a ser uma coisa ou animal. Em Vidas Secas, por exemplo, uma das principais obras de Graciliano Ramos, a cachorra Baleia, apesar de ser um animal, diferencia-se dos demais por apresentar características humanas, ela aparece “antropomorfizada”. Vejamos no exemplo abaixo, um fragmento que explicita a revolta da cachorra logo depois de ter levado pontapés:

Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. (RAMOS, 1998, p.60).


15 Uma das maneiras de se iniciar o diálogo com os alunos sobre o texto é perguntarlhes sobre o que mais lhes despertou a atenção na configuração das personagens. Como ser fictício, uma criação da fantasia, a personagem comunica uma impressão de verdade existencial. Para o leitor, a personagem permite, por meio da empatia, uma projeção. Para Antonio Candido, existem afinidades e diferenças fundamentais entre o ser e os entes de ficção. Essas diferenças e afinidades são importantes para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança (1987). Ainda, segundo Candido, ao criar a personagem o escritor estabelece uma linha de coerência fixada para sempre, “delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo de ser” (CANDIDO, 1987, p.59). Um dos assuntos abordados com frequência nos manuais de Teoria da Literatura é a distinção entre personagens planas e esféricas ou redondas, categorias estabelecidas por Edward M. Forster (1998) no seu livro Aspectos do romance. As personagens planas são desprovidas de vida interior, por isso não apresentam profundidade ou dramaticidade em suas ações. Essas personagens, por vezes chamadas tipos ou caricaturas, permanecem inalteradas em todas as situações. Conforme Forster (1998), uma grande vantagem das personagens planas reside no fato de que o olho emocional do leitor as reconhece com facilidade sempre que aparecem na narrativa. Para o autor, uma segunda vantagem, é que mais tarde são facilmente lembradas pelo leitor. A personagem tipo geralmente é usada para personificar um grupo social. Em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, romance de costumes, o narrador fornece um retrato da sociedade carioca no início do século XIX e caracteriza suas personagens como parte de um grupo, deixando de lado as especificidades psicológicas. Na obra de Almeida, as personagens são designadas pela condição social ou profissão que ocupam: barbeiro, mestre-de-cerimônias, parteira, cigana. Observemos, no texto a seguir, o modo pelo qual o narrador caracteriza o personagem-tipo Leonardo Pataca, imigrante português que tinha um jeito bonachão: Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe (mascate, vendedor ambulante) em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. (ALMEIDA, 1990, p.12)


16 Antes de passarmos à apreciação das características das personagens esféricas, vejamos no texto abaixo como o autor, por meio de formas e cores, retrata um expressivo rosto de um personagem caricatural, o autoritário e furioso solicitador Borges, dando ênfase aos aspectos exóticos que beiram o ridículo. A história em quadrinhos, resultante de uma adaptação do conto “Uns Braços”, de Machado de Assis, permite-nos observar tais traços caricaturais:

Figura 4 – Conto em quadrinhos: Uns braços5

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(In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Uns braços. In: Literatura Brasileira em Quadrinhos. Adapt., roteiro e desenhos de Francisco Vilachã. São Paulo: Ed. Escala Educacional, 2010).


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Em uma obra trivial, geralmente, as personagens são planas, desprovidas de complexidade psicológica, superficiais e estereotipadas, com seus papéis ficcionais previamente distribuídos e fixos para sempre. Essas personagens, por serem facilmente compreendidas, reconhecidas durante a leitura e posteriormente lembradas, consolam e agradam ao leitor com pouco contato com textos diversos. Ainda, por atenderem ao seu horizonte de expectativa, produzem nesse leitor a sensação de conforto. Todas as ações dessas personagens reforçam a sua correção, elas não apresentam altercações; uma vez definidas e descritas por um narrador onisciente, produzem no leitor a sensação de absoluto domínio de seus pensamentos, bem como de previsibilidade de suas atitudes. Elas não surpreendem o leitor, definem-se pelos seus atos. As jovens se conduzem como adultos em miniatura: são determinadas, companheiras dedicadas, preocupadas com o próximo e com o julgamento alheio, mais especificamente com o dos adultos. Ainda, são compromissadas com a família e amadas por todos os membros que a compõem. Elas representam assim o mito do “jovem feliz”. As personagens adultas masculinas geralmente são modelares dão conselhos às personagens jovens, e por projeção nelas ao leitor empírico. As personagens femininas, atendendo ao mesmo modelo de literatura trivial, quando jovens, embora ingressem na aventura, são frágeis e vulneráveis; quando adultas, permanecem em casa preocupadas, aguardando que a personagem masculina adulta retorne de sua aventura. Graças a isso, as personagens femininas servem de motivo para justificar a bondade, o bom caráter e o cavalheirismo das personagens masculinas. As personagens esféricas caracterizam-se pela sua intensa vida interior, revelam dramaticidade, conflitos internos e são capazes de surpreender. Segundo Forster (1998), somente as personagens redondas podem atuar tragicamente, por qualquer espaço de tempo e inspirar no leitor qualquer sentimento, exceto o de “humour” e adequação. Para o autor, para se reconhecer se uma personagem é redonda, deve-se observar se ela é capaz de surpreender de modo convincente. “Se não convence, é plana pretendendo ser redonda.” (FORSTER, 1998, p.75). Bento Santiago, protagonista e narrador do romance Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis, é um exemplo dessa densidade psicológica. Pode-se notar em seu discurso que ele questiona a realidade que o cerca e angustia-se com ela, pois o que observa entra em conflito com seus valores e crenças.


18 Em uma narrativa, as personagens também são classificadas pelo estatuto que assumem como principais, no caso, são as protagonistas e antagonistas, e secundárias, categoria em que se encontram, às vezes, os comparsas, os auxiliares. As personagens principais são indispensáveis à trama e assumem revelo na narrativa, já as secundárias desenvolvem ações que não são fundamentais para o desenrolar dos conflitos. Uma personagem secundária, no entanto, pode assumir um papel importante na narrativa se suas ações surpreenderem o leitor ou por causa delas o destino do herói for determinado ou alterado. 3.2 Tempo

O tempo, na obra de ficção, é marcado pelo desenvolvimento do fluxo narrativo. Nos textos literários dramáticos ou narrativos, ele é um elemento inseparável do mundo imaginário projetado pelo autor. O emprego do tempo narrativo pode ser cronológico, tempo exterior que comporta a noção de antes, durante e depois, como podemos notar a partir do fragmento abaixo, retirado do conto “A dama do cachorrinho”, de Anton Tchekhov: Fazia uma semana que a conhecia. Era feriado. Dentro de casa o ar estava sufocante e, na rua, o vento arrastava a poeira em turbilhão e arrancava os chapéus. Dava sede o dia inteiro e Gurov entrava com frequência no pavilhão, oferecendo a Ana Sierguéievna ora refresco, ora sorvete. Ficava-se em saber onde se meter. Ao anoitecer, depois que o tempo amainou um pouco, foram até o quebra-mar assistir à chegada de um navio. (In: SCLIAR, 2008, p.12-13).

No exemplo, as implicações do desenrolar do tempo foram demarcadas pelo tempo exterior medido pelo transcorrer de uma semana e de um dia. Nesse caso, fica para o leitor a sensação de um movimento contínuo demarcado pelo relógio. Por outro lado, o tempo psicológico não tem padrões de medida, pois ele independe das convenções externas (relógios, calendários). Orlando Pires (1985) considera que o tempo psicológico representa um eterno presente, filtrado pelas vivências subjetivas das personagens. No tempo psicológico ou de duração interior, predomina a memória, cujo fluxo varia de pessoa para pessoa. No conto “Missa do galo”, de Machado de Assis, o narrador prioriza o tempo psicológico na medida em que rememora uma antiga experiência à qual jamais entendeu. Justamente, essa experiência incompreendida mantém a atenção do leitor que,


19 movido pela curiosidade, se delicia com a leitura, pois se julga mais sábio do que o narrador ao perceber o jogo de sedução que se estabelece no diálogo entre este e a protagonista, Conceição. A passagem transcrita confirma a utilização do tempo psicológico: Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora [Conceição], há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. (In: SCLIAR, 2008, p.33).

Faz-se necessário lembrar que existe também o tempo da enunciação ou do discurso. Vários teóricos já se debruçaram nos estudos dos signos de incidência temporal, principalmente, quando essa incidência está ligada à questão da anacronia (ana = inversão; cronos = tempo), caracterizada ora pelo recuo do tempo narrativo através da analepse (flashback), ora pela prolepse (flash-forward), que vem a ser a antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência na história será posterior. Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de Teoria da Narrativa (1988), esclarecem que se entende por analepse todo movimento temporal retrospectivo. Os autores, apoiados nas formulações teóricas de Genette, atestam que a analepse pode constituir um processo de ilustração do passado de uma personagem considerada relevante. Pode-se notar essa retomada pelas reminiscências na cena em que a personagem D. Margarida, do conto “As mãos de meu filho”, de Érico Veríssimo, ao presenciar seu filho, Gilberto, tocando em um concerto a música Navarra, do compositor e pianista Isaac Albéniz, relembra dos sofrimentos e de suas lutas para sustentar a família durante a infância do menino: Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio [o marido] sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. (In: SCLIAR, 2008, p.134-5).

O objetivo da analepse, nesse caso, é o de recuperar um evento cujo conhecimento faz-se necessário para o leitor entender o porquê da atitude do filho de dedicar sua apresentação somente à mãe, embora o pai também esteja presente. O que leva a personagem Gilberto a essa atitude é o fato de seu pai, Inocêncio, durante a infância do pianista, ter sido alcoólatra. Essa informação é adiada para a manutenção do interesse do leitor. Ela aparece nas reminiscências de Inocêncio, configuradas sob a forma de um


20 exame de consciência: “Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquece dos pais. Não, Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.” (In: SCLIAR, 2008, p.137). Já a prolepse configura-se como a antecipação de uma situação ou fato que se confirmará no futuro do relato narrativo, por meio de expressões adverbiais e verbos que contrastam com o relato ulterior. Conforme Reis e Lopes (1988, p.283), retomando Genette, “[...] a prolepse corresponde a todo movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é posterior ao presente da ação”. Todavia, não se deve confundi-la com a premonição ou profecia. Vejamos um exemplo de performance que, pelo contexto, antecipa, estrutura e motiva todas as ações do protagonista do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa (2010) 6: Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Nesse conto, o protagonista recorda-se do momento em que o pai decide viver na “terceira margem do rio” definitivamente: Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. [...]. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia,

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Disponível em: <http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp>. Acesso em: 25 set. 2010.


21 acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

O pai do narrador manda construir uma canoa para a concretização de seus planos. A princípio, as demais personagens não acreditam em sua decisão, depois tentam demovê-lo de seu propósito, por fim, revoltam-se ou se resignam com a situação: A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.

Em textos humorísticos, um narrador pode fazer uso de uma prolepse, justamente para mostrar que esta não se confirma quando antecipada sob a forma de hipótese por uma determinada personagem. Geralmente, essa personagem está fadada a fracassar em seus planos e suas tentativas para tirar vantagem de uma situação. Com a não concretização da prolepse, o narrador quebra as expectativas do leitor, ao mesmo tempo em que o prende ao relato, pois o diverte e aguça sua curiosidade acerca do destino da personagem cômica, como no conto a seguir, em que grifamos as hipóteses do protagonista: O homem nu

Fernando Sabino7

Ao acordar, disse para a mulher: — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher. — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos: — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. 7

(In: MORICONI, 2001, p.249-251).


22 Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: — Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer. — Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! — Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: — Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: — Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: — É um tarado! — Olha, que horror! — Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão. (grifos nossos)


23 3.3 Espaço Leia atentamente o trecho a seguir, retirado da obra O cortiço, de Aluísio de Azevedo: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas (AZEVEDO, 1979, p. 25).

Em um ambiente de animalidade, o narrador descreve o espaço do cortiço, habitação coletiva que aparece como um organismo vivo. Do ponto de vista mais genérico, o espaço narrativo é o cenário onde se desenvolve a ação. O conceito de espaço pode abarca tanto as atmosferas sociais (espaço social) como as psicológicas (espaço psicológico). Por meio da caracterização espacial (decorações, objetos, cenários geográficos), o narrador define a condição histórica e social das personagens. 3.4 Narrador Entre as personagens, de acordo com Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1993), há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas funções no processo narrativo e na estruturação do texto: o narrador. Essa personagem distingue-se do autor empírico, pois é uma criação deste. O discurso do narrador tem por função narrar uma história para um leitor implícito. Este leitor difere do leitor empírico, trata-se de uma projeção do próprio texto. O narrador, conforme sua focalização, apresenta seu discurso em primeira ou terceira pessoa. Na narrativa relatada em primeira pessoa, o narrador figura seu discurso como um enunciador explícito, o qual narra sua própria história, sendo definido, por Aguiar (1993), como autodiegético. Há, então, um “eu” que se manifesta. Já na narrativa relatada em terceira pessoa, o narrador narra a história de uma personagem com a qual conviveu ou de um fato, o qual presenciou, sendo classificado por Aguiar (1993), como homodiegético. Vejamos um exemplo de narrador-personagem ou autodiegético, com focalização em primeira pessoa, que retrata sua própria história, retirado da obra A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector:


24

Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: (...). Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver. (...) Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler esta história triste, me perdoarão ou não. (LISPECTOR, 1999, p. s/n.).

Nota-se que a personagem-narradora assume uma postura democrática em seu relato, ela não busca conduzir a opinião do leitor implícito, ao relatar a morte de dois peixinhos vermelhos, da qual foi a causadora, o que justifica o título do livro. A narradora deixa para esse leitor a decisão em perdoá-la ou não. A seguir pode-se observar, no trecho retirado da obra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, um exemplo de narrador homodiegético: As muitas pessoas que encontrou [Santiago] desde que saiu de casa às 6h05 até que foi retalhado como um porco, uma hora depois, lembravam-se dele um pouco sonolento mas de bom humor, e com todos comentou de um modo casual que era um dia muito bonito. Ninguém estava certo se ele se referia ao estado do tempo. Muitos coincidiam na lembrança de que era uma manhã radiante com uma brisa de mar que chegava através dos bananais, (...). A maioria porém, estava de acordo em que era um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas, e que no instante da desgraça estava caindo uma chuvinha miúda (...). (GARCÍA MÁRQUEZ, 2006, p.10).

Esse narrador, ao relembrar o assassinato de seu amigo Santiago Nasar, em seu povoado, reconstrói os relatos das testemunhas que presenciaram o crime, revelando para o leitor, de forma irônica, como são incompatíveis suas descrições. Desse modo, busca convencer o leitor implícito de que se tratava de uma “morte” anunciada, contudo, ninguém fez nada para impedi-la. Justifica-se, então, o título do livro. O narrador também pode apresentar seu discurso, em terceira pessoa, mantendo assim certo afastamento da história que relata. A esse tipo de narrador, Aguiar (1993) classifica como heterodiegético. Vejamos a seguir um conto mínimo, cuja focalização em terceira pessoa, de seu narrador observador, revela afastamento do enunciador de seu relato:


25 Noturno Maria Lúcia Simões O violino, com o fino anzol da música, fisgou a lua no fundo do rio, e a manteve suspensa por alguns compassos. Na primeira pausa, a lua, sobre a água, derramou-se em prata. (Fonte: SIMÕES, 1996, p.14).

Pode-se notar que, embora se trate de um texto narrativo, o conto apropria-se de elementos estilísticos que o aproximam da poesia. O violino convertido, pela prosopopeia em personagem, realiza uma performance metafórica, a de transformar sua música em um “fino anzol” e com ele “fisgar a lua”. Assim, esse instrumento manipula a lua, a seduz com a sua música. O astro, por sua vez, não está no céu, mas “no fundo do rio”. Trata-se, portanto, do reflexo da lua que, uma vez fisgado, apaixonado pela música do violino, e suspenso por “alguns compassos”, entrega-se ao congraçamento musical e “derrama-se em prata”, conotando que obtém prazer pela consumação de um ato amoroso. Mesmo atuando como observador, com focalização em terceira pessoa, o narrador pode conduzir o olhar do leitor, permitindo-lhe que, pela onisciência e onipresença, saiba tudo o que acontece na narrativa, inclusive os pensamentos mais íntimos das personagens. Contudo, esse narrador-observador, mesmo quando desprovido de onisciência, pode conduzir as opiniões do leitor, levá-lo a sentir simpatia por determinada personagem ou mesmo a se identificar com ela. O narrador determina o papel do leitor na composição literária. De acordo com Regina Zilberman (1984), uma obra, por ser uma unidade concomitantemente composicional e dialógica, é portadora de um fenômeno literário, que circula do plano ficcional ao ideológico a partir de sua estrutura, independentemente da sociedade que o produz ou o reflete. Justifica-se, então, a necessidade de compreensão da construção do narrador, pois este, enquanto ente ficcional, é capaz de exercer um poder sobre a atuação da personagem e das disposições do leitor implícito. Este fato revela o trânsito do âmbito ficcional ao social – da personagem ao leitor implícito –, que embora seja uma projeção do texto, ocupa um lugar que vem a ser preenchido por um indivíduo real: o leitor empírico. Portanto, da manipulação do leitor implícito passa-se ao controle sobre um ser humano – o leitor empírico.


26 Graças à habilidade do narrador em contar uma história, uma obra pode ser aberta à operação de leitura e deciframento, possibilitando interpretações diversas, correspondentes à polifonia de Bakhtin, ou ser fechada a essas operações. Neste caso, o narrador assume um papel centralizador, introduzindo comentários ou manipulando as emoções do destinatário na valorização de uma ideia dominante ou de um herói com o qual se identifica a temática do livro ou cuja trajetória surge como modelo para o comportamento humano. Obras que apresentam esse tipo de narrador autoritário aproximam-se dos romances monológicos descritos por Bakhtin (2002). Nesses romances, as personagens são veículos de posições ideológicas. Elas exprimem uma única visão de mundo, uma ideologia dominante, a do próprio autor da obra. Embora nesses romances muitos personagens falem, todos eles exprimem a voz do autor. Observe um exemplo desse discurso monológico no trecho a seguir, retirado da obra A ilha perdida, de Maria José Dupré: ...Não falavam; cada um pensava com tristeza no erro que haviam cometido. Nunca deviam ter feito isso às escondidas do padrinho. Nunca. Que estariam pensando ele, madrinha e os primos naquele instante? Quem sabe estariam aflitos, desesperados mesmo, ao ver que os meninos não voltavam e já era noite fechada? Que arrependimento! (DUPRÉ, 1978, p.28).

Nos romances polifônicos, por outro lado, cada personagem funciona como um ser autônomo, exprimindo sua própria visão de mundo, não importando se ela coincide ou não com a ideologia própria do autor da obra. Assim, a polifonia ocorre quando cada personagem fala com a sua própria voz, expressando seu pensamento particular. Nesse tipo de romance, o discurso do narrador é relativizado, não se apresenta como superior ao das demais personagens. Pode-se observar como exemplo desse narrador inseguro o abade Adson, da obra O nome da rosa, de Umberto Eco: “Está fazendo frio no scriptorium, dói-me o polegar; deixo esta escritura, não sei para quem, não sei mais sobre o quê: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenenius.” (ECO, 1983, p. 562). Como se vê, o narrador revela-se frustrado com o próprio texto que produziu. Por consequência, o leitor decepciona-se com esse narrador, pois, pela leitura, depara-se com um enunciador que, ao término do relato, sabe menos a respeito dos fatos narrados do que quando começou a narrá-los. A decepção do leitor para com esse narrador-personagem é desejada pela narrativa, pois assim pode-se revelar, por meio do relato, que não há discursos autoritários,


27 definitivos, únicos, dotados de verdades, de sabedorias ou do poder de síntese, o que há é a problematização da voz que recorda de fatos vividos, mas a essas recordações acresce outras narrativas que ouviu, portanto, outros discursos. A voz na narrativa, que nega o seu receptor: “não sei para quem”, nega a si mesma como emissária de uma mensagem, de uma história. Ainda, ao apresentar um narrador que tem seu relato permeado por muitos outros, o romance ensina que os discursos são compostos por inúmeras vozes, são polifônicos, não pertencem a um “eu”. Nesse processo discursivo de negação e afirmação na enunciação do narrador, instaura-se o jogo da preterição, pois ao negar seu discurso, o narrador já o executou, se ele não domina e nem compreende os processos de comunicação, menos ainda os fatos que relatou, cabe ao leitor relativizá-los e eleger seus próprios caminhos interpretativos, indagando-se também quanto ao seu papel em relação à leitura de um texto. O leitor precisa indagar-se também acerca da história deste romance de Umberto Eco, constituída por problemáticas e míticas figuras históricas, por sua vez contextualizadas em um momento histórico que, embora reconhecível, não coincide ideologicamente com o da história oficial, antes a subverte, por meio de distorções conscientes e anacronismos: “Se esta abadia fosse um speculum mundi, você teria a resposta.” [disse Guilherme] “E não é?” perguntei. [Adson] “Para que ela seja espelho do mundo é preciso que o mundo tenha uma forma”, concluiu Guilherme, que era demasiado filósofo para minha mente adolescente. (ECO, 1983, p.146).

Pode-se observar que o discurso do narrador, de O nome da rosa, não se constrói como o todo de uma consciência que anuncia, em forma objetificada, outra consciência, mas como o todo da interação entre várias consciências, entre as quais nenhuma se converteu definitivamente em objeto da outra, quando há na representação da língua, o plurilinguismo, o discurso não homogêneo. Este discurso deixa transparecer no texto o confronto de visões de mundo ou ideologias, o inacabamento da personalidade da personagem, a relativização do papel do narrador pela interferência de outros discursos tão poderosos quanto o seu.


28 3.5 Atividades de leitura e interpretação de textos I - Leia atentamente o texto a seguir e responda às seguintes questões:

Trem Fantasma8 Moacyr Scliar Afinal se confirmou: era leucemia mesmo, a doença de Matias, e a mãe dele mandou me chamar. Chorando, disse-me que o maior desejo de Matias sempre fora de passear de Trem Fantasma; ela queria satisfazê-lo agora, e contava comigo. Matias tinha nove anos. Eu, dez. Cocei a cabeça. Não se poderia levá-lo ao parque onde funcionava o Trem Fantasma. Teríamos de fazer uma improvisação na própria casa, um antigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas de veludo cor de vinho. A mãe de Matias deu-me dinheiro, fui ao parque e andei de Trem Fantasma. Várias vezes. E escrevi tudo num papel, tal como escrevo agora. Fiz Também um esquema. De posse destes dados, organizamos o Trem Fantasma. A sessão teve lugar a três de julho de 1956, às vinte e uma horas. O minuano assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa. Acordamos o Matias. Tremia de frio. A mãe o envolveu em cobertores. Com todo o cuidado colocamo-lo num carrinho de bebê. Cabia bem tão mirrado estava. Levei-o até o vestíbulo da entrada e ali ficamos, sobre o piso de mármore, à espera. As luzes se apagaram. Era o sinal. Empurrando o carrinho, precipiteime a toda velocidade pelo longo corredor. A porta do salão se abriu, entrei por ela. Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquilagem vermelha. Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro, uma coruja empalhada. Invocava deuses malignos). Dei duas voltas pelo salão, perseguido pela mulher. Matias gritava de susto e de prazer. Voltei ao corredor. Outra porta se abriu – a do banheiro, um velho banheiro com vasos de samambaia e torneiras de bronze polido. Suspenso do chuveiro estava o pai de Matias enforcado, língua de fora, rosto arroxeado, Saindo dali entrei num quarto de dormir onde estava o irmão de Matias, como esqueleto (sobre o tórax magro, costelas pintadas com tintas fosforescentes; nas mãos, uma corrente enferrujada). Já o gabinete nos revelou as duas irmãs de Matias, apunhaladas (facas enterradas nos peitos; rostos lambuzados de sangue de galinha. Uma estertorava). Assim era o Trem Fantasma, em 1956. Matias estava exausto. O irmão tirou-o do carrinho e, com todo cuidado, colocou-o na cama. Os pais choravam baixinho. A mãe quis me dar dinheiro. Não aceitei. Corri para casa. Matias morreu algumas semanas depois. Não me lembro de ter andado de Trem Fantasma deste então.

a) quais são os elementos da narrativa e como se definem: personagens (planas ou redondas), espaço, tempo (cronológico ou psicológico), narrador (observador ou personagem), focalização (em 1ª ou 3ª pessoa). 8

(Fonte: ZILBERMAN, 2003, p.85-6).


29 b) trata-se de um texto monológico ou polifônico? Por quê? Sugestões de filmes:  Forrest Gump: o contador de histórias. Sinopse: O protagonista que dá título ao filme relata suas experiências de infância e juventude. Considerado problemático, pois com capacidade intelectual inferior a dos demais indivíduos, Forrest vivencia experiências maravilhosas e dramáticas, sobrevivendo a todas elas, justamente porque dotado de sensibilidade e autenticidade. Direção: Robert Zemeckis Título original: Forrest Gump (1994).  Sociedade dos poetas mortos. Sinopse: Um professor de literatura, ao apresentar uma metodologia diferenciada, que convoca seus alunos à reflexão acerca da produção cultural e da realidade social em que vivem, entra em conflito, na década de 1950, com os princípios da tradicional instituição de ensino – Welton Academy – em que trabalha. O conflito é agravado quando o professor revela aos alunos que existiu naquela escola uma "Sociedade dos Poetas Mortos". Direção: Peter Weir Título original: Dead Poets Society (1989).

Sugestões de leituras: 

Os cem melhores contos brasileiros do século – Ítalo Moriconi (org.).

Leituras de escritor – Moacyr Scliar.

O olho de vidro do meu avô – Bartolomeu Campos Queirós.


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Referências AGUIAR E SILVA, Manuel de. Teoria da literatura. 8.ed., 7.reimpr. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 1990. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Quadrilha”. Disponível em: <http://www.pensador.info/frase/Mzk0MDY/>. Acesso em: 10 out. 2009. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1979. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BARROS, Diana Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakthin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, vol. 1. CANDIDO, Antonio; ROSENFIELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. D’ONOFRIO, Salvatore. Pequena Enciclopédia da Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p.401. DUPRÉ, Maria José. A ilha perdida. Ilustr. Edmundo Rodrigues. 11.ed. São Paulo: Ática, 1978. ECO, Umberto. O nome da rosa. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Ereitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. ______. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. Construindo histórias de leitura: a leitura dialógica enquanto elemento de articulação no interior de uma biblioteca vivida. Assis, 2009. 456p. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. FORSTER, Edward M. Aspectos do romance. Trad. Maria Helena Martins. 2.ed. São Paulo: Globo, 1998. LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Ilustr. Opazo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. s/n. MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Uns braços. In: Literatura Brasileira em Quadrinhos. Adapt., roteiro e desenhos de Francisco Vilachã. São Paulo: Ed. Escala Educacional, 2010. ______. Missa do galo. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.33-41. MARCUSCHI, Luis Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. ______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Anna Rachel Machado; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p.19-38. MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Crônica de uma morte anunciada. Trad. Remy Gorga Filho. São Paulo: Record, 2006. PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. Rio de Janeiro: Presença, 1985. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 74.ed. Rio de Janeiro: Record,1998.


31 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SABINO, Fernando. O homem nu. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.249-251. SIMÕES, Maria Lúcia. Noturno. In: ______. Contos Contidos. Belo Horizonte - MG: Editora RHJ, 1996, p.14. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. TCHEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho. In: SCLIAR, Moacyr. Leituras de escritor. Ilustr. Fefê Talavera. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Comboio de Corda, 2008, p.9-30. VERÍSSIMO, Érico. As mãos de meu filho. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.131-9. ZILBERMAN, Regina (seleção). Os melhores contos de Moacyr Scliar. 6.ed. São Paulo: Global, 2003, p.85-6. ______. A literatura infantil e o leitor. In: ______; MAGALHÃES, Ligia Cadermatori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2.ed. São Paulo: Ática, 1984, p.61-134.


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GĂŞneros provenientes da oralidade: conto popular, conto de fadas e fĂĄbula

Segundo capĂ­tulo


33 1. Introdução Outrora e hoje, pela noite de trabalho ou à espera da hora do sono, contar e ouvir estória é a suprema ajuda para a compridão do tempo. (CÂMARA CASCUDO, 1984, p.171)

Este capítulo tem por objetivo dar prosseguimento aos aspectos teóricos relacionados à narrativa ficcional. A narrativa provém da arte de contar histórias que remonta à oralidade, por isso associada à transmissão de experiências mantidas pela tradição. O teórico francês André Jolles, em sua obra Formas Simples (1976), estabelece uma distinção conceitual entre formas simples e formas cultas de narratividade. Para Jolles, as primeiras são criações coletivas ligadas às raízes culturais de um povo, geralmente transmitidas de forma oral não apresentam um autor conhecido. São elas: o mito, o conto popular, o provérbio, o causo, a anedota e tantos outros gêneros em meio à heterogeneidade dos textos com que nos defrontamos. As formas cultas são criações individuais, obras de arte consagradas que revelam preocupação estética como a novela, o romance, o conto e a crônica. Ouvimos histórias desde a mais tenra infância, justamente a narrativa oral possibilitou o surgimento de vários gêneros. Por meio da voz, os seres humanos descobriram que podiam manifestar sua imaginação, criando situações, pessoas, lugares, sonhos, enfim histórias que prendiam e encantavam a quem as ouvia. Estas, por sua vez, quando universais, foram registradas por escrito pela literatura, dando origem aos contos de fadas, aos romances, às lendas, às peças teatrais etc. 1.1 Atividades (para serem feitas oralmente) O professor narrará uma história bem curta e cômica. Cada aluno que a recontar deverá acrescentar um ponto. Ao término do relato, observam como as pessoas são criativas.


34 2. O diálogo entre os campos culturais A dialogia entre os campos culturais permitiu que as histórias criadas pelo imaginário também fossem representadas nas artes pictóricas, por artistas diversos, como no quadro a seguir:

Figura 1 – Combate de centauros, de Arnold Böcklin9

A dialogia também está presente nas produções visuais, como cinema, televisão, histórias em quadrinhos, jogos eletrônicos, inclusive, jogos de interpretação de personagens, denominados RPG (Role-playing game). O RPG é um jogo em que os participantes assumem os papéis de personagens, criando narrativas de forma colaborativa. Inúmeros jogos de RPG surgiram inspirados em narrativas ficcionais, um exemplo, são os provenientes da série Harry Potter, da escritora J. K. Rowling. Veja a seguir um exemplo de adaptação do conto de fadas A Bela e a Fera, dos Irmãos Grimm, feita pela indústria Walt Disney, em 1991, sob direção de Gary Trousdale e Kirk Wise, para o cinema:

9

(1873 apud O LIVRO DA ARTE, 1996, p.49).


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Figura 2 – Beauty and the Beast 10

Opta-se neste capítulo pela abordagem dos seguintes gêneros provenientes da oralidade: o conto popular, o conto de fadas e a fábula. Em capítulo posterior, objetivase apresentar os gêneros provenientes da tradição escrita: o conto, a crônica e o romance, em suas diferentes modalidades. O conhecimento dos diferentes gêneros literários permite ao leitor a possibilidade de assimilar um conhecimento que sempre lhe pertenceu, pois constitui sua herança cultural. Cada gênero carrega consigo aspectos culturais do conhecimento humano, logo conhecer gêneros diversos e refletir sobre eles possibilita a ampliação dos horizontes de expectativa do leitor. Justifica-se a escolha pelos gêneros provenientes da oralidade, uma vez que a excessiva exposição e visibilidade de certas manifestações culturais, no mercado de bens simbólicos e em mídias das mais diferentes inserções, não contemplam as culturas locais, regionais e populares. Justamente por isso, faz-se necessário o desenvolvimento 10

(In: ADORO CINEMA, 2009).


36 de um trabalho que contemple diferentes discursos culturais presentes em diversos suportes. A percepção da manifestação cultural como uma prática social que remete a outros textos e a outras leituras, explicita a dialogia entre as produções de povos diversos. O diálogo entre obras e manifestações culturais, uma vez detectado pelo sujeito e manifesto, transforma o espaço de debates e discussões em local de expressões de interpretações diversas. Dessa forma, os indivíduos, por meio de seus relatos, podem perceber que cada sujeito possui, a respeito de uma manifestação cultural ou de um texto, uma interpretação diversa e esta merece ser considerada, pois advém de seu referencial artístico e cultural, enfim, de suas experiências individuais. A literatura oral proveniente do folclore raramente comunica-se com a erudita. A obra de Gil Vicente, entretanto, retrata a síntese entre ambas. Para Câmara Cascudo (1984), a matéria do conto popular é folclórica, assim como a obra vicentina que possui a mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa, atrevida, crédula, inimiga do parasitismo fradesco e aristocrático, da ignorância bestial, da luxúria e simonia (venda de favores divinos, absolvições etc.) vulgares. No Brasil, essa literatura popular aparece em sua versão impressa sob a forma de cordel. A literatura oral portuguesa que chega ao Brasil com a colonização traz em seu bojo as histórias populares de procedências diversas (francês, italiano, castelhano etc.), amalgamadas, fundidas em um processo inconsciente e poderoso de aculturação com a tradição, o imaginário do autor, as leituras místicas e as recordações de elementos, atos, episódios, evocados nas casas senhoriais e divulgados com ampliações, e deturpações, pela criadagem. O português trouxe na memória o lobisomem, a moura encantada, as três cidras do amor, bruxas, fadas, assombrações, gigantes, príncipes, castelos, tesouros enterrados, oração-forte etc., e os manifestou sob a forma de histórias narrativas (CÂMARA CASCUDO, 1984). 2.1 Atividades (para serem feitas oralmente) 1) Solicitar dos alunos que relatem um conto popular e expliquem como souberam de sua existência, ou seja, se foi por meio de relatos de amigos ou de histórias ouvidas na infância etc.


37 2) Após o relato, verificar, na sala de aula, se outro aluno conhece a mesma história com variações diversas. Se a resposta for afirmativa, pedir para que ele relate quais são as variações. 2.2. O caminho da dialogia As interpretações de diversos sujeitos acerca de manifestações culturais são intelectualmente provocativas, pois permitem que vários pontos de vista sejam utilizados para examinar pensamentos, crenças e ações. A eleição pelo caminho da dialogia devese também à hipótese de que uma estratégia para incentivar a leitura plurissignificativa de manifestações diversas reside no diálogo entre produções de um mesmo grupo ou autor, ou de diferentes povos ou autores, que se instaura no interior de cada texto e o define. A maior parte das críticas às produções regionais e populares desconsidera a complexidade

da

produção

de

bens

culturais

nas

sociedades

tecnológicas

contemporâneas e seus modos de circulação. Há uma paradoxal relação que se estabelece na sociedade contemporânea entre produção cultural e receptor. A crítica deflagrada é emblemática da cisão que, ainda hoje, afeta o universo da cultura: cultura erudita/cultura de massa; alta cultura/baixa cultura; arte/indústria cultural etc. Essas dicotomias presentes no debate cultural revelam uma posição maniqueísta que divide a produção cultural, que circula sob a rubrica dos diferentes gêneros e subgêneros literários, entre a legítima e prestigiada, e o “resto”. (CECCANTINI, 2005). Partindo do pressuposto de que a cultura em todas as suas manifestações sociais, sobretudo em suas relações dialógicas, merece ser estudada e conhecida, busca-se, neste capítulo, trabalhar com o conceito de intertextualidade. Esse conceito interessa neste texto, uma vez que, para estabelecer uma comunicação com o receptor, um texto mobiliza sua memória, seu repertório cultural. Esse processo ocorre, porque a intertextualidade substitui o relacionamento entre autor e texto, pelo entre receptor e texto, situando o locus do sentido textual dentro da história do próprio discurso (HUTCHEON, 1991, p.166). Parte-se também do pressuposto de que a comunicação ocorre quando há interpretação, interação. Para que a interação entre texto e receptor, por sua vez, resulte em interpretação, faz-se necessário que o receptor projete a expectativa e a memória uma sobre a outra. Para Iser (1996), o papel da leitura


38 é o de promover sínteses que constituirão correlatos que, por sua vez, impulsionarão expectativas. Por meio desse processo, o receptor atualiza e modifica o objeto, desenvolvendo novas expectativas. Desse modo, alternando “[...] o ponto de vista de uma perspectiva de apresentação para outra, o texto se divide na estrutura de protensão e retenção [...]”, ou seja, antecipação e retomada. (ISER, 1999, p.55). Entende-se neste texto, gênero, em consonância com Bernard Schneuwly (2004), como um instrumento semiótico, uma forma de linguagem prescritiva que permite a produção e a compreensão de textos de forma concomitante. Conforme Bakhtin (apud SCHNEUWLY, 2004), pertencem aos gêneros primários, os textos que se constituem em circunstâncias de comunicação verbal espontânea; e aos gêneros secundários, os que aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa, principalmente, quando referente à produção escrita: artística, científica, sociopolítica. Dessa maneira, embora se apresente neste capítulo gêneros provenientes da oralidade, trabalha-se com sua modalidade impressa, escrita, logo, prioriza-se os gêneros secundários. 3. O conto popular O conto popular a seguir, de Benvenuta de Araújo, foi recolhido por Luís da Câmara Cascudo e, pela sua apropriação por diferentes artistas de campos culturais diversos, pode-se notar que permaneceu no imaginário do público brasileiro.

A menina enterrada viva Benvenuta de Araújo11 Era um dia um viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita. Vizinha ao viúvo residia uma viúva, com outra filha, feia e má. A viúva vivia agradando a menina, dando presentes e bolos de mel. A menina ia simpatizando com a viúva, embora não se esquecesse de sua defunta mãe, que a acariciava e penteava carinhosamente. A viúva tanto adulou a menina que esta acabou pedindo que seu pai casasse com ela. – Case com ela, papai. Ela é muito boa e me dá mel! – Agora ela lhe dá mel, minha filha, amanhã lhe dará fel! – respondia o viúvo. A menina insistiu e o pai, para satisfazê-la, casou com a vizinha. Obrigado por seus negócios, o homem viajava muito e a madrasta aproveitou essas ausências para mostrar o que era. Ficou arrebatada, muito bruta e 11

3).

(ARAÚJO, Benvenuta de – Natal – Rio Grande do Norte – Apud CÂMARA CASCUDO, 2001, p.302-


39 malvada, tratando a menina como se fosse a um cachorro. Dava muito pouco de comer e a fazia dormir no chão em cima de uma esteira velha. Depois mandou que a menina se encarregasse dos trabalhos mais pesados da casa. Quando não havia coisa alguma que fazer, a madrasta não deixava a menina brincar. Mandava que fosse vigiar um pé de figos que estava carregadinho, para os passarinhos não bicarem as frutas. A pobre da menina passava horas e horas guardando os figos e gritando – chô! passarinho!, quando algum voava por perto. Uma tarde estava tão cansada que adormeceu e quando acordou os passarinhos tinham bicado todos os figos. A madrasta veio ver e ficou doida de raiva. Achou que aquilo era um crime e, no ímpeto do gênio, matou a menina e enterrou-a no fundo do quintal. Quando o pai voltou da viagem a madrasta disse que a menina fugira da casa e andava pelo mundo, sem juízo. O pai ficou muito triste. Em cima da sepultura da órfã nasceu um capinzal bonito. O dono da casa mandou que o empregado fosse cortar o capim. O capineiro foi pela manhã e, quando começou a cortar o capim, saiu uma voz do chão, cantando: Capineiro de meu pai! Não me corte os cabelos... Minha mãe me penteou, Minha madrasta me enterrou, Pelo figo da figueira Que o passarinho picou..., Chô! passarinho! O capineiro deu uma carreira, assombrado, e foi contar o que ouvira. O pai veio logo e ouviu as vozes cantando aquela cantiga tocante. Cavou a terra e encontrou uma laje. Por baixo estava vivinha, a menina. O pai, chorando de alegria, abraçou-a e levou-a para casa. Quando a madrasta avistou de longe a enteada, saiu pela porta afora, e nunca mais deu notícias se era viva ou morta. O pai ficou vivendo muito bem com sua filhinha.

Em nota, Câmara Cascudo afirma que se trata da versão brasileira do conto Figuinho da figueira que, muito popular em Portugal, foi recolhido por Theófilo Braga, em Portugal no Algarve nº 27, com o seguinte versinho: Cantiga da menina enterrada viva12 Não me arranquem os meus cabelos, Que minha mãe os criou, Minha madrasta mos enterrou, Pelo figo da figueira Que o milhano levou

A presença da tradição amalgamada com a oralidade pode ser notada no texto, por meio das expressões utilizadas para o registro da temporalidade: “Era um dia um 12

(Apud CÂMARA CASCUDO, 2001, p.303).


40 viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita.” Há uma fusão entre o clássico “era uma vez” dos contos de fadas e a fala conversacional do contador: “era um dia...”. A presença da oralidade aumenta a intenção comunicativa com o leitor que se transforma em interlocutor imediato do narrador-contador. A esse interlocutor, os fatos são apresentados como se desenvolvessem diante de seus olhos, por meio de advérbios e verbos no gerúndio: “A menina ia simpatizando com a viúva, embora não se esquecesse de sua defunta mãe, que a acariciava e penteava carinhosamente. A viúva tanto adulou a menina que esta acabou pedindo que seu pai casasse com ela”; “Por baixo estava vivinha, a menina”. Ao mesmo tempo, pode-se observar o emprego de construções frasais cuja colocação pronominal, no caso enclítica, pertence ao discurso formal dito culto: “O pai, chorando de alegria, abraçou-a e levou-a para casa.” Justamente, esse amálgama de registros (informal e formal, culto e coloquial), de diálogos e narração ideológica mimetiza o diálogo entre o contador da história e seu ouvinte: o narrador e o leitor. Pode-se notar, também, o emprego de expressões próprias da oralidade na adjetivação ideológica e nas comparações que revelam a simpatia do narrador com a protagonista e sua antipatia pela madrasta, no emprego dos diminutivos, nas gírias e nos regionalismos: “A viúva tanto adulou a menina [...]”; “Mandava que fosse vigiar um pé de figos que estava carregadinho, [...]”; “Ficou arrebatada [a madrasta], muito bruta e malvada, tratando a menina como se fosse a um cachorro”; “A pobre da menina [...]”; “O capineiro deu uma carreira, assombrado, [...]”. No ano de 2004, a Rede Globo de televisão lançou a minissérie Hoje é dia de Maria, dirigida por Luís Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu, a partir da obra homônima de Carlos Alberto Soffredini, que estabeleceu dialogia com o conto A menina enterrada viva:


41

Figura 3 – Hoje é Dia de Maria13

A intertextualidade se estabelece em um episódio, no qual a jovem protagonista é incumbida pela madrasta de afastar passarinhos que bicam os frutos de uma árvore. Enquanto realiza essa performance, ela entoa a cantilena Xô! Passarinho no episódio 4, do capítulo 1 (PRIMEIRA JORNADA – disco1). Essa cena difere do conto, pois a menina não é enterrada como castigo por não ter cuidado dos figos. Seu castigo por ter dormido de exaustão enquanto espantava os passarinhos é físico, advém da agressão da madrasta. Diante dessa agressão, Maria foge e a madrasta retorna para a casa, onde realiza a ação maldosa de apagar intencionalmente a chama de uma vela acesa ao pé da imagem da Imaculada Conceição. Essa vela contém em sua chama a alma da menina. Uma vez apagada essa chama, a protagonista desfalece e seu corpo é recoberto pela ramagem de um capim muito verde. Nesse caso, o elemento que mais se diversifica da tradição é uma borboleta que pousa no peito da menina para guardar sua vida enquanto ela está enterrada, devolvendo-a logo que é retirada da terra. Pode-se observar, então, que a cena, embora introduza um auxiliar religioso – Imaculada Conceição – estabelece dialogia com o conto de Benvenuta de Araújo, recolhido por Luís da Câmara Cascudo. Essa dialogia pode ser observada na semelhança 13

(In: GOOGLE IMAGENS, 2009).


42 entre as protagonistas, a missão que lhes foi conferida e a forma como foram encobertas pela natureza até o momento da revelação da causa de sua morte e posterior retorno à vida. Em Hoje é dia de Maria, o pai da protagonista, no retorno de uma longa viagem, estranha a ausência da filha e diante da mentira da madrasta de que a menina abandonara o lar, argumento também usado pela madrasta do conto de Araújo, sai para o quintal e depara-se com uma borboleta amarela que, sob a forma de um arauto, o conduz até o local em que Maria está encoberta pelo capinzal. O pai a resgata e descobre toda farsa da madrasta. Na adaptação do conto A menina enterrada viva para a televisão, mantém-se, então, o caráter de denúncia da injustiça da madrasta com a protagonista. O pai de Maria, ao se aproximar do capinzal, ouve: Meu querido meu pai não me cortes meu cabelo Minha mãe me penteou Minha madrasta me enterrou Pelo figo da figueira que o passarinho bicou

Seguido pela fala: Xô, xô, passarinho Aí não toques o biquinho Vai-te embora pro teu ninho Xô, xô, passarinho

Na minissérie, a natureza é denunciante como no conto, todavia, não há um desfecho feliz para Maria que opta por fugir da casa paterna e “ganhar o mundo”. 3.1 As classificações do conto popular Embora inúmeros estudiosos evitem classificar os contos populares, devido à riqueza que incorporam e à tendência à fusão de inúmeros elementos, neste texto optamos por adotar a sistematização de Câmara Cascudo (2001; 1984), em doze classificações. Justifica-se esta opção pelo anseio de apresentar parâmetros que facilitem para o leitor o reconhecimento de motivos que são constantes em alguns contos, respectivamente de:


43 a) encantamento: correspondem ao Tales of magic, contos de fadas em que se observa auxiliares mágicos. O elemento sobrenatural, os dons, varinhas de condão, virtudes além dos limites humanos e naturais, encantamentos são elementos que os caracterizam. Exemplos: “A princesa de Bambuluá”, “O Chapelinho Vermelho”, “A Moura Torta”, “A Bela e a Fera” etc.; b) exemplo: histórias exemplares. Com enredo de fácil efabulação, o elemento natural fornece o conselho (e não os Santos, o Divino) para se evitar ou defender-se, a fim de se obter sucesso em uma empreitada, porteger a vida, a honra ou a tranquilidade social. Exemplos: “Joãozinho e Maria”, “Os Quatro Ladrões” etc.; c) animais: conhecidos também como fábulas, nas quais os animais representam seres humanos. Sua finalidade é educacional, contudo diferem dos imperativos cristãos e legais, pois privilegiam a esperteza, a sabedoria arteira, a habilidade dos mais fracos e humildes sobre os arrogantes e dominadores. Exemplos: “O Gato e a Raposa”, “O Macaco e a Negrinha de Cera” etc.; d) facécias: prevalecem as anedotas e piadas jocosas. Caracterizam-se pela constante psicológica da imprevisibilidade na palavra, na atitude de uma personagem e no desfecho. Trata-se, às vezes, de uma representação de costumes, clandestina, anônima, mas de espírito coletivo diante de uma situação opressora ou superior. Exemplos: “O menino e o Burrinho”, “A Roupa do Rei”, “A Gulosa Disfarçada”, “O cego e o dinheiro enterrado” etc.; e) religiosos: em que há intervenção divina. Aparecem anjos, santos, Nossa Senhora, entre outros elementos do imaginário cristão. Sua feição é moral, denunciam vestígios de ritual, de respeito ao emprego do sagrado. Exemplos: “Quem Tudo Quer, Tudo Perde”, “A Mãe de São Pedro” etc.; f) etiológicos: inventados para explicar a razão e o porquê do aspecto de um determinado ente natural. Por exemplo, o porquê do casco da tartaruga ter aspecto de “remendado”, o porquê de girafas terem pescoços longos etc. Assim, em geral, espécies animais ou vegetais peculiares costumam integrar esses contos que os justificam de forma lógica, imprevista e


44 curiosa. Exemplos: “A Causa das Secas no Ceará”, “A Festa no Céu”, “O urubu e o sapo” etc.; g) demônio logrado: o diabo intervém, mas perde a aposta e é derrotado. Esse personagem aparece também em contos populares portugueses, espanhóis, africanos e árabes. Contudo, sempre é logrado. No nordeste do Brasil, quando se atreve a cantar em desafios, perde logo para velhos cantadores astutos porque estes incluem, na cantoria, o Ofício de Nossa Senhora ou as Forças do Credo. Exemplos: “O Afilhado do Diabo”, “As Perguntas de Dom Lobo”, “O diabo na garrafa” etc.; h) adivinhação: a vitória de um determinado herói depende da resolução de um enigma, adivinhação etc. Provém do hábito de se apresentar enigmas que, durante as horas de convívio social, serão solucionados. Exemplos: “O Filho Feito sem Pecado”, “A Princesa Adivinhona” etc.; i) natureza denunciante: um ato criminoso é revelado com a ajuda de elementos naturais: ramos, pedras, ossos, flores, frutas, animais etc. Esses, geralmente, são transformados em instrumentos que denunciam o crime. “As Testemunhas de Valdivino”, “A Menina Enterrada Viva”; j) acumulativos: seus episódios são sucessivamente articulados, marcados pela retomada e acréscimo de um dado novo. Trata-se de histórias sem fim, trava-línguas em que determinados personagens realizam a mesma ação de forma contínua, como atravessar um rio ou uma ponte (CÂMARA CASCUDO, 1984). Exemplos: “O menino e a Avó Gulosa”, “O Macaco Perdeu a Banana”; “A formiga e a neve” etc.; k) ciclo da morte: um homem procura enganar a Morte, utilizando-se de artimanhas e astúcia, contudo, ela vence. A Morte é representada como fiel ao pacto, mas insensível às argumentações das personagens bem como às suas ardilosas demoras. Exemplo: “O Compadre da Morte”; “A visita da comadre morte” etc.; l)

tradição: retratam as tradições do local em que são constantemente narrados, seus motivos são essenciais, assim como seus ambientes, pormenores típicos, situações psicológicas. Exemplo: “A Música dos Chifres Ocos e Perfurados”.


45 Conforme Plínio Rogenes França Dias (2009), a tradição literária dos contos populares, quando trabalhada de forma crítica, confere maior intencionalidade à fantasia, expondo-a sem limitações. No conto A menina enterrada viva e na minissérie Hoje é dia de Maria, a natureza denuncia a crueldade da mulher adulta para com a criança, no caso, a madrasta. Justifica-se, conforme Câmara Cascudo, a classificação como de natureza denunciante. A tradição pode apropriar-se de uma imagem com objetivo psicológico de remeter a um rito de passagem, como o enterro da menina, que ocorre tanto no conto de Araújo quanto na minissérie, seguido, posteriormente, de seu renascimento, ou como explicação do dado fantástico. Também pode haver um aproveitamento do imaginário cristão, por meio de elementos religiosos, como ocorre em Hoje é dia de Maria, em que a ligação metafísica da vida da menina se estabelece com a borboleta e com a chama da vela acesa para a Imaculada Conceição. Na literatura musical brasileira verifica-se o uso da canção por Heitor VillaLobos (1887-1959) - Xô, xô, passarinho que confere título à Ciranda nº7, uma das 16 peças da série de Cirandas para piano (1926), sendo encontrada na coletânea Guia prático (1932) uma canção (nº137) denominada Xô! Passarinho: Xô! Passarinho Oh! Muleque de meu pai Não me corte os meus cabelos Que meu pai me penteava Minha madrasta os enterrou Pelos figos da figueira Que o passarinho comeu Xô! Passarinho

Como se pode observar, o conto popular atua como motivação para manifestações culturais do pesquisador, intérprete ou musicólogo que voltam seu trabalho para a tradição popular. 3.2 A estrutura do conto popular Justifica-se, conforme Irene Machado (1994), o conhecimento das características que compõem um conto popular, pois auxiliam o leitor em sua interpretação e facultamlhe a possibilidade de criação de uma narrativa literária. A autora estrutura a fórmula desse tipo de conto em:


46 a) Situação inicial: consiste na apresentação das personagens, do local onde vivem ou residem, e como vivem. b) Motivo: elemento primordial do conto popular que o distingue de outras narrativas. O motivo se refere ao que provocou o conflito e demais problemas que aparecem na história. c) Motivações: em torno do motivo central desenvolvem-se situações breves, nas quais aparecem as razões e os objetivos que conduzem as personagens a realizarem determinadas performances. d) Tempo: o conto popular está marcado pela atemporalidade, manifesta na frase “Era uma vez”. Assim, pelo discurso do narrador-observador podese notar que os acontecimentos relatados ocorreram em momento anterior ao tempo da enunciação. Contudo, esse tempo não pode ser determinado porque pertence ao do imaginário. e) Resolução dos conflitos ou conclusão: prevalece no texto narrativo popular o desfecho com a resolução dos conflitos e retorno a uma situação de equilíbrio ou normalidade. No conto A menina enterrada viva pode-se observar a seguinte estrutura: a) Situação inicial: Era um dia um viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita. Vizinha ao viúvo residia uma viúva, com outra filha, feia e má. A viúva vivia agradando a menina, dando presentes e bolos de mel. A menina ia simpatizando com a viúva, embora não se esquecesse de sua defunta mãe, que a acariciava e penteava carinhosamente. A viúva tanto adulou a menina que esta acabou pedindo que seu pai casasse com ela.

b) Motivo: A menina insistiu e o pai, para satisfazê-la, casou com a vizinha.

c) Motivações: Obrigado por seus negócios, o homem viajava muito e a madrasta aproveitou essas ausências para mostrar o que era. Ficou arrebatada, muito bruta e malvada, tratando a menina como se fosse a um cachorro. Dava muito pouco de comer e a fazia dormir no chão em cima de uma esteira velha. Depois mandou que a menina se encarregasse dos trabalhos mais pesados da casa. Quando não havia coisa alguma que fazer, a madrasta não deixava a menina brincar. Mandava que fosse vigiar um pé de figos que estava carregadinho, para os passarinhos não bicarem as frutas. A pobre da menina passava horas e horas guardando os figos e gritando – chô! passarinho!, quando algum voava por perto. Uma tarde estava tão cansada que adormeceu e quando acordou os passarinhos tinham


47 bicado todos os figos. A madrasta veio ver e ficou doida de raiva. Achou que aquilo era um crime e, no ímpeto do gênio, matou a menina e enterrou-a no fundo do quintal. Quando o pai voltou da viagem a madrasta disse que a menina fugira da casa e andava pelo mundo, sem juízo. O pai ficou muito triste.

d) Tempo: Era um dia um viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita.

e) Resolução dos conflitos ou conclusão: Em cima da sepultura da órfã nasceu um capinzal bonito. O dono da casa mandou que o empregado fosse cortar o capim. O capineiro foi pela manhã e, quando começou a cortar o capim, saiu uma voz do chão, cantando: Capineiro de meu pai! Não me corte os cabelos... Minha mãe me penteou, Minha madrasta me enterrou, Pelo figo da figueira Que o passarinho picou..., Chô! passarinho! O capineiro deu uma carreira, assombrado, e foi contar o que ouvira. O pai veio logo e ouviu as vozes cantando aquela cantiga tocante. Cavou a terra e encontrou uma laje. Por baixo estava vivinha, a menina. O pai, chorando de alegria, abraçou-a e levou-a para casa. Quando a madrasta avistou de longe a enteada, saiu pela porta afora, e nunca mais deu notícias se era viva ou morta. O pai ficou vivendo muito bem com sua filhinha.

3.3 Atividades de leitura e interpretação de textos Leia atentamente o conto abaixo e responda às seguintes questões: O filho feito sem pecado14 Uma moça deu luz a uma criança e a mandou educar longe da cidade em que morara, para que ninguém soubesse jamais de sua culpa. O menino cresceu, fez-se homem e veio visitar a cidade, justamente onde sua mãe vivia. O rapaz viu-a, enamorou-se dele e se casou. Meses depois, descansando o marido no colo da mulher, reparou esta numa medalha de ouro, com a efígie de Nossa Senhora da Conceição, lembrança que pusera ao pescoço do filhinho ao separar-se dele. Sentindo-se criminosa e não querendo prolongar aquela união sacrílega, contou sua história ao esposo que era, sem saber, seu filho. Este partiu imediatamente para longe e não mais enviou notícias. Depois nascia um filho, batizado com o nome de Tomé e a mãe anunciou dar um grande prêmio a quem decifrasse o enigma que apresentaria. Não acertando, pagariam uma multa. A mulher educou seu filho

14

(Luísa Freire – Ceará-Mirim. Rio G. do Norte - Apud CÂMARA CASCUDO, 2001, p.292).


48 como um príncipe, foi muito feliz e morreu rica porque ninguém conseguiu decifrar o enigma que era assim: Meu filho Tomé Que muito me é! É filho do meu filho, Irmão do meu marido. É meu neto e meu cunhado, Filho feito sem pecado!

1. Classifique-o, de acordo com o motivo, a partir das classificações de Câmara Cascudo, como conto de: encantamento, adivinhação, tradição etc. 2. Quais são os elementos próprios da oralidade que permeiam o conto? 3. Divida o texto em: situação inicial, motivo, motivações, tempo e resolução dos conflitos. 4. Esse texto estabelece dialogia com outro texto proveniente da mitologia? Se não conhecer essa dialogia, procure um relato a respeito da personagem Édipo.


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Sugestões de filmes:

 A marvada carne Sinopse: Nhô Quim perambula com seu cachorro pelo interior paulista, sonhando com encontrar uma noiva e comer carne de vaca. Em uma aldeia, ele conhece a jovem Carula que reza todos os dias para Santo Antônio, pedindo que lhe arranje um marido. Para fisgar Quim, ela o engana dizendo que seu pai, Nhô Totó, possui um boi que, no dia do casamento, será o prato principal do banquete. Para casar, todavia, Quim precisa cumprir uma série de provas. Direção: André Klotzel Adaptação da peça teatral: Na Carrera do Divino, de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001).  Lisbela e o prisioneiro Sinopse: Trata-se de uma comédia romântica que narra a divertida história do malandro, aventureiro e conquistador, Leléu, e da romântica jovem, Lisbela, que adora ver filmes americanos e sonha com os heróis do cinema. Direção: Guell Arraes Adaptação da peça teatral: Lisbela e o prisioneiro, de Osman Lins (1924-1978).  O Homem que desafiou o diabo Sinopse: O protagonista, Zé Araújo, é boêmio e galanteador. Em uma festa, conhece uma turca fogosa com a qual tem relação sexual. O pai da jovem, um comerciante respeitado, obriga Zé a casar-se com sua filha. O protagonista passa a trabalhar no empório do sogro sendo continuamente humilhado por ele e sua filha. Zé, ao perceber que se tornara motivo de pilhérias da comunidade em que vivia, revolta-se, destrói o mercado do sogro, bate na esposa e parte a cavalo em busca de aventuras. Ele solicita nova certidão de nascimento, sendo, então, denominado como Ojuara. Nos vilarejos que visita, ele enfrenta situações inesperadas e inimigos diversos. Mas sua aventura mais importante ainda acontecerá. Direção: Moacyr Góes.

Sugestões de leituras:  O Auto da Compadecida – Ariano Suassuna Assista também à adaptação para o cinema, com direção de Guell Arraes.  Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa  Macunaíma – Mário de Andrade  As pelejas de Ojuara: o Homem que Desafiou o Diabo – Nei Leandro de Castro  Lisbela e o prisioneiro – Osman Lins (1924-1978).  Na Carrera do Divino – Carlos Alberto Soffredini (1939-2001).  Crônica de uma morte anunciada – Gabriel Garcia Márquez  Charadas Macabras – Angela Lago.  De morte!: um conto meio pagão do folclore cristão – Angela Lago. Histórias de Tia Nastácia – Monteiro Lobato.


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4. O conto de fadas Já vimos que a comunicação é inerente à humanidade. A partir do momento em que esta aprendeu a se comunicar, manifestou o desejo de narrar seus feitos. Com esse desejo, surgiram os primeiros relatos de guerras, caçadas e descobertas. Por ter sido tardia a descoberta da escrita, inicialmente, os relatos eram orais, transmitidos através de gerações, de pai para filho. Desse modo, nasceram os primeiros contos que deram origem aos de fadas ou de encantamento, conforme Câmara Cascudo, (Tales of Magic, Tales of Supernatural, Fairy Play, Märchen, Cuenta etc.). Trata-se de textos narrativos breves caracterizados pelo sobrenatural e/ou por encantamentos, amuletos, virtudes, varinhas de condão etc. Resultante de um amálgama de histórias reais descaracterizadas de seus personagens, o conto de fadas, com o passar dos tempos, foi transformado em texto simbólico e maravilhoso em que auxiliares mágicos protegem personagens frágeis, desde que estes demonstrem bom caráter. Conforme Nelly Novaes Coelho (1987), os contos de encantamento, entre todos, são os que possuem maior percentagem europeia. Em Portugal está sua origem, contudo esta já possui convergência de outras histórias mais distantes da Inglaterra, Alemanha etc. O conto de fadas realiza um aproveitamento dos elementos provenientes do folclore. Em obras como Contos Populares do Brasil, de Sílvio Romero, Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo etc., pode-se notar as relações que se estabelecem entre os contos populares europeus e os que se narram oralmente no Brasil. A origem dos contos de fadas remonta ao folclore, às histórias orais primordiais. Para Vladimir Propp, conforme Paulo Bezerra: O folclore é o solo da literatura, a sua pré-história. A oralidade, que constrói as narrativas folclóricas foi sempre elemento inalienável da literatura no todo desde os primórdios de sua história. (BEZERRA, 1997, p.XVII).

Para Coelho (1987), o maravilhoso foi a fonte misteriosa e privilegiada de onde nasceu a Literatura. O conto maravilhoso corresponde às narrativas orientais, difundidas pelos árabes, recolhidas em As mil e uma noites. Seu núcleo de aventuras possui natureza material, social e sensorial, ou seja, há geralmente uma busca por riquezas, satisfação do corpo, poder etc. Já o conto de fadas, para a autora, possui natureza


51 espiritual, ética e existencial. Sua origem provém dos celtas, seus heróis realizam peripécias ligadas ao sobrenatural, ao mistério e visam à realização interior do ser humano. Justifica-se, então, a presença da fada, cujo nome provém do latim fatum, significando destino. As novelas de cavalaria épico-espiritualistas, como o ciclo do Rei Artur e seu grande cavaleiro, Galaaz, estão nas raízes dos contos de fadas. O universo do conto maravilhoso aparece marcado pela atemporalidade da expressão “Era uma vez...” e pela presença de seres maravilhosos como fadas, bruxas, anões, gigantes, gênios, gnomos, dragões, duendes, elfos, entre outros criados pela natureza. Esses seres convivem entre si naturalmente e os eventos que presenciam, embora dominados pelo sobrenatural, não são considerados estranhos. Os espaços em que convivem são regidos por leis diversas daquelas do mundo cotidiano. Entre esses espaços, prevalecem os bosques e as florestas como cenário. As personagens desconhecem o processo biológico do crescimento, apesar de serem jovens ou adultas, elas não sofrem as ações do tempo, pois a velhice e a juventude fazem parte de seu caráter (MACHADO, 1994). 4.1 A estrutura do conto de fadas O conto popular difere do conto de fadas quanto ao aspecto principal de composição. Naquele gênero literário popular destacam-se, na organização do enredo, o motivo e as motivações das personagens. Nesse, acrescenta-se o sobrenatural, o encantamento provocado pela ação de um ser mágico. Embora o conto de fadas possua a mesma estrutura básica de uma narrativa literária, caracterizada pela progressão discursiva, por sua vez, constituída pela passagem de uma situação inicial de equilíbrio a outra de desequilíbrio e, assim, sucessivamente, sua diferença reside na transformação de uma personagem desencadeada pela intervenção de um auxiliar mágico. Desse modo, esses seres auxiliares são fundamentais para o desenvolvimento da história e para o comportamento dos heróis. Nesses contos, personagens heroicas são postas à prova ou em sofrimento quando se deparam com bruxas ou outros seres mágicos malévolos. Seus conflitos advêm de perseguições, maldições, feitiços etc. Para solucioná-los, contam com a ajuda de fadas, magos, anões, seres encantados que lhes conferem poderes e/ou objetos mágicos. O final feliz acontece ao término da narrativa quando o herói graças ao seu caráter e correção assegura o triunfo da virtude. Vejamos a seguir um conto dos Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm (1989, p.79-90):


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Joãozinho e Mariazinha Perto de uma grande floresta vivia um pobre lenhador com a sua mulher e os seus dois filhos; o menino chamava-se Joãozinho e a menina, Mariazinha. O homem tinha pouca coisa para mastigar, e certa vez, quando houve grande fome no país, ele não conseguia nem mesmo ganhar para o pão de cada dia. E quando ele estava, certa noite, pensando e se revirando na cama de tanta preocupação, suspirou e disse à mulher: – O que será de nós? Como poderemos alimentar nossos pobres filhos, se não temos mais nada nem para nós mesmos? – Sabes de uma coisa, – respondeu a mulher, – amanhã bem cedo levaremos as crianças para a floresta, onde o mato é mais espesso. Lá acenderemos uma fogueira e daremos a cada criança um pedaço de pão; então iremos trabalhar e as deixaremos sozinhas. Elas não acharão mais o caminho de volta para casa, e estaremos livres delas. – Não, mulher, – disse o marido, eu não farei isso; como poderei forçar meu coração a deixar meus filhos abandonados na floresta? As feras selvagens viriam logo estraçalhá-los. – És um tolo, – disse ela, – então teremos de morrer de fome, os quatro; já podes procurar as tábuas para os nossos caixões. – E não lhe deu sossego até que ele concordou. – Mas eu tenho dó das pobres crianças, mesmo assim, – disse o marido. As duas crianças, que também não conseguiram dormir por causa da fome, ouviram tudo o que a madrasta dissera ao seu pai. Mariazinha chorou lágrimas amargas e disse a Joãozinho: – Agora estamos perdidos! – Sossega Mariazinha, – disse Joãozinho; – não te preocupes. Eu vou encontrar um jeito de nos salvarmos. E quando os velhos adormeceram, ele se levantou, vestiu o casaquinho, abriu a porta e se esgueirou para fora. A lua brilhava bem clara, e as pedrinhas brancas na frente da casa brilhavam como moedas de prata. Joãozinho abaixou-se e encheu os bolsos com aquelas pedrinhas, quantas cabiam. Então ele voltou depressa para casa e disse a Mariazinha: – Consola-te, irmãzinha querida, e dorme tranquila, Deus não vai nos abandonar, – e voltou a deitar-se na cama. Quando começou a amanhecer, antes do sol nascer, a mulher já foi entrando e acordando as crianças: – Acordem, seus preguiçosos; nós vamos para a floresta buscar lenha, – e ela deu a cada uma um pedacinho de pão e disse: – Isto é para o vosso almoço, mas não comais antes, porque depois não ganhareis mais nada. Marizinha pôs o pão debaixo do avental, porque os bolsos de Joãozinho estavam cheios de pedrinhas. Então puseram-se todos a caminho da floresta. Quando já tinham andado um pouco, Joãozinho parou e olhou para trás, para a casa, e fez isso outra vez e outra vez. O pai falou: – Joãozinho, o que ficas olhando ali e te atrasando? Presta atenção e anda para a Frente! – Ora, pai, – falou Joãozinho, – estou olhando para o meu gatinho branco que está sentado no telhado e quer me dar adeus. – Bobo, não é o gatinho; é o sol da manhã que brilha na chaminé. Mas Joãozinho não olhava para o gatinho, e sim jogava cada vez uma pedrinha brilhante do bolso para o caminho. Quando eles chegaram no meio da floresta, o pai falou: – Agora juntem lenha, crianças, eu quero acender uma fogueira, para que não sintam frio.


53 Joãozinho e Mariazinha trouxeram gravetos, um montinho deles. Os gravetos foram acesos, e quando a chama já ardia bem alta, a mulher disse: – Agora, deitem-se junto ao fogo, crianças, e descansem, enquanto nós entramos na floresta e procuramos lenha. Quando terminarmos, voltaremos para buscá-los. Joãozinho e Mariazinha ficaram sentados junto ao fogo, e quando chegou o meio dia, cada um comeu o seu pedaço de pão. E como estavam ouvindo os golpes do machado, pensaram que o pai estava perto. Mas não era o machado, era um galho que o pai amarrara a uma árvore seca, que o vento fazia bater de um lado para o outro. Ficaram lá sentados muito tempo, até que seus olhos se fecharam de cansaço e ambos adormeceram profundamente. E quando acordaram, já era noite fechada. Mariazinha começou a chorar e disse: – Como é que vamos sair da floresta agora? Mas Joãozinho a consolou: – Espera um pouquinho, até que apareça a lua, então nós acharemos o caminho. E quando surgiu a lua cheia, Joãozinho tomou a irmãzinha pela mão e seguiu as pedrinhas brancas que brilhavam como moedas de prata recémcunhadas e mostravam o caminho às crianças. Caminharam a noite inteira e chegaram de madrugada à casa de seu pai. Bateram na porta, e quando a mulher abriu e viu que eram Joãozinho e Mariazinha, foi logo dizendo: - Ó crianças más, por que ficaram tanto tempo dormindo na floresta? Nós pensamos que não queriam voltar mais para casa. Mas o pai ficou contente, porque lhe doera o coração por ter deixado as crianças assim sozinhas e abandonadas. Pouco depois houve novamente miséria por toda a parte, e as crianças ouviram a madrasta falando ao pai, de noite na cama: – Já consumimos tudo de novo; temos ainda meio filão de pão, depois será o fim de tudo. Temos de nos livrar das crianças; vamos levá-las para mais fundo na floresta, para que não encontrem mais o caminho de volta – não há outra salvação para nós. Isto era doloroso para o coração do homem, e ele pensou: “Melhor seria repartir o último bocado com as crianças”. Mas a mulher não queria ouvir nada do que ele dizia, ralhou com ele e repreendeu-o. Quem diz “A” tem de dizer “B”, e já que ele cedera da primeira vez, tinha de fazê-lo também agora. Mas as crianças ainda estavam acordadas e escutaram a conversa. Quando os velhos adormeceram, Joãozinho se levantou, como da outra vez, mas a mulher trancara a porta e ele não conseguiu sair. Mas ele consolou a irmãzinha e disse: – Não chores, Mariazinha, e dorme tranquila; o bom Deus vai nos ajudar. De manhã cedo a mulher veio e tirou as crianças da cama. Elas receberam o seu pedacinho de pão, que era ainda menor que o anterior. No caminho da floresta, Joãozinho esfarelou-o dentro do bolso, parou diversas vezes e jogou no chão uma migalha atrás da outra. – Joãozinho, porque ficas parando e olhando para trás? – perguntou o pai. – Vai andando em frente. – Estou olhando para a minha pombinha, que está pousada no telhado e quer me dar adeus, – respondeu Joãozinho. – Bobo, – resmungou a mulher, – não é pombinha nenhuma, é o sol da manhã brilhando na chaminé. Mas Joãozinho ia jogando migalha após migalha pelo caminho. A mulher levou as crianças ainda mais fundo na floresta, onde elas nunca estiveram antes em toda a vida. Lá fizeram novamente uma grande fogueira, e a madrasta falou: – Fiquem sentadas aqui, crianças, e quando estiverem cansadas, podem dormir um pouco; nós vamos para dentro do mato cortar lenha, e à tardinha, quando terminarmos, viremos buscá-las.


54 Quando foi meio-dia, Mariazinha repartiu o seu pão com Joãozinho, que espalhara o seu pelo caminho. Então eles adormeceram, e anoiteceu, mas ninguém veio buscar as pobres crianças. Elas acordaram quando já era noite fechada, e Joãozinho consolou a irmãzinha e disse: - Espera só, Mariazinha, até que apareça a lua; aí poderemos ver as migalhas de pão que eu fui espalhando, e elas nos mostrarão o caminho de volta para casa. Quando a lua surgiu, eles preparam-se para ir: mas não encontraram nem uma só migalha, porque os milhares de pássaros que voavam na floresta e no campo as bicaram todas. Joãozinho disse a Mariazinha: - Nós vamos encontrar o caminho! Mas eles não o encontraram. Caminharam a noite inteira e mais um dia, de manhã até a noite, mas não conseguiram sair da floresta e estavam com muita fome, pois não tinham comido nada a não ser umas poucas bagas que acharam no chão. E como estavam tão cansados que as pernas não os carregavam mais, deitaram-se debaixo de uma árvore e adormeceram. Agora já era o terceiro dia desde que eles saíram da casa do pai. Recomeçaram a caminhada, mas só se aprofundavam cada vez mais na floresta, e se não lhes viesse ajuda logo, morreriam de fome. Quando foi meio dia, eles viram um lindo passarinho branco como a neve pousado num ramo, o qual cantava tão bem que eles pararam para escutá-lo. E quando ele terminou, bateu asas e saiu voando na frente deles, e eles o seguiram, até que ele chegou a uma casinha, sobre cujo telhado pousou. E quando eles chegaram bem perto, viram que a casinha era feita de pão e coberta de bolo, e as janelas eram de açúcar transparente. – Agora vamos avançar nela, – disse Joãozinho, – e fazer uma refeição abençoada. Quero comer um pedaço do telhado! Mariazinha, tu podes comer um pedaço da janela, ela é doce. Joãozinho estendeu a mão para o alto e arrancou um pedacinho do telhado, para provar o seu gosto, e Mariazinha ficou perto da vidraça, para mordiscá-la. Mas aí eles ouviram uma voz fina gritando de dentro da casa: “Roque, roque, roidinha,/ Quem roeu minha casinha?” As crianças responderam: “Não foi ela, não fui eu, Foi o vento quem roeu”, e continuaram a comer sem se deixarem perturbar. Joãozinho, que gostou muito do sabor do telhado, arrancou um bom pedaço dele, e Mariazinha soltou uma vidraça redonda inteira, sentou-se e ficou comendo. De repente a porta se abriu, e apareceu, arrastando os pés, uma mulher muito, muito velha, apoiada numa muleta. Joãozinho e Mariazinha ficaram tão assustados que deixaram cair o que tinham nas mãos. Mas a velha balançou a cabeça e disse: – Ei, lindas crianças, quem vos trouxe aqui? Entrai, ficai comigo que não vos farei mal. Ela tomou os dois pela mão e levou-os para dentro da casinha. E serviu-lhes boa comida, leite com panquecas e açúcar, maçãs e nozes. Depois arrumou-lhes duas boas caminhas com alvos lençóis, e Joãozinho e Mariazinha deitaram-se nelas, pensando que estavam no céu. Mas a velha só se fingira de boazinha, pois era uma bruxa malvada, que tocaiava crianças, e só construíra aquela casinha de pão para atraí-las. Quando uma criança caía em seu poder, ela a matava, cozinhava e comia, e era para ela um dia de festa. As bruxas têm olhos vermelhos e não enxergam muito longe, mas possuem um faro fino como os animais e percebem quando há gente se aproximando. Quando Joãozinho e Mariazinha estavam chegando, ela riu um riso mau e disse zombeteira: – Estes eu já peguei, não me escaparão mais. De manhã cedinho, antes que as crianças acordassem, ela se levantou, e quando as viu dormindo tão bonitas, com suas bochechas redondas e coradas, resmungou consigo mesma: “Este aqui será um bom


55 bocado!” Então ela agarrou Joãozinho com a sua mão ossuda, levou-o para um curralzinho e trancou-o atrás de uma porta gradeada: ele podia gritar à vontade, que não lhe adiantaria nada. Aí ela foi até Mariazinha, acordou-a com uma sacudidela e gritou: – Acorda, preguiçosa, vai buscar água e cozinha alguma coisa boa para o teu irmão, que está lá fora no curral e precisa engordar. Quando ele estiver bem gordo, eu vou comê-lo. Mariazinha começou a chorar amargamente, mas era tudo em vão, ela tinha de fazer o que a bruxa malvada mandava. Agora o pobre Joãozinho era alimentado com a melhor comida, enquanto Mariazinha só ganhava cascas de caranguejo. Todas as manhãs a velha manquitolava até o curralzinho e dizia: – Joãozinho, mostra-me teus dedos, para eu sentir se já estás gordinho. Mas Joãozinho lhe passava pela grade um ossinho de frango, e a velha, que tinha vista fraca, não podia vê-lo e pensava que era um dedo de Joãozinho, e se admirava porque ele não queria engordar. Quando passaram quatro semanas e Joãozinho continuava magro, ela perdeu a paciência e não quis esperar mais. – Aqui, Mariazinha! – gritou ela para a menina; – anda ligeiro e traz a água! O Joãozinho pode estar gordo ou magro, não importa; amanhã eu vou matá-lo e cozinhá-lo. Ai, como se lamentava a pobre irmãzinha, obrigada a carregar a água, e como lhe escorriam as lágrimas pelas faces abaixo! – Meu bom Deus, ajuda-nos! – exclamou ela, – antes as feras selvagens nos tivessem devorado na floresta, pelo menos teríamos morrido juntos! – Poupa-me esta choradeira, – disse a velha; – não vai te adiantar nada. De manhã cedo Mariazinha teve de sair para pendurar o caldeirão com água e acender o fogo. – Primeiro vamos assar pão, – disse a velha, – eu já esquentei o forno e sovei a massa. E ela empurrou a pobre Mariazinha para fora, para o forno de assar, do qual já escapavam as chamas do fogo. – Enfia-te lá dentro, – ordenou a bruxa, – e vê se o fogo já está bem quente para que possamos empurrar o pão para dentro. Assim que Mariazinha estava quase dentro, ela quis fechar o forno, para que Mariazinha lá ficasse assada, porque ela queria devorá-la também. Mas Mariazinha percebeu o que a bruxa tinha em mente e disse: – Não sei como fazer isso – como é que eu posso entrar lá? – Menina burra, – disse a velha, – a abertura é grande o bastante; olha, eu mesma posso passar por ela, – e ela chegou pertinho e enfiou a cabeça no forno. Então Mariazinha deu-lhe um empurrão tão forte que ela caiu lá dentro inteira, e a menina bateu a portinhola de ferro e puxou o ferrolho. “Uuu!” Aí ela começou a uivar horrivelmente, mas Mariazinha saiu correndo e a bruxa perversa teve de perecer queimada. Então Mariazinha correu direto para o Joãozinho, abriu o seu curralzinho e gritou: – Joãozinho, estamos livres, a bruxa velha está morta! Então Joãozinho saltou fora como um passarinho libertado da gaiola. Como eles ficaram felizes, como se abraçaram e pularam e se beijaram! E como não precisavam ter mais medo, eles entraram na casa da bruxa. E lá estavam, em todos os cantos, caixinhas cheias de pérolas e pedras preciosas. – Estas são ainda melhores que as pedrinhas brancas, – disse Joãozinho, e encheu os bolsos com quanto cabia neles, e Mariazinha disse: – Eu também quero levar alguma coisa para casa, – e encheu o seu aventalzinho.


56 – Mas agora vamos embora, – disse Joãozinho, – para que possamos sair dessa floresta enfeitiçada. Depois que caminharam algumas horas, chegaram a um grande lago. – Não podemos passar, – disse Joãozinho; – não vejo prancha nem ponte. – E também não há barquinho nenhum, – respondeu Mariazinha, – mas há um pato branco nadando; se eu lhe pedir, ele nos ajudará. E ela gritou: – Patinho, patinho, aqui estão Mariazinha e Joãozinho. Não vemos nem prancha nem ponte, leva-nos no teu alvo dorso. O patinho aproximou-se logo, e Joãozinho montou nele e pediu que a irmãzinha montasse junto. – Não, – disse Mariazinha, – assim será pesado demais para o patinho; ele que leve um de nós de cada vez. Foi o que fez o bom animalzinho, e quando os dois já estavam seguros do outro lado, e caminharam um pouco mais adiante, o mato começou a parecer-lhes mais conhecido, e finalmente eles avistaram de longe a casa de seu pai. Então eles puseram-se a correr, precipitaram-se para dentro da casa e caíram nos braços do pai. O homem não tivera nem um momento de paz desde que deixara os filhos na floresta, mas a mulher já morrera. Mariazinha sacudiu seu aventalzinho, e as pérolas e pedras preciosas saíram pulando pelo chão, e Joãozinho tirava dos bolsos um punhado atrás do outro e às juntava àquelas. Então todas as tristezas tiveram fim, e eles viveram juntos e felizes.

Pela leitura do conto dos irmãos Grimm, pode-se observar que se trata de um texto atraente para o jovem leitor ou mesmo para o leitor de qualquer idade. Vale, então, destacar quais elementos tornam o conto de fadas atraente para o leitor e quais se destacam em sua organização estrutural: a) O chamado da aventura: No conto, embora o “chamado” da aventura seja provocado pelas pressões sociais, que levam os pais a abandonarem seus filhos, o desenvolvimento da narrativa ocorre devido à existência do acaso. Em Joãozinho e Mariazinha, ele aparece quando as personagens, graças à ajuda de um arauto, um passarinho branco como a neve, encontram um caminho no meio da floresta que leva a uma casa feita de guloseimas. Nessa narrativa, o retorno da aventura representa a superação e a resolução das pressões sociais.


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b) O labirinto Na narrativa apresentam-se espaços desconhecidos e isolados, a floresta que se transforma em um sinistro labirinto e a casa da bruxa que se converte em prisão e representa a luta entre a vida e a morte. Pode-se notar que no conto há o entrecruzamento de caminhos aparentemente sem saída. Esse entrecruzamento revela o arquétipo que sustenta a narrativa: o desejo do ser humano de realizar uma expedição em direção a si mesmo. Nessa expedição tão complexa, os caminhos entrecruzados constituem impasses que só serão resolvidos se o herói ou grupo heroico, por meio de uma espécie de viagem de iniciação, atingir o centro do labirinto. Para tanto, ele deve se mostrar qualificado, competente. Uma vez dotado desse poder, o eleito chega ao centro do mundo, ou seja, ao símbolo desse centro. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1999, p.530), a origem simbólica do labirinto é o palácio cretense de Minos, onde estava encerrado o Minotauro e de onde Teseu só conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. Esse “fio” é fornecido aos protagonistas pelo patinho branco que conduz de volta ao lar. Os espaços constituintes da narrativa exercem o mesmo papel: o de isolar os protagonistas do mundo conhecido, do meio social, do “exterior” e levá-los às origens, aos primeiros elementos da paisagem imaginária da infância: a floresta, a casa, o lago, que remetem, segundo Jacqueline Held (1980, p.82), à ideia do redondo, do abrigo, do ninho, do retorno à posição fetal, à mãe. E remetem ainda à ideia da viagem como condição da aventura e do sonho. De acordo com Jacqueline Held (1980, p.78), a paisagem imaginária e afetiva, por possuir a dialética aventura-proteção, perigosegurança, é atraente para o leitor. O labirinto propicia ao aventureiro concentrar-se em si mesmo. Posto em meio aos inúmeros rumos das sensações, das emoções e das ideias, ele tem a possibilidade de eliminar todo obstáculo que favorece a escuridão e voltar à luz sem se deixar prender nos desvios das veredas. A ida e a volta no labirinto representam respectivamente a morte e a ressurreição. Desse modo, regressar vivo desses espaços representa a superação da morte, o renascimento. Graças a este, os protagonistas podem rever seus conceitos e se (re)descobrirem como seres capazes de retornar à sociedade a que pertencem mais competentes, valorizados e reconhecidos por ela.


58 c) O final feliz Na narrativa, o término da aventura é marcado pela felicidade que representa a vitória obtida no espaço da aventura e a alegria decorrente desta. Assim, o conto encerrase com os vitoriosos e sobreviventes protagonistas retornando para casa. A obtenção de um poder ou riqueza na narrativa conota a vitória no espaço da aventura que assegura o acesso à riqueza. Assim, graças às performances desenvolvidas pelos protagonistas, eles são sancionados positivamente, adquirindo uma competência que antes não possuíam. d) A circularidade Pode-se observar que a narrativa é circular, pois o ponto de chegada coincide com o de partida. Entretanto, o espaço para o qual os heróis regressam não aparece idealizados. Assim, os protagonistas Joãozinho e Mariazinha buscam-no apesar da miséria que contém, porque abriga o pai que amam. Ao regressarem, tornam-se capazes de melhorar as condições financeiras da família, não sendo mais um fardo para ela, antes uma benção, já que trazem os tesouros adquiridos na aventura, conforme Bruno Bettelheim (1980). e) As personagens As personagens do conto atuam como modelos de coragem, bravura, fidelidade à família e dedicação total a ela. São facilmente reconhecíveis pelo leitor graças à repetição de seus nomes que, inclusive, dão título ao conto. Essas personagens reagem sempre da forma mais adequada. Assim, podem ser definidas pela esperteza; pela religiosidade que, nos momentos de desespero, expressam em seus discursos; pela obediência aos mais velhos; enfim, pela correção. Uma vez definidas, não se alteram mais, são incapazes de surpreender pelas suas ações. Seus comportamentos levam a concluir que quem possui bom caráter pratica o “bem”, único elemento capaz de vencer o “mal”. A eficácia, que marca as ações das personagens, provém da virtude delas, pois o mundo em que se movimentam está organizado principalmente de acordo com os valores e não com os efeitos de ação e reação fixados objetivamente de uma vez por todas e para todos.


59 Essas personagens, embora sejam determinadas em atingir seus objetivos e se ajudem mutuamente, são incapazes de se salvar sozinhas no espaço da aventura; para tanto precisam da ajuda de outros seres. No caso, de animaizinhos que vivem na floresta. Assim, para não morrerem de fome, contam com “um lindo passarinho branco como a neve” para guiá-las até uma casa feita de guloseimas. E para retornar ao lar e sair da floresta enfeitiçada, com a ajuda de um alvo e mágico pato branco, capaz de carregá-los em seu dorso. Paradoxalmente, recebem também ajuda involuntária da bruxa que os salva da morte por desnutrição, com sua casinha de guloseimas, mas também os coloca, graças à oferta de alimentos, à beira da morte, quando os aprisiona. Ainda, involuntariamente, a sua riqueza, após a sua morte no forno, será “herdada” pelas jovens personagens. Desse modo, os protagonistas, vencendo o genius loci, adquirem riqueza, o que lhes faculta entrar em conjunção com um poder capaz de salvar a sua família das privações materiais. Assim, a floresta é paradoxal; confere, justamente por isso, dramaticidade à narrativa. Ela expõe os protagonistas ao perigo, ao mesmo tempo em que lhes fornece comparsas para que sobrevivam neste espaço e retornem ao lar. A floresta é o espaço que propicia atração e repulsão; os heróis precisam adentrá-la, enfrentá-la, saber o que é sentir medo, pois este é um conhecimento indispensável a seu amadurecimento. Ainda, precisam conhecer a nostalgia própria do exílio, motivada pela saudade de casa e pelo desejo de retornar. Segundo Fernando Savater (1982), sem informações sobre o medo e a nostalgia, o herói nada poderá saber, tampouco da forma humana de viver em um lar, pois isso implica “haver voltado”. O centro da floresta é o melhor lugar para uma bruxa antropófaga viver, pois todos os caminhos levam à sua morada. A floresta enfeitiçada é assim um lugar de perdição e de extravios, de escuridão hostil e de inúmeras árvores que dificultam a visão e a marcha dos irmãos cansados; por isso, ela é atraente para o leitor. A floresta, uma vez desvendada e compreendida, fornece lições capazes de trazer de volta a vida, o “mato conhecido” nas proximidades do lar e a paz para a família. f) A dualidade A narrativa explora dois espaços: o do lar e o da floresta, respectivamente, o conhecido e o desconhecido. Os heróis vivem em um espaço conhecido para eles: a sua casa. Mas eles ainda não a conquistaram, pois ela é governada por normas e leis dos


60 adultos, que para os jovens são imutáveis, como as leis da natureza. Eles precisam, então, deixar o lar, espaço conhecido, para adentrar a floresta, espaço desconhecido. De acordo com Joseph Campbell (2000), a aventura é sempre uma passagem pelo véu que separa o conhecido do desconhecido; as forças que vigiam no limiar são perigosas, e lidar com elas envolve riscos. No entanto, os que tiverem competência e coragem verão o perigo desaparecer. Joãozinho e Mariazinha precisam, então, demonstrar competência para triunfar no espaço desconhecido e voltar para o conhecido. Precisam perder o seu lar, para finalmente resgatá-lo, porque adquiriram o direito de reconquistar seu legado. Assim, os irmãos não podem permanecer no espaço da aventura, ou seja, na floresta, pois romperiam com as coordenadas do sistema social em que devem viver. Dentro desse sistema de mundo, o local adequado para os jovens é o do interior do lar. Os espaços também são marcados pela dualidade: interior e exterior. O espaço exterior é o desconhecido, o da floresta, que possui em seu centro a casa da bruxa. O espaço interior é o conhecido, domiciliar. A exploração dos espaços interno e externo remete à dualidade: liberdade e prisão. Os espaços internos, restritos ao cenário da casa dos protagonistas e ao da casa da bruxa, configuram-se, no início e no desenrolar das narrativas, como prisões. Nesses espaços, os heróis estão submetidos às determinações das personagens adultas. Em um primeiro momento, às da madrasta ou dos adultos; em um segundo, às da bruxa. Os heróis precisam, então, no espaço da aventura alterar essa situação, deixar de ser submissos, desobedecer às ordens da bruxa e eliminá-la, a fim de obter a liberdade e também assegurar a vida. Uma vez obtida essa liberdade, eles regressam ao espaço domiciliar. Em seu regresso da aventura, adquirem um novo estatuto, deixam de ser submissos, prisioneiros, para se configurar como os salvadores da família. Assim, libertar-se também no espaço domiciliar. De acordo com a caracterização dos espaços, a narrativa pode ser dividida em duas partes que, embora tenham antagonistas diversos, se completam, pois apresentam os mesmos protagonistas. Assim, a primeira desenvolve-se no espaço conhecido, o lar. Nesse espaço, os protagonistas Joãozinho e Mariazinha têm a madrasta por antagonista. O papel dessa antagonista justifica-se pelo seu discurso autoritário e dissimulado em relação aos jovens protagonistas, e pelas suas ações. Embora essa antagonista se posicione como membro da família, ela é fonte de conflito.


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g) A fonte de conflito A madrasta configura-se, então, como fonte de conflito interno e externo para o pai dos protagonistas, pois o leva a realizar ações contrárias aos seus sentimentos em relação aos filhos. Desse modo, ele trava em seu interior uma luta. Para as jovens personagens, a antagonista é fonte de conflito externo, que almeja se livrar delas para assegurar alimento suficiente para ela e para o marido. Todas as ações dos jovens protagonistas visam ludibriá-la, impedir que ela realize o seu intento. A madrasta, por causa do conflito que instaura, torna os protagonistas mais interessantes para o leitor. Eles, como não podem enfrentá-la diretamente, arquitetam planos que dissimulam o enfrentamento e garantem a sua sobrevivência. Assim, os protagonistas utilizam-se em seus discursos e ações da mesma arma das personagens adultas: a dissimulação da intenção. Esta pode ser observada nas cenas em que os jovens protagonistas estão sendo levados para a floresta e marcam o caminho com pedrinhas. A segunda parte desenvolve-se no espaço desconhecido, no interior da floresta enfeitiçada que contém em seu centro a casa-prisão de outra antagonista: a bruxa. O seu papel de antagonista justifica-se pelo seu discurso dissimulado e autoritário em relação aos jovens protagonistas, e pelas suas ações. Ela se configura como fonte de conflito externo para os jovens protagonistas, pois deseja devorá-los. Todas as ações dos jovens protagonistas visam à sobrevivência. Para tanto devem ludibriar a antagonista e impedir que ela realize o seu intento. A bruxa, por causa do conflito que instaura, torna os protagonistas mais interessantes para o leitor. Eles, como também não podem enfrentá-la diretamente, arquitetam planos que dissimulam o enfrentamento. Desse modo, os protagonistas se utilizam em seus discursos e ações da mesma arma que ela: a dissimulação da intenção. Esta pode ser observada nas cenas em que o protagonista Joãozinho apresenta-lhe o “ossinho de frango” no lugar do dedo e na cena em que Mariazinha afirma não saber como entrar no forno para verificar se sua temperatura está adequada. Os protagonistas, então, interrogados pela personagem adulta, expressam em seus discursos algo diverso do que realmente realizam.


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h) A dissimulação O emprego da dissimulação nas duas histórias confere prazer ao leitor, pois lhe expõe o que os jovens protagonistas sabem e como eles jogam com essas informações. Essa estratégia produz no leitor maior interesse e participação. O leitor, encantado com a astúcia dos jovens protagonistas, identifica-se com eles e assume o ponto de vista deles. Dessa forma, ele vibra com as ações desses jovens, “torce” por eles e contra a madrasta. As ações dos jovens protagonistas motivadas por aquilo que sabem e as personagens adultas ignoram, ainda motivadas pela ajuda mútua, revelam sua inteligência e companheirismo. A bruxa do conto de fadas aproxima-se, pelo tipo de morte que recebe no forno, das bruxas ou pessoas acusadas de crime de feitiçaria na Idade Média; pela antropofagia, do Minotauro; pelo papel ambíguo que exerce na narrativa, de outra feiticeira da Idade Média, Isolt, mãe de Isolda, capaz de curar e colocar duas vezes o herói Tristão à beira da morte. A bruxa do conto de fadas também cura, enquanto deseja matar os dois irmãos. Ela ameaça os heróis de morte, ao mesmo tempo em que lhes confere, justamente por isso, a coragem. Esta, por sua vez, é resultante de uma cura: a do enfrentamento do medo. i) As semelhanças com as personagens do conto popular As personagens dos Irmãos Grimm aproximam-se e distanciam-se das do conto popular. Aproximam-se pelo percurso que realizam: saem do ambiente familiar, quase morrem no da aventura, passam por uma provação e retornam, graças à euforia com o modelo familista, aos braços dos pais. Também não possuem complexidade psicológica, principalmente porque não lhes é permitido o questionamento. Desse modo, as personagens eliminam a bruxa, retornam, solucionam o problema da pobreza de sua família, mas não questionam o porquê da origem desta situação econômica. O conto de fadas difere do conto popular, pois em seu retorno, os protagonistas podem alterar sua condição social, adquirindo novo estatuto no âmbito familiar. O espaço mágico do conto é necessário, deve ser percorrido e dominado. Para obter a vitória nesse espaço, o conto exige de seus heróis recursos individualizadores ao máximo: só quem é de determinada maneira poderá apreender o que existe para saber e


63 voltar para contar. A astúcia dos jovens irmãos protagonistas, as informações que possuem e com as quais lidam servem para mostrar a têmpera de quem as utiliza. Assim, o que promove a moralidade no conto não é a vitória da virtude, mas a simpatia que os heróis suscitam no leitor, que se identifica com eles em todas as circunstâncias. O leitor, ao término da narrativa, percebe que foi significativa e decisiva a aventura vivenciada pelos heróis no espaço da floresta. Desse modo, nos contos, as experiências vivenciadas pelas personagens nos espaços da aventura se revelam importantes. De acordo com Fernando Savater (1982), a lição do conto de fadas é ambígua: só quem rompe com o cotidiano merece ter uma casa, só quem retorna pode dizer que correu mundo, e só no sossego da rotina reinventada pode-se digerir com proveito a revelação do pavor. As personagens do conto, embora atendam ao horizonte de expectativa do leitor, que espera encontrar em suas ações demonstrações de coragem, de determinação e heroísmo, são positivas, pois, conforme Fernando Savater (1982), retomando Pierre Mabille, a exaltação do maravilhoso exige a vontade revolucionária de escapar a uma vida medíocre, de garantir o poder da vontade sobre as leis do universo. O espaço no conto faculta aos heróis o poder de ampliar seus conhecimentos e competências para não cair mais em armadilhas engendradas pela bruxa e pela floresta labiríntica. O conto expõe ao leitor jovens heróis capazes de combater eficazmente o que ameaça a organização de seu mundo e de reorganizá-lo com os poderes que adquiriram na aventura. Por meio da leitura do conto, o leitor se depara com o feitiço de uma narração que apresenta heróis desafiadores do inexorável e abertos às promessas do possível. 4.2 Atividades de leitura e interpretação de textos Para estabelecer intertextualidade com o conto de fadas dos irmãos Grimm, leia a seguir a versão popular João e Maria, de Silvio Romero, aproveitada por Lobato em Histórias de Tia Nastácia ([197-?]), em seguida, responda às questões propostas: João e Maria Uma vez um homem e uma mulher que tinham tantos filhos que resolveram deitar fora um casal para se verem mais desobrigados. Num belo dia o pai disse a João e Maria que se aprontassem para irem com ele tirar mel


64 no mato. Os dois meninos se aprontaram e seguiram com o pai, que desejava metê-los na mata e deixá-los lá ficar. Depois de muito andar, e quando já estava bem embrenhado, o pai disse aos filhos: - "Agora esperem aqui, que eu vou ali, e quando eu gritar, vocês se dirijam para o lado do grito", Depois de andar um bom pedaço, o pai gritou e retirou-se para trás, em busca de sua casa, As crianças, ouvindo o grito, se dirigiram naquela direção, mas não encontraram mais o pai, e se perderam. Chegando a noite, ali pousaram; no dia seguinte desenganados de não acharem o pai, tratou João de trepar em uma das árvores mais altas, que estavam num outeiro, a fim de ver se descobria alguma casa. De cima da árvore descobriu muito longe uma fumacinha. Para lá se dirigiram; depois de muito andar descobriram uma casa velha, e o menino se aproximou, para explorar, deixando a irmã escondida. Chegando João à casa, encontrou uma mulher velha, quase cega, que fazia bolos de milho. João fez um espetinho e furtou alguns bolos, que comeu e levou também para sua irmã. Como a velha não enxergava bem, quando sentia o movimento do menino lhe tirando os bolos, supunha que era o gato, e dizia: "Chipe, gato, minha gato, não me furte meus bolinhos!" No dia seguinte João voltou à mesma casa para tirar bolos para si e para Maria. Ouvindo a velha o rebuliço, dizia: "Chipe, gato, minha gato, não me come meus bolinhos!" João muniu-se de bolos e se retirou. No dia seguinte quis ir só, e Maria tanto insistiu que também foi. Logo que chegaram à casa tratou o menino de tirar alguns bolos dos que a velha acabava de fazer. A velha, que ouviu o rumor, disse pela terceira vez: "Chipe, gato, minha gato, não me furtes meus bolinhos!" Maria não pôde se conter e desatou uma gargalhada. A velha ficou sarapantada e conheceu que eram os dois meninos, e então disse: "Ah! meus netinhos, eram vocês! Venham cá, morem aqui comigo". Os dois meninos ficaram. Mas o que a velha queria era engordá-los para comê-los ao depois. De tempos a tempos a velha lhes pedia o dedo grande para ver se já estavam gordos; mas os meninos lhe davam um rabinho de lagartixa que tinham pegado. A velha achava o rabinho muito magrinho e dizia: "Ainda estão muito magrinhos!" Assim muitas vezes, até que os meninos perderam o rabicho da lagartixa e não tiveram volta senão mostrarem os próprios dedos. A velha os achando gordos, e os querendo comer, mandou-os fazer lenha para uma fogueira, para dançarem em roda. O fim da rabugenta era empurrar os dois meninos dentro do tacho de água fervendo e os matar. Os meninos foram buscar lenha, e quando vinham de volta toparam com Nossa Senhora, que lhes disse: "Aquela velha é feiticeira e quer dar cabo de vós; portanto quando ela mandar fazer a fogueira, fazei-a; assim que vos mandar dançar, dizei-lhe: "Minha avozinha, vossemecê dance primeiro para nós sabermos como havemos de dançar". Quando ela estiver dançando, empurrai-a na fogueira e correi. Trepai-vos na árvore que tem perto da casa; quando der um estouro é a cabeça da velha que arrebentou. Dela têm de sair três cães ferozes, que vos hão de querer devorar; por isso tomai três pães. Quando sair o primeiro cão, chamai-o Turco, e atirai um pão; quando sair o segundo, chamai-o Leão, e atirai outro pão; quando sair o terceiro, gritai Facão, e atirai o último pão. E serão três guardas que vos acompanharão". Assim fizeram. Pronta a fogueira, e a velha os mandando dançar, pediram para ela dançar primeiro para lhes ensinar, no que caiu a velha, e quando estava muito concha nos seus trejeitos, os dois pequenos atiraram-na na fogueira. Treparam-se depois na árvore à espera de arrebentar a cabeça da velha e saírem os três cães. Aconteceu tudo como lhes tinha ensinado Nossa Senhora, desceram da árvore e tomaram conta da casa como sua, e ficaram alguns anos com os três cães como guardas. Ao depois Maria se namorou de um homem, e tentaram os dois dar cabo de João, o que não podiam conseguir por causa dos três cachorros que nunca o desamparavam. Combinaram então em Maria pedir ao irmão que lhe deixasse um dia ficar com os três bichos por ter ela medo de ficar sozinha, quando ele ia para o serviço. João consentiu e cá os malvados taparam os ouvidos dos cachorros com cera, para quando


65 chamados, o não ouvirem. Depois do que partiu o camarada de Maria a encontrar João para o matar, levando uma espingarda carregada. Quando o avistou disse: "Reza o ato de contrição que vais morrer". João, que se viu perdido, pediu tempo, para dar três gritos: o sujeito lhe respondeu: "Podes dar cem". Trepou-se o moço numa árvore e gritou: "Turco, Leão, Facão!..." Lá os cachorros abalaram as cabeças. Tornou o moço a gritar e os animais despedaçaram as correntes que os prendiam; tornou a gritar, e eles se apresentaram diante dele e devoraram aquele que o queria matar. Voltando para casa, disse João à sua irmã: "Visto me atraiçoares, fica-te aí só, que vou pelo mundo ganhar a minha vida", E seguiu com os seus três guardas, até que chegou a uma terra que tinha um monstro de sete cabeças, que tinha de comer uma pessoa por dia, e que se lhe tinha de levar fora da cidade para ele não se lançar sobre ela. Quando João chegou nesse ponto, topou com uma princesa em que tinha caído a sorte para ser lançada ao bicho, Perguntou-lhe o moço a causa por que estava ali. Respondeu que lhe tinha caído a sorte de ser naquele dia devorada pelo monstro de sete cabeças que ali tinha de vir, e que ele se retirasse para não ser também devorado; que o rei seu pai tinha decretado que quem matasse o bicho casaria com ela, mas que não havia ninguém que se atrevesse a isso. O moço então disse que queria ver o tal monstro, e, como estava com sono, deitou a cabeça no colo da princesa e adormeceu. Quando foi dali a pouco apresentou-se a fera. A princesa, logo que a avistou, pós-se a chorar e caiu uma lágrima no rosto do moço, ele acordou; a princesa lhe pediu que se retirasse, mas ele não o quis, e, quando o bicho se aproximou, mandou o moço seu cachorro Turco se lançar sobre ele, Houve uma grande luta, e estando já cansado o Turco, mandou o Leão, que quase matou a fera, finalmente mandou o Facão, que acabou de a matar. João puxou por sua espada e cortou as sete pontas das línguas do monstro e seguiu, bem como a princesa, que foi para o palácio de seu pai. Passando um preto velho e aleijado por onde estava o bicho morto, cortou-lhe os sete cotocos das línguas e levou-os ao rei, dizendo que ele que tinha morto o monstro. O rei, pensando ser verdade, mandou aprontar a princesa para casar com o negro, apesar da moça lhe dizer que não tinha sido aquele que tinha dado cabo do monstro e a livrado da morte. Chegado o dia do casamento, mandou o rei aprontar a mesa para o almoço, e quando botaram os manjares no prato para o negro, entrou o cão Turco e o arrebatou da mão do preto. Quando a princesa viu o cão ficou muito alegre, e disse que era aquele um dos que tinha morto o bicho, e que seu dono é que tinha cortado as sete pontas das línguas com a espada. Veio o segundo prato para o negro, e entrou o cão Leão e o arrebatou, e a princesa disse o mesmo ao pai. Então o rei mandou um criado seguir o cão para saber donde era, e quem era o seu senhor, e que o trouxesse a palácio. O moço, que recebeu o recado, partiu logo a ter com o rei, Quando a princesa o viu, disse logo que era aquele, que realmente puxou um lenço e mostrou as sete pontas das línguas. O rei mandou buscar quatro burros bravos e mandou amarrar neles o preto, que morreu despedaçado, e João casou com a princesa.

Observe que, mesmo nessa versão de conto popular, há uma estrutura mínima que é mantida, ou seja, o abandono das crianças na floresta pelos próprios pais. Essa manutenção de uma estrutura mínima assegura a dialogia entre o conto popular e o de fadas. Partindo dessa premissa, responda: a) Os elementos que compõem a narrativa permanecem semelhantes ao da história anterior? Explique.


66 b) Há, na versão de Silvio Romero, manutenção da euforia com o modelo familista? E com o bom caráter dos heróis? c) Para onde se dirigem os protagonistas após vencerem a bruxa? d) A história se encerra em que etapa da vida dos protagonistas? e) Qual figura, nessa versão, realiza o papel de orientadora dos protagonistas? f) Que competência facultou aos heróis alterar sua condição social?

Sugestões de filmes:  Shrek Sinopse: O protagonista, Shrek, um ogro solitário, vive tranquilamente em um pântano distante, Contudo, sua vida é transformada pela invasão de uma série de personagens dos contos de fadas que não têm um lugar onde morar. A invasão deve-se ao fato deles terem sido expulsos de seus lares pelo maligno Lorde Farquaad. Determinado a recuperar a paz, Shrek vai ao encontro desse Lorde. Este solicita ao ogro que resgate uma bela princesa, prisioneira de um dragão. Com a ajuda de seu amigo Burro, Shrek cumpre o trato, contudo, depara-se com novos problemas. Direção: Andrew Adamson, Vicky Jenson (2001). Adaptação do livro de figuras homônimo, de William Steig (1907-2003).

Sugestões de leituras:  Vice-versa ao contrário - Heloisa Prieto et al.  Heróis e guerreiras: quase tudo o que você queria saber - ______.  História sem fim - Michael Ende.  Os contos de Grimm - Jakob Grimm e Wilhelm Grimm.  Harry Potter e a pedra filosofal – J. K. Rowling. Reinações de Narizinho - Monteiro Lobato.


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5. A fábula Proveniente do legado literário da Grécia à cultura do ocidente, cujos primeiros registros datam do século VIII a.C., as fábulas sempre foram muito difundidas. Contudo, de acordo com Martin West (1984 apud BACELAR, 2010, p.33), muitos já ouviram falar das Fábulas de Esopo, todavia jamais de Homero ou Virgílio, Sófocles ou Platão. Conforme Agatha Pitombo Bacelar (2010, p.33), apesar de as fábulas mais conhecidas serem as do grego Esopo (séc. VI a.C.), figura quase lendária, elas já eram utilizadas por autores anteriores, aparecendo inclusive na poesia grega arcaica, por exemplo, de Arquíloco, e em textos de Hesíodo. De acordo com Nelly Novaes Coelho (1987, p.115), elas foram aperfeiçoadas e enriquecidas estilisticamente pelo escravo romano Fedro (séc. I d.C.). Leonardo da Vinci, no século XVI, as redescobriu e reinventou, contudo não tiveram significativa repercussão fora da Itália. La Fontaine reinventou-as, conforme a autora, no século XVIII, a partir do modelo latino e do oriental oferecido pelos textos do indiano Pilpay. Com La Fontaine, as fábulas foram definitivamente introduzidas na literatura ocidental.

Figura 4 – La Fontaine15

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In: <http://4.bp.blogspot.com>, 2010.


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Para Coelho (1987), as fábulas resistiram ao tempo e permaneceram até os nossos dias com suas características essenciais de apresentar uma história simbólica, de animais que personificam os homens, e de divertir o leitor e ter uma moralidade. Conforme a autora, a fábula se distingue das demais espécies metafóricas ou simbólicas pela presença de animais, como personagens, colocados em situação humana e exemplar. Conforme Neide Smolka (1994), a fábula nasceu provavelmente na Ásia Menor, passando pelas ilhas gregas e chegando ao continente helênico. Existem registros de fábulas egípcias e hindus, entretanto sua criação é atribuída à Grécia, pois nesse espaço foi considerada pela teoria literária como um tipo específico de criatividade. Advindas da tradição oral, as fábulas, enquanto gênero textual filiado ao fantástico, assim como os contos de fadas e os populares, também possuem uma estrutura mínima que se mantém. Próximas dos contos populares e dos maravilhosos, pois também receberam influências de costumes, valores e tradições dos lugares pelos quais passaram, as fábulas diferem destes pela brevidade da dimensão textual, pela construção simbólica do enredo e pela moral. Nas conhecidas fábulas de Esopo e Fedro, La Fontaine, entre outros, as personagens, embora sejam animais, agem, pensam e sentem como os humanos. Seu objetivo é o de transmitir um ensinamento, uma mensagem específica relacionada à moralidade. Desse modo, as fábulas, representando um juízo de feição moral, religiosa, estética ou filosófica, possuem certo teor educativo. Entretanto, esses textos também se impõem pelo viés cômico, satírico e irônico. As fábulas, embora relatem acontecimentos que, preferencialmente, envolvem animais, em seu enredo também apresentam deuses, homens e objetos diversos. Alguns contos também se utilizam em seu relato de animais, todavia sua dimensão textual é superior a de uma fábula e não há preocupação com a moralidade. A criatividade do enredo de uma fábula revela-se na profundidade filosófica que este suscita. Assim, pela leitura, o leitor depara-se com debates entre seres irracionais ou objetos, analisando suas atitudes e seus comportamentos, sendo convocado a refletir e a se conscientizar da incoerência de suas condutas e de seus relacionamentos sociais. Essa reflexão advém da constatação de que se trata de uma personificação, pois nas atitudes das personagens prevalecem discursos e comportamentos próprios dos seres humanos.


69 Graças a essa reflexão, o leitor projeta-se nas personagens e tanto se reconhece nas atitudes destas, quanto avalia a dimensão de certos comportamentos no meio social em que vive. Desse modo, as fábulas não só suscitam uma revisão de valores como preparam o jovem leitor para o enfrentamento de situações que, muitas vezes, são injustas e desleais. Segundo Neide Smolka (1994), embora a moral de uma fábula possa chocar o leitor pelo seu cinismo, que revela claramente a vitória dos mais espertos sobre os ingênuos, dos fortes sobre os fracos, entre outras situações de desigualdade, a lição fundamental desse tipo de texto não está na aceitação absoluta da “moral da história”. Essa lição reside na análise, compreensão e reflexão acerca do modo como determinadas personagens vencem ou enganam outras. Para a autora, aprendemos com as fábulas a reconhecer o modo de agir de um sedutor ou de um adulador, a nos precaver contra certas atitudes, a desconfiar de determinados discursos. A leitura desses textos resulta, então, em excelente exercício de reflexão sobre o comportamento humano e as vicissitudes da vida. O valor simbólico dos animais permite-lhes também representar as qualidades, bem como os vícios e defeitos dos seres humanos. Ao término das fábulas, pode-se encontrar a moral destacada do restante do texto. Conforme Marcos Bagno (2010), essa moral se tornou inclusive provérbio nas línguas do ocidente. Para o autor, é justamente da tradição das fábulas que vem o hábito de buscarmos uma explicação ou causa para as coisas que nos acontecem ou com os outros, ainda, de tentar tirar delas algum ensinamento útil ou lição prática. Para Irene Machado (1994), o provérbio possui uma estrutura que se assemelha a uma poesia mínima. Graças aos seus jogos de palavras e arranjos sonoros podem ser tão facilmente repetidos, permanecendo na memória popular. Exemplos: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” (rima); “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão” (eco); “A mentira tem pernas curtas” (prosopopeia); “De pequenino se torce o pepino” (trocadilho); “Longe dos olhos, perto do coração” (paralelismo sintático, antítese) etc. Leia a seguir um trecho do texto Amor por anexins, de Artur Azevedo, em que o escritor apropria-se de forma cômica de inúmeros provérbios, ditados, adágios ou anexins para construção de uma peça teatral que aborda um conflito amoroso:


70 – Cena VII – Inês, Isaías [personagens] Isaías [anseia conquistar que Inês que o rejeita] (Entrando.) – Quem canta seus males espanta. Inês – Já de volta! O senhor foi a correr! [Inês, para ocupá-lo e mantê-lo distante, pede-lhe que compre um tecido em um armarinho]. Isaías – Nada! Quem corre cansa. Encontrei outro armarinho mais perto... Inês (Tomando a fazenda.) – Muito obrigada. Quanto custou? Isaías – Um pau por um olho. Mil e duzentos o metro... Inês – Pois olhe: o outro vende mais barato. Isaías – O barato sai caro, e mais vale um gosto do que quatro vinténs. Inês – Regateou? Isaías – Regatear! Para quê? Mais tem Deus para dar do que o diabo para tomar. Inês – Já vejo que é tão pródigo de dinheiro como de anexins! Isaías – Da pataca do sovina o diabo tem três tostões e dez réis. Poupado sim, sovina não. Eu cá sou assim! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tenho um só defeito: quero casar-me. Cada louco com sua manha. [...]. Faço-lhe pela milésima vez o meu pedido. Nem todos os dias há carne gorda. A senhora falou-me em um apaixonado. Por onde andará ele? Eu estou aqui, e mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Inês (À parte.) – Levemos a coisa com jeito. (Alto.) O senhor... (Com uma ideia.) Ah! Isaías – Oh! Inês – Já viu representar As pragas do Capitão? Isaías – Não, senhora. De pragas ando eu farto. Inês – Era um militar que praguejava muito. A senhora que ele amava deulhe a mão de esposa, mas depois de estabelecer-lhe a condição de não praguejar durante meia hora. Isaías – Falo em alhos, a senhora responde com bugalhos! Inês – Já lá vamos aos alhos aceito a sua proposta. Isaías (Impetuosamente.) – Aceita? Inês – Sim, senhor. Isaías (Incrédulo.) – Qual! Quando a esmola é muita, o pobre desconfia... Inês – Mas imponho também a minha condição... Isaías – Imponha: manda quem pode. Inês – Se conseguir levar meia hora sem... Isaías – Sem praguejar?... Inês – Não! Sem dizer um anexim! Se conseguir, é sua a minha mão. Isaías – Deveras? Inês (Sentando-se.) – Deveras. Isaías – Mas eu posso estar calado? Inês – Como assim?! Era o que faltava! Há de falar pelos cotovelos! Isaías – Isso é um pouco difícil: o costume faz lei... Inês – Ai, que escapou-lhe um! Isaías – Pois o que quer? A continuação do cachimbo... Inês – Faz a boca torta, já duas vezes. Isaías – Nas três o diabo as fez. Inês – Ai, ai, ai! Vamos muito mal! Isaías – Ma não tínhamos ainda entrado em campo... Aqueles foram ditos de propósito. Agora sim! Agora é que são elas! Inês – Outro! Isaías – Protesto! “Agora é que são elas” nunca foi anexim. A César o que é de César! Inês – O senhor vai perder... Olhe: são duas horas. (Aponta para um relógio que deve estar sobre a mesa.) Aceita o desafio? (Pausa.) Bem. Quem cala consente...


71 Isaías – Ah! Agora é a senhora quem os diz! Virou-se o feitiço contra o feiticeiro... Inês – Ai, ai! Isaías – Foi engano. Inês – Dos enganos comem os escrivães. (Pausa.) Então? Diga alguma coisa... Isaías – O que hei de dizer... senão.... que gosto muito da senhora... e... Inês – Pois diga: vai tantas vezes o cântaro à fonte, que lá fica. Isaías – Não me provoque, senhora, não me provoque! Inês – Cada qual puxa a brasa para sua sardinha... Isaías (Agitado.) – Brasa! Sardinha! Oh! Que suplício! Inês – O que tem o senhor? Isaías – Nada... não tenho nada... é que esta proibição me incomoda... Este maldito costume... parece que não estou em mim... Inês – Sabe o que mais? Isaías – Vou saber. Inês – Diga o que quiser! Abra a torneira dos anexins, ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios... Fale, fale para aí? Isaías – E a condição? Inês – Caducou. (Dando-lhe a mão.) Aqui tem: sou sua. Isaías (Contente.) – Minha! (Em outro tom.) E os outros? Inês – Não existem, nunca existiram! Isaías – Pois estou acordado? Se estiver dormindo, deixa-me estar: não me acordes. Inês – Está bem acordado. Isaías – Estou?! (Pulando de contente.) Então viva Deus! Viva o prazer! ...Trá lá lá rá lá! (Quer abraçá-la.) Inês (Gritando.) – Alto lá! Mais amor e menor confiança! Isaías – E que o rato nunca comeu mel, quando come... (Outro tom.) Pode-se dizer este ditadozinho?... Inês – Quantos quiser! Isaías (Concluindo.) – ...se lambuza! (Tomando-lhe as mãos.) E tu? Amasme, meu bem? Inês – Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido e deixe o barco andar! Isaías – Apoiado. Roma não se fez num dia! Inês – E tenha sempre muita fé nos seus anexins. Isaías – É verdade: O que tem de ser tem muita força. O homem põe... e a mulher dispõe!... Inês – Basta! Despeça-se destes senhores, e vá tratar dos papéis... Isaías – Quem tem boca não manda... cantar. Mas, enfim... (Ao público.) (AZEVEDO, 2010).

Tanto a moral das fábulas, quanto o anonimato próprio dos provérbios que as compõem revelam sua filiação à tradição oral e à cultura popular. O caráter universal das fábulas advém não só do fato de serem um gênero literário muito antigo, presente em quase todos os períodos da história e em culturas diversas, mas também do fato de ter grande ligação com a sabedoria popular. As fábulas, graças à dialogia, podem ser (re)contadas por diferentes autores que, embora tenham estilo próprio, mantêm suas características provenientes da oralidade, levando-as, às vezes também, a transitar por outros domínios. Desse modo, as “mesmas” fábulas do grego Esopo podem ser encontradas presentes nas coletâneas do latino Fedro, nos livros de La Fontaine, ainda, nos domínios


72 de Sítio do Picapau Amarelo, de Lobato, e até transfiguradas em Fábulas Fabulosas, pela irreverência de Millôr Fernandes ou em Fábulas Italianas, por Ítalo Calvino. Para Maria Angélica de Oliveira e Ivone Tavares de Lucena (2010, p.1879), as fábulas são “[...] pequenos repositórios de sabedoria que, através do jogo fabuloso exemplar, têm se situado no limiar entre a moral e a denúncia, entre as técnicas de si e as técnicas de afrontamento.” Embora, segundo as autoras, esses textos tenham aparência pueril, muitas vezes, ultrapassam os limites da instrução, do preceito moral, tornando-se ferramentas de denúncia e crítica ao abuso do exercício do poder. Dessa forma, transitam dos domínios das técnicas de si aos domínios das técnicas de resistência. Leia a seguir a fábula O lobo e o cordeiro, de La Fontaine (1621-1695):

O lobo e o cordeiro A razão do mais forte é a que vence no final (nem sempre o Bem derrota o Mal). Um cordeiro a sede matava nas águas limpas de um regato. Eis que se avista um lobo que por lá passava em forçado jejum, aventureiro inato, e lhe diz irritado: “- Que ousadia a tua, de turvar, em pleno dia, a água que bebo! Hei de castigar-te!” “- Majestade, permiti-me um aparte” diz o cordeiro. “- Vede que estou matando a sede água a jusante, bem uns vinte passos adiante de onde vos encontrais. Assim, por conseguinte, para mim seria impossível cometer tão grosseiro acinte.” “- Mas turvas, e ainda mais horrível foi que falaste mal de mim no ano passado.” “- Mas como poderia” - pergunta assustado o cordeiro -, “se eu não era nascido?” “- Ah, não? Então deve ter sido teu irmão.” “- Peço-vos perdão mais uma vez, mas deve ser engano, pois eu não tenho mano.” “- Então, algum parente: teus tios, teus pais. . . Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais; por isso, hei de vingar-me” - e o leva até o recesso da mata, onde o esquarteja e come sem processo. Que a razão do mais forte predomina Esta fábula ensina.


73 Compare com a versão de Monteiro Lobato: O lobo e o cordeiro

Estava o cordeiro a beber água num córrego, quando apareceu um lobo esfaimado, de horrendo aspecto. ─ Que desaforo é esse de turvar a água que venho beber? ─ disse o monstro, arreganhando os dentes. ─ Espere que vou castigar tamanha mácriação!... O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu com inocência: ─ Como posso turvar a água que o senhor vai beber se ela corre do senhor para mim? Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a resposta, mas não deu o rabo a torcer. ─ Além disso ─ inventou ele ─ sei que você andou falando mal de mim no ano passado. ─ Como poderia falar mal do senhor o ano passado, se nasci este ano? Novamente confundido pela voz da inocência, o lobo insistiu: ─ Se não foi você foi seu irmão mais velho, o que dá no mesmo. ─ Como poderia ser seu irmão mais velho, se sou filho único? O lobo, furioso, vendo que com razões claras não venceria o pobrezinho, veio com razão de lobo faminto: ─ Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu avô! E ─ nhoque ─ sangrou-o no pescoço. Contra a força não há argumentos.

De acordo com Alice Áurea P. Martha (2010), a adaptação é um processo característico da produção literária de Monteiro Lobato, não só no caso específico do reaproveitamento das narrativas de Esopo e La Fontaine, como também na de elementos do folclore e da tradição popular, cujos exemplos podem ser dados pelas presenças da Cuca e do Saci, principalmente, nas narrativas do Sítio; pela adaptação de obras destinadas, na sua origem, ao público adulto, como o D. Quixote ou, ainda, nas modificações mais acentuadas, através de cortes, explicações e simplificações, como se pode ver em Peter Pan. Em suas adaptações, Lobato buscou assegurar para seus jovens leitores o conhecimento da tradição, de sua herança cultural, que lhes caberá transformar, questionar e renovar. Nesse sentido, merecem destaque: D. Quixote das Crianças; O Minotauro e a mitologia grega em Os Doze Trabalhos de Hércules.


74

Figura 5 – Monteiro Lobato16

Para Martha, a fábula, como no drama, apresenta em sua estrutura narrativa o predomínio da unidade de tempo, lugar e ação. Como o gênero pede apenas um conflito, sua narrativa é concisa e sóbria. “Além disso, possui um esquema geral que se resume em ação/reação ou discurso/contra-discurso, ou ainda um mais amplo como situaçãoação/reação-resultado” (2010, p.4). Em relação à linguagem, como prevalece a objetividade, há ausência da descrição e predomínio do diálogo, direto, indireto ou misto, podendo, inclusive, ocorrer o monólogo. O narrador assume relevo, pois a situação e o resultado são apresentados por ele. Cabe às personagens a ação e a reação, por meio do diálogo. Em número reduzido, essas personagens caracterizam-se como planas, pois não evoluem. Caracterizadas, de modo geral, como animais, elas realizam performances reconhecidas como próprias de sua natureza, assim, nas fábulas acima apresentadas o lobo é astuto, maldoso, e o cordeiro ingênuo. Conforme o esquema de Martha, a fábula de La Fontaine apresenta a seguinte divisão: Situação: “Um cordeiro a sede matava/nas águas limpas de um regato./Eis que se avista um lobo que por lá passava/em forçado jejum, aventureiro inato,/ e lhe diz irritado: [...]” 16

In: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/d2/Monteiro_Lobato.jpg/300pxMonteiro_Lobato.jpg>, 2010).


75 Ação:

““- Que ousadia/ a tua, de turvar, em pleno dia,/ a água que bebo! Hei de

castigar-te!”” Reação: [afirma o cordeiro humildemente] ““- Majestade, permiti-me um aparte” /diz o cordeiro. “- Vede/que estou matando a sede/água a jusante,/bem uns vinte passos adiante/de

onde

vos

encontrais.

Assim,

por

conseguinte,/para

mim

seria

impossível/cometer tão grosseiro acinte.”” Ação: [o lobo ignorando a verdade, aliás afirmando que tem “razão”, responde de forma autoritária] ““- Mas turvas, e ainda/mais horrível/foi que falaste mal de mim no ano passado.”” Reação: ““- Mas como poderia” - pergunta assustado/o cordeiro -, “se eu não era nascido?”” Ação: ““- Ah, não? Então deve ter sido/teu irmão.”” Reação: [o cordeiro de forma submissa] ““- Peço-vos perdão/mais uma vez, mas deve ser engano,/pois eu não tenho mano.”” Ação: ““- Então, algum parente: teus tios, teus pais. . ./Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;/por isso, hei de vingar-me”” Resultado: “[...] - e o leva até o recesso/da mata, onde o esquarteja e come sem processo.” Moral: “Que a razão do mais forte predomina. Esta fábula ensina.” A fábula de La Fontaine apresenta-se em versos rimados: “A razão do mais forte é a que vence no final/(nem sempre o Bem derrota o Mal). Além disso, sua tese aparece logo na abertura do texto no emprego da antítese constituída pelos pares “bem” x “mal” que são figurativizados no texto respectivamente pelo cordeiro e pelo lobo: “A razão do mais forte é a que vence no final/(nem sempre o Bem derrota o Mal).” O texto revela, pelo esquema Situação/Ação/Reação/Resultado, a postura maldosa do lobo e a manutenção da força sobre a razão quando esta provém do mais fraco. Há apenas um conflito, representado pelo desejo de lobo de saciar sua fome. Pelo discurso do lobo, pode-se observar a postura daquele que se considera superior a outro: ““- Que ousadia/a tua, de turvar, em pleno dia,/a água que bebo! Hei de castigar-te!””.

Seu discurso, pelo autoritarismo e pela força, impõe-se como superior quando o cordeiro submete-se a ele: ““- Majestade, permiti-me um aparte””. O ardil do lobo, manifesto de forma grotesca, adquire ênfase pela imposição de sua força e pelo discurso que busca vingança: ““- Então, algum parente: teus tios, teus


76 pais.../Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;/ por isso, hei de vingar-me” - e o leva até o recesso/ da mata, onde o esquarteja e come sem processo.” A moral disposta ao término do texto estabelece a circularidade ao retomar a frase de abertura, comprovando a sua tese de que nem sempre o bem vence o mal, no caso, o cordeiro, que figurativiza o bem, não venceu o lobo, que figurativiza o mal. O tempo revela a falsidade do discurso do lobo, pela oposição entre passado e presente, enfatizando outro par antitético: mentira x verdade. Buscando no passado um terceiro argumento para matar o cordeiro, o lobo afirma que este o difamara no “ano passado”, mas o cordeiro afirma que nascera neste ano, instaurado no tempo presente do discurso. A busca por outro argumento advém da constatação pelo lobo do fracasso dos dois primeiros, referentes ao turvar da água e à difamação feita pelo irmão da vítima, uma vez que ela está na parte baixa do rio e não possui irmãos. O emprego de outro argumento corrobora a visão daqueles que castigam os fracos, usando como argumento a vingança por feitos de seus parentes ou representantes. No texto, o cordeiro representa uma parte de um todo para o lobo, uma metonímia das criações de animais guardadas por cães pertencentes a pastores. Justamente, esses pastores, com a ajuda de seus cães, caçam os lobos que lhes devoram o rebanho. Nota-se que esse raciocínio é defendido pela generalização que coloca o cordeiro no mesmo campo semântico de cães e pastores que, segundo o lobo, não o poupam. Em síntese, a palavra “razão” assume um caráter paradoxal, pois não há “razão” quando a força prevalece sobre a lógica e a verdade. Ocorre, então, de acordo com Oliveira e Lucena (2010, p.1879), por meio do jogo fabuloso exemplar, uma denúncia, uma crítica ao abuso do exercício do poder. Desse modo, a fábula transita para os domínios das técnicas de resistência, por meio do discurso irônico em relação aos que usam do poder ou da força para impor seus argumentos. La Fontaine, considerado pai da fábula moderna, contemporâneo de Charles Perrault, frequentava a corte de Luís XIV, provavelmente extraiu desse cenário material para sua crítica de costumes sociais. 5.1 Atividades de leitura e interpretação de textos Após a leitura da fábula de La Fontaine, pode-se observar como se efetiva a dialogia na recriação de Monteiro Lobato. Classifique, então, conforme o mesmo esquema de Martha (2010), o texto lobatiano:


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Situação: Ação: Reação: [...] Resultado: Moral:

No texto de Monteiro Lobato, a narração e o emprego da linguagem coloquial, que revela um anseio do escritor por torná-lo mais próximo de seu público leitor, podem ser notados. Há um tom descontraído e uma intenção de conduzir a empatia do leitor, por meio dos adjetivos desqualificadores do lobo: “[...] lobo esfaimado, de horrendo aspecto”, “[...] disse o monstro, arreganhando os dentes”, e qualificadores na descrição do cordeiro,

por meio do uso de diminutivos afetivos e adjetivos que lhe revelam o seu bom caráter: “O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu com inocência [...]”. Lobato mantém o mesmo título, mas sintetiza a moral: “Contra a força não há argumento”. Assim, mantém, pelo discurso irônico e humorístico, a denúncia e a crítica ao abuso do exercício do poder, como La Fontaine, por meio do jogo fabuloso exemplar. Visando adequar a fábula ao contexto brasileiro, Lobato suprime o argumento de caça aos lobos. Nas fábulas de Lobato, a enunciação é feita pela personagem Dona Benta, avó das crianças ouvintes. Seu discurso revela a proximidade de seu relato, por meio de expressões coloquiais, ao de seu ouvinte, privilegiando o contar lúdico, humorístico, em detrimento da preocupação moralizadora: “Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a resposta, mas não deu o rabo a torcer.” Nota-se que há um julgamento feito pelo narrador do discurso do cordeiro como sendo verdadeiro. Esta constatação revela a falsidade do discurso do lobo que, embora admita que o cordeiro está com a razão, não desiste de seu intento de devorá-lo, ou seja, não admite que mente: “[...] não deu o rabo a torcer”.


78 A superioridade argumentativa do cordeiro revela-se no desarmar dos argumentos do lobo que se “atrapalha” com as respostas duas vezes seguidas, Contudo, se é “[...] confundido pela voz da inocência”, o lobo insiste em mentir. A imposição de sua força advém de sua incapacidade de sobrepor seus argumentos aos do cordeiro. Monteiro Lobato expõe para o leitor, após a moral, um pequeno trecho no qual dialogam Emília e Dona Benta acerca da fábula:

Estamos diante da fábula mais famosa de todas – declarou Dona Benta. Revela a essência do mundo. O forte tem sempre razão. Contra a força não há argumentos. - Mas há a esperteza! – berrou Emília. Eu não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza. Se eu fosse esse cordeirinho, em vez de estar bobamente a discutir com o lobo, dizia: “Senhor Lobo, é verdade, sim, que sujei a água deste riozinho, mas foi para envenenar três perus recheados que estão bebendo ali embaixo.” E o lobo com água na boca: “Onde?” E eu, piscando o olho: “Lá atrás daquela moita!” E o lobo ia ver e eu sumia... - Acredito – murmurou Dona Benta. E depois fazia de conta que estava com uma espingarda e, pum! Na orelha dele, não é? Pois fique sabendo que estragaria a mais bela e profunda das fábulas. La Fontaine a escreveu dum modo incomparável. Quem quiser saber o que é obra-prima, leia e analise a sua fábula do Lobo e o Cordeiro. (MONTEIRO LOBATO, [s/a], p.42-3)

No texto de Lobato, a personagem Dona Benta, ao relatar as histórias às crianças, confere-lhes liberdade para que expressem suas opiniões. Por meio dessa eleição discursiva, Lobato manifesta o caráter emancipatório de sua narrativa, em que todos os sujeitos envolvidos no processo merecem ser considerados, eliminando a distância entre adultos e crianças. Nota-se, então, que Emília figurativiza o lugar de projeção do jovem leitor, inconformada com o desfecho da fábula, propõe outra solução, por meio da qual o mais fraco vence usando de esperteza. Emília, enquanto anti-heroína, revela-se uma personagem extremamente inovadora. Lobato, por meio dos comentários dessa personagem, permite uma reflexão ao leitor, amplia seu horizonte de expectativas, pois desperta seu senso crítico para a recusa de verdades absolutas, convoca-o ao não conformismo com as desigualdades.


79 5.2 Atividades de leitura e interpretação de textos

Leia a seguir a mesma fábula na versão de Esopo, traduzida por Neide Smolka (1994, p.126), e confronte-a com a de Monteiro Lobato: O lobo e o cordeiro Um lobo, ao ver um cordeiro bebendo de um rio, resolveu utilizar-se de um pretexto para devorá-lo. Por isso, tendo-se colocado na parte de cima do rio, começou a acusá-lo de sujar a água e impedi-lo de beber. Como o cordeiro dissesse que bebia com as pontas dos beiços e não podia, estando embaixo, sujar a água que vinha de cima, o lobo, ao perceber que aquele pretexto tinha falhado, disse: “Mas, no ano passado, tu insultaste meu pai”. E como o outro dissesse que então nem estava vivo, o lobo lhe disse: “Qualquer que seja a defesa que apresentes, eu não deixarei de comerte”. A fábula mostra que, ante a decisão dos que são maus, nem uma justa defesa tem força.

1) Destaque duas semelhanças e duas diferenças em relação ao enredo e à moral. 2) A fábula transita para os domínios das técnicas de resistência? Explique.

Sugestões de filmes:  A fuga das galinhas Sinopse: o filme é resultante de uma mescla entre aventura e comédia. Suas persoanges, bem como cenários são feitos com massa de modelar. A trama central desenvolve-se na Granja dos Tweedy. Em um galinheiro, galinhas e um galo são prisioneiros, vigiados e cercados com arame farpado. As galinhas que não produzem um ovo, pelo menos, por dia, acabam na panela. Assim, elas temem pelo seu futuro e sonham com uma fuga, contudo fracassam. Sua líder – Ginger – acaba sendo castigada, mas ela e as demais estão decididas a fugir. A tensão aumenta quando a dona da granja descobre um novo jeito de obter lucro; transformando galinhas em tortas. Chega, então, à granja um galo chamado Rocky que afirma ser voador. As galinhas veem nele uma possibilidade de salvação. A partir daí, começam novos planos e desenganos. Direção: Peter Lord, Nick Park.

Sugestões de leituras:  Fazenda Modelo – Chico Buarque de Holanda.  Fábulas – Monteiro Lobato. A revolução dos bichos – George Orwel.


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Gêneros provenientes da tradição escrita: conto, crônica e romance –

Terceiro capítulo


83 1. Introdução […] o romance coloca de modo mais agudo que qualquer outra forma literária – o problema da correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita. Ian Watt (1996, p.13).

O terceiro capítulo, que você vai iniciar agora, fornece bases conceituais sobre os elementos estruturais presentes em três formas de narratividade: o romance, o conto erudito ou literário, e a crônica. Ao estudar e analisar as formas de narratividade, André Jolles (1976) estabelece uma diferença fundamental entre as formas simples e as denominadas formas cultas. Conforme assinala, as narrativas simples são aquelas que não apresentam um único autor e expressam a psicologia coletiva de uma determinada comunidade. Poderíamos enumerar aqui vários títulos de criações coletivas e anônimas como a lenda, o provérbio, o conto popular, o mito, o causo etc. As formas cultas são as criações individuais, produtos ficcionais consagrados pela crítica e pelo público ao longo do tempo. Há quem diga que as formas cultas, em algumas situações, absorveram e modificaram as narrativas simples. Esse tipo de reformulação foi criticado por alguns teóricos sob alegação de que as formas simples se descaracterizaram, isto é, de alguma forma, perderam a natureza ritualística inicial. Entre os textos pertencentes às formas cultas, o romance, sem dúvida, é o gênero textual mais conhecido. Atualmente, pode-se encontrá-lo constituindo listas de obras ficcionais mais vendidas. Embora essas listas filiem-se, geralmente, ao entretenimento e aos modismos, às vezes, encontramos entre os best-sellers, ou seja, entre as obras com vendagem superior a 45 mil exemplares, narrativas instigantes e bem elaboradas, como é o caso do livro contemporâneo A menina que roubava livros, de Markus Zusak. Essa obra surpreende seu leitor pela apresentação de um narrador observador inusitado; a morte. Retratado durante a segunda guerra mundial, seu enredo revela a presença da humanidade e da poeticidade mesmo em um cenário de miséria, morte, dor e destruição. Justamente, essa capacidade humana de comover-se com a dor do próximo e buscar auxiliá-lo é valorizada na obra. Ela recebe relevo quando se apresenta como fator capaz de provocar a comoção da narradora observadora – a morte – e motiva seu relato.


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Figura 1 – Capa da edição de 2009 do livro A menina que roubava livros

2. O romance O romance, no formato que conhecemos hoje, surgiu na primeira metade do século XVIII. Com o desgaste dos princípios Renascentistas que valorizavam razão e clareza das ideias, servindo à burguesia em ascensão, passou a conquistar a credibilidade dos leitores da época. Massaud Moisés (1982), no livro A criação literária, enfatiza que o romance, no século XVIII, tornou-se o porta-voz das ambições da classe burguesa em uma época, na qual as pessoas buscavam entretenimento, queriam fugir da materialidade diária. O Romance é um gênero da literatura, herdeiro da epopeia. Do ponto de vista etimológico, o termo romance deriva da expressão latina romanice loqui, “falar romântico”. Salvatore D’ Onófrio (1995), no livro A teoria do


85 texto, lembra que, em suas origens, as histórias de cunho profundamente sentimental cultivavam o desejo utópico do triunfo do amor, da verdade e justiça. Embora tenha sido concebido no final do século XVI, Ian Watt (1996, p.15) afirma que os primeiros romancistas ingleses, Defoe e Richardson, surgiram no século XVIII. O crítico considera-os pioneiros, pois em seus enredos não fizeram uso de elementos da mitologia, da História, da lenda ou de outras fontes literárias do passado. Watt diferencia o romance de outros gêneros e de formas anteriores de ficção “[...] pelo grau de atenção que dispensa à individualização das personagens e à detalhada apresentação de seu ambiente” (1996, p.19). Justamente, com o romance, as personagens adquiriram relevo, merecendo inclusive um nome que as tornou únicas, individuais. O leitor contemporâneo, certamente, possui em sua memória transtextual nomes literários provenientes de seu repertório de leituras: “Iracema”, de José de Alencar, “Fausto”, de Goethe, “Robinson Crusoé”, de Defoe, entre outros.

Figura 2 – Daniel Defoe17

Figura 3 – Samuel Richardson18

O conceito de tempo também mereceu a atenção dos romancistas. O enredo, por isso, rompeu com a tradição literária anterior, que utilizava histórias atemporais para refletir verdades morais imutáveis, e passou a explorar a questão da marcação temporal. 17

18

(Fonte: <http://www.danassays.wordpress.com>, 2010). (Fonte: < http://www.bcsfxy.com/jw/course/course/images/(SamuelRichardson%20).jpg>, 2010).


86 Dessa forma, os enredos apresentam uma data que lhes marca o início ou final de uma aventura, ainda, utilizam uma experiência passada como causa de uma performance da personagem no tempo presente, instaurado na diegese. Mesmo quando essa data não é explícita, o enredo faz uso, por meio do fluxo de consciência, da memória de eventos passados. Essa estratégia apresenta “[...] uma citação direta do que ocorre na mente do indivíduo sob o impacto do fluxo temporal” (WATT, 1996, p.23). Em síntese, o romance voltou-se para o desenvolvimento das personagens no curso do tempo. O romance alcança popularidade, na França, nas primeiras décadas do século XIX, por meio dos romances folhetinescos, em um momento no qual o jornalismo passava a ser uma atividade comercial lucrativa. Conforme Marlyse Meyer (1996, p.30), o feuilleton-roman foi, na década de 1830, “[...] inventado pelo jornal e para o jornal”, por Émile de Girardin, visando democratizar a leitura dos periódicos, tornando-os mais acessíveis ao público leitor. Esse tipo de romance era publicado nos rodapés dos jornais e reestruturou “[...] a narrativa tradicional prendendo a atenção dos leitores por meio de ganchos no final de cada capítulo publicado” (COSTA, 2000, p.11). Girardin e seu ex-sócio, Armand Dutacq, notaram que poderiam obter vantagens financeiras com os romances folhetinescos. Assim, optaram por uma forma de publicação que oferecia mais variedades e custo menor em relação a outros veículos da época. Os jornais La Presse, de Girardin, e o Le Siècle, de Dutacq, foram os precursores da nova concepção dada aos rodapés dos jornais. De acordo com Meyer, o folhetim lançou: [...] a sementeira de um boom lítero-jornalístico sem precedentes e aberto à formidável descendência, vai se jogar ficção em fatias no jornal diário, no espaço consagrado ao folhetim vale-tudo e a inauguração cabe ao velho Lazarillo de Tormes: começa a sair em pedaços cotidianos a partir de 5 de agosto de 1836. A seção Variètes, que de início dá título à novidade, é deslocada, com seus conteúdos polivalentes, para rodapés internos. (MEYER, 1996, p.59).

O sucesso da fórmula folhetinesca fez-se representar no aumento de cinco mil assinaturas em três meses no jornal Le Siècle. A obra Os Mistérios de Paris (1842), de Eugène Sue, ficou conhecida tanto por ser um romance folhetinesco, quanto por ofertar narrativas cheias de suspense, tensão, clímax, enfim, ingredientes fundamentais que estruturam, ainda hoje, a narrativa romanesca. Há de se notar que o romance tornou-se gênero preferencial a partir do


87 Romantismo, no momento em que as narrativas folhetinescas popularizaram o gosto pela leitura. Entretanto, o realismo teve no romance sua base fundamental, pois apenas este permitiu que houvesse a minúcia descritiva, principalmente, dos dilemas psicológicos das personagens. 2.1 A chegada do folhetim ao Brasil No início do século XIX, com a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro que, em 1822, passou a se chamar Diário do Governo, nascia a impressa nacional. Em 1821, foi lançado o Diário do Rio de Janeiro, primeiro jornal diário que só publicava anúncios. O precursor do folhetim, o Jornal do Commercio, surgiu em 1827. (FERREIRA; SOUZA; ATTIE, 2008). Poucos tinham acesso aos romances, antes destes se tornarem folhetins. Além do preço elevado, os livros possuíam aparência rústica, não sendo atraentes para os leitores. Com os romances folhetinescos, as histórias ganharam o gosto popular graças à sua apresentação informal. A repercussão dos folhetins permitiu que fossem impressos no formato de livro e vendidos a preços acessíveis à população, obtendo boa aceitação. Um exemplo desse fenômeno ocorreu com a obra o Mistério de Paris, de Alexandre Dumas. No Brasil, do século XIX, existiam poucos livros de ficção à venda. A maioria provinha da Europa e a produção nacional era tímida. O primeiro romance-folhetim, O capitão Paulo, escrito por Alexandre Dumas, veio da França e foi publicado, em 1838, no Jornal do Commercio. Em 1859, As aventuras de Rocambole, de Ponson du Terrail, obteve muito sucesso, o que chamou a atenção dos grandes jornais da época, Folhetim do Jornal do Commercio, Folhetim do Correio Mercantil, Folhetim do Monitor Campistas, Folhetim do Diário de Pernambuco entre outros, que passaram, então, a publicar os romances “fatiados”. Como produção nacional, a obra O filho do pescador, de Teixeira e Sousa, é considerada o primeiro romance folhetinesco nacional, lançado no começo do ano de 1844, com o seguinte texto publicitário: “[...] para o entretenimento de uma moça bonita, cuja ação se passa no Rio, no lugar chamado Copacabana [...]” (apud MEYER, 1996, p.282). Posteriormente a essa publicação, surgiram outros romances folhetinescos, entre eles, no mesmo ano, foi publicada a obra A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo. O folhetim, objetivando atender aos interesses da burguesia, situou sua narrativa entre a literatura de entretenimento e a representação dos costumes, valores e cotidiano


88 de seus leitores. Todos esses elementos, por sua vez, eram configurados de forma dramática e em episódios repletos de suspense que permaneciam em aberto até a próxima edição. Os dramas emocionais e familiares, enfim, os conflitos só encontravam resolução ao término do romance. Essa estratégia assegurava, pela curiosidade dos leitores, a venda de todos os folhetins que compunham uma trama. A opção desse tipo de romance, por se apresentar como meio de entretenimento, levou seu escritor a representar o discurso do narrador como o de um contador tradicional de histórias que se dirige ao leitor de forma descontraída e próxima. Advém, justamente desses elementos estruturais e temáticos, a grande aceitação pelo público leitor da época, sobretudo pelo feminino que se projetava em heroínas fortes que buscavam, por meio da realização amorosa, encontrar a felicidade. De acordo com Cristiane Costa (2000, p.11), a reestruturação da narrativa tradicional permitiu aos jornais elevar suas vendas, pois a estratégia de “fatiar” a narrativa aguçou a curiosidade do leitor e prendeu sua atenção por meio de ganchos no final de cada capítulo. Pode-se notar, atualmente, que o artifício de prometer porções diárias de emoções e novidades em série continua a ser a essência da estrutura narrativa das telenovelas, mais de um século depois. O romance-folhetim, segundo Ferreira, Souza e Attie (2008), foi um herdeiro do romantismo e a telenovela é a sua sucessora como gênero de ficção popular, ocupando grande parte da programação das emissoras latino-americanas. Na atualidade, pode-se observar que o gênero dramalhão do folhetim, com seu conteúdo sentimental, moralizante e otimista, conseguiu se manter. As telenovelas, pela estrutura linear e sequenciada, atingem seu público e o satisfazem, pois evitam os finais tristes, trágicos. Conforme Costa (2000, p.110-11), tanto o folhetim, quanto a telenovela prendem o público em seus ganchos e próximos capítulos, prometendo o final feliz. Para assegurar o interesse do espectador, criam, no interior da trama, conflitos diversos como o de separar os amantes por uma sucessão de acontecimentos infelizes. Para Ferreira, Souza e Attie (2008), esses “[...] gêneros narrativos conseguem atingir a estrutura psicológica da personalidade romântica que não visa à satisfação, mas à repetição do prazer. Advém justamente disso seu poder de atração”.


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2.2 Balzac como referência para o romance Cronologicamente, Balzac, no século XIX, ao conferir dimensões psicológicas modernas a sua Comédia Humana, escrita em 1850, tornou-se o ponto de referência de autores romanescos representativos que vieram depois, como Flaubert, Zola, Dickens, Eça de Queirós, Machado de Assis e tantos outros. Quanto à estrutura, é importante frisar que o romance contém vários núcleos narrativos que são atualizados simultaneamente. Ao retratar pessoas, a vida e os costumes sociais, o romance busca a verossimilhança, aquilo que pode acontecer. Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1993) destaca que a verossimilhança exclui tudo aquilo que seja insólito, anormal, puro capricho da imaginação do escritor. O romance nos revela um herói problemático vivendo em um mundo complexo que o cerca. Se comparado ao conto e à novela, o romance apresenta um maior número de personagens e de conflitos. Conforme Yves Stalloni (2001), o romance possui uma estética própria que se define por: 1) escrita em prosa que, também, pode ser poética; 2) predomínio do ficcional, embora também possa haver apropriação de fatos históricos, como é o caso dos romances históricos que misturam o real e o fictício; 3) ilusão da realidade; 4) introdução de personagens. Podemos dividir os romances, seguindo a classificação tipológica de Vitor M. de Aguiar e Silva (1993, p.685): a) Romance de ação ou de acontecimento Nesse tipo de enredo, a ação prevalece sobre a análise das personagens e há caracterização do espaço físico. Quase sempre a intriga é concentrada e claramente delineada, estruturada de forma linear, com começo, meio e fim. Exemplos desse gênero são os romances de Walter Scott e Alexandre Dumas. Um exemplo brasileiro de romance de ação é Capitães da Areia, do escritor baiano Jorge Amado. O livro focaliza a vida de garotos que vivem abandonados em um


90 trapiche em Salvador, liderados pela personagem Pedro Bala. As ações se sobrepõem à análise psicológica das personagens. b) Romance de personagem A narrativa é centrada na figura de uma única personagem central. O narrador esmera-se em desenhar fisicamente e psicologicamente essa personagem protagonista. Geralmente, o nome das personagens confere título à obra, como em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Iracema, de José de Alencar, O Primo Basílio, de Eça de Queirós, entre outros. Em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, o narrador se vale da onisciência para esmiuçar as atitudes das personagens planas que aparecem na cidade de Lisboa em meados de 1870, revelando assim seus pensamentos, angústias e o universo psicológico. O enredo tem como um de seus protagonistas o casal Jorge e Luísa. Casados há três anos, eles moram em Lisboa e têm o ambiente doméstico frequentado por pessoas fúteis que vivem de aparências. Jorge é engenheiro, trabalha em um Ministério, enquanto Luísa representa a burguesa ociosa enfraquecida pela leitura de romances passionais. Jorge parte para o interior – Alentejo – a negócios. Luísa, solitária, aborrece-se com a ausência do marido até a chegada de Basílio, um primo que fora seu primeiro amor, mas a abandonara. Aos poucos, Luísa cede às tentações do sedutor Basílio que a “perverte” contando seus casos amorosos. O adultério é inevitável e as situações vivenciadas pelos amantes são iguais às dos romances lidos por Luísa. Como se identifica com as leituras que realiza, Luísa se entrega à paixão, cometendo o adultério. Antes de passarmos à leitura das características do romance de espaço, é importante frisar que as considerações tipológicas estão mais ligadas aos romances tradicionais. No romance moderno, devido a sua maneira fragmentária, fica muito difícil delimitarmos esquemas ou padrões. Antonio Candido, no texto A personagem de ficção, avalia que o romance moderno procurou diminuir a ideia de esquemas fixos na medida em que apresenta estruturas complexas. No romance moderno, no lugar da caricatura, a personagem é múltipla. Segundo Candido, “[...] a personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização” (CANDIDO, 1987, p.59).


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c) Romance de espaço No romance de espaço o narrador prioriza o ambiente onde se desenrola a intriga. Seu objetivo é o de oferecer um quadro detalhado da sociedade de seu tempo. O romance naturalista, O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, valoriza o espaço físico degradado de um cortiço situado na cidade do Rio de Janeiro de propriedade do português João Romão. Aluísio Azevedo, nessa obra específica, montou o enredo a partir de descrições precisas, por meio das quais o ambiente degradado, personificado em vários momentos, torna-se a personagem mais convincente do romance, como se pode observar no fragmento a seguir: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. […]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra. (AZEVEDO, 1980, p.12).

Como se pode notar a partir da leitura do fragmento, o cortiço é retratado de forma figurada, utiliza-se para tanto de uma figura estilística, a personificação ou prosopopeia. Por meio desse recurso, o narrador atribui características humanas ao espaço que descreve. Desse modo, “o cortiço acordava”; “Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo”. 2.3 Atividades de leitura e interpretação de textos 1) O texto acima apresenta um dinamismo descritivo, ao destacar os elementos sinestésicos, constituídos pela mescla de sensações visuais, olfativas, gustativas ou táteis. Retire do fragmento dois exemplos desse tipo de exploração dos sentidos.


92 2) Crie um parágrafo narrativo-descritivo, por meio de discurso indireto, que revele um espaço físico muito conhecido por você. Para tanto, eleja seu narrador: autodiegético, homodiegético ou heterodiegético. No decorrer da sua produção textual, explore o recurso da sinestesia. Para isso, recorde-se dos cheiros, dos sons, das cores que ocupam suas memórias quando pensa nesse espaço.

Sugestões de filmes:  Moça com Brinco de Pérola  Título original: Girl with a Pearl Earring. Sinopse: Trata-se de uma adaptação do romance Moça com brinco de pérola, de Tracy Chevalier. A trama gira em torno de uma jovem determinada, Griet, que busca se firmar, em uma sociedade patriarcal e com enormes desigualdades sociais. Para tanto, enfrenta dificuldades e preconceitos. A narrativa transcorre em Delft, na Holanda, em 1665. Como se trata de obra histórica, a escritora, por meio da dialogia com os quadros de Vermeer, mescla dados históricos e biográficos deste pintor à ficção. Direção: Peter Webber (2003).

Sugestões de leituras:     

Os miseráveis, de Victor Hugo (Les Misérables). Assista também à adaptação para o cinema, com direção de Josée Dayan (2000). Madame Bovary – Gustave Flaubert. Assista também à adaptação para o cinema, com direção de Claude Chabrol (1991). Por que ler os clássicos – Ítalo Calvino. Por que ler os clássicos desde cedo – Ana Maria Machado. Por que ler o romance brasileiro – Marisa Lajolo.


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3. O conto O conto vem a ser uma narrativa curta que consegue capturar um flagrante de um momento da vida humana. Nele, nós temos a condensação do conflito, do tempo e do espaço, além disso, há restrição no número de personagens. Essas personagens, por sua vez, segundo Hohlfeldt (1988, p.19), também revelam “[...] apenas uma faceta de seu caráter, dando prioridade à ação sobre a intenção”. Massaud Moisés, no livro A criação literária (1982), lembra que o conto está mais próximo do drama do que do romance. É importante destacar que o conto gravita em torno de um só conflito, isto é, todos os ingredientes do conto convergem para o mesmo ponto. Ao falar sobre a origem do gênero, Antonio Hohlfeldt, no ensaio O conto brasileiro hoje, salienta que o contista busca um momento especial a ser atingido que é o motivo deflagrador do texto, o que James Joyce chamou de momento de epifania ou momento de iluminação (HOHLFELDT, 1988). Ainda segundo Hohlfeldt, os primeiros contos mais elaborados, no Brasil, pertencem ao poeta byroniano Álvares de Azevedo que, em 1855, publicou Noites na taverna. Dos primórdios até hoje, podemos levantar vários escritores que se dedicaram ao gênero: Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Rubião, Osman Lins, Caio Fernando Abreu e tantos outros. No conto Missa do galo, de Machado de Assis, texto que se destaca na tradição do conto clássico, um narrador de dezessete anos, comprimido e angustiado dentro de uma sala assobradada na Rua do Senado, Rio de Janeiro, vive um diálogo ambíguo, sensual, com D. Conceição, uma mulher de trinta anos, casada, que lhe hospedara na noite da missa do galo. Tudo acontece dentro de uma fração dramática permeada por um clima de muito suspense. Em um encontro inusitado, que se realiza na noite de Natal, numa sala escura, o contista condensa a cena e os fatos que se desenvolvem em um curto espaço de tempo. No conto, o conflito inicial também se desenrola em poucas horas, como no ritual da “Missa do galo”. Vejamos o conto:


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Missa do Galo Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedilhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. - Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição. - Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. - Ainda não foi? Perguntou ela. - Não fui; parece que ainda não é meia-noite. - Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:


95 - Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. - Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. - Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. - Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. - Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. - Justamente: é muito bonito. - Gosta de romances? - Gosto. - Já leu a Moreninha? - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meiocerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. - Talvez esteja aborrecida, pensei eu. E logo alto: - D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... - Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? - Já tenho feito isso. - Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. - Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. - É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. - Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca


96 claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertarame ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: - Mais baixo! Mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: - Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. - Eu também sou assim. - O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. - Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada. - Foi o que lhe aconteceu hoje. - Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: - Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalhome. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. - Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. - São bonitos, disse eu.


97 - Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. - De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. - Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. - Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!" - Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. - Já serão horas? perguntei. - Naturalmente. Missa do galo! repetiram de fora, batendo. -Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. (In: SCLIAR, 2008, p.33-41).


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3.1 Atividades com leitura e interpretação de textos 1) A partir da leitura do conto Missa do galo, analise os seguintes elementos da narrativa: a) narrador (personagem ou observador); b) espaço; c) tempo; d) personagens principais (características físicas e psicológicas; planas ou redondas); e) enredo. De acordo com Antonio Hohlfeldt (1988), é difícil classificar um estilo para os contos e, ainda, para um determinado contista que, em um mesmo volume, pode optar por diferentes estilos. Contudo, visando facilitar os estudos desse gênero narrativo, o autor estabelece a seguinte classificação para o conto: a.

Alegórico – utiliza-se da alegoria multifacetada e da ironia como um dos principais instrumentos literários (1988, p.103). Em um universo marcado pelo insólito, pelo absurdo, este tipo de conto surpreende o leitor, pois a partir do par antitético real x irreal, revela seu caráter crítico em relação à sociedade. Classificado também como conto fantástico ou maravilhoso, este estilo tem como significativo representante brasileiro Murilo Rubião.

b.

De atmosfera – prevalece neste tipo de narrativa certa atmosfera, clima, inconfundível que determina as ações das personagens e seus estados emotivos. Em determinados autores, a atmosfera resvala o esoterismo. Textos de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Autran Dourado, entre outros, apresentam essa atmosfera.


99 c.

De costumes – ou conto picaresco, representa, quase de forma documental, por meio da ironia, do humor ou sarcasmo, a realidade (1988, p.160). Como forma de crítica aos costumes sociais, opta-se na narrativa por personagens-tipo, às vezes, caricaturais. Dalton Trevisan, Otto Lara Resende, entre outros, são representantes deste gênero.

d.

Psicológico – muitas vezes marcado pelo monólogo interior, este tipo de narrativa apresenta a personagem em conflito consigo mesma e com o mundo. Esse conflito advém, muitas vezes, da incomunicabilidade do protagonista com as demais personagens. Essa limitação produz, por sua vez, no protagonista a sensação de angústia e incompreensão da realidade que o cerca e sufoca. Seu tema central é a condição humana. São representantes desta tipologia: Ivan Ângelo, Lygia Fagundes Telles, entre outros.

e.

Rural – sua ação central desenvolve-se neste espaço ou se volta sobre ele de forma reflexiva. As personagens apresentam em sua linguagem as expressões e construções frasais próprias do meio em que vivem. Os elementos naturais, como o trovão, a chuva, a ventania assumem relevo e determinam as peripécias desenvolvidas pelos protagonistas. Entre os escritores que se destacaram com este gênero, podemos citar Guimarães Rosa, José J. Veiga, Bernardo Élis, entre outros.

f.

Sócio-documental – neste tipo de conto, a documentação assume o papel de denúncia social. Objetiva-se, por meio dele, conferir voz aos indivíduos marginalizados socialmente ou oprimidos. Busca-se, por meio da narrativa ficional, convocar o leitor à reflexão sociológica. Pode-se notar este gênero nos textos de Graciliano Ramos, Inácio de Loyola Brandão, Ricardo Ramos, entre outros.


100 3.2 Atividades com leitura e interpretação de textos Leia atentamente o conto a seguir, de Rubem Fonseca, e classifique-o, conforme a tipologia de Antonio Hohlfeldt (1988), em: alegórico, de atmosfera, de costumes, psicológico, rural ou sócio-documental. Justificando o porquê de sua classificação. Os músicos Faz calor. Os grandes espelhos da parede vieram da Europa no fundo do porão; cristal puro. “Tua avó fez risinhos e boquinhas, namorou dentro desse espelho”. Respondo: “Minha avó nunca viu esse espelho, ela veio noutro porão”. Nesse instante chegam os músicos, três: piano, violino, bateira; o mais moço, o pianista tem quarenta anos, mas é também o mais triste, um rosto de quem vai perder as últimas esperanças, ainda tem um restinho mas sabe que vai perde-las num dia de calor tocando os Contos dos Bosques de Viena, enquanto lá embaixo as pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o balcão onde ele trabalha com os outros dois: Stein, no violino – cinquenta e seis anos, meio século atrás: espancado com uma vara fina, trancado no banheiro, privado de comida “nem que eu morra você vai ser um grande concertista” e quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no restaurante com o coração cheio de alegria – Elpídio na bateria, cinquenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para proteger o colarinho, o gerente não gosta mas ele não pode mudar de camisa todos os dias, tem oito filhos, se fosse rico – “fazia filho na mulher dos outros, mas sou pobre e faço na minha mesmo” – e todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a valsa da Viúva Alegre. Na mesa ao lado está o sujeito que é casado com a Miss Brasil. Todas as mesas estão ocupadas. Os garçons passam apressados carregando pratos e travessas. No ar, um grande borborinho. (In: BOSI, 2002, p.250).


101

Sugestões de filmes:  

Peixe Grande e suas histórias maravilhosas. Título original: Big Fish. Sinopse: O protagonista Ed Bloom possui habilidade para contar histórias. Em seus relatos, costuma fantasiar, distorcendo e ampliando alguns dados, tornando-os assim mais interessante para quem ouve. Embora essa aptidão encante a todos que o rodeiam, seu filho se aborrece, pois para ele o pai foge da realidade e, por isso, é um grande mentiroso. A esposa de Ed anseia por aproximar o marido do filho. Para tanto, ela solicita de Ed que tente distinguir a realidade da fantasia. O protagonista, já muito doente, à beira da morte, transmite com muito esforço seu legado ao filho. Trata-se, sobretudo, de uma belíssima narrativa sobre a contação de histórias e a necessidade de fantasia. Direção: Tim Burton (2003)

Sugestões de leituras:  Nasrudin – Regina Machado. Ilustr. Ângela Lago.  Dez contos escolhidos – Moacyr Scliar.  Os 100 melhores contos brasileiros do século – Ítalo Moriconi.  Contos contidos – Maria Lúcia Simões.  O conto brasileiro contemporâneo – Alfredo Bosi.


102 4. A crônica O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que é este mundo. Octavio Paz19

A palavra crônica tem suas origens no grego chronikós (relativo ao tempo) e do Latim crhonica. O termo designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados cronologicamente. Esse tipo de texto registrava os eventos sem aprofundar-se nas causas, situando-se entre os anais e a História. (NERY, 2010). Para Silvana Nery, o gênero consagrou-se, no século XII, na França, Inglaterra, Portugal e Espanha, quando se aproximou da História, revelando traços de ficção literária. “A partir da Renascença o termo crônica cedeu vez à História. Livre da conotação histórica, o vocábulo passou a revestir-se do sentido literário, a partir do século XIX, para finalmente encontrar seu significado jornalístico [...]” (2010). Originária do folhetim, a crônica surge no jornal, na França no início do século XIX, quando a imprensa jornalística, devido aos avanços tecnológicos da época, barateia a produção dos periódicos em larga escala. No Brasil, o nascimento da crônica é fixado pela historiografia em 1852, quando Francisco Otaviano inicia, no Rio de Janeiro, a coluna A Semana no Jornal do Commercio. (BIGNOTTO; JAFFE, 2004, p.33). No mesmo período, Joaquim Manoel de Macedo, Raul Pompéia, José de Alencar e Machado de Assis tornam-se folhetinistas, escrevendo romances “fatiados” e crônicas. Para Bignotto e Jaffe (2004, p.34), o folhetim-crônica herda do jornalismo a reflexão, a observação aprofundada e a seriedade, enquanto do romance resgata a frivolidade, a leviandade, o devaneio. Esse tipo de texto é mais extenso do que a crônica contemporânea, seus temas são variados, assim podem apresentar desde moda, fofocas de baile, até problemas sociais. Tivemos inúmeros outros grandes cronistas, pois o gênero caiu no gosto popular, entre eles, podemos citar alguns intelectuais do jornal e das letras: Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Alcântara Machado e, mais tarde, Drummond, Fernando Sabino, Rubem Braga.

19

(1994 apud GOMES, 2007).


103 4.1 A crônica e o jornal A crônica nasce no jornal, contudo difere dele, pois enquanto este visa comunicar, divulga acontecimentos, notícias de seu tempo acerca das pessoas e da sociedade, aquela aprofunda, deflagra o acontecimento, pondo em relevo o que é secundário no episódio principal (GOMES, 2007, p.21). Para Rubem Braga, “[...] os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...” (1979 apud GOMES, 2007, p.21). Justamente, esta é a matéria da crônica. De acordo com Sá (2002), o cronista, em seu processo de criação, utiliza-se de fatos e acontecimentos diários, conferindo-lhes um toque próprio, envolvendo fantasia, ficção e crítica social, diferenciando assim, a crônica do texto informativo dos repórteres. Para o autor, a crônica atinge o estatuto de arte literária quando consegue romper seus próprios limites de “cronicidade”, ou seja, superar os limites da transitoriedade própria da notícia, colhendo o universal dentro do particular. Justifica-se, então, que neste texto procuremos pela crônica literária, pois esta resiste ao tempo – chronos – e perpetua-se sob a forma de publicações em livro. Pode-se observar que prevalece na produção da crônica certa liberdade no ato de escrever, por isso dificilmente encontramos autores com textos semelhantes. Embora tenha liberdade, a criação de um escritor de crônica difere daquela do romancista que pode ficcionalizar ou não seu texto. O cronista, por outro lado, precisa em sua produção manter o equilíbrio entre o não-ficcional e o ficcional. Isso decorre da mobilidade do texto que provém do mote da crônica, no caso, o cotidiano e seus eventos, que determinam, por sua vez, a maneira como o escritor vai narrá-los. (DIMAS 1974 apud GOMES, 2007). 4.2 Os temas da crônica É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma ideia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que consequentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas. Antonio Candido (1992, p.19)


104 A temática da crônica varia tanto que até mesmo a falta de assunto para produzi-la pode ser um pretexto. De acordo com Irene Machado, o próprio gênero permite várias formas composicionais: “[...] do humorismo ao lirismo reflexivo; da sátira de costumes à crítica mordaz; do discurso político ao diário confessional” (1994, p.246). Entre os cronistas mais conhecidos, encontramos temas como política, amizade, futebol, economia, viagens entre outros. Conforme Eliane Ferreira e Renata Souza (2010), a maneira de narrar que cada escritor elege para seu narrador pode também variar entre o trágico e o cômico. Apesar da possibilidade na maneira de narrar, o texto tem por característica a brevidade. Essa característica atende aos interesses do leitor deste gênero, pois para as autoras, trata-se do apressado que, na maioria das vezes, faz suas leituras em pequenos intervalos, no transporte, entre um afazer e outro. Por sua vez, o cronista também possui pouco tempo para escrever seu texto, precisa elaborá-lo antes do fechamento do jornal, tanto na redação, quanto em sua casa. Apesar da velocidade de produção, nem por isso, os grandes cronistas deixam de apresentar um trabalho estético, uma linguagem literária e um discurso emancipatório, pois este conduz seu leitor à reflexão acerca da realidade social que o cerca. Este tipo de crônica, denominada literária, solicita outro leitor: mais atento, crítico e, muitas vezes, dono de um repertório de leitura que lhe permite identificar as relações intertextuais que se estabelecem no texto. Esse leitor não tem pressa, pois provocado por aquilo que lê. Trata-se, conforme Carlos Magno Gomes (2008, p.116), do leitor estético que se preocupa em “como” um texto foi construído, privilegiando o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais que o texto carrega. Segundo Antonio Candido (1992, p.16), o prestígio da crônica advém do processo de busca da presença da oralidade na escrita, ou seja, “[...] de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo.” Para o crítico, justamente a simplicidade da crônica torna-a tão reveladora e penetrante para o leitor. A seguir, podemos ler a crônica “Pausa”, de Mário Quintana: Pausa Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa. Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas? Com algum ciclista tombado?


105 Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo? E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagempoema, a inquietação perdurará. E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois – Dom Quixote ou Sancho? – vive uma vida mais intensa e portanto mais verdadeira... E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade de recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida. Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor. (In: A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Globo, 1977).

Como se vê, o texto escolhido, “Pausa”, simbolicamente instiga e convida o leitor a pensar no papel da literatura não só no plano temático (falando da condição de recriação da arte poética), mas especialmente no nível da linguagem, por meio do discurso de um narrador, o qual revela no nível morfossintático e fonológico a preocupação de estabelecer uma espécie de interlocução com o leitor, convidando-o para uma pausa reflexiva sobre as significações possíveis existentes no mundo ficcional. Nessa pequena crônica, Mário Quintana, ao fazer a pergunta sobre que imagens ocorrem ao poeta quando contempla os óculos sobre a mesa, reflete acerca de sua condição de escritor e do leitor de poesia. O texto acima é uma crônica literária produzida por um ficcionista que, embora possa se apoiar em fatos acontecidos, reais, transforma a realidade do dia a dia pela força da criatividade. A crônica literária privilegia a linguagem verbal, o acontecimento estético, neste sentido, a linguagem passa a ser o fim e não meio. A crônica literária tem uma natureza diferente da crônica jornalística (policial, esportiva, social) que tem um caráter mais informativo e dirige-se, inicialmente, aos leitores apressados que buscam no jornal as notícias de maior impacto. Enquanto o contista mergulha na construção das personagens, do tempo, do espaço, para dar uma maior densidade ao enredo, o cronista age de uma forma mais solta, despretensiosa. Ainda segundo Jorge Sá, o cronista pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador que é, principalmente, personagem ficcional, como acontece no conto e no romance. Para Massaud Moisés (MOISÉS, 1982, p.255), na crônica literária, o foco narrativo situa-se invariavelmente na primeira pessoa do singular. Nesse sentido, a impessoalidade é rejeitada na medida em que existe uma veracidade emotiva.


106 A subjetividade da crônica, conforme Moisés (1982), análoga à do poeta lírico, explica que o diálogo com o leitor acontece dentro de um processo natural. O cronista está em diálogo virtual com o seu interlocutor ou leitor implícito. O estilo da crônica literária é direto, espontâneo, de imediata apreensão. Como vimos no texto “Pausa”, de Mário Quintana, a crônica literária de uma forma despojada explora a polissemia das metáforas. Em síntese, a crônica literária apresenta alguns elementos fundamentais que a caracterizam, tais como: 

a brevidade;

o diálogo com o leitor;

a subjetividade, em um processo por meio do qual se privilegia a literariedade do texto.

4.3 Atividades com leitura e interpretação de textos a) Leia atentamente a crônica, de Fernando Sabino, “A falta que ela me faz”, retirada do livro A companheira de viagem (1980): A falta que ela me faz Como bom patrão, resolvi, num momento de insensatez, dar um mês de férias à empregada. No princípio achei até bom ficar completamente sozinho dentro da casa o dia inteiro. Podia andar para lá e para cá sem encontrar ninguém varrendo o chão ou espanando os móveis, sair do banheiro apenas de chinelos, trocar de roupa com a porta aberta, falar sozinho sem passar por maluco. Na cozinha, enquanto houvesse xícara limpa e não faltassem os ingredientes necessários, preparava eu mesmo o meu café. Aprendi a apanhar o pão que o padeiro deixava na área — tendo o cuidado de me vestir antes, não fosse a porta se fechar comigo do lado de fora, como na história do homem nu. Esticar a roupa da cama não era tarefa assim tão complicada: além do mais, não precisava também ficar uma perfeição, já que à noite voltaria a desarrumá-la. Fazia as refeições na rua, às vezes filava o jantar de algum amigo e, assim, ia me aguentando, enquanto a empregada não voltasse. Aos poucos, porém, passei a desejar ardentemente essa volta. O apartamento, ao fim de alguns dias, ganhava um aspecto lúgubre de navio abandonado. A geladeira começou a fazer gelo por todos os lados — só não tinha água gelada, pois não me lembrara de encher as garrafas. E agora, ao tentar fazê-lo, verificava que não havia mais água dentro da talha. Não podia abrir a torneira do filtro, já que não estaria em casa na hora de fechá-la, e com isso acabaria inundando a cozinha. A um canto do quarto um monte de roupas crescia assustadoramente. A roupa suja lava-se em casa — bem, mas como? Não sabia sequer o nome da lavanderia onde, pela mão da empregada, tinham ido parar meus ternos, provavelmente para sempre. E como batiam na porta! O movimento dela lá na cozinha, eu descobria agora, era muito maior do que o meu cá na frente: vendedores de


107 muamba, passadores de rifa, cobradores de prestação, outras empregadas perguntando por ela. Um dia surgiu um indivíduo trazendo uma fotografia dela que, segundo me informou, merecera um “tratamento artístico”: fora colorida à mão e colocada num desses medalhões de latão que se veem no cemitério. — Falta pagar ainda trezentos cruzeiros — disse o homem. Paguei o que faltava, que remédio? Sem ao menos ficar sabendo o quanto a pobre já havia pago. E por pouco não entronizei o retrato na cabeceira de minha cama, como lembrança daquela sem a qual eu simplesmente não sabia viver. Verdadeiro agravo para a minha solidão era a fina camada de poeira que cobria tudo: não podia mais nem retirar um livro da estante sem dar logo dois espirros. Os jornais continuavam chegando e já havia jornal velho para todo lado, sem que eu soubesse como pôr a funcionar o mecanismo que os fazia desaparecer. Descobri também, para meu espanto, que o apartamento não tinha lata de lixo, a toda hora eu tinha de ir lá fora, na área, para jogar na caixa coletora um pedacinho de papel ou escravizar um cinzeiro. Havia outros problemas difíceis de enfrentar. Um dos piores era o do pão: todas as manhãs, enquanto eu dormia, o padeiro me deixava à porta um pão quilométrico, do qual eu comia apenas uma pontinha — e na cozinha já se juntava uma quantidade de pão que daria para alimentar um exército, não sabia como fazer parar. Nem só de pão vive o homem. Eu poderia enfrentar tudo, mas estar ensaboado debaixo do chuveiro e ouvir lá na sala o telefonema esperado, sem que houvesse ninguém para atender, era demais para a minha aflição. Até que um dia, como uma projeção do estado de sinistro abandono em que me via atirado, comecei a sentir no ar um vago mau cheiro. Intrigado, olhei as solas dos sapatos, para ver se havia pisado em alguma coisa lá na rua. Depois saí farejando o ar aqui e ali como um perdigueiro, e acabei sendo conduzido à cozinha , onde ultimamente já não ousava entrar. No que abri a porta, o mau cheiro me atingiu como uma bofetada. Vinha do fogão, certamente. Aproximei-me, protegendo o nariz com uma das mãos, enquanto me curvava e com a outra abria o forno. — Oh, não! — recuei horrorizado. Na panela, a carne assada, que a empregada gentilmente deixara preparada para mim antes de partir, se decompunha num asqueroso caldo putrefato, onde pequenas formas brancas se agitavam. Mudei-me no mesmo dia para um hotel.

1) A partir da leitura da tragicômica crônica de Fernando Sabino, justifique como se efetivam os seguintes elementos na narrativa: b) a brevidade; c) o diálogo com o leitor; d) a subjetividade. 4.4 Classificações da crônica Existem inúmeras classificações para as crônicas. Neste texto, optamos pela classificação de Antonio Candido que as divide em cinco categorias (1992, p.21), conforme o efeito de sentido que produzem no leitor. Assim, para o crítico, há as que se assemelham:


108 1) ao diálogo – “[...] a crônica diz as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada” (1992, p.20). Exemplos: “A moça e a varanda”, de Sérgio Porto, “O time de Neném Prancha”, de João Saldanha, entre outros. Leia, a seguir, um exemplo: Como conquistei a Violeteira José Carlos Oliveira Há casos que só aconteceu comigo. Até parecem mentiras. Na primeira vez que vi um striptease, por exemplo, a estrela do espetáculo se apaixonou por mim. Isto aconteceu há quatro ou cinco anos, e desde então me vem frequentemente a tentação de contar como foi, mas não o faço porque ninguém talvez acreditaria. Estava eu zanzando pela noite e acabei atracando numa boate especializada em striptease. Esse gênero de espetáculos não me interessava de modo algum, pois conheço lugares bem mais apropriados para a contemplação de mulheres nuas, mas na época ninguém falava em outra coisa. Todo mundo que vinha de Paris descrevia os fabulosos striptease que lá são vistos; e já que a moda pegara também no Rio, fazendo o sucesso de três ou quatro boates, também fui ver. Tive a sorte de ocupar a mesa mais próxima da pista. Comecei a bebericar o uísque de praxe e a comer amendoim, e então o show começou. Luzes. Música: La Violetera. Surge na pista a estrela, cujo nome é Não-Sei-o-Quê Soraya. (Grace Soraya, talvez; ou Brigitte Soraya; não me lembro mais.) Imensa mulher, mas com o corpo todo oculto num manto roxo e a cabeça escondida sob extravagante chapéu da mesma cor. Põe-se ela a dançar, tendo na mão uma cesta com violetas. Tira primeiro as luvas que lhe cobrem totalmente os braços e as deixa cair no chão. Todos os gestos são cadenciados por esses movimentos coleantes que alguns basbaques consideram o máximo em sensualidade. Finalmente, Soraya arranca o chapéu, num gesto brusco e calculado, e contempla os espectadores, um por um, nos olhos. Sua expressão é um convite à lasciva. Ela ainda não olhou para mim, porque sou quem está mais perto dela, faltando perspectiva no momento. Mas quando olha... Ah! Tinha esquecido de dizer que sou irresistível! Ela não consegue mais despregar os olhos de mim. Sorri, pisca maliciosamente, aproxima-se e esvazia a cesta em minha cabeça. Recebo, impertubável, aquela chuva de violetas. Percebo que os demais espectadores estão também olhando para mim. Devem estar com inveja. Azar deles. Não é culpa minha se neste recinto só eu possuo charme e tenho feitiços capazes de hipnotizar uma mulher. Enquanto isso, Soraya se despe. Após livrar-se de uma das meias, lançou-a na minha mesa. Tira a outra meia e novamente é a minha mesa quem a recebe. Tudo o mais que cobre o seu opulento edifício acaba amarfanhado em cima da minha mesa. Impertubável, prossigo bebericando o uísque e contemplo o corpo desnudo com ar de conhecedor. No fim, aplaudida por todos, ela se retira em apoteose, não sem antes piscar outra vez na minha direção, balançando levemente a cabeça em sinal de adeusinho. A boate ficará tranquila até o próximo show. Quanto a mim, daqui a pouco a minha querida virá sentar-se à minha mesa... Soraya vem. Veste-se agora como qualquer mulher do seu meio: as carnes explodem por todos os lados do vestido de veludo colante. Não sendo o meu tipo, não deixa de ser uma bela mulher; e acontece que hoje estou muito eclético. Ela se aproxima rapidamente, luminosa, sorrindo e já lançando a mão direita para que eu a beije. Levanto-me, beijo-lhe a mão, ela se inclina para beijar-me no rosto...


109 - Un momento... Pero... Usted no es uted! Como assim? Eu não sou eu? Terei mudado de personalidade tão rapidamente? O fato é que a minha Soraya solta um gritinho de dolorida decepção e corre para os fundos da boate. Enfim... Não se deve especular demais sobre a sensatez das mulheres. Nenhuma delas regula bem. Sem demonstrar perturbação, continuo bebendo o meu uísque. As violetas na mesa sugerem agora o luxuoso enterro dalguma paixão... Mais tarde surge na boate uma figura imprevista: meu amigo Raimundo, jornalista radicado em Brasília desde a fundação da cidade, e excelente praça. Sei que de vez em quando ele vem ao Rio e volta carregado de mulheres, todas sucumbidas ao seu encanto quieto. Mas não digo nada; não tenho nada com isso. Convido-o a sentar-se comigo, o que é feito. Ele fala pouco e eu, preferindo sempre o convívio silencioso, não menciono o incidente Soraya. Cinco minutos depois, la Violetera reaparece, outra vez luminosa, e se dirige à minha mesa. Quem entende as mulheres? Vai começar tudo outra vez... O Raimundo saberá que outra pessoa, além dele, costuma endoidecer as damas. Vem, Soraya! Mas não. Quem se levanta agora é Raimundo. Ele a beija, ela lhe faz carícias no cabelo... E apontando para mim: "Pero es como se fuera tu hermano!" Meus amigos, a venezuelana estava gamada pelo Raimundo, e este último é um sósia perfeito deste vosso criado. Durante anos trabalhamos juntos na imprensa carioca e nuna havíamos reparado na semelhança mútua. Para encurtar a conversa, lá se foi ele com a Soraya. Mas me consolei, pensando que éramos de tal modo gêmeos que, de certo modo, eu também estava indo para a intimidade das violeteiras. (In: SANTOS, 2007, p.176-8).

2) ao conto – prevalece a narrativa com certa estrutura de ficção. Ex.: “Salvo pelo Flamengo”, de Paulo Mendes Campos, “A última crônica”, de Fernando Sabino, entre outros. A seguir, há um exemplo: A noite em que os hotéis estavam cheios Moacyr Scliar O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro. Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos. — E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não! O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que não passava de uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. — O senhor vê, se o governo nos desse incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente... O senhor não conhece ninguém nas altas esferas?


110 O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas. — Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo. O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante. No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio. — O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano: — Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado. O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a ideia boa, e até agradeceu. Saíram. Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré. (In: SANTOS, 2007, p.248-9).

3) à poesia – nota-se uma exposição poética, um certo lirismo. Ex.: “Quando as mulheres acordam”, de Xico Sá, “Assombrações”, de Ivan Ângelo, entre outros. Leia um exemplo a seguir: Ter ou não ter namorado Artur da Távola Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil. Mas namorado, mesmo, é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição. Quem não tem namorado é quem não tem amor é quem não sabe o gosto de namorar. Há quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes; mesmo assim pode não ter nenhum namorado. Não tem namorado quem não sabe o gosto de chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria. Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar. Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no


111 muro e entregue de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário. Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, de fazer cesta abraçado, fazer compra junto. Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor. Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira – d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro. Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada, ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele. Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo. Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria. Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido. “Enlou-cresça.” (In: SANTOS, 2007, p.244-5).

4) à anedota – assemelham-se a piadas desdobradas. Ex.: “O inferninho e o Gervásio”, de Stalislaw Ponte Preta, “Calcinhas secretas”, de Ignácio de Loyola Brandão, entre outros. Veja um exemplo a seguir: Palavra de homem Aldir Blanc No apartamento onde moro existe um cômodo misterioso: o escritório. Não escrevo nele, mas lá estão os livros, o computador, a velha máquina de escrever, o fax, os discos... De vez em quando, peço licença e entro lá pra apanhar alguma coisa. O lugar é dominado por minha mulher e quatro filhas. Uma noite, fui atrás de um livro policial com Pepe Carvalho, meu detetive favorito, e dei de cara com as cinco me olhando. Só o homem que vive com cinco mulheres sabe os riscos dessa convivência. É preciso ser o que meu amigo Mello Menezes chama de "canalha cálido"; terno, compreensivo, com apurado senso de justiça, jamais deixando que ciúmes extrapolem, ajeita daqui, manera de lá, tentando não perder um pedacinho sequer do imenso amor que todas sentem por mim e que eu, modéstia à parte, mereço. Bom, manter essa peteca no ar sem uma certa dose de canalhice, sinceramente, não dá.


112 Na tal noite, que mudou minha vida, as cinco me olhavam, intensas, e pude sentir que o homem não é nada quando mulheres tomam uma decisão. Os olhares diziam mais ou menos assim: Isso é assunto nosso, morou? Estamos envolvendo você por consideração etc., mas ESSE NÃO É SEU DEPARTAMENTO, CERTO? Uma delas me deu uma lata de cerveja geladinha, outra me passou uma cigarrinha holandesa, botaram um disco de jazz que eu amo na vitrola, e Isabel, a caçula, me jogou um beijinho como quem diz: Coragem! Cumprido esse prêambulo ritualístico, a Rainha das Amazonas anunciou: - Tatiana está grávida. Elas dizem que é folclore, mas eu senti direitinho a fumaça da cigarilha saindo pelas orelhas. Engasguei, fiz gestos estranhos, e a Patrícia suspirou: - Eu disse que era melhor acender um troço mais forte... Eu nasci no Estácio, pô! Qualé? Fui criado em Vila Isabel! Não vou perder a pose mole, não! Eu e o Bruce Willis somos duros de matar, neguinhas! Vou mostrar pra vocês meu famoso jogo de cintura. Quando vocês iam, eu já estava voltando, tá legal? Parei de espernear, levantei do chão, Isabel enxugou a lourinha entornada em minha camisa, e tomei ali, na hora, uma decisão de macho: Não vou permitir que elas percebam meus verdadeiros sentimentos. Nunca! Para o próprio bem delas, tenho que ficar frio. Vou fazer minha imitação de Robert Mitchum. Pronto. Nervos devidamente colocados no lugar, tive um acesso de choro. Nada de BUÁÁÁÁÁÁ e SNIFF, coisa de criança. Sou da Zona Norte. Foi assim: AAMMHHHNNNN! Vendo que eu havia conseguido o completo domínio de minha emoção, Mari Lúcia continuou: - São gêmeos. - AAAIIIIMHHNNNHHHIIIIGRFSSSS! Mais lenha: - A Mariana também está grávida. Voltei a mim, igualzinho no antigo samba, nos braços de Isabel. "Nos braços de Isabel eu sou mais homem, nos braços de Isabem eu sou um deus..." Afagando minha barba em desalinho, Isabel brincou: - Vai ser vovô... Mari Lúcia me abanava, Mariana pingava gotinhas de Efortil dentro de outra latinha, Jung (meu bravo e fiel cão de guarda) lambia minha cara, Patrícia rezava um mantra aprendido em Búzios, e Tatiana repetia, sorridente: - Assim a gente mata o velho... Minha garganta emitia sons gorgolejantes. Todos insistiam: - Fala, tenta falar. Cê vai se sentir melhor. Consegui articular: - Tô com uma vontade louca de comer carambola. É isso, amigas. Fecundado pela palavra vovô, eu estava irremediavelmente grávido de meus netos. (In: SANTOS, 2007, p.240-1).

5) à biografia – há o predomínio de certo lirismo no relato Ex.: “Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca”, de Arnaldo Jabor, “Morreu o Valete de Copos”, de João Antônio, entre outros. Leia, a seguir, um exemplo:


113

Coisa & pessoas Mario Quintana Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que o mormaço fazia mal, sempre gritava: "Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!" Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte UruguaianaLibres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado e olhei atônito para um tipo de chiru, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma: - Pois é! Não vê que sou o sereno... E eis que, por um milésimo de segundo, ou talvez mais, julguei que se tratasse do silêncio noturno em pessoa. Coisas do sono? Além disso, o vulto, aquele penumbroso e todo em linhas descendentes, ajudava a ilusão. Mas por que desculpar-me? Quase imediatamente compreendi que o "sereno" era um vigia noturno, uma espécie de anjo da guarda crioulo e municipal. Por que desculpar-me, se os poetas criaram os deuses e semideuses para personificar as coisas, visíveis e invisíveis... E o sereno da Fronteira deve andar mesmo de chapéu desabado, bigode, pala e pé no chão... sim, ele estava mesmo de pés descalços, decerto para não nos perturbar o sono mais ou menos inocente. (In: SANTOS, 2007, p.204-5).

Para Candido (1992, p.22), a crônica brasileira, quando bem realizada, “[...] participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo”. 4.5 Atividades de leitura e interpretação de textos 1) Vejamos um exemplo de crônica-diálogo que, embora entabule uma conversa descontraída com o leitor, utiliza-se de uma complexa estratégia argumentativa, pois fundada no consensual e no lirismo. Leia a crônica de Antônio Maria e responda às seguintes questões:


114

Café com leite

Antônio Maria20

É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais. A mulher a quem se chega, exausto e, com a força do cansaço, dá-se o espiritualismo amor do corpo. Como deve ser triste a vida dos homens que tem mulheres de tarde, em apartamentos de chaves emprestadas, nos lençóis dos outros! Quem assim procede (o tom é bíblico e verdadeiro) divide a mulher com o que empresta as chaves. Para os chamados "grandes homens" a mulher é sempre uma aventura. De tarde, sempre. Aquela mulher que chega se desculpando; e se despe, desculpando-se; e se crispa, ao ser tocada e serra os olhos, com toda força, com todo desgosto, enquanto dura o compromisso. É melhor ser-se um "pequeno homem". Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E a um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do prazer cumprido. No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo asceticismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.

1.1 Destaque da crônica os trechos que revelam: a) diálogo com o leitor; b) argumentação baseada no consenso; c) lirismo. 2) Leia atentamente a crônica a seguir, de Clarice Lispector (In: SANTOS, 2007, p.186-7), e responda às seguintes questões: O milagre das folhas Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes. Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um

20

In: (SANTOS, 2007, p.96).


115 leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada. Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhidas as folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas coincidirão comigo. Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.

2.1 Como pode ser classificada a crônica de Lispector, conforme as cinco categorias de Antonio Candido (crônica-diálogo, crônica-poesia, crônicaconto, crônica-biografia, crônica-anedota)? Justifique. 2.2 Como se efetiva na narrativa a epifania da narradora? Explique, exemplificando com passagens do texto.

Sugestões de leituras: 

Crônica de uma morte anunciada – Gabriel García Márquez

As 100 melhores crônicas brasileiras – Joaquim Ferreira dos Santos

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar – Moacyr Scliar


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Caderno Complementar 1

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SECADI

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NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA

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