Caderno Complementar 2
CAPES/SECADI/UAB/MEC e a Universidade Estadual Paulista (NEAD/Reitoria) Processo FNDE 400166-2010 UNESP/2014
Caderno Complementar 2 Organizadores Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira Juvenal Zanchetta Júnior Ricardo Magalhães Bulhões Rony Farto Pereira Thiago Alves Valente
SECADI
UAB
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA
NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA
2015
NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp
F723
Formação de mediadores de leitura: caderno complementar 2 / Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira et. al. (organizadores). Assis: ANEP - Associação Núcleo Editorial Proleitura, 2015. 84 f. : il. ISBN: 978-85-67196-01-5 1. Mediação de leitura. 2. Leitura. 3. Professores - Formação. 4. Literatura infanto-juvenil. 5. Formação de leitor. I. Ferreira, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. II. Zanchetta Junior, Juvenal. III. Pereira, Rony Farto. IV. Valente, Thiago Alves. CDD 028.9
SUMÁRIO
Apresentação..................................................................................................................05 A construção da identidade infantil na literatura brasileira: uma reflexão sobre a formação do leitor .....................................................................................................07 Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira Ricardo Magalhães Bulhões Silvana Augusta Barbosa Carrijo Roteiro para a leitura de textos informativos na escola ..........................................31 Juvenal Zanchetta Júnior Mediação da apreciação musical na escola ..............................................................52 Paulo Constantino Uma proposta de análise da tensão presente em narrativas de ficção ..................62 Érika Nogueira Menegon Obras canônicas e contemporâneas na formação do leitor: uma reflexão acerca da adaptação ..................................................................................................73 Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira Ricardo Magalhães Bulhões
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APRESENTAÇÃO Este caderno de estudos foi produzido originariamente como recurso didático do Curso “Mediadores de Leitura Literária”, promovido pelo Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, em convênio com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação (MEC). O curso foi realizado entre os anos de 2014 e 2015, reunindo alunos de polos da Universidade Aberta do Brasil (UAB), localizados no Estado de São Paulo e no Paraná. Os textos seguintes, complementares ao conteúdo apresentado durante o curso, apresentam como característica comum a sugestão, mesmo introdutória, de roteiros para o enfrentamento de textos literários, adaptados ou não, musicais e midiáticos. O texto “A construção da identidade infantil na literatura brasileira: uma reflexão sobre a formação do leitor”, de Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, Ricardo Magalhães Bulhões e Silvana Augusta Barbosa Carrijo, focaliza a concepção de infância presente nas produções literárias “Ai que saudades...”, de Ruth Rocha (1983), e “A Peste que eu Fui ou... Ai, que Falta de Saudades dos Meus Oito Anos!” (1981), de Sylvia Orthof, e reflete acerca da dialogia que estabelecem com o poema “Meus oito anos” (1859), de Casimiro de Abreu. Ao tratar da poesia clássica, em contraste com textos poéticos contemporâneos, o ensaio não apenas ajuda a revigorar um poema escrito em meados do século 19, como também oferece alternativa aos mediadores para o trabalho com a leitura da poesia na escola. Já o “Roteiro para análise de textos midiáticos na escola”, de Juvenal Zanchetta Júnior, oferece um passo a passo para auxiliar os mediadores a tratar de textos publicados pela mídia, de propagandas a notícias de jornal, incluindo a linguagem verbal e a não verbal. O texto “Mediação da apreciação musical na escola”, de Paulo Constantino, aborda um tema hoje obrigatório na escola, mas ainda carente de instrumentos para a sua operacionalização. “Uma proposta de análise da tensão presente em narrativas de ficção”, de Érika Nogueira Menegon, destaca um dos elementos centrais das narrativas de ficção, a tensão, para esboçar um percurso que pode auxiliar o professor e os alunos a investigarem tanto uma história em quadrinhos, quanto um conto clássico. Finalmente, “Obras canônicas e contemporâneas na formação do leitor: uma
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reflexão acerca da adaptação”, de Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira e Ricardo Magalhães Bulhões, trata da formação de uma memória cultural, de um lastro de leituras, o qual pode ser acionado no trabalho dialógico com textos adaptados e canônicos, visando à formação do leitor. Os organizadores.
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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INFANTIL NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO DO LEITOR Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira FCL UNESP – Assis/SP-GP LLE Ricardo Magalhães Bulhões UFMS – Três Lagoas/MS Silvana Augusta Barbosa Carrijo UFG – Catalão/GO
Infância flexionada em número plural Um dos mais enriquecedores contributos advindos dos Estudos Culturais se traduz na compreensão da necessidade de se considerar a identidade de qualquer sujeito como construção social. Tal compreensão implica que se considere os constituintes identitários de um sujeito como capazes de se modificar, conforme se focalizem as diferentes fatias de tempo e espaço, as quais circunscrevem determinada coletividade e até mesmo aquelas que dizem respeito à história de vida de um indivíduo considerado em sua particularidade, conforme as várias etapas apresentadas por sua trajetória pessoal. Nesta perspectiva, importa considerar, no processo de construção de conhecimentos, que os termos “criança” e “infância” serão compreendidos de formas distintas por diferenciadas sociedades. Além disso, os Estudos Culturais ressaltam a necessidade de se considerar o cruzamento dos vários eixos identitários que constituem o sujeito. Assim sendo, caso se queira alcançar uma compreensão ampla e inequívoca do constituinte identitário “criança”, há que se considerá-lo não de forma isolada, mas em seu estreito cruzamento com outros constituintes identitários, tais como classe social, gênero e etnia, como bem aponta Colin Heywood: Atualmente, no Ocidente, acabamos realmente por associar a infância, em termos gerais, a características como a inocência, a vulnerabilidade e a assexualidade, enquanto pessoas em lugares como, digamos, as favelas da América Latina ou as regiões devastadas pela guerra da África, provavelmente, não o fariam. O segundo elemento do novo paradigma é de
8 que a criança é uma variável da análise social, a ser analisada em conjunto com outras, como a famosa tríade classe, gênero e etnicidade. Em outras palavras, uma categoria relacionada à idade, como a infância, não pode ser investigada sem que se faça referência a outras formas de diferenciação social que a intersectam. Uma infância de classe média será diferente daquela vivida no seio da classe trabalhadora, os meninos provavelmente não serão criados da mesma forma que as meninas, as experiências de um jovem em uma família católica da Irlanda serão distintas das daquele que cresceu em uma família protestante alemã, e assim por diante (2004, p.12).
A prosa representativa do período romântico na literatura brasileira se caracteriza por uma significativa lacuna, por um silencioso vazio no que se refere à representação da infância em suas páginas. A poesia romântica, por sua vez, conforme Anderson Luís Nunes da Mata, [...] já delimitava a infância como o tempo a ser lembrado, de uma inocência a ser perseguida, a prosa brasileira até então, com poucas exceções como uma breve passagem em A moreninha, de Joaquim Manuel Macedo, ou da primeira parte de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, voltava suas costas para o assunto, preferindo desenhar em suas páginas a inocência do selvagem (2006, p.19).
Em contrapartida, a segunda metade do século XIX brinda o leitor com páginas e páginas que contemplam a figura da criança, em obras de diversificados estilos, produzidas por autores vários, como Maxsim Górki, Leon Tolstoi, Carlo Collodi, Mark Twain, Viriato Correia e Raul Pompéia, como bem elenca Mata (2006). Com suas trilhas abertas, a produção literária brasileira contemporânea, quer a de potencial recepção infantil e juvenil, quer aquela cujo público virtual leitor se constitui de adultos, apresenta-se plena de crianças que protagonizam suas tramas e exemplificam a contento a pluralidade com que se é possível considerar tal identidade e as várias concepções de infância que a ela se vinculam. No vasto campo formado por este legado literário, indagamos o diálogo que o poema “Ai que saudades...” (1981), de Ruth Rocha, e o conto “A peste que eu fui ou... ai, que falta de saudades dos meus oito anos” (1981), de Sylvia Orthof, estabelecem com o poema “Meus oito anos”, do escritor de expressão romântica Casimiro de Abreu (1859)1. O vocábulo saudade, presente no título dos três textos, ancorando-os à linhagem textual inaugurada pelo autor dos versos “Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida”, instiga ao exame do processo hermenêutico que filia estes textos 1
A edição por nós utilizada é a de 1895, data que constará, pois, como referência, em todas as citações textuais do poema, no presente trabalho.
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contemporâneos a um paradigma canônico. Examinar tal dialogismo, mais especificamente no que se refere à representação da infância nos textos elencados, constitui o escopo da análise a que nos propomos. Partimos do pressuposto de que tal análise evidenciará como a literatura, semelhante a um farol, ilumina a realidade, ao tratar da pluralidade do sujeito criança. Para tanto, construímos a hipótese de que, em páginas da literatura brasileira, a infância se flexiona em número plural. Para a consecução dos objetivos, adotamos uma perspectiva comparatista, buscando certas afinidades entre os textos mencionados, seguindo como princípio norteador a ideia de Massaud Moisés (2005) de que essas relações podem ser estudadas entre: obras; autores; movimentos; por meio de análises da fortuna crítica ou da fortuna de tradução de um autor em outro país, do estudo de um tema ou de uma personagem em várias literaturas. Neste texto, optamos pela temática infância, bem como pela análise de sua representação literária. Embora publicados em meios diversos, os textos em questão pertencem, originalmente, ao mesmo campo cultural – segundo a perspectiva de Pierre Bourdieu (2004) –, no caso, o da produção literária. Dessa forma, as negociações e os consensos que surgem representados nesses textos literários dialogam tanto com a realidade circundante, quanto com a produção literária do seu tempo e com a canônica. Pelo exposto, cabe refletir, então, acerca da dialogia que se estabelece entre os textos desses escritores. Como está representada a realidade em seus textos? Sobretudo, como se configura o tema infância? Analisa-se, neste texto, o dialogismo discursivo interno, que conforme Diana Barros (1999), realiza-se no âmbito do texto, das vozes que falam e polemizam nele, reproduzindo o diálogo com outros textos. Neste capítulo, acredita-se que a explicitação da dialogia entre obras permite que a leitura se torne mais interessante e saborosa para o leitor, que, segundo Umberto Eco (2003), percebe a citação intertextual presente no jogo ficcional. Conforme Nelson A. D. Rodrigues (2003), o dialogismo enaltece o papel do outro na constituição do sentido, por meio dele, pode-se reconhecer, segundo Bakhtin (1995), que a palavra não pertence a um “eu” exclusivo, antes traz em si a perspectiva de outra voz. Desse modo, buscamos analisar o texto literário tanto em seu caráter artístico, quanto em sua historicidade, pela relação dialógica que estabelece com o leitor. Essa relação, conforme a Estética da Recepção, decorre da presença de vazios que solicitam do leitor que seja na composição literária o organizador e revitalizador da narrativa.
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Assim, o texto, por supor necessariamente um recebedor, possui uma estrutura de apelo que, de acordo com Wolfgang Iser (1999), projeta um leitor implícito. Os vazios, nos textos ficcionais literários de acordo com Iser (1999), são absolutizados para que, pela leitura, o leitor descubra as suas próprias projeções. De paródia e infância: Modus operandi de uma carpintaria literária No marco da pós-modernidade, prevalece tanto o hibridismo de gêneros textuais em produções literárias, quanto a dialogia. Nesses textos, há a releitura da história e da literatura, sobretudo realizada de forma paródica, contestando o cânone através de práticas descentralizantes, democratizantes e desierarquizantes. De acordo com Clarice Lotermann (2003), essa produção contemporânea revela-se sintonizada com a paródia e o pastiche. Para esta crítica, a originalidade, tão cara aos românticos, na contemporaneidade, já não é um valor primeiro da obra de arte. Além disso, o diálogo que textos contemporâneos estabelecem com determinadas obras canônicas representa um sinal de vitalidade. Segundo Jameson, há, na produção pós-moderna, um jogo aleatório de significantes que se denomina como pós-modernismo. Este, por sua vez, não produz obras monumentais, antes rearranja “[...] os fragmentos de textos preexistentes, os blocos de construção da produção social e cultural mais antiga, em alguma nova e exaltada bricolagem: metalivros que canibalizam outros livros, metatextos que unem pedaços de outros textos.” (apud LOTERMANN, 2003, p. 356-7). Conforme Lotermann (2003), o cânone é tratado de forma irreverente e dessacralizada nessas produções. Embora se reconheça o valor do texto artístico canônico, este não é mais visto como intocável em sua aura artística, conforme define Walter Benjamim (2002). Para este estudioso, o declínio da aura advém de causas sociais. Na sociedade capitalista, as reproduções atendem ao desejo das massas de “[...] que as coisas se lhes tornem, espacial e humanamente “mais próximas”” (2002, p.227). Segundo Benjamin, a obra de arte ao ser atualizada perde sua qualidade de integração na tradição, sua unicidade. Essa integração ocorre por meio do culto inserido num conjunto de relações tradicionais. A aura é destruída no momento que a obra perde sua função ritual, seu valor de uso no culto, inclusive à beleza, sob suas formas mais profanas.
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O culto à beleza nasceu no Renascimento e foi dominante por aproximadamente três séculos, mas com o advento da fotografia, no início do socialismo, com Mallarmé, os artistas presenciaram uma “arte pela arte”, a arte “pura” que recusa desempenhar qualquer papel essencial, inclusive se submetendo às condições impostas pelo meio em que é produzida (2002, p.229). Assim, com a existência do negativo de uma fotografia, que lhe permite um grande número de provas, a autenticidade não se aplica mais à produção artística, toda função da arte foi subvertida: “Em lugar de repousar sobre o ritual, ela se funda agora sobre uma outra forma da práxis: a política” (2002, p.230). No contexto da II Guerra Mundial, com a perseguição nazista aos judeus, em que Benjamim escreve sua crítica, sua percepção sobre a produção cultural utilizada como aparelho ideológico e filiada à classe que detém o poder é válida e acertada. Mas, atualmente, como será que se estabelece a relação entre cânone e produção contemporânea? Será que aquele é retomado, apenas, pelo pastiche ou será retomado com o fito de subversão, pelo viés da paródia e do humor? Será que essa dialogia da produção contemporânea com a considerada clássica também resulta em um trabalho dotado de validade estética, justamente por isto, capaz de democratizar a cultura? Ou resulta em um texto com fins políticos e pedagogizantes filiados à classe dominante? Para Linda Hutcheon (1991, p.160), a subjetividade, a intertextualidade e as referências ideológicas estão por trás das relações problematizadas nessa produção. Diante disto, cabe investigar como se realiza a dialogia entre os textos eleitos como objeto de análise. Para tanto, problematizamos uma discussão acerca de cânone e paródia, buscando observar se as produções de Ruth Rocha e Sylvia Orthof, destinadas ao público juvenil, atingem estatuto literário ou se revelam como meros pastiches, sem alcançarem o distanciamento crítico produzido pela ironia. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é mostrar como a ficção e a poesia brasileira, desde a década de 1970, destinadas ao jovem, vêm assimilando essa tendência da produção literária parodística, mais especificamente, como a produção voltada para o público juvenil estabelece diálogo com o poema canônico de Casimiro de Abreu.
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A dialogia Linda Hutcheon (1991), em sua obra, Poética do pós-modernismo, discute acerca da metaficção historiográfica, apontando-a como característica fundamental da ficção pós-moderna. Trata-se de uma produção que revela intensa autoconsciência em relação à maneira como um texto é construído. Para a autora, o uso da paródia avulta como recurso metaficcional por excelência. Sobre a natureza textual ou discursiva da paródia, Hutcheon (1989, p.50) define-a como irônica e a distingue da imitação, citação e alusão, pela distância irônica e crítica que ela exige. Já o pastiche “[...] opera mais por semelhança e correspondência”. Assim, enquanto “[...] a paródia é transformadora no seu relacionamento com outros textos; o pastiche é imitativo”. Para Hutcheon: “A paródia está para o pastiche talvez como a figura de retórica está para o clichê. No pastiche e no clichê, pode dizer-se que a diferença se reduz à semelhança” (1989, p.51). Segundo a autora (1991, p.69), uma das contradições da ficção pós-moderna é a de que ela diminui o hiato entre as formas artísticas altas e baixas, e o faz por meio da ironia em relação a ambas. Para Josef (1980, apud Fávero, 1999, p.53), na “[...] paródia, a linguagem torna-se dupla, sendo impossível a fusão de vozes [...]: é uma escrita transgressora que engole e transforma o texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas, ao mesmo tempo, o nega.” Para Leonor Lopes Fávero (1999, p.53), são dois princípios que tornam possível essa transgressão: o diálogo e a ambivalência, os quais correspondem a “[...] dois eixos: horizontal (sujeito da escritura – destinatário) e vertical (texto – contexto) que se cruzam gerando [...] a intertextualidade e possibilitando a dupla leitura”. Para Heidrun Krieger Olinto, a defesa exclusiva da literatura clássica e da herança nacional, como uma forma de manutenção de repertórios provenientes de um saber cultural canônico, é tão problemática quanto a sua rejeição global. Atualmente, formas culturais mistas circulam e prevalecem, “[...] e até os textos canônicos são relidos como pontos de cruzamento de discursos amplos, que transcendem as fronteiras tradicionais da esfera do literário e do horizonte de pertença a espaços nacionais linguística e geograficamente circunscritos” (2003, p.75). Justamente, a intertextualidade interessa neste capítulo, pois para estabelecer uma comunicação com o leitor, no plano discursivo, a obra mobiliza sua biblioteca vivida, sua memória (FERREIRA, 2009). Esse processo ocorre, porque a
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intertextualidade substitui o relacionamento entre autor e texto, pelo entre leitor e o texto, situando o locus do sentido textual dentro da história do próprio discurso (HUTCHEON, 1991). Segundo Carlos Magno Gomes (2008, p.116), o conceito de leitor estético, que se preocupa com o “como” um texto foi construído, pode ser usado como uma metodologia de leitura que privilegia o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais que o texto carrega. Umberto Eco, ao tratar do leitor crítico (2003, p.208), estético, define-o como capaz de realizar analogias entre obras, perceber que elas dialogam entre si. Enfim, pela dialogia, um leitor ao realizar a leitura de um texto, vai além dos significados e o relaciona às suas heranças culturais, às suas memórias de leituras anteriores. Vale destacar, ainda, que a paródia já existia na Grécia, em Roma e na Idade Média. Para Affonso Romano de Sant’ Anna, este termo institucionalizou-se a partir do século XVII (2007). Contudo, segundo Leonor Lopes Fávero (1999), Aristóteles, na Poética, atribui a Hegemon de Thaso (século V a.C.) a origem da paródia como arte. Para esta autora, o termo paródia “[...] significa canto paralelo (de para = ao lado de e ode = canto), [...] uma espécie de contracanto” (1999, p.49). Em nossa época, a presença da paródia não pode ser vista apenas como um recurso de a linguagem se voltar sobre si mesma, mas como fenômeno reflexo do alargamento interno da linguagem literária, segundo Sant’ Anna: “[...] numa alquimia de materiais estilísticos e formais que tornam o texto literário um código que só os iniciados podem decodificar” (2007, p.8). Assim, ser leitor na contemporaneidade requer, mais do nunca, uma memória transtextual. Para este autor (2007), a paródia surge como efeito metalinguístico, pois a linguagem fala sobre outra linguagem, configurando-se não apenas como paródia de textos alheios (intertextualidade), como dos próprios textos (intratextualidade). Neste artigo, nossa análise se atém à categoria da intertextualidade, já que os textos que dialogam com o poema de Casimiro de Abreu são escritos por autoras diversas. Como nossa abordagem recai sobre a representação da infância, acreditamos que as produções parodísticas de Ruth Rocha e Sylvia Orthof realizam a função catártica, funcionando como contraponto com os momentos de muita dramaticidade. Como partem de temas trágicos, pois resultam de relatos que recordam o quanto seus sujeitos (eu lírico e narradora) foram infelizes na infância, em um sentido psicanalítico, funcionam como re-apresentação, ou seja, conforme Sant’Anna (2007), manifestam
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algo que ficou recalcado, mas agora volta à tona. Neste caso, tal processo se dá pelo viés da memória subversiva que atua como contenção de uma visão idílica, buscando em sua realização pela paródia o efeito da ironia, da negação de um discurso idealizante de infância. Para Sant’ Anna, justamente, o texto parodístico é “[...] Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação dos discursos. É uma tomada de consciência crítica” (2007, p.31). Conforme o autor, a paródia é uma rebelião, pelo viés psicanalítico, mas a verdadeira questão que se coloca diante dela é a do literário, aliás, do específico literário. Terá um texto parodístico potencialidades estéticas? Como reconhecê-las? Neste texto, percebemos a paródia literária como meio de desautomatização da língua e ativação da memória transtextual, evocando-a, pelo reconhecimento da dialogia, ao mesmo tempo que a subverte. Em sua realização, atualiza-se a estrutura de apelo do texto, no caso, pelo convocar da memória e do espírito crítico do leitor. Em síntese, a dialogia entre textos em seu viés paródico pode auxiliar o mediador em seu trabalho com a leitura, visando à formação do leitor crítico em âmbito escolar. Sylvia Orthof e Ruth Rocha em cena Neste capítulo, o texto literário interessa, de acordo com Barros (1999), como objeto de significação organizado e estruturado, e como objeto de comunicação de uma cultura, cujo sentido depende tanto do contexto sócio-histórico em que foi produzido, quanto do qual é veiculado. Para o leitor, o texto literário, pela sua qualidade emancipatória, configura-se como objeto de reflexão sobre a experiência e experiência de reflexão. Para Regina Zilberman (1998, p.40), o texto artístico emancipa, pois requer uma interpretação da existência que conduz o ser humano a uma compreensão mais ampla e eficaz de seu universo, qualquer que seja sua idade ou situação intelectual, emotiva e social. Justamente, a partir da década de 1970, retomando a contestação lobatiana, a produção destinada à criança e ao jovem conquista a legitimidade da resistência. Assim, ela é capaz de recuperar o discurso de seu destinatário, por meio da dialogia. Nessa esteira, em 1980, determinados autores, como Ruth Rocha e Sylvia Orthof, percebem que somente uma produção capaz de conduzir a posicionamentos críticos pode favorecer a desejos de mudança. Para que ela se efetive, faz-se necessário que haja
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produtividade por parte de seu receptor. Essa produtividade requer dialogia que, por sua vez, amplia o diálogo entre leitor e texto para entre o texto em questão e outros textos contemporâneos ou não. Todavia, essa produtividade requer um lastro de leituras, uma memória composta por referências literárias: uma biblioteca vivida. Na atualidade, embora prevaleça a produção de massa, há também obras emancipatórias que, segundo Zilberman, não se fecham sobre si mesmas, antes suscitam “[...] o ato mais significativo que o acesso ao mundo da escrita deflagra: a intervenção no real e o trânsito ao imaginário por intermédio de uma ação eficiente” (1990, p.113). A relação dialógica entre leitor e obra, de acordo com Hans Robert Jauss (1994, p.23), pode ser entendida tanto como a da comunicação com o receptor, quanto a relação de pergunta e resposta embasada no âmbito de uma história da literatura e no nexo entre as obras literárias. Para Jauss (1994), a implicação estética reside no fato de a primeira recepção de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, justamente, pela comparação com outras. Essa comparação significa que o leitor adquiriu um novo parâmetro para a avaliação de novas obras. Já a implicação histórica avulta na possibilidade de, em uma cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética. Assim, a obra literária produz efeito quando sua recepção se estende para as gerações futuras, quando estas gerações a retomam, quando existem leitores que novamente se apropriam da obra passada ou autores que desejam imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la, enfim, quando ocorre dialogia. A idealização romântica da infância A popularidade do poema lírico “Meus Oito Anos”, obra do típico escritor romântico Casimiro José Marques de Abreu, é conhecida e inquestionável. Este texto aparece pela primeira vez na coletânea As Primaveras (1859). A identificação do leitor com o texto que, ao longo de vários anos, foi declamado por gerações de leitores dos mais diversos, deve-se “[...] ao lirismo açucarado de toque sentimental” (CANDIDO, 2002, p. 59), atrelado à versificação correta e fácil. Além dos dois fatores apontados por Antonio Candido, “Meus Oito Anos” é, sem dúvida, um dos textos que melhor manifesta a alma romântica, em especial, pelo acentuar da primeira pessoa do singular em: “eu senti”, “eu sofri”. Há no texto, repetitivamente, diversas alusões a esse estado
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de espírito, como fica claro desde o início nos conhecidíssimos versos “Oh! que saudades que eu tenho/Da aurora da minha vida, Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais”. Percebe-se, a partir dos versos transcritos acima, um talentoso processo de incorporação de um modelo poético pré-estabelecido. Ao falar da sua infância longínqua (da “aurora querida”), usando um estilo consagrado, Casimiro de Abreu estabelece uma “confluência” temático-estilística com outros textos da sua época e de períodos anteriores, por meio de imagens individualistas da infância e da mocidade análogas às de outros autores. Segundo Sandra Nitrini, “[...] o cultivo do individualismo não tem nada de original, pois é comum a toda uma época, dá a impressão de que a obra literária não tem vínculos com a tradição” (2010, p.141). Para a autora, tal concepção revela-se equivocada, “[...] abrindo brecha para uma visão subjetiva do conceito de originalidade, criando falsa ilusão tanto no escritor que se julga diferente quanto no leitor que apreciará a qualidade de uma obra em razão de seu aparente traço inusitado e individual” (NITRINI, 2010, p.141). O poema “A Minha Esteira”, de Álvares de Azevedo, é um exemplo dessa confluência comum às convenções românticas: “Aqui do vale respirando à sombra/passo cantando a mocidade inteira.../Escuto no arvoredo os passarinhos/E durmo venturoso em minha esteira” (In: PENSADOR, 2014). Para Leyla Perrone Moisés, “[...] mais curioso do que o fenômeno da influência é o fenômeno da confluência, que pode ser definido como uma semelhança que não tem a anterioridade temporal como prova” (2007, p.104). Perrone Moisés, ao situar a obra de Castro Alves entre as mais significativas do Romantismo, assinala que, mesmo Victor Hugo tendo vivido mais do que Castro Alves e em época posterior, “[...] algumas vezes encontramos coincidências em versos de Castro Alves, que são anteriores aos de Victor Hugo” (MOISÉS, 2007, p. 104). Se a literatura nasce da literatura, dentro de uma tradição, é importante lembrar, seguindo as considerações de Silva (1988, p.558), que o Romantismo se sente atraído pelo passado em geral e a arte romântica manifesta o gosto pelo excessivo, quase sempre atento ao que ele chamou de “real subjetivo”. No poema, se pinçarmos alguns trechos, não há realidade objetiva alguma. Em seu lugar, saltam à vista as constantes reminiscências de uma infância imaginária, subjetiva, idealizada, completamente distante, que acaba sendo descrita com a graça das coisas simples. “Que amor, que
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sonhos, que flores,/Naquelas tardes fagueiras/À sombra das bananeiras,/Debaixo dos laranjais!” Essa seleção vocabular simples, direta, sem rebuscamentos formais, a nosso ver, é condição sine qua non para que o leitor médio se aproxime e se comova durante a leitura. Em “Meus oito anos”, o sujeito do texto recorre a esses expedientes por meio de algumas posturas que se tornam paradigmas, como a ternura ingênua, o tom açucarado, o ritmo melódico e tantos outros recursos. Vale a pena recortar mais um trecho que nos revela esse mundo totalmente idealizado: “Que aurora, que sol, que vida,/Que noites de melodia/Naquela doce alegria,/Naquele ingênuo folgar!/O céu bordado d'estrelas,/A terra de aromas cheia /As ondas beijando a areia/E a lua beijando o mar!” Notemos que os versos acima são regulares, heptassilábicos, entrecortados por longas pausas marcadas pelas vírgulas, o que garante ao poema musicalidade acentuada, equilibrada de forma harmoniosa, cadenciada. O texto visa a provocar tal comoção no leitor. Este participa, emociona-se, torna-se cúmplice através da leitura das operações organizadas pelo “eu lírico”, dado o efeito de subjetividade que se constrói nos enunciados que as constituem. Ao configurar o gênero lírico e seus traços estilísticos fundamentais, Anatol Rosenfeld (1965) assinala que, no poema lírico, existe uma voz central que exprime um estado de alma. Nota-se, então, que não há uma estrutura de apelo que convoca o leitor à participação. O que ocorre é um jogo de sedução em que o leitor é levado a concordar com o que lê e se identificar, assumindo uma perspectiva idealizante de infância. Tratase, portanto, essencialmente, da expressão de emoções e de disposições psíquicas, muitas vezes visões intensamente experimentadas. No fundo, podemos considerar que o texto está sempre subordinado a uma visão apaixonada das coisas, porém, ao mesmo tempo, revelando-nos outros elementos temáticos, como a investigação da identidade e uma busca pela liberdade, pelo prazer, pelas coisas mais naturais. Não podemos esquecer, segundo Candido (2002), que Mário de Andrade foi um dos primeiros críticos a destacar um traço inovador na poesia de Casimiro de Abreu, ao dizer que havia nele, por baixo dos traços melancólicos, um erotismo disfarçado pelos aspectos convencionais. A transcrição destes versos de uma estrofe inteira do poeta romântico é relevante para visualizarmos melhor essa possível sensualidade apontada pelo autor de Macunaíma: Livre filho das montanhas, Eu ia bem satisfeito
18 Da camisa aberta o peito, — Pés descalços, braços nus — Correndo pelas campinas A roda das cachoeiras, Atrás das asas ligeiras Das borboletas azuis!
Antonio Candido reforça que, talvez por isso, o poeta “[...] tenha atraído tanto as moças que encontravam na sua obra a força do sexo sem ofensas às convenções” (2002, p.60). Quando o inferno são os adultos O poema de Ruth Rocha, intitulado “Ai que saudades...”, define-se pela ironia em seu diálogo parodístico com o poema “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Nesse processo intertextual, a autora incorpora no seu texto o de Casimiro de Abreu, com o fito de subvertê-lo. Para tanto, vale-se do recurso da alusão, que consiste na reprodução de “[...] construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras” (FIORIN, 2003, p.31). A filiação ao texto de Casimiro de Abreu se dá pela reprodução quase total dos primeiros quatro versos e também dos quatro últimos versos do poema do escritor na versão engendrada pela escritora. Os poemas se iniciam e se concluem praticamente pelos mesmos versos, com exceção da mudança, no primeiro verso, da interjeição “Oh!”, em Casimiro de Abreu, para “Ai!, em Ruth Rocha. Aludindo à moldura do texto predecessor, Ruth Rocha, no entanto, ao substituir a interjeição de grandiloquência por outra indicativa de dor e/ou pesar, confere o caráter paródico ao seu texto em relação a uma visão idílica da infância. Em Ruth Rocha, a infância flexiona-se em sofrimento, em dor. A interjeição “Ai” do primeiro verso é ratificada por uma série de situações descritas nos próximos versos, a indicar o infortúnio do ser e estar no mundo na condição da criança. Primeiramente, o eu-lírico confessa seu deslocamento identitário: Me sentia rejeitada, Tão feita, desajeitada, Tão frágil, tola, impotente, Apesar dos laranjais (ROCHA, 1983, p.105).
Todo o desconforto da condição infantil, na releitura paródica de Ruth Rocha, advém das relações intersubjetivas assimétricas entre crianças e adultos. Rocha revela a
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heteronímia do ser criança, isento de autonomia, sempre subjugado às relações de poder comandadas pelo outro, o adulto, seja ele pai, mãe, irmão mais velho ou professora. O adulto lhe dita o que comer: “Não gostava da comida/Mas tinha que comer mais..” (ROCHA, 1983, p.105). O adulto escraviza a criança: “Todos mandam na coitada,/Ela não manda em ninguém...” (ROCHA, 1983, p.105). A interdição à fala, à qual a etimologia do termo “infante” remete, é também contemplada no poema. À criança não é dado o direito de voz, seja em casa, em que ela é obrigada a dizer sempre amém, seja na escola, em que “Não podia abrir a boca,/E a professora era louca,/Só queria era gritar” (ROCHA, 1983, p.105). A destituição de discurso e do poder que lhe é decorrente culmina na afirmação de um dos versos da penúltima estrofe: “Criança não tem razão!” Esta concepção de infância desafortunada, subjugada aos ditames adultos, encontra franca expressão em toda uma gramática de verbos no imperativo. A criança é aquela que recebe ordens, interpelada a obedecer sem questionar, pois parte-se do pressuposto de que é um ser destituído de razão: E as ordens? Anda direito! Diz bom dia pras visitas! Que menina mais sem jeito! Tira o dedo do nariz! (ROCHA, 1983, p.106). Vai já botar o agasalho! Vai já fazer a lição! Criança não tem razão! É tarde, vai já pra cama! (ROCHA, 1983, p.106).
Além de prescrever cardápios que a criança rejeita, por não se lhes apresentar saborosos, além de determinar-lhes a vestimenta, de lhes imputar ordens as mais diversas, o adulto também “castra” a subjetividade, a expressividade infantil. À criança são exigidos recato, nulidade, vida regrada pelo sensabor, pela ausência do gozo e do riso: “Menina se mostradeira!/Menina novidadeira!/Está se rindo demais!” (ROCHA, 1983, p.106). Contrapõem-se, a todo o momento, na releitura paródica de Ruth Rocha, as identidades da criança e do adulto. Assim, ser criança é não ser adulto, por isto destituída de poder, ou seja, marcada pelo ausência deste. A identidade infantil se define, pois, em estreita diferença com relação à identidade do adulto e este processo de construção social da identidade e da diferença é, como bem lembra Tomaz Tadeu da Silva, perpassado por relações de poder:
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A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (2011, p. 81).
Ruth Rocha denuncia a infância perdedora, a criança que perde na disputa com o adulto que lhe é, intransigentemente, hostil e superior. O sentimento adulto em relação à criança, representado neste poema, faz lembrar o sentimento de exasperação que Philippe Ariès (1981) historiciza no contexto da Idade Média, substituindo, à época, o sentimento de “paparicação”. Mudam-se os tempos e com isto os contextos, mas muito da vilania humana, em parte, permanece. Se há o adulto que protege, acolhe, afaga, há também a alteridade infernal sartreana que o adulto pode representar. A identidade dos adultos no poema de Ruth Rocha rivaliza com a condição infantil, pois configura-se como antagonista e nociva. No entanto, a constante presença do humor, no poema de Ruth Rocha, eufemiza o aspecto trágico da infância sem, contudo, deixar de denunciálo. Vale ressaltar como o texto de Ruth Rocha exige um processo de leitura em palimpsesto, solicitando participação do leitor implícito apto a preencher de ironia o que um leitor não iniciado, que desconhece o texto de Casimiro de Abreu, poderia considerar contradição. Ruth Rocha contrapõe imediatamente à reprodução dos versos de Casimiro complementos que destoam da ideia de concepção de infância paradisíaca que no poeta romântico se expressa: Ai que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais... Me sentia rejeitada, Tão feita, desajeitada, Tão frágil, tola, impotente, Apesar dos laranjais (ROCHA, 1983, p. 105). * * * Naqueles tempos ditosos Não podia abrir a boca, E a professora era louca, Só queria era gritar (ROCHA, 1983, p. 105). * * *
21 Vê se penteia o cabelo! Menina se mostradeira! Menina novidadeira! Está se rindo demais! - Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! (ROCHA, 1983, p. 106).
Como sentir saudades de uma infância em que se era rejeitada? Como ser ditoso um tempo em que não se podia pronunciar? Como coroar a infância de sonho e flores se sequer se podia rir? As relações entre os versos só adquirem sentido se o leitor realizar um movimento de marcha ré, resgatar o texto de Casimiro, percebendo inclusive que a literatura procura destituir “verdades” que ela própria pode ter construído em outros tempos, em outras penas, pela voz de outros escritores. Desfaz-se não só a concepção de infância ditosa, mas a própria sacralização do discurso de determinado poeta como verdade absoluta e acabada. Este é o caráter da paródia: a sua habilidade de propor outro canto, paralelo ao primeiro, relativizando a concepção de infância, pluralizando-a, sem escamotear o quanto ela pode significar de desalento e dor. Se para alguns a infância pode ter sido predominantemente felicidade, proteção, amparo, para outros pode ter se traduzido em desdita, anulação, fratura, dissabor. Para o alcance desta pluralização de concepções da infância, para a realização desta leitura em camadas, da percepção de um canto que se contrapõe a outro, o papel da mediação leitora é substancial para que o saber literário seja transmitido a gerações futuras. É preciso dar a conhecer ao leitor iniciante a existência de um projeto literário anterior, com o qual a produção literária contemporânea dialoga, em dissonante voz. Uma reflexão sobre “pestes” e dramas O texto de Sylvia Orthof, pelo título “A Peste que eu Fui ou... Ai, que Falta de Saudades dos Meus Oito Anos!”, já anuncia a dialogia, pelo viés paródico, com o texto de Casimiro de Abreu, no tratamento do tema “infância” e na sua dissociação da expressão “saudades”. Assim, retoma o título deste, “Meus Oito Anos”, e o termo “saudades”, de seu primeiro verso – “Oh! Que saudades que tenho” –, em um diálogo marcado pela subversão e negação: “Falta de Saudades dos Meus Oito Anos!” Acrescente-se o ponto de exclamação que, no texto de Casimiro de Abreu, assume o
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valor de grandiloquência, de ênfase das saudades da infância que o “eu lírico” afirma sentir, enquanto, no texto de Orthof, ele confere ao título o tom irônico de indignação, aproximando-o da oralidade, do diálogo com o leitor implícito. Vale destacar a afirmação categórica na expressão “A Peste que eu Fui ou...”, como justificativa para a “falta de saudades”, além das reticências que instauram um vazio a ser preenchido pelo leitor implícito durante a leitura. Justamente, o último parágrafo do texto, marcado pelo verbo “ser”, no pretérito imperfeito do indicativo, revela que essa característica da narradora se mantém na contemporaneidade: “Sou até hoje” (ORTHOF, 1981, p.28). Assim, o mesmo verbo assume o papel de continuidade com a expressão adverbial “até hoje”. Disposto no pretérito perfeito do indicativo, este verbo “ser” conota uma característica, pela qual sempre se definiu sua narradora. Desse modo, ela afirma que, na atualização de seu relato pela leitura, por sua vez, realizada por seu pai, o efeito será de choque, de provocação, irritação e, sobretudo, de vingança: “Eu era uma peste. Sou até hoje, porque meu pai, quando ler esta história, vai ficar danado da vida. Bem feito, quem mandou jogar bridge?” (ORTHOF, 1981, p. 28). Pode-se notar a dissimulação discursiva na conjunção “ou”, seguida de reticências, a qual produz efeito de ironia e de humor, pois sugere outra interpretação para o que se afirma, no caso, de que a narradora não só foi, como continua sendo “uma peste”. Todo texto estrutura-se sob a forma de um diálogo duplo, que se atualiza paralelamente, tanto com o poema “Meus oitos anos”, de Casimiro de Abreu, quanto com o leitor. Neste diálogo desdobrado, uma narradora adulta relata suas memórias de infância em tom distópico e cômico, opondo-se à visão de infância do “eu lírico” masculino do poema de Casimiro. O hibridismo no texto avulta justamente na presença de expressões próprias da oralidade como gírias, pausas marcadas pelas reticências, emprego de caixa alta em certas expressões, com a intenção de marcar a voz que se eleva – “grita” – para o destinatário. A narradora define a si mesma com características psicológicas negativas, como “peste” e com “tendência a praticar crueldades”, anulando assim o conceito de “inocência” atribuído à criança pelos adultos e que aparece, no terceiro verso da segunda estrofe, bem como no quarto da terceira, no poema de Casimiro de Abreu, definindo o menino de oito anos que o “eu lírico” fora, respectivamente, de alma ingênua, livre em seus brinquedos, como se nota em: “– Respira a alma inocência”; “Naquele ingênuo folgar!”
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Justamente, por isto ela afirma que tinha “uma inimiga” em seu “íntimo”, contudo, “[...] para todos os efeitos, por motivos familiares e também não familiares” (ORTHOF, 1981, p.27), esta era “amiga”. Ao defini-la, como “[...] gorducha e bonita e rosada e louçã” (ORTHOF, 1981, p.27), descreve-se fisicamente como contrária a esta menina, pois “[...] tinha pernas finas, cabelo arrepiado” (Orthof, 1981, p.27), e “suava” muito, pedalando sua bicicleta ao carregá-la no selim, conforme determinavam os adultos. Assim, sua imagem não remete ao imaginário idealizante de criança europeia do século XVIII, bela, comportada, feliz, dócil, meiga, de pele rosada e dotada de beleza e elegância. Pelo contrário, ela era “uma fera”, possuía angústias, sentia raiva, morava na “Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio” (ORTHOF, 1981, p.27), andava ao sol de bicicleta, era vingativa e tinha ainda outros sentimentos mais negativos, como a inveja e o ódio. Sua vingança também se realiza, por meio da cumplicidade com o leitor, instaurada pelo viés cômico e pela projeção de um leitor implícito inteligente e interativo. Seu relato instaura, então, vazios que convocam a projeção imagética deste leitor para o preenchimento da lacuna e obtenção do sentido: “A amiga, naqueles tempos passadíssimos, era gorda. Minha obrigação era levá-la no selim. Lá ia eu, curtindo meu ódio, levando a gorducha e bonita e rosada e louçã e... pois é!” (ORTHOF, 1981, p.27). Ao lacunar a sequência, os vazios obrigam o leitor a abandonar suas hipóteses iniciais e a construir outras. Desse modo, a compreensão do texto ficcional de Orthof dá-se por meio da experiência, ou seja, das operações proposicionais, a que ele submete o leitor. O leitor, sendo forçado a rever suas hipóteses, não só é levado a reagir ao que produziu, mas simultaneamente é levado a imaginar algo no conhecimento oferecido ou incitado que seria inimaginável enquanto prevalecesse a decisão de suas orientações habituais. Dessa forma, a compreensão do texto ficcional de Orthof dá-se por meio da experiência a que ele submete o leitor. Durante a interpretação do texto, o leitor faz uma autoavaliação de seus processos cognitivos, questionando-se acerca do que já sabe, do que ainda precisa saber e, principalmente, do que precisa rever a respeito da menina descrita pela narradora e até mesmo sobre o discurso desta, marcado por dissimulações. Nas descrições psicológicas da narradora, nota-se, ainda, o egocentrismo, marcado pelos pronomes possessivos que, em caixa alta, revelam sua indignação na obrigatoriedade de dividir sua bicicleta com a “amiga louçã”: “Andar na MINHA bicicleta, sair de MINHA CASA e fingir, sobretudo, que não percebia o outro jogo do MEU pai!” (ORTHOF, 1981, p.27).
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A imposição de uma amizade forçada à criança, por sua vez, advém da postura dos adultos que subestimam sua capacidade de raciocínio, imaginando que a protagonista não percebe a ambiguidade da palavra “jogo”. Assim, embora os adultos anunciem que jogam bridge, querem o afastamento das crianças para outro “jogo”, o do “flerte”, que provoca “brigas”. Desse modo, a narradora afirma seu ódio pela suposta “amiga”: “[...] meu pai flertava com a mãe dela.” (ORTHOF, 1981, p.27). Uma vez exposta em suas emoções mais secretas, busca enganar o leitor: “Evidentemente, eu tinha minhas razões para implicar com a garota: não tenho nada contra flertes, mas detesto bridge.” (ORTHOF, 1981, p.27). Como há a pressuposição de um leitor implícito inteligente, o prosseguir do relato revela alguém que vacila em suas afirmações, pelo emprego de uma expressão que instaura a dúvida: “Deve ter sido o motivo principal, este, o tal jogo de bridge!” (ORTHOF, 1981, p.27), seguida por outra expressão avaliativa: “Era um horror: os adultos jogavam, brigavam, flertavam... e nós? Bem, nós andávamos de bicicleta.” (ORTHOF, 1981, p.27). Pode-se notar que a indagação, marcada pelo pronome pessoal coletivo “nós”, implica que, nesse meio dominado pelos adultos e por suas trapaças discursivas, o lugar da criança é o do afastamento, pelo “andar de bicicleta”. Este ato representa, justamente, o distanciamento do centro de negociações sociais, do convívio, por meio da obediência a uma ordem dissimulada, pois cínica, marcada pelo adjetivo “queridinhas”, proveniente do verbo “querer”, conotando seu sentido antitético, contrário – “não queremos vocês aqui” –, por isto: “– Vão andar de bicicleta, queridinhas!” (ORTHOF, 1981, p.27). A subversão aparece na performance da narradora que decide ferir a “amiga” com o objetivo de fazê-la detestar bicicletas. Para tanto, a narradora mirim verbaliza seu plano: “ – Você gostaria de morrer caindo naquele buraco, ou preferiria fraturar o nariz, naquela pedra? Escolha, queridinha, porque eu vou fazer com que você odeie bicicletas para o resto da sua vida!” (ORTHOF, 1981, p.28). Note-se que, em seu discurso irônico, a narradora utiliza a mesma expressão sarcástica dos adultos, “queridinha”, conotando justamente seu contrário, ou seja, a falta de bem querer e desejo de afastamento “para sempre”; “pelo resto da vida”. A piada interna aparece para o leitor que conhece a produção do gênero dramático de Orthof e reconhece, na resposta da menina, essa autorreferência: “– Você adora fazer dramas, não é Sylvia?” (ORTHOF, 1981, p.28). Além disso, reforça a dialogia com o texto de Casimiro de Abreu no tom biográfico e memorialista.
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Para o leitor, a sanção da protagonista é negativa, pois ela termina com seu nariz “pingando sangue”. Contudo, ela afirma que estava “no auge da felicidade”, ao notar que seu plano de vingança contra a “amiga” dera certo, pois esta chorava “alto”, já que ficara “toda ralada”. Novamente, o discurso é ambíguo e revela que a narradora quando criança não fora e nem continua quando adulta a ser uma “peste”. Antes, fora uma vítima, uma criança incompreendida pelos pais, que desejava ser notada e, sobretudo, amada e considerada em suas relações sociais, em seu convívio, ouvida em suas opiniões e consultada quanto às brincadeiras que desejava realizar e/ou compartilhar com outra menina. A distopia ganha relevo na representação de uma criança que não atende aos padrões românticos e idealizantes de beleza, bem como de comportamento. Para o leitor, contudo, a protagonista é extremamente inteligente, pois possui uma percepção aguda dos discursos dos adultos, bem como de suas trapaças sociais. Desse modo, subvertendo sua afirmação, pode-se dizer que, na infância da narradora e da outra menina, os adultos são umas “pestes”. Eles traumatizam a narradora de tal forma que, mesmo na fase adulta, ela ainda imagina seu plano de vingança em ação, por meio da leitura do texto pelo seu pai. Prevalece, então, em sua conclusão, a linguagem metalinguística, mais propriamente, metaficcional, pois ela reflete sobre o processo de escritura e recepção, sobretudo, de um leitor específico: o pai, embora seu relato se direcione ao leitor implícito, tomado como cúmplice, pois, como também é jovem, consegue entendê-la. A paródia com o texto de Casimiro intensifica-se na menção aos familiares, pois, enquanto este em seu poema menciona a irmã e a mãe, ambas doces e amorosas, a narradora de Orthof relata a superficialidade do pai, dedicado a flertes com a mãe da outra menina. Desse modo, o próprio papel dos responsáveis pela criança é posto em cheque no texto de Orthof. Eles não fornecem proteção, carinho e apoio, antes desejam afastamento da criança, pois assumem comportamentos egocêntricos e hedonistas, visando a saciar seus anseios imediatos. Janelas abertas para infâncias plurais Os textos de Ruth Rocha e Sylvia Orthof pluralizam concepções de infância nas páginas da literatura brasileira e revelam, pelo seu tratamento estético, que não são meros pastiches.
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Não só o mito da infância feliz, do qual o poema de Casimiro de Abreu é portavoz, faz-se presente na pena de escritores e escritoras brasileiros/as. Às revisitações paródicas das escritoras das produções literárias aqui analisadas, vêm somar-se infâncias várias, a infância marginalizada em Cenas de rua (1994), de Ângela Lago, a infância peralta e vivaz das obras de Ziraldo, mas também a infância confrontada com a morte na pena do mesmo autor em Menina Nina (2002) ou com a diversidade étnica em O menino marrom (1996) e também na obra da escritora Ana Maria Machado, Menina bonita do laço de fita (1986). Há a infância convidada a um olhar menos preconceituoso, mais aberto, por exemplo, a respeito das diferenças de orientação sexual: Meus dois pais, de Walcyr Carrasco (2010) ou em constante interação com faixas etárias outras, como a velhice em Tão longe... tão perto, de Silvana Menezes (2007) e a infância violentada no âmbito da sexualidade e no próprio direito de se resguardar em infância como em Sapato de salto, de Lygia Bojunga (2006). O escritor paulistano Ricardo Azevedo retrata, em muitas de suas obras, uma infância imersa na cultura popular, no folclore, no aprendizado constante da vida e do mundo. Bartolomeu Campos de Queirós, por sua vez, contempla a infância perpassada por uma amargura ácida, indisposta a qualquer negociação com a esperança em ...das saudades que não tenho (1983), outro canto paralelo a subverter, já pelo título, a infância deleitosa de Casimiro de Abreu. A despeito de terem sido escritas por um adulto, estas obras, entre outras, tematizam infâncias representadas na perspectiva da própria criança, pois nelas o escritor soube “[...] conciliar a contradição de ser ele mesmo e de ser o outro que ele já foi, e só pode voltar a ser, no jogo ficcional, por meio da memória e da imaginação” (TURCHI, 2004, p.39). Tais infâncias se oferecem à contemplação leitora de crianças, jovens e adultos e se dispõem ao exame epistemológico de investigadores outros. Este trabalho pretendeu ser um convite ao perscrutar das infâncias várias na literatura brasileira contemporânea. Pelas análises dos textos de Rocha e Orthof, pudemos verificar que a literatura ilumina a realidade, em especial, quando trata da pluralidade do sujeito criança. Assim, é válida nossa hipótese de que em páginas da literatura brasileira, a infância se flexiona em número plural. O trabalho de ambas, pela dialogia com a produção considerada clássica, resulta dotado de validade estética, por isto, capaz de democratizar a cultura e favorecer à formação do leitor crítico no trabalho do mediador com a leitura em âmbito escolar.
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Notamos também que o texto de Casimiro de Abreu mantém-se na memória cultural brasileira e, pela dialogia, este texto produz efeito, pois sua recepção, pelo viés dialógico e paródico, estende-se para gerações futuras, tanto a dos escritores que com ele dialogam, quanto dos leitores da produção destes. Orthof e Rocha o refutam, mas também o retomam, imitam pelo avesso, subvertem-no porque ele constitui suas memórias afetivas de leitura, suas bibliotecas vividas. Na abordagem da representação da infância nos textos de Orthof e Rocha, notamos a validade da hipótese de que sua produção parodística realiza a função catártica; o contraponto à dramaticidade do desprezo e descuido dos adultos em relação às crianças efetua-se pelo humor e pela ironia. Embora a rejeição da criança pelo adulto e a submissão desta a ele seja um tema trágico, pois resulta de relatos pautados por recordações infelizes na infância, as produções cômicas de Sylvia Orthof e de Ruth Rocha, em um sentido psicanalítico, funcionam como re-apresentação de um recalque que volta à tona para ser vingado ou denunciado. Seus textos, pelo viés da memória subversiva, desautomatizam a visão idílica da infância, atingindo, pela paródia, o efeito da ironia, da negação de um discurso idealizante de infância e de denúncia social. Como conduzem a posicionamentos críticos, favorecem a desejos de mudança. REFERÊNCIAS ABREU, Casimiro de. Obras completas. Rio de Janeiro: Garnier, 1895. ARIÈS, Philippe. Os dois sentimentos da infância. In: ______. História social da criança e da família. 2. ed. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981, p. 99-105. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud; Yara F. Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. BARROS, Diana P. de. “Dialogismo, polifonia e enunciação”. In: ______; FIORIN, José L. (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakthin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 1-9. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: ADORNO, Theodor W. et al. Teoria da cultura de massa. Comentários e seleção de Luiz Costa Lima. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 217-54.
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2. Leitura silenciosa do poema de Casimiro de Abreu. Debate sobre o conceito de infância no texto. Solicitar aos alunos que aproximem esse conceito ao da infância que tiveram. 3. Propor a leitura do texto de Ruth Rocha. Provocar a comparação com o texto de Casimiro de Abreu. Em especial, destacar a distinção entre o “eu” lírico de cada texto. 4. Ler com os alunos o texto de Sylvia Orthof. Novamente, propor uma comparação com os outros dois. 5. Situar os autores em seus respectivos contextos históricos, sociais e políticos. 6. Explorar os conceitos de paráfrase e de paródia. 7. Destacar os recursos estilísticos que os três textos exploram. 8. Solicitar do alunos uma reflexão acerca de gênero textual e motivá-los a classificar os três textos. 9. Finalmente, pedir uma produção textual aos alunos em que parodiem ou parafraseiem qualquer um dos três textos lidos e analisados. 10. Propor aos alunos que realizem, em grupos de 3 ou 4 estudantes, um trabalho de pesquisa com sujeitos de terceira idade, no sentido de descobrirem como se configurou a infância que caracterizou parte da história de vida dos sujeitos entrevistados. Em seguida, cada grupo apresentará a pesquisa colhida e a sala de aula como um todo poderá refletir sobre as semelhanças e diferenças entre as configurações da infância em décadas passadas e na atualidade.
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ROTEIRO PARA A LEITURA DE TEXTOS INFORMATIVOS NA ESCOLA2 Juvenal Zanchetta Júnior FCL UNESP – Assis/SP Uma caracterização de leitura informativa Alguns pressupostos norteiam esta sugestão. O primeiro diz respeito ao papel da palavra. Nas correntes pedagógicas contemporâneas, em que pese o fato de a sensibilização do aluno ser um passo importante para a aprendizagem, tal característica é ponto de partida ou recurso para a consolidação de momentos específicos do processo educacional. Na pedagogia construtivista ou na pedagogia histórico-cultural – duas das principais tendências pedagógicas presentes no cenário brasileiro –, a finalidade da educação formal está no domínio de linguagens, com destaque para a linguagem verbal e a matemática. Assim, mesmo no trabalho com a mídia, cujas soluções envolvem múltiplas estratégias, com predomínio da sensação sobre a razão, um dos principais objetivos da atividade pedagógica é a tradução dos fenômenos ligados à vida em linguagem verbal, em atividade análoga à que propõe Christian Metz para a análise da imagem: A língua faz muito mais do que transcodificar a visão [...] ela a acompanha em permanência, ela é sua glosa contínua, ela a explica, ela a explicita, e no limite, ela lhe dá autenticidade. Falar da imagem é na realidade falar a imagem, não essencialmente uma transcodificação mas uma compreensão, uma ressocialização da qual essa transcodificação é a ocasião. A nominação define a percepção tanto quanto ela a traduz. (2000)
A mediação, com o uso da palavra, implica outros pressupostos. A atenção concentra-se em aspectos passíveis de socialização, embora observemos diversas características de ordem subjetiva. Estas últimas fazem parte de nossas preocupações em sua contribuição para o exercício da compreensão da dinâmica da leitura midiática. Essa contribuição objetiva lançar uma luz sobre a subjetividade, inerente ao processo sensorial e emotivo da leitura, mas principalmente para delinear procedimentos que possam ser utilizados como referência para observar a leitura a partir da sala de aula (e não em momentos particulares de leitura, por exemplo). Isso justifica a caracterização
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O presente texto promove adaptação de artigos publicados em Zanchetta (2008) e Zanchetta (2012).
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de diferentes “reações” de leitura e a notação de tais características em escala progressiva de complexidade. Outro pressuposto é a sugestão de que a leitura de meios e mensagens midiáticas significa não a abordagem de objetos isolados, esquadrinhados em termos de técnica, procedência e efeitos, para deixar ao leitor o compromisso de julgamento, mas, sim, de algum modo, a construção ou a reelaboração permanente de uma macro-narrativa que associe os objetos de leitura a uma perspectiva política de entendimento do mundo. Situá-los na sua relação com os indivíduos, nos contextos em que vivem as pessoas e também na História, ainda que não haja uma versão neutra da História, mostra-se como compromisso da escola. A notação sobre possibilidades de leitura de suportes de imprensa será feita à luz de referenciais associados à leitura de suportes impressos. Buscamos, em Maria Helena Martins (1994), uma proposta para o entendimento do processo de leitura inspirado na relação entre a obra e o leitor. Mesmo com predileção pela leitura da literatura, Martins considera a leitura na escola “[...] como um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas, não importando por meio de que linguagem” (1994, p.30). Para a autora, o contato com o texto torna-se um diálogo com a palavra escrita, com os gestos, as imagens, os acontecimentos ou qualquer outro elemento simbólico. Por meio desse processo, ocorre uma expansão contínua dos limites de compreensão do indivíduo. Martins (1994) propõe três níveis para a leitura (sensorial, emocional e racional), tomados aqui como ponto de partida: quais seriam as características da recepção midiática nesses três níveis, passíveis de serem observadas a partir da escola? Para detalhamento da leitura emocional, testamos as indicações de Jauss (1974), relativas ao processo de identificação havido entre o texto e o leitor. Jauss observou aproximação entre o leitor e o herói dos textos literários. Sua argumentação pode ser aplicável ao cenário a que nos reportamos, pois os jornais materializam uma representação da vida, tomando a figura humana como medida das coisas, tal como o faz a literatura. A abordagem da leitura racional, por seu turno, é ainda mais complexa, por compreender amplo espectro de experiências. De maneira grosseira, adaptamos instrumental oferecido por Eco para análise da propaganda (ECO, 1971)3, por sua vez inspirada em Panofsky (1967). O estatuto da imagem fixa (objeto de estudo de Eco) é, 3
Utilizamos em parte a argumentação realizada em outro texto (ZANCHETTA, 2001). Em alguns momentos, reproduzimos ou adaptamos frases do texto original.
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em parte, semelhante ao da imagem em movimento. A imagem fixa e as imagens em movimento põem-se como prova verossímil daquilo que está sendo narrado, não fugindo das aparências do mundo. As diferenças percebidas entre ambas estão menos no “conteúdo” e mais no aparato que as define. A metáfora e a metonímia, segundo La Borderie (1997), as duas grandes figuras constitutivas da retórica da imagem fixa são também os principais fatores figurativos na televisão e na internet4. Aliás, em razão da velocidade com que se sucedem num telejornal, surge reforçada a hipótese de um universo tropológico ainda mais restrito na tevê. O caráter fluido do movimento tenderia a fazer com que a imagem se mostrasse sempre representativa de algo maior do que ela efetivamente designa. Prevaleceria, assim, o caráter metonímico, agindo como um filtro redutor da representação. O sentido das imagens não aparece isolado. A palavra atua como “âncora” da mensagem em suportes híbridos, como a televisão e os sítios de informação; já as funções da palavra e da imagem, do ponto de vista de Jakobson (1969), são semelhantes. Assim, no caso da publicidade, há o predomínio de imagens com funções apelativas e emotivas, com maior ou menor incidência da componente persuasiva (na imagem). Vale destacar que algumas peças publicitárias conseguem, inclusive, atingir estatuto estético, fazendo uso da função poética, visando a determinados efeitos de sentido, como comover, surpreender, propor uma nova percepção acerca de um objeto ou situação cotidiana, entre outros. Já a mensagem noticiosa, por sua vez, utiliza-se das imagens, em tese, com função denotativa ou explicativa. Contudo, na prática dos telejornais, nem sempre isto acontece, pois tais informativos veiculam ideologia, ou seja, não são “neutros”. Os mais pessimistas afirmam que as funções predominantes no telejornal seriam a fática (entretenimento) e a persuasiva. Barthes (1984), ao desautorizar a intenção “denotante” da fotografia na imprensa, lista uma série de expedientes técnicos responsáveis por revestir a foto de caráter “conotativo” e, portanto, intencional, dentro de um dado contexto5. O instrumental exposto é provisório. Os textos e a leitura tendem a ser politizados, modificando-se continuamente, para atender aos interesses do analista. Alguns fatores, porém, são tomados como referência de fundo para a proposição, de modo a constituir uma espécie de amarra para as sugestões e fazer diminuir a 4
Num sítio de notícias, opera-se a somatória de procedimentos do impresso e do jornalismo eletrônico. Tais expedientes são: a trucagem, as poses (que denunciam comportamentos ou reações), a seleção de objetos, a fotogenia, o esteticismo (ou edição própria do meio fotográfico) e o papel da imagem na sintaxe da notícia (BARTHES, 1984).
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subjetividade. O leitor a quem nos referimos é um aluno da escola básica, portanto passível de ser, até certo ponto, ‘materializado’ historicamente, pois está situado num contexto conhecido em seus traços maiores. É desse lugar que se pensam as considerações a seguir. Não é possível esquadrinhar o processo subjetivo da leitura e nem mesmo a diversidade de relações estabelecidas entre o leitor e os contextos que envolvem a leitura, mas parte desse processo é pública: os suportes midiáticos, os textos, as impressões individuais partilháveis em terreno pedagógico, as opiniões coletivas alcançadas pela ação de um mediador. Tratamos da experiência em parte conhecida ou que pode vir a ser conhecida, de modo especular, e com pretensão didática. Nesse sentido, ainda que marcadas pelo “relativismo”, os traços que situam a análise no tempo e no espaço são visíveis. Como exemplos, tomamos suportes de prestígio social, como jornais impressos e telejornais, um texto publicitário impresso (TP, localizado no anexo 1, uma propaganda em
vídeo
das
sandálias
havaianas
(Disponível
em:
https://www.youtube.com/watch?v=EO_wzpQ0O7U) e uma capa da revista Playboy, publicada em agosto de 2014 (Disponível em: http://vip.abril.com.br/playboy/playboy2/jessika-alves-e-a-capa-da-playboy-de-agosto/) Leitura sensorial Numa época em que os recursos tecnológicos permitem o aprimoramento plástico e estético cada vez maior dos meios e mensagens, a leitura sensorial é decisiva para cativar o leitor. Ela implica desde a percepção isolada e pontual de estímulos predominantemente físicos (as cores, as ilustrações, a disposição e o formato dos textos e das letras, o tamanho da tela ou do jornal, por exemplo) até a percepção integrada desses elementos, num tempo mais prolongado e que pode ir além da relação direta com o objeto. Algumas pessoas gostam do cheiro do livro ou da revista nova. Outras, não suportam o cheiro ou a tinta usada nos jornais. Prevalecem a surpresa ou a constância, a estesia, a sinestesia, os sentidos físicos. Esse processo, entretanto, embora se dê no leitor, não é, de todo, circunstancial. Os suportes midiáticos fazem sobressair esse aspecto: a produção e as formas de interação com o leitor são carregadas de intenção e de significação. Os elementos sensoriais não fomentam apenas a significação superficial e parcial do conteúdo dos suportes midiáticos. Eles surgem como elemento lúdico para
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atrair o leitor e já marcar determinado posicionamento. O tamanho das letras, nos títulos jornalísticos, ou as dimensões de uma fotografia, na primeira página no jornal impresso, a trilha sonora e a postura solene dos apresentadores de telejornais, as fotografias que se sucedem no sítio de notícias: são elementos que apontam para significações; para a importância dos assuntos tratados, para a profundidade do tratamento etc. A diversidade de estímulos e de contextos que aproximam o leitor de determinado suporte, sob o aspecto sensorial, torna difícil ao professor o tratamento sistemático desse modo de leitura. Talvez, seja possível a ele apenas observar, em situação escolar, as estratégias comuns aos MCs (meios de comunicação) para atrair ou para não afugentar o leitor, além de ampliar o leque de referências do aluno (com outros suportes), bem como “verbalizar” a experiência sensorial. Eis alguns elementos passíveis de apreciação:
cores: discretas no telejornal ou nos jornais impressos de maior prestígio
e insinuantes nos jornais populares. Entram aqui os elementos ligados à combinação de cores utilizada no suporte e também as preferências de cor do indivíduo que o lê. No TP, as cores dispostas em tons pastéis são: amarelo, laranja, vermelho, azul e verde. O amarelo é a cor da recreação, da jovialidade, do otimismo. Laranja remete à recreação e à sociabilidade. Vermelho é a cor da felicidade. Azul, a cor da harmonia e da simpatia. Verde lembra vida, saúde, frescor (HELLER, 2013). Combinadas, essas cores reforçam aquelas qualidades: amarelo, laranja e vermelho remetem ao caráter lúdico; amarelo, azul, rosa (discreto, mas presente), laranja e verde formam conjunto que remete à amabilidade; amarelo, verde, azul e laranja lembram o otimismo. Tais relações não são fruto do acaso, mas adensadas a partir da experiência histórica relacionada às cores.
projeto gráfico: inclui a disposição dos elementos na página ou na tela; a proposta de equilíbrio entre texto verbal e texto imagético, o perfil do traço utilizado para as ilustrações; a relação entre a mancha de tinta e os espaços em branco, para arejamento do suporte. Observe-se que o TP ocupa todo o espaço da página, para aumentar a chance de ser lido. A imagem, mais atraente do que o texto verbal, aparece primeiro e ocupa a maior parte do espaço. No espaço inferior, encontra-se um primeiro texto, com letras maiúsculas e coloridas, que destaca o motivo da propaganda: a comemoração de aniversário da editora. Mais abaixo, texto com letras discretas amplia a informação, com dados sobre a
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Editora. Para sustentar texto verbal e imagem, há uma sequência de fotos, no pé da página. A cor amarela, na faixa inferior dialoga com as cores da imagem e ajuda a chamar a atenção para o texto verbal disposto na cor preta, cujo tamanho é discreto.
sons: diz respeito, por exemplo, à trilha sonora que busca revestir determinada mensagem de seriedade, dinamismo, emoção, glória etc. Telejornais tomam o glamour de instrumentos clássicos somados aos sons produzidos por sintetizadores. Sobressaem-se sons de teclados, violinos e de instrumentos de sopro. O TP não tem som, mas não apresenta uma cena silenciosa. O olhar das crianças, suas bocas entreabertas, a própria lembrança que temos acerca do cotidiano de uma sala de aula são indícios que remetem à ideia de barulho, mesmo contido.
movimento: trata-se da relação estabelecida entre os elementos na tela do computador ou da televisão. As imagens que se sucedem no sítio de informação na internet ou a dinâmica imposta à sucessão de imagens no telejornal podem ser decisivas para prender a atenção do leitor. Por outro lado, observam-se também os gestos de apresentadores, repórteres e personagens. Nos dias de hoje, os telejornais são apresentados tendo ao fundo a ilha de edição, com jornalistas transitando no fundo da tela. Um entrevistado, levado ao ar para explicar-se sobre eventual problema no qual ele está envolvido, tende a ser mostrado de maneira a ressaltar sua insegurança (o olhar fugidio, a voz titubeante, a postura esquiva). No TP, se concordamos que a imagem não é silenciosa, ela também não mostra personagens inertes. As crianças, mesmo sentadas, usam os braços e sorriem, sugerindo movimento. Aliás, são capturadas em ação na imagem, por isso caracterizamos o texto imagético como narrativo, ou seja, representa o próprio movimento.
códigos culturais: vestimentas e posturas determinadas, por exemplo, conferem sobriedade ao cenário do telejornal, reforçando a impressão de que se está veiculando informação com isenção. Comentaristas sobre economia têm que conciliar segurança, seriedade e certa informalidade para convencer o espectador (distensos em demasia, correm o risco de não serem levados a sério; com expressão de tensão, podem indicar tempestades na área econômica). A garotinha representada no TP veste blusa amarela e, sobre a blusa, usa macacão azul. A jovialidade, lembrada pela cor amarela, parece ser contida pelo azul – a
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cor da discrição, da simpatia, da harmonia e também do trabalho. O jeans do macacão é azul. Historicamente, esse azul, o chamado índigo, é a cor do trabalho, do operário, daquele que tem horário e funções específicas a cumprir (HELLER, 2013). A vivacidade surge contida pelas obrigações. No caso da capa de Playboy, ao observarmos a imagem, notamos que possui fundo preto para destacar o corpo da garota e conferir requinte à proposta de desnudar uma atriz jovem e promissora. O mesmo efeito possuem as demais chamadas da capa. O escuro também é convidativo para cenas íntimas. Aqui está uma das características próprias do gênero “capa de revista” (não só masculina): utilizar uma só imagem, para ocupar a maior parte do espaço da página. O suporte não é tão grande, de modo que é preciso chamar a atenção com o uso de uma fotografia marcante. O movimento da atriz é dosado: esconder a intimidade com leveza, para não contradizer o espírito da revista (desnudar celebridades com ritual ou classe). A cena é silenciosa, como se reproduzisse apenas algo próximo do desnudar-se, mas não como gesto rotineiro e, sim, solene, majestoso. A garota não parece à vontade. Há certa resistência. Caso mostrasse outra reação, como um sorriso aberto, isso indicaria vontade de desnudar-se, algo que a revista (ou os produtores da revista) não quer deixar transparecer, neste caso. Afinal, a jovem atriz tira a roupa, ao menos para o público da revista, pela primeira vez! É preciso aparentar moderação, certo constrangimento, mas também determinação. Apesar de parecer uma capa comum a tantas outras, esta imagem é diferente de todas (mais de 400 capas) as outras já produzidas para a revista, na sua versão brasileira, desde o final da década de 1970. Na propaganda das sandálias, elencamos três, entre os elementos sensoriais. Primeiramente, a própria ideia de movimento. Entre as razões pelas quais a televisão exerce fascínio está justamente a possibilidade de reproduzir trechos selecionados da vida (por meio de uma novela, de um flagrante de cena cotidiana numa reportagem, entre outras inúmeras alternativas). Na peça publicitária em questão, o movimento é intenso, embora as cenas sejam quase sempre em close. Expressões, gestos e movimento de câmera asseguram uma sequência que pretende escapar da monotonia visual. As cores também se destacam: as sandálias apresentam colorido vivo, vibrante. Existe alternância entre cores frias, como o azul, e variações de vermelho (cor quente). Para não ofuscar a vivacidade das cores das sandálias, a atriz (no papel da consumidora) veste branco. Para não haver passagem abrupta entre cores frias e cores quentes, há
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sempre uma cena intermediária, em que a atriz aparece com sua veste branca. A camiseta do ‘vendedor’, em azul discreto, faz a mesma função. Em terceiro lugar, está o próprio jogo lúdico envolvido na situação. A bela atriz, o garoto bonito e a vendedora também bonita e simpática alternam seus papéis tão rapidamente e em sintonia que o espectador deixa de lado o fato de que se trata de uma peça publicitária destinada a vender um produto para os pés, embora mostre apenas rostos! O interesse não está em mostrar o produto em seu lugar de uso, mas associá-lo a algo de prestígio. Daí o fato de a garota ‘apresentar’ a sandália colada ao seu próprio rosto. Leitura emocional Como a leitura sensorial, a dimensão emocional sugere uma relação afetiva e particular. As experiências anteriores do indivíduo fazem com que ele encontre no objeto de leitura algo já esperado: trata-se de contato, em boa parte, retrospectivo. Do ponto de vista da produção dos informativos, os efeitos sugeridos levam à surpresa, à comoção, à repulsa, à familiaridade – aspectos que, não raramente, se aproximam do drama. A leitura, nesse plano, implica a identificação do leitor com aspectos determinados (uma fotografia, uma informação ou parte dela) ou a questões mais gerais, como um evento, um conjunto de eventos ou mesmo o próprio suporte como um todo. O traço afetivo é porta de passagem para a memorização que, por seu turno, é condição para a compreensão do que está sendo lido. Os leitores costumam observar o evento principal de uma notícia com maior facilidade, em razão dos estímulos da produção que induzem a essa percepção (o título, a ilustração, o lide). Contudo, isso também ocorre graças à narrativa que costura as informações, pois a amarração acaba por humanizar os eventos – tornando-os acessíveis. Na televisão, o apresentador é responsável por isso, pois age como um contador de histórias; no jornal impresso, a fotografia, a infografia, a seleção de eventos por ordem de importância garantem a tensão e o caráter narrativo de um texto sem conclusão6. Mesmo conservadora, a leitura emotiva é igualmente um ponto de passagem para a leitura racional e leva, ela própria, o leitor a um lugar prospectivo ou renovador da percepção. Adaptamos a sugestão de Jauss (1974), sobre as características da
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A estrutura mais comum de texto noticioso não supõe um clímax (exceto o próprio título da matéria), mas sim o alinhavo de eventos cada vez menos importantes, até chegar a detalhes supérfluos.
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identificação entre o herói (literário) e o público, transportando-a para a leitura da mídia:
Associação: prevalece o aspecto lúdico que se associa ao modo sensorial de ler e à narrativa proposta, visto que o leitor aceita participar da história, da mensagem ou da imagem. Neste caso, ele parece mostrar concordância plena com o conteúdo, com a forma de apresentação, com o suporte em si. O leitor adere ao que está sendo posto, de forma incondicional e ingênua. Não se trata de concordar com o que o outro diz apenas por conta do prestígio do meio de comunicação, mas de acreditar que ali está a verdade. No caso do TP, trata-se daqueles leitores que confiam plenamente no trabalho da Editora ou nos chamados ‘sistemas de ensino’. Restringindo-nos apenas à imagem (mais atraente do que o texto verbal), há leitores que valorizam incondicionalmente a própria noção de escola.
Admiração: o leitor observa o sujeito ou os sujeitos representados como referência edificante ou ideal. O expediente comum na mídia, de reduzir personagens a tipos, é um expediente que tende a seduzir o leitor em determinado momento. O leitor aproxima-se da personagem de maneira acrítica. Se, no plano anterior, a integração se dá com o conjunto, neste caso, a integração se deve à pessoa representada. No TP, valoriza-se a imagem da criança, pela beleza plástica ou pelo seu comportamento altamente respeitador de regras escolares, por exemplo.
Cumplicidade: a identificação ocorre por reportar situações e comportamentos próximos aos da vida comum. Neste caso, a mensagem reproduz a vida cotidiana, próxima daquela experienciada pelo leitor. Em lugar de adesão plena (como se fosse um jogo) ou seletiva (como um ideal a ser cultivado), a identificação se dá pela cumplicidade do leitor em relação a elementos que parecem semelhantes. No TP, o leitor pode reconhecer, pela representação das roupas e do comportamento da pequena estudante, exemplo de estudante que faz parte da vida dele.
Catarse: o leitor assiste à dor alheia e, em meio à piedade, à indignação ou mesmo a outros sentimentos, tira dessa situação ensinamentos para a própria vida ou, então, alivia suas tensões, ao vê-las materializadas no outro
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representado. No TP, o leitor observa, naquela sugestão de escola, algo que ele conheceu ou espera da escola.
Ironia: há envolvimento entre ambos, mas o leitor coloca-se na situação proposta pelo texto para recusá-la, integral ou parcialmente. Em que pese o fato de a identificação supor a confirmação de valores do leitor, o que tende a provocar o efeito catártico, as diferenças entre o leitor e a situação reportada são percebidas e, provavelmente, negadas. Nesse nível de recepção, a razão ombreia com a emoção. No TP, embora se comova com o cenário proposto pela propaganda e pelo desenho de escola ali esboçado, o leitor se mostra desconfortável, pois reconhece que está diante de uma situação até certo ponto artificial: o ‘sistema de ensino’ não vai solucionar as limitações dos materiais didáticos; as crianças ali dispostas não são representativas do cenário da educação brasileira contemporânea. Na capa em análise, é preciso frisar que a revista se volta ao público masculino,
para jovens e adultos jovens. É uma conquista desnudar atriz recém-lançada e ascendente. Há certa cumplicidade com leitores jovens: a garota ainda parece adolescente e já tão ousada. Na propaganda de sandálias, a cena reproduz uma situação trivial. Quase todo mundo já pediu por determinado produto numa loja qualquer. A familiaridade com a situação ajuda no processo de aceitação da história como algo plausível. Em segundo lugar, está o fato de o leitor conhecer a personagem. Ela é uma atriz famosa, conhecida do espectador a ponto de muitos saberem até mesmo quem são os pais dela. Cléo Pires, por outro lado, dialoga com um jovem também simpático, que, mais tarde, percebemos esperto, decidido, conquistador (características valorizadas pelo senso comum). Enfim, em termos emocionais, o contato com os suportes midiáticos se dá de maneira pontual e fragmentada. No entanto, desde que o professor perceba certos traços advindos da experiência emotiva, cabe a ele observar o perfil dessa identificação. Na sala de aula, a experiência emotiva é bem mais visível em situações de comoção geral. No entanto, nessa e em outras experiências, mais individualizadas, o instrumental proposto, embora ainda em esboço, pode auxiliar na diferenciação dos diversos tipos de aproximação com o texto e contribuir para a testagem de outros modos de identificação. Justamente por isto, pode-se conduzir o leitor, mesmo no plano emotivo, a um novo plano de percepção. Por outro lado, mesmo que os traços de identificação entre o leitor
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e os suportes midiáticos se mostrem pulverizados, a proposta da caracterização das relações emotivas diz respeito, ao exercício de se tentar, quando possível, colocar a própria experiência em perspectiva. Nesse processo, busca-se menos as características subjetivas do leitor do que as estratégias midiáticas para levar esse leitor à comoção. Leitura racional Este multifacetado plano de leitura trata do domínio de códigos diversos, desde os mecânicos, passando pelos de ordem linguística e semiológica, até os encadeamentos históricos. 1) Plano narrativo: refere-se aos elementos dos planos descritivo e narrativo do conjunto do texto (imagens, texto verbal, outras ilustrações e as combinações entre eles). Trata-se da observação do texto como uma história, atenta às expectativas do leitor. Vejamos alguns expedientes que atuam nesse sentido:
Oposições: as matérias jornalísticas procuram firmar confrontos:
oposição entre bem e
mal, entre certo e errado, entre devoção e
descrença, entre vencedor e perdedor, entre justo e injusto, e outros. As informações prestadas pelo telejornal são postas como desvios dentro de uma suposta normalidade. Assim, a notícia relativa a um crime reforça, por outro lado, a necessidade de uma ordem social e moral. Um político flagrado por ato de corrupção opõe-se a um suposto quadro em que os indivíduos devam zelar pelos interesses públicos.
Tensão: o leitor vê-se diante de notícias ora mais ‘suaves’, ora
mais ‘graves’, num balanço que o conduz, no final do telejornal, a um estado de satisfação, alívio ou mesmo, em situações extraordinárias, de espanto. Equilibram-se notícias com destaque negativo e positivo, denúncias em diversas áreas e notícias muitas vezes dispensáveis, mas impressionantes. Evita-se o acúmulo de tensão negativa: em qualquer altura, é comum ver lado a lado notícias de economia e informações sobre fatos extraordinários, distantes do cotidiano das pessoas, como o salvamento de um cão em rio gelado do Alasca.
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Onipresença: o MC atua como observador, atestando em cada
notícia a veracidade e a ideia de onipresença. Mais do que contar histórias, o meio torna-se testemunha: os relatos verbais e as imagens reforçam a verossimilhança. O conjunto da notícia cria outro ponto de partida para o fato narrado, diferente da origem desse fato: a ilha de produção do informativo.
Teatralização: a linguagem verbal, os recursos técnicos
utilizados, a postura dos apresentadores e repórteres, as ideias de simultaneidade e onipresença são alguns dos fatores que contribuem para a teatralização proposta para o telejornal. Os recursos eletrônicos preenchem o palco da apresentação da notícia: logotipos, cores, sons, música de fundo dão a moldura da cena proposta e intensificam o espaço onde se propõem os relatos. Dramatiza-se não apenas colocando diante do
leitor
situações
que
possam
impressioná-lo,
mas
também
intensificando o presente, trazendo-se relatos quase simultâneos aos respectivos fatos.
Idealização: em lugar de um mundo caótico, complexo e
imprevisível, a hierarquia proposta pela imprensa tende a inscrever o fato noticioso dentro de um todo organizado, em que grupos e instituições funcionam e se relacionam umas com as outras. Por esse ângulo, notícia passa a ser o episódio que desestabiliza a ‘normalidade’: daí o chamamento de diversas instituições, de forma aberta ou implícita, quando ocorre algo fora do comum.
Individualização: a imprensa procura tornar concretos os fatos. É
mais fácil ‘materializar’ um escândalo, creditando-o a indivíduos, do que tratar das responsabilidades estruturais ou conjunturais que levam ao problema. Assim, desde a preparação da notícia, os dados convergem para unidades mínimas. Apresentador e repórteres, por exemplo, ao escolherem o modo de focalizar um assunto e ao selecionarem os elementos que serão mostrados, põem-se num caminho didático o suficiente para reduzir problemas a aspectos determinados.
Tipificação: a redução dos temas a personagens determinados
também se liga a desenhos de indivíduos relativamente estáveis e
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superficiais. De maneira geral, os personagens são reduzidos a uma característica específica e, por isso, são mais facilmente reconhecidos pelo leitor. Os personagens das matérias jornalísticas servem para a elucidação de conteúdos específicos e não para o exercício de análise física, social, histórica, psicológica etc, algo que tomaria muito tempo e poderia levar o leitor a confundir-se.
Este nível pode ser desmembrado em domínios específicos, tais como:
formal: pressupõe o domínio sobre estratégias narrativas. Tratase do entendimento quanto à organização dos conteúdos em um jornal (a relação entre texto e imagem, por exemplo); a identificação do nome do repórter ou do lugar onde determinada reportagem está sendo ambientada (informações muitas vezes colocadas na tela e não mencionadas pelo apresentador); o domínio
sobre
ícones
que
permitem a
exploração
do
ciberespaço7, bem como a diferenciação entre os elementos de uma determinada matéria, os links e a publicidade que a emoldura. Enfim, nesse plano, o leitor sabe localizar-se e locomover-se pela narrativa ou pelas narrativas que se colocam nos suportes de informação. No TP, a disposição da imagem e do texto na página, o uso das cores – características essas comentadas na abordagem de aspectos sensoriais – são percebidos aqui como estratégias: a docilidade, a diversão aliada ao trabalho, sensações sugeridas pelas cores, surgem fazendo parte da história que se pretende contar.
verbal: pressupõe familiaridade com a linguagem utilizada, com o gênero e com o assunto tratado. No TP, a palavra sugere a idealização: o ‘desafio’ da editora (‘Mudar o mundo a partir da
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O domínio na área de informática não se restringe a elementos operatórios, como conhecer comandos específicos para uma ou outra tarefa, mas engloba o domínio de códigos mais complexos. Estes, por sua vez, empregam a linguagem verbal, mas imbricada ou secundarizada por elementos de outras áreas, como a matemática. Há códigos, às vezes, facilmente operáveis, porém inacessíveis para a maioria das pessoas: uma pessoa não alfabetizada é capaz de fazer operação em terminal eletrônico de banco, mas o domínio dos códigos que permitem a viabilização de tais operações é ainda altamente restrito.
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Educação’) está em curso. Os números apresentados caminham nessa direção: mesmo num país ‘cheio de ‘diferenças’ e com ‘dimensões continentais’, os indicadores da Editora revelam êxito.
imagético: significa o reconhecimento dos elementos presentes numa determinada imagem, para torná-la legível e associá-la aos demais elementos que compõem a narrativa. No TP, a cena representada também sugere êxito: as crianças que estudam no ‘sistema
Positivo’
mostram-se
receptivas,
interessadas,
participantes. A oposição básica está posta: a satisfação da garotinha contrasta com o senso comum de que o ensino regular é algo cansativo, arrastado. Há redundância de símbolos: as crianças pintam com cores que sugerem um mundo lúdico e profícuo; as cores do ‘sistema de ensino’ pintam a educação com colorido vivo e fértil. A individualização também é evidente: uma criança representa todo o conjunto de estudantes atendidos pelo ‘sistema’. No caso da capa da revista, para construir a cena, o fotógrafo talvez tenha lançado mão de uma imagem fundamental para a história da arte: o quadro “O nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli, de 1485. A atriz parece vir do fundo, para ficar de frente com o leitor. Como Vênus, a garota é fruto de um mundo encantado. Ambas vieram do mar. Não se pode esquecer que o primeiro papel pronunciado da atriz aconteceu na série “Preamar”, que se passa na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Também como Vênus, a atriz tem um dos braços sobre o ventre e pousado na perna. O quadro de Botticelli reproduz a lenda de que Vênus foi concebida a partir da espuma do mar. Sugere-se, então, o traço virginal, original, que acabou de florescer, mas também a ideia de fecundidade. Vênus sugere a maternidade com as mãos sobre os seios. Mas, no caso da atriz, o braço direito está sobre a cabeça. Não é a maternidade que se quer sugerir, mas a determinação para tirar a roupa. Como Vênus, a garota também tem o olhar distante, ingênuo, puro (algo que se destaca também pelo arco sobre a cabeça da atriz). Em relação ao quadro de Botticelli, a leveza das formas de Vênus é tão grande que o observador se esquece da desproporção da imagem: o braço longo demais; o ombro parece deformado. No caso da atriz, é preciso mostrar a perfeição das formas,
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ainda que elas ainda estejam em construção (como no caso de Vênus). Os seios pequenos (mas originais!); o jeito de menina. Já no vídeo, a narrativa é central para a ilusão que a peça pretende. A cena parece trivial, mas conta com ingredientes artificiais: a) o garoto estaria perseguindo a atriz, para tentar falar com ela?; b) seria mera coincidência ele usar uma camiseta da mesma cor daquela vestida pelo outro vendedor (que aparece, em certo momento, no fundo da tela)?; c) observe-se a rapidez com que ele encontra papel e caneta numa mesa, para anotar o telefone da garota; d) observe-se também a rapidez com que a vendedora ‘de verdade’ entra em cena; e) note-se o fato de o garoto esperar até a atriz se dar conta de que tinha sido ludibriada. 2) Plano expositivo: compreende a observação de significações secundárias,
convencionadas por questões editoriais, contextuais ou históricas. Uma das formas de organização da informação no plano expositivo é, portanto, a sua codificação a partir de esquemas textuais específicos. A disputa pela atenção do leitor em meio a tantas informações no mundo contemporâneo, a necessidade de concisão, a pluralidade de recursos para a informação, o caráter cada vez menos ritualizado do contato entre a mídia e o leitor, entre outros motivos, ajudaram na consolidação de desenhos textuais específicos para o texto noticioso, desenhos estes menos centrados na organização linear e mais atentos a aspectos potencialmente mais contundentes da própria informação. A necessidade de textos mais ‘topográficos’, mesmo antes das tecnologias digitais, tornou-se premente no Brasil, onde sempre predominou a cultura oral e, durante o século 20, a cultura visual, baseada na televisão. Isso não impediu o desenvolvimento de textos mais longos, com diferentes modos de orientação. No entanto, expedientes similares estão presentes em todos esses desenhos. Esse plano, também, pode ser desmembrado em:
Plano formal: implica identificar a divisão do jornal em cadernos
e as formas de hierarquizar as informações (diferenças entre manchete e títulos, a gradação de valor entre os títulos, pelo tamanho da letra, pela disposição na página, pelo assunto). No telejornal, compreende a observação da linha narrativa, isto é, como se dá o encadeamento das matérias, o papel mais descritivo ou mais opinativo do apresentador. Na internet, significa distinguir as matérias jornalísticas das matérias de
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mero entretenimento ou propaganda (muitas vezes do próprio veículo ou de parceiros). Em relação ao TP, afora as considerações feitas quanto aos códigos culturais, há questões ligadas ao projeto gráfico. A composição da página segue regra conhecida como ‘mapa da zona ótica’ (COLLARO, 1996), conforme o desenho abaixo. Para chamar a atenção do leitor, o rosto da garotinha está colocado na ‘zona primária’, por onde o olhar começa a percorrer o texto. A mensagem principal do texto verbal localiza-se no centro da página, por onde o olhar tem de passar. A ‘zona terminal’ concentra informações ligeiras, pois é um espaço por onde o olhar passa antes de sair do quadro. Não por acaso, emissoras de televisão costumam colocar nesse espaço seus logotipos. A marca da editora do TP poderia estar aí fixada, mas quem produziu a propaganda optou por colocá-lo acima é à direita. Fez assim porque não quis correr risco de a informação passar despercebida: colocou o logotipo ao lado da informação mais atraente da página (o rosto da garota).
Plano verbal: o leitor consegue compreender, mesmo em meio à
linguagem pretensamente objetiva da imprensa, o posicionamento do veículo divulgador, a partir da ênfase, da seleção de argumentos, de citações ou entrevistas, da omissão de informações. O domínio mais apurado de convenções textuais da imprensa permite a ele organizar o sentido do texto jornalístico a partir do título, dos primeiros parágrafos. No caso do TP, o texto verbal procura destacar as seguintes ideias: 1) o aniversário de 35 anos da Editora; 2) o compromisso com a educação; 3) o desafio de construir materiais didáticos que atendam a um país com ‘dimensões continentais’ e com diferenças culturais; 4) a liderança da Editora no segmento de ‘sistemas de ensino’; 5) o número de 1 milhão de alunos atendidos pela empresa. Por trás da ideia de ‘desafio’ está uma possível contradição: como um material didático padronizado pode atender à diversidade cultural do país? Se respeitada a diversidade, a expansão implicaria mudanças contínuas no ‘sistema’, para atender a públicos cada vez mais distintos.
Plano imagético: a imagem passa a ter significação que vai além
da complementação do texto verbal. O leitor sabe o peso da informação pela fotografia, por exemplo: se ela informa menos ou mais do que a fala
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do apresentador ou do texto da notícia impressa. Na internet, a seleção das imagens serve não às respectivas notícias, mas também para prender o leitor, a partir da cena inusitada, comovente, risível ou de entretenimento. No TP, a imagem é usada para valorizar os argumentos sugeridos pela Editora: 1) a aluna mostra alegria pela atividade escolar; 2) supostamente, ela estuda a partir do ‘sistema de ensino’ da Editora; 3) a satisfação da garota estaria ligada aos benefícios propostos pelo ‘sistema’ líder no mercado da educação; 4) essa mesma satisfação estaria ligada à experiência da Editora nessa área; 5) a alegria da garota motiva a Editora a continuar. Mas o papel atribuído à imagem vai além do que ela de fato oferece: 1) não há garantia alguma da existência de relação entre o ‘sistema de ensino’ e a satisfação da garota; 2) mesmo se houvesse, atribuir à estudante a condição de avalista do trabalho da Editora é um gesto exagerado, pois a menina não tem condições de avaliar a complexidade do material; 3) a falta de autonomia pode ser observada a partir do simples fato de que a fotografia foi feita com a anuência dos pais e não da garota – que serviu tão somente de modelo. Em relação à capa da revista, mesmo sendo a intimidade insinuada por diversas razões, entre elas, a escuridão do entorno, a fotografia reproduz um gesto algo mecânico. Trata-se de um ritual que não é feito para um parceiro, mas para uma câmera. O desnudar não é espontâneo, mas ritualizado e, provavelmente, inspirado numa das figuras mais célebres da mitologia ocidental. A questão expositiva também é importante no vídeo. O que se pretende destacar: jovialidade, irreverência, sensualidade, o jogo da conquista, características agregadas às sandálias. Para tanto, é preciso fazer escolhas: em lugar de destacar a invasão de privacidade, opta-se por destacar a irreverência da cena. O garoto irradia descontração e gentileza. A própria atriz, mesmo depois de perceber ter sido enganada, olha o garoto de modo afável. 3) Plano discursivo: além de abarcar componentes referenciais e culturais, o leitor entra no âmbito dos discursos históricos. Neste plano, afloram os valores
simbólicos
do
conjunto
da
informação,
fundamentalmente
ideológicos que, embora expressos sob diversos formatos, mostram alguma
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articulação, revelando não apenas a posição do veículo ou da mensagem (como o plano expositivo permite ver), mas de um grupo ou camada social. Ele pode ser desmembrado em:
Plano formal: trata-se dos hipertextos constituídos pelo jornal,
pelo telejornal, pelos sítios de imprensa na internet, acrescidos de textos verbais ou não verbais que fazem parte do contexto da leitura, num dado momento. Individualmente ou somados, esses hipertextos são finitos (MARCUSCHI, 2007) e, portanto, podem ser equacionáveis, na leitura8. O acesso seletivo a links para se chegar a um tema específico parece, no entanto, não ser tão simples: há que se buscar uma ordem determinada para os links, o que exige disciplina para a leitura linear. O domínio sobre a extensão do hipertexto utilizado pelo leitor, por outro lado, mostra-se como uma opção deliberada, consequência de outras atitudes e de preferências do leitor. O TP em análise foi publicado no jornal de maior circulação do país, a Folha de S. Paulo, cujo público é composto primordialmente por leitores das classes A e B. Ao optar pela publicação nesse jornal, a Editora revela o perfil de público com quem ela quer se comunicar: formadores de opinião (como dirigentes de redes de ensino) e pais com poder aquisitivo mais elevado, que mantêm seus filhos em redes escolares com recursos para optar por um ‘sistema’ como o oferecido pela Editora. A publicidade, enfim, busca diálogo com os mais abastados.
Plano verbal: implica compreender as características do discurso
político representado pelos MC. O leitor é capaz de associar determinada notícia: a) ao suporte que a contém, identificando o assunto, o tratamento, a extensão etc., a partir do perfil daquele meio; b) à agenda midiática e ao cenário de produção de imprensa no país; c) às instituições políticas que interferem nos rumos daquela área; d) à possibilidade de mobilização individual ou coletiva, a fim de interferir nesses rumos. A leitura é marcada por associações e reflexão sobre aspectos que extrapolam o universo do texto, e mostra um leitor capaz de avaliação do O jornal impresso tem um limite de páginas. O telejornal, um tempo de duração. A internet tem o tempo que o leitor dedica à pesquisa na rede (os demais suportes também têm a cronologia como um fator que delimita a extensão do hipertexto). 8
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suporte e dos cenários diversos aos quais a notícia se vincula. No TP, desvela-se outra limitação: ‘levar em consideração as diferenças que existem em um país de dimensões continentais’ não significa atender à diversidade de públicos aí existentes, mas tão somente àqueles que fazem parte das camadas mais privilegiadas (cenário em que as diferenças culturais são menores).
Plano imagético: tornam-se visíveis os arquétipos e os
estereótipos, os “equivalentes visuais” das figuras de linguagem e ainda as tomadas de posição dos informativos – expedientes constituídos a partir das imagens. No TP, o discurso implícito na imagem não sugere um ‘sistema de ensino’ original e criativo que pretenda ‘mudar o mundo a partir da educação’, mas sim um ‘sistema’ conservador. O gesto da garotinha não é espontâneo, instintivo, mas sim medido, dosado. Longe da vitalidade e da impulsividade que marca a infância, o gesto é profundamente disciplinado. A imagem, em termos discursivos, não retrata uma cena próxima da infância, mas sim uma cena que agrada aos pais também conservadores que querem ver seus filhos, desde cedo, plenamente domesticados. Sobre a capa da revista, tem-se uma imagem com método. Resulta desse processo metódico suavidade e impacto, timidez e ousadia, originalidade e artificialidade, espontaneidade e ritualidade, possibilidade (de acesso à nudez da estrela) e impossibilidade. Estas e outras oposições são definitivas e levam adiante o espírito da revista Playboy: um universo inacessível no todo, do qual você pode participar apenas como voyeur, desde que você pague por isso. De resto, as imagens da garota, para além das formas, servem como moldura aos valores sociais de uma determinada classe econômica. Em relação ao vídeo das sandálias, a esta altura, ele parece não menos agradável, mas menos confiável (como texto autêntico). Destacamos apenas um elemento de ordem discursiva (entre outros, também presentes). Ao ressaltar a perspicácia do garoto, a peça também reitera o preconceito, ainda que, neste caso, ‘repaginado’, como a sugestão machista. Apesar da irreverência, sugere-se que o homem pode desprezar regras básicas de convivência para conquistar seu objeto de desejo. A mulher cortejada, mesmo sendo uma atriz famosa, valorizaria tais excessos.
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Diferentemente dos demais perfis de leitura, a leitura racional pode ser desenvolvida com maior intensidade na escola, pois ela trata da elaboração da experiência com o texto. Claro que os planos colocados acima são apenas indicativos e não há propriamente uma divisão entre os planos de leitura, mas procuramos destacá-los daquela maneira, a fim de mostrar exercícios de compreensão cada vez mais complexos. REFERÊNCIAS BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984. BRASIL. INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Exame Nacional do Ensino Médio. Brasília: INEP, 2002. Disponível em: COMPLETAR COLLARO, A. C. Projeto Gráfico: teoria e prática da diagramação. São Paulo: Summus, 1996. ECO, U. A estrutura ausente: uma introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva, 1971. FERRARA, L.A. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva, 1986. HELLER, E. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. INAF 2009. INDICADOR DE ALFABETISMO FUNCIONAL. Instituto Paulo Montenegro;
Ação
Educativa,
2009.
Disponível
em: http://www.ipm.org.br/download/inaf_brasil2009_relatorio_divulgacao_final.pdf Acesso em: 07 dez. 2009. JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969. JAUSS, H. R. Levels of identification of hero and audience. New Literary History. Charlottesville, v.5, n.2, 1974. LA BORDERIE, R. Éducation à l’image et aux médias. Paris: Nathan, 1997. MARCUSCHI, L. A. A coerência no hipertexto. In: COSCARELLI, C. V.; RIBEIRO, A. E. (org.). Letramento digital: aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo Horizonte: CEALE/Autêntica, 2007. MARTINS, M. H. O que é leitura. 17.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. METZ, C. Essais Semiotiques. Paris: Klincksieck, 2000. MIRANDA, M. G. Trabalho, educação e construtivismo: a redefinição da inteligência em tempos de mudanças tecnológicas. Educação & Sociedade, Campinas, v.51, 1995. PANOFSKY, E. Essais d’iconologie. Paris: Gallimard, 1967.
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POSSENTI, S. Sobre a leitura: o que diz a análise do discurso? In: MARINHO, M. (org.). Ler e navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas: Mercado Aberto/ALB, 2001. SEE-SP – SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO. Guias curriculares para o ensino de 1º grau – Língua Portuguesa. São Paulo: CERHUPE, 1975. ZANCHETTA JR., J. Como usar a internet na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2012 (e-book). ______. Escola e leitura da mídia. Tese de Livre-Docência. Unesp, Assis-SP, 2008. ______. Televisão e Educação. Tese de Doutoramento. Unesp, Marília-SP, 2001.
Anexo 1
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MEDIAÇÃO DA APRECIAÇÃO MUSICAL NA ESCOLA Paulo Constantino Doutorando UNESP – Marília/SP Introdução O texto propõe-se apresentar um possível percurso para a mediação da apreciação musical na educação básica, especialmente no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio. A relevância da proposta é justificada pela oportunidade de subsidiar as atividades de mediação na escola, que ganharam evidência com a aprovação da Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008 (BRASIL, 2008). Essa normativa alterou “a Lei nº 9394/96 [...] estabelecendo a Música como conteúdo obrigatório, mas não exclusivo” (BRASIL, 2013, p. 01) da educação básica. As “Diretrizes para a operacionalização do ensino de música na educação básica” (BRASIL, 2013) também indicam que a prática da música na escola “deve ser estendida a todos os estudantes” (BRASIL, 2013, p. 05), e “compreendida como direito humano, promotora de cidadania e de maior qualidade social na educação”. (BRASIL, 2013, p. 08). A perspectiva é que esta mediação das atividades musicais ocorra no âmbito escolar, permitindo que os conhecimentos sobre os gêneros musicais e sua apreciação sejam sistematizados, promovendo a aproximação das instituições escolares, locais permanentemente perpassados pela diversidade musical existente, com os hábitos sociais e culturais de seus participantes, oferendo uma contribuição para o envolvimento efetivo dos alunos. Os eixos fundamentais desta abordagem seguem, para além dos recursos estritamente musicais, um trabalho relacionado às diferentes temáticas sugeridas por Gonnet (2004, p.55) para o estudo das mídias: o emprego das diferentes linguagens, desconstruindo os discursos musicais e visuais; o uso das tecnologias, tentando compreender o funcionamento das grandes tecnologias midiáticas, dessacralizando as ferramentas; as tipologias, caracterizando os diferentes gêneros musicais trabalhados em salas de aula e as representações possíveis; os públicos-alvo destas manifestações e os produtores destas mídias.
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Finalmente, o texto procura “reconhecer, acolher e trabalhar com a diversidade no processo pedagógico” (PENNA, 2008, p.79), por meio de sugestões de processos, permitindo que o mediador transite com desenvoltura por diferentes culturas musicais, se assim o desejar. Mediar a apreciação de música na escola? Por que mediar a apreciação da música na escola? Koellrreuter (1997) defendeu a ideia de que o processo justificaria-se como uma contribuição para o “alargamento da consciência e para a modificação do homem e da sociedade, entendendo como consciência a capacidade do homem de apreender os sistemas de relações que atuam sobre ele, o influenciam e o determinam”. (KOELLREUTTER, 1997, p. 69). Rita Fucci-Amato (2012) elenca, entre os desafios da escola brasileira, a valorização do ensino de música na educação básica (FUCCI-AMATO, 2012, p.96), uma vez que a música e as artes são normalmente legadas ao segundo plano entre as disciplinas consideradas mais importantes, em razão de uma oposição entre aquilo que seria essencial – Português, Matemática e Ciências – e um núcleo supostamente descartável ou dispensável, que incluiria a Música e outras manifestações artísticas. Parece-nos, que do ponto de vista das políticas públicas, as mediações das artes na escola deveriam “ser incorporadas à cultura democrática, não por si mesmas, mas em nome da democracia” (ROSS, 2011, p. 269). Assim os nossos alunos poderiam obter “uma compreensão mais profunda do mundo olhando para ele do ponto de vista peculiar de uma obra de arte” (ROSS, 2011, p. 269). O autor nos lembra que estes novos olhares reveladores e imaginativos que a música pode proporcionar, permitem que as crianças e jovens aprendam a
[...] notar detalhes surpreendentes que ajudam a destruir um estereótipo popular; elas passam a tolerar a diferença, acostumam-se com as idiossincrasias. Elas também podem experimentar um choque de percepção que lhes mostre possibilidades alternativas em sua vida, tenham ou não essas possibilidades e essa vida uma relação óbvia com a obra de arte em questão. (ROSS, 2011, p. 269).
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Conforme apontamos em nossos estudos anteriores, o processo de escuta dos sons musicais, em seu nível mais elementar, “pode ser efetuado pela maior parte das pessoas, exceto aquelas acometidas por algum tipo de distúrbio mental ou fisiológico” (CONSTANTINO, 2012, p. 23). De fato, [...] todos nós (com pouquíssimas exceções) somos capazes de perceber música, tons, timbre, intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e, talvez no nível mais fundamental, ritmo. Integramos tudo isso e ‘construímos’ a música na mente, usando muitas partes do cérebro. E a essa apreciação estrutural, em grande medida inconsciente, adiciona-se uma reação muitas vezes intensa e profundamente emocional. (SACKS, 2007, p.10).
A apreciação musical é considerada por Swanwick (2014) uma das atividades musicais fundamentais, juntamente com a composição e a performance. Ao estimular a apreciação de um determinado gênero musical ou canção entre as crianças e jovens, dentre um sem número de obras disponíveis, a escola pode ser um instrumento para a construção de um gosto abrangente. Gosto, portanto, se discute e se constrói na escola. Considerando que os alunos respondem melhor às atividades onde encontram pontos de engajamento, seja pela familiaridade com o repertório ou pelo reforço de uma sensação de pertencimento, o mediador deve partir de manifestações musicais próximas dos alunos, pois: [...] o pop é um bom caso e tem sido o primeiro conjunto alternativo de idiomas musicais a se tornar amplamente acessível à prática de sala de aula dentro da estrutura da educação compulsória nas escolas [...]. As razões para isso estão bem próximas de nós: [...] são penetrantes, inevitáveis. (SWANWICK, 2014, p. 146).
A curiosidade dos alunos normalmente não é despertada simplesmente “ditando-se informações sobre a vida dos músicos ou da história social” (SWANWICK, 2003, p. 67). É interessante permitir algum espaço para suas escolhas, para uma tomada de decisão. Por este caminho, espera-se que o aluno comece “a apropriar-se da música por si mesmo” (SWANWICK, 2003, p. 67) com o apoio do mediador, considerando que esta postura depende de um comprometimento absolutamente pessoal. O mediador deverá permitir o diálogo entre diversas manifestações musicais, gêneros, compositores e autores trabalhados em sala de aula, promovendo a troca de experiências e a ampliação do universo cultural dos alunos. (PENNA, 2008, p. 92), pois
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[...] ouvir uma grande variedade de música alimenta o repertório de possibilidades criativas sobre as quais os alunos podem agir criativamente, transformando, reconstruindo e reintegrando ideias em novas formas e significados. (FRANÇA e SWANWICK, 2002, p.13).
A apreciação musical dentro da escola, por meio dos suportes multimídia, “pela diversidade que ele suscita, permite relações menos cristalizadas” (GONNET, 2004, p.89) e um ponto de apoio útil ao professor mediador ao lidar com a música midiatizada. A transversalidade das mídias também contribui. Elas “tocam todos os assuntos, são, então, particularmente interessantes em termos de conhecimentos. Além disso, induzem a um interesse e a comportamentos que perturbam o quadro habitual” (GONNET, 2004, p.87-88) de currículos rígidos e esquemas pedagógicos herméticos, facilitando a integração escolar e sendo [...] um pretexto positivo para resgatar a verdadeira dimensão da escola, de atendimento ao aluno-sujeito, e assim superar o caráter artificial de uma escola da qual se espera que aprenda cada vez mais, que está à deriva de sentido e é pouco hábil para tratar seus excluídos. (GONNET, 2004, p.87). De modo prático, a mediação da apreciação musical normalmente é concebida como [...] alguma combinação de palestra, discussão e audição realizadas enquanto os alunos sentam quietos. Alternativamente, seria possível, para alguns alunos, que o acompanhamento da música com uma resposta física ou o exercício da imaginação enquanto escutassem pudesse integrar-se à experiência. Respostas físicas à música poderiam incluir a dança, movimentos criativos, ou simplesmente a marcação dos tempos com os pés. Atividades que permitam aos alunos formar associações ou imagens mentais enquanto escutam poderiam incluir desenhos para descrever o estado de humor evocado pela música ou a dramatização de seu conteúdo programático. (LEWIS; SCHIMIDT, 1991, p. 319).
Esta reflexão sobre a música feita explicitamente e compartilhada através da comunicação verbal, seria um elemento fundador do ensino de música, com seus insights explícitos em sala de aula (SWANWICK, 2014, p. 150) e um debate intenso que pode ser promovido pelo mediador. Se, por um lado, a escuta das obras cria “esquemas para a compreensão dos gêneros musicais e estruturas, inclusive quando estamos apenas a ouvir passivamente, não tentando analisar a música” (LEVITIN, 2013,
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p. 254), a proposta de reflexão de Swanwick (2014) nos auxilia a reconhecer na verbalização e na intencionalidade dos discursos dos alunos os valores de sua apreciação musical. Sendo assim, compreender o tratamento dispensado aos gêneros musicais pode ser um caminho para a mediação das atividades de apreciação na escola. Gênero musical como elemento estruturador da mediação Falamos em gêneros musicais [...] quando nos referimos às obras dotadas de determinadas características musicais que reunidas, formam um escopo que nos permitem identificá-las a determinados compositores e intérpretes, dentro de uma época definida. (BAMBERGER e BROFSKY, 1967, p. 280).
Estes gêneros agrupam-se por diferentes aspectos, ao considerarmos uma época específica, o produtor ou intérprete de uma determinada gravação, passando por detalhes como a instrumentação escolhida, o arranjo definido para a peça, o tratamento formal e as nuances de interpretação vocal ou instrumental, com “os específicos usos, abusos, a adoção ou rejeição de variadas tecnologias ou de um instrumental para definir um ‘som’ particular, que contribuem para a distinção entre gêneros da música popular”. (THÉBERGE, 2001, p. 04). O conceito engloba não somente os recursos musicais isolados, mas também as qualidades e implicações sociais associadas a estes processos, como “rituais de performance, aparência e visual, os tipos de relações sociais e ideológicas e as conotações associadas a eles e às suas relações de produção.” (BRACKETT, 2002, p.67). Outros autores, como Lena (2012), propõem modelos de análise de gêneros não a partir dos elementos musicais ou extramusicais, mas das comunidades onde são produzidos, recorrendo a um sistema de eixos organizadores como “música de vanguarda, música baseada na indústria do entretenimento, música tradicionalista – identificada com a universidade” (LENA, 2012, p.19), entre outras categorias. Ao analisar estes gêneros, podemos encontrar “um sistema de orientações, expectativas, e convenções que reúne a indústria, os performers, críticos e fãs, fazendo que identifiquem um determinado tipo de música.” (LENA, 2012, p.13). Longe de reduzir à apreciação a uma análise formal mais tradicional, de partituras ou trechos de
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fonogramas, empregamos (CONSTANTINO, 2015) um amálgama das assemelhadas estratégias de Borthwick e Moy (2004), Holt (2007) e Friedlander (2012), para ajudar na mediação da apreciação de gêneros musicais, por meio da identificação e análise de elementos característicos da obra abordada. Em linhas genéricas, seguem-se alguns tópicos que podem ser considerados na mediação: Uma análise estrutural, ressaltando aspectos de repetição, variação ou contraste entre as seções, por meio de diferentes aspectos como perfil melódico e harmônico, repetição de riffs ou padrões rítmicos. Identificação e descrição dos recursos vocais e instrumentais, texturas e timbres dentro da análise estrutural da canção; O estilo vocal e instrumental empregado, identificando-o à determinada época ou modo particular de realização; A letra [quando existente] e a mensagem presente na canção; Características da banda/artista, sua atitude, seu modo de se vestir, se apresentar e se comportar dentro e fora dos palcos (FRIEDLANDER, 2012, p.427); Características sócio-políticas, históricas e da indústria cultural que envolvam a obra. Partindo-se deste inventariado, o mediador pode organizar as atividades sobre qualquer gênero – rock, samba, jazz, frevo – em torno de unidades de trabalho razoavelmente independentes, como as sequências didáticas nos moldes descritos no quadro abaixo: 1. APRESENTAÇÃO DE UMA SITUAÇÃO 2. SELEÇÃO DO GÊNERO MUSICAL
3. RECONHECIMENTO PELOS ALUNOS DO GÊNERO MUSICAL SELECIONADO
4. ATIVIDADE DE APRECIAÇÃO 5. EXAME PRÁTICO DO GÊNERO
Necessidade ou motivação da atividade ligada aos gêneros musicais. O motivo gerador pode ser um fator musical ou extramusical. Tendo em vista uma constatação realizada em sala de aula ou o currículo previsto para a série. Definição do âmbito: os alunos reconhecem ou não o gênero musical em questão? Extraindo informações dos alunos por meio de: a) Pesquisa / discussão sobre o gênero escolhido. b) Apreciação de gravações do gênero, explorando e estabelecendo relações entre: - sua função e contexto social, - seu conteúdo musical, - sua estrutura composicional (melodia, harmonia, padrões rítmicos, texturas musicais), - seu gênero e estilo (análise musical), c) Seleção de uma peça destacada do gênero para um estudo mais aprofundado. A apreciação (escuta) propriamente dita de um exemplo destacado do gênero, tendo em vista a necessidade/motivação apresentada na situação inicial. Com o objetivo de aproximá-lo dos gêneros comumente aceitos pelos alunos e que circulam socialmente em seu grupo. Requer uma retomada do Passo 3, com o
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6. CIRCULAÇÃO DO GÊNERO MUSICAL
auxílio do professor, com a finalidade de definir especificamente: - sua função e contexto social, - identificação e descrição dos recursos vocais e instrumentais, texturas e timbres dentro da análise estrutural da canção; - seu gênero e estilo (análise musical); - o estilo vocal e instrumental empregado, identificando-o à determinada época ou modo particular de realização; - a letra [quando existente] e a mensagem presente na canção; - uma análise estrutural, ressaltando aspectos de repetição, variação ou contraste entre as seções, por meio de diferentes aspectos como perfil melódico e harmônico, repetição de riffs ou padrões rítmicos; - características da banda/artista, sua atitude, seu modo de se vestir, se apresentar e se comportar dentro e fora dos palcos (FRIEDLANDER, 2012, p.427); - Características sócio-políticas, históricas e da indústria cultural que envolvam a obra. Divulgando e amplificando os resultados obtidos no processo de apreciação com a sequência didática através de execuções, debates, chats, podcasts, partilha de arquivos eletrônicos entre os alunos por meio de dispositivos eletrônicos móveis. Pode ser ampliada por atividades de improvisação, composição ou performances.
Quadro 1: Percurso para a construção de sequências didáticas visando à mediação da apreciação musical por gêneros Esta proposta apresenta, em resumo, duas características marcantes, pois constitui uma síntese com objetivos práticos, destinada a orientar as intervenções dos mediadores e evidencia as dimensões ensináveis a partir das quais diversas sequências didáticas podem ser concebidas. (SCHNEUWLY & DOLZ, 1999, p. 11). Os procedimentos específicos do mediador precisarão, no entanto, ser ajustados em função das culturas e gêneros musicais com os quais se opte por trabalhar. As abordagens no ensino do jazz ou na canção pop podem ser completamente distintas, em função das características específicas que cada um destes gêneros possui.
Considerações finais Conforme já constatamos em pesquisas anteriores (CONSTANTINO, 2012, p.78), a escola é permanentemente transpassada pelos muitos gêneros em circulação, o que pode ser confirmado em um pequeno passeio pelas salas de aula e pátios: alunos carregam consigo violões, pandeiros, MP3 players, celulares, organizam pequenas rodas de música nos intervalos.
Juntamente com o acesso a Internet, escutar música é
certamente uma das atividades mais persistentes na rotina das crianças e, especialmente, dos adolescentes em idade escolar. A obrigatoriedade do ensino de Música na escola, determinada pela Lei nº 11.769/2008 (BRASIL, 2008), ao mesmo tempo em que reconhece a importância do componente curricular para a formação integral dos estudantes, impõe às escolas de educação básica novos desafios, como o de abordar a música e as mídias em paralelo, nos curtos espaços e tempos disponíveis nos currículos. Os processos de mediação da
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apreciação musical são, portanto, úteis à escola brasileira, que deveria ter especial interesse em multiplicar estas experiências valorizadoras da cultura musical e das mídias. (CONSTANTINO, 2015). Tal como analisar e compreender os aspectos do discurso musical, entender os percursos midiáticos de uma obra também é um objetivo desejável para os alunos. Debater estes mecanismos pode auxiliá-los a ultrapassar a ideia de uma apreciação musical calcada exclusivamente nos aspectos técnicos e na descrição de materiais sonoros, para uma modalidade de escuta orientada para um sentido mais amplo do fazer musical, que consideraria não somente os sons e os recursos musicais dispostos na escuta imediata da obra, mas também fatores exteriores que influenciariam sua produção e apreciação. Também ajudaria a dissipar uma possível ingenuidade dos ouvintes quanto aos processos de produção, divulgação e fruição destes produtos, inseridos na moderna indústria cultural. Neste percurso, o envolvimento dos alunos com a escola certamente será ampliado e a instituição poderá oferecer contribuições valiosas para o desenvolvimento e formação cultural dos discentes. REFERÊNCIAS BAMBERGER, J. S.; BROFSKY, H. The art of listening: developing musical perception. New York: Harpers & Row Publishers, 1967. BORTHWICK, S.; MOY, R. Popular music genres. New York: Routledge, 2004. BRACKETT,
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UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DA TENSÃO EM NARRATIVAS DE FICÇÃO
Érika Nogueira Menegon Doutoranda em Educação – UNESP – Marília/SP
Apresentação Criado em 1964, por Stan Lee e Bill Everett, Demolidor (Daredevil) é uma personagem de histórias em quadrinhos (HQ) que se transforma em linguagem cinematográfica, em 2015, com produção das empresas Marvel Comics e Netflix. Em apenas 11 dias, a série homônima se tornou a mais vista do ano no canal. Segundo levantamento realizado pela revista Variety em parceria com o instituto Luth Research, mais de quatro milhões de norte-americanos já haviam acessado ao menos uma vez um episódio da produção da Marvel sobre o herói cego e católico que se veste de demônio. Mesmo que se considere a tônica comercial, resta um texto narrativo capaz de sensibilizar grandes audiências. Destacamos uma possibilidade de tratamento didático desse texto, observando elementos de ordem visual e verbal. Em seguida, realizamos o mesmo exercício com um conto literário clássico: A Cartomante, de Machado de Assis. O objetivo do trabalho é apresentar um roteiro para a abordagem de narrativas ficcionais, mais simples ou mais complexas, a partir das sugestões de tensão encontradas em cada trama. Tal exercício pode ajudar o leitor, mesmo iniciante, a observar um dos mecanismos caros da construção narrativa. Elementos teóricos de apoio Esta proposta envolve quatro eixos, delimitados de forma tópica: 1) Tema: a principal temática abordada pela narrativa é a noção de justiça, tão comum às HQ que retratam super-heróis, em sua maioria mascarados, como Superman, Batman, Homem Aranha. Para Campos (2007), o tema se materializa em um ou mais personagens, já que é praticamente impossível narrar um tema em seu estado puro. Em o Demolidor, a justiça se personifica como Murdock.
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2) Trama: metamorfose de um garoto cego em um justiceiro de sua cidade natal. Tramas como essa remetem ao fato de ser a Marvel Comics a responsável pela veiculação de HQ que abordavam implicitamente a Guerra Fria. A série de super-heróis americanos atuaria como potencializador das ações políticas dos EUA no imaginário popular. A exposição a elementos tóxicos ou radioativos, em vez de sugerir a morte, faz com que as personagens adquiram poderes e habilidades que os tornam invencíveis, como Hulk e o Quarteto Fantástico, por exemplo. 3) Personagens: para efeito didático, enfocamos apenas as três personagens: o advogado-justiceiro Matt Murdock, seu sócio Foggy Nelson e a primeira cliente de ambos, Karen Page. Segundo Abdala Junior (1995), a predicação das personagens pode se dar de maneira indireta (por ações) ou diretamente por meio da voz do narrador ou personagens. Na narrativa analisada, há predominância da forma indireta e podemos traçar os seguintes perfis: a) Murdock (personagem redonda ou complexa) – desde garoto demonstra atributos heroicos, um dos motivos pelo qual ficou cego; disciplinado, inteligente, sério e atraente fisicamente; b) Foggy (personagem plana ou simples) – é o jovem sonhador, brincalhão e sorridente, às vezes, patife; não se encaixa nos padrões de beleza veiculados pela mídia; c) Page (personagem redonda ou complexa) – mulher extremamente bela e atraente que permanece uma incógnita na narrativa e para o leitor/espectador. A predicação indireta confere ao espectador maior envolvimento, pois as pistas para a compreensão e desvendamento das ações passadas e futuras encontram-se presentes ao longo de toda narrativa. Tomemos o exemplo do personagem Foggy. Nas cenas protagonizadas por ambos, há equilíbrio em termos de tensão em decorrência de suas personalidades – quando a tensão aumenta, Foggy surge com alguma pilhéria e riso inocente. A tensão está reduzida na transição entre cenas de luta protagonizadas pelo herói mascarado (Murdock) e Foggy, como em um dia ensolarado, subornando um policial com charutos em troca de informações privilegiadas. O clichê faz parte do perfil das personagens, com a utilização de fórmula conhecida. Foggy faz papel semelhante ao do burro falante encontrado no filme Shrek (Universal Pictures, de 2001) ou ao de Sid, a preguiça tola e sentimental que acompanha o mamute, em A Era do Gelo e suas continuações (Fox Filmes). Assim como Sid, a preguiça que canta e faz asneiras, é Foggy quem acaba por diminuir a tensão das cenas.
4) Espaço/Tempo: para Abdala Junior (1995), trata-se de uma categoria narrativa que pode ser observada segundo o espaço físico, o espaço social (abstrato) e o espaço psicológico (atmosferas interiores). A intersecção entre os
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três resulta no ambiente da narrativa. Pode-se chamar atenção para o fato de que a trama só existe em decorrência da vontade de Murdock para proteger a cidade acometida pelo tráfico de drogas, de mulheres e esquemas corruptos e desumanos de reconstrução de Hell’s Kitchen. Os espaços estão diretamente relacionados com o acontecimento de cada cena, potencializando o efeito sinestésico no espectador. Geralmente, nos espaços fechados ocorrem ações violentas e dramáticas, que sugerem o efeito de tensão, suspense, sufocamento. As cenas brandas ocorrem em espaços abertos, na maioria das vezes, durante o dia, reestabelecendo o equilíbrio na narrativa e com o espectador/leitor. Ainda segundo o autor, o tempo pode ser dividido em dois grandes eixos: o tempo externo e o tempo interno. O primeiro, diz respeito ao tempo do escritor, do leitor e o histórico; enquanto o segundo é o tempo da história, o psicológico e o tempo do discurso. De maneira semelhante, Forster (1969) salienta a existência da vida no tempo e a vida dos valores, definições que se aproximariam do tempo cronológico e do tempo psicológico. O tempo da história e o do discurso, explorando o condensamento de alguns dias de história em 53 minutos de discurso, além das digressões que levam o espectador a explorar o passado das personagens. A história se inicia In medias res e ao longo de toda narrativa conta com flashbacks (ou analepsis) que apresentam gradativamente fatos e personagens que ajudam o espectador na constituição e compreensão da trama. O recurso de retrocesso é extremamente eficaz para deixar a narrativa em suspensão, retardando o desfecho, mas também proporcionando ao observador momentos de distensão. Block (2010) apresenta outra referência sobre a estrutura narrativa com caráter didático. Segundo o autor, o início de uma história é chamado de exposição, momento no qual são apresentados os fatos necessários para se introduzir a narrativa (exposição das personagens, sua situação na trama, locação e época). O conflito corresponderia ao que comumente chamamos de meio da história e é nesse momento em que se apresenta uma problemática. O conflito que envolve uma batalha emocional é designado como interno, enquanto um conflito externo diz respeito a uma situação física. No episódio em questão de o Demolidor, nota-se a existência de um conflito interno e externo, pois o jovem Murdock quer acabar com os crimes da cidade (conflito externo), ao mesmo tempo em que acompanha a sua metamorfose e a modificação de valores morais (conflito interno). O conflito culmina com o clímax, momento decisivo da narrativa em que personagens fazem escolhas que encaminham a história ao seu terceiro momento – o desfecho, momento em que o público tende a assimilar o conjunto do que foi proposto
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e, provavelmente, racionalizar sobre a experiência vivenciada momentos antes, quando da proposição do clímax da narrativa. Por se tratar de uma narrativa visual, a identificação das cenas facilita o trabalho com a denominação de cada uma delas. Eis uma descrição sumular de cada cena da narrativa em questão:
Cena
Duração
C1 C2 C3 C4 C5
00:01:40 00:03:17 00:02:39 00:00:58 00:03:37
Estrutura narrativa CONFLITO EXPOSIÇÃO CONFLITO EXPOSIÇÃO EXPOSIÇÃO
C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12 C13 C14 C15 C16 C17 C18 C19
00:00:30 00:03:59 00:02:49 00:01:37 00:01:47 00:06:58 00:05:39 00:05:06 00:02:45 00:01:30 00:02:36 00:00:47 00:01:27 00:04:26
CONFLITO EXPOSIÇÃO CONFLITO EXPOSIÇÃO CONFLITO RESOLUÇÃO EXPOSIÇÃO EXPOSIÇÃO CLÍMAX EXPOSIÇÃO CLÍMAX EXPOSIÇÃO RESOLUÇÃO CLÍMAX
Desenvolvimento da ação Acidente que deixou Matt cego Matt adulto em um confessionário O herói mascarado luta com traficantes de mulheres Vinheta (elementos da história) Introdução da personagem Fogg (adjuvante) – compra do apartamento e suborno de policial. Cena do assassinato de Daniel Fischer e prisão de Karen Page Conversa entre os advogados e Page Leland faz chantagem com policial Discussão entre Foggy e Matt sobre o caso do assassinato Tentativa de assassinato de Page na cadeia Page é solta e conversa com seus advogados no escritório Page na casa de Matt. Conversa sobre o passado e o caso Union Allied Reunião dos chefes do crime em Hell’s Kitchen Page volta para sua casa e ao ser atacada, o herói mascarado reaparece Flashback- Matt criança conversando com seu pai Retomada da luta e entrega do capanga a um jornal da cidade Leland conversa por telefone com seu patrão misterioso Page prepara o almoço para seus advogados em clima de comemoração Todos os fios de história são apresentados. Rapto de um garoto.
Tabela 1: Descrição das situações narrativas Elencamos, apenas para efeito didático, algumas situações que, isoladas ou em associação, tendem a aumentar e a diminuir a tensão narrativa, utilizadas para a composição do quadro acima descrito. Sugestões que buscam aumentar o efeito de tensão: a) Situações de embate entre personagens; b) Situações em que o personagem aparece sozinho, em lugares fechados; c) Cores fortes e/ou em tons escurecidos; d) Ambientes fechados; e) Cenas em close (personagens focalizados apenas do pescoço para cima); f) Planos de detalhe (imagens que focalizam objetos ou apenas partes da figura humana – como os olhos ou a boca, por exemplo);
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g) Planos oblíquos; h) Junção de vários movimentos num só quadro; i) Uso de onomatopeias. Sugestões que buscam atenuar o efeito de tensão: a) Situações em que os personagens se apresentam em lugares abertos; b) Situações de confraternização entre os personagens; c) Cores neutras e/ou em tons mais claros; d) Ambientes abertos; e) Cenas com plano geral, enfatizando-se lugares (os personagens são pouco visíveis); f) Cenas em que há poucos movimentos; g) Cenas estáticas ( câmera parece ‘parada’) h) Uso de diálogos ou de falas mais longas. O encadeamento das cenas descrito antes não segue o padrão linear do disseminado “começo, meio e fim” proposto em atividades de produção textual comuns em situações escolares. O início da narrativa é marcado pela apresentação de um conflito ocorrido no passado. Em seguida, há o reequilíbrio da narrativa com a apresentação (exposição) da personagem principal. O espectador é então provocado em termos de tensão, ao presenciar a primeira atuação benfeitora do advogado mascarado. As três partes elementares da narrativa figuram repetidas vezes ao longo do episódio, ou seja, o constante movimento entre tensão-equilíbrio-tensão-reequilíbrio é o que o espectador atento. A última cena representa o clímax, porque, assim como os romances folhetinescos, os seriados são fragmentados e apresentados gradualmente ao leitor/espectador. Por isso, a necessidade de não concluir a história, mas criar um bom motivo para que o leitor permaneça interessado. Pensando a importância da intensidade na narrativa, ou seja, a relação entre as três partes essenciais definidas por Block (2010), poderíamos traçar o gráfico abaixo. 6 4
Tabela 2: Evolução da tensão narrativa em Demolidor9
2 0 9
C1 preparado C2 C3 C4pela C5autora C6 C7 C9 C10C11C12C13C14C15C16C17C18C19 Quadro do C8 trabalho.
INTENSIDADE
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Os pontos de maior intensidade ajudam na definição do ritmo na história. Para Block (2010), a existência do ritmo está intimamente ligada ao movimento de repetição e alternância em um determinado tempo. Ao observarmos a duração das cenas (tabela anterior), vemos que o ritmo estabelecido não permite que o espectador passe longos momentos monótonos, nem por períodos extensos de tensão, ocasionando desinteresse ou esgotamento psicológico. O ritmo não é ditado apenas pelos fios de história de cada cena, mas também pelos recursos de narrativa. Assim, as cenas de conflito geralmente ocorrem em locais fechados e escuros, ou durante à noite sob chuva, as personagens estão constantemente em movimento (elementos de história), embaladas por músicas agitadas (elemento de narrativa). As cenas de exposição e/ou resolução são marcadas por ações mais contidas e personagens estáticas (C7 e C11, por exemplo), em espaços abertos e claros. Embora toda a narrativa seja marcada pela falta de saturação das cores, há um padrão nas cenas que introduzem conflitos, cenas de tensão e flashbacks (C2, C3, C9, C10, C12, C15, C19) que pode ser observado abaixo.
Nº C2
C9
CENA
Nº C3
C1 0
CENA
68 C1 2
C1 5
C1 9
C1 9
ESCALA TONAL DAS CENAS
Tabela 2. Escala tonal das cenas de maior intensidade Nยบ C2
CENA
Nยบ C5
C7
C11
C16
C19
CENA
69 ESCALA TONAL DAS CENAS
Tabela 3. Escala tonal das cenas de reequilíbrio da i Na tabela 2, a utilização de cores quentes está relacionada a intensidade dos fatos narrados. O brilho do amarelo desperta no espectador um estado de alerta que coincide com os momentos que antecedem os incidentes. Os tons de azul apresentados na tabela 3 ditam o ritmo quanto à oscilação da tensão narrativa. Por ser uma cor fria, o azul induz o leitor ao descanso em termos visuais. Assim como na melodia harmoniosa dos grandes concertos orquestrais, o espectador/leitor é conduzido ao longo do trajeto narrativo. Suas sensações e percepções não são ocasionais, mas ocasionadas. A intencionalidade como aspecto lógico intelectual na narrativa também pode ser observada no conto machadiano analisado a seguir. A serpente machadiana Passemos agora à descrição das cenas do conto A Cartomante, de Machado de Assis.
Cena C1 C2
Duração (parágrafos) 1º ao 12º 13º ao 19º
Estrutura narrativa CONFLITO EXPOSIÇÃO
C3 C4 C5
20º ao 24º 25º ao 29º 30º ao 34º
CONFLITO CLÍMAX CONFLITO
C6
35º ao 56º
EXPOSIÇÃO
C7
57º ao 59º
RESOLUÇÃO
Desenvolvimento da ação Discussão entre Camilo e Rita sobre a ida da moça à cartomante. Apresentação das personagens e como se deu o início do romance proibido. Cartas anônimas e a possível descoberta da traição. Villela chama Camilo para vir a sua casa com urgência. Acidente que retardara a ida de Camilo a casa de Villela, mas que lhe proporcionou um encontro com a cartomante. O coração de Camilo é acalmado pelas palavras da cartomante que informa o desconhecimento da traição por Villela. Camilo depara-se com as feições descompostas de Villela; vê o corpo ensanguentado de Rita e, em seguida, é morto com dois tiros.
Tabela 4. Estrutura composicional do conto A cartomante
O conto se inicia in media res, estratégia narrativa que deixa de sobreaviso seu leitor, abrindo caminho a sua efetiva participação na história. A narrativa não só se
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inicia em suspensão com um conflito, mas confere ao leitor um lugar valorizado, quebrando a expectativa de que para se compreender uma trama é preciso que se comece a partir de detalhes que introduzam personagens e ações. O desequilíbrio da primeira cena é moderado pelo que nos é contado em seguida; a história se inicia, efetivamente, na segunda cena. O narrador começa a construir imagens e situações que compõem a trama principal, porém este não é “alguém” ingênuo. Assim como uma foto não é a representação exata da realidade – considerando-se efeitos de trucagem e pose, por exemplo – a narrativa também sofre a ação da vontade do narrador. Ele pode se tornar o condutor de um leitor ingênuo – fazer com que pense e acredite piamente no que conta e na maneira como conta. Basta trazermos à baila o grande enigma da literatura machadiana: Capitu traiu Bentinho? O narrador atua como uma câmera que busca o seu principal ponto de foco e de tal seleção segue a demanda por uma referência a partir da qual a narrativa será composta. Segundo Campos (2007), a categoria do narrador pode ser divida em três gêneros: a) narrador dramático – ênfase nos jogos de ações das personagens e as revelações decorrentes disso; b) narrador épico – percebe e narra um determinado conjunto de incidentes vividos pelos personagens e; c) narrador lírico – narra, principalmente, a subjetividade das personagens. É interessante que o professor proporcione um momento de reflexão acerca do lugar que o narrador ocupa (ao lado, acima ou dentro da personagem principal) e a relação com os fios de história narrados (ponto de foco). Apenas com o intuito de provocar os leitores mais crédulos, poderíamos por começar dizendo que o tema não é amor proibido. A cartomante não é uma história de amor, mas de vaidade. Como chegar a tal conclusão? Amigos de infância, Villela se tornou magistrado, depois advogado; Camilo, funcionário público, pois resolveu não ser nada. Villela se casou com a graciosa e tonta Rita e dessa ciranda nasce o “triângulo amoroso”. Rita se aproxima de Camilo no momento mais frágil de sua vida: a morte de sua mãe. Não por acaso, Camilo a vê como uma enfermeira moral e irmã; seu amor por Rita é maternal e selvagem. O filho que deseja a mãe como descrito por Freud em um de seus mais populares conceitos – o complexo de Édipo – mistura-se à virilidade e potência do homem. Odor di femmina, o cheiro da fêmea que Camilo sente e que quer ter como seu expressa o primitivismo de seu sentimento em relação a Rita. Antes que o leitor veja Rita como vítima dos galanteios de Camilo, o narrador aproxima a imagem da “dama” com a de uma serpente. Foi ela quem o envolveu e
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pingou seu veneno na boca do desejado; o romance dos amantes se torna o encontro entre um sapato velho com um pé cansado. A possível áurea sagrada de Rita (Santa Rita de Cássia, de origem italiana) se esvai ao sabermos que uma mulher de 30 anos seduz um rapaz de 26. Assim como a serpente do Éden, Rita – tão perversa quanto Capitu – atrai a presa ao seu covil e faz dele seu objeto sexual. Na cena seguinte, há uma desestabilização do ritmo narrativo, anunciando a possível descoberta do adultério. A carta anônima é o elemento material que provoca as personagens e o leitor e que, ao mesmo tempo, remete-nos ao início do conto – apenas na terceira cena temos a explicação para o fato introdutório. Para tornar visível o ritmo narrativo, poder-se-á traçar um gráfico como o apresentado a seguir.
Tabela 5: ritmo da tensão narrativa em A cartomante
Há um aumento de tensão entre a terceira e a quarta cena, justamente o momento em que Villela chama com urgência Camilo a sua casa. A repetição da frase escrita no bilhete contribui para um efeito de sufocamento e aflição no leitor que, mesmo de sobreaviso, não acredita que o narrador revelaria o desfecho da história precocemente (“esperando-o para matá-lo.”). Além da feição distorcida pelo medo, o movimento/velocidade também é percebido a partir de sentenças como “a trote largo”. A carreira desabalada de Camilo é interrompida por um acidente que oblitera sua passagem, este que é um alívio para o leitor, pois há uma suspensão do clímax. O obstáculo introduz a sexta cena, em que leitor e personagem entram em estado de calmaria; não há motivos para preocupação. Assim como a Santa Rita possuía origem italiana, a cartomante também o era; a serpente que antes tragara sua presa, agora lhe dá conselhos por meio das cartas – “...a mão da própria sibila (...)” – que nesse caso, pode estar relacionado a um falar sibilante que traz à memória o som emitido pelo animal.
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Com o coração alegre, Camilo e leitor adentram na última cena. O dia, o mar, o abraço infinito entre céu e água provocam sensação de vida longa. Do ponto mais baixo de tensão, o leitor é remetido à frieza das portas de ferro e dos degraus de pedra da casa silenciosa de Villela. Da mesma forma como na narrativa de o Demolidor, o desfecho do conto pode ser representado por um dos pontos mais altos de tensão, ao contrário dos contos de fadas ou romances policiais, em que após o clímax há uma cena de reequilíbrio – o final feliz. Se A Cartomante não é uma história de amor proibido, Rita e Camilo também não eram os mocinhos da trama. O efeito catártico pode surgir em decorrência da morte dos dois imorais pelas mãos do marido perfeito. O pouco que sabemos de Villela é que sempre foi um bom homem, marido e amigo; não há razões plausíveis que justifiquem a traição de ambos. Consideração final Embora introdutório, o exercício acima descrito procura observar a narrativa a partir de um ângulo específico: o ritmo tensional. Não se pretendeu, com tal proposição, reduzir os textos ficcionais ao esquematismo, mas, pelo contrário, provocar os leitores a observar algumas das estratégias utilizadas pelos criadores e produtores do texto para prender a atenção da audiência. O exercício de identificar, delimitar e atribuir peso tensional a cada cena implica memorização e compreensão apuradas. Essas atitudes, por seu turno, ajudam o leitor não só a vivenciar a narrativa (o exercício de identificação), mas também a distanciar-se dela para encontrar seus artifícios. REFERÊNCIAS ABDALA Jr., B. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995. BLOCK, B. A narrativa visual: criando a estrutura visual para cinema, TV e mídias digitais. São Paulo: Elsevier, 2010. CAMPOS, F. Roteiro de Cinema e televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1969.
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OBRAS CANÔNICAS E CONTEMPORÂNEAS NA FORMAÇÃO DO LEITOR: UMA REFLEXÃO ACERCA DA ADAPTAÇÃO Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira FCL UNESP – Assis/SP Ricardo Magalhães Bulhões UFMS – Três Lagoas/MS Introdução [...] não procuremos na sua obra [de Machado] uma coleção de apólogos nem uma galeria de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações ficcionais que ele inventou. (CANDIDO, 1995, p. 39).
Este texto tem por objetivo apresentar uma análise do texto Agulha ou linha, quem é a rainha? – um apólogo, escrito por Paulo Bentancur e ilustrado por Eloar Filho (2007), a partir de uma adaptação do texto “Um apólogo”, de Machado de Assis (1997). Mais especificamente, pretende-se, a partir dos princípios bakhtinianos (1995), verificar como se efetiva a dialogia entre o texto de Bentancur e o de Machado. Entende-se por dialogismo, neste texto, conforme Diana Luz Pessoa de Barros (1999), a característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. Ele é a condição do sentido do discurso, justifica-se, então, na análise de ambos textos, a opção por se considerar o dialogismo interno no âmbito discursivo, das vozes que falam e polemizam nas narrativas (narrador, personagens e leitor implícito), reproduzindo o diálogo com outros textos. Aparentemente distintos, os dois textos dialogam e exigem do leitor, pela interação verbal no espaço do texto, identificação desse diálogo. A leitura de obras adaptadas em sala de aula pode favorecer a formação do leitor, pois em consonância com Ana Maria Machado (2002), nem sempre é desejável, dependendo da idade e da maturidade do leitor, que o primeiro contato com o texto clássico seja feito como um mergulho nos textos originais. Atualmente, existem ótimas adaptações que possibilitam a oportunidade de um encontro sedutor, atraente e tentador. A leitura do texto adaptado pode representar tanto
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um trabalho comparativo com o original, quanto um convite posterior para exploração de um território muito rico na fase das leituras espontâneas. Parte-se do pressuposto de que a não explicitação da dialogia entre obras impede que a leitura se torne mais interessante e saborosa para os alunos leitores, pois eles perdem a capacidade de perceber a remissão presente no jogo ficcional. Assim, parte-se, neste texto, da proposição de que o diálogo entre obras, uma vez detectado pelos alunos, pois manifesto em sala de aula, pode transformar este espaço em local de debates e de expressões de interpretações diversas, enfim de democratização da cultura. A partir dessa conjectura, pretende-se analisar a adaptação de Bentancur, por meio da comparação com “Um apólogo”, de Machado de Assis. Neste texto, acredita-se que a leitura em sala de aula dos textos de Bentancur e de Machado pode instaurar no centro do processo a reflexão crítica acerca da historicidade, ou seja, de como a época e o contexto social em que vive determinado escritor são representados em sua produção. Para a consecução dos objetivos, pretendese apresentar uma reflexão fundamentada pela estética da recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos determinam o papel do leitor implícito. Constrói-se a hipótese de que a estratégia de Bentancur, de resgatar um texto canônico e recontá-lo, atualizando sua linguagem e adequando-a ao público jovem e contemporâneo a sua produção, fazendo uso do texto imagético, tanto permite a esse leitor contato com um texto atraente, lúdico e crítico que o conduz à reflexão, quanto lhe faculta a ampliação de conhecimentos, por meio do resgate da memória cultural. A apropriação de um texto canônico, mas adaptado à linguagem contemporânea, mais próxima do jovem, atua como fator de valoração da identidade desse leitor. Por meio dela, ele é capaz de elevar sua autoestima, pois percebe que é considerado como receptor de uma produção, ao mesmo tempo em que se reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural tradicional. Como linha na agulha: a obra de Bentancur em questão Em Agulha ou linha, quem é a rainha? – um apólogo, o dialogismo se estabelece de forma explícita, tanto no título lúdico, pois dotado de rima interna (“linha” – “rainha”), que apresenta o título machadiano sob a forma de subtítulo, quanto na quarta capa, escrita por Luís Augusto Fischer: “A história aqui recontada, originalmente batizada de Um apólogo – uma alegoria moral – por seu autor, Machado de Assis, é
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uma das muitas que o genial escritor brasileiro escreveu com esse tom de parábola, fórmula ancestral da literatura de todo o mundo conhecido” (FISCHER apud BENTANCUR, 2007, quarta capa). Pode-se notar na afirmação de Fischer que este não difere apólogo de parábola. De fato, a distinção entre ambos, e destes inclusive em relação à fábula, nem sempre foi clara. O apólogo, embora apareça em culturas diversas, não tem sua origem definida. Para Massaud Moisés (1999), este gênero literário, apesar de possuir, como a fábula e a parábola, uma narrativa breve, difere destas pelas suas personagens protagonizadas por seres inanimados, como pedra, estátua, moeda etc. Além disso, o apólogo possui estrutura dramática. Construído, por meio de uma alegoria, o apólogo busca a adesão do receptor aos valores veiculados, geralmente, de ordem universal. Como narrativa figurativa, apresenta a comparação entre os seres, pela ilustração de seus comportamentos. Dessa forma, segundo Marilza Arantes (2006), anseia convencer o leitor a mudar suas próprias atitudes, por meio da projeção nas personagens. Enquanto ficção, o apólogo procura, pela linguagem descritiva e corrente, retratar uma realidade e não impor uma condição de verdade (ARANTES, 2006). Os comentários e avaliações, nesse tipo de texto, aparecem na fala do narrador e das personagens. Na estrutura interna do apólogo, predominam tanto o argumento da comparação, quanto o pragmático. A comparação se estabelece, pelo julgamento das virtudes, ou seja, entre as qualidades de um ser e as do outro. Com isso, busca-se determinar quem é o mais importante ou o melhor. Sua argumentação atua com papel didático, como ensinamentos para a vida. O discurso no apólogo oscila entre o universal e o individual, pois trata de temas atemporais, mas para um público específico. Suas personagens se definem, por meio de uma relação metonímica, como a parte de um todo que se representa. Ainda na quarta capa de Agulha ou linha, quem é a rainha?, anuncia-se também para o jovem leitor os objetivos do livro: levá-lo a se indagar sobre o sentido das ações humanas e facultar-lhe a aproximação com o universo machadiano, definido como: “[...] verdadeiro tesouro da literatura brasileira e, cada vez mais reconhecidamente, universal” (FISCHER apud BENTANCUR, 2007, quarta capa).
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A adaptação e a formação do leitor A eleição de uma adaptação pode favorecer a formação do leitor estético, sobretudo, no trabalho comparativo da versão adaptada por Bentancur com o texto original de Machado de Assis, denominado Um apólogo. Segundo Carlos Magno Gomes (2008), o conceito de leitor estético, que se preocupa com o “como” um texto foi construído, pode ser usado como uma metodologia de leitura que privilegia o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais que o texto carrega. Assim, a leitura estética constitui-se em uma proposta interdisciplinar para o ensino de literatura. A obra de Bentancur mantém fidelidade com a temática e a abordagem do texto de Machado, sobretudo, com a “situação ficcional”. Vale destacar a criatividade de Machado na situação ficcional instaurada na narrativa, pois de forma metafórica, o escritor apresenta uma discussão entre uma linha e uma agulha acerca do valor e do papel social que possuem. Desse modo, seus personagens mimetizam, justamente, a disputa que se instaurou com o advento da República entre uma classe social que surge, a burguesia urbana, composta por intelectuais ditos “civilizados”, e a já existente, a aristocracia rural. Agulha ou linha, quem é a rainha?, de Paulo Bentancur, configurado sob a forma de um apólogo, desdobra-se em dois momentos. No primeiro, o narrador tradicional, observador, com relato ulterior, narra uma história alheia, para tanto se apropria da técnica dos contadores tradicionais, sobretudo, dos contos de fadas, anunciando: “Era uma vez” (2007, p.3). Esse narrador relata de forma descontraída, como quem dialoga com o leitor, a história de uma disputa entre uma agulha e uma linha, alterando para isso seu estatuto narrativo, pois assume o discurso em primeira pessoa: “Não lembro se contei que a costureira andava sempre atrás da esposa do Ministro, para que a esposa do Ministro não precisasse andar atrás dela” (2007, p.7). Desse modo, Bentancur mantém a estratégia de diálogo do narrador com o leitor, própria da produção machadiana. Além da estratégia do narrador de esquecer se já narrou algo ou não, o que confere ao leitor a sensação de superioridade em relação aos eventos narrados, pois consegue se recordar melhor do que o próprio enunciador da história. Para Antonio Candido, com esta técnica de relativização da soberania do
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narrador, Machado “[...] lisonjeava o público mediano, inclusive os críticos, dando-lhes a sensação de que eram inteligentes a preço módico” (CANDIDO, 1995, p.22). Na obra de Bentancur a disputa que se realiza entre a linha e agulha, na casa da esposa do Ministro onde residem, revela que ambas buscam compreender quais são seus valores e papéis na confecção de um vestido. A agulha afirma que possui função preponderante, pois abre caminho para a outra. Já a linha diz que é responsável por atar todos os pedaços do tecido, constituindo assim o vestido. Ao término da discussão, a linha desafia a agulha, argumentando que sua performance foi melhor recompensada, pois irá ao baile vestindo a esposa do Ministro, enquanto a agulha voltará para a caixa de costura. A essa constatação, um alfinete afirma que, justamente por isso, onde o espetam, fica, assim, não abre caminho para ninguém, ou seja, não é vítima do oportunismo de indivíduos que se aproveitam de outros para progredirem ou se projetarem socialmente. No segundo momento do texto, o narrador passa a relatar sua própria história, ou seja, uma em que ele também é actante, participa das ações instauradas na diegese. Para tanto, assume o discurso em primeira pessoa, afirmando que contara essa história a um amigo que respondeu tristemente: “– Eu também tenho servido de agulha a muita linha sem valor.” (BENTANCUR, 2007, p.11). Essa afirmação final do narrador resgata uma temática tão cara a Machado, segundo Antonio Candido: “[...] a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual” (1995, p.34). Como se pode notar, o plano semântico é o mesmo. Desse modo, a atualização da obra efetiva-se, nos planos da linguagem e da estruturação frasal, ou seja, lexical e sintático. Podem-se observar as diferenças nesses planos na transposição do texto de Machado para o de Bentancur. Apresentam-se, a seguir em negrito, alguns exemplos dessa transposição: QUADRO COMPARATIVO Texto de Machado
Texto de Bentancur
— Por que você está com esse ar, toda — Por que você está desse jeito, exibida, cheia de si, toda enrolada, para fingir toda enrolada, fingindo que é grande que vale alguma coisa neste mundo? coisa? [agulha]
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[agulha] — Deixe-me, senhora. [linha]
— Me deixe em paz! [linha]
[...]
[...]
— Mas você é orgulhosa. [agulha]
— Que orgulhosa! [agulha]
— Decerto que sou. [linha]
— Sou e me garanto. [linha]
[...]
[...]
— Não digo isso. Mas a verdade é que — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo você não é importante: só mostra o adiante; vai só mostrando o caminho, vai caminho, seu trabalho é inferior. Eu é que fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é prendo, ligo, ajunto... [linha] que prendo, ligo, ajunto... [linha] Estavam nisto, quando a costureira chegou Nesse momento a costureira chegou na à casa da baronesa. Não sei se disse que casa da esposa do Ministro, onde isto se passava em casa de uma baronesa, moravam a agulha e o novelo de linha. que tinha a modista ao pé de si, para não Não lembro se contei que a costureira andar atrás dela. [narrador]
andava sempre atrás da esposa do Ministro, para que a esposa do Ministro não precisasse andar atrás dela. [narrador]
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em — Viu, sua boba? Você cansou de abrir abrir caminho para ela, e ela é que vai caminho para ela e ela é que vai gozar a vida, enquanto aí ficas na aproveitar, enquanto você volta pra caixinha de costura. Faze como eu, que caixinha de costura. Faz como eu, que não não abro caminho para ninguém. Onde me abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico. [alfinete]
espetam, ali eu fico. [alfinete]
Bentancur, visando à obtenção de um discurso próximo ao da oralidade, utilizase de gírias, do imperativo afirmativo na terceira pessoa do singular (você), e de colocações pronominais que rompem com a norma dita culta, pois dispostas no início da frase em próclise. Ainda, objetivando uma atualização ao contexto do jovem leitor, substitui o termo baronesa por esposa do Ministro.
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No texto de Machado, essa proximidade com a oralidade é assegurada também pelo emprego de gírias e pela mescla entre a terceira pessoa (você) e a segunda do singular (tu) no imperativo afirmativo. Vale destacar, conforme Marisa Khalil (2005), que a adaptação de Bentancur, ao privilegiar um léxico mais corrente, também objetiva transpor a linguagem do século XIX para o XX, ainda, deslocá-la do discurso do adulto para o da criança e, também, do jovem. Para a autora (2005), retomando Foucault, a adaptação de Bentancur realiza um sistema de repetibilidade dos enunciados. Dessa forma, não modifica a identidade do enunciado, antes, representa uma variação. O texto não-verbal, produzido por Eloar Filho, ao ilustrar a adaptação de Bentancur, dialoga com o texto verbal e amplia suas significações. As ilustrações coloridas em tom pastel possuem cores primárias, sinalizando que a obra interessa aos jovens. Há personificação da agulha, da linha e do alfinete que recebem rostos humanos. De forma irônica, as personagens humanas são representadas em ângulos agudos e em formas alongadas que remetem aos traços pertencentes à agulha, sinalizando que, em uma sociedade desigual e injusta, todos os que produzem algum tipo de serviço, enfim pertencem à classe trabalhadora, são “usados” pelo sistema de uma forma ou de outra. O rosto da costureira é o que mais se aproxima do rosto da agulha, assim sua representação solicita do jovem leitor uma reflexão acerca do papel dessa personagem, tendo em vista que ela produz, fazendo uso da agulha e da linha, um trabalho do qual não pode usufruir: um vestido confeccionado em fina seda. Além disso, sua submissão à esposa do ministro fica marcada, no plano verbal e imagético, por “andar sempre atrás desta”, para que a primeira fosse prontamente atendida. A ambiguidade na expressão “andar sempre atrás” permite ao leitor uma reflexão tanto acerca da disposição da costureira ao caminhar com a esposa do Ministro, quanto de sua subserviência. A folha de abertura da obra apresenta uma caixinha fechada e entalhada que, pelo mistério que instaura, convoca à leitura pela curiosidade. A abordagem do tema é dinâmica, pois se configura tanto no texto verbal, quanto no visual como repleta de lacunas, provocadas pela disputa, pela personificação e reificação das personagens humanas, sobretudo, do rosto da costureira tão semelhante ao da agulha. A disputa, por sua vez, solicita a interação com o leitor, pois o prende até o final da leitura em busca da detecção de quem deve vencê-la. Ao final da leitura, ele percebe que há outros níveis de significação, aliás a disputa entre a agulha e a linha é efêmera se
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comparada ao trabalho da costureira que utiliza a ambas e nem por isso é reconhecida por sua performance. A abordagem na obra, também, é consistente, pois escapa de simplificações nas representações, demonstrando com humor a capacidade de sedução da narrativa que pressupõe um leitor curioso e, justamente por isso, motivado a desvendar os seus significados. A preocupação estética centra-se na manutenção da coerência entre linguagem verbal e oral, ainda, na dialogia entre texto verbal e não-verbal. Dessa forma, o livro propicia uma experiência significativa quanto aos usos literários da língua e da ilustração. Conforme Nelly Novaes Coelho (1996), o processo de adaptação deve se desenvolver em três níveis: trama episódica, personagens e fidelidade à “invenção literária”. Em relação ao enredo, observa-se que Paulo Bentancur mantém fidelidade à invenção de Machado de Assis, apresentando brevidade ao narrar ações da trama, por sua vez figurada pelos mesmos personagens machadianos. Para tanto, Bentancur utilizase da paráfrase. As alterações que este escritor apresenta em sua obra dizem respeito à linguagem, como visto no quadro acima, e à inserção de ilustrações. A primeira estratégia visa a aproximar a narrativa do discurso do jovem leitor contemporâneo à obra, e a segunda, a torná-la mais atraente para este público. Conclusão A obra de Bentancur dialoga com a de Machado, além disso, por meio de seu intertexto, com os contos de fadas e os populares, mobiliza e instiga o leitor a estabelecer relações com outros textos na leitura. Pelo emprego da temática – exploração do homem pelo homem e oportunismo –, instaurada logo no início da narrativa, a obra contribui para o desenvolvimento da percepção de mundo do leitor e para a reflexão acerca dos comportamentos sociais com os quais se depara, principalmente, acerca de suas próprias atitudes em relação ao próximo. O texto de Bentancur faculta ao jovem com pouco contato com a leitura uma revisão de conceitos prévios relacionados a narrativas ficcionais que apresentam narradores, geralmente, como personagens observadores que, de forma distanciada, não
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interagem com o leitor. Assim, o livro favorece a ampliação de suas referências estéticas e culturais. A obra faculta ao leitor o reconhecimento, pela leitura, de uma rede dialógica que, por meio de sua memória, permite-lhe identificar um lastro de narrativas que interagem entre si. Justamente por isso, são instauradoras de um tempo que, apesar de dinâmico, pode ser retomado e recontextualizado tantas vezes quantas forem as leituras da narrativa. Esse reconhecimento, por sua vez, confere prazer na leitura para o jovem leitor, pois ele percebe que os textos falam entre si (ECO, 1985), estabelecendo um dialogismo. O encantamento do leitor com a obra provém do equilíbrio que encontra na leitura entre elementos conhecidos e desconhecidos. Conduzido pelo narrador, o leitor entra em contato com um universo ficcional novo, mas nem tanto, porque moldado à luz dos contos de fadas e populares, por isso mesmo, seguro e acolhedor. Ao mesmo tempo, depara-se com desafios propostos pelas indicações de leitura e pelas ilustrações. Dessa forma, essa combinação entre elementos conhecidos e desconhecidos assegura entre os jovens uma atitude leitora dinâmica. O equilíbrio entre elementos conhecidos e desconhecidos presente na obra devese à harmonia do antigo com o atual. Pode-se observar na obra que o escritor resgata o contexto do século XIX, contudo, pela linguagem e temática universal, bem como pela estruturação frasal, atualiza-o. O escritor e o ilustrador, por meio do recurso dialógico da apropriação e da inovação, produzem um texto individual, rico e poético, mantendo na narrativa o perfil de criação autoral. O prazer obtido na leitura decorre também da estrutura do texto que solicita uma interação, na qual o leitor “recebe” o sentido ao constituí-lo. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo comunicativo. Conforme Iser (1999), esse processo ocorre quando existem lacunas presentes no texto que indicam os locais de entrada do leitor no universo ficcional. A obra de Bentancur possui, então, uma estrutura de apelo que invoca a participação de um indivíduo na feitura e acabamento: é seu leitor implícito. A comunicação ocorre quando esse leitor, na busca do sentido, da concretude, procura resgatar a coerência do texto que os vazios interromperam. Esse resgate realizado pelo leitor é decorrente da utilização de sua atividade imaginativa. Para Regina Zilberman (1984), obras que consideram o leitor, concebem que, somente por meio de sua atividade, a criação poética alcança seu fim: a transmissão de
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um saber. No caso de Agulha e linha, quem é a rainha?, este saber é emancipatório, pois oferece novos padrões ou possibilidades de suplantar a norma vigente. Pela leitura, o jovem revê seus conceitos acerca do fazer ficcional, de finais fechados, de narradores observadores, de personagens que ora são personificados, ora reificados, de títulos constituídos por meio da função poética da linguagem, mais especificamente pela rima. A leitura da obra concede ao processo de leitura uma legitimação de ordem existencial, pois revela ao leitor sua capacidade intelectual, valoriza-o. Essa valorização ocorre quando o texto o convoca ao desvendamento do enigma voltado para a determinação do valor de uma personagem. Por sua vez, a detecção de que se trata de um apólogo, conduz o jovem leitor a entendê-lo como um texto metafórico em que as personagens representam a posição do ser humano em sociedade. Composta pela linguagem popular, figurada e, às vezes, ritmada, como no caso do título, a obra de Bentancur permite ao leitor deter um saber acerca de um discurso plurívoco que tanto desautomatiza o uso da linguagem, quanto faculta a percepção de suas inúmeras realizações. Pelo exposto, a obra confere prazer ao leitor implícito porque solicita a sua produtividade, ou seja, oferece-lhe a possibilidade de exercer a sua capacidade. A adaptação de uma narrativa canônica, em sua origem verbal e destinada ao público adulto de classe prestigiada, para o texto verbal e imagético, composto por uma linguagem contemporânea, provoca um desvio democrático da cultura. Isso se deve ao fato de que o texto de Bentancur se revela acessível a qualquer leitor, de diferentes idades, sobretudo ao jovem. Sem abrir mão da fidelidade ao enredo, Bentancur produz um encantamento no jovem leitor, pelo emprego de linguagem adequada à sua faixa etária e ao ambiente escolar, além do emprego de ilustrações cativantes e dinâmicas. Pode-se concluir, então, que a obra desse escritor cumpre, como boa adaptação literária destinada ao jovem, a função de resgatar e manter vivo o texto literário considerado clássico pela tradição. Por meio de sua paráfrase, ele garante a incorporação ao horizonte de leitura do jovem de um texto canônico legitimado. Pode-se, então, perceber que é válida a hipótese de que, pela leitura da obra, o leitor entra contato com um texto atraente e lúdico que lhe faculta a ampliação de conhecimentos diversos, sobretudo, por meio do resgate do seu patrimônio cultural.
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Caderno Complementar 2
CAPES/SECADI/UAB/MEC e a Universidade Estadual Paulista (NEAD/Reitoria) Processo FNDE 400166-2010 UNESP/2014
Caderno Complementar 2 Organizadores Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira Juvenal Zanchetta Júnior Ricardo Magalhães Bulhões Rony Farto Pereira Thiago Alves Valente
SECADI
UAB
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
NÚCLEO EDITORIAL PROLEITURA
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