ANAIS do III Seminário do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem [atualizado] ANAIS do III Seminário d

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Anais do III Seminário do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem 01 a 03 de outubro de 2015 Uberlândia MG

ISSN 2178 - 8057


Realização: Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem/ UFU CNPq Grupo de Pesquisa Processos Híbridos na Arte Contemporânea / UFRGS CNPq Instituto de Artes [IARTE UFU] Programa de Pós-Graduação em Artes [PPG ARTES UFU] UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA [UFU]

Organização dos anais: Beatriz Rauscher; Priscila Rampin

Editoração dos anais: Suellen da Costa Vilela

Identidade visual: Bruno Ravazzi

Capa, Contra capa e Verso: Imagem superior capa e imagem verso: Elaine Tedesco, Caos, nó, 2011/2015 Fotografia em colaboração com Elcio Rossini Imagem inferior capa e imagem contra capa: Elaine Tedesco, Cadeiras, 2012 Fotografia em colaboração com Elcio Rossini Projeto Gráfico: Bruno Ravazzi


Anais do III Seminário do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem 01 a 03 de outubro de 2015 Uberlândia MG

ISSN 2178 - 8057 Editora: Beatriz Rauscher

Comitê Científico: Beatriz Rauscher Nikoleta Kerinska Marco Antonio Pasqualini de Andrade Heliana Ometto Nardin

Comitê Artístico: Nikoleta Kerinska Sandra Rey Priscila Rampin & Grupo Poéticas da Imagem

Monitores do seminário: Antonio Gabriel Junqueira Bárbara Ferreira Teles Katlyn de Lima Curtt Larissa Aparecida Silva Pinheiro Lívia Chiovato Marcus Vinícius Lima Quaresma Raphael Gonçalves de Faria Valéria Tosta dos Reis


Sumário APRESENTAÇÃO 07

Fotografia, narrativas e fabulações como um campo de atravessamentos para a pesquisa em Artes Visuais Beatriz Rauscher e Nikoleta Kerinska

SESSÕES TEMÁTICAS: I - Paisagem e memória: sonoridades, escritas e narrativas 12

Paisagens urbanas: rastros da memória em registros sonoros, fotográficos e literários Graziela Mello Vianna

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Overlapping: o relato de uma experiência artística em torno da narrativa Nikoleta Kerinska

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Δ βεlα гμssa Renato Palumbo Dória

II- | INTER | DITO |: processos de criação 39

Vestígios e memória: fotografias encenadas Elizabete Rocha

49

A abundância de imagens e a construção do vazio Fernanda Valadares

III- Histórias e Imagens 59

Possibilidades narrativas – ficções e afecções Heliana Ometto Nardin

70

A imagem simbólica: resgate das formas prisioneiras Enivalda Nunes Freitas e Souza

IV - A potência ficcional das máquinas de imagens 71

Ricardo Hantzschel e Guilherme Maranhão: narradores ficcionais de suas histórias Karina Alves de Sousa


77

Monga, artifícios ficcionais e o espectador João Paulo Machado Pena Franco

88

Técnica e poética em Além do Grande Vidro Paulo Mattos Angerami

V - Registro, nada, banal: fotografia e cotidiano 98

Caixa de sapato, um manifesto poético afetivo do cotidiano Andrea Nestrea

105

registro, nada, banal: fotografia e cotidiano Cláudia Maria França da Silva

113

Caminhar entre duas casas: cotidiano e processo de uma residência artística Glayson Arcanjo de Sampaio

VI - Tensionamentos documento/ficção em propostas artísticas contextuais 120

A fotografia nas propostas artísticas contextuais: circunstância de verdade e elemento de fabulação Amanda Cristina de Sousa

130

“Plante na Praça”: imersão e arte em contexto Andressa Rezende Boel

138

A fotografia como documento no processo de criação, narrativas, desvios e fabulações: entre o contexto urbano e o espaço expositivo Mariza Barbosa de Oliveira

147

Estratégias ficcionais como mediação de um modo de ver o mundo: as ações artísticas de “Pequenas Desordens” Priscila Rampin

ANEXO O anexo referente a este Anais do III Seminário do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem se encontra num arquivo à parte, no qual é possível ter acesso a continuação das sessões temáticas que formaram este seminário. Sendo assim, no anexo teremos o tópico VII – Experiência artística e narrativa poética: dança, literatura e artes visuais com o artigo Deambulações, de Gastão Frota, Cláudia Muller e Paulo Fonseca Andrade.


APRESENTAÇÃO Fotografia, narrativas e fabulações como um campo de atravessamentos para a pesquisa em Artes Visuais Os interesses do Grupo de pesquisa poéticas da imagem CNPq/UFU estão voltados para os estudos da imagem no campo da arte e especificamente para a fotografia, o vídeo, as imagens digitais, as imagens impressas em seus modos de produção, oferecimento e recepção. Nessa perspectiva pretende-se uma investigação sobre os processos criativos e cognitivos implicados na prática artística. Dando seguimento aos intercâmbios que temos organizado nos últimos anos, estamos propondo o III Seminário de Pesquisas do Grupo em parceria com o Grupo de Pesquisa Processos Híbridos na Arte Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para tanto convidamos grupos de artistas e pesquisadores para apresentações de trabalhos e debates em torno do tema Fotografia: narrativas e fabulações. Conceitualmente pretendemos revisitar os estudos de Bernard Guelton1 a respeito da noção de ficção artística, introduzida em nosso grupo de pesquisa a partir do estudo do espaço,2 com a finalidade de desdobrá-la em dois termos: narrativas e fabulações. Guelton observa que narrativa ou relato; mimeses ou ilusão; imersão ou absorção são características correntemente associadas ao termo ficção e que elas marcam as abordagens teóricas da ficção. Seus estudos apontam a importância da narrativa, da ilusão, da imersão e do jogo na definição da noção ficção no campo das Artes Visuais. Assim, desejamos com este Seminário, avançar o senso comum, a partir do qual qualquer modo de passagem do objeto real para a imagem dele, operaria ficções; e evitar os conceitos muito abrangentes que não produzem uma categoria de obras que poderíamos classificar como ficcionais.

1

Artista e pesquisador. Líder da Linha de Pesquisa Fictions & interactions, Institut Acte, Universidade de Paris 1- Panthéon Sorbonne. 2 Espaces Autres / Espaços Outros. Seminário e intercâmbio Internacional de Pesquisa. Programa de PósGraduação em Artes. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia MG, 2012.

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A dinâmica do Seminário se organiza em conferências e mesas temáticas com apresentação de trabalhos a partir de um desdobramento do tema em questão sob a perspectiva de pesquisas dos participantes na área ou em áreas afins. Abarca ainda a curadoria de duas exposições: | INTER | DITO | no MUnA /UFU e Narrativas Urbanas no SESC MINAS/Uberlândia. Além desses Anais eletrônicos dos trabalhos apresentados, o Seminário lança mais uma publicação científica, o Dossiê Inter-dito: fotografias e fabulações para a Revista ouvirOUver do Programa de Pós-Graduação em Artes/UFU, com artigos de pesquisadores presentes no Seminário e na exposição| INTER | DITO |. Nossos argumentos preliminares se basearam nos estudos de Jacques Rancière, segundo o qual a acepção de fingere não é fingir, mas forjar. O pensador francês coloca que “a ficção é a construção, por meios artísticos, de um ‘sistema’ de ações representadas, de formas agregadas, de signos que respondem uns aos outros”. Este sistema, mesmo nos projetos documentários pode “devolver o trabalho artístico à sua essência: uma maneira de recortar uma história em sequências ou montar vários planos numa história, de ligar e separar as vozes e os corpos, os sons e as imagens, de esticar ou comprimir tempos” (2014, p. 257-258). Objetivando uma definição que dê conta de todas as formas artísticas (cinema, literatura, artes), Jean-Marie Schaeffer (1999, p. 9-14) propõe pensar a ficção como uma “invenção ilusória, lúdica e compartilhada” (feintise ludique partagée). Schaeffer adverte que experimentando uma ficção, estamos conscientes que não se trata de uma verdade, assumindo assim um acordo implícito com seu autor. Uma das noções mais relevantes na qualificação de uma ficção é a imersão, ou seja, a entrada na experiência de suas estruturas narrativas, que engendram o tempo-espaço diégetico. De finalidade e estrutura próprias, a categoria das fábulas literárias apresenta uma serie de indagações e de questionamentos que convergem com esses da ficção. A dimensão narrativa das fábulas, porém, é pensada sob a perspectiva do mito, do fantástico e do maravilhoso (Jean-Luc Steinmetz, 2003, p.11; Tzvetan Todorov, 1980). Sabemos que as fabulações literárias envolvem uma “espécie de alegoria que apresenta como real o que é puramente imaginário”. Poderiam os estudos literários da narração e da ficção contribuir com nossa reflexão? Para pensarmos no tema do Seminário, recorremos à indagação colocada por Jacques Rancière (2014): há de fato uma oposição entre o “já dado do real à invenção ficcional”? Assim, tomamos a fotografia justo por sua objetividade e por ativar nossa crença no real da imagem. Ela será aqui abordada como suporte privilegiado da ficção e 8


das fabulações. Isso porque, o que vemos na imagem fotográfica é o próprio objeto (referente) sem ser o objeto. Traço do real e epifania icônica ativam a relação presençaausência da coisa na sua aparência. Nas Artes Visuais as experiências com as linguagens (entre as quais a própria hibridação possibilitada pelas imagens digitais) permitem subverter e embaralhar as lógicas narrativas a fim de produzir, conforme Flusser (2002) “determinados conceitos do mundo, a despeito da automaticidade da impressão do mundo” sobre a sua superfície. As máquinas de imagens são potentes em “gerar realidades” mais que mimetizar o mundo, assim permitem colocar semelhança e dessemelhança em tensão suscitando fabulações. Aberturas às projeções de subjetividades, imaginações e ilusões são comuns às fotografias, no entanto para que se constitua a ficção teríamos que recorrer a outros elementos. Propomo-nos a observar que, não são as várias interpretações de uma imagem possibilitadas pela imaginação subjetiva que caracterizariam a ficção (Lorenzo Menoud, 2005), mas que devemos indagar se, para ser considerada como tal, uma imagem precisaria ou não de uma estrutura e que estrutura seria esta? Pretendemos indagar a narrativa como recurso essencial da estrutura ficcional, e se, portanto, a fabulação liga-se nessa estrutura a uma ideia de tempo? Queremos ainda com este Seminário, investigar a noção de fabulação enquanto atividade da imaginação e, portanto sua potência em produzir narrativas ficcionais na forma de imagens. Observar a noção “fabulação criadora” (Gilles Deleuze, 1985) como possibilidade de rompimento com a percepção habitual do mundo e projeção em direção ao futuro. Notar se, ao subverter o real e apelar às formas imaginárias do perceber, os artistas estariam necessariamente operando ficções e fabulações? Queremos, por fim, pensar de que modo os artistas se valem dessas noções na construção de obras ficcionais; como a estrutura de tempo e da narrativa pode estar implícita em imagens que são definidas como imagens estáticas, como são as fotografias. Nosso objetivo com o Seminário de pesquisa Fotografia: narrativas e fabulações é alavancar a discussão sobre esses temas a partir das perspectivas artísticas e teóricas dos investigadores envolvidos. Os temas de estudo aqui publicados pretendem aprofundar as discussões sobre a imagem com ênfase na tecnologia, na fotografia, nas relações palavraimagem, nas narrativas visuais, nas ficções e fabulações artísticas, transversalidades e possibilidades de interação das artes. Beatriz Rauscher e Nikoleta Kerinska Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem 9


Referências: DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo – Cinema 2 ( tradução Eloisa de Araujo ) . São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia (Tradução do autor). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. GUELTON, Bernard. Ficções e interações: as ficções artísticas e a questão do espaço (tradução Nikoleta Kerinska e Beatriz Rauscher). ouvirOUver. ISSN: 1983-1005. Uberlândia. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/29413 MENOUD, Lorenzo. Qu’est-ce que la fiction ? Paris: Librairie Philosophique J. Varin , 2005. RANCIÈRE, Jacques. A Fábula Cinematográfica. ( tradução Luís Lima) Lisboa : Orfeu Negro, 2014. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens.

( tradução Luís Lima) Lisboa: Orfeu

Negro, 2011. SCHAEFFER, Jean-Marie. Pourquoi la fiction? Ed. Du Seuil, Paris, 1999. STEINMETZ Jean-Luc. La litterature Fantastique. Paris: Presses Universitaires de France – PUF, 2003. TODOROV Tzvetan . Introdução à literatura fantástica, São Paulo: Perspectiva, 1980.

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Paisagens urbanas: rastros da memória em registros sonoros, fotográficos e literários

Graziela Mello Vianna GRISsom, FAFICH, UFMG

RESUMO A nossa apresentação no Seminário Fotografia: Narrativas e fabulações parte das proposições do nosso projeto de pesquisa e extensão em andamento intitulado Paisagem Sonora Urbana: escutas de Belo Horizonte. Em tal projeto, observarmos a paisagem urbana em constante transformação a partir do relato de ouvintes-cronistas-flâneurs e habitantes anônimos sobre a paisagem urbana de Belo Horizonte descritas em crônicas e depoimentos e ainda de registros fotográficos da cidade. Servem-nos de inspiração os estudos do pesquisador canadense Murray Schafer (2001) acerca da paisagem sonora mundial. Desenvolvemos atualmente uma pesquisa bibliográfica e documental acerca de crônicas literárias e imagens produzidas ao longo do século XX sobre a cidade e depoimentos de pessoas que a habitam. Os resultados da pesquisa e das ações de extensão serão disponibilizados à comunidade por meio de uma exposição, de uma publicação e de um website a serem produzidos ao final do desenvolvimento do projeto. PALAVRAS-CHAVE Paisagem sonora, paisagem urbana, memória, literatura, fotografia.

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1. Introdução

A história de Belo Horizonte está nos documentos oficiais e mapas da cidade, mas também na memória, nas imagens e nos escritos de pessoas que vivenciaram as transformações pelas quais a cidade passou. Mudanças como o fim dos bondes, os sons das ruas, músicas que tocavam nas rádios e vitrolas, a construção de prédios comerciais e outras tantas ocorridas no espaço urbano são registradas por cronistas que flanam pela cidade em épocas distintas, tais como Cyro dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, dentre outros, além de seus habitantes anônimos. Espaço esse constituído pelas estruturas impostas pela arquitetura e pela topografia e por elementos sonoros e visuais dinâmicos que se relacionam com as práticas sociais de seus habitantes. Em uma passagem datada de 19351, o autor Cyro dos Anjos registra alguns desses elementos que constituem a paisagem da capital: Éramos quatro ou cinco, em torno de pequena mesa de ferro, no bar do Parque (Municipal). Alegre véspera de Natal! As mulatas iam e vinham, com requebros, sorrindo dengosamente para os soldados do Regimento de Cavalaria. No caramanchão, outras dançavam maxixe com pretos reforçados, enquanto um cabra gordo, de melenas, fazia a vitrola funcionar. (ANJOS, 2002, p.21)

Relatos como este nos provocam algumas inquietações. Qual a relação entre os sons de um ambiente e as pessoas que o habitam? Podemos relacionar as transformações da cidade e da paisagem sonora com as transformações nas relações de sociabilidade de seus habitantes? Como certos dispositivos sonoros alteram a paisagem sonora urbana? Como os relatos e as imagens sobre a cidade nos dão a ver a tessitura dos relevos sonoros da paisagem? As imagens da cidade também nos permitiriam "ouvir" esses relevos a partir da representação de seus objetos e dispositivos sonoros? Portanto, partindo dessas inquietações pretendemos observar essa paisagem dinâmica em constante transformação a partir do relato de ouvintes-cronistas-flâneurs sobre a paisagem sonora da cidade e, em seguida, de registros fotográficos da cidade descrita nas crônicas e de depoimentos dos seus habitantes sobre esses lugares. As proposições do pesquisador canadense Murray Schafer (2001) acerca da paisagem sonora2 mundial são norteadoras do presente projeto.

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Trecho do romance “Amanuense Belmiro”, criado a partir de crônicas de Cyro dos Anjos no jornal A Tribuna acerca da cidade de Belo Horizonte. 2 Tradução para o português do termo original em inglês soundscape, derivado de landscape, utilizado pelo pesquisador.

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Schafer (2001) considera como paisagem sonora "qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas como a composição musical"

(SCHAFER, 2001, p.366). Para

realizar a sua pesquisa sobre a paisagem sonora mundial, Schafer parte da leitura atenta de textos literários, textos jornalísticos e documentos oficiais onde são destacadas referências dos autores à paisagem sonora - desde os sons dos lugares em tempos remotos às transformações dos ruídos das cidades com a Revolução Industrial - para finalmente fazer um registro das paisagens sonoras contemporâneas e propor um projeto acústico mundial. Não temos a pretensão de realizar um trabalho de tamanho escopo como a pesquisa de Schafer em um nível mundial e nem mesmo propor soluções para a poluição sonora nos centros urbanos como fez o autor. Utilizamos a metodologia do pesquisador que parte dos textos para (re)constituir um panorama da paisagem mundial relacionandoos com imagens da cidade para pensar nas transformações (e implicações dessas transformações) de uma cidade relativamente jovem: Belo Horizonte. Sendo assim, trabalhamos inicialmente com textos de cronistas que fazem referência à paisagem sonora, com imagens fotográficas de objetos sonoros que constituem a paisagem e com o registro da memória afetiva de seus habitantes que nos desvelam as transformações ocorridas nesse espaço urbano planejado há pouco mais de um século. Dessa forma, inicialmente selecionamos textos e imagens que dão a ver as transformações do ambiente rural em cidade nos primeiros anos do século XX, a chegada das vitrolas e do rádio a partir da década de 1920 e dos dispositivos sonoros portáteis (desde o radinho de pilha na década de 70 aos Ipods nos anos 2000), as transformações nos transportes, - dos bondes (Figura 1) ao posterior desaparecimento dos mesmos com a chegada dos ônibus (Figura 2), a verticalização da cidade e as festas populares como o Carnaval, que recentemente passam a se configurar como uma ação política no sentido da ocupação popular do espaço urbano (Figura 3 e Figura 4). Entendemos que tais transformações nos permitem observar permanências e alterações na paisagem sonora da cidade e também podem ser indicadores privilegiados das práticas sociais dos indivíduos que habitam o espaço urbano.

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Figura 1. Bondes em Belo Horizonte (1902). Fonte: http://www.duniverso.com.br/wpcontent/uploads/2010/12/480x359xfoto-antiga-belo-horizonte-bonde.jpg.pagespeed.ic.gLaRRz4OXP.jpg

Figura 2. Trólebus e Bondes em Belo Horizonte (1960). Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-BczlqFUXH-U/UHTCi4HaiI/AAAAAAAAB6A/bavfI3AIgjI/s400/Pça+Estação+1960+BH+Bondes+Trolebus.bmp

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Figura 3. Carnaval em um tradicional bairro da cidade (Lagoinha). Fonte: http://belohorizonte.fotoblog.uol.com.br/images/photo20070216111652.jpg

Figura 4. Praia da Estação (2015). Fonte: http://www.otempo.com.br/polopoly_fs/3.673592.1420923142!image/image.jpg_gen/derivatives/mainhorizontal-photo-gallery-leading-fit_620/image.jpg

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Com o desenvolvimento da pesquisa, outros aspectos significativos das transformações do espaço urbano podem surgir e serem incorporados ao recorte inicial. Interessa-nos as vivências cotidianas na cidade, a partir do olhar e da escuta de quem a observa. Para dar conta dos objetivos da pesquisa, a metodologia da mesma foi estrutura conforme as etapas a seguir:  Mapeamento de crônicas que apresentem um registro da paisagem sonora urbana de Belo Horizonte ao longo de cada década do século XX até os dias atuais;  Identificação dos lugares recorrentes nas crônicas selecionadas;  Mapeamento dos registros fotográficos de objetos sonoros realizados nesses lugares recorrentes;  Fazer um breve um registro da paisagem sonora de Belo Horizonte nos lugares recorrentes;  Dar visibilidade à memória afetiva dos habitantes da cidade acerca dos lugares selecionados;  Criar um acervo com os resultados da pesquisa;  Disponibilizar o acervo de sons, imagens e textos literários e as reflexões desenvolvidas à comunidade local e à comunidade acadêmica.

2. Registros das transformações da paisagem urbana Benjamin afirma que “a cidade é o autêntico chão sagrado da flânerie” (1994, p.191) e que o “fenômeno da banalização do espaço” constitui-se em experiência fundamental para o flâneur (1994, p.188), enquanto Baudelaire (2001) considerava a cidade sedutora, uma vez que as ruas labirínticas da cidade constituem o fascínio da multiplicidade e do efêmero, o gosto pelo movimento ondulante da multidão para o “perfeito divagador” ou “observador apaixonado”. Considerando, portanto, o cronista como o flâneur de Baudelaire que vaga e observa apaixonadamente a cidade, acreditamos que de crônicas literárias sobre a cidade como parte do material empírico se justifica uma vez que não nos interessa o texto factual que relata o acontecimento e sim os relatos que se deixam conduzir pela "alma encantadora das ruas" (RIO, 2008) e, assim, nos dão a ver/ouvir elementos que constituem o cotidiano e a paisagem da cidade. Privilegiamos nessa paisagem as imagens e a escuta dos objetos sonoros que a constituem por entendermos que tais elementos tem o poder de evocar lembranças multissensoriais, como defende Haye (2004, p.45): 17


O estímulo acústico de possibilitar esse caráter (multissensorial) mediante sua enorme capacidade evocadora e criadora permite que se desdobre o princípio de visibilidade por meio do qual sujeitos, objetos, situações e cenários são 'mostrados' à imaginação do ouvinte. [...] Assim, o som seduz a visão, o paladar e o olfato dos ouvintes transmitindo a aspereza do tronco da árvore, a suave coloração do poente ou a excitante fragrância do guisado sendo cozido na velha panela de pressão queimada da avó.

Assim, entendemos que a escolha pela reflexão sobre as textualidades sonoras que afloram nas imagens e nas crônicas sobre a cidade se justifica por esse caráter multissensorial dos elementos sonoros. Elementos esses que constituem um texto unisensorial, mas que evocam vários sentidos da percepção, tornando-se assim um profícuo objeto de análise. Regina Porto faz uma comparação entre a paisagem sonora e o registro fotográfico, de acordo com a qual "em lugar do olho, o ouvido: a 'paisagem sonora' é fundamentalmente, a arte da captação "fotográfica" do som. O microfone é o instrumento que permite o instantâneo e o close; a caixa acústica, sua ampliação" (op. cit. 1997, p.19). Pretendemos, portanto, cotejar tais textualidades sonoras com registros fotográficos da cidade a fim de perceber as relações da memória afetiva dos habitantes da cidade acionada a partir dos elementos sonoros que constituem a paisagem - com as imagens que também a constituem. Entendemos que tal esforço nos permitirá compreender a multisensorialidade da paisagem urbana. Para tanto, registramos também relatos de pessoas que habitam a cidade. Por meio de suas lembranças temos acesso a fragmentos de uma paisagem urbana do passado e que deixa marcas no presente. À medida em que Belo Horizonte se desenvolve, os moradores vivenciam a reforma urbana. No que se refere ao transporte, além do uso de carroças no começo do século XX, ocorreu a inauguração da primeira linha de bonde da capital. Localizada na Avenida Afonso Pena, esquina com a rua da Bahia, em 7 de setembro de 1902. "O primeiro trecho interligava a entrada da cidade com o Mercado, pela linha Estação, com o bairro dos Funcionários, pelas linhas Ceará, Pernambuco" (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; BELO HORIZONTE (MG); COLEÇÃO BELO HORIZONTE, 1996, p. 42). Um dos pontos principais onde passavam os bondes era a Praça Sete, caracterizada pela calçada com paralelepípedos, onde quase todos os bondes faziam uma volta: "[...] na avenida Afonso Pena, esquina com a rua da Bahia, onde faziam ponto todos os bondes da cidade. Consequentemente, ali passavam diariamente muitas pessoas, transformando o lugar no mais famoso ponto de encontro da Capital [...].(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; FEDERAÇÃO DO COMÉRCIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 1997, p. 49).

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Maria, uma das entrevistadas, catadora de papel que trabalha às noites no hipercentro de Belo Horizonte, ao relembrar os momentos de diversão e aventura nas caronas de bonde elétrico, sente falta desse tempo que já se foi e até arrisca em comparar que o “tempo antigo” era bem melhor do que o presente. Maria: Ah, não tem nem como te explicar ele era tipo um trenzinho! Você já viu aquele trenzinho que fica levando criança no Parque Municipal? Ele era daquele tipo. O tempo do bonde que era bom! Nós era muito molecado. Hoje em dia, cruz credo! Eles deveriam trazer o bonde de novo! (...) o barulho do trem era assim: [Maria reproduz com os lábios os sons do bonde e o barulho que fazia nos trilhos].

Maria, ao falar das lembranças que tem do bonde, tenta imitar com a boca o ruído que o veículo fazia ao passar pelos trilhos. Ela chega a comparar os sons com os feitos pelo trem. Ao tentar reproduzir o barulho com os lábios, Maria se permite rememorar a paisagem urbana da cidade no passado. Com isso, nos sugere a pensar sobre a mudança da paisagem sonora urbana. A imitação feita por Maria é fruto de uma rememoração de um som que pertencia à paisagem urbana da cidade e que já não existe mais. Atualmente se tem o barulho dos motores dos automóveis, as buzinas, os alto-falantes das lojas, os locutores com seus microfones, anunciando os produtos. As lembranças falam de um passado ao mesmo tempo rico em detalhes, mas também marcado pelo esquecimento. Ao tentarem se lembrar de algo, houve intervalos de silêncios. Em outros momentos, a lembrança de determinado som era o ponto de partida para esse esforço de rememoração. Algumas vezes, eles conseguiam lembrar de alguns trechos de canções, já que as músicas tocavam muito nas rádios na época. Durante as entrevistas Maninho, um engraxate que também trabalha no hipercentro da cidade, nos conta sobre o papel do rádio na sua vida cotidiana: Maninho: o rádio faz parte da nossa vida, das coisas que não era tão fácil, mas todo mundo tinha. Quando dormia ligava o radio para dormir. Mais o rádio era meu companheiro desde a infância até hoje! A televisão chegou logo depois, mas o rádio é o rádio! Desde que trabalhávamos tinha um amigo, que já faleceu, o Gilberto, ele colocava na Rádio Cultura. De duas da tarde às quatro, ouvíamos. No período da manhã era Roberto Carlos, a tarde era algo mais parecido com o rock, a noite, o ritmo da noite, isso tocava nosso coração. Na época, éramos uns 10 engraxates juntos e conseguimos três caixas de som e ficamos trabalhando e ouvindo o rádio. Tinha momentos que até dançávamos!

O rádio acompanhava as tendências musicais da época e ainda acompanha as atuais. Desse modo, entendemos o meio rádio e outros dispositivos de comunicação como um lugar de experiência e ao mesmo tempo como um dos relevos que constituem a paisagem urbana. 19


3. Considerações finais sobre a materialidade das paisagens urbanas A cidade está entrecortada por dispositivos de comunicação como cartazes publicitários, o rádio, a televisão, o cinema; meios de transporte e formas de ocupação do espaço urbano diversas. A cidade não é estática, não é apenas o que pertence ao seu território, algo plenamente representável num mapa. Na contemporaneidade, os circuitos informativos e midiáticos também pertencem e alteram a paisagem urbana. Concordamos assim com Di Felice (2009) que reivindica um novo olhar para as cidades atuais ao considerar a dinâmica e fluidez das paisagens pós-urbanas. “As praças, as ruas, as avenidas deixam de serem os lugares únicos da experiência social urbana e passam a ser flanqueados por outras especialidades imateriais e informativas (publicidades, imagens, luzes, paisagens sonoras etc.) que se sobrepõem criando metageografias e novas experiências de habitar”. (DI FELICE, 2009, p.153)

Portanto, a paisagem urbana ganha relações de sentido a partir das relações e das funções sociais que lhe são atribuídas e dos dispositivos que permeiam essas relações. “Em cada época, o processo social imprime materialidade ao tempo, produzindo formas/paisagens. As paisagens construídas e valorizadas da sociedade revelam sua estrutura social e conformam lugares, regiões e territórios. A paisagem é a materialidade, mas é ela que permite à sociedade a concretude de suas representações simbólicas”. (SANTOS, 2002, p.13-14).

A memória não deve ser pensada como uma entidade isolada, com existência própria e sim como algo fruto de um constante embate entre diversos tipos de fontes de informação, tais como os rastros na cidade que ativam a rememoração de lembranças relacionadas à experiência social urbana. A memória coletiva (ou social) não tem uma forma permanente. Ela é negociada no corpo social de crenças e valores, rituais e instituições. Nossa vontade presente tem grande impacto sobre o que e como rememoramos. O passado rememorado está sempre inscrito no nosso presente. Nossa memória é construída através de uma variedade de discursos e diversas camadas de representações cujas pistas podem ser encontradas nos espaços urbanos onde habitamos e onde habitaram nossos antepassados. Cabe a nós, pesquisadores, ler, ver e ouvir esses rastros.

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Referências

ANJOS, Cyro dos. O amanuense belmiro. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e terra, 2001. BENJAMIN, Walter . Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; FEDERAÇÃO DO COMÉRCIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte & o comércio: 100 anos de história. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos, 1997. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; BELO HORIZONTE (MG); COLEÇÃO BELO HORIZONTE. Omnibus: uma história dos transportes coletivos em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 1996. HAYE, Ricardo. El arte radiofónico: algunas pistas sobre la constitución de su expresividad. Buenos Aires: LaCrujia, 2004. PORTO, Regina. A poética do som: utopia e constelações. In: ZAREMBA, Lílian; BENTES, Ivana (Org.). Rádio Nova: constelações da radiofonia contemporânea 2. Rio de Janeiro: UFRJ, ECO, Publique, p. 15-26, 1997. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem

sonora.

São

Paulo:

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Editora

UNESP,

2001.


Overlapping: o relato de uma experiência artística em torno da narrativa

Nikoleta Kerinska Grupo de pesquisa Ficções & Interações da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne e docente IARTE-UFU ABSTRACT The art project Overlapping provides a reflection on the contemporary city, populated by narratives, images and any kind of language forms and manifestations. Our artistic position varies between the discovery and memory, between the new and ever seen. This project matches the visual experiences of several urban routes, which are presented like a sequence of the same story. The video images are mixed up until an abstract landscape that becomes a sort of body, ready to be penetrated, tasted, smelled, and then redesigned. Created as a statement about the city, a text takes shape within the temporal and spatial dimension of these images. The Overlapping project may also be shown as a series of still images - taken from the movie - who value certain stages of wandering, or rather, certain forms of reading. So then the question arises: which are the possibilities to compose narratives from these images, and also how the text participates at the narrative structure. Merged inseparably, text and image are part of the same poetic language that evolves generating more visual perceptions than telling stories. KEYWORDS Text and image; narrative; fiction; wandering; contemporary city.

RESUMO Esta reflexão relata o processo de concepção do projeto artístico Overlapping. Iniciado em 2015 este projeto trabalha com a relação texto/imagem e investiga as possibilidades de construir narrativas, fazendo uso simultâneo dessas duas mídias. O tema principal de reflexão é a perambulação na cidade contemporânea. Overlapping propõe um olhar sobre a cidade, povoada de narrativas, de imagens e todo tipo de linguagens. Este olhar oscila entre a descoberta e a memória; entre o novo e o já visto. Percursos em diferentes cidades são registrados e apresentados como sequência de uma só trilha. Desta forma, as imagens videográficas de diferentes cidades compõem um filme constituído basicamente por sobreposição. Criado como um enunciado sobre a cidade, um texto toma corpo dentro da dimensão temporal e espacial dessas imagens. O projeto Overlapping pode ser apresentado também como uma série de imagens fixas – instantes extraídos do filme – que valorizam certas etapas da perambulação, ou melhor, certas formas de leitura. A questão que surge é: quais são as possibilidades de compor narrativas a partir dessas imagens e do texto que as acompanha. Mesclados de maneira inseparável, texto e imagem fazem parte da mesma linguagem poética, que evolui, gerando mais percepções visuais do que contando histórias. PALAVRAS-CHAVE Texto e imagem, narrativa, ficção, perambulação, cidade contemporânea. 22


1. Desejos de palavras

Na sua autobiografia, Man Ray relata os momentos mais importantes de sua vida, suas lembranças de pessoas, lugares e acontecimentos, que fazem parte de um dos períodos mais intrigantes do século XX – a explosão da arte moderna entre as duas grandes guerras. A vida de Man Ray é narrada por etapas, marcadas pelas suas viagens entre América e Europa. Entre as curiosidades que envolvem figuras emblemáticas como Marcel Duchamp, Andre Breton, Giacometti e Picasso, dentre outros, Man Ray insere observações e julgamentos sobre os processos de criação, seus e dos seus colegas, sobre a venda de objetos de arte, e, sobre as formas de exposição e de recepção das obras modernas pelo público. Entre as linhas que relatam sua vida, detectamos as transformações na prática artística cujas ramificações abriram os caminhos para o surgimento do que chamamos hoje de arte contemporânea. Eis um extrato, que anuncia tais transformações: “Moi-même, jê m’étais servie, au départ, de mots et de chiffres comme sujets de tableaux, comme on se servirait de pommes pour une nature morte. Certes, de notre temps, le but n’était pas d’indetifier le sujet, comme le croyaient certains, mais d’élargir les frontières de ce qui peut servir de sujet. (...) C’est peut-être une nouvelle façon d’assurer la permanence de l’œuvre, car rien se saurait détruire le mot – il est toujours écrit –, de même qu’on ne peut détruir un livre en le brûlant.” [Ray, 1998] (Eu mesmo, usei no início, palavras e números como objeto das minhas pinturas, como se usam maçãs para pintar uma natureza morta. Claro, nesse momento, o objetivo não era identificar o objeto, como acreditavam certas pessoas, mas ampliar as fronteiras do que poderia servir de objeto na arte. (...) Isto é talvez uma nova forma de assegurar a permanência da obra de arte, pois nada poderia destruir a palavra – ela é escrita para sempre – da mesma forma que não se pode destruir um livro queimando-o.) Num certo sentido, a presente reflexão vem como continuidade do pensamento de Man Ray sobre a expansão do objeto de arte, e, mais precisamente, sobre sua expansão pela escrita, e num plano mais amplo, pela linguagem natural. As relações e as reciprocidades entre escrita e imagem inquietaram diversos pensadores e artistas. Existe aí um prazer e uma sede por explorar estes dois códigos à exaustão, como se estivéssemos em busca de uma linguagem universal. Mas qual seria essa linguagem? Aquela, ligada à visão, que nos oferece as imagens, ou aquela que opera e estrutura o pensamento, podendo descrever as imagens de inúmeras maneiras? Como achar a medida certa entre essas linguagens? Como compreender suas reciprocidades? Para discutir as possíveis relações entre texto e imagem, Jean-Luc Nancy formula uma 23


pergunta intrigante: “Diriez-vous que le corps est l’image tandis que le texte est l’âme?” [Nancy, 2003]. (Vocês diriam que o corpo é a imagem, enquanto o texto é a alma?). A posição adotada nesta reflexão é que, efetivamente, a imagem é este corpo que se desenvolve no espaço, que se materializa na nossa frente, e, que por mais efêmero que seja, revela uma presença palpável e imediata. (Muitos dizem: uma imagem vale mais do que mil palavras!). O texto, ao contrario, é aquele, restrito aos falantes de um dado idioma, que evolui no tempo. Sua totalidade nos escapa, sua fluência marca uma passagem. Ele nos fala por abstrações, abrindo as intimidades do imaginário individual, propulsando associações, reativando a memória. Com essas inquietações apresentamos aqui o projeto artístico Overlapping, que trata de uma relação precisa entre texto e imagem: o texto é gerado como parte da imagem, não em função de seu aspecto formal, enquanto objeto visual, mas enquanto um código que constrói relatos, que traz conteúdos. Dessa posição decorrem dois problemas de ordem teórico prática: a) como resolver questões formais da composição para que a imagem e o texto funcionem ao mesmo tempo de maneira autônoma e complementar; b) como qualificar o texto, que transcorre as imagens do ponto de vista da construção de sentido, e de suas potencialidades narrativas. Uma questão pertinente pode ser formulada a partir da investigação da dimensão ficcional deste trabalho. Podemos ou não afirmar que esta dimensão existe e por quê? Esta argumentação, porém, excede o formato da presente reflexão e será deixada para outra oportunidade.

2. Overlapping: domando cidades, narrando perambulações. Overlapping propõe um olhar sobre a cidade contemporânea, povoada de narrativas, de imagens, e todo tipo de linguagens. O prazer de perambular numa cidade e de saboreála é a primeira inspiração deste projeto. Nele, os trajetos percorridos em diferentes cidades são registrados e apresentados numa só sequência. As imagens videográficas gravadas em diferentes cidades compõem um filme constituído basicamente por sobreposição. As sobreposições são feitas de maneiras diversas, dando uma prioridade aos efeitos do canal alfa, ou seja, à possibilidade de usar imagens em camadas semitransparentes para visualizar simultaneamente vários filmes. O resultado desse tratamento é uma imagem que confunde o olhar, pois integra no seu corpo elementos às vezes heterogêneos e antagônicos; por exemplo, sobre as águas de uma fonte passa o denso fluxo de carros de uma avenida do centro da cidade (fig.1), ou ainda uma torre iluminada imerge de uma fileira de chafarizes (fig.2). 24


Além das questões estéticas da imagem, este projeto inspira-se diretamente no desejo de questionar o percurso urbano como experiência do olhar. Como se olha e se visita uma cidade que acabamos de descobrir, e, como se olha e se visita uma cidade que conhecemos após vários anos? Podemos dizer que há (talvez) duas formas distintas de percorrer a cidade: a primeira é esta do olhar que procura, que descobre, que julga, que tenta entender, que compara (frequentemente de maneira inconsciente), do olhar que não conhece; a segunda é esta do olhar que é guiado pela afeto, pela memória, pela retomada de outros trajetos, mas também pela procura de novidades e de mudanças, o olhar que pergunta: “O que conhecemos está ainda aí, ou não? É o mesmo, ou sofreu transformações? O que há de novo?”

Figura 1. Frame do vídeo Overlapping, fotografia Nikoleta Kerinska, 2015, cortesia da artista.

Figura 2. Frame do vídeo Overlapping, fotografia Nikoleta Kerinska, 2015, cortesia da artista.

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A descoberta de uma cidade começa obrigatoriamente por um lugar. Este pode ser uma indicação (motivada por algo específico), um acaso, ou, uma escolha simbólica. Nos primeiros percursos, o que nos acompanha é a curiosidade e a espontaneidade. Esses primeiros percursos determinam a conquista futura da cidade – conhecê-la (parcialmente ou por inteiro) é quase um ritual de “domá-la”, por meio do qual se opera a passagem do novo e do desconhecido ao próximo, ao familiar, e, às vezes ao íntimo. Se deslocar pela cidade para olhá-la implica ações cometidas pelo olho mecânico da câmera de vídeo no projeto Overlapping. O sujeito atrás dessa câmera é um explorador, cujo corpo procura o corpo da cidade. Em certos momentos esses corpos são um só – um efeito de overlapping. Pensar a cidade a partir da metáfora do corpo é uma ideia clássica, explorada por diversos autores, como nos alerta Rocío Peñalta Catalán: “L’une des figures classiques consiste à comparer la ville au corps. Ainsi, beaucoup de métaphores organicistes et même animistes comparent l’espace urbain à un organisme vivant.” [Catalán, 2011] (Uma das figuras clássicas consiste em comparar a cidade com o corpo. Desta forma, muitas metáforas organicistas e mesmo animistas comparam o espaço urbano a um organismo vivo). O funcionamento da cidade, sua cartografia e a diversidade de seus espaços, ou seja, a totalidade de seus elementos urbanos é um retrato por excelência da civilização humana no início do século XXI. Interpretar uma cidade pressupõe uma abordagem antropológica. Seus habitantes, suas histórias e acontecimentos, seus relatos e obras de arte, curiosidades e surpresas – a cidade é esta mescla de documentos e de ficções que transbordam uma delimitação cartográfica ou geográfica. Compreendemos que uma cidade, existe a partir de outras visitadas e domadas, e é esta sensação entre descoberta e reconhecimento, entre saber onde está e estar perdido (numa lembrança), que o projeto Overlapping procura desenvolver. Quando o corpo da cidade e o corpo do sujeito que perambula operam um sobre o outro, num estado de imersão completa, a cidade se torna parte de todas as cidades exploradas por este sujeito anteriormente. Ela passa a ser uma matéria imagética em estado puro – gravada na memória e reconstituída mentalmente, – cujas delineações pertencem mais ao sensível e ao abstrato, do que à visualidade concreta em si. Respiramos assim a cidade: “Le souffle pousse, monte, s’épanouit, disparaît; il nous anime et nous échappe ; nous essayons de le saisir sans l’étouffer. Nous inventons à cet effet un langage où se combinent la rigueur et le vague, où la mesure n’empêche pas le mouvement de se poursuivre, mais le montre, donc ne le laisse pas entièrement se perdre.” [ Philippe Jaccottet, 1984] (A respiração nasce, sobe, floresce, desaparece; ela nos anima e nos escapa; tentamos agarrá-la, sem sufocá-la. Inventamos para isto uma linguagem, na 26


qual combinamos rigor e imprecisão, em que a medida não impede o curso do movimento, mas o guia, sem deixá-lo se perder por inteiro.) Esta é a sensação que anima o projeto Overlapping, e que procura por meio dele brotar.

5. Considerações provisórias Relatar a cidade, nela caminhando, é uma forma de criar cartografias. Cada cartografia é um ato de ver, e as imagens são recolhidas durante este ato. No projeto Overlapping essas cartografias são apresentadas como imagens em movimento, cuja transposição as une num só filme. Às vezes, a sobreposição chega ao ponto de formar uma paisagem abstrata, que encarna a metáfora de um corpo, pronto para ser penetrado, saboreado, cheirado, e, por fim, redesenhado. O espaço urbano – décor da nossa vida cotidiana – é complexo e múltiplo, escapando assim às definições concretas e aos olhares precisos. Neste trabalho artístico, ele é descrito como uma unidade, por elementos semelhantes com outros espaços urbanos, ao mesmo tempo em que é mapeado por algumas características únicas e detalhes que os identificam. Desta forma, entre o comum e o peculiar, o vídeo procura constituir um relato no qual a imagem e o texto narram paralelamente as experiências de alguns trajetos distintos. O desafio principal é estabelecer um equilíbrio para o funcionamento simultâneo do texto e da imagem. Para tratar desta questão foram realizados alguns ensaios com imagens fixas e algumas edições de imagens em movimento. Estes ensaios demonstraram que é possível fazer dois tipos de composição de estruturas distintas. Apresentado por meio de imagens fixas, o projeto Overlapping foi exposto no Museu do Meio Ambiente na cidade de Rio de Janeiro em setembro de 2015. Nesta ocasião, foi mostrada uma sequência de oito imagens, reveladas em papel fotográfico. Em cada imagem, uma frase reforça a leitura linear da composição. Nesta estrutura, texto e imagens são vistos e lidos como composição única. O seu funcionamento é idêntico ao de um poema visual, em que acordamos valores iguais para os dois elementos. De funcionamento inverso, o vídeo intercala frações de imagens em movimento interconectadas por frases, cujo ritmo marca a dinâmica do filme. Mesmo assim, não podemos afirmar que existe aí uma narrativa. Trata-se mais precisamente de uma enunciação, ou seja, de um ato de comunicação, que produz enunciados. Para compreender melhor a especificidade do enunciado, adotamos a definição de Émile Benveniste. Para ele “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” [Benveniste, 1989]. É essa apropriação da língua por um 27


ato, ou melhor, uma postura individual, que marca o ritmo da sequência de imagens em movimento, completando a construção de significados e dirigindo o olhar para a narrativa. Esta ultima, porém não acontece. O texto, desmembrado em frases, configura-se mais como linguagem poética, ou seja, como algo que explora a imagem, o jogo de palavras, a sonoridade e o ritmo, do que como uma estrutura narrativa. A narrativa como o ato de colocar uma história em relato, ou ainda como a ação de contar uma história não acontece. Se narrativa existe, ela é posta pelas sequências de imagens, pois nelas definimos um acontecimento. Sua evolução e desdobramentos, porém, são rapidamente prejudicados pela justaposição das imagens, que objetiva muito mais uma sensação cujas palavras escapam do que uma narrativa propriamente dita. Overlapping evolui a partir de um filme, cujas imagens fantasmagóricas e surrealistas tentam formar uma narrativa que se dilui instantaneamente em percepções inefáveis.

Referências BENVENISTE, Emile. “O aparelho formal da enunciação” in Problemas da Linguística Geral II, Campinas, Pontes, 1989, p. 82. CATALÁN, Rocío Peñalta. « La ville en tant que corps : métaphores corporelles de l’espace urbain », in TRANS- [En ligne], 11 | 2011, mis en ligne le 08 février 2011, consultado le 31 juillet 2015. URL : http://trans.revues.org/454 JACCOTTET, Philippe. La Semaison. Carnets 1954 – 1979, Éd. Gallimard, Paris, 1984, p. 40. NANCY, Jean-Luc. Au fond des images. Éd. Galilée, Paris, 2003, p.122. RAY, Man. Autoportrait (trad. Anne Guérin), Éd. Babel, Actes Sud, Lonrai, 1998, p.300.

Nikoleta Kerinska é artista multimídia, pesquisadora do grupo de pesquisa Ficções & Interações da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, e professora de arte computacional do Instituto de Artes - IARTE-UFU.

Nikoleta Kerinska is an artist, researcher of the research group Fictions & Interactions at the University of Paris 1 Panthéon-Sorbonne, and computer art professor at the Institute of Arts - IARTE - UFU. 28


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Renato Palumbo Dória Núcleo de Pesquisa em Artes Visuais (NUPAV), Instituto de Artes, Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO Como detetives, refizemos aqui os passos da ocultista russa Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac – conhecida na São Paulo da década de 1920 como Nata, ‘a bela russa’, e na Belém do Pará das décadas de 1930 e 1940 como ‘Madame Natascha’, ‘a vidente russa’. Exilada após a revolução bolchevique de 1917, Natascha Aleksándra realizaria um périplo pela Europa e América Latina antes de se fixar em Belém do Pará, onde viveria seus últimos anos como personagem mítica e solitária, sobrevivendo em seu casarão arruinado como sombra de si mesma, agarrada às lembranças de um passado de glorias e aventuras. As imagens fotográficas que produzimos à partir desta trajetória buscam captar uma paisagem íntima, uma atmosfera movediça: impregnação de uma memória afetiva, nos lugares e coisas com as quais ‘a bela russa’ conviveu. PALAVRAS-CHAVE Fabulação, fotografia, história, ficção, memória,

ABSTRACT As detectives, we retrace here the footsteps of Russian occultist Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac - known in São Paulo of the early 1920’s as Nata, “the Beautiful Russian”, and as “Madame Natasha, “the Russian Psychic”, in Belém do Pará in 1930 and 1940. Exiled after the Bolshevik revolution of 1917, Natasha Aleksandra toured the coasts of Europe and Latin America before settling down in Belem do Para, Brasil, where she would live the last years of her life as a solitary and mythical character, surviving as a shadow of herself in her ruined house, and clinging to memories of past glories and adventures. The photographic images that were produced are based on her travels and seek to capture an intimate perspective, a shifting atmosphere, embedded with an emotional memory onto all the places and things which “the beautiful Russian” lived with. KEYWORDS Fabrication, photography, history, fiction, memory.

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Em dezembro de 1928 chega desacompanhada ao porto de Belém do Pará, às margens do Rio Amazonas, e a bordo do Ekphfrasis (vapor de bandeira grega), aos vinte e sete anos de idade, a russa Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac, com sua pele branca e ainda delicada, mesmo que já castigada pelo sol, salpicada de minúsculas sardas, e com seus olhos levemente oblíquos, de um verde-musgo líquido e rochoso. Dona de uma alegria contagiante, no auge de sua beleza e rara inteligência, mas com os traços já algo marcado pelo tanto que vivera, ela compraria logo ao chegar, com os restos da fortuna que ainda possuía, um imponente chalé de arquitetura eclética nas cercanias da cidade, ao final de uma das mais distantes linhas de bonde que então cortavam a cidade. Chalé que beirando a floresta com suas varandas e enfeites, jardins e fontes, parecia se erguer como última lembrança e bastião europeu diante de uma selva incompreensível, repleta de seres enigmáticos, e para cujos porões eram trazidos pelas cheias miríades de sapos, cobras, tartarugas e outros seres aquáticos e rastejantes. Antes residência de verão de uma rica, mas então decadente família de comerciantes de borracha, seria ali, naquela fronteira entre a cidade e a selva, entre o passado e o desconhecido, que viveria até o fim de seus dias Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac. Exercendo o ofício de vidente e cartomante, Natascha Aleksándra conheceria então, naqueles primeiros anos em Belém, um considerável sucesso, tendo entre sua clientela a alta sociedade paraense da época, já combalida pelo fim da riqueza da borracha mas ainda capaz de seduzir-se pelos modos finos e misteriosos daquela estrangeira de olhos penetrantes e felinos. Madame Natascha, como se tornaria então conhecida, teria entre seus clientes tanto mulheres, interessadas em saber sobre seus destinos e azares, quanto homens, cobiçosos de riqueza e poder, tornando-se sua casa um ponto de referência na geografia secreta de Belém, correndo de boca em boca as estórias de suas adivinhações, profecias, incorporações mediúnicas, curas e outros prodígios, ficando sua residência conhecida então como “a casa dos mistérios” (Figura 1).

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Figura 1. A ‘Casa dos Mistérios’, Belém do Pará, c.1910

Aos poucos admirada também por seus múltipos dotes intelectuais e artísticos – sendo exímia pianista, se exprimindo com segurança em diversas línguas, sendo uma pintora e poeta inovadora – Madame Natascha se tornaria íntima do pequeno círculo de literatos e artistas modernistas em atividade na Belém do Pará daqueles anos. Influente, independente, de comportamento e modos refinados, mas ao mesmo tempo algo selvagens – como quando caminhava descalça pelas ruas mais elegantes do centro de Belém acompanhada de um pequeno séquito de empregadas indígenas, ou quando saia a passear com seus pouco usuais animais de estimação (macacos, antas, preguiças, e até um pequeno jacaré, segundo as crônicas) – Natascha Aleksándra pontificaria por aqueles anos, entre o fim dos anos 20 e começos dos anos 30, como uma estrela luminosa e solitária a brilhar fulgurante no breu da vida social paraenses daqueles anos: única mulher a transitar entre os políticos e intelectuais da época, dona de uma beleza estranha e de um gosto extravagante, sempre envergando vestidos de desenhos exóticos e preciosos, trazidos sabe-se lá de onde, e dona de uma evidente superioridade intelectual, aos poucos Madame Natasha atrairia para si, contudo, primeiro a inveja, e logo a ira gorda e suada das mulheres virtuosas, a fúria nauseabunda das associações cristãs e dos defensores da honra alheia, sendo progressivamente difamada e perseguida de todos os modos. Acusada 31


da prática de curandeirismo e charlatanismo pelos médicos locais, de bruxaria e magia negra pelo Bispo, e até mesmo de prostituta e cafetina pela delegacia municipal, sua casa seria por fim denunciada como antro de festas demoníacas, nas quais, segundo os boatos, todos os convidados, homens e mulheres, velhos e crianças, dançavam nus, enlouquecidos por beberagens feitas de cipós e raízes venenosas, dos quais Madame Natasha havia aprendido o segredo em suas andanças pelas matas, com os índios mais selvagens. Boatos que num crescendo acusavam a russa de organizar orgias misteriosas em que havia negros, caboclos, colegiais e donzelas de boa família. De promover a infidelidade conjugal, alcovitando encontros para amantes secretos. De organizar trabalhos de feitiçaria em que se adoravam esqueletos, vidros coloridos e estátuas falantes1. As vidraças de sua casa começariam, assim, a ser frequente alvo de pedradas, e ela mesma deixaria de sair à rua com medo dos ataques e escárnios. Em maio de 1934, porém, após novas denúncias, uma turba enfurecida a encurralaria, ateando fogo à sua casa. Sofrendo graves queimaduras que atingem seu rosto, Madame Natascha seria tratada por vários meses pelas freiras da Santa Casa, começando a partir daí a ser gradativamente esquecida pelos moradores da cidade, como se estes quisessem também esquecer do próprio crime que cometeram2. Combalida pelos anos e pelo sofrimento, Madame Natascha passaria a viver reclusa no que sobrara das ruínas de sua casa, aos poucos cercada pelo mato, pelos entulhos e pelas outras casas e edifícios que se ergueriam em torno dela. Dando mostras de uma progressiva melancolia, incompreendida e arruinada, vendidas suas últimas pérolas, rotos seus vestidos, esvaída a frescura de sua beleza, e sem o poder de sedução de antes, aquela que fora um dia adorada por poetas e poderosos, que um dia fora ‘a bela russa’, passaria a sair raramente pelas ruas da cidade, e somente em suas madrugadas frias e enevoadas, envolta nos trapos de seus antigos vestidos de festa, com o rosto encoberto por um fino véu negro: um fantasma vivo a assombrar as ruas, que se tornaria conhecido como o ‘a mulher sem rosto’ – frequentemente vista vagando solitária em horas em que a umidade vaporosa da atmosfera lhe faria relembrar as noites brancas de sua infância em São Petersburgo – aparição que, até hoje, alguns habitantes juram ainda ver pelas madrugadas vaporosas de Belém.

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Ver O Correio do Pará, 15 de agosto de 1933. A maioria dos objetos pessoais de Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánova teria se perdido neste incêndio de 1934, entre eles sua correspondência, fotos familiares, documentos pessoais, pinturas e poemas. 2

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Quem foi de fato Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac? Antes deste trágico final de vida em Belém, de onde vinha esta mulher tão rara? Qual sua trajetória antes de aportar no Pará? O quê é fato e o que fantasia em sua história?... Apesar das dificuldades em responder objetivamente a estas perguntas, com o fim da União Soviética novos dados vem surgindo nos arquivos russos, permitindo-nos esboçar hoje uma breve biografia daquela que se tornaria, ao fim da vida, o fantasma da ‘mulher sem rosto’: filha de uma antiga e aristocrática família de São Petersburgo, Natascha Aleksándra era filha de Marieva Pietrovina Niezvánovac Badenhoh, célebre então por haver se juntado aos círculos utopistas em torno das idéias do escritor e pacifista Liev Tolstói (que pregava o retorno à natureza, o desapego aos bens materiais e o antidogmatismo religioso), e também por sua proximidade dos círculos teosóficos, e em especial por sua convivência com o místico armênio George Ivanovich Gurdjieff3. Influenciada pelos ideais em voga nestes meios, Marieva Pietrovina Niezvánovac Badenhoh libertaria os servos das propriedades a que tinha direito por herança paterna e as declararia ‘terras livres’, nas quais qualquer um poderia plantar e colher em acordo com suas necessidades, reservando para si somente as áreas residenciais de sua propriedade, nas quais realizaria os mais variados tipos de experiências e práticas religiosas, desde a cura pela água imantada e a dança giratória dos dervixes, até as sessões espíritas guiadas por um velho mujique4 da região – interesse pela espiritualidade e pelos fenômenos paranormais que a levaria ainda a ser uma das poucas mulheres admitidas no círculo em torno de Grigoriy Yefimovich Rasputin, o temido e influente místico dos estertores do regime czarista, ambiente no qual sua filha, Natascha Aleksándra, manifestaria, com apenas doze anos de idade, os primeiros sinais de paranormalidade, entrando em prolongados períodos de transe mediúnico durante os quais falava línguas desconhecidas e tinha visões apocalípticas (Figura 2).

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Cujo ensinamento seria posteriormente propagado nos círculos espiritualistas da Europa e dos Estados Unidos por Peter Ouspensky, que tomou notas das conferências do mestre em diferentes cidades da Rússia pré-revolucionária, através do livro “Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido - Em Busca do Milagroso”, publicado postumamente em 1947. 4 Nome dado aos camponeses russos no período czarista, quando ainda predominava no campo o regime de servidão feudal.

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Figura 2. Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac, aos 12 anos, com sua mãe, Marieva Pietrovina Niezvánovac, e Rasputin, c.1911.

O caráter messiânico da família Niezvánovacc tinha, porém, raízes mais profundas: já desde a década de 1890 um tio de Natascha Aleksándra, irmão mais velho de sua mãe, havia se unido à seita cristã ultraortodoxa dos Dubokors (os ‘lutadores do espírito’): pacifistas radicais, que tinham entre suas práticas o nudismo sagrado e comunitário de seus membros5 (Figura 3).

Figura 3. Manifestação dos Freedomites (filhos da liberdade), ala radical dos Dukobors (lutadores do espírito ), cristãos radicais russos do Cáucaso emigrados para o Canadá, 1906. 5

Em 1899, perseguidos pelo regime czarista e pela Igreja Ortodoxa Russa, grande parte dos Dukobors emigrou para o Canadá, financiados em parte por Liév Tolstói, com os lucros obtidos por este com seu livro “Ressurreição”.

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Afastada porém pelo pai, o príncipe Piet Antoniev Mishkin Romanov Baden e Baden, do convívio materno, Natasha Aleksándra acabaria sendo encaminhada, aos dezesseis anos de idade, para um casamento convencional com um importante industrial moscovita. A eclosão da revolução bolchevique, no entanto, daria um rumo inesperado a sua vida: fugindo da Rússia com um jovem amante, Natascha Aleksándra teria passado por Viena, Genebra e Paris, seguindo a partir daí sozinha, por volta de 1921, para Lisboa, onde viveria alguns anos realizando as famosas sessões mediúnicas do salão da Pensão Londres, onde se tornaria íntima do poeta português Fernando Pessoa, possuindo ambos os mesmos interesses pelo espiritismo e pela astrologia6. Seria a partir de Lisboa, portanto, e a partir do contato com alguns estudantes brasileiros, que ela teria viajado ao Brasil em 1925, realizando então uma passagem breve mas marcante por São Paulo, quando circula entre os intelectuais e artistas locais e, como professora de alemão, conhece ‘Zazá’, a então adolescente Patrícia Rehder Galvão (que entraria mais tarde para história literária brasileira como ‘Pagu’), e com quem teria breve romance. Tornando-se conhecida no meio paulistano simplesmente como Nata, ‘a bela russa’, Natascha teria sido acolhida ainda pelo importante mecenas Freitas Valle, merecendo por fim do poeta Raoul Boop o poema intitulado “Princesa Descalça” (Figura 4).

Figura 4. ‘Nata’, ‘a bela rusa’ (de branco, ao centro), com o Senador Freitas Valle e amigos em Capivari, interior de São Paulo, 1926.

Partindo para Montevidéo e Buenos Aires, e parando de tempos em tempos em outras cidades brasileiras, Natascha Aleksándra estabeleceria por prática permanecer breves períodos em cada lugar, sempre em pequenos hotéis onde exercia suas atividades espíritas e ocultistas, sendo talvez as constantes denúncias destas suas práticas um dos 6

O poema “Estrela Cadente” (1922), de Pessoa, teria sido um de seus poemas em homenagem à Natascha Aleksándra.

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possíveis motivos para seu constante nomadismo. Belém do Pará teria representado portanto um ponto de inflexão em sua trajetória, constituindo-se como um território na qual ela se fixaria mas que também representaria um novo e definitivo exílio dentro de seu exílio. Sem podermos determinar bem em seu percurso o que é fato e o que é boato ou ficção, só nos cabe refazer respeitosamente seus passos, vislumbrando aqui e ali as faces perdidas de Natascha Aleksándra Pietrovna Mikháilovitch Niezvánovac, ‘a mulher sem rosto’ – as fotografias que realizamos nesta busca procuraram assim captar uma paisagem íntima e movediça, memória afetiva dos lugares e coisas com as quais ‘a bela russa’ conviveu (Figuras 5 a 10).

Figura 5. Pensão Londres, Lisboa, Portugal, Foto: Renato Palumbo

Figura 6. Hotel Eden, Montevidéo, Uruguai, Foto: Renato Palumbo

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Figura 7. Recife Hotel, Pernambuco, Brasil, Foto: Renato Palumbo.

Figura 8. BelĂŠm do ParĂĄ, Brasil, Foto: Renato Palumbo

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Figura 9. Belém do Pará, Brasil, Foto: Renato Palumbo

Figura 10. Genebra, Suiça, Foto: Renato Palumbo.

Renato Palumbo Dória é Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), e Mestre em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Sua pesquisa atual trata dos anacronismos, sobrevivência e invisibilidades na história da arte moderna e contemporânea. Núcleo de Pesquisa em Artes Visuais - NUPAV/ UFU/CNPq. Docente do Curso de Artes Visuais e do PPG Artes do Instituto de Artes, Universidade Federal de Uberlândia.

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Vestígios e memória: fotografias encenadas

Elizabete Rocha Grupo de Pesquisa Processos Híbridos na Arte Contemporânea, UFRGS/ CNPq

RESUMO Esta pesquisa analisa duas séries de imagens fotográficas que têm como referentes vestígios. Parte da pesquisa tem a casa como ateliê e parte se refere a deslocamentos na cidade, utilizando as ruas como ateliê. As duas séries se relacionam pela noção de vestígio (pessoal e coletivo) que remete a questões que dizem respeito à ausência e à memória. Articulo a produção tanto aos conhecimentos teóricos, quanto às obras de artistas que pensam as coisas do cotidiano como matéria fecunda para narrar, visualmente, microhistórias na primeira pessoa e falar da memória através da arte. PALAVRAS CHAVE Vestígios, memória, encenação, fotografia, micro-narrativas

ABSTRACT This research examines two series of photographic images that are related to vestiges. Part of the research refers to the use of the house as a studio and part to movement within the city, using the streets as a studio. The two series are related by the notion of vestiges (personal and collective) which refers to issues that concern absence and memory. I work with the production of both theoretical knowledge and the works of artists who consider the everyday things as ripe for visually narrating micro-stories in the first person and to talk about memory through art. KEYWORDS Vestiges, memory, staging, photography, micro-narratives

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Introdução, métodos e objetivos Desde quando comecei a fotografar, me perguntava sobre a relação da fotografia com o real. Compreendia que na fotografia eu não encontrava o real e que a imagem fotográfica era apenas uma tentativa de cópia nada fiel do que se estava fotografando. A imagem fotográfica “não representa (corpos, coisas, substâncias), mas exprime eventos, sentido”. (ROUILLÉ, 2009, p.207). Os conhecimentos adquiridos ao longo do tempo aumentaram meu desejo de pesquisar sobre a imagem fotográfica e sobre a maneira como ela poderia falar do ser humano. No decorrer do mestrado, me propus pesquisar sobre o potencial poético de vestígios de pessoas, coisas como objetos variados e vestes. A questão principal da pesquisa foi verificar como vestígios poderiam sugerir corpos e como através deles, utilizando a fotografia como uma escrita pessoal, produzir micronarrativas1 relativas à memória. Os objetos, assim como as palavras, produzem discursos; juntando-os, pode-se formar um texto com uma sintaxe própria, capaz de falar de uma percepção pessoal do mundo, evidenciando singularidades. Através da fotografia, os objetos e vestes podem nos falar dos corpos de pessoas que os tocaram, em um passado remoto ou recente. Meu trabalho propõe recontextualizar vestígios2 de corpos para que outros sentidos, além dos habituais, sejam acionados. Toda a nossa vida é marcada por vestígios, que recebemos do mundo à volta ou que nós mesmos produzimos, involuntariamente, durante nossas trajetórias de vida. Uma fotografia cuja origem se perdeu, um objeto que guardamos durante anos por razões evidentes ou obscuras, fragmentos do mundo que recolhemos, como conchas, folhas secas, e ainda, pequenos indícios das pessoas amadas, presentes ou que se foram, como, um lenço, uma louça de uso pessoal, tantos outros [...] [...]Fragmentos de vida, de um transcurso temporal, que permaneceram como vestígios de nossas origens, de nossas raízes pessoais, familiares, étnicas, culturais e, num sentido mais amplo, de testemunhas de um possível sentido da vida. (CATTANI, 2004, p.133)

1

SANTOS, 2012, p.124, no artigo: Imagem fotográfica e ambigüidade narrativa na obra de Milton Kurtz, In: Santos e Carvalho Imagens arte e cultura, Porto Alegre: editora da UFRGS, 2012, conceitua micronarrativas e desta maneira usarei a expressão nesta dissertação: seriam reflexões sobre “as inquietações do homem comum, destituído de um compromisso histórico mais amplo, mas ainda assim contribuindo para novas versões da história.” “Considero serem micronarrativas aquelas poéticas voltadas para o desenvolvimento de discursos que privilegiam a afirmação de uma individualidade, nas quais aparecem, explícita ou implicitamente, provocações que refletem sobre elementos de ordem biográfica ou autobiográfica, remetendo à noção de micro-história, ou seja, à historicidade contida naqueles fragmentos despercebidos e extraordinários da realidade. 2 A palavra vestígio é usada como definida em HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO,Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001. 3. qualquer marca, traço, indício, sinal que localizam alguém ou alguma coisa, ou permitam deduzir que um fato ocorreu, ou descobrir quem participou. 40


Cattani (2004), falando dos vestígios que marcam e podem dar algum sentido às vivências, contempla com seu texto aspectos que identifico no meu trabalho. As fotografias de vestígios, roupas e objetos que são recortados fotograficamente dos ambientes pretendem produzir uma micronarrativa autorreferencial. São relatos sobre aspectos banais de uma vida. Tomarei de empréstimo o conceito de “escrita pessoal”, inspirado em Rouillé (2005, traduzido ao português em 2009), que foi elaborado e aplicado por Santos (2006), ao pesquisar sobre a obra autorreferencial de Alair Gomes. Penso meu trabalho fotográfico como textos visuais que se referem às minhas experiências de vida e não a uma tentativa de documentação de acontecimentos. É neste sentido que entendo a noção de escrita pessoal. No presente artigo mostro três imagens fotográficas que fizeram parte do conjunto de imagens desenvolvidas no mestrado. Nestas imagens, o referente são vestígios que pertenceram a pessoas que fizeram ou não parte da minha vida. As imagens fotográficas (Figura 1 e Figura 2) se referem aos objetos e vestes que se encontram em minha casa e foram fotografados, nesse ambiente. Aqui utilizo a casa como ateliê e cenário para as imagens fotográficas encenadas. Na Figura 3 e 4, mostro imagens fotográficas oriundas de meus percursos a pé ou de bicicleta por meu bairro e adjacências. Nesses deslocamentos, fotografo alguns vestígios que vou encontrando pelo caminho. Aqui, foram investigadas as possibilidades poéticas de encenações com vestígios, usado-os como matéria fotográfica e tema para a produção de imagens. O objetivo é averiguar o que os objetos têm a nos mostrar além daquela sua natureza de ser destinado ao uso humano, simplesmente; investigar o seu valor simbólico sob o olhar da arte. Imagens fotográficas

Figura 1. Elizabete Rocha, Série Ateliê-casa: Texto II, 2013, fotografia digital, sobreposição digital e impressão jato de tinta em filme “backlight”, 80 x 105 cm 41


Figura 2. Elizabete Rocha,Série Ateliê-casa: Sem título VII, 2013, fotografia digital, 150x100 cm

Figura 3. Elizabete Rocha, Série rua-ateliê, Sem título I, 2013 – fotografia digital, 70x50 cm

Figura 4. Elizabete Rocha, Série Ateliê-rua, Sem título III, 2013 – fotografia digital 42


Encenações com vestígios Durante minha pesquisa de mestrado entrei em contato com a obra de artistas que usaram como material, em suas fotografias e instalações, vestígios do ser humano. Neste artigo vou me reportar a alguns deles. O livro A fotografia como arte contemporânea (COTTON, 2010) é, também, uma importante referência para as fotografias que constituíram minha dissertação e o presente artigo – tanto no texto quanto nos exemplos da relação vestígio-corpo – principalmente no capítulo nº 4 (COTTON, 2010, p.115) onde a autora considera que “por meio da fotografia, a matéria cotidiana é dotada de uma carga visual e de possibilidades imaginárias que vão além de sua função trivial”. De alguma maneira, a fotografia daquilo que é considerado corriqueiro, dos objetos do cotidiano, poderá encorajar-nos a contemplar com outros olhos as pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia, enriquecendo nossa sensibilidade e percepção do mundo ou do pequeno mundo mais próximo. Quem fotografou o objeto o fez porque viu nele um significado que, mesmo inapreensível, o pungiu, e cabe também ao espectador dar à fotografia do objeto outras significações oriundas de sua subjetividade. Continuando a falar sobre a fotografia de objetos, de vestígios de corpos, que é o assunto que move o texto, e ainda me amparando nos ensinamentos de Cotton (2010), destaco as imagens realizadas por Felix Gonzalez-Torres, 1991. A obra de Torres é plural, ele usou muitas maneiras para se expressar, principalmente instalações. De sua obra, destaco um exemplo das fotografias que ele, no auge da epidemia da AIDS, espalhou em painéis publicitários pela cidade de Nova York. Seu companheiro havia morrido, e ele também estava doente; seria uma das vítimas desta doença que, na época, condenava o portador à morte em dois anos. As imagens mostravam camas desarrumadas, sugerindo presenças; também perda e ausência, pois só vemos traços dessas vidas, vestígios. O artista francês Christian Boltanski foi importante referência para minha pesquisa de mestrado e também para este texto que se reporta à ela. Ele trabalha com roupas, fotografias e objetos como vestígios e marcas deixados pelo ser humano. Esses vestígios também se reportam a histórias pessoais e à memória coletiva. Boltanski possui uma vasta e densa trajetória, produz obras complexas que podem incluir vídeo, livros, cartas, instalações e fotografia. O artista explora conceitos como identidade humana, memória, perda e anonimato. Apropria-se, entre outras coisas, de arquivos fotográficos adquiridos de outras pessoas para construir suas obras. Trabalha também com objetos que pertenceram a outros, aos quais atribui o mesmo papel testemunhal desempenhado

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pela fotografia: “Para mim há uma direta relação entre uma peça de roupa, uma fotografia e um corpo, no qual alguém uma vez existiu, mas agora não mais” 3. Em 10 Portraits Photographiques (1972), C. Boltanski (1946-1964), se apropriou de fotografias de várias crianças num mesmo parque, apresentando posteriormente as imagens como sendo registros de sua própria infância, em diferentes idades. Por meio da arte, conseguimos dar sentido e conforto a nós mesmos, reconstruindo a memória que nos falta – de nós mesmos e de pessoas ausentes. No trabalho citado, o artista francês também encena com vestígios – aqui são fotos antigas que foram apropriadas e que construíram para ele mesmo memórias de infância que não possuía, por não conseguir lembrar e por não ter objetos guardados que a lembrassem. Essas imagens fotográficas ficcionadas, podem fazer supor que ele tenha construído para si uma inf ância idealizada, com o poder de apaziguar, através da arte, a falta que essas lembranças lhe faziam. Da obra de Boltanski, as que me interessam, especificamente, são as muitas instalações com roupas que ele vem realizando. Enfatizo aqui Danse Macabre, concebida para Galeria Guimarães (2012) (Figura 5), na cidade do Porto, em Portugal, e Personnes, (2011) (Figura 6), montada em Paris. Em Danse Macabre,

um sistema

mecânico faz circular pelo espaço numerosas peças de roupa, na sua maioria sobretudos e gabardines. Um acurado estudo da luz faz com que as roupas que circulam pelo espaço depositem sombras fantasmagóricas nas paredes da galeria. Boltanski usa roupas, fotografias apropriadas e outros objetos como índice da memória e das histórias das pessoas anônimas que vestiram, efetivamente, essas roupas ou portaram esses objetos. Em suas palavras, “todas as pessoas são dignas de um monumento”, ao se referir às suas instalações. A coreografia dessas roupas num antigo espaço fabril não deixa de constituir uma convocação de histórias de um passado e cada um pode também projetar ali suas memórias pessoais4. Tomo Boltanski como referência, já que o meu trabalho de pesquisa se aproxima de sua obra na medida em que as vestimentas se referem a seres humanos e têm o desejo de falar de memórias, de fazer uma narrativa de sua micro-história, também autorreferente.

3

Entrevista a Tamar Grab, in SEMIN, Didier; GARB, Tamar; KUSPIT, Donald. Christian Boltanski, 2008, p.19. 4 Vídeo: Danse Macabre. Disponível em: <http://www.guimaraes2012.pt/index.php?cat=191&item=28891#>. Acesso em: 12 de janeiro de 2013. 44


Suas instalações formam um conjunto pleno de melancolia5 e não deixam de ser também uma crônica da ausência. O reconhecido artista produz obras que são instalações com milhares de roupas e as coloca em espaços imensos. Na maioria das vezes, ele compra as milhares de vestimentas em brechós, depois as organiza (encena), produzindo, com a mistura e arranjo de cores, instalações que se assemelham a de pinturas gigantes. (SEMIN; GARB; KUSPIT, 2008).

Figura 5: Christian Boltanski, um pequeno detalhe de Danse Macabre, 2012 Fonte: http://deadpassarita.blogspot.com/2011/12/christian-boltanski.html

Figura 6: Christian Boltnski, fotografias e roupas em detalhe da instalação Personnes, 2011.

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A palavra melancolia é usada no decorrer do texto como a conceituou e usou Santos, em sua tese de 2006, já referida: não para descrever uma patologia, uma condição depressiva, paralisante, mas sim para se referir a uma condição de profundo pensamento filosófico e elemento essencial para a criação artística. Outra referência importante sobre o assunto: Santos, Alexandre, revista: Teorema Nº 19, dezembro 2011, p.37 no artigo: Nós os melancólicos. O homem melancólico teria a seu favor essa condição melancólica, que catalisaria a sua relação com o mundo, aguçando a sua inteligência e a sua capacidade para o pensamento reflexivo e para a criação. 45


Boltanski tinha pai judeu, e seu trabalho refere-se, entre outros temas, ao extermínio dos judeus nos campos de concentração nazistas. Despidos de todos os pertences, roupas e objetos, que deveriam ser tirados antes da entrada nos campos, eram formadas pilhas enormes, para posterior descarte. Mas, segundo palavras do artista: “um dos assuntos que me interessa é a transformação do sujeito em objeto. Uma grande parte do meu trabalho gira em torno dessa idéia” (SEMIN; GARB; KUSPIT, 2008, p. 86, tradução da autora). Creio que ele está se referindo a essa relação ambígua que existe entre o objeto (o vestígio que restou do humano, uma fotografia, uma veste) e a pessoa propriamente dita. É sempre um mistério e um espanto saber que os seres tão complexos que somos se transformarão em objetos: primeiro em seus cadáveres, depois em suas fotografias, seus pertences pessoais que apenas representarão suas ausências. Nas imagens fotográficas da pesquisa, estou falando dos vivos, dos vivos ausentes; que, portanto, vivem apenas nas memórias, como os mortos.

Figura 7: Christan Boltanski- vista geral da instalação Personnes – Grand Palais, Paris, 2010.

Rouillé (2009), analisando a falência dos grandes relatos da modernidade e a passagem aos pequenos relatos que vão caracterizar a pós-modernidade, nos diz que: [...] na França, essa passagem dos grandes para os pequenos relatos, do global para o local, do extraordinário para o ordinário, do novo para o déjà-vu, ou seja, do universal para o particular, esboça-se desde 1970, nas primeiras obras de Christian Boltanski, em seu interesse pela banalidade, pelos inventários e pelas imagens estereotipadas da cultura popular (ROUILLÉ, 2009, p.356).

Como já foi apresentada acima, em alguns exemplos, parte da obra de Boltanski se constitui de vestes usadas, fotografias antigas, caixas enferrujadas, variados objetos usados e outros materiais precários. [...] “vestígios, traços de existência, impressos, depósitos: toda uma retórica da nostalgia, da ausência, da memória, do desaparecimento, do esquecimento, da perda da identidade, com a onipresença surda e do Holocausto”. (ROUILLÉ, 2009, p.371). 46


Fotografia e memória O trabalho aqui apresentado pode ser entendido como “fotografia-expressão”, termo usado por Rouillé (2009, p.176) no livro A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Segundo Rouillé, a fotografia-expressão liberta o fotógrafo de ser uma das engrenagens da câmera, quando este estava preocupado na captura do real. O fotógrafo passa a estar no centro do processo, preocupado em escrever a sua história, usando a câmera apenas como um meio. Os referentes são vestígios nas imagens fotográficas que apresento, mas suscitam os incorporais que escapam aos poderes figurativos da óptica; os corpos não necessitam ser representados diretamente. Na fotografia-expressão, a imagem é o registro do sentido, não representa (corpos, objetos, substâncias), mas exprime eventos, segundo Rouillé (2009, p.207). Ainda incorporando os ensinamentos de Rouillé (2009, p.221) nas reflexões sobre o trabalho, destaco o que o autor diz acerca da fotografia: “a imagem fotográfica é perpassada por dois grandes modos, um afirmativo e um interrogativo”. [...] O primeiro modo é o do “isto foi”, da “constatação da presença” física, o modo dos corpos, das coisas e dos estados de coisas: é o da matéria, da impressão. O segundo modo é o do “o que foi que aconteceu?”, o modo dos eventos fotográficos e extrafotográficos: é o modo dos “incorporais”, da escrita, da memória. [...] A impressão, o atestado, a aderência, o “isso foi” constituem o pedestal da fotografia, enquanto a memória é o fundamento (ROUILLÉ, 2009, p.221).

Sobre as duas metades da fotografia, o autor nos diz que a primeira dimensão é a do presente vivo, da ação, do “isso foi”. Faz também desta metade a impressão, a captação, o registro, o índice, em resumo, os contatos físicos, “as contiguidades de matérias – matéria das coisas e matéria fotográfica”. A outra metade, inseparável da primeira, é constituída pela memória que intercala o passado no presente, que comunica seu caráter subjetivo a nossas percepções e ações: tanto àquelas do espectador diante da imagem, quanto às do operador diante das coisas. (ROUILLÉ, 2009, p.222). No trabalho que realizei, constato estas duas partes discutidas pelo autor, sendo os vestígios a matéria fotográfica; a outra parte se refere aos incorporais que têm a ver com a memória. O que me levou a produzir essas imagens, produzir essa ação de colecionar esses vestígios, registrá-los, foi o meu repertório de memórias. As memórias difusas condicionam o meu fazer. Uma memória de corpos que fizeram parte diretamente da minha história recente, dos meus afetos e outra memória também da minha historia pessoal, a memória do lado perverso da cidade, do bairro. A fotografia sempre terá alguma relação com o real, mas pode também ser quase pura ficção, alegoria e uma maneira de manifestar singularidades e contar histórias sobre o homem. Eu quero contar estas micro-histórias, talvez na tentativa de ir à contracorrente da 47


história oficial e contar ao outro algo que possa nos unir em algum momento. São pequenos relatos feitos visualmente através das imagens fotográficas. São questões de memória individual e coletiva, temas cada vez mais abordados na contemporaneidade pela arte e pela a nova história, que hoje tem novos paradigmas6 7. A fotografia é mais um instrumental que se adiciona a outros, para que artistas se expressem e produzam conhecimento artístico-poético a respeito da memória, no que se chama hoje arte contemporânea.

Referências

CATTANI, Icleia Borsa. O corpo, a mão, o vestígio. In: ___. Icleia Cattani. Organizado por Agnaldo Farias. Rio de Janeiro: Funarte, 2004 (Coleção Pensamento Crítico). COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. SANTOS, Alexandre. A fotografia como escrita pessoal: Alair Gomes e a melancolia do corpo-outro. Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. SANTOS, Alexandre. Sobre fotografias, documentos e autoficções. UFRGS/ANPAP, www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/chtca/alexandre_santos.pdf Santos, Alexandre. Nós os melancólicos, In: Revista Teorema Nº 19, dezembro 2011, p.37. SANTOS, Alexandre e CARVALHO, Ana Maria Albani de (Org). Imagens arte e cultura. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS, 2013. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: SENAC, 2009. SEMIN, Didier; GARB, Tamar; KUSPIT, Donald. Christian Boltanski, 2008, p.86 (tradução livre da autora).

6

Le Goff, Jacques. História e memória. Campinas, Editora UNICAMP, 2003, p.471; cap. Memória p. 413476) 7 Ibidem Santos (2011, p. 1246)

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A abundância de imagens e a construção do vazio

Fernanda Valadares Processos Híbridos na Arte Contemporânea, UFRGS

RESUMO Como se observa uma imagem? E como se percebe uma imagem? Em um mundo em que se é bombardeado quotidianamente por uma torrente de imagens virtuais, além das reais, o quanto delas se consegue absorver? E daquelas que se absorve, como fica a capacidade de notar os aspectos mais sutis da imagem? Procuro abordar estas questões a partir do trabalho do artista nipônico Hiroshi Sugimoto e do paraense Alberto Bittar, além de apresentar alguns aspectos de minha própria poética, tanto a partir de um desenho - O Sétimo Continente, grafite sobre papel de arroz - como da pintura encáustica que é decomposta em Lonjuras. Em ambos os casos a idéia é oferecer uma reflexão sobre o olhar da imagem, seja em seu caráter narrativo, linear, ou por detalhamento, profundidade de determinada cena. O tempo necessário para a produção, no caso de uma pintura ou desenho, pode ser um vetor para notar o tempo que se leva para de fato perceber as nuances de uma imagem. PALAVRAS-CHAVE Pintura encáustica, fotografia, paisagem, percepção.

ABSTRACT How does one observes a picture? And how does one perceives it? In a world where every day there is a flood of virtual images, besides some real ones, how much of them are we able to assimilate? Whether we see it, can one notice the subtle aspects of the picture? I try to address these issues from the work of the japanese artist Hiroshi Sugimoto and the brazilian photographer Alberto Bitar. I also point out some aspects of my own poetic through the drawing The Seventh Continent (graphite on rice paper) and the three-dimensional object Lonjuras (encaustic painting on glass). In both cases the idea is to provide a remark on visual stimuli; in its narrative, linear feature, or particular, penetrating aspect. The required time for the image creation, painting or drawing for example, may be an indication of the time it takes to actually perceive the details of that image. KEYWORDS encaustic painting, photography, landscape, perception.

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1. Introdução O vazio é o conceito operatório mais veemente em minha produção artística. Este vazio se manifesta em diferentes níveis; na forma, nas dimensões generosas da superfície de pintura e na escassez de elementos pictóricos. O que está por trás de uma poética que procura reduzir, entretanto, são os excessos; sobretudo a fartura de imagens a que somos submetidos quotidianamente, e o embate com a incapacidade de selecionar algumas delas, ou processar, refletir, explorar e absorver todos os elementos disponíveis. A abundância imagética é preciosamente ilustrada a partir da série Theaters de Hiroshi Sugimoto (Japão, 1958). O artista registra sessões de cinema; faz uma única foto da tela de projeção, deixando o obturador aberto do início ao fim do filme. Como ele explica, essa idéia apareceu como uma visão ”Se você fotografar um filme inteiro em um único frame, você obterá uma tela brilhante." (SUGIMOTO).1

E é exatamente o que

acontece, com a sobreposição de imagens, a tela fica branca. É como se a abundância levasse ao vazio.

2. Imagens em demasia Do ponto de vista da filosofia ancestral chinesa, todo o universo é caracterizado por um princípio de dualidade. Mais e menos, luz e escuridão, tudo aquilo que percebemos como realidade se manifesta em pólos contrários, que não podem existir sozinhos, como os dois lados de uma moeda. Esta visão segue válida no mundo contemporâneo, não só porque inverno e verão seguem existindo no século XXI, mas todo o universo virtual do qual nos servimos hoje se baseia no sistema binário composto de zeros e uns da tecnologia da informação. Ou seja, é como se desses dois extremos, zero e um, irrompesse uma torrente de estímulos externos e seu contraponto, o escasso intervalo de tempo que se tem para concatená-los. O excesso de imagens, ou aquilo que sobra sem que se consiga organizar completamente, entender parcamente ou sequer analisar o suficiente para que seja armazenado em algum lugar do cérebro possível de ser encontrado posteriormente através da memória, nem sempre é descartado, mas jogado em um tipo de porão ou arquivo morto, uma compostagem imagética que pode vir à tona muitas vezes sem se saber a origem. O que eu proponho, a partir do meu processo, é a decantação dessa abundância de imagens, para que se forme, ainda na mente, uma nova imagem, ou a ausência dela; proponho que o mero consumo desenfreado de imagens seja substituído pela contemplação. 1

Disponível em < http://www.sugimotohiroshi.com> acesso em 22/09/2014 50


3. Contemplar ou me esvaziar de imagens Em meu trabalho este vazio foi sendo construído, ou descortinado, gradativamente, em um processo de retirada – de atitudes, de conceitos e de matéria. O vazio se mostra no resultado do trabalho em espaços expositivos esvaziados, em porções faltantes de matéria, em desertos ou cordilheiras e na ausência da representação de pessoas; mas é no processo de feitura, no modo de fazer que o vazio se constrói. A intimidade com a trabalhosa técnica de pintura encáustica2, a introdução do hábito da desaceleração e a assimilação da ideia de atemporalidade e silêncio em analogia ao vazio propiciaram uma atitude mental de estar no presente, apenas. Ao contrário de uma mente ativa, criativa, após o bombardeio de imagens passo a uma atitude contemplativa, de esvaziar a mente. Contemplar é uma palavra procedente do latim contemplari que significa olhar atentamente a um determinado espaço. É composta pela preposição cum, companhia ou ação conjunta e templum, templo, o lugar sagrado. Este estado de olhar atentamente é o que procuro manter constante ao longo do processo, sobretudo ao longo do desenrolar de procedimentos trabalhosos, como a pintura, o desenho ou a lixação de peças de madeira. Ao falar de processo de feitura, portanto, aponto este estado fundamental, contemplativo aliado a ação, pois pintar não é estar sentado a observar o céu. Para São Tomás de Aquino Em primeiro lugar, parece que a vida contemplativa consiste somente em um ato do entendimento, já que o objetivo desta vida está em alcançar a verdade. Ora, a verdade pertence somente ao entendimento, de modo que se segue que a vida contemplativa consiste somente em um ato do entendimento. Parece, entretanto, que a vida contemplativa consiste em uma operação da razão, porque a vida contemplativa é uma vida humana, e assim deve ser conduzida de um modo humano. Ora, pertence ao modo dos homens agirem segundo a razão, como animais racionais, e portanto a vida contemplativa consiste principalmente no raciocínio. Finalmente, parece que todo ato da inteligência pertence à vida contemplativa. Pois, assim como há uma proporção entre a vida ativa e as coisas a serem feitas, há também uma relação entre a vida contemplativa e as verdades a serem conhecidas. Todos os atos, porém, que dizem respeito à primeira pertencem à vida ativa, de onde que também todos os atos da última pertencem à vida contemplativa. (AQUINO)

Nas fotografias de cinemas de Sugimoto, há a mescla, a sobreposição e o acúmulo de narrativas e acontecimentos através de luzes, cores e movimentos, e o resultado é o vazio. Sugimoto, ao fazer suas fotografias de longa exposição trata de questões intimamente ligadas ao tempo, à efemeridade, à contemplação e à sua filosofia, budista. O modo de construir esta tela branca, apreender este vazio, é a partir do todo, tendo como aliado o tempo de exposição. Pela sua técnica primorosa, profundidade conceitual e 2

Técnica de pintura a base de uma liga de ceras animal, vegetal e pigmentos, que é aplicada quente sobre a superfície e em seguida é fundida. 51


filosófica Sugimoto é reconhecido como um dos artistas contemporâneos mais significativos no Japão. Seu trabalho explora a complexidade do tempo, mas não apenas. Ele demonstra uma profunda contemplação por várias questões, como a própria arte, história, ciência, religião e filosofia, tanto do ponto de vista oriental como ocidental. Nesse sentido, seu trabalho exerce um forte impacto sobre a minha produção, quando percebo que, na tentativa de tratar do espaço mental, ele se apropria do tempo no espaço real, tanto arquitetônico (os cinemas) como natural (em paisagens marinhas), esvaziando-o não a partir de um recurso gráfico, mas simplesmente através da longa exposição fotográfica.

Figura 1. Hiroshi Sugimoto, Try City Drive-in,, 1993, fotografia

Quando procuro refletir sobre questões ligadas ao tempo dentro do campo artístico, em geral sou levada a pensar na fotografia que é, em última análise, sempre sobre o tempo, um tempo paralisado. Tudo o que acontece em um breve momento se imprime na imagem, no rolo de filme, no papel sensibilizado ou no chip. Já a consciência não pode compreender momentos muito curtos de tempo, os olhos não podem vê-los; ao vermos vinte e quatro imagens distintas em um segundo, tem-se a impressão de que algo está se movendo. A única chance de ver que a fotografia captura períodos no tempo é quando a acumulação se deixa transparecer 52


pela longa exposição. Em uma das primeiras fotografias de Louis Daguerre (França, 1787-1851), o que deve ter sido uma cena movimentada na rua se transforma em um espaço quase vazio, com apenas dois seres humanos visíveis. Desde o princípio dessa técnica, portanto, o que era inerentemente cheio se manifestaria como vazio. E me arrisco a propor sobre a veracidade também do contrário: toda essa fartura de imagem em que estamos imersos pode ser apenas a manifestação de um vazio de sentido. Na busca do sentido, procuro reunir um grande número de imagens. Este caráter binário, dualista, pares opostos mas complementares aparecem por todo o processo do meu trabalho, desde a escolha das imagens, que são do mundo, mas são sobretudo da mente, passando por uma feitura que requer quietude e a intensa atividade até chegar às imagens finais. Vou da contenção dos espaços construídos à liberdade dos espaços absolutos como um meio de explorar os extremos opostos da mente através do trabalho e ao mesmo tempo procuro alargar as possibilidades pictóricas e de feitura a partir da propensão a dualidade da mente. Os pares, entretanto, não se mostram de forma pendular, mas circular, um caminhar contínuo em que uma coisa leva a outra. A circularidade se deixa transparecer sobretudo nas montagens no final do processo, em que é crucial que a linha do horizonte de cada trabalho esteja a uma altura constante, e que, os trabalhos estejam interligados de algum modo, segundo algum critério. Me interessa propor a experiência de algo cíclico, uma lembrança atávica, suprimida no mundo contemporâneo.

4. O sétimo continente O Sétimo Continente, é um desenho de grafite 0.5 e 0.7 sobre papel de arroz de 60cm por 5m. Trata-se de um diário de viagem, um desenho no espaço e no tempo. São 10 dias de viagem contados em horas, e a medida em que esse tempo vai passando ao longo dessa viagem, vou capturando montanhas. É uma viagem ao longo de uma grande cordilheira, em que fui fazendo registros fotográficos e breves esboços, e depois essas imagens foram reorganizadas e desenhadas como se fosse uma grande paisagem, propondo uma continuidade. No rodapé há anotações da passagem do tempo, o instante da captura, da altitude e da latitude. A altitude e latitude me interessam como uma mudança no eixo horizontal e vertical. É uma subversão das coordenadas geográficas. No desenho eu tento seguir o registro das montanhas com uma certa fidelidade, mas fica explícito o aspecto subjetivo da minha percepção, da percepção da mão no papel, do tipo do traço, mais tenso, mais relaxado, mais escuro, mais claro. Eu fiz questão de preservar no desenho o corte do enquadramento dos 53


registros fotográficos e a emenda no registro seguinte. É um desenho bastante orgânico, mas que em seguidos momentos tem uma linha reta, vertical, que é a fratura da continuidade de um momento, uma captura, para o momento seguinte. Isso causa um certo estranhamento, que faz lembrar que não é um lugar aqui, do real, mas é um continente a mais, um outro espaço. Este espaço é contido pelo tempo, a passagem do tempo cria esta paisagem, com suas rupturas, estranhezas visuais. A montagem desse trabalho também traz a questão espacial… o desenho é pregado na parede com ímãs, mas montado com pregas, e os cinco metros se transformam em dois. O trabalho foi fixado em dois planos de parede, saltando para o espaço por conta também da ondulação no papel.

Figura 2. Fernanda Valadares, O Sétimo Continente (detalhe), 2014, grafite sobre papel de arroz, 60X500cm

Os ímãs desaparecem atrás das pregas, assim como parte do próprio desenho. É necessário que se adivinhe um pouco o que está por trás, pois só se vê parte do que foi desenhado; o que será daquilo que não se vê? Isso é outra característica de espaço e tempo… quanto mais povoado é o espaço, menos se enxerga. Aqui também há essa porção que não se vê, mas por conta da própria dobra do plano da folha desenhada, a dobra do espaço. A dobra do espaço físico do papel pode ser também o encontro com a dobra 54


daquilo que se consegue absorver das imagens. Quando daquilo que o olho vê é percebido? E do que é percebido, o quanto é registrado? O do que é registrado, o quanto é lembrado posteriormente? Segundo o pesquisador norte americano Andrew B. Watson, em condições normais do olho humano e da interface cerebral é de 10 a 12 imagens percebidas separadamente. Neste caso, quando se diz percebidas, é a velocidade média para a mente reconhecer determinada imagem. Mas quando se trata de uma viagem para um local desconhecido, não é sobre o reconhecimento de um lugar, mas sobre a investigação e apreensão de elementos até então inéditos para o cérebro. Independente do aparato fotográfico, digamos que ao longo de dez dias de viagem eu conseguisse perceber em torno de 5 milhões de imagens distintas (12 imagens por segundo, por 12 horas diárias ao longo de 10 dias). O quanto disso eu teria realmente apreendido? Ao

longo

desses

dez

dias de viagem

procurei registrar,

como afirmei

anteriormente, as imagens dos lugares por onde eu passava. Foram feitas cerca de 6.000 imagens, dentro do recorte espontâneo daquilo que achei interessante no lugar, como algumas peculiaridades, acontecimentos, mas majoritariamente paisagens, sobretudo de montanhas. Meu foco de interesse na ocasião. Eu estive naqueles lugares; tirei as fotos, mas o quanto realmente consegui absorver daqueles lugares? Ou das 6.000 imagens? Selecionei 64 delas, em média 5 ou 6 de cada dia, e me debrucei sobre elas, ao longo de outros dez dias de volta ao ateliê para desenhá-las - com um grafite suficientemente fino, para que eu precisasse realmente observar os detalhes da foto, como se o gesto solicitasse a atenção plena. Sobre estas 64 imagens eu posso declarar: foram vistas. Sobre todas as outras, não exatamente. São como um filme, são transitórias; não há o branco, o vazio, como no trabalho de Sugimoto, mas se todas as imagens fossem mentalmente sobrepostas, certamente seriam uma montanha arquetípica, com relva verde e cume pedregoso sob um céu azul. Em termos temporais, portanto, o exercício de olhar uma imagem, me parece mais da ordem do desenho, da pintura encáustica, do que da captura de uma imagem digital. O aparato pode cumprir rapidamente sua função, mas o olhar requer o tempo olho e da mente do observador, que tantas vezes pode demorar a chegar na camada do sutil, do sensível.

55


5. A potência do vazio Na exposição Efêmera Paisagem 3 Alberto Bitar (Belém, PA, 1970) faz fotos da estrada, por um percurso que percorria desde a sua infância. As fotos feitas com uma velocidade baixa em relação ao movimento do veículo, tem pouca nitidez, poucos elementos. Parece exacerbar a velocidade - do carro, da vida. Mas ao mesmo tempo nos faz parar, como que para desacelerar, e perceber todas as possibilidades do que pode ter-se perdido com a velocidade.

Figura 3. Alberto Bitar, Sem título, da série “Efêmera Paisagem”, 2009, fotografia, dimensões variáveis

Esta parece ser a potência do vazio; deixar que se espelhe o que não precisa estar na fotografia (ou na pintura), mas está por trás desse mesmo observador. Na série Lonjuras eu procuro pensar nesse tempo de absorção de uma imagem através do espaço, das camadas inerentes a ela. São as mesmas montanhas da América do Sul outrora desenhadas em O Sétimo Continente, convidando a que se entre na imagem, não mais bidimensional. Seria ainda uma imagem fotográfica? Não. Da fotografia restaram os perfis das montanhas. É um convite a se refletir o quanto do que se percebe de uma imagem é lugar, o quanto é sua luz, sua textura, e o quanto é apenas o reflexo de nós mesmos.

3

Espaço Cultural do Banco da Amazônia, Belém, PA, 2009 56


Figura 4. Fernanda Valadares, Lonjuras, encáustica sobre vidro em caixa de madeira, dimensões variáveis, 2015

6. Conclusão Em uma época em que tudo parece exagerado; informação, consumo, velocidade, a questão da abundância de imagens pode gerar um hábito de consumo ligeiro, de uma percepção superficial de imagens do mundo virtual, do quotidiano, e também de trabalhos apresentados no campo da arte. Em minha pesquisa procuro percorrer tanto o caminho do excesso, da fartura de imagens registradas, como o da escassez, selecionando apenas o mínimo para trabalhar. Procuro experienciar e produzir através de um processo que convida a desaceleração e ao questionamento do quanto se perde com a velocidade e a decorrente falta de atenção.

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Referências

AQUINO, Santo Tomás. Comentário ao IIIº Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Disponível em http://www.cristianismo.org.br/st-3sn25.htm. Acesso em 23 set.2015 BITAR, Alberto. Disponível em http://www.pipa.org.br/pag/artistas/alberto-bitar/. Acesso em 21/09/2015 SUGIMOTO, Hiroshi. Disponível em http://www.sugimotohiroshi.com. Acesso em 22/09/2014 VALADARES, Fernanda. Disponível em http://www.fernandavaladares.com/ WATSON, Andrew B. Temporal Sensitivity. Disponível em http://vision.arc.nasa.gov/personnel/pavel/publications/TemporalSensitivity.pdf Acesso em 20/09/2015

Fernanda Valadares (São Paulo, 1971) vive e trabalha entre Porto Alegre e Araçoiaba da Serra/ SP. Tem bacharelado e licenciatura pela Faculdade Santa Marcelina em São Paulo, e é mestre em poéticas visuais pelo Instituto de Artes/UFRGS. Entre suas exposições destacam-se as individuais Aqui o Aquí na Galeria Sancovsky, São Paulo, 2015; Depois:, Galeria Mamute Porto Alegre, 2015; À Beira do Vazio, Museu de Arte de Santa Catarina, 2014; O Sétimo Continente, Galeria Zipper São Paulo, 2014; Na Adega Evaporada, MAC/RS; e as coletivas De Longe e de Perto, Galeria Mamute Porto Alegre, Curadoria Angelica de Moraes, 2014; The War of Art: visions from behind the mind, The Safari, NYC, Curadoria Wyatt Neumann, 2014 e Contemporâneos Novos/ Diante da Matéria, 20 anos MAC/RS, curadoria Paula Ramos, 2012. 58


Possibilidades narrativas – ficções e afecções

Heliana Ometto Nardin PPG ARTES, UFU RESUMO Este artigo realiza o desejo de pensar história(s) e imagen(s) tangenciando o debate sobre sociedade cultura e arte. Organiza-se o pensamento comunicacional em três momentos, denominados: Instantâneo 1 – narrativas; Instantâneo 2 – fabulações; Instantâneo 3 – ficções e afecções. Espera-se que, a interrelação entre eles, forme uma composição expressiva dada tanto pela continuidade e descontinuidade entre os temas em questão quanto pelo discurso que se pretende diálogo com autores de diversos campos do conhecimento. PALAVRAS-CHAVE Narrativas, fabulações, ficções, afecções e imagens.

ABSTRACT This article intends the desire to think history(ies) and image(s) directing the discussion about society, culture and art. The communicational thought is organized in three stages, these are named: instantaneous 1 - narratives; Instantaneous 2 - fables; instantaneous 3 fictions and affections. We expect that the interrelation between them forms an expressive composition given by the continuity and discontinuity between the presented subjects as much as the dialogue intended with authors from different fields of knowledge. KEYWORDS Narratives, fables, fictions, affections and images.

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PREÂMBULO O presente texto ao propor-se à reflexão tangencia o tema proposto por este seminário, abordando questões pertinentes aos conceitos de sociedade, cultura e arte. Pretende-se contribuição para o diálogo interdisciplinar, aberto a interlocuções que ampliem os significados aqui abordados. Possibilidades narrativas-ficções e afecções, texto segmentado em três momentos distintos apresenta no Instantâneo-1 o pensamento sobre as narrativas do campo das ciências sociais especificamente o antropológico, para compreender como se constrói o caráter do pensamento moderno ocidental. O Instantâneo 2 – fabulações, apropria-se do pensamento de Milton Santos sobre fábula(s) da globalização para focar as narrativas sobre a cultura no século XX, nos termos de Edgard Morin, a primeira cultura universal e plenamente estética. Instantâneo 3 – ficções e afecções, pensa a arte como articuladora e geradora de circuitos de afetos, agenciadora do ser sensível. Coerentemente, não possui conclusão, espera-se que esta se dê no diálogo agregador com possíveis leitores. INSTANTÂNEO 1 – NARRATIVAS As ciências humanas – ocidental e moderna – campo majoritário que agrega conhecimentos sobre o humano em perspectivas múltiplas, apresenta-se já como plural e distinto a partir de uma primeira grande divisão. Ao se lavrar em seu solo o conceito problemático e disjuntivo de natureza humana, este dicotomiza o campo e atribui marca, um caráter, a(s) sua(s) narrativa(s). Consta-se, com o auxílio de vários autores, que o estatuto do humano, segundo a tradição ocidental é dúbio, ambíguo, ao conceituar a humanidade ora como uma espécie animal entre outras, ora portadora de uma condição moral que exclui os animais. Assim, “nossa cosmologia imagina uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza, a segunda, das ciências da cultura”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011,p.382) Neste Instantâneo 1, o tema se pronuncia priorizando as narrativas das ciências sociais para se observar que nelas a imagem factível de sociedade e cultura é uniaxial, o eixo que mantém a composição estável, equilibrada, indicaria a interdependência funcional e sistêmica entre os elementos. Os estudos, entretanto, apresentam-se assinalando uma concorrência que os distingue, uma disputa que separa o binômio sociedade/cultura e singulariza cada termo, polarizando-os, ou apresenta a submissão de um sobre o outro, evidenciando que a polissemia tecida entre eles multiforma o campo investigativo, 60


permitindo abordagens e metodologias específicas bem como o uso de rótulos englobantes nas narrativas que buscam circunscrever o campo. Para compreender as narrativas científicas que nascem neste território polarizado, consultou-se Viveiros de Castro, especificamente em “O conceito de sociedade em antropologia ” (2011), texto encomendado por e publicado originalmente na Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, e que se pretende como mapa muito geral, atendendo ao ensejo deste Instantâneo 1 – ser de superfície, de sobrevoo exploratório. Reconhece o autor, que o campo estruturado das ciências sociais se divide com a diferenciação de duas antinomias centrais: natureza/cultura e indivíduo/sociedade, o debate teórico sendo o de decidir se as relações entre os termos opostos são de continuidade – solução reducionista – ou de descontinuidade – solução autonomista ou emergente. Sempre se bifurcam os sentidos, o tema é sempre dicotomizado, o pensamento ocidental oscilando entre duas imagens opostas de sociedade. Uma se expressa como noção ou sentido geral: a sociedade é uma condição universal da vida humana. Por sua vez tal noção admite duas interpretações: uma biológica (instintual) em que a sociedade apresenta-se como um atributo básico, mas não exclusivo, da natureza humana; e a outra simbólico-moral (institucional), “dimensão constitutiva e exclusiva da natureza humana (Ingold,1994), definindo-se o seu caráter normativo: o comportamento humano torna-se agência social ao se fundar menos em regulações instintivas selecionadas pela evolução que em regras de origem extrassomática historicamente sedimentadas”. (Ibidem, p.297) Compreende-se que a ênfase deste polo está nas regras, a normatização expressa “o caráter instituído dos princípios da ação e organização social”, e como tal variam no tempo e espaço, a humanidade sendo constituída por sujeitos simultaneamente criadores e criaturas do mundo das normas. A este sentido geral, bifurcado em suas interpretações, opõe-se o sentido particular em que o termo é aplicado a um grupo humano, desde que atendam às seguintes propriedades: territorialidade, população/povo, organização institucional e relacional e distintividade cultural–ideacional do grupo. As narrativas que multiformam o campo da antropologia, ao administrarem a relação entre os dois sentidos – geral e particular – se divide por sua vez, em uma polarização epistemológica entre “etnografia” e “teoria”. A primeira expressa o aspecto descritivointerpretativo, detendo-se no particular enfatizando as diferenças entre as sociedades, a segunda, propondo o aspecto comparativo-explicativo, objetiva formular proposições sintéticas válidas para toda a sociedade humana e, ou, definindo grandes tipos de sociedade. 61


Nota-se, entretanto, que a imagem antropológica clássica de (uma) sociedade apresenta-a como uma mônada que expressa à sua maneira o universo humano, refletindo o flagrante de um povo etnicamente distinto, vivendo segundo instituições específicas e possuindo uma cultura particular. Representação esta não mais crível, desacreditada pela compreensão atual de que esta composição ao refletir a noção de sociedade como autocontida, espelha, por suposto, as categorias, o instrumental analítico e as instituições do ocidente moderno. “Argumenta-se, por exemplo, que a ideia de uma humanidade dividida em unidas étnicas discretas, social e culturalmente singulares, deriva da ideologia do Estado-Nação, imposta aos povos não ocidentais pelo colonialismo, esse grande inventor conceitual e prático de ‘tribos’ e ‘sociedades’”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011,p.213). Autores de referência neste campo de conhecimento, citados por Viveiros de Castro, corroboram esta crítica, especialmente no plano teórico, Levi-Strauss (1950-58), ao denunciar que estamos frente a um problema ideológico e não analítico, afirmando a sociedade como um complexo contraditório onde coexistem estruturas de diversas ordens, e que consequentemente, o estruturalismo não é um método de sociedades globais. No plano

etnológico,

Leach

(1954)

que

demonstrou

a

inadequação

de

modelos

epistemológicos que não contemplem os contextos históricos e políticos de inscrição nas estruturas sociais. O campo de conhecimento que alimenta as narrativas das ciências sociais, póssegunda guerra mundial, encontra-se convulsionado pela critica. O pensamento ocidental tem que rever os seus pressupostos, seus valores e seus conceitos. Compreende-se que a possibilidade dos campos de concentração nazistas, com seus fornos de extermínio de massas humanas, estava já implícita no projeto e no programa ocidental. De acordo com Flusser, Auschwitz é realização característica de nossa cultura, a tendência ocidental em direção a objetivação foi realizada, sua virtualidade atualizada, ou seja, concretiza-se a “reificação derradeira de pessoas em objetos informes, em cinzas” (1983, p. 11). Todos os eventos econômicos, sociais, políticos, técnicos, científicos, artísticos e filosóficos são convulsionados pela revelação que “lá todas as nossas categorias, todos os nossos modelos, sofreram naufrágio irreparável” (ibidem). Não importa a distância que nos separa do evento, ele não se mostra superável, uma vez que não se caracteriza como crime – infração dos modelos de comportamento ocidental – e sim como resultado da aplicação de tais modelos. Constata-se que a revisão de todo projeto de conhecimento de fato se dá, realinhando-se em outras frentes e propósitos, entretanto, reconhece-se ainda como 62


característica do Ocidente o que Flusser denomina de transcendência objetivante, isto é, “tal transcendência permite transformar todo fenômeno, inclusive o humano, em objeto de conhecimento e de manipulação” (p. 15). A robotização da sociedade atual apresenta-se como técnica social menos brutal, mas será sempre manipulação objetivante do homem. A antropologia contemporânea realiza a crítica a seus pressupostos e tende a rejeitar a noção de sociedade como ordem dotada de uma objetividade de coisa, para trabalhar

com

a

noção

de

socialidade,

mais

adequada

aos

processos

que

intersubjetivamente constituem a vida social. Verifica-se também o retorno multiforme de abordagens fenomenológicas, uma vez que as concepções pragmáticas da agencia social são capazes de promover, segundo Giddens uma recuperação do sujeito sem cair no subjetivismo (apud VIVEIROS DE CASTRO,2011,p.314). A intencionalidade e a consciência tornam-se a própria essência da socialidade , “quando não sua verdadeira explicação”, sublinha esse autor. Faz-se ver, por este relato, que a crítica, desde meados do século XX, atinge a noção antropológica de sociedade em seus princípios epistemológicos e em suas narrativas científicas. O debate pertinente à crise conceitual deriva de uma crise histórica que acarreta e que elenca, entre outros fatores, a aceleração dos processos de mundialização dos fluxos econômicos e culturais. Evidencia-se o caráter ideológico e artificial de algumas ideias/conceitos, entre elas: a sociedade como objeto empiricamente delimitado, a sociedade como suporte objetivo das representações coletivas, entidade dotada de coerência estrutural e de finalidade funcional. Nestes termos, se há crise histórica há, consequentemente, crise cultural - uma mudança na apercepção social ocidental. Momento de movimento intervalar em direção ao Instantâneo-2. INSTANTÂNEO 2 – FABULAÇÕES Neste segmento, a pauta que se propõe abarca a reflexão sobre o nosso tempo, o caráter cultural do mundo contemporâneo. Milton Santos em “ Por uma outra globalização”, já na introdução do texto ao pensar seus fundamentos materiais e políticos em jogo, na atualidade, vê o mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade” (2011, p.11) A veracidade do mundo, sabe-se, é o campo do contraditório, entretanto, o pensamento contemporâneo ao fim do século XX, quer compreender o avanço da ciência, conferido pelo desenvolvimento tecnológico que afeta a vida social e a pessoal no planeta, por meio da consagração de uma narrativa, de um discurso único, o da globalização como 63


fábula. Assim, “este mundo globalizado visto como fábula, erigi como verdade um certo número de fantasias, cuja repetição, entretanto, acaba, por se tornar uma base aparentemente sólida de sua interpretação” (Ibidem, p.12). Pode-se elencar “n” exemplos das crenças erigidas por esse discurso produzido pela máquina ideológica do projeto/programa ocidental, entre elas, o da aldeia global, pela qual enfatiza-se a crença de que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. Parte-se desse mito e do encurtamento das distâncias – realmente só para aqueles que podem viajar- e defendese a noção de espaço e tempo contraídos, “como se o mundo agora, estivesse, para todos, ao alcance da mão”, nas palavras do autor. Apresenta-se um mercado global, capaz de homogeneizar o planeta quando se aprofundam as diferenças locais. Busca-se a uniformidade ao serviço dos atores hegemônicos e o culto ao consumo é estimulado, enquanto uma cidadania universal torna-se cada vez mais utópica, com o mundo menos unido. Apregoa-se a morte do Estado e o que se assistimos é o seu fortalecimento submisso aos reclamos das finanças e de outros grandes interesses internacionais em detrimento dos cuidados com as populações cuja vida se torna mais difícil. (SANTOS,2011) Compreende-se que o exercício de fabulações é necessário frente essa ideologização do processo de globalização vivido como realidade urbana. O exercício crítico, iniciado por Santos, permite, ao pensar o contraditório como veraz, a construção de um outro mundo. As bases materiais do período atual – a unicidade da crítica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta – poderão, segundo ele, servir a outros objetivos, a serviço de outros fundamentos sociais e políticos. O mundo como fábula, agora como possibilidade outra, ou seja, uma globalização mais humana. Santos avalia que condições históricas apontam para esta “ultima” possibilidade. Percebe-as tanto no plano empírico quanto no plano teórico. Elenca como o primeiro desses fenômenos a “enorme mistura de povos, raças culturas, gostos, em todos os continentes. A isso se acrescenta graças ao progresso da informação, a “mistura” de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu” (2011, p.14). Percebe ainda que a aglomeração populacional em áreas cada vez menores permite uma produção e um maior dinamismo aquela mistura entre pessoas e filosofias. Considera a existência de uma “sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que a própria biodiversidade” (ibidem). Vê como extremamente relevante a emergência de uma cultura popular presente na atualidade que se utiliza dos meios técnicos, colocando a seu serviço o que antes era exclusivo da cultura de massas.

64


No plano teórico, de retorno ao mundo concreto, verifica-se a possibilidade de um novo discurso pois, segundo o autor, “pela primeira vez na história do homem se pode constatar a existência de uma universidade empírica (ibidem, p.14) Essa fabulação a que provoca afecções, a que mobiliza nosso estar no mundo em diálogo com o outro, em experiência fenomenológica, agenciando sentidos outros. Em termos gerais e particulares ainda pensa-se a(s) cultura(s) como entidades que agenciam, mobilizam e modelizam o social, Edgar Morin em “Cultura de Massas no Século XX”, ao definir cultura como um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções, toca em ponto essencial tanto nesse Instantâneo 2 quanto para o próximo que se avizinha. Trata-se de lembrar, de ecoar, que a cultura fornece “pontos de apoio imaginário à vida prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária: ela alimenta o ser semi-real, semiimaginário, que cada um secreta no interior de si (sua alma),o ser semi-real, semiimaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual

se envolve (sua

personalidade) ” (1969, p.47). O imaginário é a outra face do real, estrutura simultaneamente antagonista e complementar daquilo que chamamos real, e sem a qual não haveria o real para o homem, não haveria realidade humana. Morin pensa a(s) cultura(s) mobilizadoras e modelizadoras do ser em seu caráter humanista, nacional e religioso. Há fatos culturais que são universais, cita a proibição do incesto para complementar que suas regras e as modalidades desta proibição diferenciamse segundo as culturas. Em outras palavras, há de um lado, uma cultura que define, em relação a natureza, as qualidades propriamente humanas do ser biológico chamado homem e, de outro lado, culturas particulares segundo as épocas e as sociedades. (Ibidem, p.17)

Considera as sociedades modernas policulturas, em que focos culturais de diferentes naturezas encontram-se em atividade, em dinâmica tensionada concorrem na modelização do sujeito, por meio dos processos educacionais formais, sob a tutela do Estado e da Igreja ou informais, participativos e presentes, que viabilizam os focos da(s) cultura(s) popular(es) ou de grupos inovadores e/ou alternativos a ela. A ocorrência e a concorrência dessas diferentes culturas acrescentam-se, a partir do século XX, a cultura de massa que integra e se integra a essa realidade policultural. Ela “faz-se conter, controlar, censurar (pelo estado, pela Igreja) e, simultaneamente, tende a corroer, a desagregar as outras culturas” (Ibidem, p. 18). Morin a caracteriza como 65


cosmopolita por vocação e planetária por extensão, constituindo-se como a primeira cultura universal da história da humanidade. Compreende-se que corroa e cause aviltamento aos outros polos culturais, pois é toda uma concepção de cultura e, especialmente, a da arte que é posta em questão. O circuito da cultura de massa está centrado na produção, assim o produto cultural viabilizado pela intervenção das técnicas industriais, propagado pelas técnicas de difusão maciça, a mass-media, e pela determinação mercantilista, oferece-se à vida quotidiana, dirigindo-se a uma massa social, isto é, “a um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família, etc)” (Morin,1970, p. 16). Morin evidencia as novas questões que a cultura de massa fomenta ao considerá-la em seu estatuto de cultura, isto é, constituída por um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes a vida prática e a vida imaginária e que remete-nos diretamente ao campo global. Manifesta seu(s) conteúdo(s) imaginário(s), especialmente sob a forma de espetáculo, além de informações e jogos, e por meio do estético é que se estabelece a relação de consumo imaginário: “a relação estética, desabrochando tardiamente na história, restitui uma relação quase primária com o mundo (...) e se traduz pelo encantamento do jogo, do canto, da dança, da poesia, da imagem, da fábula” (1970, p.83). A participação estética se distingue das participações de ordem prática, modos de uso técnicos e religiosos entre outros, o que lhe confere especificidade. Segundo Morin, seu caráter simultaneamente intenso e desligado é o atributo de sua dupla consciência. O imaginário é percebido na relação estética, como real, até mesmo mais real que o real-intensidade de sentido-entretanto, ele permanece (re) conhecido como imaginário. Por outras palavras, magia e religião, reificam literalmente o imaginário: deuses, ritos, cultos, templos, túmulos, catedrais, os mais sólidos e os mais duráveis de todos os monumentos humanos, testemunham essa grandiosa reificação. Na estética, em compensação, a reificação nunca é acabada (Ibidem, p.82).

A estética não definida como qualidade própria das obras de arte, mas como a que caracteriza e define um tipo de relação humana, de participação mais abrangente. Assim, tem-se um campo de trocas entre o real e o imaginário, na sociedade moderna, que se pronuncia de modo estético por meio das artes, dos espetáculos, dos jogos.

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Morim afirma a cultura de massa como a primeira cultura da história mundial a ser também plenamente estética e fundamentalmente profana, apesar de seus mitos e seus engodos políticos religiosos, como por exemplo o culto ao pop-star. Compreende-se, portanto, porque Milton Santos (2011) em sua fabulação sobre uma outra globalização, vê como revanche ou vingança a emergência, no plano empírico, de uma cultura popular que se apropria dos meios técnicos, do sistema técnico atual, antes exclusivos da cultura de massas, para colocá-los a serviço da sobrevivência e reconstrução das relações locais ao mesmo tempo que se expressam e se comunicam com o complexo global. Essa ação sinaliza as possibilidades do contraditório que se afirma como possibilidade existente: exercício de cidadania, de caráter político de uma população aglomerada sempre a margem das políticas do Estado e das políticas das empresa(s). Exercício de circulação de sentidos de afecção que politicamente criam vínculos socioculturais à revelia dos circuitos hegemônicos do pensamento único e ou convergente. A relevância das práticas estéticas na mobilização e modernização de nossas vidas, revela-se já nesse movimento. O surgimento, na esfera do estético, dá fisionomia aos desejos e aspirações, mas também as angustias do humano. Estrutura antagonista e complementar ao real é: “o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, e no qual se banham igualmente nossas vidas. É o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual, isto é, singular, limitado e finito no tempo e no espaço (1970, p.84). Com urgência, faz-se a passagem para o Instantâneo -3 INSTANTÂNEO 3 – ficções e afecções Não se trata aqui de funcionar uma narrativa do culto da arte, da afirmação de valores estéticos, entre eles a originalidade e a autenticidade, que muito se prestam a fomentar um mercado de arte. Antes, pensar a arte como esfera do cultural que se constitui como o outro lado da realidade. Campo de interlocuções – dicções – que não gera apenas narrativas ao articular situações, contextos, mas que engendra experimentações que colocam em questão o saber do corpo. Esfera do imaginário, domínio do jogo e aparência, das “obras de imaginação” que interagem com os demais aspectos da vida sociocultural, agregando e elaborando valores outros. Saber que ao se constituir como arte coloca em situação afetos, afecções, que mobiliza outros corpos sem modelizá-los. Ao tomar o corpo, o sensível, como fundamento de sua práxis desfaz a distinção clássica entre sujeito e objeto, carne e espírito. Distinção 67


esta que constitui o caráter do “conhecer como objetivar”, própria das narrativas científicas e ou ideológicas, em que os sujeitos tanto quanto os objetos “são vistos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito ou se reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver ‘ de fora’, como um ‘isso’. A forma do outro é a coisa ” (VIVEIROS DE CASTRO,2011, p.358). Propondo-se ao sensível a arte só se realiza em criação e apreciação como ficção/ real afecção. O sensível não é feito somente de coisas. É feito também de tudo que nelas se desenha, mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura, mesmo a título de distância como uma certa ausência: o que ser pode apreendido pela experiência no sentido originário do termo (...) (MERLEAU-PONTY, 1971, p.81).

Essa experiência é a realização de uma vivência, em que todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção. Percepção que se dá sempre em perspectiva (s), em visada (s) do mundo. O que fundamento o perspectivismo, segundo Deleuze, é que ele “não exprime uma dependência perante um sujeito definido previamente; ao contrário será sujeito aquele que aceder ao ponto de vista (...)” (2000, p.27). Viveiros de Castro observa que o perspectivismo ameríndio, ativador da sua cosmologia, “procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito, será sujeito quem se encontrar ‘ativado’ ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista”. Fundamento que se opõe ao da cosmologia ocidental, construtivista, que ele resume na fórmula saussureana: “ o ponto de vista cria o objeto – o sujeito sendo a condição originária fixa de onde emana o ponto de vista” (2011, p.373). A obra de arte se apresenta como um ponto de vista, uma poética, que ao ativar o receptor agencia afecções, circula afetos e transita por outros sentidos e cosmologias, sem fundamentar perspectivismos e ou objetivações. Ativados pelas “obras de imaginação”, por afecções, pela circulação de afetos que potencialmente atravessam o ser sensível, mobiliza-o e singulariza-o. A obra de arte se define, nas palavras de Deleuze e Guattari, como “um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. As sensações, como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto (referência)”. Assim compreende-se que, de acordo com esses autores, o objetivo da arte – com os meios materiais e os métodos que devem variar com cada artista – “é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações” ( 2000,p.217). 68


Sem mais, encerra-se o Instantâneo -3, o que permanece em aberto são os sentidos e as possibilidades narrativas.

REFERÊNCIAS DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000. DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34,2000. FLUSSER, V. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983. MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva,1971. MORIN, E. Cultura de massas no século XX. Rio de Janeiro/São Paulo, 1970. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2011. VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem- e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naity, 2011.

Doutora em Educação, Língua e Arte pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP. São Paulo. Professora associada no Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia/ UFU, Minas Gerais. Pertence ao NUPAV-Núcleo de Pesquisas em Artes Visuais e ao Programa de Pós-Graduação em Artes/Mestrado da mesma instituição. 69


A IMAGEM SIMBÓLICA: RESGATE DAS FORMAS PRISIONEIRAS

Enivalda Nunes Freitas e Souza POEIMA – Grupo de Pesquisa Poéticas e Imaginário Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, ILEEL/UFU

RESUMO A proposta desse trabalho é desenvolver algumas questões teóricas sobre a imagem poética, com base nos estudos da mitocrítica sistematizados por Gilbert Durand a partir da psicologia das profundezas de Carl Jung, e sua teoria do inconsciente coletivo, e da fenomenologia de Gaston Bachelard. A análise de um poema de Dora Ferreira da Silva (Conchas - São Paulo, 1918 – São Paulo, 2006) conduzirá o encaminhamento da discussão teórica. Jung considera a imagem como um símbolo que traz mensagens de extratos profundos, cujos sentidos são transformados pelo poeta e reelaborados pelo leitor, conforme seu tempo e sua cultura. Assim, a arte é “uma linguagem impregnada de significado, cujas expressões teriam o valor de autênticos símbolos, porquanto expressam, do melhor modo possível, o ainda desconhecido e são pontes lançadas a uma longínqua margem invisível”. Todas as imagens que o homem conhece e experiência, como árvores, pássaros, cidades, montanhas, ciclos naturais, e tudo o que ele ignora tem uma força simbólica que o lança a sentidos inesgotáveis e compartilhados por homens de todos os lugares. Por sua vez, Gaston Bachelard afirma que cabe ao poeta enxergar as imagens e transformá-las em “palavras cósmicas” que “tecem vínculos do homem com o mundo”. O método fenomenológico de Gaston Bachelard coloca o leitor frente a frente com o poema, e com um momento totalmente novo, uma vez que incentiva o aprofundar-se nas imagens poéticas sem que estas venham como produto de recalque ou fruto de um biografismo, porque a imagem é de “uma origem absoluta” e nela está o “germe de um mundo”: “a imagem não é fruto de recalque, ela não tem passado. É uma conquista positiva da palavra”. Bachelard teoriza ainda que é essa “condição de novidade da imagem que transporta o homem às profundezas de sua origem.” Portanto, a imagem só pode ser alcançada em sua força simbólica. Tal poder atua na linguagem: “a imagem, por isso, está acima de qualquer significante, cabendo a ela revigorar a língua, além de enriquecer o pensamento”. Assim, o método fenomenológico consiste em “tentar restituir no leitor a ação inovadora da linguagem poética”. Com sua imagem simbólica, o poeta age como reinaugurador da vida e da língua, recriando (libertando) os elementos e a vida: “As formas prisioneiras por belas e dementes / esperam seu resgate. Nem veriam / a eclosão / essas duras crisálidas do sono / ocultas em pedras, telas, tramas, / insensíveis ao sol, à chuva fria, / nem júbilo / nem melancolia / sem que as desates. / Medram a medo / na antemanhã, carentes de teu sonho, / princesas embalsamadas em sucessão estranha, / à espera.” (somente resumo) 70


Ricardo Hantzschel e Guilherme Maranhão: narradores ficcionais de suas histórias

Karina Alves de Sousa Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, IARTE/UFU

RESUMO Este artigo propõe discutir e investigar a capacidade ficcional das máquinas que geram imagens, mais especificamente atido à fotografia. Ao longo do texto foi necessário compreender o processo histórico da fotografia, a fim de elucidar conceitos e técnicas que interferem na interpretação das imagens. A técnica é colocada a serviço das narrativas e da subjetividade dos artistas que reinterpretam a realidade através das imagens plasmadas. Da caixa-preta subjaz o imaginário coletivo, construído segundo (ou subvertendo) códigos pré-estabelecidos pela sociedade. PALAVRAS-CHAVE Fotografia, ficção, máquinas, imagens.

ABSTRACT This article aims to discuss and investigate the fictional capacity of the machines that produce images, specifically applied to photography. Throughout the text it was necessary to understand the history of photography process in order to elucidate concepts and techniques that interfere with the interpretation of the images. The technique is placed at the service of narrative and subjectivity of artists who reinterpret reality through the molded images. The dark chamberunderlies the collective imagination, built in (or subverting) preestablished codes by society. KEYWORDS Photography, ficction, machines, images.

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1. Introdução Segundo nos ensina Phillipe Dubois (2004), máquinas de imagens são produtos tecnológicos que promovem a intermediação entre o homem e o mundo no processo de construção simbólica e dedicam-se à representação. São exemplos de imagens produzidas por máquinas, a fotografia, o vídeo, o cinema e a imagem computadorizada. Opta-se por direcionar os argumentos deste texto à fotografia, assunto mais cercano à autora. Dentro da linguagem fotográfica, os entendimentos sobre como encarar a imagem foram se modificando ao longo do tempo e exerceram influências nas artes e nas ciências. A questão do real no fotográfico já foi colocada inúmeras vezes em perspectiva, mas o assunto sempre volta, especialmente se pretendemos observar seu potencial ficcional . Dubois (1993) sistematiza uma retrospectiva histórica sobre a questão, sob três ângulos: a) ícone: a imagem fotográfica considerada como uma cópia do real, aproximada da mímese, e da verossimilhança com o objeto que representa, uma imitação que em nada depende da presença do artista, resultado apenas de um processo mecânico. Há uma cisão entre a técnica e a atividade do fotógrafo; b) símbolo: nesta perspectiva, a fotografia é entendida como uma codificação, uma convenção, não há neutralidade no aparelho, a imagem é construída segundo os códigos estabelecidos na sociedade, como por exemplo, a perspectiva renascentista; c) índice: entende-se que há uma conexão física com o referente, guarda um laço com o real, mas sem a pretensão de mímese. O importante a ressaltar nessa discussão, seja a fotografia ícone, índice ou símbolo, é possuir elementos que nos instrumentalizam no processo de interpretação e leitura da imagem fotográfica. Na era da pós-fotografia, não a reconhecemos apenas como um registro ou documento, mas sim como um instrumento que gera significações no processo de construção do imaginário social. É uma elaboração técnica que tem a capacidade de produzir significações subjetivas. Adotamos uma nova postura ao olhar as imagens. Cada imagem tem seu próprio poder de comunicação, sua própria mensagem e nos conta uma história. Quando se desprende

de conceitos tão arraigados como

objetividade, verdade, identidade, documento e realidade, abre-se a possibilidade de adentrarmos à ficção.

2. Ficção Afirma Fontcuberta (2012) “A representação fotográfica se liberta da memória, o objeto se ausenta, o índice se evapora. A questão da representação da realidade dá lugar à construção de sentido.”. Dessa forma, exige-se do espectador uma consciência crítica no momento da recepção dessas imagens. A fotografia que, tempos antes era um objeto, hoje 72


se tornou uma informação. A imagem já não se presta apenas para autenticar nossa existência no mundo, mas também para criar uma ficção, “uma ficção que o espectador despreparado tomará como autêntica.”. Ficção vem do latim fictione e é derivada de fingere e significa o ato de fingir, simular, imaginar. A ficção é produto da imaginação criadora e, portanto, não é um simples retrato da realidade, mas uma reinterpretação. "Os eventos relatados em histórias e a sucessão dos fatos fazem parte da fantasia do autor que, a partir da observação do mundo ao seu redor, cria um ambiente imaginário onde pode, inclusive, inventar e reinventar a sua própria existência." (D’ONOFRIO, 1997). Ficção também não é o contrário de verdade visto que ela incorpora o falso para mostrar seu caráter imaginário e empírico. “A ficção não é sinônimo de mentira, de falsificação, de fraude. Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real.” (CASTELLO). Conforme anteriormente dito, as máquinas propiciam construções simbólicas, entende-se assim que a criação de realidades envolve a natureza ficcional, já que nossa percepção do real é fruto de interpretação. A ficção pode adentrar as imagens tanto no momento da captura, quanto da manipulação posterior, a fim de que se construa um discurso narrativo. As máquinas de imagens, dentro do seu potencial ficcional, nos possibilitam imaginar, confabular, criar e poetizar novas realidades. O conteúdo de uma imagem é metáfora e informação. A narrativa fotográfica, seja pela sua representação, seja pela interpretação colabora com o processo de uma nova construção de sentidos e realidades (KOSSOY, 2002, p. 42). Dentro da caixa preta cria-se qualquer história. Antigas e novas tecnologias nos instrumentalizam para que se desenvolvam diálogos com o mundo. E àqueles que se propõem a praticar seu imaginário, devem estar preparados para que não se tornem apenas funcionários das máquinas, a fim de alcançar a liberdade criativa e libertá-lo da alienação imposta pelo “programa”. (FLUSSER, 2002). Esta rápida noção histórica-elucidativa nos foi necessária para que possamos analisar e entender como os artistas desenvolvem seus trabalhos. 3. Máquinas de imagens – análises. Guilherme Maranhão, fotógrafo contemporâneo e experimentador, constrói suas próprias câmeras através de sucatas, utiliza-se de câmeras antigas, lentes e filmes fotográficos com fungos, scanners velhos, além de outras traquitanas para produzir imagens. Em sua pesquisa, o fotógrafo busca alterações no processo de formação das 73


imagens. Na contramão da nitidez, do foco total, da imagem perfeita, Maranhão busca imagens advindas das limitações e defeitos dos materiais escolhidos. Para ele, as máquinas de imagens estão a serviço do acaso, do ruído, do inesperado e o resultado é fruto de uma exploração curiosa. A precariedade permeia seu trabalho e o torna cada vez mais ficcional. Na obra denominada “Travessia”, vencedora do Prêmio Marc Ferrez Funarte 2014, Maranhão se valeu de filmes vencidos há mais de vinte anos, vindos da extinta União Soviética, e uma câmera analógica para acompanhá-lo numa viagem aos Estados Unidos. O resultado é a ação dos fungos em diálogo com a paisagem, o correr do tempo sobre a química e variações estéticas simbióticas. Nesta ficção, o artista reflexiona sobre as transformações e acasos da vida e demonstra que quanto mais domina suas técnicas, tanto mais se liberta do uso do “programa”. Ao contrário das regularidades vendidas pela indústria fotográfica, ele se vale de atmosferas caóticas para adentrar ao imaginário (figura 1).

Figura 1. Guilherme Maranhão, sem título, fotografia, 2011. http://www.guilhermemaranhao.art.br/

Outro fotógrafo brasileiro que merece destaque quando tratamos de máquinas de imagens é Ricardo Hantzschel. Profissional da fotografia, professor e idealizador do projeto chamado “Cidade Invertida”, é um entusiasta da técnica pinhole. Além das diversas 74


câmeras de lata que constrói, possui também um trailer que usa como uma enorme câmera obscura e, dentro dele montou um laboratório de revelação preto e branco. A ideia é desmistificar a imagem, demonstrando de maneira simples a sua formação ótica, emancipando o fotógrafo-participante a pensar de modo distinto as imagens que diariamente nos atinge. A experimentação tem caráter duplo neste trabalho, abrange a construção da máquina e a imagem-representação. Os fragmentos de realidade mesclam-se com o acaso numa abordagem intuitiva do porvir e o resultado é imprevisível. As máquinas de imagens artesanais de Hantzschel abrem-se ao inesperado e narram histórias contadas pela prata na sobreposição do tempo. (figura 2)

Figura 2. Ricardo Hantzschel, sem título, fotografia, 2000-2010. – http://www.fotopositivo.com.br/

“Tudo que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica: um depósito de lixo, um ovo, um quarto, um caracol, um despertador, uma casca de coco, um pimentão vermelho.” (DIETRICH, 2000, p. 144) Não existe reprodução mimética da realidade, a premissa é tergiversar a fotografia tradicional e construir representações ficcionais em diferentes manifestações estéticas. Essa técnica simples abre possibilidade para a criatividade e transmite ao espectador uma sensação de irrealidade, de fantasia. A possibilidade de interferência na imagem é palpável, basta movimentar a câmera ou o objeto que a imagem torna-se mutante em 75


razão do tempo de exposição, evidenciando uma sensação de prazerosa vagarosidade perante a ávida indústria fotográfica.

4. Conclusão As máquinas de imagens, com o processo de industrialização, tornaram-se aparatos comuns nas mãos da população. Com o conhecimento devido e a potencialidade ilimitada das máquinas, passaram de produtores de imagens à narradores ficcionais de suas histórias. A realidade torna-se mutante, ora mais próxima ao crível, difusora de informação, ora desafia os limites de nossa imaginação, sendo fatias do espaço-tempo capturadas pelas máquinas que falam por nós.

Referências

CASTELLO, José. Ficção e Realidade. http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ficcao-e-realidade/ (acessado em 04/09/2015). DIETRICH, Jochen. Câmera obscura: convidando o mundo a falar. In: SOUZA, Solange Jobim e (org). Mosaico: imagens do conhecimento. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1993. DUBOIS, Philippe. Máquinas de imagens: uma questão de linha geral. In: DUBOIS, Philippe Cinema, Video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. D’ONÓFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997. FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora. A fotografia depois da fotografia / Joan Fontcuberta: (tradução Maria Alzira Brum). São Paulo: Editora G. Gili, 2012. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.

Karina Alves de Sousa, integrante do Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, IARTE/UFU, é fotógrafa independente, Graduada em Fotografia pelo Senac – SP e advogada, Graduada em Direito pela Universidade Paulista – SP . 76


Monga, artifícios ficcionais e o espectador

João Paulo Machado Pena Franco Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO Este artigo trata da constatação que o uso de técnicas fotográficas, aparatos tecnológicos e programas de computador podem levar o espectador a perceber o ficcional nas imagens. Como ponto de partida analisa-se duas imagens fotojornalísticas nas quais são aplicadas o achatamento de planos como forma de alterar o “real” na imagem, observando-se que elas serão percebidas de modos diferentes quanto a crença ou não na sua “verdade”. Apresenta-se a pesquisa do autor, em processo, que se vale de recursos óticos e de máquinas de imagens para tirar partido das ideias de truque e ilusão operando com a autorrepresentação no campo do fantástico e da ficção. PALAVRAS-CHAVE Fotografia, narrativa, ficção, manipulação, imagem.

ABSTRACT This article deals with the finding that use of photographic techniques, technological devices and software can lead the viewer to perceive fictional images. As starting point, two photojournalistic images which are apllied plans flattening technique as a way to change “real” in image, are analyzed, noting that will be perceived the belief or not in it’s “truth” in different ways. It presents the author’s research, in process, which relies on optical features and image machines to take advantage of trick and illusion ideas, operating with selfrepresentation on the field of fantastic and fiction. KEYWORDS Photography, narrative, fiction, manipulation, image.

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Introdução São várias as tecnologias produtoras de imagens; Dubois nos fala sobre estas “máquinas de imagens”: [...], é evidente que toda imagem, mesmo a mais arcaica, requer uma tecnologia (de produção ao menos, e por vezes de recepção), pois pressupõe um gesto de fabricação de artefatos por meio de instrumentos, regras, e condições de eficácia, assim como de um saber. Todas essas “máquinas de imagens” pressupõem (ao menos) um dispositivo que institui uma esfera “tecnológica” necessária à constituição da imagem: uma arte do fazer que necessita, ao mesmo tempo, de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e de um funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo). (DUBOIS, 2011, p. 31)

Dubois destaca entre estas máquinas, numa ordem cronológica, a câmara escura, a fotografia, o cinema, o vídeo e imagens eletrônicas. É inegável a necessidade de algum tipo de tecnologia na produção de imagens (em especial nestas elencadas), mas até que ponto somos conscientes destas tecnologias e da influência que estas possuem sobre o indivíduo? As interpretações que fazemos delas? Neste artigo, será abordada, a princípio, a fotografia como base para relacionar em qual nível a esta surge como uma ficção e o quanto estamos a par disto; a seguir será analisada a criação de imagens por meio de uma máquina de imagens que denominei de “dispositivo monga”.

1. A fotografia e a narrativa A fotografia é um recorte espaço-temporal, ou seja, trata-se da captura de um momento escolhido pelo fotógrafo (pela decisão quanto a velocidade do obturador de sua câmera) e uma parte do espaço visível (limitado pela objetiva da máquina fotográfica e pelas escolhas composicionais do fotógrafo – o que fica dentro destes limites ou não). Sobre imagem e narração, nas palavras de Aumont (2013, p. 254): Como observamos várias vezes, a representação do espaço e do tempo na imagem são consideravelmente determinadas pelo fato de que, na maioria das vezes, esta representa um acontecimento também situado no espaço e no tempo. A imagem representativa costuma ser uma imagem narrativa, mesmo que o acontecimento contado seja de pouca amplitude.

A fotografia dá ao espectador a oportunidade de criar narrativas: o que acontece antes e depois do instante do clique? Entretanto, tais oportunidades tem limites que podem ser manipulados em maior ou menor grau, conforme as intenções do fotógrafo.

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A fotografia e os regimes de verdade É fato que a fotografia, em seus primórdios, era vista como um espelho do real. Dubois (2006, p. 27) discorre sobre esse conceito como “o primeiro discurso (e primário) sobre fotografia. [...] a fotografia [...] é considerada como a imitação mais perfeita da realidade”. Entretanto, o discurso e a produção da fotografia através dos tempos nos provam que a verdade fotográfica é algo que não existe. No entanto, essa discussão só fará sentido, se consideramos que toda fotografia se ata ao real ou à ideia que fazemos de mundo. A chamada gênese “automática” (DUBOIS, 2006, p.27) da imagem fotográfica recoloca invariavelmente a questão da “verdade” ou da “impressão de realidade”1 na imagem fotográfica, problema que ela não compartilha com a pintura e nem mesmo com o cinema. Foucault trata dos regimes de verdade, que são entendidos como as regras que cada sociedade recebe na construção daquilo que é real. Foucault, citado por Fontcuberta (2014, p. 11): A verdade é deste mundo; se produz nele graças a múltiplas coerções. E detém nele efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ da verdade: ou seja, os tipos de discurso que acolhe e faz funcionar como verdadeiros ou falsos, o modo como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimentos que se valorizam para obter a verdade; o estatuto dos que têm a tarefa de dizer o que funciona como verdadeiro. (grifo nosso)

Fontcuberta, artista que explora as ficções fotográficas como tema principal da sua obra, diz sobre a verdade fotográfica: Toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra o que nos inculcaram, contra o que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa. Contudo, o importante não é essa mentira inevitável, mas como o fotógrafo a utiliza, a que propósitos serve. O Importante em suma, é o controle exercido pelo fotógrafo para impor um sentido ético à sua mentira. O bom fotografo é o que mente bem a verdade (2010, p. 13).

Assim, nota-se a possibilidade do fotógrafo criar a sua verdade, a câmera fotográfica é o principal, mas não o único dispositivo do qual o indivíduo se vale para capturar a verdade que deseja, por mais mentirosa que ela seja.

1

“Algo de singular, que a diferencia de outros modos de representação, subsiste apesar de tudo na imagem fotográfica: um sentimento de realidade incontornável do qual não conseguimos nos livrar apesar da consciência de que todos os códigos que estão em jogo nela se combinam para a sua elaboração.” (DUBOIS, 2006, p.26). 79


Resta ao espectador, se deixar iludir ou tentar encontrar as verdadeiras intenções do fotógrafo; o que pode ser feito por meio do saber, da cultura de cada um destes que veem a imagem. Tal busca é conhecida, nas palavras de Barthes (1984, p. 48) como “studium”. São muitos os exemplos que comprovam essa ambiguidade documento e ficção no campo da fotografia. Um célebre exemplo é a fotografia (ganhadora do Prêmio Pulitzer em 1994) de Kevin Carter. O fotógrafo teve a sua história retratada no filme Repórteres de Guerra (2010), no qual ele e outros fotógrafos do denominado clube do bang bang, tinham como premissa retratar a guerra bem próximo aos acontecimentos. Trata-se de uma foto na qual temos a impressão que um abutre espera pacientemente que uma criança, vítima da guerra civil no Sudão, sucumba diante da fome (Fig. 1).

Figura 1. Kevin Carter, Vulture Stalking a Child, 1993, http://magnusmundi.com/a-historia-por-tras-de-umafotografia/

Esta fotografia foi vendida ao The New York Times e assim ganhou o mundo. Com o Pulitzer, começaram indagações sobre a sobrevivência da criança, se Kevin Carter a havia ajudado ou não. Começaram a considerá-lo como um segundo abutre a espreita da melhor foto. Tal fato foi de grande impacto para o fotógrafo e fez com que, em julho de 1994, cometesse o suicídio.

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A técnica fotográfica na construção da imagem No caso da fotografia Vulture Stalking a Child, o que as pessoas não sabiam, é que Kevin Carter utilizou-se de uma técnica fotográfica para aumentar a dramaticidade da cena. Conhecida como “achatamento de planos” este efeito é obtido pelo uso de uma teleobjetiva, no caso de Carter, uma tele de 180mm. Assim, o studium, ou seja, a percepção do espectador que utiliza seu saber e cultura para entender a imagem acaba por ficar prejudicada, vez que o desejo do fotógrafo foi criar uma dramaticidade que ele sabe possível por um elemento do dispositivo. Assim, o fotógrafo tem êxito na sua intenção de jogar com a verdade: a foto retrata algo que realmente aconteceu, mas não com tamanha intensidade, e a crença ingênua na verdade da fotografia produz as suas consequências. Não para testemunhar a fome na África, mas para atestar a falta de escrúpulos do fotógrafo. Outro exemplo, criado com o mesmo método é a fotografia ganhadora do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha, de Wilton de Souza (Figura 2).

Figura 2. Wilton de Souza, 2011, http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/01/foto-de-dilma-transpassada-porespada-vence-premio-internacional.html

Nesta, também se encontra a fabricação de uma ficção: a verdade criada pela imagem fotográfica nunca existiu, mas o jogo, aqui está em sabermos que estamos diante da ilusão provocada pela fotografia. Firmamos um acordo com o autor da foto de nos 81


deixarmos iludir pelo que vemos, sabemos, como nos espetáculos de mágica, que a serra não irá de fato dividir o corpo da mocinha em duas partes, mas aplaudimos a capacidade do mágico em enganar os nossos olhos. Essas imagens exemplificam que com o uso de um mesmo recurso técnico, dois modos diferentes de iludir, próprios da fotografia. Aquele que pode passar, para a maioria das pessoas por verdade e aquele que todos sabemos que se trata de uma ficção proposta pelo artista, e nos divertimos com isso.

2. A fotografia digital e a manipulação da imagem Sabemos que, além da possibilidade de construção de “realidades” inerente ao “programa do aparelho” (FLUSSER, 2002), a fotografia sempre foi passível de manipulações e portanto de subversão de seu caráter de impressão da realidade. Além da popularidade de programas computacionais como Photoshop,

a

popularização da fotografia digital e com a instalação das mesmas em smartphones, a fotografia e suas manipulações passaram a ser parte integrante da vida das pessoas. Fontcuberta nos diz que: [...] foi somente com o advento das tecnologias digitais que não apenas os especialistas, mas também os leigos, definitivamente o grande público, descobriram a inevitável manipulação que opera no processo de toda imagem fotográfica (2014, p. 12) .

É fato que a fotografia como conhecíamos há algumas décadas atrás não é mais a mesma. O domínio de equipamentos e aplicativos por grande parte da população é a prova disto. Já temos o mais sofisticado laboratório de imagens no bolso, então, sigo em minha pesquisa poética, na contramão do princípio da busca do mais novo recurso técnico. Para o artista, pode ser mais estimulante se voltar ao que pode ainda representar uma “brecha” para a criação dentro dos processos do passado e das velhas técnicas. Assim foi em duas das experiências que precedem esta pesquisa: (1) “ a máquina como espelho” reuniu uma série de autorretratos produzidos com uma máquina fotocopiadora. Vendo a fotocópia como uma forma rudimentar de fotografia, percebia o potencial de “desenhar com luz” e dessa maneira, realizar distorções do rosto que subvertiam a ideia de identidade. (2) “do lado de fora o retrato” foi uma experiência de criar uma câmara escura de grandes proporções em um espaço de exposições. Aqui também o retrato e a ideia de “truque” ou “mágica” era imprescindível; a ideia de ter o artista dentro e 82


fora do espaço expositivo trazia ao espectador uma inquietação gerada pela constante procura, e pelo desejo de decifrar o truque.

3. O dispositivo monga O “dispositivo monga” (Figura 3) é mais uma vez, a apropriação de um processo ótico, que remete ao fotográfico e que permite subverter a crença no “real” da imagem.

Figura 3. Morgana Moresco, Momento do processo de interseção identitária no dispositivo monga, 2015.

É inspirado no sistema de um espetáculo presente em alguns parques de diversão espalhados pelo país e pelo mundo. Aqui no Brasil, referida atração foi batizada de Monga: a mulher macaco2 (Figura 4).

2

No filme Lisbela e o Prisioneiro (2003), Leléu (Selton Mello) explica para Lisbela (Débora Falabella) o funcionamento da atração , que consiste em uma sala em formato de L e que, com um vidro em 45° e um jogo de luzes, a mistura de imagens é realizada. Esta cena pode ser vista no link: https://www.youtube.com/watch?v=esLDXJjJI-M 83


Figura 4. Fachada de um dos espetáculos da “Monga”. https://fuleragemdigital.wordpress.com/2012/01/15/surra-na-monga/

O espetáculo por sua vez, tem origem nas feiras de curiosidades e tem inspiração em uma pessoa que gerou grande polêmica, mesmo após sua morte em 1860. Seu nome era Julia Pastrana. Bondeson conta essa triste história (Figura 5):

Na década de 1850, ao ser exibida em público, nos Estados Unidos, Canadá e diversos países da Europa, e mesmo após a sua morte, em 1860, Julia Pastrana era uma das mais famosas curiosidades humanas. Nascida no México, de origem indígena, tinha extensas partes do corpo cobertas de pelos e uma mandíbula superdesenvolvida, o que lhe dava uma aparência simiesca. Morreu de parto, e seu corpo e o do bebê foram embalsamados por um professor russo. O Viúvo e exempresário continuou a exibir as múmias até falecer. A partir daí os despojos passaram pelas mãos de vários promotores de espetáculos de aberrações [...](2000, p. 260).

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Figura 5. Fotografia de Julia Pastrana. http://www.huffingtonpost.com/the-lady-aye/beauty-is-an-impedimentj_b_3541617.html

4. Dispositivo monga e a potência ficcional O trabalho dessa pesquisa em poética visual, ainda baseado no autorretrato, recorre a nada mais nada menos que uma réplica da caixa de criar imagens como as usadas no truque da Monga. A intenção de usá-la é unir as fisionomias de duas pessoas que entram no dispositivo, criando assim uma outra fisionomia, uma espécie de ficção fisionômica por meio de interseções identitárias (Figura 3). Tal imagem é efêmera, vez que não há dentro do dispositivo uma maneira de capturar o que surge desta fusão de indivíduos. Entre os dias 15 e 18 de abril de 2015, realizou-se uma ação no Museu Universitário de Arte – MunA, na qual as pessoas foram convidadas a participar do trabalho, entrando, juntamente com o artista, no dispositivo monga para que assim ocorressem as interseções/combinações identitárias. A quem não estava dentro do dispositivo, foi permitido assistir todo o processo. Nesta ocasião, foram realizadas tomadas videográficas3. Dentro da caixa e sem poder ver a reação das pessoas presentes, era possível apenas ouvir o que comentavam; espanto, risos, confusão foram algumas das reações percebidas pela voz dos espectadores. Uma criança se espantou ao ver a mãe com pelos no rosto; alguns ficavam tentando entender como aquela caixa estranha fazia aquilo. 3

Um dos vídeos pode ser visto no link: https://www.youtube.com/watch?v=1l7gmNAUpMo 85


Importante salientar que vários dos espectadores possuíam câmeras em seus celulares e até mesmo registraram a ação - mesmo sendo possuidores de “mini caixas de criar imagens” e não serem ingênuos quanto à capacidade ficcional da fotografia, se deslumbravam com aquela caixa que, como um photoshop rudimentar, era capaz de unir rostos em camadas sobrepostas. Aquilo que poderia ser facilmente feito com uma câmera comum, ou por um aplicativo de celular, acontecia diante deles e se desfazia; era a construção de uma imagem ao vivo por meio de um aparato que não se assemelha a algo construído para arquitetar uma imagem.

5. Conclusão A imagem fotográfica, diante de um espectador, é uma narrativa que se abre como um leque de opções entre o antes e o depois do instante fotografado. Ela congela uma história que pode possuir a força para continuar impactando o imaginário de seu observador. Isto da mesma maneira ocorre quanto a especulações sobre os espaços que não fazem parte da imagem - aqueles espaços que não entraram numa escolha composicional do fotógrafo – o que há além do corte fotográfico, como vimos no caso da fotografia de Kevin Carter. O espectador pode ser levado a acreditar naquilo que vê, mas que na verdade não existe ou foi alterado em algum nível. Os ditos regimes de verdade, podem ser vistos na fotografia como regras na construção do real, mas mesmo tendo acesso a estes artifícios, gostamos de nos deixar levar pelas criações ilusórias que nos oferecem os artistas, como na fotografia de Wilton de Souza . Com o dispositivo monga, foi possível vislumbrar essa receptividade e fascínio pelos truques das imagens sobre o espectador. Consciente dos artifícios das máquinas de imagens mais comuns (smartphones, câmeras fotográficas, de vídeo etc.), diante do “dispositivo monga”, o espectador se diverte e se sensibiliza com a mágica que acontece diante de seus olhos. E tal fato não ocorre pela novidade da coisa mas pela maneira como foi construída e apresentada a ação: sabe-se que aquilo não é real, mas a imagem que surge se oferece como ficção e ao mesmo tempo desvela o enigma. Uma ficção que emerge de algo que parece real; remetendo às narrativas ficcionais sobre a tentativa de “fusão de indivíduos”; às transformações monstruosas e às criaturas da literatura fantástica e dos filmes de terror.

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REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem;

Tradução de Estela dos Santos Abreu. Campinas:

Papirus, 16ª ed., 2013. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre fotografia; Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BONDESON, Jan. Galeria de curiosidades médicas; Tradução de Bruno Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 2000. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard; Tradução de Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify, 2ª ed., 2011. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios; Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 9ª ed., 2006. FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia; tradução de Maria Alzira Brum. São Paulo: G. Gilli, 2012. FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade; Tradução de Maria Alzira Brum Lemos. Barcelona: G. Gilli. 2010. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Lisbela e o Prisioneiro. Direção: Guel Arraes. Brasil: Natasha Filmes; Estúdio Mega; Globo Filmes. 2003. Repórteres de Guerra. Direção: Steven Silver. África do Sul: Foundry Films; The Harold Greenberg Fund; Instinctive Film; Out of Africa Entertainment, 2010.

João Paulo Machado Pena Franco, mestrando em Artes Visuais na Universidade Federal de Uberlândia, graduado em Direito e Artes Plásticas também pela Universidade Federal de Uberlândia, atua como fotógrafo e videomaker freelance. Produz trabalhos artísticos que envolvem os temas da fotografia e suas técnicas, o retrato e o autorretrato fotográficos e procedimentos ópticos que remontam a fotografia e a ilusão de óptica, na cidade de Uberlândia, Minas Gerais. 87


Técnica e poética em Além do Grande Vidro

Paulo Mattos Angerami Grupo de Pesquisa em Impressões Fotográficas, Escola de Comunicação e Artes da USP

RESUMO "narrativas da luz" é uma pesquisa que investiga a possibilidade de fotografar o tempo. Para entender como é possível fotografar aquilo que não é matéria bruta, que não reflete nem tem luz própria, recorre-se às origens da fotografia para encontrar o seu fundamento; uma possível definição. A inscrição do tempo na imagem fotográfica não é novidade e analisaremos 3 imagens onde isso se realiza de maneiras diversas estabelecendo, ao final, relações com o seu fundamento e, também com imagens da série que dá nome à pesquisa. Como a investigação é sobretudo de ordem prática, vamos analisar algumas questões técnicas envolvidas na construção das fotografias desta série. PALAVRAS-CHAVE fotografia, luz, tempo, técnica, poética

ABSTRACT "narratives of light" is a research investigating the possibility of making a time photography. To understand how it is possible to photograph what is not raw material, what does not reflect nor has its own light, we refer to the origins of photography to find its foundation; a possible definition. The inscription of time in the photographic image is nothing new and we will analyze 3 images where this is done in various ways by establishing, at the end, relations with its foundation and also with images of the series that gives name to this research. As the investigation is mainly practical, we will review some technical issues involved in the construction of the images in this series. KEYWORDS photography, light, time, technique, poetics

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A imagem, despojada das ideias que a acompanham, e considerada em sua natureza última, é tão somente uma sucessão variada de intensas luzes lançadas sobre uma parte do papel e de profundas sombras lançadas sobre outra. Agora, a Luz, onde ela existe, pode agir e, em certas circunstâncias, essa ação causa mudanças nos corpos materiais. Suponha, então, que uma tal ação poderia ser exercida sobre o papel; e suponha que o papel poderia ser visivelmente alterado por esta ação. Nesse caso, certamente deve resultar algum efeito que no geral se assemelha à causa que o produziu: assim, a variada cena de luz e sombra pode deixar para trás sua imagem ou impressão, forte ou fraca sobre diferentes partes do papel segundo a maior ou menor intensidade da luz que lá agiu. (tradução nossa) 1

Derivada ideal Na epígrafe, acompanhamos parte da explicação de William Henry Fox Talbot (1800 - 1877) sobre como lhe veio a ideia, em 1824, de desenvolver um processo de produção de imagens baseada num fenômeno da natureza e, supostamente, livre da mão humana (TALBOT, 1968): se a imagem projetada sobre o papel da câmera obscura é um conjunto organizado de variadas intensidades luminosas e, a luz tem a capacidade de provocar alterações em algumas substâncias, então, utilizando uma substância adequada será possível fixar a imagem projetada. Talbot nos descreve, assim, o princípio básico da fotografia: o registro das várias intensidades luminosas de uma cena. Vilém Flusser (1920 - 1991), ao falar de fotografia, diferencia entre cena e evento: o evento tem uma duração e a cena não; a fotografia registra cenas e não evento (FLUSSER, 1998). Essa diferenciação é compreensível quando relacionamos a fotografia a uma derivada do tempo, pois dessa maneira a dimensão temporal é eliminada. Uma ideia muito vinculada à fotografia é de ser um instantâneo ou, essa derivada. Podemos não perceber, mas a fotografia nunca é uma frotagem ou, um decalque de um recorte do mundo; nunca é um instantâneo de fato. É sempre uma imagem construída dentro de um intervalo de tempo (TRIGO, 1998, p.96-97). O instantâneo, para algumas pessoas, pode ser o ideal da fotografia, porém, o que é intrínseco à fotografia é ser uma imagem produzida ao longo de uma duração.

1

No original: The picture,divested of the ideas which accompany it , and considered in its ultimate nature, is but a succession of variety of stronger lights thrown upon one part of the paper, and of deeper shadows on another. Now Light, where it exists, can exert an action, and, in certain circumstances, does exert one sufficient to cause changes in material bodies. Suppose, then, such an action could be exerted on the paper; and suppose the paper could be visibly changed by it. In that case surely some effect must result having a general sesmblance to the cause which produced it: so that the variegated scene of light and shade might leave its image or impression behind, stronger or weaker on different parts of the paper according to the strength or weakness of the light which had acted there. (TALBOT, 1968). 89


A duração A questão teórica e poética que norteia o projeto "narrativas da luz" está relacionada à possibilidade de fotografar o tempo: é possível fotografar o tempo? Como vimos acima, a característica intrínseca da fotografia é ser construída ao longo de uma duração e, assim, fotografar o tempo é, também, uma possibilidade intrínseca da fotografia. Essa característica temporal é mais perceptível quando são utilizados longos tempos de exposição, como podemos apreciar nas três imagens a seguir. Utilizando uma câmera fixa, possivelmente num tripé, Anton Giulio Bragaglia (1890 - 1960), integrante do movimento futurista Italiano, produziu, entre outras, a fotografia Cambiando di postura, de 1911 (Figura 1). Nessa fotografia aparece a imagem de um sujeito, mas não propriamente um retrato; não um retrato posado, convencional. O sujeito aparece fantasmagórico, translúcido, evanescente, diluído nas luzes que se espalham pelo fundo negro. Um sujeito, talvez, num processo de desaparecimento. O importante para a construção desta imagem é o deslocamento realizado pelo corpo. Um deslocamento que dura aproximadamente 1 segundo, e que se inscreve na imagem na forma de um rastro de luz.

Figura 1. Anton Giulio Bragaglia, Cambiando di postura, 1911, (LISTA, 2001).

Muito diferente de Bragaglia, um ano depois, enquanto fotografava uma corrida de automóveis, Jacques-Henri Lartigue (1894 - 1986), criou uma inusitada e emblemática representação do tempo. Como dissemos acima, a fotografia é sempre produzida durante 90


um intervalo de tempo e, quando esse intervalo é suficientemente grande o tempo pode se inscrever na imagem. O inusitado desta imagem não é tanto a sua composição, mas o fato de conseguir evidenciar uma fração tão curta de tempo. A fotografia Grand Prix de l'A.C.F., Automobile Delage, de 1912, (Figura 2) foi produzida com um tempo de exposição de 1/100 de segundo, talvez menor. Mas esse tempo, para um carro à velocidade de 120 ou 130 km/h, é bem longo.

Figura 2. Jacques-Henri Lartigue, Grand Prix de l'A.C.F., Automobile Delage, 1912, (LARTIGUE, 1992).

Visualmente o que chama atenção nesta imagem é que a roda do carro aparece alongada segundo a diagonal ascendente (da esquerda para a direita), e as pessoas na paisagem aparecem alongadas segundo a diagonal descendente. Esse efeito está relacionado com o tipo de obturador da câmera que Lartigue utilizou e com o fato dele ter tentado seguir o movimento do carro. O obturador da câmera é de plano focal, isto é, fica quase encostado na película. Esse tipo de obturador utiliza duas cortinas, uma que abre e outra que fecha o quadro da imagem (TRIGO, 1998, p.96-97). Quando o tempo de exposição é longo, a primeira cortina abre todo o quadro e, depois, a outra fecha. Quando o tempo é curto, a segunda começa a fechar o quadro antes que a primeira alcance o fim do seu curso, ou seja, a exposição da película sensível é feita por varredura, isto é, pelo deslocamento de uma estreita janela sobre o quadro. Observando a fotografia concluímos que na câmera utilizada o obturador realiza um movimento vertical de cima para baixo, pois o que se imprime primeiro na 91


imagem é o que está na parte inferior da cena, e o que se imprime por último é o que está na parte superior (a roda do carro é uma circunferência, mas o eixo está deslocado para a direita, na direção do movimento do carro e, portanto, o eixo se imprimiu na película depois da superfície da roda que tem contato com o chão). Numa fotografia de corrida é normal tentar seguir o carro de modo a mantê-lo sempre na mesma posição dentro do visor da câmera. Desse modo o carro fica bem definido e, a paisagem, borrada na direção do movimento do carro. Se foi proposital, ou mero acaso, não sei, mas Lartigue realizou um movimento que corresponde aproximadamente à metade da velocidade do carro e, por isso, o carro aparece com uma inclinação e o público com uma inclinação oposta. Um uso mais radical de longos tempos de exposição aparece na série "Theaters" de Hiroshi Sugimoto (1948 - ). Essa série fotográfica é composta por interiores de cine teatros da América do Norte que fotografados com um tempo de exposição que equivale ou se aproxima - à duração da película que está sendo exibida. Assim como aparece na fotografia U. A. Walker, New York, de 1978, (Figura 3) a longa exposição faz com que a luz de toda a projeção se acumule sobre a tela, tornando esta numa grande e suave fonte de luz que ilumina o ambiente interior.

Figura 3. Hiroshi Sugimoto, U. A. Walker, New York, 1978, (FRIED, 2010).

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Reconfigurando a sucessão Quando, em sua explicação Talbot nos fala da "variada sucessão de intensas luzes lançadas sobre uma parte do papel e de profundas sombras lançadas sobre outra" podemos supor que esteja considerando uma cena, a cena luminosa projetada sobre a folha de papel sobre a qual passeia o olhar, que vai encontrando em seu caminho essa sucessão de luzes e sombras que formam a imagem. Porém, apesar dele falar em cena, sabemos que a fotografia se realiza ao longo de um intervalo de tempo, é o recorte de um evento, uma duração. Assim, essa sucessão de luzes vai ocorrer também ao longo dessa duração e, caso a configuração de luzes e sombras assuma novas relações espaciais ao longo dessa duração, então, talvez tenhamos como resultado uma representação da passagem do tempo. Assim

acontece nas três fotografias acima analisadas.

Na primeira,

a

reconfiguração espacial das luzes e sombras ao longo do tempo ocorre por conta do deslocamento espacial do corpo e se imprime na forma de rastros. Na segunda, a complexidade é um pouco maior, pois são três os deslocamentos: dois numa mesma direção, mas com velocidades diferentes, e outro, na perpendicular. Sem esse movimento perpendicular da estreita janela do obturador a imagem seria muito semelhante à anterior: rastros na direção do movimento. Esse movimento da janela do obturador impõe um outro tipo de reconfiguração de luz e sombra que vai se sobrepor à reconfiguração dada pelo movimento dos corpos resultando num tempo que se inscreve na forma de uma deformação da matéria bruta. Na última, a situação é um pouco menos óbvia, pois não tem rastro nem deformação, mas ainda tem uma reconfiguração de luz e sombra ao longo do tempo de exposição, uma reconfiguração que acontece 24 vezes por segundo, a cada frame do filme. A pesquisa "narrativas da luz" tem a representação fotográfica do tempo como problemática central; um problema tanto técnico quanto poético; e vai explorar um modo diverso e singular de representar o tempo na fotografia. Tal qual as imagens acima, o tempo se inscreve pela variação das luzes durante a exposição, porém diverso daquelas, essas variações são registradas ao longo do espaço. O espaço físico, arquitetônico, é constante, repetitivo, como se fossem vários panoramas colados em sequência, contudo, esse espaço é sempre outro porque é outra a luz que o ilumina.

360 graus e além Em relação ao tempo de exposição utilizado por Sugimoto, o tempo utilizado por Bragaglia e por Lartigue é muito pequeno, porém em relação aos tempos utilizados nas 93


fotografias da série "narrativas da luz", o tempo de Sugimoto é curto. Nesta série os tempos são da ordem de dias, em geral alguns dias ou, vários dias. O processo de construção das imagens desta série se aproxima do recurso utilizado por Lartigue: um processo de varredura. Porém, diferente deste, a varredura não é contínua e, sim, em passos distintos; não é analógico, mas digital. É um processo que guarda muita semelhança com o processo de desenho e construção dos panoramas dos séculos XVIII e XIX. Para se obter um panorama, o ponto de vista do desenhista deve se manter fixo no espaço enquanto o ângulo de visão deve girar, sobre um plano horizontal, em torno desse ponto. A rotação em torno desse ponto não é contínua, mas em passos e, a cada passo o desenhista esboça uma estreita faixa vertical da paisagem. Depois de passar o esboço para a estrutura final do panorama, durante o processo de pintura, essas faixas vão desaparecer e o panorama assume a aparência de uma imagem contínua em 360 graus (Oettermann, 1997). O desaparecimento das faixas verticais, ou melhor, da distinção entre um faixa e suas vizinhas contíguas também ocorre nas imagens da série "narrativas ...", porém estas não são panoramas que se fecham num giro completo; são hiper panoramas; são imagens que representam muito além dos 360 graus. A maioria dos panoramas pintados do século XVIII e XIX representam paisagens, outros representam eventos históricos, mas todos se assemelham a um instantâneo. Uma das primeiras imagens da série "narrativas ..." foi produzida no prédio da Fundação Bienal de São Paulo (Figura 4) e é uma imagem que considero experimental, pois foi concebida como um estudo do espaço, e sua exposição foi de 1h 36m. Dentro da série, essa imagem da Bienal pode ser considerada como um instantâneo e se assemelha muito, em termos de variações de luminosidade, aos panoramas. Apesar do seu tempo de exposição se aproximar dos tempos utilizados por Sugimoto na série dos cine teatros, e ser muito maior que os tempo utilizados por Lartigue e Bragaglia, a passagem do tempo é quase imperceptível.

Figura 4. Paulo Angerami, Bienal, 2011, acervo do artista.

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Desenrolando a paisagem Na série "narrativas da luz" não é simplesmente o longo tempo de exposição que inscreve a passagem do tempo na imagem. Em nossas atividades diárias um fenômeno que nos oferece a possibilidade de perceber a passagem do tempo é a variação da luz, por exemplo, entre noite e dia ou, situações mais sutis, como quando começa a entardecer e a cor da luz natural vai gradativamente se deslocando para um alaranjado, e também, situações bruscas e violentas, como o ascender ou apagar de uma luz artificial. São essas as reconfigurações de luz, variações tanto da intensidade quanto da cor, que inscrevem a passagem do tempo nas fotografias desta série. Contudo, essas reconfigurações ao longo do tempo não se imprimem simplesmente por sobreposição ou rastro, elas são desenroladas continuamente sobre a matéria bruta, sobre o espaço arquitetônico, sobre a paisagem. A fotografia "Além do grande vidro" (Figura 5) foi seccionada para facilitar a análise, mas é uma imagem contínua onde o tempo se desenrola da direita para a esquerda e, na figura abaixo, de cima para baixo.

Figura 5. Paulo Angerami, Além do grande vidro, 2015, acervo do artista.

Os modos de reconfiguração da luz que resultam em rastros e deformações da matéria bruta vão se fazer presentes nas imagens desta série, porém não como tônica da imagem, mas como situações particulares. Temperadas com um leve borrão para eliminar as transições entre as estreitas faixas verticais que compõem as imagens desta série, a característica destas está mais próxima das sobreposições de Sugimoto, mas ainda assim, guardam uma grande distância de seus cine teatros. A fotografia "Além do grande vidro", que é a mais recente da série das "narrativas ...", foi feita no Centro Cultural São Paulo. Como a câmera utilizada por Lartigue, que tem uma estreita janela que se desloca sobre o quadro da película, isto é, faz uma varredura vertical sobre o quadro, para produzir esta fotografia a câmera fez uma varredura horizontal, em torno de um ponto fixo, realizando pouco mais de 27 voltas ao longo de 13 dias e meio totalizando 52.750 imagens. Para a construção da imagem final, depois de 95


montar cada uma das estreitas faixas verticais2 a partir da sobreposição de 5 imagens3 aproximação com Sugimoto - as faixas contíguas passam por uma fusão - aproximação com Bragaglia - para suavizar as transições entre uma faixa e outra. Caso seja impressa na ampliação máxima, sem perda de definição, suas dimensões serão 33 cm de altura por 75 metros de extensão. Como foi dito anteriormente, o espaço arquitetônico se repete, mas nunca é o mesmo, pois a luz é outra. A programação do dispositivo foi realizada de modo a dessincronizar a passagem do sol e a rotação da câmera para que a luz e sombra circulem pela paisagem ou, que elas se desloquem ao longo da imagem; o olhar da câmera nunca passa por um mesmo ponto da paisagem no mesmo horário do dia. Se a relação entre o horário do dia e o olhar da câmera é desarmônica, por outro lado, a relação entre o horário do dia e a velocidade de rotação da câmera é harmônica. A velocidade não é constante, é maior no amanhecer e no entardecer e, mais lenta ao meio dia e à meia noite. O tempo que se inscreve na imagem é variável, não homogêneo, não corresponde ao tempo do relógio. O tempo se espreguiça pela manhã e se alonga ao fim do dia; ele se encolhe quando a luz ofusca a vista e se retrai quando a escuridão silencia. Essa cor saturada desse instante mágico da passagem entre dia e noite, noite e dia, nos escapa por entre os dedos, foge do nosso olhar. E esse recurso de programação, para alongar e retrair o tempo, foi adotado para jogar mais dessa rara tinta, tinta mágica, sobre a paisagem que se desenrola pela fotografia.

2

Uma volta completa é composta por 1.922,5 fotografias individuais. O número de imagens sobrepostas para a montagem de cada faixa vertical pode variar segundo a programação do dispositivo. 96 3


Referências

FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D'Água, 1998. FRIED, Michael. Why photography matters as art as never before. 3a reimpressão. Londres: Yale, 2010. LARTIGUE, Jacques-Henri. Coleção Photo Poche. Milão: Centre Nationale de la Photographie, 1992. LISTA, Giovanni. Cinema e fotografia futurista. Milão: Skira, 2001. OETTERMANN, Stephan. The panoram: history of mass medium. Tradução de Deborah Lucas Schneider. Nova Iorque: Zone Books, 1997. TALBOT, William Henry Fox. The pencil of nature. Fax símile da 1ª edição publicada em Londres entre 1844 e 1846 em 6 fascículos. Nova Iorque: Da Capo, 1968. TRIGO, Thales. Equipamento fotográfico: teoria e prática. São Paulo: SENAC, 1998.

Paulo Mattos Angerami. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, cursou matemática no IME/USP e, antes de terminar ingressou no curso de Artes Plásticas na ECA/USP. Atualmente utiliza dispositivos digitais construindo seu próprio hardware e software num processo de tensionar as relações entre arte, ciência e realidade; é doutorando em Artes Visuais na ECA/USP e Docente do Curso de Artes Visuais do IARTE -

Instituto

de

Artes

da

UFU

-

Universidade 97

Federal

de

Uberlândia.


Caixa de sapato, um manifesto poético afetivo do cotidiano

Andrea Nestrea fotógrafa independente

RESUMO O texto apresenta o projeto Caixa de sapato, do coletivo Cia de Foto e busca problematizar algumas questões como autoria, documentário da vida cotidiana e processo criativo. PALAVRAS-CHAVE Documentário, Cia de foto, caixa de sapato, cotidiano.

ABSTRACT The text presents the project "shoe box", by collective Cia de Foto and aims to problematize some issues as authorship, everyday life documentary and creative process. KEYWORDS Documentary, “Cia de Foto”, shoe box, daily routine.

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1. Introdução Longe de querer problematizar os conceitos de autoria e processo criativo na fotografia contemporânea brasileira, essa exposição apenas pretende apresentar o trabalho “Caixa de sapato”, produzido entre os anos de 2005 e 2013 pelo coletivo fotográfico Cia de Foto, de São Paulo. A intenção do texto é mostrar alguns dos passos do projeto e apontar algumas questões que, a partir dele, somos levados a levantar e discutir. Para pensar o trabalho ‘Caixa de sapato’, somos levados a entender que o processo criativo e, principalmente o processo criativo de um grupo, de um coletivo, passa por uma “rede de criações” (Salles, 2008). Queiroga e Valle aplicam o conceito de “rede de criações” ao processo criativo da fotografia e afirmam: “o processo de criação passa por uma lógica de rede que é formada por referências, pesquisa e estudo, mas que também tem seus “nós” na forma de conversas com amigos, críticas, sonhos, acaso e erros”. Assim, objetividade, subjetividade e imaginário fornecem o tecido dessa rede de criação onde os processos individuais e coletivos se mesclam de forma a dar origem ao processo criativo que demanda trabalho, escolhas, inclusões e exclusões de ideias a todo o momento. Para Ronaldo Entler, os coletivos são lugares de experimentação de linguagens, e “não existe um discurso uniforme que dê conta de tudo o que hoje pode ser chamado de coletivo”, justamente por possuírem em suas estruturas a criação complexa que leva ao gesto de assumirem uma assinatura coletiva. Mas, ainda de acordo com Entler, “é preferível pensar os coletivos pelo que eles afirmam e constroem de novo, não pelo que negam”. A Cia de Foto surgiu em 2003, formada por quatro integrantes: Pio Figueiroa, Rafael Jacinto, João Kehl e Carol Lopes. No auge de suas atividades, chegou a ter nove membros. O coletivo inovou ao abandonar a assinatura individual de quem registrou a imagem e creditar todos os trabalhos ao coletivo. Chegaram a recusar participação na coleção Pirelli-Masp pela exigência que a autoria das imagens fosse dada a uma pessoa física. A coleção Pirelli-Masp reconheceu a importância do trabalho do coletivo e abriu um precedente, incluindo fotos com assinatura da Cia de Foto em seu acervo sobre a cidade de são Paulo. As imagens da Cia de Foto sempre foram dotadas de proposta estética marcante e facilmente identificável, de maneira quase imediata. A assinatura autoral dada ao coletivo em sua produção era dotada de uma força estética potente e inovadora baseada em uma pós-produção apurada e com pesado tratamento das imagens no programa Photoshop. E justamente dentro dessa proposta inovadora de linguagem fotográfica desperta a atenção o projeto intitulado “Caixa de sapato”. A proposta era simples: motivados pela 99


vontade de romper com a práxis do mercado, que treina o fotógrafo1 apenas para assuntos distantes da sua vida, e geralmente atrelados à ideia de forte impacto social, o coletivo começou a retratar o seu cotidiano, suas atividades, a vida em comum. A Cia de foto começou a se autorretratar.

2. Abrindo a caixa Pio Figueiroa, membro do coletivo, disse em uma entrevista que o Caixa de sapato, no momento inicial, era carinhosamente apelidado de “Umbigo”. Segundo ele, no HD da Cia de foto, todo o material produzido a partir da vida do coletivo, as imagens do dia a dia comum, as reuniões, os encontros, os passeios, as crianças, os amores, tudo isso era depositado nessa pasta chamada Umbigo. As imagens chegaram a ser mostradas publicamente com esse título. Ocorre que o coletivo foi duramente criticado por expor fotos de seu cotidiano, e intitular esse trabalho de Umbigo. A ideia de autorretrato de um coletivo sofreu desaprovação em blogs, artigos de jornal e até em apresentações públicas do projeto. O autorretrato seria a afirmação da fotografia como algo individual e, contraditoriamente, estava presente num trabalho chamado Umbigo, de coletivo que se propõe a negar a autoria individual. Somente depois desse debate o projeto foi finalmente batizado de “caixa de sapato”.

Figura 2. Cia de Foto – Fonte: https://www.flickr.com/photos/ciadefoto/.

1

Falo aqui do fotógrafo, mas deve-se estender fotógrafo aqui como o profissional que se dedica à fotografia para a comunicação. Seja o jornalismo, a documentação ou mesmo a publicidade. 100


Uma caixa de Sapato é um veículo, por assim dizer, universal da fotografia. Quantas vezes não vimos alguém abrir uma caixa de sapatos com o acervo de uma família? E ali, na caixa de sapato, dentro desse lugar, não importa quem fez a foto. Ninguém que tenha uma caixa de sapato com fotografias da família se preocupa em saber quem fez essa ou aquela fotografia. O que interessa são as histórias que se expressam de cada imagem e do conjunto. Abrir e vasculhar uma caixa de sapato recheada de fotografias é transformar o tempo em histórias, e são muitas as histórias que podem ser contadas a partir de cada fotografia. O projeto Caixa de sapato, já com esse nome, começou, então, como uma série de fotografias que o coletivo postava, semanalmente, no site de compartilhamento Flickr, https://www.flickr.com/photos/ciadefoto/. As fotos no Flickr compreendem um período de fevereiro de 2005 até outubro de 2013. Hoje, apesar do fim do coletivo, as imagens ainda estão lá. O site e o blog da Cia de Foto foram desativados, mas o Flickr com o Caixa de sapato ainda está ativo, com milhares de visualizações e comentários. Há fotos com mais de 20 mil e dezenas de comentários.

Figura 2. Cia de Foto – Fonte: imagem extraída do aplicativo Flickr , https://www.flickr.com/photos/ciadefoto/.

Num segundo momento, quando, em 2008, foram convidados pelo MAM para expor um trabalho inédito, foi produzido um vídeo com imagens inéditas do “Caixa de sapato”. A proposta do vídeo, editado por Alex Carvalho, parceiro da Cia, era registrar e mostrar um dia na vida do coletivo. Segundo Pio Figueiroa, foi escolhido um feriado, um dia de 101


eleições, foram votar, fizeram almoço, passaram o dia inteiro juntos. O resultado da experiência é o vídeo que será mostrado logo após o término dessa apresentação. Vídeo que deu uma nova energia e outro alcance ao projeto. Agora, em 2015, o “Caixa de sapato” se desdobra em uma publicação. Acaba de sair o “Caixa de sapato”, em formado livro, lançado em julho com fotos realizadas durante os dez anos de existência do grupo. Na caixa, temos quatro cadernos editados a partir de cores diferentes. Em todas as etapas de crescimento do projeto “Caixa de sapato”, temos todos os ingredientes que fizeram da Cia de Foto algo raro na recente história da fotografia brasileira e dos coletivos, principalmente: uma narrativa cinematográfica, o tema da vida íntima e cotidiana e uma forte pós-produção das imagens. Ronaldo Entler, que mais de uma vez refletiu sobre o trabalho do coletivo, por email me escreveu que: Cia de Foto apresenta Caixa de Sapato como um work in progress, não apenas porque é um trabalho “definitivamente inacabado”, para usar uma expressão de Duchamp, mas porque seu momento de origem é também incerto. Ele começa num tempo indefinido que é o da memória, e tem formatos tão variáveis quanto as combinações que se pode obter quando se abre uma caixa repleta de imagens. Dentre todas as narrativas desenvolvidas pela Cia de Foto, esta é certamente a mais subjetiva. É o momento de compartilhar o lugar onde foram testadas as possibilidades de convivência de seus integrantes, a vida cotidiana, e também aquilo de que são feitos os nós que os mantém ligados, a intimidade e o afeto.

Se “Caixa de sapato” não tem começo, podemos dizer também que não deve ter fim. O gesto de retratar a vida, de autorretratar-se em seu próprio mundo, leva a uma infinita experimentação. Caixa de sapato jamais poderia ter títulos como “o olhar de” ou a “visão de”, tão desgastados em livros e exposições de fotografias. “Caixa de sapato” é um conjunto de olhares, de corpos, de mentes, um mundo infinito composto por outros mundos também infinitos e distintos. Lembrando uma frase de Entler, “é abusivo associar a autoria coletiva ao esfacelamento das identidades”. É possível pensar longe disso, não se trata de negar individualidades, pelo contrário, sem identidades marcadas e detentoras de seus próprios mundos não seria possível conexões. E, justamente, é aí que mora a potência e a força experimental do projeto. O que importa, mais que tudo, é esgarçar os limites da fotografia.

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Figura 3. Cia de Foto – Fonte: imagem extraída do aplicativo Flickr , https://www.flickr.com/photos/ciadefoto/.

3. Conclusão “Caixa de sapato” é uma espécie de manifesto poético, afetivo e íntimo que se instala contra a lógica do mercado que faz do fotógrafo, como disse Susan Sontag, “turistas de classes sociais”, pois levar a pesquisa fotográfica ao seu limite pesquisando não outras estranhas ‘realidades pautadas’ pelo mercado como favelas, ruas, a violência, a guerra; mas sim a própria realidade, o seu entorno, os encontros, os afetos, a intimidade de seu grupo, as redes que construímos é experimentar algo bem perto da total liberdade de criação. A fotografia está em todos os lugares, podemos fotografar em qualquer lugar se o que importa, na verdade, é a própria fotografia. O trabalho da Cia traz uma experiência que passa pela própria externalização do ideário do coletivo fotográfico, onde as identidades individuais são diluídas em prol de um resultado plural, onde a afetividade é um importante ingrediente dessa aglutinação, em que a produção de conteúdo não se dá num espaço – geográfico e temporal – estanque. (QUEIROGA; VALLE, 2011, p.05)

Há ali certa suspensão do tempo, pois tudo está inserido no tempo da memória, lugar de todos os tempos. Documentário subjetivo, íntimo, poético, prazeroso, imaginado e com total liberdade de expressão que oferece um mergulho radical no tema. Nada ali parece ser um instantâneo, há um controle rigoroso de luz, composição e cores que são 103


posteriormente tratados na finalização da imagem reforçando o lugar poético que a imagem ocupa na decupagem da vida cotidiana. “Caixa de sapato” afirma, através de sua narrativa autobiográfica, que o real pode ser criado por muitos, pode ser múltiplo, assumido por um coletivo cuja autoria comum coloca em xeque o lugar do autor dentro da arte contemporânea. E, mais que isso, pelo tom subjetivo e pela poesia que exala, “Caixa de sapato” nos mostra que fotografar o próprio entorno, nosso cotidiano banal, pode ser suficiente para pensar e ressignificar a própria intenção do ato fotográfico.

Referências

ENTLER, Ronaldo. Os coletivos e o redimensionamento da autoria fotográfica. Disponível em http://www.studium.iar.unicamp.br/32/3.html, último acesso em 01/09/2015. QUEIROGA, Eduardo; VALLE, Isabella. O irreversível, o inacabável e a rede na criação fotográfica. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE , 2011. SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2a. Edição. São Paulo: Horizonte, 2008. Entrevista por e-mail com Ronaldo Entler. Entrevista por e-mail com Pio Figueiroa. Site Flickr. https://www.flickr.com/photos/ciadefoto/. Site Vimeo https://vimeo.com/channels/galeriaciadefoto.

Andrea Nestrea (Andrea Cristina Silva) é mineira de Uberlândia. Conclui bacharelado em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 2001 e possui mestrado em Memória Social pela UNIRIO, defendido em 2009, onde estudou as narrativas visuais de Marcel Gautherot durante a construção de Brasília. É fotógrafa independente com pesquisa na área de fotografia de teatro, é parecerista do MINC e atualmente se dedica à pesquisa para o projeto de doutorado na Escola de Belas Artes da UFRJ. 104


registro, nada, banal: fotografia e cotidiano

Cláudia Maria França da Silva Grupo de Pesquisa Estratégias Expositivas do Desenho em Arte Contemporânea – UNICAMP, Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

RESUMO Esta proposta textual busca fornecer reflexões acerca do cotidiano, aqui entendido como o tecido formado pelo sujeito, suas práticas costumeiras e o lugar onde essas práticas se dão. O cotidiano é consubstanciado por ações repetitivas, hábitos, lugares-comuns e ausências. Dentre esse vasto universo, destaca-se aqui a prática fotográfica, em meio a percursos pela cidade ou no interior do espaço doméstico. Entre tantas reiterações e objetos que constituem a vida diária, o que se erige à percepção do artista? Essas considerações se dão para apresentar as propostas de Glayson Arcanjo e Andrea Nestrea. Eles nos mostram e discutem proposições e experimentações de cunho artístico que problematizam o ato de escolha de um objeto (em sua ampla acepção), a ser capturado pela lente e transformado em imagem. Palavras-chave Cotidiano, autorrepresentação, prática fotográfica.

ABSTRACT This text aims to give thoughts about everyday life, which is simply understood as a kind of a thread, made by a person, his usual practices and customs, as well as the places where these practices happen. Daily life is formed by repetitive actions, habits, common-places and absences. Within a huge number of practices, photographic practice is detached; it’s been practiced during someone’s walking in the city or in a household works. And with a lot of objects and repeated operations that constitute our daily life, what would arrive to the artist’s perception? These considerations are for presenting Glayson Arcanjo and Andrea Nestrea purposes. They show us artistic experiments that question the complex choice of a subject or an object, for being a theme of a photographic image. Keywords Everyday life, self-representation, photographic practice.

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1. Apresentando as imagens A proposta deste texto é apresentar reflexões que possam alicerçar as falas de Glayson Arcanjo e Andrea Nestrea. Apresentam-nos suas impressões e olhares para o entorno, valendo-se do dispositivo fotográfico como mediador eu-mundo. Como pano de fundo para suas imagens, discutimos, antes de tudo, o que é o cotidiano. Este, em tese, é formado por ações repetitivas, hábitos, lugares-comuns, acelerações e ausências. Em meio a tantas reiterações que constituem a vida diária, o que se erige à percepção do artista? Como a fotografia poderia dirigir-se ao sujeito-artista e seu cotidiano? Glayson Arcanjo narra trechos de uma experiência pessoal realizada em 2014, na residência artística Phosphorus, centro de São Paulo. O artista busca tratar a câmera fotográfica como que dotada de corporeidade e passível de traduzir movimentos de seu próprio corpo. A câmera pode revelar o estranhamento do autor com relação à cidade, nas vistas aéreas tiradas de dentro do edifício-residência (enquadramentos de cima para baixo), olhando a paisagem urbana. Podemos pensar na câmera sendo o próprio olho do edifício. Trata-se então de um olhar que vibra estático na distância entre as coisas, vendo os monumentos como miniaturas (pelo distanciamento e pelo ponto de vista superior). Mas o dispositivo olho-fotográfico pode ajustar-se também aos trajetos a pé no deslocamento diário casa-ateliê, em que a percepção espacial é mais háptica; nesse caminhar-que-olhae-registra, uma abertura maior para posicionamentos da câmera (inclinações, eventuais desfocamentos) que possam performar o caminhar ou passar-se pelo próprio corpo do artista em sinestesia. Ou, como ele mesmo se indaga: “como conseguir organizar as informações vistas na paisagem, de modo que a imagem gerada pela câmera fotográfica pudesse transmitir ‘minha experiência de estar ali, incorporando a cena diante de mim ?’” Já Andrea Nestrea apresenta-nos o vídeo “Caixa de sapato”, autoria do coletivo Cia da Foto. Trata-se da composição de imagens fílmicas e fotográficas tomadas do e pelo grupo, na ocasião em que todos estão reunidos no mesmo espaço físico. O trabalho tem um forte tom autorrepresentacional, o que permitiu, na sua recepção, discussões e comentários acerca da correspondência entre autoria e autorretrato, vinculada a um processo coletivo de criação. Fornecer ao título do trabalho a coisidade da “caixa” desloca o interesse para o objeto prosaico e sua função recipiente. Ao invés de abrigar sapatos, o objeto “caixa” é ressignificado ao se adaptar ao abrigo de um sem-número de fotografias, o que nos desobriga a perguntar “quem é o autor de essa foto?”, ao vasculharmos o que ela contém. Olhamos muito mais para o conteúdo das imagens e seu potencial memorialista do que 106


para a autoria das fotografias. Desse modo, o ser-caixa-de-sapato funcionaria como espécie de anteparo que suspende o gênero representacional daquelas fotografias que seriam base para a elaboração do vídeo: circulam entre o retrato e o autorretrato, entre a dignificação da pose e a instantaneidade, o relato etnográfico e o não saber de si sendo visto pelo outro; as fotografias colocam-se ainda entre representações do trabalho e do descanso e a publicização da intimidade. Adiciono uma terceira imagem para conversar com Glayson e Andrea. No conto “A aventura de um fotógrafo”, Italo Calvino nos apresenta Antonino Paraggi, funcionário solteiro de temperamento inquiridor, que vive um duplo isolamento. Não seduzido pela prática fotográfica e nem pelo casamento, Antonino quer compreender, por meio de costumes de amigos que constituíram família, qual a estranha relação que a fotografia estabelece com a passagem do tempo e a experiência da paternidade. Ele pensa: Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como o lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável. (CALVINO, 1992, p.53)

Mas eis que Antonino se converte em fotógrafo e, após uma singular sessão de fotos tiradas de Bice, uma mulher, percebe-se apaixonado por ela, ao observar o conjunto de

imagens

resultantes

daquela

sessão.

Obcecado

pela

garota,

fotografa-a

incessantemente: dormindo, despertando, voltando a dormir, “Bice surgia de todos os fotogramas, como na retícula de uma colméia surgem milhares de abelhas que são sempre a mesma abelha” (Ibid, p.62). A intenção de Antonino não era vigiá-la, mas obter uma Bice “invisível” no seio de um excesso de presença do amante e sua câmera. Não suportando essa pressão, a garota o deixa e sua invisibilidade passa a ser real. É quando ele se pega fotografando a ausência de Bice: “disparando compulsivamente com o olhar no vazio”, um dia Antonino “se fixou num canto do quarto totalmente vazio, com um tubo de calefação e mais nada” (Ibid, p.62-3).

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1. Cotidiano Um entendimento inicial de cotidiano nos conecta ao exercício dos hábitos e usos do dia-a-dia ou práticas que ocorrem repetida e continuamente, mas em intervalos outros. Michel de Certeau nos coloca que o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meiocaminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. (CERTEAU, 2003, p.31)

Nossas ações, desde que acordamos até a hora de dormir, são revestidas de uma pele paradoxal formada pela atenção e pela desatenção ao tempo, simultaneamente. Viver o dia é conjugar uma agenda mental com uma agenda física. Na primeira, são listadas atividades completamente incorporadas no fazer, necessidades fisiológicas e as realizadas mecanicamente, quase sem pensar. A equipe de Certeau mapeia operações cotidianas, sujeitas à análise de um olhar antropológico: dizer, andar, escrever, ler, crer, morar e comer. A elas acrescento as atividades marcadas em qualquer dispositivo de registro, porque elas obedecem a outra frequência: reuniões, consultas médicas, lembretes de um aniversário, o dia do gás e a sessão de cinema, entre inúmeros outros dados anotados. Tais agendas constituem a base de nossa atividade memorialista; deixar de fazer algo, deliberadamente ou não, é imediatamente vinculado ao esquecimento. Acolhido ou não, o esquecimento abre uma fenda na espessura do viver cotidiano que se pretende organizado. Podemos fazer uma analogia dos espaços vazios nas agendas compósitas com as lacunas que Michel de Certeau percebe como “dispositivos simbólicos” que reorganizam os discursos totalitários sobre a cidade. O autor usa a expressão “encantamento no abandono” (2001, p.194) para dizer poeticamente de um modo de viver a cidade, “abrindo clareiras”, localizando vazios que possam “eliminar as autoridades locais, porque comprometem a univocidade do sistema” (CERTEAU, 2001, p.186). Outra relação paradoxal que está no revestimento da vida diária é o ver e não ver as ações e os objetos que nos circundam. Conjugar agendas mentais e físicas relaciona-se à organização de diversas imagens mentais das ações a serem feitas, como se nosso cotidiano fosse um grande plano imanente, mesa de trabalho sobre a qual nossas diversas práticas são dispostas, encaixadas ou mesmo sobrepostas umas às outras. É ainda Certeau quem nos ilumina ao dizer que a percepção dos lugares na cidade não se dá pela 108


justaposição, mas adquire a forma de “estratos imbricados”, palimpsesto em que “inúmeros elementos [são] exibidos sobre a mesma superfície; oferecem-se à análise; formam uma superfície tratável” (CERTEAU, 2001, p.309). Trata-se, pois, o cotidiano, de ser um exercício de colagem de heterogêneos; um exercício compositivo em que cada elemento tem sua potência e função sobre aquele plano sobre a mesa; de algum modo, cada elemento é visto. No entanto, se detalharmos todas as atividades que realizamos em um só dia, uma população de ações é levantada e nessa multiplicidade de atos reiterativos, corre-se o risco de algo passar despercebido. O mesmo se passa com os objetos que portamos e usamos. Nada como a multiplicidade para gerar o imperceptível. É no meio de uma população que a unidade abre mão de sua singularidade para passar ao largo, para compor não mais uma direção, e sim, uma textura para o plano do dia e da vida. A multiplicidade dos eventos e as organizações coletivas problematizam a autoria una, o foco e os percursos unidirecionais e certeiros que fazemos na cidade.

2. Alguém e ninguém Assim como construímos uma imagem das práticas diversas, dispostas sobre uma mesa diariamente arranjada, e que nessa diversidade de práticas, usos e costumes, ocorre o paradoxo do ser-percebido e do não-ser-percebido, estamos todos, como sujeitos, à mercê desse pêndulo. Mesmo tendo um nome específico, somos confundidos com outra pessoa, somos lembrados e esquecidos. Em todas essas circunstâncias, somos sempre o Outro; essa alteridade reside antes de tudo, no ato contínuo de nos estranharmos quando nos posicionamos como seres singulares ou como seres ordinários, anônimos, ou ainda, como “ninguém”. Máscaras e poses são estratégias de construção de imagens que podem nos inserir em um determinado grupo social. O antropólogo Erving Goffman interessa-se pelas representações que construímos na vida cotidiana, fazendo analogias entre nossos modos de ação com as dos atores. No entanto, não temos total consciência de muitas dessas representações que adotamos. Por meio dos elementos com que se constrói a teatralidade - o ator, o personagem, o palco e a plateia - Goffman percebe que a vida cotidiana é similar a essa construção. A chegada de alguém a um lugar em que outros já se encontram é o ponto de partida para uma série de especulações: qual sua situação sócio-econômica, a confiança que ele merece, a averiguação de estereótipos que possam gerar dados “a respeito do indivíduo [os quais servem] para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar” 109


(GOFFMAN, 1975, p.11). Os outros podem ainda “confiar no que o indivíduo diz de si mesmo ou em provas documentadas que exibe, referentes a quem é e ao que é.” (Ibidem). Goffman explica-nos que o indivíduo tem a necessidade de se expressar e que o faz de dois modos aparentemente distintos e imbricados entre si: a expressão pela transmissão e pela emissão. A transmissão ocorre por meio de símbolos e vinculações diretas ao ato de se comunicar. Já na emissão, ocorrem diversas ações mais próprias do ator; podemos dizer que a emissão cuida da performatividade do indivíduo em um dado espaço. Confrontado a um grupo ou mesmo em relação harmônica com ele, o indivíduo se conduzirá por meio de representações, as quais vão regulando a maneira como os outros o tratam e também “expressando-se de tal modo que dê aos outros a espécie de impressão que os levará a agir voluntariamente de acordo com o plano que havia formulado”. (Ibid, p.13) Podemos, de certo modo, introduzir Henri-Pierre Jeudy nessa discussão por meio de sua abordagem de como a corporeidade contemporânea tornou-se adaptável para ser percebida e conformada a princípios estéticos e o quanto isso altera a autoconsciência corporal. Ele escreve: Comumente, ‘sentir o Outro’ sem ter necessidade de falar é conceder um poder semântico à representação corporal, legitimando-o por estereótipos de comportamento. É, aliás, muito irritante no dia-a-dia vermos que nos atribuem sentimentos que não experimentamos, como se os sinais exibidos por nosso corpo esboçassem para os olhos do Outro uma progressão do sentido que não nos convém. (JEUDY, 2002, p.43)

Atento à inflação de imagens do “eu”, Jeudy detém-se em nossa relação diária com o espelho e com outros corpos, com os quais mantemos “relações especulares”, um jogo complexo entre o visível e o invisível, entre o enquadramento, a pose, o desejo de ser modelo e as imagens do corpo como “alucinações”. Lembrando a escrita de Roland Barthes: “Assim que eu me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: eu vou logo fazendo pose, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (BARTHES, apud JEUDY, 2002, p.47), Jeudy aponta que a prática fotográfica objetualiza a existência do fotografado, fixando-a na sucessão temporal. Há um constante jogo de representações entre o Outro que me olha – me olha enquadrando no espaço – e a reciprocidade dessa ação. Nosso comportamento diante do espelho, mesmo que esse produza imagens efêmeras, é igualmente estetizante, pois o espelho é uma modalidade singular de tela. A constituição do retrato fotográfico parece dizer mais do que seu corpo real, físico; é seu documento de autenticação, cuja prática intensiva pode revelar que o que realmente 110


importa “é o jogo de captação do corpo do outro pelo visor” (JEUDY, 2002, p.48). O tornarse objeto de um retrato está ainda vinculado a um ato simbólico de distinção. A práxis é uma estratégia de diferenciação social, posta como desejo possível a todos, na medida da popularização de equipamentos de produção de imagens e de mecanismos de distribuição das imagens captadas. O autorretrato e o retrato fotográfico nunca estiveram tão disseminados, tão inseridos como práticas intensas em outros segmentos para além da “classe artística”. Uma breve visita a redes sociais, outras tipologias da internet, materiais impressos e estabelecimentos de fotografia para documentos nos revela a importância do culto à autoimagem. Desse modo, a prática autorrepresentacional vídeo e fotográfica encontra-se inserida em uma dinâmica pendular, ora tendente à banalização (como direito), ora tendente à diferenciação (como desejo).

3. Concluindo A insistência nos registros feitos no dia-a-dia faz com que acoplemos máquinas ao nosso corpo. Podemos então pensar que o acoplamento de máquinas ao nosso redor tornou-se um hábito. Fausto Colombo (1991, p.120-121) percebe que o processo memorialista contemporâneo difere-se do clássico justo nessa questão: se antes, os homens construíam instrumentos para a elaboração de uma técnica de evocação das imagens (como labirintos e teatros da memória), agora, nos valemos de máquinas que armazenam nossas lembranças. Computadores, máquinas foto e videográficas em separado ou acoplados a celulares impõem-nos seus próprios ritmos, para além de serem extensões de nossos corpos. Isso acaba por gerar outra experiência de corpo; estamos constantemente mediados; a câmera funciona como nossos olhos ou mesmo “máscara” que dá outra pele ao nosso corpo. Essa terceira pele (para além da epiderme e da roupa) nos impõe outro modo de construir representações de nós mesmos na vida cotidiana.

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Referências CALVINO, Italo. “A aventura de um fotógrafo”. In: ____. Os amores difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. P. 51-64. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2001. CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2003. COLOMBO, Fausto. “Memória e identidade”. In:_____. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.p.107-125. JEUDY, Henri-Pierre. “A tirania do espelho”. In:______. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. P.34-49 GOFFMAN, Ervin. “Representações”. In:______. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975. P.25-75.

Cláudia Maria França da Silva Artista visual. Doutora em Artes pela UNICAMP, mestre em Artes Visuais pela UFRGS, bacharel em Artes Plásticas pela UFMG. Professora na Graduação em Artes Visuais e PósGraduação em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Trabalha com desenho, objetos e instalações, expondo regularmente. Participa de reuniões científicas com produção textual. Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3462886315780014 112


Caminhar entre duas casas: cotidiano e processo de uma residência artística

Glayson Arcanjo de Sampaio Estratégias Expositivas do Desenho em Arte Contemporânea, UNICAMP-UFG

RESUMO O presente texto se dá como uma narrativa surgida de processos desenvolvidos em residência artística. Ambienta o leitor ao contexto da residência, focando nas relações entre artista e lugar, e estipulando como trajeto principal o espaço compreendido entre duas casas: a casa-morada (edifício Copan) e a casa-ateliê (casarão Phosphorus). Busca, ao percorrer o espaço entre as casas, ativar por meio do ato de caminhar e de um corpo que se percebe e percebem as coisas a sua volta, as escolhas feitas, através do uso do dispositivo fotográfico para coleta de dados da paisagem na cidade. Entremeados ao texto, apresenta desenhos, breves notas e séries de fotografias que são resultantes de um trabalho paralelo realizado em ateliê. PALAVRAS-CHAVE Casa, cotidiano, processo, fotografia.

ABSTRACT This text can be read as a narrative emerged from developed processes in artistic residence. It sets the reader into the context of residence, focusing on the relationship between artist and place, and establishing as main path the space between the two houses: the house-dwelling (Copan building) and the house-studio (Phosphorus mansion). In order to go through the space between the houses, this text is an attempt to turn through the act of walking and a body that is noticed and notices things around it, the choices made by the use of photographic device to gather information on the city landscape. Drawings, brief notes, and series of photographs as the result of a parallel work in studio are interspersed in the text. KEYWORDS House, everyday life, process, photography.

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1. As duas casas e o olho celeste Cheguei a São Paulo pelo terminal rodoviário. De lá, segui para a estação do metrô, entrando no trem, no sentido Portuguesa-Tietê, com destino a estação da Sé. Ao sair da estação, caminhei a pé pelas ruas Irmã Simpliciana e Venceslau Brás, chegando a um casarão de 1890, localizado à Rua Roberto Simonsen, número 108. Era 24 de junho, primeiro dia na Residência Phosphorus1. Phosphorus é um espaço para experimentação e criação artística situado nas dependências deste casarão do século XIX, sendo que a casa, após passar por pequenas reestruturações, conta, hoje, com ambientes destinados à realização de trabalhos individuais e coletivos, residência artística e exposição, sala de estudos, biblioteca, cozinha, jardim e escritório. Nomearei tal lugar por casa-ateliê. Nos dias que se seguiram, nos meses de junho, julho e agosto, fiquei instalado em um quarto no apartamento 221, no 22° andar do bloco C do edifício Copan, localizado na Avenida Ipiranga, 200. A este lugar nomearei casa-morada. Ao habitar duas diferentes casas e avistar a cidade do interior destas moradas, percebo o quão dispares estas vistas se tornam pelo simples fato de estarem atreladas às experiências visuais (e sensíveis) que, cotidianamente, buscamos construir. Ao observar a paisagem das janelas e exercitar distintas extensões do visível (o desenho da cidade, a localização de ruas, a comparação das dimensões dos edifícios, etc.), passo a criar relações espaciais com o que vejo. Este exercício de qualificação do espaço pode ser entendido como um dos modos de compreensão do lugar em que vivemos; do lugar onde nos encontramos. A ideia de extensão passa a ser visível ou sensível: a distância vista ou distancia percorrida; o território e a geografia, a natureza e a construção. Se pensarmos na cidade contemporânea, ao menos a que nos acostumamos a viver, a especialização dos espaços, chamemos de lugares, é o que passa a dar sentido à vivencia. A espacialidade então pode ser um conceito moldado pelo modo como nos relacionamos com o espaço. Se entre dois lugares, eu tenho uma montanha ou um edifício, eu nomeio este entre como natural ou artificial, qualificando-o. A espacialidade seria uma condição deste entre, ou uma interpretação deste vazio. (SPADONI, 2009, p. 16)

Do interior da casa-morada, a visualização espacial revelava a paisagem de um horizonte longo e profundo preenchida por aglomerações geométricas e cromáticas das centenas arranha-céus. 1

A Residência Phosphorus é um programa voltado para artistas que possuam práticas multidisciplinares com interesse em realizar processos que dialoguem com a casa, o entorno urbano, a arquitetura e outros aspectos da região central de São Paulo. Em 2014, foi realizado, com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura - Programa de Ação Cultural - 2013, através do edital nº 24/2013, o "Concurso de Apoio a Projetos de Espaços Independentes Vinculados às Artes Visuais no Estado de São Paulo". O programa teve 156 inscritos e 4 tiveram suas propostas selecionadas: Glayson Arcanjo, Janaína Wagner, Daniel Albuquerque e Márcia Granero. 114


Michel de Certeau (1994) aproxima a visão da cidade, a partir do ponto de vista elevado do observador, à de uma cidade-panorama, onde a olharíamos com um olhar totalizante, sendo este a materialização contemporânea do olho celeste renascentista que, através das invenções da perspectiva e das vistas panorâmicas, criou ficções da cidade por meio das representações pictóricas em perspectiva.

Figura 1. Cidade vista pela janela da casa-morada (Copan). Fotografia do autor.

Já na casa-ateliê era possível visualizar das janelas laterais e frontais; mais próximas ao nível da rua, um luxuoso prédio com suas inúmeras janelas ainda fechadas e a área de serviços do prédio vizinho em reforma e que ocupado por trabalhadores da construção civil exibia roupas estendidas em diversos varais.

Figura 2. Vista da janela da casa-ateliê (Phosphorus). Fotografia do autor.

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2. O caminhar e os jogos dos passos Desde o primeiro dia da residência artística fotografei determinadas situações percebidas no trajeto compreendido entre as duas casas. Mas como organizar as informações vistas na paisagem, de modo que a imagem gerada pela câmera fotográfica pudesse transmitir algo da “minha experiência de estar ali, pudesse incorporar a cena diante de mim?” (SHORE, 2012, p.152) E como responder, através de soluções formais, questões vinculadas à nosso tempo? Quando eu estava fazendo a foto do cruzamento do Beverly com La Brea, pensando onde exatamente ia posicionar minha camera para dar sentido a todas as variações visuais que estava tentando coordenar, percebi que, enquanto me debatia com os fatos visuais a minha frente, estava lhes impondo uma organização pictórica realmente clássica. (...) Aquilo me perturbou. Eu estava impondo uma solução do século 17 a um problema do século 20. Era uma solução formal elegante, mas não expressava a forma e a pressão desta época. (...) me dei conta de que estava impondo uma organização que vinha de mim e de coisas que eu tinha aprendido. Não era algo que realmente brotava da cena diante de mim. (Ibidem, p.152)

Ao sair do interior das casas e caminhar pelas ruas, avenidas, praças e bairros da cidade, busco outros meios para incorporar a paisagem a minha frente. É por este caminhar que tentarei expressar as pressões e formas dos tempos atuais, na tentativa de capturar o que brota das cenas cotidianas vividas na região central de São Paulo durante os dois meses de uma residência artística. Mas haveria grandes diferenças entre observar a cidade do alto, pela janela, e observar a cidade caminhando por suas ruas? O deslocamento pela cidade permite extrapolar os limites casa e perceber seu entorno. Permite que meu corpo chegue até a rua, atravesse as divisões dos bairros, as divisas dos setores e da região. Ao caminhar, passo a observar a paisagem urbana, as diferenças na arquitetura, o modo como pessoas se deslocam e interagem com os espaços. É uma interação não só em relação ao outro, pois o caminhar tem possibilitado que meu corpo se (re)organize a cada nova situação vivenciada. Durante a residência, a rotina de caminhar a pé pela Avenida Ipiranga, passar pela Sete de Abril, atravessar o Anhangabaú, a Praça do Patriarca, as Ruas Direita, Floriano Peixoto, XV de Novembro, e a Praça da Sé permitiu a incorporação de elementos da paisagem da região central de São Paulo: prédios, ocupações, ambulantes, showzinhos, performers, estátuas vivas, músicos; deparar com moradores de rua, passar pelos pedintes e por manifestações; esbarrar com estacionamentos lotados, movimentos de lutas por moradia, protestos com a polícia, com ações de desocupação e reintegração de posse de prédios, etc.

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O caminhar se liga aos passos. Certeau nos dirá que são os “jogos dos passos que moldam os espaços” e “tecem os lugares” (CERTEAU, 1994, p.176) Em primeiro lugar, se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidade (por exemplo, por um local onde é permitido circular) e proibido (por exemplo, por um muro que impede prosseguir), o caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. (Ibidem. p. 177-178)

Evidenciada pela presença de um corpo por tais espaços e a passagem por trajetos possíveis, passei a coletar imagens das coisas que brotavam a minha frente.

3. As fachadas e outras vistas aéreas Tornaram-se mais frequentes a realização de fotografias de edifícios em desuso ou desocupados e também os ocupados por movimentos por moradia popular, que se proliferavam na região central. Ao detectar tal interesse, seguiram-se esforços direcionados a encontrar modos de entrar no interior destes edifícios. Entretanto, diante uma proibição2 para entrar nos interiores nos prédios, tal veto acabou gerando o desvio necessário para olhar para fora da casa, a partir da coleta fotográfica de situações visuais, envolvendo fachadas, janelas, placas, letreiros, faixas, grafites, cartazes, e tudo o mais que se misturava às propagandas e outras informações visuais “aéreas” percebidas nas partes externas dos edifícios ocupados.

Figura 3. Imagem construída por sobreposição e edição de fotografias coletadas. Fotografia do autor. 2

Mas para entrar em qualquer um desses edifícios, uma negociação precisa acontecer (o que pode ser uma conversa, indicando as reais intenções em entrar no local). Na busca por um responsável em um dos prédios ocupados, encontrei a Sra. Ângela, síndica da ocupação número 5, que me recebeu na porta de entrada, ouviu minhas intenções, viu as fotografias e desenhos de trabalhos anteriores, mas ressaltou que não poderia autorizar a entrada de qualquer pessoa não cadastrada como moradora antes de uma reunião com a coordenação do movimento. Retornei em dias posteriores, outras três vezes, até me dar conta da impossibilidade da entrada. 117


A postura corporal dos pedestres e turistas que passam diariamente pelo centro parece se repetir no corpo que fotografa. Assim olho para cima, e repito o corpo que busca alcançar, com a visão, o ponto mais alto dos arranha-céus. Por não contar com o recurso “zoom” da câmera a necessidade de aproximar-me do objeto a ser fotografado (edifício) me colocava na cena e no jogo da produção da própria imagem. Após serem coletadas, as imagens passaram por processos de edição; sofreram distorções, cortes, emendas; foram remontadas digitalmente e impressas em papel. As impressões serviram de base para produção de uma série de outras imagens transferidas para papel carbono. Estas surgem como uma espécie de sobrevida, ou, ao menos, abrem a possibilidade da imagem (arquivo) da câmera fotográfica do celular, por meio de processos posteriores, serem deslocadas para outros suportes, meios e espaços de exibição.

Figura 4. Transferências de imagem e exposição na janela do Phosphorus. Fotografia do autor.

4. Notas finais para um processo aberto Sinalizei, em negrito, no decorrer deste texto, sequencias de palavras definidas como notas de processo. Juntamente com o procedimento do caminhar e da coleta, transferência e exposição das fotografias, essas notas permitem ampliar as possibilidades narrativas da imagem a partir dos elementos observados na paisagem da cidade. O desejo de dar nomes às coisas e às relações entre tais coisas; entre operações e ações que se constituíram no decorrer do processo, revelaria aspectos peculiares de meu próprio cotidiano e do cotidiano da cidade, através da paisagem e das experiências vividas e assimiladas com a minha passagem por ela3.

3

Rua Roberto Simonsen. 1. Antiga Rua do Carmo. Seus primeiros nomes foram Rua de Santa Teresa e Rua da Boa morte. 2. Uma das mais antigas da cidade faz parte da fundação inicial e recebeu as primeiras construções arquitetônicas de São Paulo. 118


Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. Residência Phosphorus 2014 (publicação impressa da residência). São Paulo: Phosphorus, 2014. SHORE. Stephen. Forma e pressão. In: Revista ZUM nº3. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012. SPADONI, Francisco. Espacialidade. In: Ecos urbanos 8ª Bienal Internacional de Arquitetura. São Paulo: SENAC São Paulo, 2009. Glayson Arcanjo de Sampaio é artista visual. Professor do curso de Artes Visuais da FAV-UFG. Doutorando da pós-graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UNICAMP. Mestre em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG (2008). Investiga o Desenho e seus processos partindo da elaboração de estratégias poéticas que se dão na escolha, negociação, entrada e permanência em espaços desabitados, em desuso ou em demolição para produzir ações, desenhos, fotografias e vídeos.

Residência. 1. Casa. 2. Lugar para se viver; local de morada. 3. Definição um pouco confusa quando se trata da minha própria, já que pareço residir em várias e ao mesmo tempo não ter nenhuma, entre elas: residência Phosphorus (casaateliê); apartamento 22, bloco B, no Copan (casa-morada), residência em Campinas (para cursar o doutorado em andamento); residência nas cidades por onde passei anteriormente (casa-Goiânia e casa-Uberlândia). Primeira casa, na Rua Silvianópolis nº13 com Rua Oligisto em Belo Horizonte (casa-infância), etc. Ocupação. 1. Luta por Moradia Popular. Luta por Moradia Digna. Movimento Popular Paulista. Frente de Luta por Moradia. Movimento dos Sem Teto do Sacomã. Movimento de Ocupação de Espaços Públicos Ociosos. 2. Ocupação número 5. Faixa. 1. Pedaço de pano, tecido, lona, plástico, que recebe pintura com tinta contendo frases, nomes, siglas, indicações de protesto, convocações ou anúncios. Placa. 1. Idem às faixas, porém feitas de outros materiais como madeira, latão ou zinco. Às vezes são reutilizadas, como as placas produzidas pelo programa Minha Casa Minha Vida, e cobertas por tinta, tem apagado todos os dizeres anteriores, menos a presença de um logotipo da Caixa, como indicativo de um utópico financiamento. Janela. 1. Artefato utilizado para permitir ou bloquear a entrada de luz e ar em vãos feitos nas paredes dos prédios. 2. É percebida em grande número nos prédios antigos da Sé. 3. Quando chegamos, praticamente todas se encontravam fechadas. Com o passar dos dias, paulatinamente, as janelas, uma-a-uma começaram a se abrir. Estando abertas, são muito usadas para dependurar roupas. Também são uteis para trocar conversas com os vizinhos, fumar, espiar o movimento da rua e da janela do prédio da frente. Fachada. 1. Diz-se da parte exterior de determinado espaço arquitetônico. 2. É à frente. Possuem elementos decorativos, grades, volutas, janelas lindíssimas. Atualmente está repleta de faixas, roupas, antenas, placas. 3. Quando a parte externa não condiz com a interna. Nos prédios ocupados, é possível ver através das janelas abertas, que a estrutura dos prédios pode estar comprometida, os tetos de gesso estão caindo e anunciam o perigo de ruína de paredes e pisos. Vizinho. 1. O da esquerda, um prédio do fim do século XIX em reforma. 2. O da direita um prédio também do mesmo período e onde funciona uma encadernadora, loja de carimbos e placas. 3. Os de frente, dois prédios ocupados por movimentos por moradia. Reforma. 1. Sempre se reforma a fachada dos prédios, mas quase nunca seu interior. 2. Quando alguma ocupação é mal sucedida, os ocupantes são retirados do local pela polícia, trata-se de uma desocupação. Em alguns casos, o dono do prédio abandonado, com receio de novas ocupações vende o imóvel. O comprador põe em prática um plano “infalível” de reforma para novo uso do imóvel adquirido, salvo exceções, em geral, é um plano de transformá-lo em restaurante ou em estacionamento. Habitar. 1. Minha tentativa de ficar o maior tempo possível dentro dos imóveis que permitiram a entrada. A partir desse permanecer instaurar alguns pequenos instantes, desenhos, ações que podem ou não ser registrados; podem ou não ser mostrados posteriormente. 2. Os moradores das ocupações habitam os cômodos dos prédios, no centro da cidade, por estes estarem desabitados e por esperarem que, com sua permanência no local, possam ganhar uma morada futura. Reintegração. 1. Recebi no dia 21 de agosto, diretamente das mãos do Capitão Fernando Ferreira, uma carta informando sobre a ação de retirada, no dia 09 de setembro de 2014, das famílias que estão vivendo em todos os 5 prédios ocupados nas ruas Roberto Simonsen e Floriano Peixoto. 2. “Devido à grandeza do evento, o acesso de veículos será restrito aos envolvidos na operação e o fluxo de pessoas será controlado em áreas, certo que devemos contar com aproximadamente 10 caminhões e diversos carregadores o que certamente irá mudar a rotina do local e impedir a passagem de outros veículos não autorizados”.

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A Fotografia nas propostas artísticas contextuais: circunstância de verdade e elemento de fabulação

Amanda Cristina de Sousa Grupo de pesquisa Poéticas da Imagem UFU/CNPq / SME

RESUMO Esse artigo visa discutir o papel da fotografia no que se refere às propostas artísticas no campo da Arte contextual, estas práticas se comprometem a um profundo estudo do contexto no qual pretendem atuar e a fotografia aparece como operação importante para o estudo do contexto, para o registro e documentação das ações e para os desdobramentos dos trabalhos. Para tanto vamos observar a ação artística “Boa Viagem” e a exposição “Modos nada práticos de ver e curar o mundo”, e analisar a partir destas como a fotografia pode se configurar de diferentes formas, ora para atestar a presença do artista e a investigação, ora para compor as ações propriamente ditas, ora para “dizer” destas ações e ora como elemento de composição, ou de fabulação. PALAVRAS-CHAVE Boa Viagem, arte contextual, fotografia, registro, fabulação.

ABSTRACT This paper discusses the role of photography in relation to artistic proposals in the field of contextual art, these practices are committed to a thorough study of the context in which they intend to act and the photo appears as important operation for the study of the context, for registration and documentation of actions and the unfolding of the work. For this we observe the artistic action “Boa Viagem” and the exhibition “Modos nada práticos de ver e curar o mundo”, and analyze from these as photography can be configured in different ways, either to certify the presence of the artist and research, moment to compose themselves actions, prays "saying" these actions and sometimes as an element of composition or fable. KEYWORDS “Boa Viagem”, contextual art, photograph, record, fable.

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1. A fotografia na prática artística contextual As práticas artísticas contextuais se desenvolvem por meio de estudos fundamentados no interesse por determinados contextos e seu estudo profundo. A proposta que investigaremos aqui se apoia em Paul Ardenne, no livro: Un arte contextual: creación artística em medio urbano, en situación, de intervención, de participación. O autor define o artista contextual como um ator social, envolvido e perturbador, que “tece com” a realidade imediata; este artista prefere a relação direta e sem intermediários entre o trabalho artístico e o real. Por contexto, entende “[...] um conjunto de circunstâncias nas quais se insere um feito [...].” (ARDENNE, 2006, p.14, tradução nossa1). Para o autor é fundamental que o artista estude minuciosamente a realidade, e se atenha a todos os contextos inter-relacionados. A fotografia aparece como importante operação nesta investigação e estudo do contexto, pois ela permite que o artista registre suas passagens, os aspectos que lhe interessam, seus recortes de olhar. Ela funciona como produtora de documentação e de pesquisa, e atesta ao artista provas de suas percepções e de suas análises, na forma de material investigativo. Assim as imagens produzidas neste momento do processo, se apresentam como comprovação de verdade ao artista, do que ele vê e se interessa no contexto em que pretende atuar. Elas desenvolvem a construção do discurso e auxiliam na definição da proposta que neste caso se dá mais por investigações fundamentadas em passagens e movimentos do que pela ideia de habitar ou ocupar um lugar. Ao que se refere ao estudo de contexto, de lugares, Mion Kwon afirma que essas práticas constroem narrativas nômades: O que significa que agora o site é estruturado (inter) textualmente mais do que espacialmente, e seu modelo não é um mapa, mas um itinerário, uma sequência fragmentária de eventos e ações ao longo de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percurso é articulado pela passagem do artista. (KWON, 2008, p.172).

O trabalho Boa viagem, se fundamenta nestes parâmetros contextuais, trata-se de uma investigação nas estradas e rodovias que ligam Uberlândia à Abadia dos Dourados, ambas cidades de Minas Gerais, e da observação da relação homem e animal nesses lugares de passagem. A primeira fase do processo traz fotografias que demonstram o recorte investigativo na preocupação da artista a respeito da morte de animais por atropelamento nas estradas.

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No original: “[...] un conjunto de circunstancias en las cuales se inserta um hecho [...]”. 121


Figura 1. Amanda de Sousa, Fotografia, 2012. Fonte: arquivo pessoal.

Desta maneira, por meio de registros fotográficos, caminhadas e anotações o trabalho foi tomando forma, e compondo um projeto poético cujo ponto de partida é o interesse pelos estudos centrados na relação homem e natureza, desenvolvendo uma produção e reflexão sobre o campo da arte e sua mediação com o contexto social e político. O recorte poético está na relação que envolve especificamente o campo interacional homem x animal, em especial ao temário da morte, do abandono, do esquecimento, tomando como foco a relação homem e animal no contexto urbano. Destes estudos (deriva, caminhadas, viagens, observação do lugar, anotações e fotografias) selecionei e organizei imagens que sintetizam minhas percepções a respeito da nossa relação com os animais que transitam nesses espaços. Assim podemos dizer que esses documentos/fotografias, funcionam também como um diário de bordo, trazem em si um caráter de veracidade, a ideia da presença do artista investigador, funcionam como “atestados de presença”, como instrumento científico, demonstram ao artista a veracidade e relevância dos seus anseios poéticos. (FABRIS, 2002). Foram estas e outras questões conceituais que levaram à definição da proposta de ação artística, a partir dessas fotografias tomadas em percursos prospectados como lugares de tensão segundo o recorte temático. Tendo isso em consideração, foram realizadas ações de sinalização em dois espaços públicos específicos: a construção de placas em tamanho 1,00 x 1,00m, com as fotografias de animais mortos por atropelamento nas estradas, e a instalação destas em cinco pontos da BR-352.

Figura 2. Amanda de Sousa, Boa Viagem, fotografia sobre placa de pvc, 1,00 x 1,00 m., Instalação 2013. Fonte: arquivo pessoal. 122


Nesse momento as fotografias se reconfiguram, mudam de papel, se tornam objeto artístico, se torna o próprio trabalho, compondo a ação artística e ganham assim outro caráter. Instaladas na estrada, o autor das imagens e aqueles que são envolvidos pela ação (usuários das estradas) compartilham de certa maneira de circunstâncias de verdade, os usuários podem não imaginar se tratar de um trabalho de arte, mas reconhecem aquelas imagens como pertencentes àquele contexto, as imagens, então mantém ainda certa carga de veracidade mas carregadas de diversas significações que agora são dadas na recepção da ação. Os registros destas ações foram apresentados na exposição Bestatú realizada no MUnA (Museu Universitário de Arte, Uberlândia-MG). A fotografia vai funcionar agora como instrumento de registro novamente, para documentar a ação, isso gera novas discussões a respeito do seu papel neste momento do processo. No espaço expositivo as fotografias de registro do processo de investigação se articulam e se misturam com as fotografias de registro da ação propriamente dita, buscando sintetizar toda a ideia da pesquisa, que além da questão da arte na esfera pública, dizem respeito à tomada de consciência do contexto como elemento determinante dos sentidos postos nas ações artísticas. Além de registros das ações, foi levado ao espaço expositivo imagens que registram parte do processo de criação, parte da elaboração das ações, trazendo imagens que não se referem à ação em si (instalar placas), mas às investigações do contexto e pontos de vista diferentes dos tratados na ação artística. Incluindo imagens que se apresentam com uma certa autonomia dentro do conjunto. São fotografias tomadas nas ocasiões da realização das documentações, mas que podem se oferecer como uma síntese poética do projeto. A produção de registros dos trabalhos artísticos vem sendo utilizada e problematizada de maneira recorrente na arte, desde os anos sessenta. No que se refere às práticas artísticas de caráter efêmero, esses dispositivos de registro (fotografias, vídeos etc.) serviriam de início e de modo geral para possibilitar uma vivência ou experiência relativa a algo que não está mais ali, um acontecimento passado, mas elas não se resumem a isso.

2. A fotografia como elemento, de documentação/ registro e de ficção/ fabulação Visando reunir informações e conhecimentos sobre determinado trabalho como técnicas e procedimentos, os registros aparecem a princípio como “documentação” da prática artística. Para o artista Helio Fervenza, “Documentos nos auxiliam numa eventual e 123


parcial reconstituição de produções, bem como podem ser utilizados em discursos interpretativos que prescrevem, legitimam, comentam, nomeiam, analisam, comparam [...].” (2009, p. 47). Neste sentido, as imagens/registros e a ação ocorrida apresentam algo em aberto, indeterminações, elas são um trabalho outro, que se difere em diferentes medidas da ação, trazendo uma carga ficcional, fabulosa, pois elas narram um fato, mas a verdade desse fato é ocultada sob um véu, que é o da ficção, da imaginação e da simulação de certa maneira. Guelton (2013), esboça algumas questões relacionadas à ficcionalidade das práticas artísticas, entendendo o termo ficção a partir de três significações ou dimensões “simulação, imaginação e suposição”, de acordo com o autor: “Nas ficções artísticas, a experiência concreta do espaço é fundamental e vem se articular de uma maneira particular com os espaços representados e imaginados” (GUELTON, 2013, p.347). Essa articulação entre o espaço representado (da ação artística, representada) e o imaginado pelo artista e pelo público permite modos de absorção diferenciados, ficcionais pois coloca em “[…] concorrência direta a percepção do mundo comum, agora multiplicado por ferramentas virtuais”. De acordo com o autor essas imagens tem sentido de potencial atualizável, mutável, que permite novas construções ilusórias, lúdicas e compartilhadas. (GUELTON, 2013, p.353). Fervenza argumenta que a separação entre o que é o trabalho e o que é sua documentação não está nitidamente delimitada, isso levanta questões que “[...] ampliam a própria noção do que é arte e do que são seu registro e seu modo de apresentação.” (FERVENZA, 2009, p.48). De início a exposição estava sendo pensada como esta forma de documentar as ações realizadas, mas ainda na seleção das imagens percebemos que elas não se reduzem a isso, essas fotografias apresentam desdobramentos, memórias, ativações, enfim os registros se reconfiguram de outras maneiras, tornando-se outros. Seguindo o pensamento de Luís Cláudio da Costa, entendemos que aquilo que estas imagens-registro fazem é “[...] disputar os signos do evento artístico desaparecido, no sentido de urdir novos tempos, novas aberturas, novos espaçamentos. Desejam repetir o evento, mas na qualidade de quem disputa zelos amorosos, tornando-se outro.” (COSTA, 2009, p.82). É sabido que um registro (no caso fotográfico) não substitui e nem dá conta do acontecimento; a relação que estabelecemos com os registros é outra, distinta das do público que vivencia a ação. Mas também é sabido que a importância destes registros não se limita apenas a “guardar” a ação artística, mas serve como ferramenta, como 124


instrumento poético do artista que neles vê possibilidades, problemas, interesses e continua desenvolvendo o processo criativo. Neste prisma, a exposição relativa às práticas artísticas contextuais funcionam como uma reelaboração do trabalho, como continuação e como análise do processo. Mesmo que o acontecimento primeiro tenha sido encenado ou modificado digitalmente para o novo acontecimento fotográfico, a realidade da fotografia não deixa de ser material, física, estética, poética, antropológica e social. Nestes termos, a repetição promovida pela fotografia é absolutamente singular [...]. (COSTA, 2009, p. 82).

Analisando as fotografias na exposição percebo que, além de prolongar o trabalho, elas sintetizam todo o processo de pesquisa e apresenta um todo, um outro, ou outros vários, apontando desdobramentos poéticos e fragilidades que podem ser remontadas, reorganizadas acrescentando imagens, adaptando-se à espaços diversos, reconfigurandose e ressignificando-se. A mobilidade e o nomadismo dessas imagens continuam então a alimentar o desejo poético e a produção. Essa ação, assim como a exposição funcionam como um laboratório que, a partir da elaboração de estratégias e efetivação das mesmas, aponta desdobramentos possíveis para a elaboração de novas estratégias para atuar na relação homem e animal. O espaço expositivo se difere do espaço comum, do contexto trabalhado, é um tipo de espaço que pode ser relacionado à um espaço de ficção. A exposição aparece então como extensão deste laboratório, pois as imagens de documentação ganham ali outras significações e possibilidades de narrativas de fabulações, o que amplia a discussão e reflexão a respeito deste processo criativo. O papel destas imagens fotográficas relacionadas a ações artísticas e seu registro/documentação, pensadas desta maneira, podem ser entendidas como elemento, como matéria, permitindo construir novas narrativas, as fotografias pensadas para além dos registros das ações trazem relações com circunstancias de verdade, mas também carregam em si um caráter ficcional, elas podem funcionar como elementos de composição, de fabulação (criando e propondo diferentes formas, discursos e narrativas são desta maneira material para novas produções artísticas. Conforme Badiou (1994) existiriam quatro condições da filosofia, “condições de verdade”: a política, a arte, a ciência e o amor. Badiou ao refletir sobre a “arte contemporânea” propõe seis teses por meio das quais procura demarcar um conjunto de problemas relativos à contemporaneidade da relação filosofia e arte: 125


[…] a própria arte é um processo de verdade. O que quer dizer que a arte é um pensamento cujas obras (e não o efeito) são o real. E esse pensamento, ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, quer sejam elas científicas, políticas ou amorosas. (BADIOU, 2002, p.25).

Guelton, coloca que as ficções artísticas se diferem das ficções tradicionais porque ela tece com a realidade, com a vida comum, sua ficcionalidade está em suas indeterminações em suas aberturas, desta maneira: Num primeiro momento, indireto indica o rearranjo dos elementos do mundo comum, usados com uma certa liberdade no mundo ficcional. E, num segundo momento, indireto se refere à ideia de que num universo ficcional é possível modelizar situações inexistentes, que numa perspectiva temporal são suscetíveis de alterar as crenças dos consumidores dessa ficção, ou seja, de um indivíduo ou de uma comunidade. A noção de interação coloca em questão justamente esta natureza indireta da ficção, desafiando suas definições clássicas, assim como seu estatuto. Ela é fundamental para as ficções artísticas, pois ela supõe uma materialização e uma relação concreta com o mundo, incomparáveis com a ficção literária, ou com os mundos possíveis na filosofia. (GUELTON, 2013, p.361).

Integrantes do grupo de pesquisa Poéticas da imagem, percebendo essa possibilidade de repensar, reconstruir, ressignificar essas imagens para o espaço expositivo, se utilizou destas reflexões à respeito das fotografias de registro/documento, para pensar a proposta de exposição “Modos nada práticos de ver e curar o mundo”. Que acontecerá na Casa de Cultura da América Latina (UNB – Brasília-DF). Entendendo nossos documentos de registros das ações e de processos de investigação como elementos de composição, construímos um novo discurso, uma nova narrativa, uma fabulação, por meio da construção de um mapa com estratégias utópicas de curar o mundo.

Figura 3. Imagem da exposição: “Modos nada práticos de ver e de curar o mundo”. Fotografia: Priscila Rampin, 2015.

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Figura 4. Imagem da exposição: “Modos nada práticos de ver e de curar o mundo”. Fotografia: Priscila Rampin, 2015.

Figura 5. Imagem da exposição: “Modos nada práticos de ver e de curar o mundo”. Fotografia: Priscilla Rampin, 2015. 127


A fotografia aparece aqui como a cor em uma pintura, como assunto, como elemento de fabulação ou de ficção. Ao perceber que “[…] todas as mídias apresentam uma zona de indeterminação” (GUELTON, 2013, p. 349). Percebemos que podemos articular, relacionar e desenvolver diálogos entre nossas imagens, que tratam de diferentes ações mas constroem um mesmo tipo de discurso utópico, lúdico e ficcional mas relacionado às experiências concretas e contextuais das ações. Nesta exposição propomos uma interação consciente entre ficção e realidade, que vai além do caráter ficcional intrínseco da imagem ou dos espaços, mas sugerem nossas experiências contextuais e constroem uma nova fábula: um grande plano para curar o mundo. Sugerimos então, observando os autores aqui tratados que ficção e verdade não assumem necessariamente uma relação antagônica, de negação, pois para Guelton (2013) na prática artística pode interagir ficção e realidade e para Badiou (1994) a ideia de verdade (realidade) está ligada aos efeitos, processos de um evento (de verdade) que não exclui […] a ficcionalização possível dos efeitos de seu ter-tido-lugar. O sujeito pode fazer a hipótese de um Universo em que essa verdade, da qual o sujeito é um ponto local, teria acabado sua totalização genérica. A hipótese antecipante quanto ao ser genérico de uma verdade, eu a chamo de forçamento. O forçamento é potente ficção de uma verdade acabada. A partir de tal ficção, posso forçar sabers novos, mesmo sem ter verificado esses saberes. (BADIOU, 1994, p.48).

Assim, mesmo que o trabalho tenha sido orientado para um lugar (espaço urbano), não está enraizado nele, o lugar não é entendido como realidade física e fixa, mas como “[...] vetor discursivo, desenraizado, fluido, virtual”. (KWON, 2008, p.173). Desta maneira as fotografias que tratam dele (documentos/registros) e as fotografias relacionadas às praticas artísticas contextuais de forma geral, também apresentam esse vetor discursivo, fluido, virtual, e essa abertura, fluidez e virtualidade é o caráter ficcional, fabulativo, é o que permite elas se tornarem outras, compor narrativas diversas.

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Referências

ARDENNE, P. Un arte contextual: creación artística en medio urbano, en situación, de intervención, de participación. Murcia- Espanha: Cendeac, 2006. BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. COSTA, L. (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra capa livraria/FAPERJ, 2009. FABRIS, A. Atestados de presença: a fotografia como instrumento científico. Locus. Revista de História, Juiz de Fora: Editora UFJF, v.8, nº 1. p. 29-40, 2002. GUELTON, B. Ficções e interações: as ficções artísticas e a questão do espaço. Tradução de Nikoleta Kerinska e Beatriz Rauscher. Ouvirouver, Uberlândia, v. 9 n. 2 p. 346-366 jul/dez. 2013. KWON, M. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. (Trad. Jorge Menna Barreto). Revista Arte & Ensaios, Rio de Janeiro: UFRJ, nº 17, p. 167-187, 2008. ISSN: 1516-1692.

Amanda Cristina de Sousa é docente na rede Municipal de Educação de Uberlândia, possui Graduação em Artes Plásticas e Mestrado em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia

(UFU).

Integra

o

Grupo 129

de

pesquisa

Poéticas

da

Imagem.


“Plante na Praça”: imersão e arte em contexto

Andressa Rezende Boel Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem UFU/ CNPq / Universidade Federal de Uberlândia

RESUMO Esse artigo trata de uma ação artística, o “Plante na praça”, que convidou os frequentadores da Praça Said Chacur, bairro Santa Mônica em Uberlândia, a participarem ativamente da criação de um jardim coletivo e colaborativo. A partir do momento em que o colaborador se compromete em manter o canteiro ou a atividade que escolheu desempenhar, considero que está imerso na ação artística, pois além de acreditar, passa a atuar diretamente no desenvolvimento da ação. Em paralelo à ação em contexto, foi conduzido um diário imagético também colaborativo e virtual na página do Facebook, onde as fotografias feitas na praça ilustravam alguns dos momentos de partilha do ambiente. PALAVRAS-CHAVE Arte contextual, imersão, colaboração.

ABSTRACT This study approaches an artistic action. The Plante na praça invited the goers of the Said Chacur Square, Santa Mônica, Uberlândia, to actively participate in the making of a collective and collaborative garden. I considered the collaborators as part of the artistic action after they begin to take care of the garden or other activity that they choose, because at this point they were not just believing in the action, but also working in its development. Together with the artistic action, it was created diary of imagery on the Facebook. In this diary the picture’s token in the square illustrated the environment sharing. KEYWORDS Contextual art, immersion, collaboration.

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A ação Ao reinventar espaços de partilha, muitas vezes esquecidos na cidade, o cidadão reafirma sua autonomia na cidade e recria lugares direcionados para o lazer e convívio. A partir do momento que essa atividade engloba toda vizinhança, os laços de amizade e os limites da residência de cada um se expandem. Esse artigo trata de uma ação artística, o “Plante na praça”, que convidou os frequentadores da Praça Said Chacur, bairro Santa Mônica, em Uberlândia, a participarem ativamente da criação de um jardim coletivo e colaborativo, onde cada um podia compor o seu próprio canteiro com as plantas que escolhesse e poderia contar com o apoio de todos os envolvidos para adubação e rega. A praça ocupa o que seriam duas quadras, possui um amplo espaço de terra, coberto por grama e passeios em suas extremidades. Devido à pequena quantidade de árvores, a praça é seca e a sombra é escassa, então os visitantes a frequentam em horários estratégicos. O local é bastante usado para a prática de esportes por adultos, jogos e brincadeiras por crianças e jovens, ou apenas serve como atalho para o caminhante que a cruza para chegar mais rápido ao seu destino. Em inspeções para avaliar a infra-estrutura da Praça Said Chacur, percebi que existem poucos bancos para o descanso e um deles se difere do padrão. É um banco de madeira pintado de marrom, o único que está durante todo o dia na sombra. Além disso, os moradores mais antigos do entorno sabem por onde passa o encanamento de água potável, sendo possível, quando necessário para eles, acrescentar pontos de saída de água em lugares menos acessíveis na extensa praça. Constatei, com esses exemplos, que esses moradores que intervieram na estrutura física da praça não se sentem contemplados pelas possibilidades de uso instituídas no local, e que essa carência não é suprida pelos poderes públicos. Na primeira semana que investiguei a praça, visando iniciar o “Plante na praça” entrevistei vários frequentadores. Constatei que os horários de visita ao local são preferencialmente pela manhã, fim de tarde e noite. Perguntei quais plantas eles gostariam de ver crescer na praça e quais eles plantariam, bem como, questionei se eles percebiam alguma manutenção da prefeitura na praça. Constatei que poucos deles já haviam visto funcionários lá, alguns disseram que só é feita a poda de grama, que acontece duas vezes por ano. A partir desses estímulos, o “Plante na praça” foi se inserindo nesse contexto. Para conquistar a confiança e o auxílio dos colaboradores, o “Plante na praça” utilizou basicamente quatro estratégias:

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A primeira foi o plantio de oito canteiros de girassóis. O girassol foi escolhido por ser uma flor de grande porte e por possuir um tom de amarelo bastante chamativo. Um importante fator também foi seu rápido desenvolvimento, pois em três meses a flor já desabrocha. Não só usada para a alimentação, mas também participante do imaginário coletivo, essa flor de característica solar se movimenta acompanhando o sol durante todo o giro da terra, na cultura popular representa vitalidade, luz e felicidade. A segunda estratégia foi a minha presença diária durante o plantio e todo o desenvolvimento dos canteiros de girassóis, adubando e regando. A presença na praça me fez passar do estado de uma “pessoa desconhecida” para uma “pessoa comum” e parte integrante na praça, isso me permitiu conhecer, conversar, convidar, auxiliar e iniciar novos colaboradores no “Plante na praça” por algum tempo. A terceira estratégia foi a criação de placas para cada canteiro que era plantado. Existiam placas amarelas para os canteiros de girassóis e placas brancas para os canteiros dos colaboradores. De maneira não impositiva, as placas possuíam mensagens que sugeriam o cuidado com as plantas e sinalizavam que os canteiros pertenciam a todos e que todos poderiam contribuir e partilhar do seu florescimento (Figura 1).

Figura 1. Andressa Boel. “Plante na praça”. Praça Said Chacur, Uberlândia-MG, 2014. Foto: arquivo pessoal.

A quarta estratégia foi a criação de uma página no Facebook, onde era possível um contato extra-praça entre os colaboradores do “Plante na praça””, já que nem sempre nos encontrávamos lá. A página na internet também tinha a importante função de divulgação de fotos de atividades, mudanças ou micro ações produzidas/vivenciadas na praça, para que todos pudessem acompanhar de perto o processo e também para que fossem estimulados

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a intervir no local. A página estimulava também os visitantes a se fotografarem e postarem em suas próprias páginas sociais (Figura 2).

Figura 2. Andressa Boel. Imagem retirada do perfil do Facebook do “Plante na Praça” em 2015. Foto: arquivo pessoal.

O “Plante na praça” também apoiou diversas iniciativas, que iam além do plantio e que foram surgindo de outros colaboradores, a fim de diversificar os usos da praça, ou mesmo torná-la mais agradável para a convivência, por exemplo, a instalação da Biblioteca Pública¹, o Trocando Palavras² (Figura 3), o curta-vida-curta³, varais de leitura, a pintura das árvores para iluminar o ambiente, a coleta de lixo e o incentivo a não sujar o gramado, dentre outros. Enfim, o “Plante na praça” visava convidar os colaboradores a conviver e aproveitar o ambiente, se importando mais com a vivência na praça durante o processo de construção do jardim do que com o resultado físico dele.

Figura 3: Andressa Boel. “Plante na Praça”, realização do Trocando Palavras. Praça Said Chacur, Uberlândia - MG, 2014. Foto: arquivo pessoal. 133


O contexto e o sujeito desejante Segundo Ardenne (2004), uma das funções do artista contextual é, a partir da linguagem artística, colocar em debate a opinião dominante ou usualmente praticada. O “Plante na praça” questionou: em que medida os poderes públicos levam em consideração o uso que os frequentadores querem fazer da praça para definirem sua estrutura? Em que medida essas pessoas podem modificar a estrutura da praça para sua fruição? Só o poder público pode interferir em sua estrutura ou seus frequentadores também podem fazê-lo? A arte contextual de Ardenne (2004) está inserida diretamente na realidade, busca compor tramas entre os participantes, colocar em debate suas próprias opiniões, visando “tecer junto” a realidade como um tecido móvel. A partir da escuta do lugar o “Plante na praça” foi se desenvolvendo, de acordo com as necessidades ou desejos dos que decidiram se integrar na ação ou intervir no local da maneira mais livre possível, ou raras vezes direcionadas por mim. O “Plante na praça” aconteceu e acontece enquanto ação artística quando se inseriu dentro do contexto vivido pelos colaboradores que decidiram aderir a ele, modificando o cenário cotidiano que existia na praça. A interação resulta em uma ligação direta, sem intermediário, entre a “obra” e a realidade de quem se relaciona, dessa maneira, lida com a realidade de quem habita o local, os acontecimentos são fatos reais que se dão em tempo presente provocados pelos participantes que constroem juntos uma “obra” concreta e real, colocando em debate maneiras de partilha do espaço coletivo da praça. A ação aqui apresentada se difere da representação, pois não esquematiza ou simula algo apenas ficcional, ela é a “obra” em realidade participativa, propõe o embaralhamento entre as fronteiras da ficção e realidade. Para Guelton (2012), a “interpenetração” acontece quando o colaborador/ interator mistura sua realidade com a ficção proposta pelo trabalho artístico. Quando os frequentadores da praça decidem participar do “Plante na praça”, colaboram na construção do jardim - ou simplesmente se dedicam a construir um lugar mais agradável para se aproveitar os momentos livres -, iniciam seu canteiro/ação e dão continuidade a essa tarefa. Considero que os colaboradores, a partir do comprometimento em manter o canteiro ou a atividade que escolheram desempenhar, estão envolvidos, imersos na ação artística. Para Guelton (2012, p.352), “a imersão é uma situação altamente espacial, de um mergulho do sujeito em um ambiente físico e mental”. Pois, “estar envolvido numa situação urbana ou numa paisagem, ou sentir profundamente uma emoção, são experiências que caracterizam a imersão em situações reais”. O colaborador 134


além de acreditar, passa a atuar diretamente no desenvolvimento da ação, ele desempenha funções mirando o que se deseja obter. Para essa contaminação entre a ficção e a vida, ou a arte e a vida, Deleuze (1990) dá o nome de fabulação, portanto, ela acontece quando alguém em vida real se coloca na condição de ficcionador. A função fabuladora é direcionada para o futuro, para a criação de imagens novas. A partir de um estímulo dado pela arte, o participante/espectador costura ficções à sua realidade, ele fabula, cria seu devir. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mímese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernirbilidade, ou de indiferenciação (...) não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população (DELEUZE, 1997, p.11).

De acordo com o autor, o devir está inserido na realidade e nunca é imitação de algo, ele corresponde à soma entre o que se é e o que se deseja. O devir alimenta a máquina do desejo, sempre está “entre” ou “no meio”, é indefinido e disforme. É o resultado da junção de várias formas, que se difere do que era no princípio e também do que se pretendia vir a ser. Para a ação artística, as sementes semeadas eram os meus desejos e os desejos de cada colaborador, que nascia e se entrelaçava no devir da praça. Além de alcançarmos resultados diferentes do que planejamos, a construção coletiva fez com que a ação se desenvolvesse como um emaranhado, onde do início ao fim existiam vários ramos entrelaçados. Cada espaço livre que se ocupava, cada novo canteiro, os botões de flores se preparando para desabrochar, os frutos que começavam nascer e amadurecer, as pessoas que se divertiam frequentando e se fotografando na praça, muitos desses momentos, além de vivenciados, eram registrados e publicados em uma página virtual. O diário imagético coletivo e virtual foi construído na linha temporal do Facebook de acordo com o desenrolar dos acontecimentos reais e lúdicos na praça, onde os focos e assuntos são tão fluidos quanto a vivência no ambiente real. As fotos funcionaram como um relato de imagens estáticas, onde foi possível ilustrar uma narrativa dos fatos acontecidos na praça. Desenvolvido por vários olhares, a partir do ponto de vista de cada um dos fotógrafos colaboradores e de suas perspectivas, a narrativa é contada por várias versões de diferentes fatos e possui, além de deslocamentos, dilatações e compressões temporais.

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Conclusão O “Plante na praça” foi uma ação artística produzida a partir da colaboração de frequentadores da Praça Said Chacur. A ação visou implantar questionamentos aos frequentadores do local sobre os usos e desejos de uso com relação ao espaço partilhado da praça. Dependente da participação ativa dos colaboradores, a ação contaminou a realidade vivida pelos colaboradores com a ficção que o trabalho artístico propôs. Ao se sentirem convencidos e acreditarem em seus desejos de novas soluções para a praça, partiram para a ação, construindo resultados práticos e ativando o “Plante na praça”. Imersos na ação artística, os colaboradores se dedicavam a desempenhar suas atividades e a cuidarem das plantas. Alguns dos acontecimentos do “Plante na praça” foram fotografados, por diversos olhares, e postados na página do Facebook, construindo um relato imagético e narrativo da ação. Além das lembranças de cada um que vivenciou essa ação, essas imagens são o que se possui de registro das ações desenvolvidas na praça. Porém, defendo que o maior potencial ficcional está na ação que se desempenha no contexto real da praça.

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Referências

ARDENNE, Paul. Un art contextuel. Paris-FR: Flammarion, 2004. DELEUZE, Gilles. Crítica e clinica. Tradução de Peter Pál Pelbart, São Paulo, SP: Ed. 34, 1997. _______________. Cinema 2: Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo-SP: Editora Brasiliense, 1990. GUELTON, Bernard. Ficções e interações: as ficções artísticas e a questão do espaço. Tradução de Nikoleta Kerinska e Beatriz Rauscher. Ouvirouver, Uberlândia, v. 9 n. 2 p. 346-366 jul./dez. 2013.

Andressa Rezende Boel é mestranda no Programa de Pós-graduação em Artes, no Instituto de Arte, na Universidade Federal de Uberlândia (PPGA-IARTE-UFU). Graduada em licenciatura e bacharelado pela mesma instituição.

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A Biblioteca pública foi uma iniciativa anônima que conquistou muitos dos frequentadores da praça. Trata-se de uma casinha de cachorro presa a um tripé e amarrada em uma árvore. A biblioteca é um ponto de troca, onde diversas pessoas deixam ou pegam livros para leitura, tanto para ler na praça quanto fora. O Trocando Palavras surgiu após a Biblioteca Pública, talvez como uma evolução a ela. Seus idealizadores entenderam que a biblioteca fixa não promovia o encontro e a troca de experiências de leitura e conversas. O Trocando Palavras funcionava como um evento, que ocorria sempre de manhã no último domingo do mês, onde todos poderiam tomar café da manhã juntos, doar livros, levar para suas casas e conversar sobre suas leituras. Uma das edições do evento contou com a participação de um grupo musical e com exposição de telas. O curta-vida-curta foi um evento artístico-festivo que aconteceu em um final de semana na praça, nos últimos dias de vida dos girassóis. Os artistas convidados promoveram trabalhos artísticos de característica transitória/efêmera e participativos no contexto da praça, no qual todos os frequentadores foram convidados para participarem. 137


A fotografia como documento no processo de criação, narrativas, desvios e fabulações: entre o contexto urbano e o espaço expositivo

Mariza Barbosa de Oliveira Grupo de pesquisa Poéticas da Imagem UFU/CNPq, ESEBA - UFU

RESUMO Este artigo propõe discutir a fotografia como documento de ações artísticas realizadas em contexto urbano, entendendo sua importância como antecedente e desdobramento das ações artísticas. Nesta abordagem as imagens fotográficas apresentam funções que passam pelas tomadas de imagens, como operações do processo de investigação poética da cidade, como meio para criação de objetos utilizados nas ações artísticas e ainda como registro das próprias ações em contexto urbano. A discussão passa pelas narrativas propiciadas por estas imagens fotográficas, que ao serem deslocadas do contexto que as originaram, ganham outros significados, desdobrando possibilidades. A abordagem é referenciada no apoio teórico de Luiz Claudio da Costa no que concerne às questões dos documentos em trabalhos de Arte Contemporânea. Para tratar de questões referentes aos desvios da narrativa e fabulações são consideradas as contribuições de W. J. T. Mitchel, Gilles Deleuze e Rancière. PALAVRAS-CHAVE Fotografia, Arte contextual, documentos do processo de criação, fabulações.

ABSTRACT This article aims to discuss photography as a document of artistic actions carried out in the urban context, understanding its importance as a precedent and deployment of artistic actions. This approach presents the photography functions that pass through the taken images, such as operations of poetic investigation process of the city as a means of creating objects used in artistic actions and as a record of its own actions in an urban context. The discussion goes through narratives afforded by these photographic images, which when displaced from the context that gave rise, gain another meaning, expanding possibilities. The approach is referenced in the theoretical support of Luiz Claudio Costa in relation to the issues of the documents in contemporary art works. To address issues related to the narrative shifts and fables are considered the contributions of WJT Mitchell, Gilles Deleuze and Rancière. KEYWORDS Photograph, contextual art, documents of the creation process, fable. 138


1. A fotografia como operação no processo criativo A análise proposta neste artigo pretende discutir as imagens fotográficas no próprio processo criativo, especificamente na concepção de trabalhos realizados em contexto urbano. A fotografia desempenha funções distintas: num primeiro momento ela é uma das operações utilizadas para registrar imagens da cidade, tendo sua importância na investigação poética do espaço urbano, por vezes é um meio para a criação de objetos utilizados nas ações artísticas, tendo papel de mediadora na relação entre a proposição artística e a participação do público e, por fim desempenha o papel de registrar e documentar as ações contextuais. O objetivo do texto não é analisar cada trabalho citado, mas toma-los como referência para discutir a fotografia no processo criativo. As imagens citadas tratam-se de fotografias relacionadas a diferentes etapas do processo de criação, sendo que a cidade é o foco de observação, o tema, a matéria e lugar da criação artística. As imagens fotográficas de investigação poética da cidade podem ou não ter relação com ações artísticas realizadas, nem sempre elas apresentam uma unidade, por se tratarem de imagens tomadas de forma imediata. Não há um critério preestabelecido para captá-las. Elas formam um banco de curiosidades, de observações em relação aos percursos realizados na cidade. Tais imagens fazem parte do processo de sondagem do espaço urbano, operação essencial para o método usado neste processo de criação, como forma de aproximação e conhecimento do contexto, antecedendo desta maneira, a elaboração de propostas de ação artística. As imagens consideradas foram concebidas a partir do ano de 2010 até o presente momento, são registros fotográficos de situações cotidianas nos percursos da cidade.

Figura 1. Mariza Barbosa, registros de percursos pela cidade – à esquerda ponto de ônibus na Rua Pelego, 2010, no centro passarela de pedestres na Av. João Naves de Ávila, 2013, à direita Rua da Bandeia, 2015. Fotografias: arquivo da artista.

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Também são consideradas as ações artísticas “Um tour pelo céu de Itajaí, Uberlândia e Patos de Minas” (2013-2014). As ações foram realizadas em espaços públicos das cidades, consistindo em proposições para que o público passante pudesse participar soltando pipas com imagens fotográficas do céu daquele lugar específico. A proposta chama a atenção para o uso de espaços como praças, que são lugares que trazem uma vocação lúdica em sua natureza, mas que nem sempre se estabelece no cotidiano da cidade. Também propõe a observação do céu por meio das imagens fotográficas impressas nas pipas e pela própria ação de soltá-las. O objetivo é sensibilizar o olhar dos praticantes da cidade para seus espaços, pensando-os como lugares de lazer e socialização, ativando o olhar para o céu. Sabendo que muitas vezes a pressa do cotidiano das cidades nos limita a olhar nossos caminhos traçados pela rotina, perdendo momentos de simples contemplação e apropriação dos espaços públicos destinados à convivência como praças.

Figura 2. Mariza Barbosa, à esquerda “Um tour pelo céu de Itajaí”, fotografia, 2013. Fotografia Saimon Simas, no centro “Um tour pelo céu de Uberlândia”, fotografia, 2014. Fotografia da autora, à direita “Um tour pelo céu de Patos de Minas”, fotografia, 2014. Fotografias: arquivo da artista.

Neste caso a fotografia está presente em todas as etapas do trabalho, desde a tomada das imagens do céu, depois estas imagens são transformadas em fotografia-objeto (pipa) para ser utilizada nas ações artísticas e por fim são feitos registros fotográficos das ações realizadas nas cidades. Também são abordadas as exposições “Trânsitos poéticos” e o projeto de exposição “Modos nada práticos de ver e curar o mundo”, que se valem da fotografia como importante documento do processo na composição de instalações. Estas exposições de documentos visam aproximar os expectadores, frequentadores dos espaços expositivos, das operações do processo criativo e das ações realizadas em contexto urbano. “Trânsitos poéticos” aconteceu no MUnA (Museu Universitário de Arte) em 2012, trazendo para a galeria trabalhos realizados durante o Curso de Mestrado em Artes, apresentando os registros do processo de criação desenvolvido durante a pesquisa, 140


especialmente os documentos de duas ações artísticas realizadas: “Jogo da Memória: qual é o ponto?” e “Sardinha In Trânsito”. As ações artísticas foram concebidas a partir da investigação poética de um fragmento específico da cidade de Uberlândia (MG) – o Bairro Morumbi, onde se tomou como foco os pontos de ônibus como possíveis lugares de subjetivação, exercício que resultou na ação “Jogo da Memória: qual é o ponto?” Esta experiência e o desenvolvimento da pesquisa permitiram avançar para outros lugares da cidade, por meio das linhas do transporte coletivo em “Sardinha In Trânsito”, trabalho realizado em parceria com a artista Marcelle Louzada.

Figura 3. Mariza Barbosa, vistas da exposição “Trânsitos poéticos”, Instalação, 2012. – Acervo pessoal. Fotografia: Marcio Spaolonse e Fenando Gomes.

Já a proposta de exposição “Modos nada práticos de ver e curar o mundo” foi aprovada no edital da Casa da Cultura da América Latina (UnB) para o ano de 2015. Tratase de uma proposta coletiva composta em parceria com Amanda Sousa, Andressa Boel, Mara Porto e Priscila Rampin, também integrantes do Grupo de Pesquisa “Poéticas da Imagem” (UFU/ CNPq). A proposta de exposição reúne documentos do processo de criação que permeiam ações artísticas em contexto urbano. Dentre os documentos estão anotações, desenhos, imagens fotográficas de trajetos realizados na cidade, objetos usados nas ações artísticas e fotografias de registros destes trabalhos conectados por um mapa afetivo projetado coletivamente.

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Luiz Cláudio da Costa, ao discutir os dispositivos de registro na Arte Contemporânea destaca a possibilidade de os documentos do processo gerarem outras propostas: uma fotografia, um objeto, um desenho, um esquete, uma frase sobre algum papel, uma ideia. Fragmentos que podem se desdobrar em novos trabalhos, dando continuidade ao processamento da ideia inicial. Em outras palavras, os desdobramentos se tornam possíveis ao tomar como ponto de partida os fragmentos remanescentes, uma vez que estes pertencem à ideia e ao processo de trabalho. (2009, p.21)

A proposta reúne documentos de diferentes processos criativos que têm em comum o interesse por ações artísticas contextuais, gerando a visualidade de uma cartografia híbrida do espaço. A proposta é criada a partir de percepções reais a respeito da cidade, mas à medida que as impressões de percursos são representadas por meio de mapas e embaralhadas aos documentos dos processos de criação, tornam este espaço ficcional (Figura 4).

Figura 4. Imagem da exposição: “Modos nada práticos de ver e de curar o mundo”. Fotografia: Priscila Rampin, 2015.

Figura 5. Vistas da Exposição “Modos nada práticos de ver e curar o mundo” Instalação, 2015. – Acervo pessoal. Fotografia: Priscila Rampin.

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2. Narrativas, desvios e fabulações Tendo em vista este conjunto de imagens como referência para a discussão da fotografia, será tomada emprestada a indagação proposta por W. J. T. Mitchell: “O que as imagens querem?” (2015, p. 166). O autor ressalta que a pergunta solicita a subjetivação das imagens, uma personificação, mas que não elimina a interpretação dos signos e sim um deslocamento do alvo da interpretação, a modificação da imagem que temos da própria imagem. Segundo ele: as chaves para este deslocamento são: 1) consentir com a ficção constitutiva das imagens como seres “animados”, quase agentes, simulacros de pessoas; e 2) considerar as imagens não como sujeitos soberanos ou espíritos desencarnados, mas como subalternos cujos corpos são marcados pelos estigmas da diferença, que funcionam tanto como médiuns como como bodes expiatórios no campo social da visualidade humana. (MITCHELL, 2015, p.185).

Os diferentes papéis exercidos pela fotografia na criação de imagens, conforme requer o processo criativo, supõe que as imagens fotográficas envolvidas na análise querem coisas diferentes. No entanto poderia supor que elas têm desejos em comum, já que todas elas se caracterizam por serem documentos do processo, ainda que se apresentem como operações de investigação, objeto ou como registro. Portanto estas imagens fotográficas podem querer atestar presenças, comprovar os trânsitos pela cidade, recortar células de realidade para maior aproximação entre a proposta artística e o público requisitado por elas, pois assim estas seriam reconhecidas como parte de seu mundo e promoveriam aproximações com o trabalho. Cumprindo o papel de registro das ações contextuais, poderiam pretender ainda, legitimar e ou comprovar tais ações artísticas, sendo uma espécie de prova de que elas de fato aconteceram, de que os espaços foram vistos e certificar que os espectadores possam, de alguma forma, se aproximarem do processo e vivenciar o que acontecera em outo tempo e espaço por intermédio delas. Mas segundo análise de Mitchell, a respeito da estratégia de análise das imagens no sentido de considerar os seus desejos, é importante que não confundamos este desejo ao desejo do artista, do espectador ou das figuras na imagem. “O que as imagens querem não é o mesmo que as mensagens que elas comunicam ou o efeito que produzem, não é sequer o que ela diz querer. Como as pessoas, as imagens podem não saber o que querem, devem ser ajudadas a lembra-lo através do diálogo com o outro.” (2015, p. 185). Em relação a este método de análise, Mitchell o trata também como certa personificação ambígua de objetos inanimados, que segundo ele “flerta com uma atitude regressiva e supersticiosa em relação às imagens e, que se tomada seriamente, nos levaria de volta a 143


práticas como totemismo, fetichismo idolatria e animismo.” (2015, p.166). Práticas consideradas primitivas, infantis quando tratadas em sua forma original, como por exemplo, as ações de adorar objetos materiais ou tratar objetos inanimados como se estivessem vivos. Para discutir as imagens fotográficas citadas anteriormente, tomando-as a partir deste método, a discussão poderá encaminhar então pela abordagem de sua autonomia, não no sentido de lhes atribuir poder, mas de reconhecer sua vontade e admitir certa fragilidade que elas adquirem, escapando ao controle daquilo que se espera delas, principalmente quando estas imagens-documentos estão deslocadas de seu contexto de criação e se veem diante das expectativas de narrarem a respeito de ações contextuais. Luiz Cláudio da Costa afirma que “a ‘documentação’ artística tem força poética e pode criar seus próprios valores”. (2009, p.22). Há de se constatar, portanto, que as imagens de documento, de registro desdobram uma situação artística, a faz tornar outra, gera outras narrativas, distintas daquelas que ocorrera, ainda que estejam sempre ligadas a ela. A autonomia de uma imagem-registro é sempre relativa ao contexto em que aparece, o que dá a ela potência relacional. Elas mantêm evidente a relação de contato com o contexto referencial, mas também podem, com facilidade, agenciar outras imagens, suportes e espaços, levando a modos de exibição diferenciados, espacializações diversificadas, justaposições e organizações para táticas, bem como a conjugações livres com materialidade distintas. (COSTA, 2009, p. 24)

Poderíamos alegar então que estes documentos fotográficos podem querer produzir outras situações, distintas daquelas que a geraram, criar ficções a partir das referencias ligadas ao contexto. Neste sentido, podemos associar este possível desejo das imagens à função fabuladora, discutida por Deleuze no livro “A imagem-tempo”. Analisando imagens geradas pelo cinema, Deleuze trata da função fabuladora e seu papel político, se referindo à fabulação relacionada à personagem real, “quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra “em flagrante delito de criar lendas”, e assim contribui para a invenção de seu povo. (...) Ela própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia.” (2005, p.183) Segundo o autor, o cinema também torna-se outro, quando personagens reais substituem suas próprias ficções pelas fabulações próprias deles. “Ambos se comunicam na invenção de um povo.” (Ibidem). Seria, portanto, tarefa da arte:

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não dirigir-se a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador proclama “nunca houve povo aqui”, o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, com novas condições de luta, para as quais uma arte necessariamente política tem de descobrir.” (DELEUZE, 2005, p.259-260)

A respeito do potencial político da arte de acordo com a análise de Rancière, “as imagens da arte não fornecem armas de combate” (2012, p.100), contribuem para esboçar novas configurações do visível, do dizível e do pensável, mas não antecipam seu sentido e efeito, provocando tensões apontando para a política do sensível. Ao discutir as imagens fotográficas de registro, entende-se que o papel político das ações artísticas vai além do momento em que elas são realizadas em contexto, se estendendo pelas imagens fotográficas geradas a partir delas. Vinculadas a situações reais e específicas e, ao mesmo tempo distante no tempo e no espaço, as imagens fotográficas de documento encontram condições para fabular. A respeito da função fabuladora no cinema Deleuze esclarece que: a fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz ela própria, enunciados coletivos.” (2005, p.264).

Trazendo esta análise para discorrer sobre as hipóteses a respeito do desejo das imagens-documento, podemos supor então que elas podem querem criar fabulações. As três categorias citadas como operações do processo criativo partem de situações reais: as fotografias de investigação poética da cidade, as fotografias-objetos usadas nas ações artísticas e as fotografias de registro das ações em contexto urbano. As fotografias de registro, em especial, quando deslocadas dos seus contextos e levadas ao espaço expositivo, juntamente com outros documentos do processo, tendem a criar narrativas fictícias, provocando outras realidades possíveis, tornam-se outras, levando situações que são específicas do contexto em que foram originadas a outro espaço. Podemos supor que a pretensão destas imagens não é garantir narrações lineares e verídicas a respeito das ações realizadas em contexto, mas desdobrá-las em outras possibilidades, é certo que impregnadas de significações de seus referentes. E estas imagens ainda que contaminadas por experiências reais, produzem narrativas fictícias. Ao organizar estas imagens de registros, sistematizando-as no espaço expositivo, elas podem ganhar autonomia para configurar outras organizações, revelando aspectos que são próprios daqueles contextos, mas que se tornam amplos diante deste novo espaço que passam a compor configurações fictícias. A realidade, o contexto que as motivou sai 145


do seu estado particular, específico, para produzir enunciados coletivos em relação à cidade, é como se estas imagens figurassem espaços subentendidos da cidade. Desta forma, ao indagar às imagens fotográficas de documentos do processo de criação a respeito do que elas querem, e segundo Mitchell, o que “as imagens querem, em última estância, é simplesmente serem perguntadas sobre o que querem” (2015, p.187), sabemos que a certeza da resposta é inatingível. Como o interesse na resposta ainda persiste, permanece também o diálogo com tais imagens. Este método parece ter uma relação com a fábula, no sentido que são dadas vozes àqueles que pareciam impossibilitados de fazê-lo a fim de criar narrativas. A discussão leva a acreditar que o desejo das imagens fotográficas de documentos do processo de criação está relacionado às suas possibilidades de desdobramentos e criação de fabulações em relação à cidade, à medida que a fotografia guarda a relação com o contexto referente, mas ao se deslocar dele, possibilita a criação de narrativas ficcionais.

Referências

COSTA, Luiz Claúdio da (org.). Dispositivos de registro na Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/FAPERJ, 2009. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. MITCHELL, W. J. T. O que as imagens realmente querem? In: ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: autêntica editora, 2015. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

Mariza Barbosa de Oliveira é docente na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA – UFU), possui Graduação em Artes Plásticas (Licenciatura e Bacharelado) e Mestrado em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia. 146


Estratégias ficcionais como mediação de um modo de ver o mundo: as ações artísticas de “Pequenas Desordens”

Priscila Rampin Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, UFU/CNPq, Universidade Federal Fluminense

RESUMO A realização do trabalho intitulado “Pequenas Desordens” implica na geração de arquivos, principalmente o fotográfico, de cenas reais e triviais da cidade. O artigo relata como a adoção de uma estrutura ficcional, que inclui a criação de uma empresa, apresenta-se, por um lado, como uma alternativa expositiva desses registros e, por outro, como um modo de friccionar os limites desse mesmo real. PALAVRAS-CHAVE Pequenas Desordens, registros fotográficos, ações artísticas, documento, ficção.

ABSTRACT The development of the work entitled "Pequenas Desordens", has generated records, mainly photographic, of real everyday urban scenes. The article describes how the adoption of a fictional framework, including the creation of a company, on the one hand might be an alternative mode of exhibition of these records, and on the other hand might blur the limits of that real. KEYWORDS Pequenas Desordens, records, artistic propositions, documents, fiction.

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Observo a cidade. Busco uma versão específica deste lugar que compartilhamos: o cotidiano em pequenas escalas, os modos de uso, os resquícios de uma atuação urbana, o que sobrou, o que foi esquecido, largado ou colocado nas vias públicas. “Pequenas Desordens: usos físicos e simbólicos da cidade” é o título da pesquisa à qual tenho me dedicado nos últimos dois anos. O trabalho se inicia com o passo exploratório e a mirada atenta para notar os amontoados, os descartes, o lixo, os cartazes, os avisos banais, os descuidos, os “erros” e outros modos de apropriação e desapropriação do espaço público que atraiam a lente da lupa. O registro fotográfico e, mais recentemente, também o sonoro, além das anotações, mapas, documentos e elementos coletados, têm funções variadas durante a realização do trabalho e desempenham um papel determinante em seu resultado. Eles alimentam as ações, ademais de servirem à minha própria rememoração e apreensão dos eventos. As atribuições dos registros têm se alterado em minhas produções, ao longo do tempo, situação que atribuo ao próprio desenvolvimento e amadurecimento dos trabalhos. “Cartão Postal: Paisagens do lixo e do esgoto”, proposição que antecede o atual “Pequenas Desordens”, por exemplo, origina-se de minha investida por áreas usadas para descartes inadequados de lixo urbano. Naquele momento, a fotografia desses locais resultou na distribuição de cartões postais insólitos, cujas cenas conflitavam com a noção do belo. O registro prestava-se, portanto, ao oferecimento e à circulação daquele cenário, assim como à comunicação de uma mensagem contida naquela fotografia. Nessa perspectiva, novos direcionamentos surgem à medida em que o arquivo imagético passa a mesclar a aspereza e a objetividade da paisagem do lixo com cenas de um urbano banal e excessivamente fragmentado, contando assim uma história que é muitas vezes instável, pois que submetida ao julgamento de quem olha para essa paisagem. Operar o deslocamento de uma cena capturada para os postais pareceu-me suficiente na ocasião, devido à singularidade das imagens de “Paisagens do Lixo”. A circulação dos impressos por meio da distribuição ou das “infiltrações” subversivas (Figura 1), em livrarias e bancas de revista ou em displays publicitários comumente instalados em bares, restaurantes e hotéis, faz destes elementos espaços expositivos que solicitam do “público” um posicionamento: afinal, o trajeto desse impresso será determinado por ele.

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Figura 1. Priscila Rampin, Infiltração de “Paisagens do lixo”, Livraria Laselva, Aeroporto de Confins, out. 2014. Fotografia da autora.

O “destino das imagens”1 das “Pequenas Desordens” seria outro. Na ânsia por compreender o potencial afetivo da visualidade do referido arquivo imagético, de recorte trivial e cotidiano, pesquiso as abordagens de Ranciére (2001) acerca do interesse dos artistas contemporâneos pelas imagens representativas do real. Jacques Rancière (2001) já apontava, mesmo que criticamente, para a função atribuída pelo artista à fotografia de registro, a qual, em lugar de ser tomada como obra, serve à leitura do mundo. Ao abandonar as metáforas e ceder lugar para as próprias coisas do mundo, explica o autor, o artista operaria apenas a trasladação de um elemento com vistas à apresentação artística, na expectativa de que assim esses elementos se tornassem “instrumentos críticos” (2001, p. 16). A superabundância e a banalização dessas imagens e dos próprios elementos do real reposicionados pelo artista, ao invés de atraírem pela radicalidade, tenderiam “[...] a um certo minimalismo” (op. cit., 2001, p. 16). Por um tempo, considerei que a reexposição dos registros das pequenas desordens pudesse, por si só, revelar a indiferença com a qual olhamos o mundo. E, com isso, renegar as teorias totalizantes, que afirmam a cidade contemporânea como sendo automatizada, não convidativa aos intercâmbios, às trocas e ao próprio uso. No entanto, tal efeito não seria atingível enquanto o sensível do trabalho não estivesse centrado no conteúdo da ideia, mas, ao contrário, na mera apresentação da imagem.

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Referência ao título do artigo e do livro de Jacques Rancière, “O Destino das Imagens”, o primeiro publicado no Caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo em 2001 e o segundo lançado pela editora Contraponto em 2012. 149


Ocupar-me com o apelo que a exibição deste arquivo teria aos olhos do espectador – ou seja, com o “como” mostrar – facilitou-me a organização do trabalho enquanto um programa de ações. Nesse programa, o eixo central é a observação de determinada fração do contexto real, a partir de onde se unem e se adicionam várias ações em feixes cujo objetivo é mediar uma descrição acerca do mundo. Em oposição à característica enciclopédica, como quer Rancière (2001), e também informativa, que certas exposições sobre o realismo cotidiano teriam explorado, concebo uma estrutura ficcional para conferir uma apresentação mais lúdica e mais preenchida de humor com o intuito de, desse modo, reduzir alguma “carga pedagógica” que, equivocadamente, o trabalho pudesse conter. Assim é inventado o Instituto de Pequenas Desordens2 e, por conseguinte, são sistematizados procedimentos que validam sua existência institucional: a adoção da personagem da Observadora, que uniformizada e munida de câmera fotográfica e da ficha de observação, empreende o registro das pequenas desordens da cidade; a criação de uma logomarca; anúncios em jornal; impressos; e, por fim, o aluguel temporário de um espaço físico comercial para abrigar as instalações do Instituto. A aposta na captura, deslocamento e circulação da imagem ganha novos modos operatórios. Se antes os esforços voltavam-se à visualidade dos registros, agora eles servem primeiro à ficção, investindo significado a todas as etapas e ações vinculadas ao trabalho. Os aparatos e meios utilizados para a sustentação do Instituto, bem como as interações estabelecidas antes e durante a instalação física e durante a ação da personagem (a Observadora), procuram torná-lo verossímil com situações comerciais reais (Figuras 2 e 3). A camuflagem, congregando aspectos ficcionais, cumpre a tarefa de contar a história da realidade das pequenas desordens sem que pese a exposição passiva do arquivo.

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Inicialmente, foi adotado o nome de Instituto de Observação de Pequenas Desordens. Posteriormente, a referência à observação foi suprimida, visando a garantir a amplitude de atuação do Instituto e não limitá-lo à função de observar. Tal alteração condiz com o atual formato do trabalho, que preza pela hibridação de narrativas, ficcional e documental. 150


Figura 2. Priscila Rampin, Instalação do Instituto de Pequenas Desordens, centro - Uberlândia. Nov. 2014. Fotografia da autora.

Figura 3. Priscila Rampin, “Pequenas Desordens”, ação artística de observação realizada em Buenos Aires, ago.2015. Arquivo da autora.

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Mesmo ciente de que a fotografia é imbuída do julgamento e da intervenção de quem fotografa, os quais acabam por reduzir os valores de verdade e de registro antes atribuídos a ela (FONTCUBERTA, 2014), as cenas que registro são, ainda assim, um recorte, um indício de realidade. É na rua, afinal, que as tomo: a câmera torna historiável um acontecimento, sugere Fontcuberta. Por outro lado, a estrutura ficcional criada parar enfrentar uma narração que incorpora elementos da realidade talvez traga uma desejada instabilidade e ambiguidade ao “Pequenas Desordens”. Todavia, a identificação de quais impactos os aspectos ficcionais acionariam e acionam no trabalho e nos seus possíveis públicos, e do modo como o fazem, são questões que ainda não estão dimensionadas, tampouco definidas. Até o momento, o trabalho se mostra mais ficcional na medida em que há uma produção posterior à ação de observação realizada na rua. Enquanto personifico as atividades da Observadora, dialogo com a concepção e a aparência de qualquer atividade laboral que ocorre na rua (por exemplo, a dos leituristas de energia e água). Há, nessa ação, elementos reconhecíveis e autenticadores do real: o uniforme, a metodologia da ação, uma prancheta e um formulário a ser preenchido, a máquina fotográfica ou o gravador. Se há atrito no modo em que sou percebida pelos passantes, ele decorre do fato de que “o que e como fiscalizo” pode, em algum momento, não se enquadrar em nenhum dos serviços costumeiros. A própria ficha possui características absurdas, de modo que uma rápida olhadela por parte do passante seria suficiente para colocá-lo em confronto com seus próprios mecanismos de reconhecimento do real. Pode-se explicar essa resposta do “público” comparando-a com os modos de recepção de um filme de ficção que aborda uma personagem referenciada no real ou um fato histórico. A crença – ou não – na história inventada estará vinculada ao julgamento e ao conhecimento prévio que o espectador tem do assunto. (MIRANDA, 2014). Em uma recente residência artística realizada na cidade de Buenos Aires, pude explorar a característica ambígua do trabalho de outro modo. A ficha mencionada, que era preenchida durante a ação na rua e que, até então, continha indicadores reconhecíveis e formais, passa a privilegiar a não identificação, de modo a tornar o documento “funcionalmente” inútil (Figura 4).

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Figura 4. Priscila Rampin, “Pequenas Desordens”, ficha de observação, 2015. Arquivo da autora.

O escritório do Instituto, antes montado na rua e, portanto, relacionado com o contexto da cidade, em Buenos Aires ocupa uma sala expositiva. A adaptação da versão argentina do Instituto de Pequeños Desórdenes para um espaço de arte se aproxima, portanto, ao formato de um filme de ficção com sugestão à realidade conhecida, onde o espectador ativa o tal “mecanismo de constatação” que coloca em perspectiva o conhecimento que ele próprio tem do assunto. “O espectador tem consciência de que está vendo uma ficção, mas as imagens de arquivo e os dados históricos comprováveis o empurram para o exterior, em direção aos referentes reais”.3 (MIRANDA, 2014, p. 115, tradução minha) Os cruzamentos e fronteiras entre a produção cinematográfica documental e a ficcional têm sido objeto de estudo do Grupo de Estudios e Investigación del Cine Latinoamericano (GEICIL), lotado no Instituto de Artes do Espetáculo da Universidade de Buenos Aires (UBA). Há uma série de filmes, lançados desde a década de 1990, que renovaram a discussão sobre o estatuto do real pela notada perda dos domínios nítidos entre o que seria documento e o que seria ficção. Parte-se do pressuposto de que “[...] existem múltiplas mediações sobre o mundo real e nossa observação e, portanto, o real

3

No original: “El espectador tiene consciencia de estar viendo una ficción pero, a su vez, las imágenes de archivo y los datos históricos comprobables lo empujan hacia el exterior, en dirección a los referentes reales”. 153


não é senão um constructo relacionado a um contexto histórico específico.” (PALADINO et al., 2014, p. 14, tradução minha)4 Os dispositivos técnicos e os códigos estéticos anteriormente aplicados às ficções agora amparam os documentários, ampliando de importância a narrativa a ser contada – a mediação – mais do que o fato histórico no qual esta é referenciada. “Pequenas Desordens” é, portanto, uma hibridação entre documento e ficção. Não estabeleço um pacto de leitura prévio com os diversos possíveis públicos, como seria o caso clássico de um filme de ficção, mas o programa de ações que desenvolvo pode ser mais ou menos crível, a depender da etapa ou fase da execução do trabalho. O maior grau de realismo do trabalho e, portanto, uma aparente objetividade, são garantidos durante a caminhada e nos registros das pequenas desordens. A partir daí, as ações passam a ocupar-se da construção narrativa ficcional, que, imediatamente contrária à objetividade do arquivo, busca a instabilidade e a ironia, mas também o convencimento. Em Uberlândia o Instituto de Pequenas Desordens funcionou em horário comercial e colaboradores, uniformizados e identificados como membros da equipe do Instituto, se revezavam no local. Ao final do período, a maioria das visitas foi espontânea. Eram pedestres e clientes do comércio local que, movidos pela curiosidade, adentravam o estabelecimento. Um “público” sobre o qual e para o qual a pesquisa se dá e que, certamente, não seria cativado se o formato da “exposição” fosse outro. Em Buenos Aires, a sala expositiva foi usada como um escritório durante todo o período de feitura do trabalho e, portanto, da residência. Naquele espaço se davam a organização das atividades do Instituto já realizadas, bem como o planejamento das próximas etapas. A apresentação final comparava-se à aparência de uma sala de reunião (Figura 5).

4

No original: “Las investigaciones académicas sobre el documental trabajan entonces a partir de la idea de que existen múltiples mediaciones entre el mundo real y nuestra observación y, por lo tanto, lo real no es sino un constructo ligado a un contexto histórico específico”. 154


Figura 5. Priscila Rampin, “Pequeños Desórdenes, edición Buenos Aires”, Instalação, Ago.2015, La Paternal Espacio Proyecto, Buenos Aires. Arquivo da autora.

Ambos os formatos de instalação do Instituto pretendem ir além de uma modesta transposição de imagem. Que seja possível contar sobre cada gesto mínimo dos usuários da cidade para eles mesmos, deixando cambaleantes as mensagens e as intenções.

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Referências

FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora: a fotografia depois da fotografia. Trad. Maria Alzira Brum. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. (Edição Kindle, 2014) MIRANDA, Susana. Personajes de ficción con referentes reales: Planteo de una problemática. In: PALADINO, Diana et al. Documental / Ficción. Reflexiones sobre el cine argentino contemporáneo. Sáenz Peña: Universidad Nacional de Tres de Febrero, 2014. p. 105-124. PALADINO, Diana et al. Documental / Ficción. Reflexiones sobre el cine argentino contemporáneo. Sáenz Peña: Universidad Nacional de Tres de Febrero, 2014. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Folha de S.Paulo, São Paulo, 28 jan. 2001. Caderno

Mais!,

p.

16-17.

Disponível

em:

http://acervo.folha.com.br/fsp/2001/01/28/72//73813. Acesso em: 01 maio 2014. _________________. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Priscila Rampin é artista visual. Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes, Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS). Graduação em Artes, Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduação em Administração de Empresas, UNAERP. Integra o Grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem CNPq/UFU. 156




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