revista política social e desenvolvimento #08
DESIGUALDADE E PROTEÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA Robert Boyer
Lena Lavinas
ANO 02_Novembro 2014
plataforma política social Código ISSN: 2358-0690
Revista eletrônica desenvolvida pela rede Plataforma Política Social Agenda para o Desenvolvimento que reúne cerca de 300 pesquisadores e proossionais de mais de uma centena de universidades, centros de pesquisa, órgãos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento social.
Apoio:
www.fes.org.br
Direção de Arte e Editoração:
Coletivo Vaidapé
Índice 04 Apresentação Eduardo Fagnani e Thomas Conti
06 O Brasil como o pioneiro no crescimento inclusivo da América Latina:
O próximo passo da política social Robert Boyer
18 América Latina:
Mínimos monetários em lugar da proteção social Leva Lavinas
apresentação
[ revista política social e desenvolvimento Professor#08 do ]
Eduardo Fagnani
Thomas Victor Conti thomasvconti@gmail.com | www.thomasconti.blog.br
Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Política Social - Agenda para o Desenvolvimento Mestrando em desenvolvimento econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp
Do início dos anos 90 até hoje, a forma de entender a política social na América Latina foi marcada pelo duro embate entre o novo consenso internacional de pensamento econômico, o neoliberalismo, e as gritantes cicatrizes sociais herdadas das décadas anteriores, caracterizadas pela rápida urbanização sob regimes ditatoriais excludentes. A entrada no século 21 é ponto importante nessa linha histórica, por se verificar o aumento da inclusão social nas novas democracias dos diversos países da região, especialmente o Brasil. Por outro lado, os marcos em que esses avanços foram realizados exigem constante atenção daqueles preocupados com a noção de direito social e interessados em uma sociedade que se organize de forma a prover aquele direito, devida e universalmente. É sobre esses marcos de preocupações, tempo e espaço que se debruçam os dois artigos desta edição. Em “O Brasil como pioneiro no crescimento inclusivo na América Latina: o próximo passo da política social”, Robert Boyer busca situar a redução da desigualdade e o aumento dos gastos sociais nos países da América Latina diante do peculiar contexto econômico e geopolítico mundial em que tal redução se fez possível. Até que ponto podemos tomar as tendências positivas de aumento no gasto social entre 2000 e 2014 como asseguradas para os próximos anos? Quais são as insuficiências desse arranjo e quais os principais riscos que podem colocá-lo em xeque nos próximos anos? Essas são as perguntas norteadoras que fazem Boyer debruçar-se sobre o papel do aumento do preço das exportações causado pela ascensão chinesa, e a necessidade de pensar o que fazer para manter e ampliar os gastos sociais diante dos sinais de estagnação da produção industrial doméstica e de um provável contexto de redução do comércio internacional. No artigo “América Latina: mínimos monetários em lugar da proteção social”, Lena Lavinas acessa a tensão entre o gasto social direcionado para políticas de transferência direta de renda e o gasto social em bens públicos básicos, como água tratada, saneamento e saúde. Nos últimos anos, 4
[ revista política social e desenvolvimento #08 ] a preferência pela ampliação das transferências de renda foi capaz de reduzir significativamente a miséria e a pobreza sem grandes comprometimentos do orçamento. Porém, as transferências de renda associadas à continuidade de carências básicas no acesso a bens públicos mínimos levou à maior participação do setor privado em todos os setores envolvidos, principalmente na saúde e na previdência. A autora alerta para os riscos que esse arranjo traz à universalização do acesso aos direitos básicos, pois a política social de certa forma passa a aceitar a expansão de um sistema dual, onde cada vez mais aqueles capazes de pagar pelo acesso ao sistema privado o fazem, e o sistema público progressivamente perde bases para políticas compensatórias de universalização. Como pano de fundo da discussão dos autores, a pressão popular das manifestações de junho de 2013 no Brasil recolocaram na pauta política a demanda pela melhoria e expansão dos serviços públicos de saúde e educação. Após dez anos de avanços na área social e no rendimento real do salário mínimo, esses sistemas continuam sendo vistos como insuficientes e, como coloca Boyer, podem ser mais uma expressão da necessidade de se criar um novo padrão de desenvolvimento que seja sustentável para os próximos anos ou décadas. Para prosseguir nesse sentido, deve-se repensar uma forma de compatibilizar a expansão dos gastos sociais em bens públicos com a manutenção da competitividade de setores-chave da economia, principalmente a indústria. O padrão de referência é o modelo do “capitalismo de bem-estar social” dos países nórdicos, onde o acesso universal e de qualidade a todos os bens públicos básicos caminha lado a lado com um sistema econômico capaz de inovar e manter-se eficiente. Boyer coloca como central para o caso brasileiro, e generaliza para os demais países da América Latina, a necessidade de vincular o aumento do welfare com a produção nacional, principalmente a indústria. Lavinas problematiza essa relação entre o sistema produtivo e a expansão das políticas sociais: o tipo de resposta econômica que se obtém mediante a expansão do sistema de transferências monetárias é fundamentalmente distinta de respostas à expansão do sistema de provisão de bens e serviços sociais públicos. A primeira ativa a produção voltada para a lógica mercantil usual, que trabalha com a individualização do acesso conforme a capacidade de cada um de pagar pelos serviços demandados. É fácil inferirmos como em algumas cadeias produtivas essa lógica é muito mais difícil de ser aplicada, como é o caso do saneamento, onde regiões de baixa densidade populacional, como as áreas rurais, ou regiões de baixa renda onde as pessoas não poderiam pagar pelo acesso aos serviços, são deixadas de lado pelo setor privado. Esta edição da Revista Política Social e Desenvolvimento mergulha assim no problema central de nossa época: como proteger, manter e ampliar a noção de direitos básicos do cidadão diante dos fortes interesses pela mercantilização crescente dos serviços públicos? Inúmeros são os desafios, e as análises que acompanham este exemplar sem dúvida trazem contribuições importantíssimas para marcar e ilustrar o quanto caminhamos nos últimos anos e a árdua estrada que ainda separa os países latino-americanos de uma realidade mais justa e menos desigual. Dito isso, contamos e esperamos que a leitura seja tão enriquecedora para o leitor quanto foi para nós.
Boa leitura!
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O Brasil como o pioneiro no crescimento inclusivo da América Latina: O próximo passo da política social
Robert Boyer
Robert.boyer@ens.fr | Artigo especialmente preparado para a Revista Política Social e Desenvolvimento.
1. Será que vivemos uma bifurcação na história latino-americana? A década 1990 realmente experimentou um fortalecimento da desigualdade com poucas exceções, mas a década de 2000 mostra uma inversão nos coeficientes de Gini para a grande maioria das economias da América Latina: Brasil, Argentina e México, são bons exemplos dessa mudança, enquanto o Uruguai apresenta melhorias constantes de período a período na equidade da distribuição de renda, e esta é uma evidência da relativa autonomia dos processos sociais e políticos internos. No entanto, existem fatores comuns que impulsionam essa inversão. Será que 6
Economista, Institut des Amériques - 60 Boulevard du Lycée, 92170 Vanves (França). [Traduzido por Thomas Victor Conti]
persistirão e criarão uma grande bifurcação histórica na história da região? Estão eles relacionados a uma inserção comum na economia mundial, ou a transformações mais internas, como, por exemplo, uma melhor resposta às crises financeiras e a invenção de novas políticas que visem à inclusão social? 2. Não uma única causa, mas uma combinação de fatores políticos, econômicos, geopolíticos, sociais. Revisão da vasta literatura sugere que pelo menos quatro grandes mudanças permitiram reverter uma longa história de desigualdade grande e persistente: Em primeiro lugar, uma integração na economia mundial, principalmente
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Gráfico 1 – A evolução do índice de Gini para 16 países da América Latina, 1990-2010
Fonte: JIMENEZ & LOPEZ-AZCUNAGA (2012, p. 3). mediante a exportação de produtos primários, foi prejudicial, quando os seus termos de troca estavam em declínio durante o período pós Segunda Guerra Mundial, com a dominação do Fordismo nas economias avançadas; mas tornou-se um trunfo, quando China e Ásia se industrializam e importam maciçamente os recursos naturais necessários para decolarem de maneira rápida e constante. Em segundo lugar, ao passo que as instituições democráticas estão bem
estabelecidas na Europa e na América do Norte, elas são bastante recentes na maioria das sociedades latino-americanas e de fato esta mudança política instituiu a expressão de demandas por proteção social que, finalmente, foram levadas a sério e parcialmente atendidas. Em terceiro lugar, a sucessão de crises econômicas, em grande parte geradas pela rápida liberalização e abertura aos fluxos de capitais internacionais, promoveu o surgimento de políticas pragmáticas 7
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Figura 1– Uma abordagem sistêmica dos fatores que contribuem para a redução da desigualdade na América Latina
Fonte: inspiração livre, tirada, dentre outros, a partir de Juan Pablo Jiménez and Isabel Lopez Azcunaga (2012); Luis Miotti, Carlos Quenan, Edgardo Torija Zane (2012) e reformas, corrigindo os efeitos adversos da adesão à crença de que os mecanismos de mercado foram suficientes para impulsionar o desenvolvimento. A constituição de um sistema de bem-estar mínimo tem sido percebida como condição para a sustentabilidade social de longo prazo e a legitimidade política. Por último, mas não menos importante, os limites de um desenvolvimento liderado pelas exportações foram claramente percebidos por especialistas e governos. Neste contexto, a constituição de um sistema de bem-estar social e uma política trabalhista que sincroniza os salários com o crescimento da produtividade aparecem como fatores-chave em direção a uma estratégia voltada para dentro (SABOIA, 2010). Esta é uma clara oportunidade para as economias 8
de grande porte, como o Brasil, enquanto deveria ser um incentivo para que outros se juntem a projetos regionais de integração econômica a fim de organizarem-se no nível relevante, a sincronização dos sistemas de produção e segurança social. Estas quatro transformações lançaram algumas luzes sobre o paradoxo da
“Claramente a América Latina vem-se saindo muito melhor durante a turbulência financeira pós-2008 do que durante as crises dos anos 1980 e 1990.”
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Gráfico 2 – A evolução da despesa pública por setores de 1990 a 2010 (% do PIB) para 21 países da América Latina e Caribe
Fonte: “CEPALSTAT” (CEPAL, 2012) América Latina: o continente mais desigual está explorando uma estratégia de “crescimento com equidade” que não está imitando as experiências nem dos EUA nem da Europa, por causa de uma genuína história econômica, social e política. No entanto, surge uma questão de grande importância: quão autônomo e resiliente é esse modelo de crescimento com inclusão social? 3. Uma agenda inacabada: transferências de dinheiro, mas pobreza de serviços sociais públicos. Muitas investigações estatísticas e econométricas mostram que a alta
volatilidade macroeconômica e as crises financeiras reduzem o bem-estar e, em geral, ampliam a pobreza e assim aprofundam a desigualdade por baixo, enquanto bolhas inflam-na por cima. Isto é aplicável à América Latina (PANIGO, 2008). Desde que o México e muitas outras economias latino-americanas têm sido as primeiras a suportar crises financeiras modernas geradas pelos grandes influxos de capital e suas paradas bruscas, os sucessivos governos têm dolorosamente aprendido a não repetir toda vez os mesmos erros (BOYER e al., 2004). Claramente a América Latina vem-se saindo muito melhor durante a turbulência financeira pós-2008 do que durante as crises dos 9
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Gráfico 3 – Aumento excepcional de preços e forte volume de comércio internacional de commodities: América Latina e Caribe, valor, volume e índices de preços para os dez principais grupos de commodities, cenário neutro, 1990-2015 (em índices anuais com 2005=100).
Fonte: CEPAL (2012, p. 68, fig. II.3) anos 1980 e 1990. Nenhum ajuste do tipo do FMI foi necessário e, por mais difícil que seja quantificar, este melhor manejo macroeconômico – dívida pública moderada, grandes reservas monetárias, melhor antecipação e assim por diante – tem mitigado o impacto da crise mundial e, consequentemente, manteve ativas as políticas de transferência. Isso deu mais espaço para um modesto aumento dos gastos sociais, mas ainda limitado em termos de oferta de educação pública, saúde, subsídios à habitação, todos os fatores que deveriam contribuir mais para a redução da desigualdade e 10
para a capacidade de crescimento de longo prazo (Gráfico 2). Na verdade, os welfares latino-americanos são bastante limitados, sabendo da tendência à privatização destes serviços e bens públicos e que isso coloca um obstáculo para avançar na redução da desigualdade. O Brasil é um bom exemplo de tal obstáculo sobre a redução da desigualdade: os vibrantes movimentos sociais durante o verão de 2013 pediam serviços públicos mais acessíveis (transportes), e melhor qualidade para a saúde e a educação (veja outras contribuições nesta publicação).
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4. O contexto geopolítico excepcional da década de 2000 não pode ser tomado como garantido em uma tendência de longo prazo. Considerando que as exportações latino -americanas em termos nominais estagnavam-se durante a década de 1990, de 2002 a 2007 elas triplicaram e isso foi gerado simultaneamente pelo boom de crescimento através do crédito nos EUA e pelo regime liderado pela competitividade na China: eles provocaram grandes aumentos de preços dada a lenta adaptação de capacidades no setor da produção de commodities (Gráfico 2). Como a maioria dos regimes de crescimento da América Latina são liderados pela exportação, o PIB vem-se expandindo e fornecendo combustível para o consumo interno. Tem assim ampliado a base tributária, especialmente se alguns impostos estão ligados às
exportações de commodities, tal como decidido, por exemplo, pelo governo da Argentina a partir de 2002 (BOYER & NEFFA, 2004; 2007). Parte desta bonança foi canalizada para lutar contra a pobreza, proporcionando assim legitimidade política e lançando uma transição para um desenvolvimento liderado pelo consumo, tal como observado no Brasil (BOSCHI, 2009). A maioria das pesquisas em ciência política e sociologia econômica tradicionalmente concentram-se em questões de poder, conflito e organização ao tratar do surgimento e das transformações dos sistemas de welfare. No entanto, eles muitas vezes se esquecem de estudar o quanto fatores macro da economia moldam o tamanho da base para redistribuição: o jogo de soma positivo e crescente típico para uma economia em
Tabela 1 – Três cenários
Fonte: Economic Commission fot Latin America and the Caribbean (ECLAC) 11
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Gráfico 4 – Taxa anual de crescimento (%)
Fonte: Datastream NATIXIS Gráfico 5 – Contribuição para o crescimento do PIB, em percentual, por tipo de gasto.
Fonte: BCB, NATIXIS
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Gráfico 6 – Dinamismo da demanda interna, porém com estagnação da produção industrial: o Brasil desde 2008 (com janeiro de 2008=100)
Fonte: ARTUS (2013, p. 3; 3 e 5). rápido crescimento torna compromissos políticos mais fáceis (na década de 2000 na Latina América) do que durante uma depressão, quando ninguém está disposto a aceitar a partilhar o fardo (depressão grega de 2009-2013 ou a recessão europeia de 2013). Um exercício de cenário (CEPAL, 2012) pondera que a simples extrapolação das tendências dos anos 2000 é bastante improvável: nenhum retorno ao nível de emprego pré-crise nos EUA, antecipação de uma possível década perdida na União Europeia, e uma clara desaceleração do crescimento chinês combinam seus impactos e é, portanto,
prudente antecipar um declínio líquido do estímulo gerado pelo dinamismo do comércio mundial, isto é, arriscar no lado do cenário pessimista (Tabela 1). 5. O sistema de produção doméstico tem de responder eficientemente à demanda interna associada a um welfare ampliado. A demanda doméstica pode contrabalançar as prováveis tendências à redução do comércio mundial? Este é o objetivo buscado pela estratégia de crescimento inclusivo implementada e popularizada pelas autoridades brasileiras. Ele foi atingido durante a década de 2000 e o colapso do comércio mundial gerado pela 13
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“Em outras palavras, a questão em jogo é clara: aumentar a capacidade de produção de acordo com a extensão do welfare. Esta é precisamente a constatação central de uma pesquisa comparativa sobre o surgimento, maturação e viabilidade do welfare moderno (BOYER, 2014).” falência do Lehman Brothers foi mitigado por uma política pública ativa. No entanto, a recuperação brasileira tem sido muito parcial e o país é hoje o de mais lento crescimento da América Latina (Gráfico 3). Basicamente Brasil parece ter perdido a fonte de seu crescimento anterior (Gráfico 4): nem o comércio exterior nem o consumo lidera a recuperação. Uma das razões é clara: os modelos pós-keynesianos mostram que em economias abertas o crescimento é limitado pela competitividade, ou seja, pela capacidade 14
dos produtores nacionais para responder à demanda. Dado o legado de valorização do real, desde 2008 a demanda extra foi acompanhada de uma estagnada produção industrial (Gráfico 5). Assim, o círculo virtuoso anterior (redistribuição – mais consumo – investimento – produção – emprego – base maior de impostos e contribuições sociais) não está mais funcionando. Isso seria uma grande ameaça para o futuro do crescimento inclusivo na ausência de uma política relevante e inovadora. Em outras palavras, a questão em jogo é clara: aumentar a capacidade de produção de acordo com a extensão do welfare. Esta é precisamente a constatação central de uma pesquisa comparativa sobre o surgimento, maturação e viabilidade do welfare moderno (BOYER, 2014). 6. O segredo do capitalismo de bem-estar nórdico: uma permanente modernização do sistema de inovação e produção. A destruição criadora é reconhecida como um fato da vida nas economias capitalistas que só pode ser bloqueada sob a pena de incorrer em padrões de vida mais baixos no longo prazo. O nome do jogo é então aceitar a destruição de empregos em empresas que não conseguem criar um nível suficiente de valor agregado por trabalhador, dada a evolução da economia mundial e dos paradigmas produtivos. É prejudicial seguir o caminho do baixo valor agregado com baixos salários e, portanto, uma razão de substituição generosa para os desempregados é um bom incentivo que bloqueia em partes o ajustamento para baixo dos
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salários. A reciclagem dos assalariados torna-se crucial para evitar a formação de um mercado de trabalho dual com um setor de baixas qualificações – baixos salários. Em certo sentido, os países nórdicos partilham uma concepção neo-schumpeteriana de bem-estar social com base em um objetivo fundamental: tentar redesenhar o welfare e todos os componentes da política econômica a fim de promover inovações tecnológicas e organizacionais que poderiam sustentar padrões de vida elevados e possivelmente crescentes. Nesses novos sistemas de welfare (JESSOP, 2002), transferências públicas intensas são compatíveis com o dinamismo da inovação. A abelha pode voar e isso falsifica as previsões
da teoria neoclássica convencional que considera apenas a eficiência estática em um mundo dominado pela concorrência de preços em bens padronizados, sem inovação permanente e endógena a fim de capturar rendas de oligopólio (Figura 2). Nos países nórdicos, esta representação da economia é compartilhada pela maioria dos agentes – empresas, assalariados, cidadãos, altos funcionários públicos e políticos – e, portanto, desempenha um papel ativo na sua coordenação das decisões cotidianas. Este modelo pode ser uma inspiração para a América Latina e o Brasil? De um modo geral, sim, no seguinte sentido: os
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Figura 2 – O núcleo de complementariedade entre o bem-estar e a inovação: a configuração Nórdica
Fonte: inspiração livre, tirada, dentre outros, a partir de Juan Pablo Jiménez and Isabel Lopez Azcunaga (2012); Luis Miotti, Carlos Quenan, Edgardo Torija Zane (2012) avanços no welfare têm que ser coerentes com a capacidade produtiva e competitiva nacionais; este princípio deveria ajudar na elaboração de programas sociais economicamente viáveis. No entanto, duas grandes diferenças tornam irrealista uma transposição pura do welfare socialdemocrata. De um lado, a exportação de produtos primários não tem o mesmo potencial para aumentos contínuos de produtividade quanto um setor manufatureiro baseado em inovações. Por outro lado, a ampla redistribuição de renda através do welfare e dos impostos é mais fácil em pequenas sociedades homogêneas do que em uma economia continental e bastante heterogênea como o Brasil. A distância entre os welfares dominantes na América Latina e o welfare socialdemocrata pode ser medida por os primeiros serem concebidos como 16
rede de segurança mínima, não como pedra angular de um modo de desenvolvimento, construído sobre o cultivo de capacidades humanas. 7. Alguns passos à frente para o Brasil. Como responder às manifestações e demandas sociais do verão de 2013? É fundamental fazer diagnóstico cuidadoso da configuração atual da sociedade, da economia e geopolítica, e em seguida discutir e elaborar um programa de política sincrética com o objetivo de sincronizar avanços sociais com um dinamismo restaurado do setor produtivo. Assim, a recente redução da desigualdade poderia ser convertida em um modelo de desenvolvimento sustentável, a ser seguido em toda a América Latina.
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Boyer, Robert (2014), How has institutional competitiveness emerged out of the complementarity between Nordic welfare and innovation system, in Sources of National Institutional Competitiveness. Sense-making and institutional change, Edited by Susana Borras and Leonard Seebrooke, Forthcoming Boyer, Robert; NEFFA, Julio Cesar (eds) (2004), La crisis argentina (1976-2001): una vision desde la theorias institucionalistas y regulacionistas, Editorial Mino y Davila, Madrid, Buenos Aires. Boyer, Robert;. NEFFA, Julio Cesar (eds) (2007), Salida de crisis y estrategias alternativas de desarollo. La experiencia argentina, Mikno y Davila Madrid et Buenos Aires, Boyer, Robert, Dehove, Mario, Dominique Plihon (2004), Les crises financières, Rapport du Conseil d’Analyse Economique n° 50, La documentation française, Paris. Cepal (2012), Cambio Estructural para la Igualdad. Una visión integrada del desarrollo, Nations Unies, Santiago, Chile. ECLAC (2012), Continuing crisis in the centre and new opportunities for developing economies, United Nation, Santiago de Chile, November. Jessop, Bob (2002), The Future of the Capitalist State, Cambridge: Polity Jimenez, Juan Pablo & Isabel, Lopez-Azcunaga (2012), De la desigualdad en America Latina? El rol de la política fiscal, Working Paper Series n° 33, desiguALdades.net Frei Universität, Berlin. Miotti, Luis; Quenan, Carlos; e Edgardo, Torija Zane (2012), Continuités et ruptures dans l’accumulation et la régulation en Amérique latine dans les années 2000 : le cas de l’Argentine, du Brésil et du Chili, Revue de la regulation, n° 11, premier semestre, http://regulation. revues.org Panigo, Demian (2008), Volatilité macroéconomique et inégalité en Amérique Latine. Thèse EHESS et
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América Latina: Mínimos monetários em lugar da proteção social
Lena Lavinas
Nas últimas duas décadas, a América Latina registrou um aumento relativamente constante do gasto social (CEPAL 2012; LAVINAS 2012). Se nos anos 80, este representava 10,2% do PIB da região (COMINETTI & RUIZ 1998), com um gasto per capita equivalente a USD 177,80 a.a., estimativas da CEPAL (2012) elevam tais valores, em 2009-10, para 18,6% do PIB e mais de USD 800 per capita a.a. respectivamente. Trata-se de um aumento expressivo que parece indicar terem os países da região finalmente apreendido a centralidade da política social na promoção do crescimento econômico e da estabilidade, por fortalecer, tal como na ótica keynesiana, a dinâmica de expansão do mercado interno (KALDOR 2012; BEVERIDGE 1942; CARVALHO 2006) mediante a segurança socioeconômica. Da mesma maneira, observa-se 18
Professor do Instituto de Economia da UFRJ.
uma mudança no comportamento do gasto social que finalmente se torna anticíclico desde meados da década de 2000 (CEPAL 2012). Entre 1990 e o final da década de 2000, logo, por praticamente vinte anos, o gasto social como proporção do PIB aumentou 6,6 pontos percentuais na América Latina. Entretanto, retifica a CEPAL (2012), as transferências monetárias, contributivas e não contributivas, absorveram praticamente 60% do aumento do gasto social no período. Já a provisão de serviços públicos como saúde teve um aumento da ordem de 1% apenas em duas décadas, ao passo que as políticas de acesso à moradia, saneamento e outras similares revelam uma situação de quase estagnação, pois a variação vis à vis o PIB regional foi tão somente da ordem de 0,4 ponto percentual.
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A ênfase nas transferências monetárias de renda tem dado a tônica no processo de reconfiguração dos sistemas de proteção social da região – marcadamente inacabados e imperfeitos na sua estrutura, segmentados no acesso e de cobertura insuficiente. É fato que a reversão da primazia do modelo liberal privatizante e residual dos 90 permitiu consolidar direitos notadamente no campo previdenciário. De um lado, as reformas chilena (ALVIM, 2011) e argentina (ARZA, 2012 e 2013; LO VUOLO, 2013; ALVIM, 2011; MESA LAGO, 1997) resgataram a lógica dos sistemas públicos de PAYG na provisão de aposentadorias e pensões, contestando
a exclusividade dos modelos de capitalização e seus elevados riscos no que tange à taxa de reposição da renda na fase de inatividade e ao grau de cobertura. O Chile manteve um sistema de capitalização individual, mas introduziu um pilar básico público para a população sênior sem densidade contributiva suficiente. Ademais, houve países que viraram definitivamente a página do regime privado de contas individuais e assumiram o direito a uma aposentadoria pública universal (pensiones solidarias), independente de contribuições ou qualquer outro critério de elegibilidade. É o caso da Bolívia, onde a Renda Dignidad é adotada em 2007 para
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“Segundo dados da ANFIP (2013), as despesas com mínimos monetários compensatórios passaram de 7,1% das despesas do orçamento da Seguridade em 2005 para 9,91% em 2012.” substituir a experiência fracassada com o Bonasol (LAVINAS, 2013). Segundo Arza (2013) 97% dos bolivianos com 60 anos ou mais estão devidamente cobertos com uma renda mínima ao atingir a idade da aposentadoria. Outra frente de forte expansão do gasto social foram as transferências condicionadas de renda, cuja cobertura ampliou-se consideravelmente na região (LAVINAS, 2013; CEPAL, 2012). Via de regra, tais programas de combate à pobreza são ad hoc e não integram efetivamente a institucionalidade dos sistemas de proteção existentes, quaisquer que sejam seus desenhos e escopos. Eles constituíram-se num dos fatores de expansão do gasto, e, juntamente com a elevação do salário mínimo (LAVINAS, 2013; THERBORN, 2011) e o aumento da oferta de emprego, 20
contribuíram para aquecer a demanda do mercado doméstico. Tais programas, entretanto, não asseguram a cobertura de todo o público-alvo potencial, pois a focalização visa justamente a restringir a demanda. Engendram, portanto, ineficiências horizontais; têm impacto positivo na diminuição da pobreza extrema e, sobretudo, na redução da intensidade da pobreza, mas não combatem eficazmente nem preventivamente a pobreza; costumam ser financiados através de tributos indiretos, que incidem sobre o conjunto da população, o que agrava sua regressividade e reduz seu impacto redistributivo; são baratos, nunca comprometendo mais de 0,6% do PIB (caso do Programa Bolsa Família) o que inibe bastante seu efeito redistributivo; o valor dos benefícios e as linhas de pobreza que estabelecem os critérios de elegibilidade não acompanham a evolução do poder de compra, o que também reduz sua efetividade no combate à pobreza; são estabelecidos em patamares extremamente baixos; e como tais benefícios compensatórios não são direitos, podem ser suspensos, eliminados ou modificados a qualquer momento, em função de ajustes fiscais. Sua força e “novidade” consistiram menos na sua capacidade para reduzir a pobreza e mais por viabilizar, por toda a região, acesso a mercados, uns mais tradicionais e outros, novos, atenuando falhas de mercado que constrangiam a expansão do consumo de bens e serviços. Vários autores (LAVINAS, 2013; INCHAUSTE et al. 2012) e também a
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CEPAL (2012) convergem ao reconhecer que o fator determinante na redução da pobreza na América Latina na década passada foi o crescimento do emprego. Segundo a CEPAL, novas oportunidades no mercado de trabalho explicam ¾ do recuo da pobreza na região. Assim, os programas de transferência condicionada de renda levam a áreas pouco integradas a mercados, onde prevalece um modo de reprodução social ainda fortemente marcado pela subsistência – por exemplo, nas regiões em que predominam comunidades indígenas –, e a um contingente de dezenas de milhões de pobres, cujo déficit de renda gera externalidades negativas e restringe o bom funcionamento dos mercados,
mais do que um alento, um vínculo definitivo com a mercantilização de várias dimensões da vida. Em paralelo, o gasto público com saúde cresce pouco e muito aquém do que seria esperado frente aos déficits de provisão de bem-estar que assolam a região. Segundo a WHO (2005), enquanto os 60 maiores países do mundo registram um gasto per capita com saúde de USD 806 PPP, a América Latina estampa um gasto per capita médio de USD 261PPP, o que a aproxima do gasto médio per capita dos países de renda média baixa e dos países menos desenvolvidos, estimado em USD 142 PPP. Saúde, saneamento, moradia, educação
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que demandam inversões públicas constantes, crescentes e de grande magnitude para suprir demandas não satisfeitas e melhorar significativamente os indicadores sociais têm sido preteridos. Tais indicadores traduzem sociedades duais, partidas, com altos níveis de desigualdade, e ainda espelham a distância considerável que afasta a região de um patamar de bem-estar compatível com o desenvolvimento econômico observado, notadamente nos anos mais recentes. Em lugar de uma oferta desmercantilizada, de qualidade aprimorada, aumenta a oferta privada de serviços à medida que aumenta a renda individual e familiar da região. Nem por isso, de qualidade asseguradamente satisfatória. O quadro é de privatização de muitos serviços que deveriam ser públicos, universais e gratuitos (saúde, educação). O caso brasileiro é exemplar a este 22
respeito. Segundo dados da ANFIP (2013), as despesas com mínimos monetários compensatórios passaram de 7,1% das despesas do orçamento da Seguridade em 2005 para 9,91% em 2012. Nesse mesmo período, quando teve lugar a supressão da CPMF, a participação das despesas com saúde não variou, permanecendo em torno a 15,5%. Enquanto recua a participação do gasto público com saúde no PIB (4,5% em 2011), aumenta a do gasto privado com serviços de saúde (5,5%), hoje amplamente majoritário e crescente. Isso explica dinâmicas notadas na última década, como as que aparecem no Gráfico 1. Nele, observa-se que melhorias na provisão de serviços públicos como água tratada ou esgotamento adequado, por exemplo, não acompanham a progressão bem mais veloz no acesso, via renda (do trabalho ou crédito), a bens
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como máquina de lavar e celular. Em uma década, a proporção de domicílios que dispõem de água tratada não variou, mantendo-se em torno a 50%. No caso do esgotamento sanitário, houve uma ligeira melhora, pois o percentual passa de 59,11% para 64,5%. Já o acesso a celular quase triplica nesse período. Ora, celulares, à imagem de outros bens necessários e indispensáveis à gestão do cotidiano, têm tido seu consumo ampliado rapidamente não apenas em decorrência da elevação da renda do trabalho, senão, e sobretudo, de seu financiamento, seja via compra parcelada ou crédito de varejo, ambas modalidades que cada vez mais chegam a todas as classes de renda, inclusive aquelas mais desfavorecidas, elas também absorvidas pela lógica financeira. Além de ampliar o consumo de bens, o sistema financeiro vem disputando com o Estado a supremacia na provisão de outros bens e serviços que, sob a institucionalidade dos Estados do bem-estar, foram desmercantilizados para tornarem-se direitos e, assim, assegurar igualdade de oportunidades e reduzir disparidades não conformes ao princípio de cidadania. Em consonância com o boom de crédito de consumo e microcrédito, a América Latina tem experimentado uma forte progressão de inúmeros seguros privados que se colocam como alternativa aos déficits de provisão pública. A securitização privada na área da saúde, da previdência, do ensino superior e
até médio ou técnico e em outras áreas mais periféricas (cobertura funeral e por aí vai) tem-se feito no vácuo deixado pelo Estado, cujas políticas universais jamais se efetivaram como mecanismo de redistribuição e promoção da equidade. Os déficits de universalismo reforçam a consolidação do setor financeiro como agente responsável pela cobertura contra determinados riscos, antes de competência do Estado, seja mediante o seguro social ou as políticas universais. Esse mesmo setor que nos anos 90 tinha sua expansão tolhida e demandava, portanto, a privatização por completo dos sistemas de aposentadorias e pensões2, avança agora numa divisão de responsabilidades com o setor público. Nesta nova configuração da relação Estado-mercado-sociedade, a segurança socioeconômica é individualizada
“Em consonância com o boom de crédito de consumo e microcrédito, a América Latina tem experimentado uma forte progressão de inúmeros seguros privados que se colocam como alternativa aos déficits de provisão pública.” 23
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(risk-taking) e não mais compartilhada por todos (risk-sharing) com base em valores de solidariedade. Anula-se a ideia de des-individualização (RONSAVALLON, 2011) que refundou a política social no pós-guerra. Esta se limita crescentemente aos subsídios ou incentivos monetários, via transferências de renda contributivas ou não contributivas e/ou crédito tributário (isenções fiscais). Ao mercado financeiro cabe substituir a provisão pública de bens e serviços agora a serem ofertados por agentes privados, e cujo acesso se dá
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em base contratual. A responsabilidade na escolha do seguro contratual – logo, da cobertura – é individual e exclusiva, o que evidentemente coloca em xeque a dimensão universal e igualitária da política pública. Não há como redistribuir! Não por acaso, as reformas liberalizantes que tomaram a América Latina nos anos 90 – por meio das contas individuais de capitalização ou dos programas de microcrédito – reforçaram não apenas o mercado para obtenção de bem-estar,
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mas prioritariamente o mercado de capitais. Se houve contrarreformas que reintroduziram o direito a aposentadorias e pensões públicas no continente e ampliaram o direito a mínimos monetários para os mais frágeis e desassistidos, validando a política assistencial, antes inexistente, o mesmo não se verifica no que diz respeito à provisão de serviços desmercantilizados, cuja premissa é dar o melhor acesso em função da contingência, e não da renda ou do status socio-ocupacional. Assegurar algum patamar de renda sem desmercantilização de um conjunto de bens e serviços equivale a subsidiar a expansão do mercado na direção da privatização dos serviços. Nessa lógica, a meta é mercantilizar acesso, na direção oposta, consequentemente, ao princípio da desmercantilização. Nenhum liberal por mais radical que seja – vejase o pensamento doutrinário de Hayek e Friedman (BARR, 2004) – é contrário a prover renda mínima àqueles comprovadamente pobres. Essa lógica residual não afeta o mercado, ao contrário resolve falhas de mercado. E potencializa o crescimento da economia de mercado. A Obamacare ou reforma Obama na área da saúde, é a expressão plena dos que entendem a saúde como um bem privado e não público. Regular, baratear acesso – objetivos, aliás, já alcançados (com mais gente no denominador, os prêmios das apólices caíram de preço) – é o polo oposto a expandir o Medicare e o Medicaid, tornando – quem sabe um dia – a saúde um direito universal e gratuito para os americanos. Se Beveridge (1942) previu a desmercantilização da proteção social ao longo do
ciclo de vida – do berço à tumba, em suas palavras – o processo em curso constituise na antítese disso. Fraser (2012) resumiu brilhantemente tal reconfiguração da relação Estado-mercado-sociedade na ideia “commodification all the way down.” Apesar da melhora nos indicadores sociais latino-americanos e a despeito de haver alguma redistribuição que alcança parte dos pobres e indigentes e lhes dá algum reconforto no curto prazo, o conflito redistributivo mantém-se praticamente inalterado na região. E os desafios agravaram-se. A nova proposta do Piso de Proteção Social cunhada pela OIT com amplo aval do sistema ONU, do Banco Mundial e do FMI nos chega sintonizada com os tempos. Essa recomendação de número 202 da Conferência Internacional do Trabalho de 2012 (ILO 2011 e 2012) prioriza a garantia de mínimos monetários a grupos vulneráveis como crianças, idosos, trabalhadores precários ou desempregados, sem ampliar de forma consequente e automática o acesso universal e incondicional a serviços públicos desmercantilizados, indispensáveis ao bem-estar da população, tais como educação, saúde, capacitação profissional permanente, segurança, moradia. A segurança socioeconômica não pode e não deve se restringir à garantia de uma renda mínima, pois na ausência de serviços públicos gratuitos, ela levará à expansão de uma rede privada, portanto, ao fortalecimento do mercado, cujo acesso não estará assegurado a partir de mínimos. Em consequência, tal modelo acabaria reproduzindo e legitimando desigualdades de status e de 25
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acesso, promovendo muito provavelmente um modelo segmentado e dualizado de atendimento. Ademais, esse modelo de mínimos desconsidera a lógica e as vantagens dos sistemas de Seguridade Social e rompe com um padrão de proteção social universal e uniforme que se tornou a pedra de toque dos direitos sociais e dos direitos humanos ao longo da segunda metade do século 20.
Income and Welfare Regimes in Latin America. From cash transfers to rights. New York: Palgrave Macmillan, pp. 87-112.
Neste início de século 21, mais do que nunca é necessário ter clareza sobre a natureza do conflito redistributivo. O avanço dos mínimos monetários e o recuo da provisão pública, gratuita e universal mostram-se combinação incapaz de resolver a profunda dualidade que nos caracteriza e faz da América Latina – ainda e sempre – a região mais desigual do mundo.
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NOTAS 1. Com base nas linhas de pobreza e indigência adotadas no Programa Bolsa Família. 2. A referência é o documento oficial do Banco Mundial, denominado Averting the Old Age Crisis in Latin America, de 1994.
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