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UMA REFERÊNCIA À DISTÂNCIA
MARIA AUGUSTA BASTOS DE MATTOS
Seja em poesias profundamente reflexivas, seja em trovas românticas populares ou em aforismos, é difícil escapar do desejo de falar sobre a saudade, esse sentimento que une a dor à felicidade.
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No estudo iniciado por Carlos Lopes de Mattos, há uma questão: é facilmente desmontável o mito de que a língua portuguesa é a única a ter uma palavra específica para o sentimento da saudade; o que se constitui matéria de interesse é o fato de que os portugueses tomam a Saudade como tema de profunda reflexão e, isso sim, os torna um povo singular.
Herdeiros desse sentimento, os brasileiros também continuam a dissertar e a falar sobre a saudade. Assim, o grande romântico Castro Alves escreveu em 1870 estes versos, que colhemos na obra Espumas Flutuantes & Os Escravos, com texto fixado pelos especiais amigos (e especialistas) Luiz Dantas e Pablo Simpson, livro editado pela Martins Fontes em 2000, na coleção Poetas do Brasil, organizada por Haquira Osakabe.
VERSOS DE UM VIAJANTE
Ai, nenhum mago da Caldeia sábia A dor abrandará que me devora. F. Varela
Tenho saudade das cidades vastas, Dos ínvios cerros, do ambiente azul... Tenho saudades dos cerúleos mares Das belas filhas do país do sul.
Tenho saudade de meus dias idos – Pét'las perdidas em fatal paul –Pét'las, que outrora desfolhamos juntos, Morenas filhas do país do sul!
Lá onde as vagas nas areias rolam, Bem como aos pés da Oriental 'Stambul... E da Tijuca na nitente espuma Banham-se as filhas do país do sul.
Onde ao sereno a magnólia esconde Os pirilampos "de lanterna azul", Os pirilampos, que trazeis nas coifas, Morenas filhas do país do sul.
Tenho saudades... ai! de ti, São Paulo, — Rosa de Espanha no hibernal Friul — Quando o estudante e a serenata acordam As belas filhas do país do sul.
Das várzeas longas, das manhãs brumosas Noites de névoa, ao rugitar do sul, Quando eu sonhava nos morenos seios Das belas filhas do país do sul.
Em caminho, fevereiro de 1870.
Alguns anos depois, ao cantar a cidade de São Paulo da Belle Epoque, o poeta santista Martins Fontes também manifesta sua saudade de um tempo em que o centro era coalhado de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco entoando suas serenatas de amor, e compõe esta paródia à qual dá exatamente o nome de:
Serenata
Tenho saudade da garoa antiga, Pálida amiga, que me faz sonhar... Desse São Paulo, romanesco e belo, Que era um castelo sob a luz lunar...
Tenho saudade das gentis morenas, Lindas pequenas do hibernal Friul... De uma, entre todas, cor de jambo-rosa, Flor perfumosa do País do Sul
Dona querida, de cabelos pretos, Quantos sonetos me inspiraste tu! Neles prendias, entre os altos grampos, Os pirilampos do Anhangabaú...
"Ó Liberdade, ó Ponte-Grande, ó Glória", Ó da Memória o Largo do Bailéu! O luar batia no Tietê, de chapa, Como uma capa de estudante ao léu...
E a serenata soluçava, outrora, Até que a aurora despontava al fim... Adormecendo, pelo vale, as flores Dos meus amores e do teu jardim...
Velho São Paulo do romanticismo, Do misticismo, da saudade azul... Tua lembrança nos perfuma a vida, Terra querida do País do Sul...
Soturnamente, pela noite morta, Abre-se a porta da alucinação... E sai um vulto, de livor funéreo, Do cemitério da Consolação...
Branca, a visagem, sob o véu da lua De rua em rua caminhando vai... Até que, em face do vetusto aprisco De São Francisco, sobre as lajes cai...
Dentro da noite, nebrinosa e bela, Que sombra é aquela de mortal palor? É a estudantina, sob o céu de prata, É a serenata que morreu de amor.
Tendo ganho melodia pela musicista e professora de piano Meire Buarque, temos hoje dessa canção duas gravações memoráveis, a de Inezita Barroso (que a gravou primeiramente em 1966) e a de Sílvia Maria, em 1980.
O poema Versos de um viajante, de Castro Alves, cantando a saudade de algumas cidades, passando pela paródia feita por Martins Fontes, estava fadado a ser recriado mais outras vezes. Assim, Virginia Bastos de Mattos , numa versão mais intimista, relembra a S. Paulo, onde ela e Carlos nasceram (ela nos Campos Elíseos, ele na Consolação), onde passaram a adolescência (ela no bairro de Perdizes, ele com os beneditinos) e onde se conheceram, fazendo do poema o seu hino de amor:
Ouça a versão de Inezita Barroso https://bityli.com/vIYFqrY
Ouça a versão de Sílvia Maria https://bityli.com/HbORII8
Dialogando com Versos de um viajante de Castro Alves
“Tenho saudades da garoa antiga Pálida amiga que me fez sonhar Desse S. Paulo romanesco e belo Que era um castelo sob a luz lunar.”
Velho S. Paulo que foi nosso berço Campos Elíseos e Consolação Onde sonhamos os dourados sonhos Que alicerçaram nossa união.
E nas Perdizes, a adolescência Ou no Mosteiro, estudos do rapaz Nossos caminhos se cruzaram um dia E separá-los ninguém foi capaz.
Foi no S. Bento que te vi primeiro Meu carneirinho imolado enfim Aos meus amores juvenis e ternos Para esta vida que não terá fim.
“Velho S. Paulo do romanticismo Do misticismo ou da saudade azul Tua lembrança nos perfuma a vida Terra querida do país do sul.”
Maria Virginia, uma das filhas do casal, morou por muitos anos na cidade de Marabá, no Pará. Numa carta que envia aos pais, em 1981, também faz sua paródia dos versos de Martins Fontes, num jogo terno e brincalhão, sem preocupações formais, mas cantando e relembrando a cidade de Capivari, onde ela passou sua infância e adolescência:
Tenho saudades das verdes colinas, cálidos ventos nos canaviais, onde se aninha essa linda cidade berço de amor de vates imortais.
Tenho saudades da infância vivida entre italianos de olhos cor de anil; “Caminho suave”, aprendendo as letras, tomando a forma o nome de Brasil.
A igreja linda de São João Batista, a nobre praça, Rodrigues de Abreu, o Coleginho, a velha Prefeitura, nas belas flores, lembras Amadeu.
Oh! Que saudades do ipê amarelo, Mercado velho, do Coreto em cor, onde outrora a banda tão querida tocava valsas cheias de esplendor!
Oh! Vila Souza! Oh! Rafard! Oh! Raia! Velhos telhados cheios de pardais... Se tu soubesses como és lembrada, Capivari dos vates imortais!
Da rua da Barra, apontando a todos a tão bela curva do rio Santa Cruz, da estação de ferro, construção de sonho, a esperar confiante o trem cheio de luz...
E assim, nesse mesmo caminho, ou melhor, flutuando sobre os redemoinhos da memória, há a tradução do poema “O Rio Capivari”, de Amadeu Amaral, para o francês, por Carlos Lopes de Mattos. Traduzir um texto de outra língua não é tarefa fácil. Traduzir um poema é ainda mais difícil, por suas questões formais e metafóricas.
Mais difícil ainda parece ser traduzir um poema do português para o francês, e absorver todo o saudosismo de Amaral para com a terra natal e a meninice que viu passar junto com os anos se torna uma tarefa complicadíssima, porém foi uma travessia na qual Mattos nadou de braçada.
O RIO CAPIVARI
Velho Capivari, quanto mudaste! Tinhas outrora tanta força e brio, tão lento agora vais, e tão macio, por entre o mato que te forma engaste.
Quem te mudou assim? Que rude estio, que castigo do céu fez o contraste? Parece que em riacho te trocaste, depois de seres caudaloso rio.
Mas... tu terás mudado, ou eu me engano? Vi-te com vista de menino outrora; e quanto errava o olhar com que te vi!
Se eu olhava o futuro — era um oceano; e o tempo, e tudo que lá vai, agora, inda é menos que tu, Capivari!
28 de Junho 1921. In Amadeu Amaral. Poesias Completas. São Paulo, Hucitec, 1977. p.252. Tradução de Carlos Lopes de Mattos, 1950.
AU FLEUVE CAPIVARI
Mon vieux Capivari que tu es changé! Jadis si orgueilleux et si puissant, Tes eaux s’en vont silentes maintenant Parmi ce bois où tu es chatoné.
Quel grand événement est arrivé Un grand êté? Du ciel un châtiment T’ a peut-être rendu en un instant Petit ruisseau, grand fleuve du passé?
Mais... changeas-tu vraiment ou moi, mon cher? C’était l’enfant qui te voyait alors, Et si se trompe l’oeil du tout petit!
Je regardais alors come une mer L’avenir. Et cela me semble encore Assez moindre que toi, mon vieux ami! Moins, beaucoup moins, Capivari!
RIO CAPIVARI
ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA REGIÃO CONHECIDA COMO SANTA RITA FOTO DE NETO GROUS / 2018
RIO CAPIVARI
ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA FOTO DE NETO GROUS / 2018
RIO CAPIVARI
ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA REGIÃO CONHECIDA COMO SANTA RITA FOTO DE NETO GROUS / 2018
RIO CAPIVARI
COLUNAS QUE SUSTENTAVAM A LINHA FÉRREA DA SOROCABANA ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA FOTO DE BRUNO BOSSOLAN / 2019