Expediente Identidade! Boletim do Grupo de Negr@ s da EST/IECLB Vol. 08, julho-dezem bro /2005 Apoio: Federação L u teran a M undial - FLM Periodicidade: Sem estral IECLB Tiragem: 2.000 exemplares Revisão: Luís M. Sander Diagramação e impressão: Con-Texto Gráfica e Editora Capa: Valdemar Schultz i f f } TSEeus copoloelargioiar d e Coordenação geral: Selenir C. Gonçalves K ronbauer www.est.com .br Responsável por este núm ero: Pedro Acosta Leyva Endereço p ara contato: Boletim Identidade Escola Superior de Teologia Caixa Postal 14 - CEP 93001-970 - São Leopoldo - RS E-mail: identidade@ est.com .br - Sites: www.est.com.br Obs.: São de total responsabilidade dos autores os textos por eles escritos. !»««•*»»»»
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Editorial O Grupo Identidade, que se propõe ser um referencial na pes quisa, produzindo m ateriais que estim ulem a Igreja e a Comunida de a refletir sobre a questão da Negritude, faz chegar às suas mãos mais um Boletim Identidade!. O B oletim 8 q u er dar seqüência aos estudos que inicia mos no boletim anterior, cuja tem á tica nos levou a reflexões sobre alguns aspectos da história da Áfri ca. Com essa publicação, os leitores têm em mãos um a produção cuja tem ática que nos rem ete a refletir 02
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sobre alguns aspectos e vultos que protagonizaram a história dos afro-descendentes na América Lati na. Esperamos que os textos que seguem possam estim ular os leitores, a estabelecerem relações num a perspectiva interdisciplinar e histórica, possibilitando a conti nuidade das pesquisas nesta área. Profa. Ms. Selenir C. Gonçalves Kronbauer Coord. do Grupo Identidade daEST
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Apresentação Escuto um homem dizer com sotaque parecido “block ” (bloquear) ou “black” (negro) para significar blo quear, mas negro é sempre negro. Você não pode entrar. Sabe o que eu quero dizer... bloquear você. Você é negro. Não está bloqueado. Significa que é um negro. (Bob Marley)
Com estas palavras de Bob Marley, o rei do reggae, abrimos nosso boletim para expressar e expli car que, nós, os afro-descendentes, ainda que percorrendo um longo sofrimento, não estamos inteiramen te bloqueados. Muitos caminhos soci ais, econômicos, políticos e outros do povo negro têm sido bloqueados. Mas de nossos sonhos, esperança e fome de justiça ninguém poderá nos privar. E com esta idéia que apresentamos neste número uma síntese da históri ca luta pela vida dos negros e negras nas Américas. Nossa proposta é cole tar relatos das façanhas e agonias experimentadas pela gente negra como coluna do panafricanism o herdado de Marcus Garvey, Du Bois, Aime Cesairé, Léopold Sedar Senghor e outras personalidades, que, com suas vidas comprometidas e dedica
das, nos ensinaram a desbloquear tudo o que impeça a vida digna. Começaremos com o artigo de Ezequiel de Souza e Hênio Santos de Almeida fazendo uma retrospectiva geral pela história do povo negro no Brasil. Dircenara dos Santos Sanger e Vera Neusa Lopes propõem olhar a história afro-brasileira através do grande herói negro João Cândido. O afro-venezuelano Romer Portillo pro porciona critérios historiográficos e relata a ativa participação das pesso as negras na libertação da Venezuela. Pedro Acosta Leyva nos oferece um olhar histórico-teórico da presença negra nas Américas. Deixamos com você boa leitura e estamos abertos a receber seus comentários! P Ms. Pedro Acosta Leyva Responsável Editorial 03
Aconteceu. Na Escola Superior de Teologia EST/IECLB: IV Conference of International Black Lutherans - CIBL-US IV Conferência Internacional de Luteranos Negros - CIBL-USA Reuniu cerca de 45 teólogos de diferentes lugares: da África, do Brasil, dos Estados Unidos e de outras localidades internacionais. Tema da Conferência: “O Imperativo Moral e Espiritual para uma Comunidade Mundial Holística: Ecumenismo: A Vocação do/da Teólogo/a na Casa Mundial” Objetivo(s): 1. Expandir a consciência global dos/das membros da ELCA através de aprendizagem e envolvimento com outros/as na vida da comunhão luterana e da família global ecumênica para que o nosso comportamento como pessoas de fé e como cidadãos e cidadãs globais possa melhor refletir a intenção graciosa de Deus para um mundo de justiça e paz. 2. Explorar e reavaliar algumas dimensões do ecumenismo atualmente praticado nesta igreja. 3. Afirmar a tese de que africanos e afro-americanos (genética e ontologicamente) são um povo global e ecumênico. Data da Conferência: 12 a 17 de outubro de 2005 (com uma Confe rência de seguimento em 2006) Local: Escola Superior de Teologia (EST), São Leopoldo, RS, BRASIL
Está acontecendo... Após solicitação do Grupo Identidade, foi aprovada pela IECLB e Reitoria da EST a inclusão da disciplina Religião e Cultura Afro-Brasileira, opcional, no currículo do Curso de Graduação em Teologia. A disciplina está sendo oferecida a partir deste semestre, 2/2005. 27
Breve retrospectiva da história dos afro-descendentes no Brasil. Do "descobrimento" à abolição
EzeQuiel de Souza e Hcnio Santos dc Almeíd?
Alienar' é dar ou vender; mas o homem que se faz escravo de outro não se dá, vende-se, ao menos para subsistir; e por que se vende um povo? (Jean-Jacques Rousseau) A escravidão na Antigüidade
O trabalho escravo é caracteri zado pela alienação do ser de alguém, o escravo, em favor de outrem, o senhor. Na Antigüidade, havia várias maneiras de tornar alguém escravo: por dívida, por saque, por guerra ou a fim de cons truir alguma obra pública. Havia, no entanto, diferença entre a escravidão contínua e a escravidão ocasional. No Egito e na Mesopotâmia, o trabalho escravo era ocasional. Os próprios cida dãos eram “convocados” a servir na cons trução de templos, barragens ou outras obras públicas. Como a economia destes povos não dependia do trabalho escravo, os historiadores convencionaram cha mar esta modalidade de escravidão de “modo de produção asiático” (Pinsky, 1992, p . 13-14). Na Grécia e em Roma, o regime de escravidão era contínuo. A sociedade estava baseada na escravidão, tanto que Aristóteles chegou a defender que algu mas pessoas nascem para ser escravas de outras. Nestas sociedades, o escravo era propriedade de seu senhor, podendo ser vendido livremente. A economia, neste caso, dependia do trabalho escra vo. Os historiadores convencionaram chamar esta modalidade de escravidão de “modo de produção escravista”.
Outras sociedades conheceram a escra vidão ao lado do trabalho livre, de modo que não podem ser denominadas socie dades escravistas. Podemos, neste m om ento, fazer mais uma diferenciação: diferenci ar escravismo de escravagismo. “Esta dos escravistas são aqueles em que o escravo é a principal fonte de trabalho produtivo”. Já Estados escravagistas “são Estados que efetuam um próspero comércio de escravos, vendidos a merca dos longíquos [sid], mas que interna mente o modo de produção dominante não é escravista” (Peregalli, 1988, p. 19). A escravidão na Modernidade
Com as viagens pela costa afri cana, Portugal entrou em contato com povos negros. Estes contatos visavam adquirir riquezas para serem comercia lizadas na Europa. Em 1441, Antão Gon çalves enviou alguns escravos para Por tugal a título de presente para D. Henri que. Neste período, a população de Por tugal estava reduzida por vários moti vos, dentre os quais a guerra pela inde pendência política, pestes que afligiam o continente europeu e as próprias via gens marítimas. Desde o início da empreitada colonial, Portugal buscava riquezas na África, mas o negro era ape-
nas uma destas riquezas, e não o objeti vo principal das incursões marítimas. Apenas em 1444 alguns navios viajaram com o objetivo único de capturar escra vos africanos para os levarem cativos a Portugal (Pinsky, 1992, p. 13-14). A população de escravos em Por tugal foi aumentando consideravelmen te no final do século XV Como a captura de negros para a escravização tornava se cada vez mais atrativa, foram cons truídos fortes para abrigar locais de troca de produtos europeus por negros escravizados. Os comerciantes visuali zavam o comércio não só para Portugal, mas para outras nações também. A Itá lia e a Espanha foram as primeiras nações a receber escravos oriundos deste comércio (Pinsky, 1992, p. 15-16). Na África, havia um sistema de escravidão chamado “escravidão patri arcal”. Neste sistema, quando um mem bro de um clã era assassinado, o assassi no era escravizado para suprir os manti mentos do clã. A escravidão, neste siste ma, não era co-extensiva aos descenden tes, havendo a possibilidade de incorpo ração ao clã após algum tempo, seja do escravo, seja de seus descendentes. O escravo tinha direitos fundamentais, como direito à alimentação e a roupas. Além desse, os povos africanos conheci am um outro tipo de escravidão, que é denominada de escravidão comercial. Neste tipo de escravidão, muito comum a sistemas escravagistas, o escravo era uma mercadoria, podendo ser medido e quantificado (Peregalli, 1988, p. 18-21). No Brasil, a escravidão consti tuía um sistema. Era impossível sair de dentro dele. O escravo era uma peça na
engrenagem colonialista e capitalista. O escravo no Brasil era visivelmente escravo, não havendo a possibilidade de integração. Antes de fixar nossa atenção na escravidão negra no Brasil, precisa mos analisar a escravidão indígena, efe tuada logo após o “descobrimento” e que persistiu por séculos ao lado da escravidão negra. A escravidão indígena no Brasil
A primeira vítima da escravi dão no Brasil foi o indígena. O indígena era visto como um empecilho para a colo nização, tendo que ser eliminado ou reduzido ao sistema mediante a escravi zação (Hoornaert, 1979, p. 253). Inicial mente, os portugueses utilizavam o indí gena para a obtenção de produtos tropi cais. Em troca, recompensavam-no com pequenos presentes, mediante escambo. Com o decorrer do tempo, estes presen tes perderam o encanto da novidade. Então os portugueses passaram a escra vizar o indígena de forma declarada (Pinsky, 1992, p. 17). A igreja apoiava a empreitada portuguesa. O papa havia outorgado ao rei de Portugal o direito do padroado. A partir desse direito, o rei poderia nome ar bispos, párocos e permitir ou impedir missionários de entrar no Brasil. Em tro ca, ficava responsável por ampliar e implantar a igreja de Cristo nos territó rios descobertos (Hoornaert, 1982, p. 1 2 ).
Os portugueses se entendiam como propagadores do reino de Deus e do reino de Portugal. O rei português era o grão-mestre das ordens de Cristo,
de São Tiago da Espada e de São Bento. Estas ordens eram ordens guerreiras. Com isso, a justificativa para a domina ção dos indígenas era, a um só tempo, militar e religiosa. Sob o pretexto de expandir a fé cristã, a colonização era permitida e até mesmo incentivada. Hoornaert identifica três características no discurso missionário: a) Era um discurso universalista, que não conhecia fronteiras. A alteridade dos povos “descobertos” não era reco nhecida. Estes povos eram vistos como periféricos e suas religiões eram consideradas como deturpação da ver dadeira fé; b) Era um discurso doutrinário, no qual o que importava era a transmissão do conteúdo correto, não sua vivência ou mesmo compreensão; c) Era um discurso guerreiro. Os portu gueses se autoconcebiam como segui dores de Tomé, o apóstolo das índias. Para eles, o acontecimento mais importante da história, depois da cria ção do mundo e da encarnação e morte de Jesus Cristo, era o “desco brimento” das índias. Os missionári os não questionaram esta autocompreensão nem a legitimidade da ação colonialista. O máximo que fizeram foi tentar “amenizar” os abusos come tidos dentro do sistema (Hoornaert, 1979, p. 24-27). A escravização do indígena, no entanto, desde cedo teria ferrenhos opo sitores, como Las Casas, no Caribe, e padre Antônio Vieira, no Brasil. Ambos propuseram a substituição da escravi dão indígena pela escravidão negra (Dre her, 1999, p. 43-50, 81-85). Aliados a esta
oposição, fatores de ordem prática foram como decisivos em favor do fim ou da minimização da escravidão indígena. As rebeliões e a resistência dos índios a acei tar o trabalho compulsório (Fausto, 2002, p. 23), bem como a diminuição da mão-de-obra disponível devido às mor tes e/ou fugas para o interior do territó rio brasileiro, tornavam difícil o aprisio namento de indígenas para o trabalho escravo (Pinsky, 1992, p. 19). Porém, o elemento econômico teve maior influência (Fausto, 2002, p. 22). O tráfico de escravos constituía fonte segura de riquezas, não só para os comerciantes, como para a própria Coroa. Na escravidão indígena, muitas vezes, a Coroa deixava de receber até o imposto, que lhe era sonegado. Já “o comércio ultramarino trazia excelentes dividendos tanto ao governo quanto aos comerciantes” (Pinsky, 1992, p. 19). No comércio realizado entre África, Améri ca e Europa, os comerciantes lucravam em torno de 300% a 600% (Dreher, 1999, p. 82). A escravidão negra no Brasil
Os negros foram trazidos ao Brasil de diversos lugares da África. Os senhores de escravos tinham a preferên cia de que fossem de locais diferentes para evitar qualquer possibilidade de organização entre os escravos (Pinsky, 1992, p. 24-25). A justificativa para a escravidão negra era a evangelização dos pagãos. Por isso, os escravos eram batizados ainda em solo africano, ao mesmo tempo em que eram marcados a ferro quente (Peregalli, 1988, p. 21). Ainda em território africano,
após capturados, os negros eram reu nidos em feitorias, junto aos portos. Nestas feitorias, eles aguardavam a chegada dos navios que os transporta riam até o Brasil. Tinham um trata mento razoavelmente melhor que em outras etapas da captura e transporte, por dois motivos: para que se obtivesse o maior valor possível pelo escravo e para evitar revoltas durante a estada na feitoria. Aproximadamente 8.330.000 negros foram capturados na África, dos quais apenas 4.000.000 chegaram ao Brasil. O restante morreu durante a captura, no cativeiro em solo africano ou durante a viagem em direção ao Bra sil. Desses 4.000.000 de escravos que aportaram em território brasileiro, ape nas cerca de 2.000.000 sobreviveram aos quatro primeiros anos de escravi dão no Brasil (Pinsky, 1992. p. 28). Gráfico: Número de escravos negros que aportaram no Brasil durante a escravidão Total 1713200
1680100 I □ Total I
560000 50000
1801-1850 1701-1800 1601-1700 1531-1600 Fonte: IBGE, E statísticas históricas do Brasil, 1987
Chegando ao Brasil, os escravos negros trabalharam em todas as profissões possíveis. Isso por
que o trabalho era considerado tarefa de escravos. A razão da existência do escravo era o trabalho, que chegava a ser de 15 a 18 horas diárias. Sua ali mentação era precária e muitas vezes morriam de desnutrição (Pinsky, 1992, p. 35-36; Peregalli, 1988, p. 57-58). Nos engenhos de cana-deaçúcar, muitos escravos sofriam muti lações e queimaduras no processo de produção do açúcar, mas também no trabalho em lavouras de cana-deaçúcar, lavouras de algodão ou na mine ração e nas fazendas de charque, a saúde dos escravos estava em perigo. As fazendas de charque do Rio Grande do Sul eram as mais nocivas, pois o escravo ficava o tempo todo sobre as vísceras e o sangue dos animais, ao mesmo tempo em que moscas o sobre voavam e o sal queimava sua pele (Pinsky, 1992, p. 59-60). Os escravos negros estavam sujeitos a várias formas de castigo e humilhações durante o período de escravidão. A máscara de flandres era utilizada nas regiões mineradoras para impedir os negros de engolir pedras preciosas ou pepitas de ouro e também para humilhar alguém. Con sistia em uma máscara de metal flexí vel que cobria todo o rosto, com exce ção dos olhos e orifícios do nariz (Pere galli, 1988, p. 48-49). Açoitar os escravos negros era um castigo comum, tanto que se cunhou a fórmula de que o negro pre cisava de “três pês: pão, pano e pau”. Tratava-se de um castigo para desmo ralizar o negro, a fim de mantê-lo em seu lugar. O próprio proprietário era
quem, muitas vezes, impingia este casti go. Em muitos lugares, tratava-se de um acontecimento público, ajuntando-se uma multidão considerável para assistir ao açoite no pelourinho. Esta tortura era regulamentada por lei, de modo que no pelourinho eram torturados vários escravos, que eram trazidos acorrenta dos e em fila. Era açoitado um escravo por vez. Os espectadores posicionavamse ou às costas do escravo, para poderem ver os estragos causados pelo carrasco, ou à frente, para verem as expressões de dor no rosto do negro torturado (Peregalli, 1988, p. 49-50). Quando o senhor do escravo não queria ver os açoites, enviava o escravo para o calabouço. Neste lugar, o escravo levava 100 açoites como castigo, além de permanecer preso nesta modalidade de cadeia. Qualquer coisa era motivo para enviar o escravo ao calabouço. Bastava desobedecer ao senhor, e em muitos casos, até mesmo a arbitrariedade dos senhores era suficiente para que o escra vo fosse enviado para o calabouço, a fim de ser castigado. E importante lembrar que o cala bouço não era uma prisão no senti do de local de recolhimento de homens julgados e condenados. Bas tava a vontade do dono para enviar um escravo ao calabouço e mantê-lo o tempo que julgasse necessário. (Peregalli, 1988, p. 51). Além dessas formas de castigo e humi lhações, o senhor dispunha de outro dis positivo para penalizar escravos que cometiam algum tipo de crime. Era a pena de morte, mediante enforcamento. Os escravos não tinham o direito de ape
lar ao imperador, pois este mesmo havia afirmado que os escravos não eram dig nos de sua clemência real. Após 1850, quando o tráfico de escravos foi proibido, os escravos negros tornaram-se merca doria valiosa, de modo que a pena de morte foi transformada em prisão per pétua com trabalhos forçados (Peregalli, 1988, p. 51-52). Resistência cultural negra
Os negros trazidos ao Brasil pro vinham de vários locais da África. Os gru pos mais importantes eram de origem bantu e ioruba. O grupo cultural bantu não é um povo, mas um conjunto de povos, autodefinidos a partir das seme lhanças lingüísticas. Os bantu têm uma idéia de Deus como sendo um Deus dis tante e escondido, um princípio de vida. Seu nome é Olorum. O culto bantu é feito não a Olorum, mas aos ancestrais, para evitar que seus espíritos incomo dem os vivos. A cosmovisão bantu define o universo como composto de três cama das: a superior é o local de habitação dos espíritos perfeitos. Na camada inferior, está o mundo dos mortos. Nós nos encontramos no centro, os vivos, sofren do influências de ambas as camadas anteriores. Tudo o que é bom provém da camada superior, já o que é ruim provém da camada inferior (Hoornaert, 1990, p. 84-85). O povo ioruba também crê em Olorum. Para este povo, Olorum dá o “axé”, a força vital. Diferentemente do povo bantu, os ioruba crêem que alguns antepassados ganharam a capacidade de intervir em favor de seus descendentes. Na religiosidade ioruba, não há o concei
to de diabo nem de pecado ou medo de Deus. Deus quer o bem dos seres hum a nos, colaborando para a superação das ambigüidades em que eles estão imersos (Hoornaert, 1990, p. 85-86). O povo bantu e o povo ioruba uti lizaram-se das figuras dos santos católi cos para m anter seus cultos. As festas africanas foram identificadas com as fes tas cristãs (Hoornaert, 1990, p. 82; Dre her, 1999, p. 86). Também a figura de Jesus Cristo foi ressignificada por parte dos escravos negros no Brasil. Para os bantu, por exemplo, a comunidade é a intermediária entre a divindade e o ser humano. A comunidade é não só a realidade antropológica mais antiga, mas também o conceito fundante para a compreensão da origem e do des tino do mundo e dos homens. Na origem de tudo está a comunida de, simbolizada na família, por vontade divina. Assim como no fim de tudo está também a comu nidade. (Silva, 1998, p. 50) Desta forma, o povo bantu iden tifica Jesus Cristo com a comunidade. Esta compreensão de Cristo inverte a visão de um Cristo domesticador do escravo, que era apresentada pelos bran cos e pela igreja. Também os ioruba entenderam Jesus Cristo de forma res significada: ele era visto como o Orixá, aquele que faz a ponte entre a comuni dade e Olorum (Silva, 1998, p. 51-54).
vam passivamente a condição serviçal, enquanto que os indígenas tinham um espírito livre, é de todo falsa. Houve, por parte dos escravos negros, fugas indivi duais e coletivas, agressões a senhores, etc. (Fausto, 2002, p. 25). As fugas sem pre existiram, mas próximo ao fim da escravidão tornaram-se mais freqüen tes. Alguns escravos fugiam e eram recapturados, outros conseguiam m an ter a liberdade, associando-se a quilom bos. Além do Quilombo de Palmares, houve quilombos em várias regiões do Brasil. O Quilombo Quariterê, constitu ído na região de Cuiabá, era governado por uma mulher, a rainha Tereza. Tam bém o assassinato dos senhores e feito res era muito comum durante todo o período colonial, bem como os suicídios (Pinsky, 1992, p. 55-57; 59-62). Os quilombos eram locais onde os escravos podiam depositar suas espe ranças de libertação. Os quilombos pro duziam diversos produtos agrícolas, bem como dispunham de técnicas de metalurgia e de outras atividades arte sanais. Mas não produziam tudo o que precisavam, de modo que guerrilhas eram utilizadas para saquear o que mais era necessário (Moura, 1981, p. 87-88). O Quilombo de Palmares é o qui lombo mais conhecido da história do Bra sil. Isso devido ao fato de ser um quilom bo muito organizado e poderoso, de modo que sua destruição por parte das autoridades portuguesas foi muito difí cil. Palmares começou a ser formado Outros tipos de resistência durante a conquista de Pernambuco Os escravos negros tiveram pelos holandeses. Os portugueses esta outras formas de resistência. A idéia do vam vulneráveis, pois sua luta era con senso comum de que os negros aceita tra os holandeses, os índios e os escravos
(Freitas, 1973, p. 51-53). Enquanto os índios entraram na guerra ao lado dos holandeses, os negros optaram por não lutar de lado algum. Nesta ocasião, sur giu a oportunidade da fuga. Como regra, simplesmente se aproveitaram da escassa vigilân cia exercida pelos amos ocupados com a guerra ou a própria sobrevi vência para fugir em direção ao reduto livre que sabiam existir nas serras do sul pernambucano. Munidos de armas de fogo, de chu ços, de facões e de lanças, forma vam depois extensas colunas que levavam de roldão os que preten diam barrar-lhes o passo. [...] Uma vez chegados ao Palmares, os escravos se armavam e retor navam ao litoral em expedições vingadoras. (Freitas, 1973, p. 55). Palmares resistiria por 65 anos, até que foi conquistado em 1695. A orga nização de Palmares era uma república (Moura, 1981, p. 185). Havia muitas comunidades nesta imensa república, cuja comunicação era reduzida devido à dificuldade de acesso. Havia um poder central, que congregava as comunidades integrantes do quilombo, dando uma unidade político-administrativa. O poder central se exercia sobre as diferentes povoações através de uma estrutura administrativa, judicial e militar. Os funcionários administrativos tinham por prin cipal incumbência a arrecadação dos tributos, que em uma econo mia seminatural como a de Pal mares só podiam ser em espécie. Os funcionários judicantes, ou
como diz um documento, os “mi nistros de justiça para as execu ções necessárias”, encarregavamse da aplicação da legislação civil e criminal. (Freitas, 1973, p. 99). Possivelmente o Quilombo de Palmares possuía uma organização base ada nas assembléias comunitárias. “Uma assembléia dos chefes comunitá rios elegia o cabeça do governo central, denominado Grande Senhor ou Grande Chefe” (Freitas, 1973, p. 100). O grande chefe tinha as prerrogativas de um rei. No entanto, como dito acima, Palmares era uma república e não uma monar quia, pois tinha igualdade civil e os governantes eram eleitos. “Era uma república peculiar a que não se poderi am aplicar conceitos históricos ou políti cos de inspiração européia. Indubitavel mente, era uma república igualitária, fraternal e livre” (Freitas, 1973. p. 102). A resistência negra, no entanto, não conseguiria acabar com o sistema escravista brasileiro. A escravidão per sistiria até o século XIX, quando foi assi nada a Lei Áurea. O fim da escravidão foi adiado ao máximo. Já em 1827, a Inglaterra conseguiu que o Brasil assi nasse um tratado no qual se dispunha a terminar com o tráfico negreiro. No entanto, esta lei ficou apenas no papel. Apenas em 1850 seria proibido o tráfico negreiro. Em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, que declarava livres filhos de escravas nascidos desde a data da Lei (Fausto, 2002, p. 121). No entan to, esta lei não garantia nenhuma liber dade aos filhos dos escravos, pois fica vam sob a tutela dos seus senhores até os 8 anos de idade. Após esta data, pode-
riam permanecer como escravos até os 21 anos, quando a lei garantia a liberta ção. Caso o Estado pagasse a indeniza ção pela libertação do escravo, o escravo tornava-se, na verdade, um escravo “pú blico”: O Governo poderá entregar a asso ciações por elle autorizadas os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelas senhoras delias, ou tiradas do poder destes em virtude do art. Io§ 6o. § l s - As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 annos completos e poderão alugar esses serviços. (Brasil, Lei do Ventre Livre, Art. 2o). O mesmo vale para a Lei dos Sexagenários: as pessoas com mais de 60 anos deveriam trabalhar mais três anos para pagar a indenização pela sua liberta ção (Brasil, Lei dos Sexagenários, Art. 3o, § 10). Além disso, não era permitido ao ex-escravo mudar de cidade num prazo de cinco anos da data de libertação, ao mesmo tempo em que não podia mudar de Província, sob pena de ser preso. Após a aprovação da Lei Áurea, os ex-escravos tiveram destino muito diverso. No Nordeste, eles permanece ram dependentes dos grandes proprie tários. Na região de São Paulo e Rio de Janeiro, tornaram-se pequenos sitian tes ou migraram para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, os imigrantes europeus toma ram os postos de trabalho regulares, rele gando os ex-escravos a trabalhos irregu lares e inferiores (Fausto, 2002, p. 124).
Bibliografia
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Acadêmicos de Teologia na Escola Supe rior de Teologia e integrantes do Grupo Identidade.
Joao Cândido: personalidade da história brasileii Dirccnara dos Santos Sanger'e Vera Neusa Lope
Introdução O Brasil possui uma história que não vem sendo contada nos bancos esco lares nem sendo trabalhada pelos cursos que formam professores para atuarem neste campo. Nesse sentido, o presente artigo traz alguns elementos fundamen tais para o entendimento dessa história não-contada, cujo conhecimento é de fun damental importância para que os brasi leiros possam exercer plenamente sua cidadania. Ele tem como propósito divulgar alguns dados sobre João C ândido, um marinheiro negro que liderou a Revolta da Chibata, episódio cujo conhecimento permite uma tomada de consciência polí tica do momento histórico de sua ocor rência e dos desdobramentos do mesmo até os dias de hoje para a sociedade como um todo e, em especial, para a comunida de afro-brasileira. João Cândido foi um negro de origem gaúcha que deixou muito cedo as terras dos pampas para tra balhar na Marinha Brasileira e lá travou batalhas em prol do respeito aos direitos humanos e da valorização da pessoa humana, independentemente de sua ori gem étnico-racial e posição social. O conhecimento de personagens negros que possam servir de referências, especialmente para a comunidade afrobrasileira, é necessário, na medida em que crianças e jovens precisam identifi car-se com vultos que deram uma contri buição significativa à história do Brasil, até porque somente agora tais vultos começam a sair da invisibilidade, a ser
conhecidos e valorizados como protago nistas de profundas alterações no status quo da sociedade brasileira. E importante para os educadores conhecer João Cândido, como outros per sonagens negros, e dar ao tema o trata mento pedagógico necessário para aten der ao disposto nos artigos 26-A e 79-B, introduzidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pela Lei Federal 10.639, que trata da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura AfroBrasileira e Africana na educação básica. 1. Alguns dados biográficos No dia 24 de junho de 1880 nascia João Cândido Felisberto, filho de exescravos: do senhor João Cândido Velho e de dona Ignácia Cândido Velho. Segun do depoimento prestado pelo próprio João Cândido ao almirante João Adolfo dos Santos, em 29 de novembro de 1912, nasceu em Vila Encruzilhada, em Rio Pardo/RS. Mesmo com a liberdade con cedida, os pais de João Cândido perma neceram sob a tutela do seu senhor. Durante a infância era um menino que sempre acompanhava o pai no seu trabalho como tropeiro e nas andanças com os animais. Uma de suas maiores aventuras era embarcar em pequenos navios os animais que eram transporta dos entre Rio Pardo e Porto Alegre. Devi do a suas travessuras, o menino foi m an dado para a marinha como um castigo por ter agredido o filho do fazendeiro. Aos 13 anos João Cândido teve con tato pela primeira vez, em Porto Alegre
com um navio da Marinha Brasileira, chamado Ondina, por meio do almirante Alexandrino de Alencar. Uma passagem do livro da professora Maria Luci contanos: “futuro marinheiro chega ao cais na companhia do oficial, o que provoca gran de curiosidade aos marujos que estavam a bordo; jamais um negro tivera regalia” (Ferreira, 2002, p. 64). No ano de 1894, aos 14 anos, ingressou na Escola de Aprendizes de Marinheiro no Rio Grande do Sul, com a recomendação do almirante Alexandri no de Alencar, como aprendiz de mari nheiro. Logo prosperou e, no ano seguin te, foi mandado para o Rio de Janeiro e, efetivamente, entrou na Marinha na tri pulação do cruzador Andrada. Desde o princípio se destacou por seu espírito de liderança frente a seus colegas. Nessa época as Forças Armadas aceitavam menores, e a Marinha, parti cularmente, recrutava seus marinheiros em muitos casos na própria polícia. Os jovens mais humildes e negros eram recrutados à força, de forma arbitrária, e não tinham como se defender de tal ato violento. Isentavam-se de tal episódio aqueles que possuíam algum tipo de for tuna e compravam sua isenção do servi ço militar. Cabe destacar que, no caso de João Cândido, ele foi recomendado por seu protetor, o almirante Alencar. João Cândido, sempre muito empenhado na sua profissão, conseguiu o posto de instrutor dos aprendizes de marinheiros no encouraçado Riachuelo durante cinco anos. Após, rumou para Belém do Pará e Manaus. Entre esses últimos e Riachu elo, João Cândido contraiu uma tubercu
lose pulmonar, ficando 90 dias no Hospi tal da Marinha no Rio de Janeiro. Passado o ocorrido, continuou sua trajetória, fazendo muitas viagens a diversos países, e, numa delas destacou alguns países da Europa em que teve a oportunidade de observar a diferença de tratam ento dado aos m arinheiros. Essas viagens favoreceram a João Cân dido e seus companheiros o aprimora mento de seus conhecimentos e fizeram despertar no marinheiro o sentimento de igualdade de tratamento no interior dos navios, bem como a luta contra a chi bata, instrumento com que os marinhei ros costumavam ser castigados. No Almanaque Pedagógico AfroBrasileiro, a autora Rosa Margarida, com base na obra de Fernando Granato, caracteriza a figura de João Cândido e suas contribuições para o país, mencio nando os avanços obtidos a partir das experiências nas viagens: “Cresceu, então, a politização dos marinheiros bra sileiros e, liderados por João Cândido, ini ciaram reuniões para discutir a situação nessa armada, que culminou com a Revolta da Chibata, em 22 de novembro de 1910, exigindo melhores soldos e con dições de trabalho, assim como a aboli ção da chibata (castigo físico empregado na marinha)” (Rocha, 2003, p. 37). Em conseqüência de sua luta por melhores condições de trabalho e respei to à dignidade e aos direitos humanos, sofreu a perseguição política. Sua vida foi abalada, sendo preso e, posterior mente, internado no Hospital dos Alie nados, resultando no seu afastamento da Marinha. Com os anos passados e sofridos
pelas vicissitudes da vida, João Cândido ficou com sua saúde abalada e a fama de rebelde e subversivo, não conseguindo emprego. Conseguiu apenas uma pensão do governo gaúcho por um determinado período e acabou sua vida sem dinheiro e esquecido na periferia do Rio, num case bre com esgoto a céu aberto. No dia 6 de dezembro de 1969 mor reu, por complicações causadas por cân cer no intestino, aos 89 anos no Rio de Janeiro, deixando um legado ao Brasil: a extinção do uso da chibata na Marinha brasileira. Encontra-se na Comissão de Cons tituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal o Projeto de Lei nQ45 de 2001, de autoria da ex-senadora Marina Silva (PTAC), que propõe a anistia post-mortem do ilustre personagem da nossa história. 2. A revolta da chibata Na Marinha do Brasil, os castigos corporais foram mantidos após a procla mação da República e só foram abolidos um ano depois, com o decreto nQ 3. Porém, o decreto 238 restabeleceu os cas tigos, que, segundo Ferreira (2002, p. 69), tinham a duração de “3 dias de soli tária a pão e água, para as faltas leves, até 25 chibatadas, para as faltas conside radas graves”. Cabe destacar que, em muitos casos, esses castigos eram aumentados e juntavam-se aos baixos salários e à dis criminação sofrida pelos marinheiros, em sua maioria negros. É nesse clima de tensão que, no “dia 22 de novembro de 1910, o marinhe iro negro Marcelino recebeu 250 chiba tadas na frente de toda a tripulação no
navio Minas Gerais. Foi a gota d'água para a eclosão de um movimento que já vinha sendo articulado pelos marinhei ros, que, liderados por João Cândido, se rebelaram” (Oliveira, 2001, p. 42). Dessa forma, João Cândido e seus seguidores tomaram os navios Minas Gerais, São Paulo, Deodoro e Bahia. Os marinheiros reivindicavam melhoria na alimentação, anistia aos rebeldes e fim dos maus-tratos. Caso suas reivindica ções não fossem atendidas, ameaçavam bombardear as cidades com o potentíssimo fogo dos encouraçados recémtrazidos da Inglaterra. Seria realmente surpreendente acreditar que, mesmo passados 22 anos da abolição da escravatura, os castigos corporais ainda persistissem, em relação aos homens negros. Diante de pressão sofrida, o presi dente na época, Hermes da Fonseca, cedeu, abolindo os castigos físicos e anis tiando os revoltosos. Com o acordo do dia 26 de novembro, os rebeldes entregaram as armas e devolveram os navios. Dois dias se passaram, e tudo ficou novamente tenso. O presidente baixou, então, um decreto expulsando inúmeros integrantes da Marinha por atos de indisciplina, por terem participado do que ficou conhecido como a “Revolta da Chibata”. No dia 4 de dezembro, 22 mari nheiros foram presos. Cinco dias depois, o governo decretou estado de sítio: expulsou mui tos da Marinha, prendeu outros tantos, “dezesseis revoltosos morreram por sede, calor e sufocamento nas celas sub terrâneas da Ilha das Cobras e nove foram fuzilados durante a viagem que
conduzia 105 deles desterrados para a Amazônia” (Oliveira, 2001, p. 43). Contudo, João Cândido sobrevi veu, depois de ter vivido 18 meses numa prisão subterrânea, e foi internado no Hospital do Alienados. E, em novembro de 1912, todos foram absolvidos. Foram apenas cinco dias de rebe lião, que abalaram a República Velha, desafiando o poder das elites e dos oficia is da Marinha. João Cândido e os mari nheiros negros inscreveram seus nomes definitivamente na história: não só por sua luta particular, mas também pela luta do negro no Brasil em prol do direi to de ser cidadão em sua plenitude. 3. Valor educativo do personagem João Cândido está citado explici tamente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da Histó ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana como um negro brasileiro que se desta cou nas lutas sociais deste país, em favor do respeito à pessoa, independentemente de seu pertencimento racial, na luta por direitos políticos e sociais. E um protago nista da história recente, juntamente com seus companheiros, e fazer a releitura da Revolta da Chibata considerando o grupo liderado por João Cândido é, com certeza, necessário para o entendimento correto do que são o racismo, o preconcei to e a discriminação num país que se afir ma não-racista, mas que tem, em suas vivências quotidianas, práticas racistas. Hoje, João Cândido é um herói que deve ser reverenciado por todos. Como outros personagens negros, ele personifica a luta pelos direitos huma
nos, numa sociedade multirracial e pluriétnica em que ainda prevalecem pesso as discriminadoras (geralmente bran cos) sobre outras tantas discriminadas (especialmente negros e índios). Trazer à luz a vida de João Cân dido, como tema de História e Cultura Afro-Brasileira, exige que a escola se pre ocupe em contextualizar sua trajetória, buscando caracterizar, por exemplo, como era o Brasil à época de seu nasci mento, o que significava ficar com os senhores após a abolição da escravatura (situação vivida por seus pais), como foram sua infância e juventude, em que condições o negro tinha acesso à Mari nha, que funções lhe eram reservadas, como se davam as relações interpessoais no trabalho. E fundamental para o desenvol vimento da personalidade que crianças e adolescentes afro-brasileiros tenham referenciais positivos de outros iguais a si quanto à origem étnico-racial, ou seja, que possam ver-se em outros negros que tenham tido ou tenham significação para a vida social e pessoal, pois, de acor do com Berman (1975, p. 29), “a manei ra como as pessoas percebem, o que per cebem e por que percebem de tal ou qual maneira são fatores que devem receber cuidadosa atenção, a fim de que a escola ajude no desenvolvimento de pessoas que vejam o mundo com toda a sua riqueza, variedade e encanto, e que sejam capazes de perceber com um míni mo de distorção”. O conhecimento deste persona gem histórico, como de tantos outros, permite ao aluno dar novos significados à sua história de vida e à história gaúcha IS
e brasileira, ao mesmo tempo em que con tribui para desconstruir a ideologia do racismo, manifestado através de com portamentos extremados, de preconcei tos sentidos e de discriminações mani festadas de que, muitas vezes, ainda, nós negros somos vítimas. Essa desconstração, necessária para que se criem as con dições para a promoção da igualdade raci al, acontece quando: - trazemos para o plano do debate real a questão das relações interpessoais, quando essas relações ocorrem entre pes soas de diferentes origens étnico-raciais, favorecendo o diálogo entre diferentes interlocutores; - tornamos visível a presença de negros e indígenas em territórios tidos como de domínio exclusivamente bran co, onde os marginalizados costumam aparecer em condições de subalternida de, e buscamos criai- espaços de inclusão; - somos capazes de divulgar para o mundo a existência de negros e negras que se tornaram referências positivas não só para os afro-brasileiros, mas para todos os brasileiros, favorecendo, com isso, a superação da ignorância de que os negros não têm história nem participa ram da construção da história do Brasil; - pelo conhecimento da história e da cultura afro-brasileira, ampliamos nossas possibilidades de criar e reformu lar valores que nos conduzem a uma nova visão de mundo, onde há lugar para todos os homens. Por fim, podemos afirmar que o estudo e a divulgação da vida de João Cân dido tomam visíveis atitudes, posturas e valores de um cidadão afro-brasileiro que acreditou nos seus ideais e lutou por um
mundo melhor e solidário, de respeito aos direitos da pessoa humana. Referências BERMAN, Louise M. Novas Priorida des para o Currículo. Porto Alegre: Globo, 1975. BRASIL. M inistério da Educação. SEPPIR, INEP Diretrizes Curricula res Nacionais para a Educação das R elações Etnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Brasília, 2004. FERREIRA, Maria Luci Corrêa. Tribu to a João Cândido: o Rei do Farol da Liberdade. Encruzilhada do Sul, RS: Evangraf, 2002. OLIVEIRA, Nelson Silva de. Guia de D ir e ito s do B r a sile ir o A froDescendente: Vultos Negros na Histó ria do Brasil. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Dire itos Humanos, 2001. ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. A lm an aq u e P ed a g ó g ico A froBrasileiro: uma Proposta de Interven ção Pedagógica na Superação do Racis mo no Cotidiano Escolar. Minas Gerais: Nzinga, 2003. Notas 1 Graduada em Educação Especial (UFSM), Especialista em Gestão Educacional (UFSM), mestre em Educação (UFRGS), dou toranda em Educação (UFRGS). E-mail: dircenara@yahoo.com.br 2 Graduada em Ciências Sociais (UFRGS), especialista em Planejamento da Educação (UFRGS), membro do Coletivo Estadual de Educadores Negros APNs/RS. E-mail: vneusa@globo.com 3 Os nomes em negrito estão conforme consta na obra de origem.
Una historia dc las comunidades negras en Venezuela Romer Portiüo'
INTRODUCCIÓN Hay varias formas de abordar la historia cuando tratamos el tema de la negritud: 1) una con pretensiones de objetividad y neutralidad, olvidando el factor ideológico que subyace en toda narración histórica; 2) y la otra desde la indignación que producen la exclusión, el olvido y la invisibilidad provoca da por más de 200 anos. En este escrito hemos decidido optar por el segundo enfoque. Es decir, la historia de la negritud en Venezuela la abordamos con ojos y corazón de negros y negras que comienzan a levantar su voz en defensa de su dignidad, hacer escuchar su voz, y hacer visible la resistencia y la lucha que por siglos hemos tenido en América. Queremos entonces partir de la historia registrada en las crónicas orales guardadas en la memoria de nuestras comunidades. DIÁSPORA VENEZOLANA La sociedad Occidental estableció en América el mayor imperio de trabajo forzoso esclavista y promovió el éxodo forzado que produjo la diáspora africana. Este drama fue lo que hizo posible la llegada de familias y comuni dades negras a tierras venezolanas. Desde el siglo XVI y durante cuatro siglos más, millones de africanos de dis tintas etnias y pueblos, con algunas dife rencias culturales, fueron traídos a
América. La llegada aconteció por dife rentes vias y distintas razones: 1) a tra vés dei trafico negrero; 2) esclavos que venían fugados de Curazao, que al llegar a tierra firme venezolana quedaban en libertad de las Colonias inglesas y holandesas; 3) por el otorgamiento de licencias, por parte de la Corona, a per sonas y companías para transportar esclavos; 4) por las “malas entradas”, el contrabando de esclavos africanos. Para los empresários de la trata de negros la lógica dei mercado Occidental justifico la utilización de los esclavos para faenas domesticas, para producir mercaderías comerciales como braceros para los ingenios, las plantaciones de cacao, de algodón y cana de azúcar. Los sistemas mercantilistas como la Licencia a particulares, los Asientos y luego las grandes companías fueron creando las condiciones y disenando el tipo de actividad comerci al y productiva a las cuales se dedicaria el esclavo, suministrando incluso los instrumentos de trabajo. Reconocemos que con la llega da de las familias y comunidades negras a Venezuela, también llego una conciencia colectiva de la negritud. Estas comunidades en su trayectoria a lo largo de la historia han constituido mundos en los cuales se han refugiado, defendido, resistido y luchado. No se trata de mundos paralelos o submun-
dos como en ocasiones se quiere senalar. Estas comunidades construyen y reflejan una realidad social que distin gue a un pueblo afrodescendiente visi ble en espacios geográficos bien delimi tados. Son comunidades que asumiendo su conciencia negra han recreado, creado símbolos, cosmovisiones, for mas de alimentarse, formas de resistir al sufrimiento, de celebrar la vida, han creado lenguajes verbales y gestuales. Han creado una cultura. Es la cultura dei mundo negro presente en la Améri ca y en Venezuela, evidenciando su identidad en los rasgos de los fenotipos del venezolano, en las expresiones musica les, en los mitos y leyendas populares y en una amplia simbología derivada de los procesos históricos. DIALÉCTICA ENTRE LIBERTAD Y ESCLAVITUD La dialéctica entre la libertad de espiritu y la opresiôn de la esclavitud apunta a la necesidad de recuperar la espiritualidad de resistencia que desarrollaron las comunidades indígenas y negras en Venezuela. Esta espirituali dad se alimentaba de la cosmovisiôn sagrada del universo, la música de los tambores. La esperanza de que la situa tion de la esclavitud no séria perma nente fortaleciô el proyecto de libertad siempre presente en el pueblo negro. Esta fortaleza que da la espiritualidad era necesaria para las negras y los negros en sus cuatrocientos anos de opresiôn esclavista. Ellos y ellas necesi-
taban de ánimo y fuerza para la lucha y la resistencia. Necesitaban además discernimiento de la realidad, firmeza en los propósitos para alcanzar el sueno emancipador. Ser fuerte de espíritu rompe con los mitos, con los prejuicios y la falsibilidad de la realidad, promociona el cambio y asume el riesgo que eso conlleva. Esta espiritualidad mueve a compasión y a misericórdia, se conmueve ante el dolor y sufrimiento de sus hermanos y reacciona para resolver tal situ ation. La fortaleza de espíritu orien ta en la búsqueda de la libertad y de la justicia. Cuando no hay esta espirituali dad se promueve el conformismo y la resignation ante las causas de los males sociales como la esclavitud, la pobreza, el racismo, la discrimination y el machismo. La debilidad de espíritu hace que las víctimas se adapten con facilidad a la opresión, siembra miedos y evita la confrontación. Adaptarse a un sistema injusto pasivamente es una forma de cooperation. La espirituali dad de la resistencia da lugar para la exigencia de justicia y paz, al juicio crí tico y a la gratia. Es la espiritualidad que descubre la certeza de la presencia del Dios liberador dador de la vida y de su Espíritu en la comunidad. El Dios liberador se diferencia del demonio blanco de la muerte y de la esclavitud. El Dios liberador nunca dejó solos a las comunidades afrodescendientes venezolanas en sus agonias y combates, El es el Dios que sufre con el pueblo en su
realidad de pobreza y sufrimiento. Es el EL EJEMPLO DE JOSÉ Dios que inspira a redescubrir la fe y a LEONARDO CfflRINO celebrar la promesa de la libertad en José Leonardo Chirino fue un medio de la opresión y la injusticia. negro falconiano que inició el proceso independentista en Venezuela, su nom LANECESIDAD DE SER bre forma parte de la memória históri ORIGINALES Y RADICALES ca de la liberación en nuestro país. Estamos llamados a ser origi Líder y héroe de nuestra Venezuela nales y radicales. Tenemos necesidad que inspiro, y todavia inspira hoy, a quide encontrar los orígenes y las raíces de enes han asumido una espiritualidad ese mundo negro venezolano constitui- emancipadora. Su movimiento de rebedo desde la conciencia colectiva de las lión de negros y zambos desarrollada en comunidades negras. La originalidad la serrania de Coro en 1795 se mantieno se busca, está allí con nosotros, en ne como paradigma y modelo. nuestra realidad. Para el negro la origi José Leonardo visitó al Santo nalidad y la radicalidad plantean un Domingo francês (posteriormente 11adesafio: hablar en nombre propio cons mado Haiti). Allí escuchó hablar de la ciente de que nuestro mensaje es váli Revolución Francesa y los ideales de do, y es una alternativa al rescate de la ésta (libertad, igualdad y fraternidad). humanidad, masculina y femenina. Desde enfonces, entre 1794 y 1795, La originalidad obliga a partici comenzó a familiarizarse y a conocer la par a los varones y las mujeres afrove- “ley de los franceses”, la rebelión de las nezolanas en la historia como actores y comunidades negras haitianas. A fina como personas capaces de conducir y les de marzo de 1795, comienza a tra transformai’ la realidad que le ha nega mar el alzamiento, en mayo se da el do su ser. Como personas y no como grito insurreccional en la Hacienda el objetos, porque esa cosificación dei Socorro, ubicada en la serrania dei Esta negro fue el argumento para explotarlo do Falcón. Esta insurrección además se como esclavo en tiempos de la colonia. alimento dei malestar y el descontento Ya estamos en otro tiempo y otra es la de los negros esclavos y los indios, historia. La historia dei negro y la malestar que crecía por diferentes cau negra, en Venezuela y la América, no sas: económicas (crecidos impuestos y debe verse como extrana. Esa historia la forma violenta de su cobro), sociales pertenece a todos y todas, es una reali (trato inhumano, desigualdad social), dad universal, en la medida que se le políticas (aspiración de crear una Repú reconozca, se estará contribuyendo a blica), ideológicas, entre otras. Existia una sociedad más autêntica. entre los negros la información de que el Rey de Espana había acordado la
libertad de los esclavos, sin embargo la cédula que los libertaba había sido incumplida una vez llegada a Venezuela (1790) por miedo a crear rebelión entre los grupos pudientes. José Leonardo fue hecho preso y llevado a Coro. Lo trasladaron a Cara cas para seguirle juicio por la Real Audi ência, la cual lo condenó a muerte el 10 de diciembre de 1796. Murió en la horca y su cabeza fue cortada junto a sus manos para ser colocadas en astas en las entradas de Coro, como escarmiento para el pueblo. EL EJEMPLO DE LA NEGRA fflPOLITA La negra Hipólita se asocia a la vida dei Libertador Simón Bolívar, es decir a los nombres que condujeron y continuaron con el proceso independentista iniciado por José Leonardo Chirino. No es casual que la raza negra en Venezuela esté vinculada con ambos movimientos o iniciativas emancipadoras. La negra Hipólita nació en San Mateo, una población ubicada en el Estado Aragua, en el ano 1763. Fue nodriza de Simón Bolívar. Cuando nació el Libertador, su madre por que brantos de salud buscó una aya, Hipóli ta, esclava de la hacienda El Ingenio, en San Mateo. Era una negra fuerte, sana y llena de mucho vigor. Ella se encargaría de amamantar al Libertador. Bolívar mostró siempre mucho afecto por la negra Hipólita, a quien
llegó a considerar como su madre. Le concedió la libertad a Hipólita y nunca se olvidó de su nodriza haciendo que no le faltara una pension. Desde el Cuzco, el 10 de julio de 1825, Bolívar envió a su hermana Maria Antonia una carta que revela el sentimiento de gratitud que el Libertador guardó por esta negra: “Te mando una carta de mi madre Hipólita, para que le des todo lo que ella quiere; para que hagas por ella como si fuera tu madre, su leche ha alimentado mi vida...” La negra Hipólita, de ser mujer de ébano, saludable como las de su raza, ofrecía un aditivo psicológico en la calidad de su carácter amable y conjuntivo. Todo el carino lo dio a Simón, siendo un equivalente afectivo de la madre en función dei sustituto. Tanto carino profesó Hipólita a Simón que no se separó de él mientras vivió en Caracas. Aún más, en las terribles horas de la guerra (1814), escenificadas en la Hacienda de San Mateo, la negra participa en los enfrentamientos armados como auxiliar de Bolívar. Una huella imborrable dejó Hipólita en Bolívar. Nota 1 Romer Portillo, é afrovenezuelano. Pastor da Comunidade Evangélica Koinonia(pentecostal). Mestreem filosofia, professor em teologia e diretor do Pro grama Aberto de Capacitação Teológica(PACTO), com sede em Maracai bo/Venezuela.
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ncgritLido c o m o
história Pedro Acosta L e ra
Introdução Existem diversos estudos sob perspectivas dissimiles sobre a presença da população negra nas Américas. No Brasil, por exemplo, segundo Ana Regi na Falkembach Simão, estas perspecti vas podem ser classificadas a partir de três autores, a saber Gilberto Freire, que, em sua obra Casa grande e senzala, “tenta justificar o sistema escravista bra sileiro enfocando a população cativa como acomodada e adaptada à escravi dão”; Clóvis Moura, que em seu livro Rebeliões da senzala: quilombos, insur reições, guerrilhas parte do reconheci mento do cativo como sujeito histórico em constante resistência; e Stuart Schwartz (este é norte-americano) e outros que compartem a tese do cativo como um “ser social disposto a reconci liação e a acomodamento”. Nos Estados Unidos, as pers pectivas históricas comumente mais divulgadas pelos afro-norte-americanos são: a leitura da igreja negra como comu nidade negra, a histórica luta pelos dire itos civis e, anteriormente a estas duas, as biografias e autobiografias de exescravos como ilustração da resistência. No Caribe, o perfil da história do povo negro se pode resumir em duas grandes variáveis: escravidão - eco nomia, inspirada na famosa tese Capi talism and Slavery do afro-trinitário Eric Williams, em 1943; e religiosida de como consciência sociocultural. Estes dois grandes eixos têm sido enri quecido com as perspectivas dos estudos
culturais do afro-jamaicano Stuart Hall, com as ob serv açõ es dos afromatiniquenhos Frantz Fanon e Aimè Césaire e com as contribuições dos ras tafaris e teólogos cristãos negros. Cada perspectiva em separado é boa, mas contém a dificuldade de não apresentar de forma adequada o esque ma apropriado do conjunto do mundo afro/negro. Alguns autores, pela exaus tiva abordagem de certos assuntos, des cuidam totalmente de determinados aspectos sem os quais é impossível uma leitura plausível do universo afro/negro. Por esta razão, nos propomos, não inventar algo novo, e sim convergir em uma síntese capaz de captar as diferen tes variáveis e apresentá-las de modo simples com vistas à sua utilização por graduandos e outros não especializados na temática. 1. A negritude como leitura da história Como aclaramos na introdução, nosso objetivo não é inventar um siste ma de referência para a leitura históri ca, mas nos propomos fazer uma síntese que incorpore os diferentes aspectos que compõem a estru tu ra do mundo afro/negro. Aqui estaremos utilizando as variáveis afro/negro, porque alguns antropólogos fazem diferença entre afro e negro. Para eles, “afro” significa os valores que se reporiam à África; entre tanto, a variável “negro” aponta ao con ceito de resistência dos negros nas Amé ricas. Em nossa compreensão e na pró-
pria compreensão dos antigos africanos egípcios, negro é, também, um valor intrínseco na africania. Na minha opi nião, falar do candomblé como um valor africano sem fazer referência ao papel que desempenha como valor de resistên cia negra é uma falta de compreensão. Do mesmo modo, quem fala dos quilom bos como valor de resistência negra sem observar a africania da estrutura de tal instituição demonstra sua compreensão insuficiente de nosso mundo. Portanto, ao utilizar o binômio “afro/negro”, estou tomando como realidade a fun ção inseparável de africania e negri- y tude para os afro-descendentes. A 1 pessoa que proclama negritude sem africania é um órfão, que abandonou sua mãe África. Quem se proclama afri canista sem considerar a negritude é um pai andarilho, está abandonado por seus filhos. O mundo afro/negro, em espe cial nas Américas, que é o caso que nos ocupa neste artigo, o ilustraremos como uma árvore, com suas raízes, tronco e galhos. Sabemos pelas ciências biológicas que uma árvore sem algumas de suas partes está a caminho da morte. São tão necessárias as folhas, onde se rea liza a fotossíntese, como as raízes, por onde entram os nutrientes. No mundo afro/negro, cada parte de sua complexa estrutura é necessária. E é nesse sentido que entendemos a negritude como uma leitura da história, sabendo que a histó ria “é um construto mental que se nutre das informações das fontes escritas, orais e visuais para relacionar, através da hermenêutica, os sujeitos e a comunida de afro/negra em seus projetos de vida
através do tempo”. A negritude como his tória tem várias funções, desde a descri ção dos ambientes até seu aspecto mais mascarado, como é seu emprego ideoló gico. Continuaremos apresentando esta estrutura na forma de árvore e explican do seus respectivos conteúdos. 2. A árvore da negritude
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As árvores, segundo o sistema de pensamento africano-bantu, corres pondem à categoria Kintu, que significa a vida dos seres-sem-inteligência. Nesta categoria se encontram os animais, mine rais, substâncias e as coisas em sentido geral. Quando era criança, minha avó usava diariamente as árvores para ilus trar os conceitos e as realidades mais dis tantes. No exercício dessa prática que aprendi naquele tempo é que apresento esta ilustração. Tenho consciência de que no futuro parecerá que isto que eu entendo por raízes para outros pesquisa dores será o tronco ou talvez os ramos. Não obstante, parto do princípio de que a
realidade pode ser vista em seu conjunto desde as diferentes cosmovisões, e cada visão da mesma realidade é uma contri buição para melhor entender a vida e suas implicações. Por isso, esta árvore cumpre uma dupla função: ilustrar o pro cesso de luta pela vida das comunidades afro/negras e, ao mesmo tempo, expres sar a contribuição dada pelo povo afro/negro à humanização das relações no mundo. 2.1.As raízes da árvore da negritude A muitos parece que a primeira coisa que surge de uma árvore são as raí zes, porém as pessoas que vivem no campo sabem que nem sempre isso é assim. Algumas vezes a vida de uma árvo re começa por uma semente, outras vezes a árvore começa com um pequeno galho que uma criança planta no jardim, e ainda existem árvores que têm a capa cidade de ressurgir a partir de uma folha. Em algumas ocasiões, a primeira coisa a surgir é um tenro talo, ou uma delicada folha, ou uma fina raiz. A árvore da negritude é semelhante em muitos senti dos às árvores do bosque, em especial às árvores tropicais que sempre têm sobre si todo um mundo de cipós, orquídeas, colméias e outros pequenos seres. Assim a vejo e assim a desenhei. Agora, as raízes da negritude, as vejo como aquelas condições que enfren taram, e a partir das mesmas surgiu um sistema de vida que inclui uma cultura, um modelo alternativo de economia e uma estratégia(s) ideológica e política para a conservação da vida. Deste modo as três principais raízes da negritude podem ser pensadas assim: 1) Identida
de, como raiz central e portadora do sus tento cultural, religioso e histórico. 2) Condição de classe, raiz amarga que reve la até onde a ambição por riqueza do homem branco pode tirar a vida de milhões de pessoas negras. Também esta raiz revela as forças do povo negro, sua resistência e seu eterno e infinito amor à vida. Ai, ai, quantas lágrimas, quantos sofrimentos, quanto trabalho ainda não remunerado! Quanta riqueza roubada do suor de nosso povo, quantas dívidas! Quanta pobreza! 3) A luta contra o racis mo é a outra raiz que mantém de pé a árvore da negritude. Esta raiz surge como muitas das raízes das árvores do Caribe, isto é, como conseqüência dos for tes furacões de conceitos etnocêntricos e como mecanismo de sustento contra todo vento que insista em arrancar a dig nidade humana do povo negro. A luta contra o racismo não é só uma luta inte lectual de percepções e noções abstratas; pelo contrário, é uma batalha concreta pela vida. Porém, não por qualquer tipo de vida, e sim por uma vida com educa ção, com reconhecimento, com lazer, com pagamentos justos, com acesso a todas as condições e exercícios que as sociedades têm e que ajudamos a construir. 2.2. O tronco da negritude As raízes da árvore não ficaram mortas nas profundezas da terra, mas nutriram um tronco de maravilhosas comunidades afro/negras que se esten dem em todas as Américas. Estas comu nidades são o conjunto do povo negro que sobreviveu a todas as vicissitudes da escravidão, do racismo e da pobreza. E uma comunidade que se une no imaginá
rio coletivo de luta pela vida, que está ligada na utopia humana onde cada pes soa e cada grupo humano tenham um lugar digno. Existe na comunidade negra dissímiles tendências políticas, como em qualquer outro povo, porém acima dessas diferenças existem rasgos físicos, culturais e religiosos que conflu em em uma unidade. A unidade do povo negro já se manifestou nos inumeráveis quilombos que se erigiram como coluna do panafricanismo no passado escravis ta; também se podem mencionar os gran des congressos panafricanos mundiais, os Congressos Latino-Americanos e Caribenhos de Cultura Negra, as consultas teológicas dirigidas pelo Conselho Mun dial de Igrejas e outros simpósios e orga nizações internacionais. 2.3. Os galhos da negritude A comunidade afro/negra se expressa em comunidades de ênfases mais específicas, que aqui entendemos como galhos unidos substancialmente ao conjunto da comunidade afro/negra universal. Estes galhos, ou comunidades de tendências específicas, não devem ser estudados de forma ilhada do tronco. Não devem se analisar como grandezas individuais porque é impossível, já que o ser humano é ao mesmo tempo religioso, político e um ser criador de cultura. Por exemplo, estudar os Abakúas cubanos somente como grupo religioso é um gran de erro, pois eles também são uma res posta cultural e em determinado momento atuaram como lideres políti cos. Não obstante, é importante saber que existem na comunidade afro/negra certos agrupamentos com um bloco de
características específicas que podem ser classificadas em três: 1) A comunidade afro/negra religiosa. Aqui estão inscritos os afrocristianismos, os grupos negros teológicos-ideológicos (Cenacora, Identi dade, Guasá), as grandes religiões reconstruídas a partir de elementos afri canos como o candomblé, a santería e outras; 2) A comunidade afro/negra estético-cultural. Incluem-se nesta os grupos musicais (hip-hop, jazz, reggae, blues), programas de televisão como o Domingo da gente de Netinho, grupos teatrais (Te atro Experimental Negro no Brasil, Tea tro do Ritmo Peru), clubes lúdico-sociais, tertúlias afro-poéticas; 3) A comunidade afro/negra sócio-ideológic, é a comunida de mais visível por sua ativa discussão nos meios da imprensa mundial. Na mesma podem se incluir desde as revol tas e revoluções até as ONGs que abun dam em todo canto da América Latina e no Caribe. Algumas têm caráter educaci onal, como o Centro Universitário Pal mares, no Brasil, outras se preocupam com a luta pelas terras, como é o caso das ONGs negras da costa pacífica da Colômbia. 2.4. As folhas da negritude Como temos visto, cada parte da negritude é importante e está intima mente relacionada com as demais par tes. As folhas da negritude, que quase sempre são as que se mencionam, são constituídas por um contingente de pes soas negras que, em um dado momento da história, representaram a comunida de afro/negra. Ao falar de representação, evocamos a liderança política ou religio sa de certas pessoas negras; e também
estamos evocando aquelas que, aparen temente de forma individual, mantive ram as tochas da negritude fazendo sua contribuição no plano intelectual ou artístico a favor da população negra e, por extensão, a toda a humanidade. Aqui mencionaremos algumas destas personalidades segundo suas regiões, sabendo de antemão que são muitas e é impossível mencioná-las. Só para citar um exemplo da inumerável lista de gran des personalidades, quero recordar que o exército de San Martin, na Argentina, tinha 40% de negros, e o exército das guerras de independência em Cuba pos suía 60% de negros; isto sem contar a multidão de soldados negros dirigidos por Simón Bolivar, na Colômbia e Vene zuela. Representantes negros do Cari be: Macandal (líder religioso e militar da Revolução Haitiana); Jamaica: Marcus Garvey (ídealizador do panafricanismo), Bob Marley (músico-cantor e religioso rastafari); Martinica: Aime Cèsaire (poe ta e político do panafricanismo), Frantz Fanon (psiquiatra e ideólogo panafricanista); Cuba: José Aponte, Mariana Grajales, José Maceo, Antonio Maceo, Evaristo Estenoz, Pedro Ibonet, Juan Gualberto Gómez (líderes político-militares), Francisco Manzano e Nicolás Guillén (poetas); Trinidad e Tobago: Eric Willi ams (intelectual e político, líder panafricano). Representantes negros da Amé rica Latina: Colômbia: Leonor (mulher líder de um quilombo nas Montanhas de Maria), Benkos Bioho (o maior líder quilombola da Colômbia), Luruaco, Fran cisco Arará, Domingo Criollo, Juan
Brun, Pedro Nina (líderes de quilom bos), Manuel Zapata Olivella (intelectu al, religioso Lumbalú); Brasil: Zumbi, Luísa Mahim (líderes quilombolas), Abdias do Nascimento, Benedita da Sil va, Paulo Paim (líderes políticos), José do Patrocínio, Machado de Assis, Milton Santos, Solano Trinidade (intelectuais). Representantes negros da Amé rica do Norte: Estados Unidos: Cato de Stono (chefe de uma revolta de escravos na Carolina do Sul, em 1739), Phillis Wheatley (poeta, a segunda mulher nor te-americana que publica um livro, viveu de 1753-1784), Benjamín Banneker (matemático e astrônomo, viveu de 1731-1806), Booker T. Washington (edu cador), George W Carver (inventor de mais de 300 produtos), W E. B Du Bois (intelectual panafricanista), Malcolm X (líder religioso-muçulmano e político), Martin Luther King,Jr. (líder religioso cristão-batista e político). Conclusão Cada artigo apresentado neste número, como aclaramos no editorial, não se deve observar como grandeza em si mesmo, e sim como uma parte da gran de árvore que form a o m undo afro/negro. Nosso esforço por sintetizar é um eixo mais nesta complexa tarefa de apresentar nossa cosmovisão de uma forma mais compatível com a realidade. Estamos tentando, desta forma, neutra lizar as visões fracionadas que com fre qüência lemos em diversos trabalhos. Nossa posição é de conjunto, tendo cons ciência das rupturas, porém ainda mais fazendo referência aos saltos qualitati vos e quantitativos da comunidade na
sua luta pela vida. Entendemos que cada parte do mundo afro/negro tem seus específicos, cada herói e heroína cum priu seu papel em sua individualidade, porém acima dessas particularidades, quando as informações, coisas, situações e pessoas são convertidas em históricas passam energicamente ao plano da negritude como sistema sustentado por uma comunidade que em certas ocasiões denominamos panafricana. Este siste ma permanece tanto na comunidade e no imaginário coletivo como na referên cia intelectual e ideológica que procla mam os ativistas e líderes africanos e afro-descendentes em todo o mundo. Deste modo, mais que concluir, sentimos que olhamos panoramicamente um uni verso que cada dia se faz mais acessível a nosso povo. Sentimos que estas informa ções, como as árvores, geraram flores para embelezar a humanidade e produzi rão doces frutos para alimentar relações que nos aproximam daquele supremo sonho de Jesus de Nazaré que usual mente clamamos de o Reino de Deus. Referência ACOSTA LEYVA, Pedro. Historiografia afrolnegra\ una aproximación a un concepto de historia a partir de las Consul tas Internacionales de Teologia Negra efectuadas en 1985,1994,2003. São Leo poldo: Escola Superior de Teologia, 2005. De la hermenêutica negra a la his toria afro. Matanzas: SET, 2003. FALKEMBACH SIMÃO, Ana Regina. Resistência e acomodação: a escravidão urbana em Pelotas RS (1812-1850). Passo Fundo: UPF, 2002.
Notas 1 Pedro Acosta Leyva é teólogo afrodescendente cubano, licenciado em Sagrada Teologia pelo Sem inário Evangélico de Matanzas/Cuba, mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo/Brasil, membro do grupo Identidade e doutorando na EST. 2 FALKEMBACH SIMÀO, Resistência e acomodação, p. 22 3 Cf. FANON Frantz; Pele negra, máscai'as brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983; id. Por la Reuolución africana. México: Fondo de Cultura Económica, 1964; id. Los condenados de la tierra. México: Fondo de cultura económica, 1963. 4 Cf. CÉSAIRE Aimè. Poesias. La Habana: Casa de las Américas, 1969. 4 Cf. ACOSTA LEYVA Pedro. Bíblia e panafricanismo, p. 64-67. 6 ACOSTA LEYVA Pedro. Historiografia afro/negra, p. 95. 7 O sistema de pensamento africano-bantu tem quatro categorias fundamentais para pensar o universo, a saber, 1) Muntu = sercom-inteligência (ser humano vivo ou morto, a divinidade e todos os demais seres espirituais); 2) Kintu = ser-seminteligência (coisas); Hantu = serlocalizador-temporal (inclui a noção de espaço-tempo); 3) Kuntu = ser-modal (expressa qualidade). Cf. ACOSTA LEYVA Pedro; De la hermenêutica negra a la historia afro, p. 10. 8 Existe uma lista gigantesca de lideranças brasileiras que podem ser encontradas nos livros: MUNANGA, K; GOMES LINO, N. (Orgs.). Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global, 2004; OLIVEIRA, Eduardo de (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1998.