Identidade!, Vol. 13, janeiro-julho, 2008

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Expediente Identidade! Periódico do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB Vol. 13 janeiro-julho/2008 Apoio: Federação Luterana M undial - FLM / ELCA Periodicidade: Semestral Tiragem:2.000exemplares Revisão: Luis M. Sander Diagramação e Impressão: ConTexto Gráfica e Editora Capa: ConTexto Gráfica e Editora Coordenação/organização geral: Selenir C. Gonçalves Kronbauer Responsável por este número: Selenir C. Gonçalves Kronbauer Endereço para contato Grupo Identidade Faculdades EST Caixa postal 14 - Tel. (51) 21111400 - CEP 93001-970 - São Leopoldo E-mail: identidade@ est.edu.br Site: www.est.edu.br Obs: São de total responsabilidade dos autores os textos por eles escritos F u n d a ç ã o L u t e r a n a d e D ia c o n ia

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Editorial C onselho Editorial: A fonso M aria Logório Soares - PU C /SP A lceu R avanello Ferraro - U N IL A SA L L E /R S G eorgina H elena L im a N unes - U FP E L /RS José Ivo F ollm ann - U N ISIN O S/R S Eunice M aria N azarethe N onato - IPA M ETO D ISTA /R S M agna L im a M agalhães - FEEV A LE - RS M aricel M ena L opez - P ontifícia U niversidad Javeriana- C olôm bia M arga Janete Stroher - F aculdades E ST / RS P eter T heodore N ash - W artburg C ollege -EU A R icardo W illy Rieth - F aculdades E ST /R S e U L B R A /R S Indexação: Q ualis CA PES : A Local A rea de avaliação: Filosofia/T eologia: subcom issãoT eologia Q ualis C A PES: B Local Á rea de A valiação: E ducação


EDITORIAL

Através da temática Negritude e Educação, o décimo tercei­ ro volume de identidade! retoma as discussões sobre a questão ne­ gra e a educação. Após cinco anos da implementação da Lei 10.639/03 e das discussões acadêmicas em torno da temática, há várias décadas, a história do povo negro no Brasil ainda não está sendo contemplada, com legitimidade, nos currículos escolares. Os temas abordados, através dos artigos aqui apresentados, tem o propósito de subsidiar as ações na escola de educação básica e nas instituições de formação de profes­ sores, bem como fo­ m entar as discus­ sões levando as leito­ ras e os leitores a re­ flexões teóricas mais aprofundadas, v i­ sando práticas mais efetivas na sala de aula. Desejo a todos uma boa leitura!

Prof9. Ms. Selenir C. Gonçalves Rronbauer Coordenadora do Grupo Identidade da EST/IECLB

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Apresentação

Educação e cidadania: chaves para uma sociedade mais justa e igualitária

O Grupo Identidade tem se esforçado para promover a igual­ dade étnico-racial nos âmbitos eclesiásticos e sociais, através de ações educativas e de pesquisas que valorizam a cultura e a he­ rança afro-brasileira. Nesse sen­ tido, o presente número de iden­ tidade! é uma contribuição a esse objetivo, pois disponibiliza pes­ quisas na área de educação e negritude, com atenção especial aos conteúdos de ensino. O su­ cesso ou fracasso escolar está condicionado por diversas variá­ veis, entre elas elementos da cul­ tura do aluno ou da aluna no ambiente escolar. A ausência des­ ses elementos pode influir na auto-estima e, conseqüentemen­ te. no desempenho escolar. Atento a essa questão, Augusto César Pedro apresenta o artigo “O samba como instru­ mento de (re)valorização da iden­

tidade negra”, com o objetivo de apresentar as potencialidades do samba como instrumento peda­ gógico em sala de aula, sobretu­ do em relação ao estudante ne­ gro. Aprincipal justificativa des­ sa utilização encontra-se no fato de esse gênero musical ser uma herança da população negra e, por isso, possuir um potencial de valorização da identidade negra. O autor explora as letras de duas canções, sugerindo temáticas para o trabalho em sala de aula. O segundo artigo é de Alfa Oumar Diallo e Cíntia Santos Diallo, que apresentam a “Vida e obra de Cheikh Anta Diop- o homem que revolucionou o pen­ samento africano”. O autor e a autora nos apresentam um pou­ co da vida desse grande intelec­ tual senegalês, que contestou te­ ses até então tidas como científi­ cas. Através de suas pesquisas, Cheikh Anta Diop contribuiu para a luta contra a colonização européia da África, sobretudo a colonização científico-cultural.


Vanísio Luiz da Silva refle­ democratização da sociedade te sobre as implicações do ensi­ brasileira. no da matemática para crianças Ezequiel de Souza negras em escolas públicas. Teólogo, mestrando em “Considerações acerca de educa­ Teologia na Faculdades EST, ção, etnomatemática, cultura ne­ Bolsista CNPq gra e escola pública” parte da compreensão da educação como um direito plural, problematizando a possibilidade de uma educação libertária que valorize as diferentes culturas. O autor defende a etnomatemática como instrumento válido de ensino da matemática para crianças ne­ gras a fim de encarar o mau de­ sempenho delas obtido nessa dis­ ciplina, pois traz o cotidiano da criança negra para a escola. O último artigo desse volu­ me, intitulado “Ações afirmati­ vas, educação e cidadania: uma ressignificação de paradigmas”, é de autoria de Luís Carlos Mello e Rogério Oliveira de Aguiar, que refletem sobre um tema bem atu­ al1o sistema de cotas em univer­ sidades públicas. Para os auto­ res, a desigualdade social é re­ sultado de uma série de mecanis­ mos e ocorre em diferentes esfe­ ras da vida, e restringi-la ao âmbito econômico constitui uma redução simplista. O acesso a uma educação de qualidade, em seu entendimento, pode dar ins­ trumentos para uma verdadeira


C a r t a s

Caro/a leitor/a,

Agradecemos aos leitores que têm nos envi­ ado mensagens com opiniões e solicitado exempla­ res do identidade! Para acessar as publicações ante­ riores, disponibilizamos os últimos volumes no site da Faculdades EST. Basta entrar no site: www.est.edu.br no setor Publicações/Revistas; os textos es­ tão em formato p d f. Convidamos para que enviem seus textos, resultados de pesquisas e/ou trabalhos científicos, (6 a 8 laudas com referências), para avaliação. Os textos deverão ser voltados para temáticas relacio­ nadas à questão negra. Enviar para identidade@est.edu.br e para selenir@est.edu.br Aguardamos correspondência com pareceres e su­ gestões! Prof*. Ms. Selenir C. Gonçalves Kronbauer


O samba como instrumento de (re)valorização da identidade negra Augusto Cesar Pedro1

Introdução

A representação positiva de um grupo étnico-racial tem papel fundam ental p a ra a cons­ trução de sua identidade. E essa re p re s e n ta ç ã o to rn a -s e a in d a mais im portante se pensarm os na população negra e todo o pro­ cesso de racismo que essa parce­ la da população brasileira histo­ ricamente sofre. Ao p a rtir do pressuposto de que a construção da iden ti­ dade de um a população envolve inúm eras variáveis —entre elas o modo de como os integrantes desse grupo étnico-racial se e n ­ xergam, a partir das relações que m antêm com outros grupos étnico-raciais podemos analisar o papel da escola, como lu g a r onde essas relações ocorrem, na construção da identidade negra. Sobre essa construção, Gomes (2005, p .44) afirm a que “[...] a id e n tid a d e n e g ra tam b ém é construída duran te a trajetória escolar desses sujeitos e, nesse caso, a escola tem a responsabi­ lid a d e so cial e e d u c a tiv a de

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compreendê-la na sua complexi­ dade”. No entanto, percebemos que a população negra não é r e ­ p re sen ta d a de fo rm a satisfatória, o que gera um a bai­ xa a u to -e stim a d o s(as) alunos(as) negros(as) e influi n e­ gativam ente no seu reconheci­ mento como integrantes do g ru ­ po étnico-racial negro, como a r ­ gumenta Cavalleiro, (apud SOU­ ZA, 2005, p. 116): “No que se re ­ fere ao segmento da população negra no Brasil, esse sentim en­ to de auto-apreciação, de autoconceituação tem se a p re se n ta ­ do de forma muito dúbia ou m es­ mo negativista, devido principal­ mente à ‘precariedade de mode­ los satisfatórios’.” Por isso, propomos o sam ­ ba como instrum ento para a afir­ mação da identidade negra. Ao c o m u n g a r m o s da o p in iã o de M u n a n g a (a p u d LIMA e t al., 2005, p. 30) quando afirma “[...] que a identidade passa pela cor da pele, pela cultura, ou pela pro­ dução c u ltu ra l do negro [...]”, pensamos que o sam ba pode se transform ar em um in s tru m e n ­


to cle valorização da população negra, sobretudo se utilizarmos l e t r a s que a b o rd e m q u e stõ e s concernentes a essa população. Nossa intenção é m ostrar o alcance que o sam ba pode ter n a sala de aula, sobretudo se p e n s a r m o s no(a) e s t u d a n t e negro(a). Ao trab alh arm o s com um gênero musical que é h e ra n ­ ça da população negra e apresen­ ta rm o s le tra s que exaltem as q u a lid a d e s d e s s a p o p u la çã o , acreditamos que caminharemos em direção ao fortalecimento do p e rte n c im e n to do(a) aluno(a) negro (a) e à construção da iden­ tidade negra positiva. Neste artigo serão a p re ­ sentadas, em dois capítulos, al­ gumas possibilidades de se t r a ­ balhar com letras de sam ba que abordam as questões referentes à população negra. No primeiro, escolhemos a le tra de sam b a “Id e n tid a d e ” como exemplo de composições que denunciam as injustiças so­ ciais de que a população negra é vitima. N essas letras, o precon­ ceito, a discrim inação racial e social serão tem áticas recorren­ tes. Na segunda parte, a p re ­ sentamos a letra “Sorriso Negro”, como uma possibilidade de t r a ­ balharm os com letras de sam bas que louvam os(as) negros(as) e exaltam suas qualidades, aux i­

lia n d o n a c o n stru çã o de u m a imagem positiva do negro, para, assim , fortalecer a id en tid ad e negra. A conclusão, últim a p a r­ te desse trabalho, é um a síntese da im po rtância de tr a b a lh a r o sam ba na sala cle aula como uma forma de m o strar as contribui­ ções e dem andas do grupo é t n r co-racial negro e, ao mesmo te m ­ po, a p re se n ta r formas nas quais a população negra é valorizada, como um a forma de potencializar o sentim ento de pertencim ento étnico-racial dos integrantes des­ se grupo. O sam ba é filho da dor

Podemos perceber, como u m a característica do samba, le­ tra s que funcionam como in s tr u ­ mento de protesto contra as m a ­ zelas sociais que a população negra sofre em virtude da discri­ minação racial. O sam ba to rn a ­ se um veículo no qual são expos­ ta s criticamente as injustiças de que essa população é vítima. M uitos compositores d e­ nunciam , em seus sam bas, as d is c r im in a ç õ e s ra c ia is a que o s(a s) n egros(as) são freqüentemente sujeitados(as). E a exposição das conseqüências do racismo acontece como um a for­ m a combatê-lo já que, um a das causas da dificuldade no comba­


te reside ju stam en te na caracte­ rística insidiosa que o racismo possui, se pensarm os no contex­ to brasileiro. Como exemplo de le tra s carregadas de crítica social, t e ­ mos a letra composta por Jorge Aragão e intitulada “Identidade”. Com a letra, serão apresentados alguns tem as que podemos t r a ­ balhar em sala de aula. Identidade

Composição^ Jorge Aragão Elevador é quase um templo Exemplo pra m inar teu sono Sai desse compromisso Não vai ao de serviço Se o social tem dono, não vai Quem cede a vez não quer vitória Somos herança da memória Temos a cor da noite Filhos de todo açoite Fato real de nossa história Se o preto de alm a branca pra você É o exemplo da dignidade Não nos ajuda, só nos faz sofrer Nem resgata nossa identidade. Nesse samba, percebemos uma busca do fortalecimento da identidade negra. U m a in te rp re ­ tação possível orienta p a ra o lo­

cutor2 que discorre sobre o t r a ­ tam ento desigual de que as pes­ soas negras são vitimas. Tal t r a ­ tam ento é simbolizado pela u ti­ lização do elevador de serviço, comum em prédios, sendo sua utilização destinada às pessoas que exercem algum tipo de a ti­ vidade nos apartam entos, dife­ renciando-as dos moradores do mesmo, que usam h ab itu a lm en ­ te o elevador social. U m a forma de tra b a lh ar com essa letra seria explorar a crítica contida nela , principal­ mente com relação à desigualda­ de de que as pessoas negras são vitimas, no âmbito do mercado de trabalho, discutindo as conse­ qüências dessa discriminação. Essa discriminação faz com que, segundo Henriques (2001, p. 39), “o diferencial e n tre bran co s e negros no que diz respeito aos g r a u s de i n d u s t r i a l i z a ç ã o e modernidade dos postos de t r a ­ balho au m en ta ao longo do te m ­ po, em detrimento dos tr a b a lh a ­ dores negros”. Outro tem a que podemos tra b a lh a r na letra de sam ba em questão refere-se aos ditados, pi­ adas, bem como outras formas de b r in c a d e ir a s que a c a b a m por p ro pagar o racismo, como, por exemplo, a expressão “preto de alm a b ra n c a ”. Com isso, pode­ mos questioná-las, mostrando as conseqüências dessas a titu d e s


ta n to p a ra a população n e g ra quanto p a ra a população não n e ­ gra na construção de um a socie­ dade plural. O locutor faz referência ao tempo da escravidão em “filhos de todo açoite”. Assim, na letra, ocorre o resgate, é im p ortan te resgatarm os essa época em sala de aula, porém não mais sob a perspectiva do negro escraviza­ do e submisso, e sim mostrando todo o seu descontentamento pe­ ran te a situação em que se e n ­ contrava. P a ra isso, faz-se indis­ pensável que resgatemos a im ­ portância de toda a resistência negra à escravidão e a im p ortân ­ cia dessa luta no processo de abo­ lição da escravatura. E s s a l e tr a , a s s im como m uitas outras, demonstra a im ­ portância da música como auxí­ lio p a ra a lu ta contra o fim das desigualdades. Mostra, também, como a música pode ser, ao m es­ mo tempo, diversão e um in s tru ­ mento p a ra conscientizar a po­ pulação em geral, sobretudo os estudantes, frente à situação da população negra. E pode mostrar como essa situação acaba se ser­ vindo de sutilezas, como o fato de utilizar o elevador de serviço, p a ra se m a n te r n atu ralizad a e, com isso, inalterada.

O sam ba com o o pai do prazer

A q u i e s tu d a m o s le t r a s que valorizam a população n e ­ gra. Assim, buscamos apresentar sam bas que exaltam a população n e g r a e o im p a c to d e s s a exaltação p a ra os(as) negros(as), p rin c ip a lm e n te se p e n sa rm o s no(a) estu d an te negro(a). Se pensarm os no ensino escolar, sabemos que a imagem da população negra é apag ad a dos livros didáticos ou, então, ensinada de um a forma negati­ vamente distorcida, fruto do apagamento de que a população n e ­ gra é alvo. Esse processo de apag a m e n to , que c u l m i n a n a ocultação e distorção da história do negro, tem como conseqüên­ cia a legitimação de preconceitos e um impacto negativo sobre o(a) estud an te negro(a). Sobre o efei­ to do impacto nos(as) estu dantes negros(as), M unanga (2001, p. 8) tem a seguinte afirmação^ “[...] deveríamos aceitar que a ques­ tão da memória coletiva, da h is­ tória, da cultura e da identidade dos alun os afro-descendentes, apagados no sistem a educativo b a s e a d o no m o delo e u ro p o cêntrico, oferece parcialm ente a explicação desse elevado índice de rep etên cia e evasão escolares . jj

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Ao buscar combater esses e ste re ó tip o s, a l e t r a “S o rriso Negro” vem valorizar a beleza negra. Segue a letra: S o rriso N e g ro

Pagode de Mesa do Terra Brasil Um sorriso negro, um abraço negro Traz felicidade Negro sem emprego, fica sem sossego Negro é a raiz da liberdade Negro é um a cor de respeito Negro é inspiração Negro é silêncio, é luto Negro é a solução Negro que já foi escravo Negro é a voz da verdade Negro é destino é amor Negro tam bém é saudade (um sorriso negro!) Nessa letra, podemos p e r­ ceber que a população negra é va­ lorizada — seu sorriso, sua cor, etc. - , com quase todos os versos da música possuindo o termo “n e­ gro”. Um tópico de estudo pode ser suscitado a p a rtir do verso “Negro é a solução”: as contribui­ ções da população negra na cons­ trução e desenvolvimento do B ra­ sil, nos diversos âmbitos, ta is como econômico, cultural (como o próprio samba) e educacional.

Outro tem a passível de de­ bate é a luta da população negra em b u sca de reconhecim ento. Através dessa música podemos destacar o papel de pessoas ne­ gras que buscaram dar visibili­ dade à população negra. Pode­ mos citar, entre outros, os nomes de Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Laudelina de Campos Melo, entre outras personalida­ des que tiveram im portante a tu ­ ação p a ra o reconhecimento da população negra. O sam ba tam bém exalta a p e rsistê n c ia e a p e rsev e ra n ça dessa população que não se dei­ xa desanim ar e continua lu ta n ­ do por m elhores condições de vida. Servindo como um modo de valorização, o sam b a torna-se fo n te de i n s p i r a ç ã o e de explicitação do orgulho das ori­ gens, orgulho do pertencimento a determinado grupo étnico-racial. E ssa perseverança, mesmo com as já conhecidas desigualda­ des da quais é vítima, faz com que a população negra não per­ ca as esperanças com relação à melhora das condições de vida. Conclusão

N esse artig o b uscam o s dem onstrar os possíveis papéis do sam ba que podemos explorar em sala de aula. Foram destaca­


das funções relacionadas à popu­ lação negra, dem onstrando a s ­ sim que o sam ba pode servir de microfone p a ra que as injustiças que essa população sofre sejam denunciadas. Tam bém procuram os m ostrar como o sam ba pode se tornar um instrum ento p a ra que as qualidades das pessoas p e r­ tencentes a essa população sejam evidenciadas, como um a forma de acabar com o preconceito r a ­ cial e com todos os estereótipos de que o grupo étnico-racial ne­ gro é vítima e, assim, fortalecer a auto -estim a do(a) e stu d a n te negro(a) e seu pertencim ento étnico-racial. Ao situ ar o sam ba como uma forma de resistência e in s ­ trum ento através do qual a po­ pulação negra é (re)valorizada, uma vez que ainda sofre com es­ tereótipos que têm um impacto negativo na auto-estima da po­ pulação negra, pretendemos de­ m onstrar o grande potencial que o sam ba possui, principalmente se utilizado em sala de aula, p a ra o fortalecimento da autoe s t i m a d o s(a s) e s t u d a n t e s negros(as), auxiliando, assim, na construção da identidade negra E, ao auxiliar na constru­ ção da identidade negra positiva do (a) e stu d a n te negro(a), essa

h e ra n ça c u ltu ra l da população negra que é o sam ba transformase em um instrum ento na luta p a ra o fim do racismo e p a ra a in clu são efetiva da população n e g ra n a sociedade, buscando transform ar esta, enfim, em uma sociedade efetivamente democrá­ tica onde se respeite e valorize a diversidade étnico-racial. Referências bibliográficas

ABRAMOWICZ, Anete! SILVÉRIO, V alter Roberto. São Paulo educan­ do pela diferença para a igualdade•' Módulo I. São P a u lo : S ecretaria do E stado da Educação, 2005. BRASIL. S e c re ta ria da Educação C ontinuada, Alfabetização e D iver­ sidade. Educação anti-racista•' cam i­ nhos a b e rto s pela Lei F e d e ra l n° 10.639/03. B rasília; Fox Press, 2005. DIRETRIZES C urriculares Nacio­ nais p a ra a Educação das Relações Etnico-Raciais e p a ra o E nsino de H istória e C ultu ra A fro-B rasileira e A fricana. B rasília. 2004. GUIMARÃES, Eduardo. Os lim ites do se n tid o ■' um estudo histórico e enunciativo da linguagem . C am pi­ nas: Pontes, 2a edição, 2002. GOMES, N ilm a Lino; MUNANGA, K abengele. Para entender o negro no B rasil de hoje'- história, re a lid a ­ des, problem as e caminhos. São P a u ­ lo: Global, 2004. GOMES, N ilm a. A lguns term os e conceitos p rese n tes no debate sobre relações raciais no B ra sil: um a b re ­ ve discussão. In: BRASIL. M inisté-

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n o da Educação. S ecretaria da E d u ­ cação C ontinuada, Alfabetização e Diversidade. Educação anti-racista-' cam inhos abertos pela Lei F ederal n° 10.639/03. B ra sília : Fox Press, 2005. P. 39-62. HENRIQUES, Ricardo. Desigualda­ de racial no B ra sil•' Evolução das condições de vida na década de 90. Texto p a ra discussão n° 807. Rio de Janeiro: In stitu to de Pesquisas Eco­ nômicas Aplicadas, 2001. Disponível em.: < http ://w w w .ip ea.g o v .b r/ >. Acesso em: io de novembro de 2007. LIMA, Heloísa Pires Lima: SILVA, M árcia: SOUZA, A na Lúcia Silva.' SOUZA, A ndréia Lisboa de. De olho na cultura:pontos de vista afro-brasileiros. Salvador: Centro de E s tu ­ dos Afro-Brasileiros. 2005. MUNANGA, K abengele (Org.). S u ­ perando o racismo na escola. 3. ed. B rasília: M inistério da Educação, 2001.

NAPOLITANO. M arcos. H istória & música. Belo Horizonte: A utêntica, 2002.

SODRÉ, M uniz. Sam ba - O dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: M auad, 1998. SOUZA, F rancisca M aria do N asci­ mento. L inguagens escolares e r e ­ produção do preconceito. In: BRA­ SIL. M inistério da Educação. Secre­ ta ria da Educação C ontinuada, Al­ fabetização e Diversidade. Educação anti-racista '■cam inhos abertos pela Lei Federal n° 10.639/03. B rasília: Fox Press. 2005. P. 105-120.

(Footnotes) 1 Locutor entendido, neste tra b a ­ lho, como, “a figura da enunciação que se rep re sen ta como eu na enunciação”(GUIMARÃES, 2002, p. 60). N otas

1 G raduando no 3o ano do curso de L etras-L icenciatura Plena em Português/E spanhol da U niversi­ dade F ederal de São Carlos - SP. 2 Locutor entendido, neste tra b a ­ lho, como, “a figura da enunciação que se rep re sen ta como eu na enunciação”(GUIMARÃES, 2002, p. 60)


Vida e obra de Cheikh Anta Diop: o homem que revolucionou o pensamento africano Diallo, Alfa O um ar'Diallo, Cíntia Santos2 Introdução

Cheikh Anta Diop nasceu em 1923 num vilarejo senegalês cham ado Caytou. N a época, a África estava sob dominação co­ lonial européia, depois do perío­ do do tráfico negreiro que se ini­ ciou no século XVI. A violência da qual a África foi alvo não foi exclusivamente de natu reza mi­ litar, política e econômica. Mas teóricos (Voltaire, Hume, Hegel, Gobineau, Lévy Bruhl, etc.) e ins­ tituições européias (o Instituto de Etnologia da França, criado em 1925 por L. Lévy Bruhl, por exemplo) se empenham p ara ju s­ tificar estes atos abomináveis le­ gitimando, no plano moral e filo­ sófico, a inferioridade intelectu­ al do negro. A visão de um a Áfri­ ca sem história, cujos habitantes, os negros, nunca foram respon­ sáveis, por definição, por um único fato de civilização, impõese agora nos escritos e se fixa nas mentes. O Egito é, assim, arb i­ trariam ente, ligado ao Oriente e

ao mundo m editerrâneo geográ­ fica, antropológica e c u ltu r a l­ mente. E neste contexto singular­ mente hostil e obscurantista que Cheikh A nta Diop foi induzido a questionar, através de um a in ­ vestigação científica, metodoló­ gica, os fundam entos da cultura ocidental em relação à gênese da hum anidade e da civilização. O renascim ento da África, que im ­ plica a restauração da consciên­ cia h i s t ó r i c a , a p a r e c e p a r a Cheikh A nta Diop como um a t a ­ refa inevitável à qual ele consa­ g rará toda a sua vida.

I - O s p rim eiros p a s s o s do C h eik h A nta D iop

O jo v e m C h e ik h A n ta Diop “corre o risco, pela má dis­ posição do seu professor, o S e­ nhor Boyaud, de repetir pela te r­ ceira vez o último ano do prim ei­ ro grau, o que m o tiv a ria sem


sombra de dúvida a sua exclusão do liceu. O Senhor Boyaud é um professor sin gu lar, sendo que tive a oportunidade, desde seus p rim eiro s passo s no liceu, de constatar sua hostilidade à nos­ sa raça, às autoridades. Suas te ­ orias sobre a raça, que fazem dele um discípulo de Gobineau, são das m ais pern iciosas e fazem com que aum ente o abismo e n ­ tre o negro e o branco cada dia

U..”3 E sta carta, redigida em agosto de 1941 por um dos re s ­ ponsáveis pela adm inistração do liceu Van Vollenhoven de Dakar, foi endereçada p a ra o inspetor geral do ensino na África Ociden­ tal Francesa (AOF). O Senegal não existia ainda, e o clima que reinava no meio do ensino, assim como na pesquisa universitária, estava fortem ente im buído de c o lo n ia lism o e de r a c is m o antinegro. Cheikh A nta Diop vai peg ar o contrapé teórico deste meio soli­ damente estabelecido n a univer­ sidade francesa. Prim eiro pela apresentação da su a tese, que será recusada, depois pela publi­ cação do seu livro Nações negras e cultura, em 1954. O livro soa como um trovão no céu tranqüilo do “estabelecimen­ to” intelectual: o autor faz aí a

demonstração de que a civiliza­ ção do Egito antigo era negroafricana , justificando os objeti­ vos da sua pesquisa nestes termos^

A explicação da origem de um a civilização afri­ cana se to rn a lógica e aceitável, séria, objetiva e científica, somente se a gente chegasse, por q u a l q u e r via, a e ste branco místico em re la ­ ção ao qual não temos a menor preocupação em justificar a sua chegada e instalação nessas regi­ ões. Entendem os, sem dificuldade, como os s á ­ bios deviam ser condu­ zidos no seu raciocínio, nas suas deduções, lógi­ cas e dialéticas, à noção de “brancos de pele n e ­ g ra ”, muito expandida no meio dos especialis­ tas da Europa. Tais sis­ temas são evidentemen­ te sem futuro, pois lhes faltam um a base real. Eles se explicam somen­ te pela paixão dos seus autores, a qual aparece sob as aparências de ob­ jetividade e de serenida­ de.4


Se a o b ra incom oda os guardiões do templo, isto acon­ tece não somente porque Chiekh A n ta Diop p ro p ô s uma “descolonização” da história afri­ cana, mas também porque o li­ vro cria uma “História” africana e se coloca n a s fr o n te ir a s do engajamento político, a n a lisa n ­ do a identificação das grandes correntes migratórias e a forma­ ção das etnias! a delimitação da área cultural do mundo negro, que se estende até a Ásia Ociden­ tal, no Vale do Indus; a demons­ tração da aptidão das línguas africanas para suportarem o pen­ samento científico e filosófico, e fazendo, pela p rim e ira vez, a tra n sc riç ã o afric a n a n ão etnográfica destas línguas... Quando da sua pu b lica­ ção, o livro pareceu tão revoluci­ onário que poucos intelectu ais africanos tiveram a coragem de aderirem à causa. Somente Aimé Césaire se entusiasmou, no seu discurso sobre o colonialismo, evocando “o livro mais audacio­ so que um negro jam ais escre­ veu”5. Precisou-se tam bém espe­ ra r 20 anos p a ra que um a g ra n ­ de parte das suas teorias fosse reconhecida, durante o colóquio internacional do Cairo de 1974, organizado pela UNESCO, re u ­ n in d o os m a is e m i n e n t e s egiptólogos do mundo inteiro6.

Precisou-se esperar mais de 20 outros anos p a ra que sua obra fosse levada em consideração, isso após a sua morte. Algumas idéias de Cheikh A nta Diop, p rin ­ cipalm ente a historicidade das sociedades africanas, a anterio­ ridade da África e a africanidade do Egito, não são mais discuti­ das7. II - O e m b a te a c a d ê m ic o

Em um a época em que jo­ vens intelectuais africanos, de­ cepcionados com o conceito de negritude, buscavam um a ideo­ logia negra e m ilitante de subs­ tituição, p a ra Cheikh A nta Diop, uma das c o n d iç õ e s da federalização do continente p a s ­ sava pela consciência. R enovan­ do a história, um a consciência histórica p a ra os africanos, ele desejava sobretudo restabelecer su a dignidade. Quem poderia então acusá-lo de um a tal inicia­ tiva, assim como as ideologias que ele combatia? Ao lado do “e n ten dim en­ to cordial”, a controvérsia gira­ va em torno de três pontos im ­ portantes: Cheikh A nta Diop era acusado p elo s e u egito centrismo, im portância a trib u í­ da à noção de raça e a grande influência do seu combate p o lítr


co sobre suas teorias científicas. Sua obra ficaria im pregnada de ideologia. E preciso relem brar, como fez o Senhor Aboubacary Moussa Lam, professor da Facul­ dade de Letras e Ciências H u m a­ nas da Universidade de Dakar, que “Cheikh A nta não escolheu seu terreno de combate; ele so­ mente respondeu aos debates da sua época”. Mesmo não conseguindo contestar as idéias do intelectu­ al sobre a origem africana da h u ­ manidade, o professor e sociólo­ go P a th é D iag ne não “divide mais seu egito‘centrismo. Com este recuo, é como se o professor sociólogo não tivesse se e n g a n a ­ do sobre o Egito, mas vislumbrase que ele tinha estudado somen­ te o Egito”. Um ponto de vista c o m p a r t i l h a d o pelo S e n h o r Amady Aly Dieng, professor e a n ­ tigo c o m p a n h e iro de C h e ik h Anta Diop, é o segu inte: “Como Senghor, e talvez aí esteja o ú n i­ co ponto de convergência, ele con­ tinua m editerrâneo-centrista na sua análise da história africana. O professor P athé Diagne coloca a Grécia no centro enquanto que o professor Amady Aly Dieng cen­ traliza sobre o Egito. E se ele não desenvolve u m a visão t r a n s a ­ tlântica. é para valorizar a cul­ tu ra negra. E por isso que ele si­ lencia sobre o tráfico negreiro.”

Uma crítica que se encon­ tra em Ibrahim a Thioub, histo­ riador moderno: “Mesmo que o tráfico e a colonização represen ­ tem um segundo olhar da histó­ ria egípcia, é impossível fazer tábu a ra sa neles. Pois é a nossa história também e a nossa a tu a ­ lidade, senegaleses e africanos. E por isso que suspeito que ele tenha atribuído m uita im portân­ cia ao Egito, em toda fé, sem se dar conta.” Num outro plano, se a di­ visão da hum anidade em raças e o fundam ento da distinção b r a n ­ co/negro são considerados como provenientes de um a raciologia antiga refutada pelo desenvolvi­ mento da genética, pergunta-se em qual medida podemos acusar Cheikh A nta Diop de utilizar a term in o lo g ia da su a época. O Senhor Alain Froment, antropó­ logo na Orstom, explica que o fí­ sico “ficou du ran te muito tempo fiel à separação racial que exis­ tia na prim eira metade do sécu­ lo XX, o que a genética p ra tic a ­ m e n te d e sm a n te lo u h á m uito tempo”8. Em relação à genética, ele evoca as datas de 1982 e 1984, ou seja, quatro e dois anos antes do falecimento de Cheikh A nta Diop, portanto muitos anos após a publicação das suas principais obras.


Como d e m o n stra ra m os S e n h o r e s M a m a d o u D io u f e Mohamed M’Bodj, dois intelectu­ ais senegaleses^ P o d e r-se -ia a d m itir a acusação de racismo [...] se os danos causados em nome da ‘raça’ se encon­ trassem de forma igual de um lado e do outro, o que evidentemente não foi o caso. O utrossim , este ‘racismo negro’ te ­ ria um valor se ele p u ­ desse criar um comple­ xo de culpabilidade nos europeus, o que não era o objetivo de C h e ik h A nta Diop. Diop, assim como ele não procurava c o n fo rta r u m a crença popular,' ele e sc re v eu p a r a u m a elite f o r te ­ m e n te c o n v en c id a da igualdade da espécie h u ­ m ana.9 Por isso, é incontestável que ele se utilizou das mesmas arm as que seus “adversários ci­ entíficos”; portanto, não podemos acusar Cheikh Anta Diop de r a ­ cismo. Os testem unhos são u n â ­ n im e s em a p r e s e n tá - lo como uma gran d e fig u ra do hu m an ism o : “O problem a, ele explica na sua intervenção no co­ lóquio de A te n as, o rg a n iz ad o

pela UNESCO, em 1981; é p re ­ ciso reeducar a nossa percepção do ser humano, p a ra que ela se desprenda da aparência racial e se polarize sobre o homem des­ provido de todas as coordenadas éticas?.” “E u não gosto de u sar a noção de raça (que não existe) [...]. Não devemos dar uma im ­ portância excessiva à noção de raça. E o acaso da evolução.”10 De fato, C h e ik h Anta Diop sonhava discretam en­ te com um a síntese entre a p u ­ reza e a mestiçagem cultural. “A plenitude cultural torna um povo mais apto para contribuir ao pro­ gresso geral da h u m a n id a d e e p a ra se aproxim ar de outros po­ vos em conhecimento de causa.”11 Hoje os discípulos do “último dos f a r a ó s ” (T h é o p h ile O b e n g a , Aboubacary M oussa Lam, etc...) continuam a defender com brilho os resultados da sua pesquisai claramente, 53 anos após a p u ­ blicação da obra “Nações negras e C u ltu ra”, os principais tem as desenvolvidos no seu livro são ainda de atualidade. E verdade que o contex­ to da época (1954) era um te rre ­ no propício às m a n ip u la ç õ e s, pois, até 1848, a escravidão es­ ta v a ainda na p rática legal da Europa. Também a segregação racial estava ainda em vigor em ■ r

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países como os Estados Unidos da América ou a África do Sul, sem contar a colonização que es­ tava nos seus últimos anos. III - A África, b erço da civilização?

P a ra falar dos traços físi­ cos do negro, os argum entos de um cientista ocidental tão “sério” como Champollion-Figeac s u s ­ tentavam, entre outros, não sem provocar o sorriso brincalhão de Cheikh Anta Diop, que “[...] es­ tas duas qualidades físicas (os cabelos crespos e a pele negra) não são suficientes para carac­ terizar a raça negra L.].”12 De fato, nesta iniciativa tão laboriosa quanto desespera­ da, Champollion-Figeac queria s u s te n ta r os resultados de um c ie n tis ta fran cês de boa-fé, o C om te [ t r a t a - s e de A u g u s to Comte] de Volney (1757-1820), que tinha observados nos coptas - o povo de onde se originaram os faraós - os mesmos traços da célebre esfinge d esco berta no Egito. “[...] A colonização de Volney, relativa à origem antiga da população egípcia, é forçada e inadmissível”, diria a rb itra ri­ amente Champollion sem a rg u ­ mentos. “Este Champollion to r­ nou-se daltônico”, pensou o ho­

mem que revolucionou o p e n sa ­ mento negro, pois, com toda a evidência, estávamos longe das leis cientificas. E por isso que o cientista senegalês retrucou di­ zendo que “agora não bastava só ser negro da cabeça aos pés e ter cabelos crespos para ser negro!”. Champollion-Figeac era o irmão de Campollion o jovem - o p ri­ m eiro c ie n tis ta o c id ental que conseguiu decifrar os hieróglifos —, m as ele usou e sta fa ç an h a p ara contornar um a realidade da época: os traços negros dos a n ti­ gos egípcios. Estes seres selvagens que eram capturados no mato para serem a b arro ta d o s como gado n a s c a r a v e la s com d e stin o à América, “estes homens com os rostos sombrios”, segundo a ex­ pressão favorita dos racistas ig n o ra d o s e h u m ilh a d o s , são aqueles que deram ao mundo as bases da c iv iliz a ç ã o . In a c r e d itá v e l! I n a d m is s ív e l! Q uem acred ita ria n isso ? Champollion não foi o único, in ­ felizmente, nesta tarefa de te n ­ ta r provar cientificamente a in ­ ferioridade intelectual e cultural dos negros. Os fatos relembrados e as provas trazidas por Cheikh Anta Diop não deixam nenhum a d ú ­ vida de que são os negros que ex-


p an d iram a civilização nos ou­ tros povos do mundo, primeiro através da N úbia - atu al Sudão - (em torno de 6000 a.C.), e de­ pois no Egito (em torno de 4000 a.C.), portanto muitos milênios antes da Grécia em torno de 2000 a.C.) e mais tarde em Roma em torno de 700 a.C.). Não satisfeito, Comte de Gobineau, idealizador do nazis­ mo no estado bruto, com o seu pseudocientificismo, queria ex­ plicar o porquê da superioridade da raça branca sobre os negros e os o u tr o s 13. U m a c ele b rid a d e como Pierre Larousse, num a das suas teses sobre a arte africana, afirma de forma peremptória que “o cérebro dos africanos tem o mesmo desenvolvimento que o cérebro do macaco, um outro ele­ mento que comprova o seu lado anim al e sua fraqueza intelec­ tual”. E prossegue afirmando que “o cérebro dos negros é menor, mais leve e menos volumoso que o cérebro do branco, e como em toda a série animal, a inteligên­ cia tem uma ligação direta com as dimensões do cérebro, do n ú ­ mero e da profundeza”. Outros “a f r i c a n i s t a s ”, como M au rice Delafosse, S u r e t C anale, etc., mesmo sendo mais cautelosos e m a is m o d e ra d o s do que Gobineau ou Larousse, negaram a evidência que Comte descrevia.

Neste contexto, não seria um a surpresa ver o mundo cien­ tífico ocidental perder a cabeça e ficar im potente diante da a n tí­ tese das suas teorias, trazida por um jovem negro. O c ie n t is ta Cheikh A nta Diop (matemático, físico, químico, egiptólogo, histo­ riador, lingüista, além de des­ tru ir as teses mais “sólidas” que pretendiam que a civilização vi­ esse do m undo ocidental. Diop provou que todos os homens são iguais, q u a lq u e r que seja su a raça, e, por conseqüência, a colo­ nização e, pior, a escravidão não podem servir p a ra ju stificar a sup eriorid ad e da ra ç a branca. Pois, além da dívida moral devi­ da aos n eg ro s e longe de um apagão do passado, é necessário reescrever a verdadeira história da humanidade. IV - O s te s te m u n h o s d o s s á b io s gregos

N u m a b u s c a lógica, Cheikh A nta Diop trouxe os te s­ te m u n h o s dos a n tig o s gregos Heródoto, Estrabo, Deodoro da Sicília, etc..., esses mesmos que são testem unhos oculares da ci­ vilização egípcia. Querendo ex­ plicar o fenômeno das in u n d a ­ ções do Nilo, Heródoto, conside­ rado o pai da historiografia, es­


creverá em relação ao Egito que “[...] a terceira razão vem do fato de que o calor do lugar torna as pessoas pretas L..]”14. O mesmo Heródoto prosseguirá, p a ra s u ­ blinhar a origem egípcia na base grega, afirmando: “[...] E q u a n ­ do eles acrescentam que esta si­ lhueta era negra, Heródoto nos faz e n ten d e r que esta mulher, isto é, C leóp atra, e ra egípcia [...]." O sábio grego diria o m es­ mo em relação aos h a b itan tes de Colchide nos arredores do atu al M ar Negro, perto da Turquia, pois queria sublinhar a sua ori­ gem egípcia. “[...] Os egípcios pensam que estes povos são des­ cendentes de um a parte das tro­ pas de Sésostris.15 Eu os exam i­ no com base em dois critérios: o primeiro é que eles são negros e que eles têm cabelos crespos U . ”1B

Outros cientistas gregos da a n tig u id a d e , E strab o , P i t á g o r a s , T a le s, E u c lid e s , Deodoro, cuja maioria iniciou-se no Egito, confirmarão os te s te ­ munhos de Heródoto. Mesmo que a lgu ns o m ita m a inform ação, notadam ente Platão, sobre a fon­ te dos seus conhecimentos (reco­ nhecendo todos sua iniciação no Egito em todas as áreas das ci­ ências da época deles!), os p ap i­ ros redigidos pelos sacerdotes negros que resistiram ao tempo

provarão que foi atribuída, por engano, aos gregos a p a te rn id a ­ de das descobertas do Egito a n ­ tigo. C heikh A n ta Diop revela que u m a p e r s o n a g e m como Estrabo não hesitou em tr a ta r P itá g o ra s como “v u l g a r plagiador”.... Cheikh A nta Diop susten­ ta sua tese sobre os fu ndam en­ tos lingüísticos, então científicos, fazendo a demonstração do p a ­ rentesco genético entre o Egito antigo e as línguas negro-african a s 17, colocando o acento sobre vários ritos, tradições, religiões e costumes negros que sobrevi­ veram além do Egito antigo. Buscar-se-ão, sem sucesso, os m es­ mos traços no Ocidente... Melhor ainda, são os argumentos forne­ cidos pelos próprios egípcios, que se representavam como negros, isso reforçado por novas técnicas de pesquisa, tais como o carbono 14 p a ra a datação, mas também a química, a antropologia, a a r ­ queologia, a paleontologia. Alguns ideólogos ociden­ tais vão te n ta r elaborar uma n e ­ b u lo s a te o r i a da c iv iliz a ç ã o ham ita ou camita, perdendo de vista a referência ao Cam (um dos filhos de Noé, o patriarca da Bíblia), um a personagem que foi amaldiçoada, segundo esses m es­ mos ideólogos. Segundo a Bíblia, Cam seria o primeiro negro... Os


ham itas seriam, segundo os de­ fensores da “civilização branca”, um a ramificação desta civiliza­ ção ocidental que eles queriam ap resen tar como precursora da civilização h um ana. Em outros termos, num momento em que o conceito de civilização não exis­ tia no espírito dos ocidentais, os ham itas tinham colocado as b a ­ ses da civilização nos negros... antes de desaparecerem. O obstáculo p rin cip al a este tipo de masturbação intelec­ tual é que em nenhum lugar no mundo encontrou-se, pelo menos e n tr e os d e fe n so re s da “r a ç a branca”, traços de civilização que dominam ao mesmo tempo a ge­ ometria, a arquitetura, a a ritm é ­ tica, a química, a astronom ia, etc., na época do Egito antigo negro e pelo menos dois milêni­ os depois do surgimento desta ci­ vilização. Pois, d u ra n te muito tempo, o Egito foi o único centro intelectual do mundo. A estas teses fantásticas do ham ita “civilizador”, a respos­ ta de Cheikh Anta Diop foi ta m ­ bém fantástica^ “[...] Vê-se então que, dependendo da causa e da necessidade, Cam é maldiçoado, preto e se torna o ancestral dos negros. E o caso toda vez que se fala das relações sociais contem­ p o râ n e a s . M as ele é e m b r a n ­ quecido toda vez que se busca a

origem da civilização, pois ele está presente no primeiro país ci­ vilizado do mundo.”18 U m a das m anobras mais grotesca por parte dos cientistas ocidentais foi, sem som bra de dúvida, a criação de todas as p e­ ças do crânio de um “hom em ”, para reforçar a tese da raça b ra n ­ ca. V - A n ova a p ro x im a çã o

Até o seu falecimento em 1986, Cheikh A n ta Diop sempre defendeu a tese segundo a qual é o negro que migrou em direção aos outros continentes p a ra se a d a p ta r a estes locais, em todos os estágios da evolução do h o­ mem, inclusivo o Homo sapiens sapiens (que corresponde ao ho­ mem moderno). E assim que as outras raças teriam aparecido. O fóssil de Homo sapiens mais a n ­ tigo da época, segundo Cheikh A nta Diop, é um negro (Omo I, em torno de 150.000 a.C.), e as outras descobertas sobre os con­ tin e n te s são do tipo negróide (Homem de Grimaldi, etc.). A tese de C h eik h A n ta Diop não foi d esm en tida pelas recentes descobertas. Segundo a revista “A História “ de dezem­ bro de 2004, os pesq uisad ores acharam em 2003 um novo fós­


sil... na Etiópia! A revista indica que o fóssil se apresenta “sob a forma de centenas de fragm en­ tos, que são os restos de dois adultos e de uma criança sendo atribuídos por Tim White a um Sapiens: Homo Sapiens Idaltu esta últim a palavra significa ‘a n ­ tigo’ na língua local... Ele foi d a ­ tado de 160.000 anos.” Conclu­ são: “Eis e ntão o m ais antigo Homo S a p ie n s conhecido nos nossos dias.” Todavia, se a quase to ta ­ lidade dos cientistas do mundo concordam hoje sobre a origem a fric a n a do hom em , eles não compartilham as vias escolhidas por Cheikh Anta Diop. U m a p e r­ sonalidade científica como o fran ­ cês Yves Coppens, que fazia p a r ­ te do grupo que descobriu o mais antigo esqueleto de astralopiteco até os nossos dias (3,2 milhões de anos), é adepto da teoria do policentrismo. Em outras p a la ­ vras, o Sr. Coppens tende p a ra a teoria que quer dem onstrar que houve um a separação no estágio do homo erectus (“o homem de pé”, an terior ao Homo sapiens sapiens) e que muito centros h u ­ manos se desenvolveram em v á ­ rios lugares do mundo no e s tá ­ gio do Sapiens...

Conclusão

Mesmo que o debate este ­ ja aberto neste estágio da pesqui­ sa, ele não resolve o problema da origem da civilização. Querendo s a n a r todas as dúvidas sobre os traços negros de Ramsés II (uma das m úm ias mais conservadas), apesar das provas trazidas hoje p e la a r q u e o lo g ia ( p i n t u r a , estatuetas, língua, etc.), Cheikh A nta Diop revelou na sua obra “Civilização e barbárie” que soli­ citou às autoridades egípcias, por ocasião do congresso científico de 1974, alguns milímetros da pele do fa ra ó p a r a f a z e r t e s t e s laboratoriais. Ele não teve êxito, sob a alegação de que não queri­ am tocar na integridade física da múmia... D urante toda a sua vida, o pesquisador senegalês se con­ frontou com este tipo de m ano­ bras. O seu principal objetivo era de provar a raça negra dos a n ti­ gos egípcios que fundaram a p ri­ meira civilização do mundo.

Referências bibliográficas

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(Footnotes) 1 L e t t r e d a té e d u 7 a o û t 1941, Dossier Cheikh A nta Diop, Archives Nationales du Sénégal, Dakar. 2 Cheikh A nta Diop, Nations nègres et culture, t. I, Présence africaine, Paris, 1979. 3 Aim é C é sa ire , D iscours s u r le colonialisme, Présence africaine, Paris, 1955. 4 KIZERBO, Joseph.

Histoire générale de 1 Afrique'E tu d e s et documents, v. I. Paris: Unesco, 1978. 5 Actes du colloque “L ’oeuvre de C heikh A n ta Diop: la renaissance de 1 ’A f r iq u e a u s e u il d u t r o i s iè m e m i l l é n a i r e ”, D a k a r - C a y t u , 26 février-2 m ars 1996. 6 F R O M E N T , A la in . O rig in e e t évolution de l’homme dans la pensée de Cheikh A nta Diop : une analyse critique.

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império. O nome egípcio, Sénousert, significa “a deusa O usert”, que fa­ zia p a rte da composição do título real como nome de As-Rê ou nomen. 14 Hérodote, Livre II. 15 P a ren té génétique de 1 ’é g y p t i e n p h a r a o n i q u e e t des langues né gro-africaine s, IFAN Edi­ tora NEA, Dakar, 1977. 16 Nations Nègres et Culture.

Notas 1 Doutor em Direito Internacional pela UFRGS, Coordenador do Curso de R e la ç õ e s I n t e r n a c i o n a i s do U N IL A S A L L E /R S , m em bro fundador do Instituto Brasileiro de Estudos Africanos - IBEA. 2 G r a d u a d a em H i s t ó r i a e Pedagogia, M e stre em Educação p ela U N ISU L/SC , p ro fe sso ra da R ede P ú b lic a do E s t a d o de Rio Grande do Sul e membro fundadora do Instituto Brasileiro de Estudos Africanos —IBEA. 3 Lettre datée du 7 août 1941, Dossier Cheikh A nta Diop, Archives Nationales du Sénégal, Dakar. 4 Cheikh A nta Diop, Nations nègres et culture, t. I, Présence africaine, Paris, 1979. 5 Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme. Présence africaine, Paris, 1955. 6KIZERBO, loseph. Histoire générale de l ’Afrique: Etudes et documents, v. I. Paris: Unesco, 1978. 7Actes du colloque “L'oeuvre de Cheikh Anta Diop: la renaissance de 1’Afrique au


seuil du troisième millénaire”, DakarCaytu, 26 février-2 mars 1996. 8 FR O M EN T , A la in . O rig in e e t évolution de l’homme dans la pensée de Cheikh Anta Diop: une analyse critiq u e . C a h ie r s D ’é tu d e s Africaines, Paris, n. 121-122, 1991. 9 D IO U F, M a m a d o u ; M B O D J, Mohamad. The Shadow of Cheikh A nta Diop. In: The S u rrep titio u s Speech•' Présence africaine and the Politics of O therness, 1947-1987. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. p. 135 . 10 Conférence du Centre GeorgesPompidou, 7 ju in 1985, N om ade, P a r i s , n. 1-2, 19901 B E R N A L , M a r t i n . B la c k A t h e n a ■' The A f r o a s i a t i c R oots of C l a s s i c a l C iv iliza tio n , tom os I e II. New B ru n s w ic k : R u t g e r s U n i v e r s i ty P re ss , 1988-1991. Veja ta m b é m OBENGA, Théophile. Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx. Présence africaine et Khepera, Paris, 1996. Revue Ankh, éditions Khepera, BP 11, 91192 Gif-sur-Yvette Cedex. 11 Cheikh Anta Diop, Antériorité des civilisations nègres: mythe ou vérité h is to r iq u e ? P ré se n c e a fric a in e . Paris, 1967. p. 185. 12 CH A M P OLLI O N -F IG E AC, E g yp te A n cien n e. P a ris: Firm inDidot, 1950, Un Volume In-8°, 500 P13 GOBINEAU, Joseph-Arthur (Comte de) (1816-1882). Essai sur l ’inégalité des races hum aines (1853-1855). Paris: Éditions Pierre Belfond, 1967. 878 p. 14 HÉRODOTE. H istoire, trad, du grec par Larcher.: avec des notes de

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Considerações acerca de educação, etnomatemática, cultura negra e escola pública

Vanisio Luiz da Silva 1

A educação plural como direito

A C a rta de São F ran cisco é o docum ento que deu vida à O r­ g a n iz a ç ã o d a s N açõ es U n id a s (ONU), m arcan d o u m m om ento de tran sição e construção coleti­ v a im p o rta n te p a r a a h is tó ria da h u m a n id a d e , que reg istro u , n a verdade, a necessidad e de p r e ­ se rv a r e re g u la r as relações de in te rd ep en d ên c ia e n tre os E s t a ­ dos. P or in te rm é d io de a s s e m ­ bléia geral aprovou, em d eze m ­ bro de 1948, a D eclaração U n i­ v e r s a l dos D ir e ito s H u m a n o s (DUDH - 1948), contendo 30 a r ­ tigos que tr a t a m dos direitos fu n ­ d a m e n ta is da pessoa h u m a n a . F r e n te a essas colocações, vale le m b ra r que as bom bas a tô ­ micas sobre o céu de H iro sh im a e N a g a s a k i são m o s tra d a s como heroísm o nos filmes sobre a S e ­ g u n d a G u e r r a . E s t a ó ti c a , freq ü en tem en te a p re s e n ta d a p e ­ los vencedores, omite c u id a d o sa ­ m e n te p rá tic a s e discursos que as le m b ra n ç a s dos te r r o r e s de A u s c h w i tz t e i m a m em fa z e r

lem brar. Adorno (1995), em seus escritos a esse respeito, oferece, de fato, u m a e x tra o rd in ária opor­ tu n id a d e de reflexão acerca da capacidade que grupos atrelados ao poder tê m de se a p ro p ria re m do co nh ecim ento e do discurso científico p a r a co ndu zir à d e s ­ truição de pessoas, ideais e c u l­ tu ra s , pela ação ou pela omissão. Como é sabido, os líderes n a z is ta s se f u n d a m e n ta ra m n as t e o r i a s d a e u g e n i a e do determ inism o biológico p a r a con­ duzir o povo alem ão à crença de que, por direito, s e ria m eles os re s p o n s á v e is pelos d estino s do m un do e das “raça s in ferio res”, reconhecidas n a construção d e s­ ta s teorias como dan o sas ao d e­ senvolvim ento da espécie h u m a ­ n a e ao progresso das sociedades. Tam bém p aíses de grande po d er econômico e tecnológico, como os E sta d o s Unidos, a t r i b u ­ íram -se o direito de, em nome d a paz, a r b it r a r sobre a v ida de m ilh a re s de pessoas, p a r a im por ao m u n do s u a lid eran ça e pode­ rio bélico. F ato s como estes, em


geral, re v e la ra m a necessidade de e ao livre desenvolvi­ de as nações se u n ire m n a i n t e n ­ m ento da s u a p e r s o n a ­ ção de proteger-se das inv estidas lidade co n tra os direitos básicos dos i n ­ divíduos, dos grupos e das c u ltu ­ P a r a as c o m u n id a d e s n e ­ ras. g ras do Brasil, a p r im e ir a m e ta ­ A C a rta de São Francisco, de do século XX ficou m a rc a d a d a qu al vários países foram sig ­ pelos e s ti g m a s d a e s c ra v id ã o , n a t á r io s , foi a s s i n a d a em um pelas te o rias raciais e pelas con­ m om ento de comoção m u n d ia l — dições sociais do período pós-aboaflorada em razão dos milhões de lição. E s te s fatos serão a b o rd a ­ ju d e u s assassin ad o s nos cam pos dos com m ais d e ta lh e s p o s te r i­ de concentração da A le m a n h a e o rm ente. Foi n este cenário que a dos m ilh ares de japon eses m o r­ educação escolar a p are ceu como tos p e la s b o m b a s a m e r i c a n a s a m elhor possibilidade de in c lu ­ d u ra n te a S egunda G u e rra M u n ­ são n a sociedade. N a São P aulo dial. E la aborda, em diversos t r e ­ da v ira d a do século, h a v ia u m chos, o compromisso dos países pequeno grupo de negros que, por m em bros n a lu ta co n tra os p ro ­ te r gozado do privilégio de fre ­ cessos discriminatórios, por meio q ü e n ta r e escola formal, co n sti­ da educação e da cultura, confor­ tu iu u m a elite respo nsável pela me descrito no p reâm b u lo e no ativação de m ovim entos sociais artigo XXII da D eclaração U n i­ ligados à educação dos negros. v e r s a l dos D ir e ito s H u m a n o s P o r s u a vez, os m o v im e n to s , (DUDH - 1948). além das reivindicações, p ro m o ­ v e ra m in d iv id u a lm e n te ações de Todo hom em , su p eração das b a r r e ir a s raciais como m em bro da socie­ por in term éd io da educação e da dade, tem direito à seg u ­ c u ltu ra. ra n ç a social, à r e a liz a ­ A exp eriên cia educacional ção, pelo esforço nacio­ d a F r e n t e N e g r a B r a s i l e i r a nal, pela cooperação i n ­ (FNB), in stitu ição fu n d a d a 16 de setem b ro de 1931 em São P aulo te rn a cio n al e de acordo com a organização e r e ­ e que, a p e s a r de s u a relação con­ cursos de cada Estado, tr a d itó r ia com o Estado, é v ista dos direitos econômicos, como u m a referên cia d essas ex ­ sociais e c u ltu ra is in d is ­ p eriên cias de superação. O T ea­ pensáveis à su a dignida­ t r o E x p e r i m e n t a l do N e g r o


(TEN), criado no Rio de J a n e iro em 1944 p a r a a te n d e r as nece s­ sidades de u m te a tro de negros e p a r a negros, por força d as c ir­ cun stân cias, alfabetizou m ais de 600 p esso as e é outro exem plo dessas experiências, assim como o u tras experiências pelo país afo­ ra. No tocante à educação formal, a lei 4024/612 iniciou os esforços de superação, g aran tin d o o d irei­ to de acesso das crian ças o r iu n ­ das dos grupos de m in o ria s 3 ao ensino p rim ário n a escola p ú b li­ ca, m esm o que em condições a d ­ v ersas, pois a r e f e r id a lei não g a r a n tiu as condições m ín im a s de p e rm a n ê n c ia dessa nova cli­ entela, e a escola não se p r e p a ­ rou p a r a recebê-la. E m seguida, a XI Conferên­ cia da U NESCO , em 1962, a p ro ­ vou a Convenção contra a D iscri­ m in a ç ã o n a E d u ca ção . E la foi a s s in a d a pelos países m em bros, e n tre eles o Brasil, que só veio a ratificá-la em 1968. Esse docu­ m e n to foi, p a r a a e n t id a d e , o de se n c a d e a d o r das o u tr a s p r o ­ po stas de com bate a essas p r á t i ­ cas d is c rim in a tó ria s : a D e c la ra ­ ção so b re R a ç a e P re c o n c e ito Racial, em 1978; a D eclaração sobre P rincípios de Tolerância, em 1995,' a D eclaração U n iv e r­ s a l sobre D iversid ad e C u ltu ral, em 2001, apro v ad a n a C on ferên­ cia M u n d ial co n tra o Racismo, a

Discrim inação, a Xenofobia e a I n to lerân cia C o rrela ta (D urban, África do Sul). M ais re c e n te m e n ­ te, em 2005, a U N E SC O aprovou a Convenção sobre a Proteção e P ro m o ç ã o da D iv e r s id a d e d a s Expressões C ultu rais. As convenções e os p ro to ­ colos gerados a p a r ti r das ações da ONU, da U N E SC O e dem ais in stitu içõ es c o rrelatas d e m o n s ­ tr a m os esforços feitos pelas n a ­ ções, no campo da educação, p a ra s u p e ra r os obstáculos e b a rre ira s im peditiv as ao desenvolvim ento das potencialidades de pessoas, povos e cultu ras. No Brasil, p a r a as com u nidades negras, o dia 7 de julho 1978 ficou m arcado por ato público n a e scad a ria do Tea­ tro M unicipal de São Paulo. E ste ato, que legitim ou o M ovimento Unificado co n tra a D is c rim in a ­ ção Racial (MUCDR), agregou as instituições lig ad as às lu ta s d e s ­ sas c o m u n id ad es no B ra sil em u m a nova instituição, b a tiz a d a de M ovim ento Negro Unificado (MNU). Ele tin h a como objetivo congregar em torno de si as l u ­ ta s con tra as p ráticas ra c ista s da sociedade brasileira, que ain d a configura u m a grave t r a n s g r e s ­ são aos direitos fu n d a m e n ta is da p essoa h u m a n a e impõe aos go­ vernos, sociedades e indivíduos a obrigação e o dever de am p lia r


esforços p a r a que ta is im p e d i­ m entos sejam superados. A não-superação de tais im ­ ped im ento s im plica a co-responsabilidade pelos a tra so s no d e ­ senvolvimento, pela m iséria, p e ­ l a s c u l t u r a s e x t e r m i n a d a s e, princip alm en te, pelas vidas p e r ­ didas. Contudo, os esforços pela erradicação das p rá tic a s racistas g a n h a r a m s ta t u s de política de E stado som ente n a década de 80, quand o o Brasil, que é s ig n a t á ­ rio da c arta de intenções de 1962, a ssu m iu a Declaração sobre Raça e Preconceito R acial de 1978. A p a r ti r da ação dos m ovim entos sociais, s u r g ir a m as p r im e ir a s políticas públicas visando a a t e n ­ der a especificidades dos grupos m in o ritá rio s nos cam pos da s a ú ­ de e da educação, e n tre outros. D esse modo, vêem -se i n ­ ten sificad as as p rop ostas de t r a ­ b a lh o s c ie n tífic o s p r o d u z in d o dados estatísticos e co nhecim en­ tos teóricos p a r a serem u tiliz a ­ dos como base de su ste n ta ç ã o no t r a t a m e n to das especificidades dos negros. N a legislação educacional, f o ra m i m p l e m e n t a d a s v á r i a s ações conseqüentes deste proces­ so. A LDB n° 9394/96 é u m ex em ­ plo, pois, pela p rim e ir a vez n a h istó ria do país, u m a lei p ro cu ra co n tem p la r a p lu ra lid a d e c u ltu ­ ra l que compõe a sociedade b r a ­

sileira. Os PC N s, p o r s u a vez, t r a t a r a m e s ta q u estão como t e ­ m a s tr a n s v e r s a is a serem inco r­ porados pelos currículos escola­ res e pelas p r á tic a s pedagógicas. D en tro da te m á tic a d a p lu r a l i­ dade, os afro -d escendentes (ne­ gros) g a n h a m u m t r a t a m e n t o específico pelo e n te n d im e n to da p r o b le m á tic a como u m a e m e r ­ g ên c ia n a c io n a l, o fe re c e n d o a oportunidade de debates sobre as circ u n stân cias históricas da i n ­ clusão p e rv e rs a do negro n a so­ c i e d a d e . A L e i n° 1 0 .6 3 9 /0 3 c o m p lem e n ta a LDB, propondo o ensino de h istó ria da África e dos afro-descend entes no ensino básico. O p arec er CN E/CP n° 03/ 04, do Conselho Nacional de E d u ­ cação, e a resolução do MEC, e n ­ tr e o u tr a s p ro p o s ta s , d e t e r m i ­ n a m aos centros de formação em ed ucação a o b rig a to rie d a d e de capacitar os g rad u an d o s de todas as á re a s do conhecim ento p a r a o tr a to com as diferenças. Por uma pedagogia libertária e plural no século XXI

In d e p e n d e n te m e n te das ações legais, é im p o r ta n te r e l a ­ c io n a r p e n s a m e n t o s de P a u lo F re ire e U b ir a ta n D A m brosio a u m a reflexão sobre o negro e a educação, não so m ente pela le ­ g itim id ad e a ca d êm ica ou pelos


notáveis saberes acum ulados por ambos ao longo dos anos, m as por serem in te le c tu a is que t r o u x e ­ ra m g ra n d e s contribuições p a r a a educação do século XXI e p a r a a Educação M atem ática. D e n tr e as m u i ta s c o n t r i ­ buições de ambos, destaco, n e s ­ te a r t i g o , a s d i s c u s s õ e s e teorizações acerca do valor dos saberes do e d u c a n d o na escolarização; a im p o rtâ n c ia de levar em conta o convívio e n tre os diferentes n a construção do co­ nhecim ento; a com p re en são do indivíduo como agente do próprio destino, como d e te n to r de s a b e ­ res r e s u lta n te s das experiências de vida, como herdeiro dos conhe­ cimentos acum ulados ao longo de gerações em seu a m b ien te e g r u ­ po social. Tais fatores não podem ser esquecidos n a sala de a u la e n a escola, pois são r e s u lta n te s das elab o raçõ es e re p re s e n ta ç õ e s pessoais, refletindo os valores do universo que circunda: a família, o bairro, a cidade, a religiosida­ de e, principalm ente, o s e n tim e n ­ to de p ertença. Eles são f u n d a ­ m e n ta is n a construção de como ver, ser, e, por isso, devem ser considerados pela educação esco­ lar. Esse complexo de emoções e s a b e r e s n ã o -a c a d ê m ic o s g a ­ nhou vulto no in s ta n te em que

foi reconhecido por edu cadores como F re ire , fazendo eco a r as vozes das m inorias políticas, que sem pre tiv eram violentado o d i­ reito u n iv e rs a l de to m a r as r é ­ d eas do próprio destino em su as mãos. A lu ta das m in o rias pela ig u a ld ad e n a diferença tem sido r e s p a ld a d a n a s reflexões sobre u m a ed u ca ção l i b e r ta d o r a no sentido de que “a educação como p rá tic a da liberdade, ao c o n trá ­ rio d a q u ela que é p rá tic a da do­ m inação, im plica a negação do ser abstrato , isolado, solto, d es­ ligad o do m u n d o , a s s im como u m a realid ad e a u s e n te nos h o ­ m e n s ” (FREIRE, 2002, p. 70). Ao d i s s e r t a r s o b r e a universalização da m a te m á tic a proposta pela sociedade m o d e r­ na e suas c a ra c te rístic a s r a c i o n a l i s t a s d e s e n v o lv id a s a p a r tir do século XVI, D’Ambrosio (2005, p. 77) a define como um i n s t r u m e n t o s e le c io n a d o r d a s elites e, portanto, a serviço dos processos de exclusão e seleção social. E s ta interpretação m o stra um im p o rta n te com ponente po­ l í tic o n a c o n f i g u r a ç ã o d a e tn o m a te m á tic a . Nos re fe rim o s a u m a “m a te m á tic a dom i­ n a n te ”, que é u m i n s t r u ­ m ento desenvolvido nos países cen trais e m u ita s


v e z e s u t i l i z a d o com o in s tru m e n to de d o m in a­ ção. E s s a m a te m á tic a e os q ue a d o m i n a m se a p re s e n ta m com p o s tu ­ r a s de s u p e r i o r i d a d e , com o poder de deslocar e m esm o e lim in a r a “m a t e m á t i c a do dia-adia”. O mesmo se dá com o u tras form as culturais. A etnom atem ática, por su a vez, é u m a das v e rte n te s da E d u ­ cação M a te m á tic a que se volta p a r a as m inorias políticas e a s ­ sum e com elas a lu ta em favor do reconhecim ento e valorização desses sab eres étnicos como for­ m a de gerar, d ifundir e u tiliz ar conhecimentos m atem áticos. Ela tem m ostrado, e n tre o u tra s coi­ sas, que existe u m a forte relação e n tre os saberes lógico-matemáticos, té cn ica s de m e n su ra ç ã o , avaliação de p ossibilidades d e ­ senvolvidas por esses grupos e a a p ren d izag em dos conh ecim en ­ tos validados pela escola. E n t r e ­ tanto, D A m brosio (2005, p. 43) ad v erte que “conhecer e a s s im i­ la r a c u l tu r a do d o m in a d o r se t o r n a p o s iti v o d e s d e q u e a s raízes do dom inado sejam fortes. N a educação m a te m á tic a , a e tn o m a te m á tic a pode fortalecer e s ta s raízes.”

Q u e s tio n a d a acerca do l u ­ g ar d a form ação de professores n a educação m a te m á tic a do s é ­ culo XXI, D om ite e t al. (2004) fazem u m a sín te se do m o v im en ­ to das p esq u isas nesse sentido e d e s ta c a m o fato de que v á rio s p e s q u is a d o re s têm -se dedicado ao tem a, re s s a lta n d o o p a p e l do professor como sujeito de s u a s ações sociais. Porém , as relações e n tre a form ação profissional e a diversidade c u ltu r a l a in d a dei­ x am ab erto s m u ito s espaços de problem atização. As a u to ra s r e ­ conh ecem a n e c e ss id a d e de os e du cad ores fo rm adores co m p re­ en d ere m e a v a lia re m m a is p ro ­ fu n d a m e n te o po tencial de lev ar em conta o conhecim ento p rim e i­ ro (étnico) do edu cando nos p ro ­ cessos de e n s in o /a p re n d iz a g e m (de m a te m á tic a ) n a escola, de form a a to rn á -la m ais d em o crá­ tica. De fato, o c o n h e c im e n to p rim eiro do educando é um v a ­ lor ad quirid o e u m direito f u n ­ d a m e n ta l, o que p ressu p õ e en te n d ê -lo s ta m b é m como i n s ­ tr u m e n to s de com bate às p r á t i ­ cas r a c is ta s e d iscrim in atórias, com o m e io de p r o m o ç ã o d a s po tencialid ades h u m a n a s , como afirm ação das diferenças n a s so­ ciedades p lu rais, como rec o n h e ­ cim ento e respeito à a lte n d a d e , e n tre outros.


E s te s pressupostos, no e n ­ t e n d i m e n t o de D o m ite e t al. (2004), são questões que se im ­ p õem à ed u ca ção c o n t e m p o r â ­ nea, e, neste sentido, p a r a a p r á ­ tica docente do século XXI, serão desejáveis “le itu r a s de m u n d o ” que reflitam a com plexidade e as v iv ê n c ias c o tid ia n a s dos educandos com o v alo re s so cio cu ltu ralm en te co nstru ído s e, p o r ta n t o , como r e f e r ê n c i a s centrais n as abo rd agens dos con­ teúdos acadêmicos pela escola. O desafio que se coloca a p a r ti r d es­ ses p ressu posto s é difundir e n ­ tre os educadores esse leque de possibilidades n a expectativa de a p ren d izag en s significativas no a m b ie n te escolar, a f e ta d o por u m a h eran ç a na formação de pro­ fessores que m a n te v e /m a n té m a crença de que o domínio dos con­ teúdos m a te m á tic o s clássicos é suficiente p a r a u m a com petente p r á ti c a docente. D o m ite e t al. (2004) concluem re a firm a n d o a posição de que a formação cons­ titu i um lu g a r de forte concen­ tração ideológica. A e tn o m ate m ática, por s u a vez, é co n stitu íd a por u m p e q u e ­ no grupo que, em s u a s reflexões acerca da formação de professo­ res de M atem ática, coloca a d i­ v ersidade c u ltu r a l no centro das atenções, voltando as s u a s p re o ­ cupações p a r a o e n te n d im e n to

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m

dos valores, das emoções, das ló­ gicas e o lid ar com o conhecim en­ to m atem ático (primeiro) do e d u ­ cando. E, neste sentido, as p e s ­ qu isas e os estu do s do P ro g ra m a de E tn o m atem ática têm dem ons­ trad o m u ita eficiência n a p r e te n ­ são de tr a z e r p a r a o am b ie n te acadêmico as elaborações e p r á ­ ticas m a te m á tic a s dos diversos gru p o s étnicos, d e n tro d a s d i­ mensões referidas, como: ab o rd a­ gem didática, p o s tu ra pedagógi­ ca e p ro g ra m a de pesquisa. Pelos motivos expostos, e n ­ tendo os olhares e com prom issos é tico s do program a de e tn o m a te m á tic a de D ’Ambrosio e as p ro p o s ta s de F re ire como p en sam e n to s confluentes com as l u t a s em favor de u m a escola com prom etida com a d iv e rsid a­ de e a alteridad e. A p a r ti r daí, reafirm o a possibilidade de um encontro prom issor e n tre as p e s ­ q u is a s em e tn o m a te m á tic a e o raciocínio m atem ático desenvol­ vido pelos negros escravizados e seus descen den tes no Brasil. N a dinâm ica desse encontro reside a certeza de processos m ais d e­ mocráticos n a s relações e n tre os d iferen tes grupos h u m a n o s que c o n s titu e m a nação b ra s ile ira , seguindo as orientações e o esp í­ rito do docum ento assin ad o em 26 de ju n h o de 1945, d e n o m in a ­ do “C a r ta de São Francisco”.


ü m a leitura da cultura crioula na educação do século XXI

M attoso (2001), ao descre­ v er as perspectivas h istó ricas e psicológicas do s e r escravo no Brasil, d e m o n stra situações de afetividade que auxiliam no e n ­ te n d im en to do processo ed ucaci­ onal imposto aos negros na colo­ nização, assim como as conseqü ­ ên c ia s dele n a c o n s tru ç ã o d as cu ltu ras, das resistências e das id e n tid ad e s negras. E la faz con­ siderações acerca do sofrim ento que se impõe ao africano re c é n r inserido n a sociedade. E s s a inserção foi conceitu­ a d a por S aw aia (2001) como i n ­ c lu sã o p e r v e r s a , a q u i to m a d a como 0 prim eiro m om ento de in ­ clusão do negro n a sociedade b r a ­ sileira, envolvido por um a m b i­ e n te e s tra n h o , hostil, adverso, re p re ssiv o e, so b re tu d o , av iltante. P a r a o re c é m -d e s e n r b a rc a d o da Á frica, 0 p r im e ir o desafio era a d m in is tr a r os con­ flitos de se in te g r a r s im u lta n e a ­ m e n te a dois un iv erso s c o n tra ­ ditórios e e s tra n h o s ao seu c a m ­ po de conhecimento. De u m lado, h a v ia a neces­ sidade de se a d a p t a r ao m u nd o do senhor, no qual a sobrevivên­ cia d e p e n d ia da a p re n d iz a g e m dos códigos e com andos nos e n ­ g e n h o s de a ç ú c a r b a i a n o s e

p ern a m b u c a n o s, p a r a os q uais a mão-de-obra do africano esc ra v i­ zado foi fu n d a m e n ta l. Os e n g e ­ nh o s a d o t a v a m de 80 a té 100 pessoas, de origens diversas, p r e ­ fe r e n c ia lm e n te n a in te n ç ã o de dificultar revoltas. P a r a o e s c r a ­ vizado, esse s is te m a educacional se r e s t r i n g i a ao m a n u s e io dos in s tr u m e n to s de tra b a lh o n a l a ­ v o u ra, n a p ro d u ção do açúcar, n a s ta re fa s d a casa g ran d e e nos tra b a lh o s de ofício. A pedagogia aplicad a se referia à força, não s o m e n te física, m a s p r in c i p a l ­ m e n te a aviltação moral, que e ra e m p r e g a d a n a a d a p t a ç ã o dos africanos e dos crioulos4. Do ou tro lado, os laços de infortúnio, f r a te rn id a d e e a n e ­ cessidade de tr a n s c e n d ê n c ia fa ­ ziam com que 0 africano e sc ra v i­ zado optasse pelo m und o co n sti­ tuído nos s u b te r r â n e o s da s e n ­ zala, a in d a que este ta m b é m fos­ se co m p letam en te estran ho, pois lá os m a is an tig o s de cativeiro elab oravam sis te m a s de co m u n i­ cação oral, em geral, compostos por u m a m is tu r a d as lín g u as e dialetos africanos, p rin cip alm en ­ te do tronco iorubano, com as lín ­ guas in d íg en as e a lín g u a p o r tu ­ guesa. Os vocabulários serv iram à com unicação e aos prim eiros m o­ delos e p rá tic a s da religiosidade a fro -b ra s ile ira , co m p o sta t a n v


bém da religiosidade africana, da re lig io sid ad e in d íg e n a , sincretizad as no catolicismo. E s ­ ta s p rá tic a s dav am às Ialorixás não só o p ap el de lideres e s p iri­ tual, m as p rin c ip a lm e n te o po­ der decisório dentro dessas fam í­ lias fra te rn a is e n a sociedade p a ­ ra le la que se constituía, já que as fam ílias de sa n g u e e ra m im ­ p o s s i b i l i t a d a s p e lo s i s t e m a escravista. Tais fatos p arecem e v id e n ­ ciar que, n a senzala, forjaram -se e s t r u t u r a s de s o c ie d a d e com modelos próprios de linguagem , família, religiosidade, poder e os elem entos básicos das id e n tid a ­ des c u ltu ra is n e g ra s b rasileiras, que d e te rm in a ra m a s u a ex istên ­ cia, a re s is tê n c ia , a t r a n s c e n ­ dência e os modos próprios de li­ d ar e con trolar as ações no a m ­ biente, assim como [as s u a s for­ m a s de se rela cio n ar com o t e m ­ po e o espaço, f u n d a m e n t a d a s nos p rin c íp io s e v a lo re s da afric a n id a d e que M u n a n g a (2007) co n ce itu o u d a s e g u in te m a n e i r a : “N a d iv e rs id a d e que caracteriza o m undo africano, há, tam bém , n u m e ro s a s s e m e lh a n ­ ças. Podem ser observadas em di­ versos aspectos da v id a : do uso da p a la v ra e do gesto à co nd uta social, da relação com o sagrado à concepção de m orte.”

Sobre as noções de cultu ra, D ’Ambrosio (2005, p. 77) afirm a

que:

Os indivíduos, de u m a comunidade, de um grupo c o m p a rtilh a m se u s co n h ec im e n to s, tais como a linguagem , os s istem as de explica­ ções, os mitos e cultos, a c u lin ária e os costumes, e tê m s e u s c o m p o r t a ­ m e n to s c o m p a tib ili­ zados e su bo rdin ado s a s i s t e m a s de v a l o r e s a c o rd a d o s pelo grupo, dizemos que esses in d i­ víduos pertencem a um a m e sm a cultu ra. A inda sobre resistência e cultura, M u n a n g a (2007, p. 13) defende o s e g u in te : Colocar a questão da a fric a n id a d e n as díásporas equivale a co­ locar a questão das r e ­ sistên cias c u ltu ra is que por s u a vez d esem boca­ ra m em iden tidades cul­ tu r a is de resistên c ia em todos os p aíses do m u n ­ do que foram beneficia­ dos pelo tráfico n eg rei­ ro. O B rasil é um deles, ou melhor, é o m aio r dos


países beneficiados pelo tráfico tra n s a tlâ n tic o e ta m b é m aquele que ofe­ rece diversas e x p e riê n ­ cias da africanidade em todas as suas regiões, do norte ao sul, do leste ao oeste. E possível concluir daí que a s e n z a la forjou p e n s a m e n to s m a tem á tic o s próprios e capazes de d a r conta da necessidade de co n tag em , in fe rê n c ia s, m ensurações e avaliações, d esen ­ volvidas a p a r ti r da n ec e ssid a ­ de de resolver as questões de so­ b r e v i v ê n c i a e, s o b r e t u d o , de tran scendência, fu n d a m e n ta d a s n a africanidade brasileira. Isso t a m b é m p a r e c e p o s s ív e l p e l a existência de influências desses conhecimentos, procedim entos e lógicas, fruto das circ u n stân cias histó ricas e sociais da p rim e ira fase da colonização, n a co n stitu i­ ção de u m a racionalid ad e criou ­ la. H. S an to s (2001, p. 277) ex ­ p lora a possibilidade de o dife­ rencial do jogador de futebol b r a ­ sileiro ser a relação do corpo com o tem po e o espaço, o que pode se c o n stitu ir em m ais u m a h e r a n ­ ça tra z id a da capoeira e das t r a ­ dições africanas e afro -b rasilei­ ras, q uando a firm a que:

Os dois pontos de m aior reco nhecim ento d a c u ltu ­ r a b r a s i l e i r a no m u n d o são^ o futebol e a música, que não por acaso são os setores onde o B ra sil p e r ­ m itiu que a d iv e rs id a d e acontecesse de form a i n ­ te n sa, associando os v alo ­ re s e c u l t u r a s a fr ic a n a s com as o u tra s tr a z id a s da E u ro p a pelas m u ita s colô­ n ia s de im ig ran tes. A afirm ação de H. S an to s (2 0 0 1 ) faz a flo ra r o q u e s tio n a m e n to acerca dos o u ­ tros sab eres e fazeres desen vol­ vidos pelos negros, assim como as po ssibilidades de uso destes como o rien tad o res de ações p e ­ dagógicas, objetivando a a p r e n ­ dizagem significativa de c o n te ú ­ dos de m atem á tic a. As lógicas, as técnicas, as tecnologias de uso do corpo desenvolvidas n a s re s o lu ­ ções dos prob lem as podem con­ t r i b u i r p a r a a c o n s t r u ç ã o de id e n tid a d e s m a te m á tic a s b r a s i­ leiras, a p a r t i r d as m a n e ir a s de rela cio n ar o tem po e o espaço e u m a cosmovisão própria. N a E ducação M a tem ática, no artigo sobre e tn o m a te m á tic a e c u ltu r a negra, C osta & Silva (2005) a n a l is a r a m a existência de u m a lógica negra, de m a triz africana, n a form ação d a capoei-


r a de Angola, um in s tr u m e n to de defesa e a ta q u e constituído por u m in tr in c a d o jogo de p e rn a s , braços e m ov im en to s do corpo. No jogo, construções geom étricas e relações de tem p os e espaços objetivam confundir a m e n te do adversário, n a busca de um p o n ­ to frágil n a g u ard a do outro p ara, assim, poder aplicar o golpe cer­ teiro e d e s e q u ilib ran te —con sti­ tuindo um jogo c ere b ra l de nego­ ciação do espaço. E la tr a z u m for­ te acento d a relig io sidade, por meio da qual o uso do ‘‘C O R PO ” c o n s titu i o e le m e n to m a io r da expressão, pois toda a h e r a n ç a tra z id a das tradições africanas, n a d iá s p o r a do povo n eg ro no co ntin en te am ericano, teve nele o elem ento de expressão e r e s is ­ tência cultural. “Toda a religio­ sidade e c u ltu r a do povo negro no B ra sil se c a r a c te r iz a m pelo uso do corpo e de seus m o v im en ­ tos, seja pela dança, pela m ú s i­ ca, pela religiosidade, ou mesmo, pela lu ta .” (TAVARES, 1997, p. 216). Tom ando como exem plo o jogo dos bú zio s — c o m u n s n a s p rá tic a s cotidianas daqueles que a s s im ila ra m a religiosidade n e ­ g ra - p ercebem os b a s ic a m e n te u m a com posição de 16 contas, que são lançadas duas vezes p a ra cada resp o sta p rete n d id a. U m a d a s p o ssív eis l e i t u r a s do jogo es tá r e p re s e n ta d a pela co m bina­

ção dos búzios abertos com os fe­ chados (p ara cim a ou p a r a b a i­ xo) nos dois lançam en to s. Se d en otarm os por X o n ú ­ m ero de búzios fechados, tem os que X pode a s s u m ir os valores de 0 até 16, isto é,X = {0,1,2,3,...,16}. D essa forma, p a r a d e t e r m in a r ­ mos a probabilidade de aco n te­ cer cad a u m a destas co nfig ura­ ções, devemos observ ar que, ao la n ç a r os búzios, não se leva em c o n s id e ra ç ã o a o rd e m em que eles aparecem , e, como são l a n ­ çados todos jun tos, eles se to r ­ n a m in d e p en d en te s e n tre si. A s ­ sim, p a r a calcular a p ro b ab ilid a­ de de sair e x a ta m e n te um búzio fechado, devem os ad ic io n a r as probabilidades de todas as pos­ síveis disposições d e s ta configu­ ração e m ultiplicar a p ro bab ili­ d a d e dos r e s u l t a d o s em c a d a u m a das disposições, isto é:

P(X=1) = P(FAA...A) + P(AFA...A) + P(AAF...A) +...+P (AAA...F) = [P(F)P(A)P(A)...P(A)J + [P(F)P(A)P(A)... P(A)] +...+ [P(A)P(A)P(A)...P(F)]

- [qpp - p] + [pqp...p] +...+ [ppp...q]

= 16qpl5 Assim, P(X=0)= pl6, P(X=1)= 1Gap 15 P(X=r)= C16,r qrpl6r,..., P(X=15)= 16ql5pl, P(X=16)= q!6,


o n d e C 1 6 ,r é o n ú m e r o de c o m b in a ç õ e s de 16 e l e m e n t o s t o m a d o r a r. E m v a l o r e s n u m é r i c o s te m o s , e n t ã o , q u e c a d a b ú z io te m p r o b a b i l i d a d e p = l / 2 de e s t a r a b e r t o e q = (lp ) = l / 2 de e s t a r fe c h a d o . P(X = 0)= (1/2)16 = 0,000015 P(X = 1)= 16(1/2)16 = 0,000244 P(X = 2)= 120(1/2)16 = 0,001831 P(X = 3)=560(1/2)16 = 0,008545 P(X = 4)= 1820(1/2)16 = 0,027770 P(X = 5)= 4368(1/2)16 = 0,066650 P(X = 6)= 8008(1/2)16 = 0,122192 P(X = 7)= 11440(1/2)16 = 0,174560 P(X = 8)=12870(l/2) 16 = 0,196380 P(X = 9)= 11440(1/2)16 = 0,174560 P ( X = 10)= 8008(1/2)16 = 0,122192 P(X= 11)= 4368(1/2)16 = 0,066650 P ( X = 12)= 1820(1/2)16 = 0,027770 P ( X = 13)= 560(1/2)16 = 0,008545 P ( X = 14)= 120(1/2)16 = 0,001831 P ( X = 15)= 16(1/2)16 = 0,000244 P(X = 16)= (1/2)16 = 0,000015

E s s a f o r m u l a ç ã o n ã o se propõe ser o foco das an álises a serem rea liz a d a s aqui; o objeti­ vo não é d e ta lh a r as elaborações m a te m á tic a s e x is te n te s n e s s a s p ráticas, e m b o ra sejam n e c e s s á ­ rios estu d o s m ais d etalh ad o s so­ bre elas. O objetivo é en ten d ê-las como conhecim entos m a t e m á t i ­ cos que são c o n s titu in te s da r e ­ sistên cia c u ltu ral, que vêm s e n ­ do tr a n s m itid o s a tra v é s de g e ra ­ ções d en tro das instituiçõ es por p ro cesso s pedagógicos de b ase a n cestral, onde os mitos d a re li­ giosidade in te rfe re m n a c o n s tru ­ ção d a m a n e ir a p ró p ria de p e n ­ s a r as relações de tem po e e s p a ­ ço, p rin c ip a lm e n te pelo uso do “C O R PO ”. P e rc e b e r como esses p r o ­ cessos se constroem pode ser um g ra n d e desafio p a r a o e n t e n d i­ m en to de o u tr a s m a n e ir a s de li­ d a r com o p e n s a m e n to m a t e m á ­ tico n a sala de a u la e, assim, con­ tr i b u ir p a r a a re c o n s tru ç ã o da p o s tu r a do edu cad or m a te m á t i ­ co e p a r a a desconstrução do a l u ­ no ideal, tão d is ta n te d as g entes b rasileiras. C o n sid erar a r iq u e ­ za da p lu ra lid a d e de p e n s a m e n ­ tos, de c o m p o r t a m e n t o s e de crenças no processo educacional a fe ta rá p o sitiv am en te a c o n s tr u ­ ção d a a u to -e stim a do educando e o reencontro com as id e n tid a ­ des p rim e ira s, livres dos e s te r e -


ótipos que, nesses 500 anos, co­ locaram essas crianças o riu n d a s das m inorias n a condição de ci­ dadãos de te rc eira categoria. A seriedade e o respeito são e x p l i c i t a d o s p o r D ’A m b r o s io (2005, p. 80) n a afirm ação de que “a r e s p o n s a b ilid a d e m a io r dos teóricos da ed ucação é a l e r t a r p a r a os danos irreversív eis que se podem c a u s a r a u m a cu ltura, a um povo e a um indivíduo se o processo for conduzido le v ia n a ­ mente, m u ita s vezes até com boa in te n ç ã o ”. F u n d a m e n t a d o n a s reflexões a p re s e n ta d a s , entendo que os estudos desenvolvidos nas relações corpo e espaço n a busca da a p ren d izag em e de p rá tic a s m a te m á tic a s possam co n trib u ir de modo significativo, n ão so ­ m ente p a r a a a p ren d izag em das crianças negras, m a s da gran d e m aio ria dos educandos da escola pública, se e n te n d e rm o s que v a ­ lores das c u ltu r a s n e g ra s b r a s i­ leiras estão a m p la m e n te d ifu n ­ didos e incorporados ao co tidia­ no das populações pobres. E por e s ta s razõ e s que defendo a e tn o m a te m á tic a como possibili­ dade, não só pelo com prom isso com a seried ade e o rigor, mas, principalm ente, pelo respeito aos diferen tes n a construção de seus saberes e visão do mundo. A constatação de ta is pos­ sibilidad es p ro p o s ta s pelo p r o ­

g ra m a de e tn o m a te m á tic a face ao m a u d e s e m p e n h o dos educandos negros n a disciplina me levou a p e n s a r n a s f u n d a ­ m entações d esta p esq u isa a p a r ­ tir de trê s m om entos im p o r ta n ­ tes de inserção d as populações n e g ra s no contexto social b r a s i­ leiro, tendo como pano de fundo os p ro je to s ed u c a c io n a is adotados no B rasil colonial, B r a ­ sil do século XIX e ao longo do século XX e v isando , assim , a a n a l i s a r o u tr a s c irc u n s tâ n c ia s que possam rev elar indícios d e s­ se m a u d e s e m p e n h o dos educandos negros. 5. Referências bibliográficas

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(Footnotes) 1A lei 4024/61 é considerada como a prim eira lei de diretrizes e bases da educação brasileira. Um a curiosidade sobre ela é o fato de ter tram itado por um período de 13 anos no Congresso Nacional. - Fica aqui entendido que o term o “m inorias” e “m inoritários” faz referência às m inorias de repre­ sentação econôm ica e política. 3 Crioulo —termo usado no Brasil-colôma para designar os negros n asci­ dos em terras brasileiras.

Notas

1 M estre em Educação (M atem áti­ ca) pela U niversidade de São P au ­ lo, professor da Rede M unicipal de E nsino de São Paulo. Membro do Grupo de E studos e P esq u isas em E tnom atem ática da Faculdade de Educação da U niversidade de São Paulo (GEPEm) e do Grupo de E s­ tu d o s e P e s q u is a s em E tnom atem áticas N egras e Indíge­ n as da U n iv ersid a d e F ed era l do Mato Grosso (GEPENI). 2A le i 4024/61 é considerada como a primeira lei de diretrizes e bases da educação b r a s ile ir a . Uma curiosidade sobre ela é o fato de ter tram itado por um período de 13 anos no Congresso Nacional. 3 Fica aqui entendido que o termo “m inorias” e “m inoritários” faz referência às m inorias de repre­ sentação econômica e política. 4 Crioulo - term o usado no Brasilcolônia para designar os negros nascidos em terras brasileiras.


.ções afirmativas, educação e cidadaniauma ressigmficação de paradigmas

Luís Carlos Mello1 Rogério Oliveira de Aguiar2

Por preconceito de cor morrem todo dia mil. Há fome, há violência, descaso e impaciência. Há ódio a cada segundo, se afunda m ais esse m undo Se acha superior, magoa a mãe que é santa Bate na cara que é minha, homem m altrata criança Pecado de pecador, é preconcei­ to de cor.

(Margareth Menezes)

A importância da educação em nossa sociedade

Uma das principais finali­ dades de uma educação de qua­ lidade é formar cidadãos consci­ entes e participativos. Nisso con­ siste um dos papéis fundam en­ ta is de u m a edu cação libertadora3 e formadora de in ­ divíduos críticos/as, oferecendolhes condições para o seu desen­ volvimento pessoal e coletivo en­ quanto cidadãos e cidadãs cons­ cientes da sua im portância e compromisso na construção de um a sociedade mais justa. Pes­ soas capazes de buscar as possi­

bilidades de mudanças significa­ tivas, sendo protagonistas da sua própria história. Em uma socie­ dade em que o povo tem acesso a um a educação de qualidade, evi­ denciam-se constantes m udan­ ças no campo político, social, eco­ nômico e cultural. A desigualdade social não se mede apenas pelo fator fi­ nanceiro, mas também pela fal­ ta de oportunidades e condições de crescimento material, intelec­ tual, emocional e de oportunida­ des de exercer liderança. P ara se ter um a vida digna, vida digna, que cabe a qualquer cidadão e cidadã de um Estado Democrá­ tico e de Direito, é importante, acima de tudo, o respeito às ne­ cessidades mais básicas, como alimentação, acesso à saúde e educação, liberdade de expressão e culto, entre outros fatores. Não se pode considerar cidadão ou ci­ dadã a pessoa que tem negados esses direitos fu n d a m e n ta is1. Isso são marcas de um a desigual­ d ad e que c o n trib u i p a r a a marginalização e discriminação social.


P ara jovens que exercem um a p rá tic a profissional, na maior parte das vezes mal rem u­ nerada, com um a carga horária de no mínimo 40h semanais, res­ ta a opção de freqüentar o curso noturno. Muitos e m uitas não conseguem retornar aos respec­ tivos lares após o trabalho, des­ locando-se do trabalho direto para a escola. Estudar, mesmo após longas jornadas de trab a­ lho, algumas vezes sem se ali­ m en tar adeq uad am ente e em salas superlotadas, chegar após o horário e não encontrar lugar nem cadeira para se sentar, ter que sair mais cedo para conse­ guir embarcar no último ônibus de volta para casa, entre muitos outros problemas, reflete a rea­ lidade de grande parcela de jo­ vens das periferias dos grandes centros urbanos. O consumo e a venda de drogas ilícitas, a influência do tráfico na com unidade local, acrescido do crescimento da vio­ lência, entre outros fatores, são os principais a g rav a n te s que impedem essas pessoas de u su­ fruírem de um a vida digna e de uma maior inserção na socieda­ de enquanto cidadãos e cidadãs. Porém, em meio a esse caos em que estamos m ergulha­ dos e mergulhadas, existem al­ guns sinais de mudança em al­

gumas escolas da rede pública de ensino. Somos um a nação em constante desenvolvimento eco­ nômico, em constantes m udan­ ças. Isso deveria também se re­ fletir na educação e saúde públi­ cas. As escolas públicas que ob­ têm bons resultados nas avalia­ ções realizadas por órgãos gover­ namentais são exatamente aque­ las que possuem uma maior es­ tabilidade do corpo docente, pro­ gramas de reforço escolar e uma maior interação entre docentes, discentes, escola e comunidade local. No entanto, esses casos in ­ felizm ente ain d a con stitu em uma exceção5. Frente a essa realidade, podemos concluir que as condi­ ções de vida, o contexto, a falta de oportunidades e a herança histórica deixam marcas profun­ das de desigualdade e exclusão social. Os afro-descendentes e povos indígenas, entre outras etnias e pessoas marginalizadas, encontram-se nessa parcela da sociedade visivelmente prejudi­ cada pelo sistema vigente. Fal­ tam a esses grupos étnicos m ar­ ginalizados um a educação de qualidade e condições que favo­ reçam a ascensão social dos mes­ mos. Vivemos quase que num regime de castas, porém, cam u­ flado e tra v e stid o de um a


pseudodemocracia, na qual as oportunidades dependem quase que exclusivamente do grupo ét­ nico do qual se faz parte. Isso não se aplica apenas à educação, mas se estende ao campo profissional e à imagem das pessoas negras passada pela mídia. Políticas públicas afirmativas, urgentes e necessárias

As “ações afirmativas”6 normalmente são seguidas de po­ lêmicas e muitos debates. Exis­ tem pessoas que são a favor e outras que são contra. E cada grupo apresenta as suas explica­ ções, algumas plausíveis, outras nem tanto, para m ostrar a sua satisfação ou insatisfação com o assunto em pauta. Dentre as ações afirm a­ tivas, poucas g eraram tan tos debates como as cotas destinadas a afro-descendentes, indígenas e egressos da rede pública de en­ sino, com vista à universidade pública. Intelectuais, artistas, políticos e a população em geral dividem-se diante de argum en­ tos favoráveis e contrários a essa medida adotada por universida­ des federais, antecipando o que e stá previsto no E sta tu to da Igualdade Racial. E cle se adm i­ rar que quem protesta contra a implantação desse sistema de co­ tas use como principal argum en­

to o critério de mérito ou êxito. Por outro lado, outras pessoas afirm am que se tra ta de uma atitude “racista”, alegando que as cotas subestimam a capacida­ de do negro e da negra, que são tão capazes quanto pessoas bran­ cas. Essas e outras afirmações fazem com que alguns afro-descendentes fiquem em dúvida em relação à implantação desse sis­ tem a e, conseqüentemente, se­ jam constrangidos a acreditarem que através do sistema de cotas se tornam inferiores aos demais estudantes. São estratégias, uti­ lizadas com o intuito único de mais um a vez fechar “portas e janelas” para o povo negro, como tantas vezes já foi feito em epi­ sódios vergonhosos da nossa his­ tória enquanto povo brasileiro re­ conhecido por sua diversidade cultural e por sermos um país com uma invejável “democracia racial”. Em uma sociedade cada vez m ais in d iv id u a lis ta e etnocêntrica, é comum alguns grupos beneficiados fazerem o possível para m anter tudo como está. A regra é “sobreviva quem puder e conseguir”. Dizer que a implantação de cotas caracteri­ za um a atitude racista é exata­ mente fechar os olhos e favore­ cer a invisibilidade da realidade.


Atitudes ditas “racistas” são co­ metidas todos os dias na escola, no trabalho, na igreja, no bar, no clube, na rua e em todos os lo­ cais da sociedade onde as pesso­ as que compõem os grupos étni­ cos marginalizados, como afrodescendentes e indígenas, são impedidas de exercerem a sua cidadania de forma plena. Portanto, a condição afrobrasileira não passa apenas pelo esforço individual de buscar uma cidadania plena,' é necessário que haja políticas afirmativas, sim. Somente com um resgate da pessoa marginalizada enquanto ser hum ano, cidadão e cidadã brasileiros, será possível, então, um a reparação do grande mal causado a essas etnias num pas­ sado não tão distante. Observar a história de forma superficial ou, na maioria das vezes, nem analisá-la resul­ ta em julgam entos e opiniões equivocados. Pessoas afro-des­ cendente« realmente têm as mes­ mas capacidades intelectuais que uma pessoa de outra etnia. A capacidade, a inteligência e a determinação não passam pelo fator cor de pele, traços físicos ou identidade étnica. Porém, as con­ dições e oportunidades são influ­ enciadas de acordo com o grupo étnico a que cada pessoa é per­ tencente. O simples fato de ser

afro-descendente em uma socie­ dade como a nossa, onde o pre­ conceito é disfarçado, pode sig­ nificar ser discriminado sem nem mesmo perceber que isso está acontecendo de fato. As a titu d e s discriminatórias do cotidiano são rapidam ente esquecidas ou nem são percebidas por se tratar de algo “comum” e rotineiro. Acre* dita-se que o lugar do negro e da negra seja nos serviços subalter­ nos e mal remunerados. Não que­ remos com isso desvalorizar ou menosprezar qualquer função ou trabalho. Todas elas têm o seu valor e im portância para um a boa m anutenção da sociedade, ainda que seja questionável a re­ m uneração m u itas vezes não condizente com a jornada de tra ­ balho. Queremos chamar a aten­ ção para o fato de que a própria sociedade desestimula a busca de ascensão social por parte do povo negro. Isso é fruto de cultura exeludente que se estende ao lon­ go de muitos anos e em que, de­ vido à má educação que recebe­ mos, acabam os sim plesm ente re p ro d u z in d o conceitos discriminatórios sem ao menos levantarmos questionamentos. Tanto o povo negro quan­ to os povos indígenas almejam a valorização e reconhecimento da


con tribu ição d ad a por essas etnias para a construção desse país. Quando isso finalm ente acontecer, as opoi’tunidades po­ derão se equiparar e poderemos, então, falar em mérito e êxito. Não se trata de uma batalha en­ tre etnias e classes sociais; m ui­ to pelo contrário, aspiram -se oportunidades para todos e to­ das, in d e p e n d e n te m e n te da etnia, cultura ou credo. E essas condições realmente serão justas quando as pessoas se derem con­ ta dos fatores que conspiram con­ tra essa igualdade. O preconcei­ to, a d isc rim in a çã o e a vulnerabilidade social são ape­ nas algumas entre as inúm eras razões pelas quais essa desigual­ dade tem tomado proporções ab­ surdas. Oportunidades, justiça social e cidadania

O Estatuto da Igualda­ de Racial, de autoria do senador Paulo Paim, é considerado por muitos e m uitas a verdadeira carta de alforria. O Estatuto foi aprovado no Senado e aguarda aprovação na Câmara dos Depu­ tados. Existem expectativas de que seja aprovado em 2008, quando são comemorados os 120 anos da abolição da escravatura no Brasil - Abolição considera­ da parcial e incompleta.

O dia 20 de novembro foi instituído pela comunidade ne­ gra como um dia significativo para os negros e negras do B ra­ sil. Essa data expressa a luta por liberdade e a resistência à opres­ são! não foi um a data imposta pelo poder opressor. Por isso, é cham ada “Dia da Consciência Negra”. O próprio autor do pro­ jeto diz que vivemos uma falsa democracia racial, pois essa não é a realidade brasileira7. P ara a historiadora M aria Aparecida da Silva, o principal objetivo da ação afirmativa é o combate ao racismo e seus efei­ tos. “P ara que um program a de ações afirm ativas seja efetivo, oferecer oportunidades é apenas um dos primeiros passos.”8 As ações afirmativas devem promo­ ver a conscientização das pes­ soas, além de criar condições para que quem sofre preconceito e discriminação tenha a chance de se tornar o sujeito de suas próprias ações. Esse processo é gradativo e lento, mas, se feito com responsabilidade, os resul­ ta d o s se rã o c o n s is te n te s e satisfatórios. O pedagogo Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do oprimido, afirma que o oprimido deve libertar a si mesmo e ao opressor. A libertação constitui um processo coletivo9.


É impressionante o im ­ pacto que a adoção de cotas por algumas universidades públicas tem causado na classe média e alta do país. A mobilização de intelectuais, políticos e artistas é um sinal de que as cotas cons­ tituem um assunto de interesse de todos e todas. O mais im pres­ sionante é o fato de que, quando a educação de qualidade era res­ trita apenas aos filhos e filhas da classe dominante, poucas pesso­ as se manifestavam em prol de um a boa educação acessível à maioria. E stava tudo como os mais ricos gostariam que estives­ se. O povo negro pobre em seu “devido lugar”, segundo o pensa­ mento etnocêntrico da maioria, negando abertam ente o mito da “democracia racial” brasileira. A alegação de que existem pessoas negras que ingressaram na uni­ versidade sem o auxílio de cotas e que isso mostra ser desneces­ sário o uso de ações afirmativas mostra, nesse sentido, o quanto o povo brasileiro ainda nega o seu passado e a herança escravocrata legada pelos antepassados. Afir­ mam que basta, apenas, que a pessoa negra se esforce um pou­ co mais para obter êxito. A escritora gaúcha Lya Luft, que assina uma coluna na revista Veja, tem a concepção de que as cotas reforçam a idéia da

incapacidade de afro-descendentes. Também diz que jovens be­ neficiados com as cotas constitu­ em uma m assa de manobra para um governo populista e interes­ seiro, além de serem vítimas de desinformação e de um a visão estreita, e que isso os deixa em má posição. Em nenhum momen­ to foi lembrado ou mencionado o fato de que são jovens afro-descendentes que estão em má po­ sição devido às oportunidades negadas historicamente, através da discriminação e do preconcei­ to em relação à sua cultura, reli­ giosidade, arte, música e costu­ mes. Percebe-se uma intenção de inverter os papéis sociais. As vítimas do sistema agora passam a ocupar o lugar de usurpadores das vagas daquelas pessoas cujos pais e mães tiveram como inves­ tir mais. No seu artigo para a re­ vista Veja, a escritora expressa a sua insatisfação com o progra­ m a de cotas afirmando^ “Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no vestibular - só quem já teve filhos e netos nessa situa­ ção conhece o sacrifício, a disci­ plina. o estudo e os gastos impli­ cados nisso —são rejeitados em troca de quem se saiu menos


bem, mas é de origem africana ou vem de escola pública.”10 Frente a isso, contrapo­ mos alguns comentários feitos por Jurem ir Machado da Silva” , em sua coluna diária em um con­ ceituado jornal de Porto Alegre. Ele trata como ingenuidade ou hipocrisia a afirmação de algu­ mas pessoas de que vivemos em uma sociedade onde a desigual­ dade é meramente econômica e que não existe discriminação por etnia no Brasil. Ele atesta que, quando a exceção é tomada como regra, no caso da pequena p ar­ cela de afro-descendentes que conseguem ingressar nas univer­ sidades públicas, isso é irrespon­ sável e inconseqüente. O mérito não escolhe necessariamente os mais inteligentes, mas os mais preparados. O pressuposto de que os “m elhores” devem ter preferência é falacioso. A questão é: por que eles são os “melhores”? Por que são natu ralm en te mais inteligentes? Por que n e c e ssa ria m e n te tra b a lh a ra m mais? O que significa ser m e ­ lhor? Em linhas gerais os melhores são aqueles

que tiveram melhores oportunidades de prepa­ ração ao longo de toda a infância e adolescência. Ou seja, no caso da soci­ edade brasileira profun­ dam ente hierarquizada e desigual, os brancos mais aquinhoados. Para usar o vocabulário libe­ ral, não há igualdade de oportunidades. A idéia de mérito, nesse tipo de situação, acaba por re­ produzir a desigualdade social existente.12 Acreditamos que a soci­ edade brasileira tenha negado os direitos de cidadãos e cidadãs ao povo negro durante séculos de história mal contada e, quando chega o momento em que esse trágico episódio da nossa histó­ ria pode ser revisto e os seus da­ nos amenizados, a sociedade do­ minante vira as costas novamen­ te. Aqueles grupos que estão no topo da pirâmide social se negam a rever seus conceitos e posições, optam por deixar tudo como está. Os pobres ficam cada vez mais pobres, enquanto que os ricos cada vez mais cheios de privilé­ gios e oportunidades. Essa desi­ gualdade comprova que somos um país de cultura escravocrata


que isso está enraizado na nossa Referências sociedade e na mentalidade das APPLE, Michael W. Política cul­ pessoas. tu ra l e educação. São Paulo: Um dos caminhos para Cortez, 2000. realizar mudanças significativas B LA N Q U ER , Jean -M ich el; nesse contexto, impregnado de TRINDADE, Hélgio. Os desafi­ preconceitos e etnocentrism os os da educação na América La­ exacerbados, é uma educação de tina. Petrópolis: Vozes, 2002. qualidade voltada especialmen­ CARVALHO, José Murilo de. Ci­ te para uma cultura de respeito dadania no Brasib o longo cami­ à pluralidade e à diversidade. Es­ nho. Rio de Janeiro: Civilização peram os que a implementação Brasileira, 2002. da Lei 10.639/03, que prevê o CASTILHO, Alceu L.; CAS­ ensino da história e cultura afro- TRO, Fábio. A m arca da brasileira e indígena no currícu­ desigualdade. Revista E du­ lo das escolas públicas e priva­ cação, ano 10, n. 110, 2004. das, possa render “bons frutos” p. 42-52, a longo e médio prazo. As crian­ CHOMSKY, N oam ; ças e jovens terão a oportunida­ DIETERICH, Heinz. A socieda­ de de estudar e conhecer a reali­ de global, educação, mercado e dade, a cultura, os costumes e a democracia. Blum enau: Editora história dos afro-descendentes da FURB, 1999. brasileiros, podendo desenvolver DEMO, Pedro. Desafios moder­ uma mentalidade e ideologia di­ nos da educação. Petrópolis: Vo­ ferente dessas já enraizadas nas zes, 1993. cabeças de jovens e adultos atu ­ DUSSEL, Enrique. Ética comu­ almente. A mudança é possível n itá r ia lib e rta o pobre. através da reflexão, do bom sen­ Petrópolis: Vozes, 1986. so e da ética. Esta última nem ESPERANDIO, Mary R. G. Póssempre está presente quando in­ m o d ernid ad e. São Leopoldo: teresses pessoais são colocados Sinodal, 2007. em jogo e surge a ameaça de rom­ FAVERO, Osmar; SEMERANO, per com o monopólio educacional Giovanni (orgs.). Democracia e existente no Brasil. construção do público no pensa­ m ento educacional brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2002.


GENTILI, Pablo (org.). Pedago­ gia da exclusão. Petrópolis: Vo­ zes, 1995. HERKENHOFF, João Baptista. Ética, educação e cidadania. Por­ to Alegre: Livraria do Advogado, 1996. IMBERNON, F. (org.). A educa­ ção no séc. XXP os desafios do mundo imediato. Porto Alegre: Artmed, 1999. LUFT, Lya. Ponto de vista. Veja, p. 21 , 06 fev. 2008. NORDSTOKKE, Kjell. Diaconia: fé em ação. São Leopoldo: Sinodal, 1998. REICHERT, Luciana. Em busca da igualdade. Novolhar, ano 6, n. 21, p. 24-25, mai./jun. 2008. SILVA, Jurem ir M. da. Jornal Correio do Povo, p.4 , 02 fev. 2008. SILVA, M aria A parecid a da. Ações afirm ativas p ara o povo negro no Brasil. In: Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, 2002 . (Footnotes) 1Para João B. Herkenhoff, a edu­ cação libertadora deve levar em conta as contribuições do educan­ do. A experiência cotidiana é im ­ portante no processo de apren­ dizagem. Deve-se recusar a idéia de que o educador sabe tudo.

Essa é uma reflexão baseada no educador Paulo Freire, que designa isso como um a edu­ cação bancária, quando existe o imaginário de que o/a estudante não tem nada a contribuir, ape­ nas a aprender. Isso é negar o/a outro/a como sujeito/a, como pes­ soa e como cidadão/ã, impedindo a su a p articip ação . H E R K E ­ NHOFF, João Baptista. Ética, educação e cidadania. Porto Alegre: Livraria do Advo­ gado, 1996. 2 Segundo o artigo XXV da De­ claração Universal dos Direitos Humanos: Toda pessoa tem di­ reito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive ali­ mentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços so­ ciais indispensáveis, e direito a segurança em caso de desempre­ go, doença, invalidez, viuvez, ve­ lhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em cir­ cunstâncias fora do seu contro­ le. 3 Os repórteres sociais Alceu Luis Castilho e Fábio de Castro trazem um a reflexão sobre a si­ tuação dos estudantes do ensino noturno em escolas públicas da periferia dos grandes centros u rb a n o s, q u e stõ e s u rb a n o s.


Questões como violência, tráfico de drogas e assédio sexual são fatores d eterm in an tes p ara a evasão escolar. Dificuldades de aprendizagem em conseqüência de longas jornadas de trabalho, entre outros problemas, são abor­ dadas nessa m atéria sob o titulo de “A marca da desigualdade”. Revista Educação, ano 10, n. 110, p. 42-52, 2004 Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determ inadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de elim inar desigualdades historicam ente acumuladas, garantindo a igual­ dade de oportunidades e tra ta ­ mento, bem como de compensar perdas provocadas pela discrimi­ nação e marginalização, decor­ rentes de motivos raciais, étni­ cos, religiosos, de gênero e ou­ tros. Portanto, as ações afirm a­ tivas visam a combater os efei­ tos acumulados das discrimina­ ções ocorridas no passado. 5 REICHERT, Luciana. Em busca da igualdade. Novolhar, ano 6, n. 21, p. 24‘25, maio/jun. 2008. 6 SILVA, Maria Aparecida da. Ações afirmativas para o povo negro no Brasil.

In : Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, 2002. 7 NORDSTOKKE, Kjell. Diaconia: fé em ação. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 63. 8 Trecho extraído de LUFT, Lya. Ponto de vista. Veja, 06 fev. 2008, p. 21.® E doutor em Sociologia pela U ni­ versidade de Paris V René Des­ cartes. Em Paris, de 1993 a 1995 , foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, é profes­ sor do curso de Jornalism o da Faculdade de Comunicação So­ cial da PUC-RS e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma univer­ sidade. Também assina uma co­ luna seis vezes por semana (de quinta a terça-feira) no jornal Correio do Povo de Porto Alegre/ RS. 10 SILVA, Jurem ir M. da. Correio do Povo, 02 fev. 2008, p. 04. Nota 1Músico e Bacharel em Teologia pela Faculdades EST em São LeopoldoRS, integrante do Grupo de Pesqui­ sa Identidade. Desenvolve pesquisas


na área da Música B rasileira e A fricanidade na Bíblia, e-maiP luisctmello2000@yahoo.com.br 2 Acadêmico do Curso de Bachare­ lado em Teologia com ênfase em Diaconia na Faculdades EST, em São Leopoldo-RS, integrante do Grupo de Pesquisa Identidade. De­ senvolve pesquisas nas áreas: His­ tória e cu ltu ra afro -brasileira, Diaconia e homossexualidade. e­ mail: roaguiar2005@yahoo.com.br 3 Para João B. Herkenhoff, a educa­ ção libertadora deve levar em conta as contribuições do educando. A ex­ periência cotidiana é importante no processo de aprendizagem. Deve-se recusar a idéia de que o educador sabe tudo. Essa é uma reflexão ba­ seada no educador Paulo Freire, que designa isso como uma educação bancária, quando existe o imaginá­ rio de que o/a estudante não tem nada a contribuir, apenas a apren­ der. Isso é negar o/a outro/a como sujeito/a, como pessoa e como cida­ dão/ã, impedindo a sua participação. HERKENHOFF, João Baptista. Éti­ ca, educação e cidadania. Porto Alegre^ Livraria do Advogado, 1996. 4 Segundo o artigo XXV da Declara­ ção Universal dos Direitos H um a­ nos : Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-es­ tar, inclusive alimentação, vestuá­ rio, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito a segurança em caso de de­

semprego,. doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circuns­ tâncias fora do seu controle. 5 Os repórteres sociais Alceu Luis Castilho e Fábio de Castro trazem uma reflexão sobre a situação dos estudantes do ensino noturno em escolas públicas da periferia dos grandes centros urbanos, questões urbanos. Questões como violência, tráfico de drogas e assédio sexual são fatores determ inantes para a evasão escolar. Dificuldades de aprendizagem em conseqüência de longas jornadas de trabalho, entre outros problemas, são abordadas nessa m atéria sob o titulo de “A marca da desigualdade”. Revista Educação, ano 10, n. 110, p. 42_52, 2004 . 6Ações afirmativas são medidas es­ peciais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontâ­ nea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garan­ tindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compen­ sar perdas provocadas pela discri­ minação e marginalização, decor­ rentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. Por­ tanto, as ações afirmativas visam a combater os efeitos acumulados das discriminações ocorridas no passa­ do.


I REICHERT, Luciana. Em busca da igualdade. Novolhar, ano 6, n. 21, p. 24'25, maio/jun. 2008. 8 SILVA, Maria Aparecida da. Ações afirmativas para o povo negro no Brasil. In: Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, 2002

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9 NORDSTOKKE, Kjell. Diaconia: fé em ação. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 63. 10 Trecho extraído de LUFT, Lya. Ponto de vista. Veja, 06 fev. 2008, p.

21.

II É doutor em Sociologia pela U niversidade de P aris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, é professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUC-RS e coordenador do Program a de Pós-Graduação em Comunicação da m esm a univer­ sidade. Também assina uma coluna seis vezes por semana (de quinta a terça-feira) no jornal Correio do Povo de Porto Alegre/RS. 12 SILVA, Jurem ir M. da. Correio do Povo, 02 fev. 2008, p. 04.


Aconteceu em 2008. I JORNADA ECUMÊNICA SUL Diversidade e Convivência: Sonho Ecumênico Com os objetivos de prom over a troca de experiências entre m ovim entos e entidades ecum ênicas da região Sul do Brasil, fortalecer as redes de solidariedade e cooperação entre igrejas, organizações e m ovim entos ecum ênicos é que acontecerá a IJO R N A D A E C U M Ê N IC A O SUL. O tem a é “D iversidade e Convivência: Sonho E cum ênico” . A jornada contará com palestras e oficinas sobre os eixos tem áticos abaixo, que serão abordados nas perspectivas bíblica, teológica e sociológica: • • • • • • •

Justiça e Paz; Gênero; M eio Am biente; Inclusão; Raça e Etnia; Juventude; D iversidade Religiosa

H averá tam bém um a Feira da D iversidade, onde serão apresentados mais de 30 trabalhos e projetos realizados entre os três estados da região Sul e tam bém dois projetos de países da A m érica Latina. As vagas são limitadas, e as inscrições estarão abertas até o final de A gosto/08 no site w w w .ceca-rs.org.

DAI A: 07 a 09 de novem bro de 2008. LOCAL: Recanto da P a z -J o in v ille -S a n ta C atarina PROM OÇÃO: CEA M IG - Centro de A tendim ento ao Imigrante; CECA - Centro Ecum ênico de C apacitação e Assessoria; ITESC - Instituto Teológico de Santa Catarina; M OV EC - M ovimento Ecum ênico de Curitiba


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