Não me Desampares - Acompanhamento a Pacientes Terminais

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Apresentação

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Introdução

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Unidade I – Perceber

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Lucas 24.13-35

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O índio e o grilo

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Uma lenda de um bosque da Suécia

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Quando uma pessoa é considerada “paciente terminal”

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Unidade II – Acompanhar

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Regras de diálogo em grupo

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O caminho sobre a ponte

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Poimênica no discipulado de Jesus

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Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados

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As fases do morrer segundo Elisabeth Kübler-Ross

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Situações difíceis no acompanhamento de pacientes terminais

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Por tua mão me guia

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Unidade III – Ouvir

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Sugestões para um diálogo bem-sucedido

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A audição ativa

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Os quatro níveis de uma mensagem

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Nossos quatro ouvidos

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Descobrindo os diferentes níveis de uma mensagem

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Os quatro níveis de uma mensagem segundo o ouvido do receptor

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Os desejos de um moribundo

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Unidade IV – Compreender

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Carta de um estudante desconhecido

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A linguagem de um paciente terminal

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A verbalização de sentimentos

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Folha de exercícios – respostas significativas

47


Unidade V – Prosseguir

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Uma antiga fábula

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Condições e consequências da assistência a doentes e idosos

49

Sugestão para o aprofundamento da assistência

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Unidade VI – Permanecer

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A pessoa idosa e sua morte

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A função terapêutica dos ritos crepusculares

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Preparo espiritual para a morte – auxílios litúrgicos

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Unidade VII – Soltar

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Soltar – Isaías 43.18

72

Aprender a morrer – aprender a viver

73

Silenciar – um exercício espiritual

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Exercício preparatório para a contemplação

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O Jejum

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Oração por serenidade

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Unidade VIII – Levantar

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Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados (II)

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Onde estão os mortos?

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Um sermão sobre a preparação para a morte

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A morte e o morrer na Bíblia

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A esperança cristã nos horizontes da atualidade

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Introdução “Nenhuma obra de misericórdia é maior do a de acompanhar pacientes terminais em suas necessidades físicas, emocionais e espirituais”. Este dito milenar resume muito bem a prática da igreja cristã em acompanhar seus doentes e moribundos nos últimos passos de sua jornada terrena.

Trata-se do amor ao próximo em uma de suas formas mais elevadas. Jesus o relacionou nas obras de misericórdia: “estive enfermo e me visitastes” (Mateus 25.36). O apóstolo Paulo referindo-se à solidariedade e responsabilidade mútua dos cristãos em caso de enfermidade, disse: “se um membro sofre, todos sofrem com ele” (1 Co 12.26). O cuidado de pacientes terminais, portanto, diz respeito a todos. É verdade que, em grande medida, o morrer acontece em hospitais e em asilos. No entanto, o morrer com dignidade pressupõe, além do atendimento competente dos profissionais da saúde, a solidariedade e o acompanhamento misericordioso de familiares, vizinhos/as, amigos/as, voluntários/as, sacerdotes, pastores/as nesta última etapa da vida. Não raro, este acompanhamento representa sobrecarga física e emocional. Em geral não estamos preparados para lidar com a morte iminente de uma pessoa próxima e querida. O presente projeto intitulado “Não me desampares quando me faltarem as forças” (Salmo 71.9b) visa capacitar pessoas interessadas na tarefa de acompanhar pacientes terminais. Sua metodologia e estrutura baseia-se no cuidado de Jesus que observamos na caminhada a Emaús (Lucas 24.13-35). Os passos são os seguintes: perceber, acompanhar, ouvir, compreender, prosseguir, permanecer, soltar, levantar.

Somos gratos à VELKD – Vereinigte Evangelische Lutherische Kirche Deutschlands (União das Igrejas Evangélicas Luteranas da Alemanha) que cedeu à IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil parcialmente os direitos da versão brasileira do projeto original “Sterbende begleiten” (acompanhamento a moribundos). Agradecemos, igualmente, a Elfi Euen e a Ulricke Wemhöner, profissionais da área de supervisão e diaconia das Instituições Diaconais de Bethel, Alemanha. Em 2001, elas realizaram o primeiro treinamento do projeto “Sterbende begleiten” no Brasil, que resultou na decisão de adaptar o projeto. Os trabalhos de adaptação à realidade brasileira e a multiplicação do projeto estão a cargo do Departamento de Diaconia da IECLB e da Assessoria de Formação do Sínodo Vale do Itajaí. Nos trabalhos de adaptação colaboraram Sinara Berner, Hildegart Mathies, Mariane Beyer Ehrat, Odair Braun, Bruno Gottwald, Hugo Westphal e Paulo Butzke. Agradecemos à Editora Sinodal e à Escola Superior de Teologia que nos concederam o direito de utilizar artigos teológicos sobre o assunto escritos por teólogos brasileiros. O material que está em suas mãos destina-se ao uso interno nos treinamentos de voluntários/as no acompanhamento a pacientes terminais. Os treinamentos constam de dinâmicas, meditações que visam confrontar os/as voluntários/as com a situação do paciente terminal e, ao mesmo tempo, com a realidade de sua própria morte. O rico material desta apostila é, portanto, complemento teórico visando o aprofundamento dos/as voluntários/as no contexto dos treinamentos do projeto. Rogamos a Deus que ela seja uma bênção para os pacientes terminais, seus familiares, os/as voluntários/as, profissionais da saúde, obreiros/as da IECLB e de igrejas irmãs. Paulo Afonso Butzke

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Unidade I – Perceber A introdução deste curso baseia-se na passagem de Lucas 24.13-35, a qual relata a triste caminhada de dois homens para a cidade de Emaús. Jesus havia sido crucificado há poucos dias. Os dois homens pertencem ao grupo dos seus seguidores. Eles haviam posto toda a sua esperança em Jesus. Consideravam-no o Messias prometido. Agora, esta esperança parece ter se dissipado.

Leia esta história duas vezes. Na primeira, preste atenção especial nos dois discípulos. Você consegue colocar-se no lugar desses homens e perceber seus sentimentos? Experimente perceber como os sentimentos vão mudando no decorrer da caminhada. Você conhece tais sentimentos e transformações? Você recorda de processos de luto em sua própria vida, e como a tristeza se transformou no decorrer do tempo? Em qual fase da história você consegue melhor se projetar? Com o que você tem mais dificuldade? Porque a mensagem das mulheres não conseguiu tirar aqueles homens de sua depressão? Na segunda leitura, preste atenção especial em Jesus. Observe atentamente o que ele faz. Procure entender seu comportamento. Por que ele pergunta aos dois caminhantes sobre aquilo que ele já sabe? Por que ele explica as Sagradas Escrituras? Por que fez menção de seguir caminho, mas depois permaneceu com eles? Por que desapareceu diante dos seus olhos? Qual atitude de Jesus lhe teria ajudado num momento de luto e desespero? Em qual passo da atuação de Jesus Cristo você teria dificuldades?

O texto Lucas 24. 13-35 13 Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios. 14 E iam conversando a respeito de todas as coisas sucedidas. 15 Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles. 16 Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer. 17 Então, lhes perguntou Jesus: Que é isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais? E eles pararam entristecidos. 18 Um, porém, chamado Cleópas, respondeu, dizendo: És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias? 19 Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo, 20 e como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram.

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21 Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais coisas sucederam. 22 É verdade também que algumas mulheres, das que conosco estavam, nos surpreenderam, tendo ido de madrugada ao túmulo; 23 e, não achando o corpo de Jesus, voltaram dizendo terem tido uma visão de anjos, os quais afirmam que ele vive. 24 De fato, alguns dos nossos foram ao sepulcro e verificaram a exatidão do que disseram as mulheres; mas não o viram. 25 Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! 26 Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? 27 E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras. 28 Quando se aproximavam da aldeia para onde iam, fez ele menção de passar adiante. 29 Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou para ficar com eles. 30 E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendoo partido, lhes deu; 31 então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. 32 E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras? 33 E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles, 34 os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão! 35 Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.

O primeiro passo: perceber Na história do Caminho para Emaús, primeiramente podemos ver que Jesus percebe que ali estavam duas pessoas que precisavam de acompanhamento e consolo. Ele sente que necessitavam dele e que por suas próprias forças eles não conseguiriam libertar-se de sua depressão. Perceber é condição prévia para a autenticidade de qualquer encontro. Quando eu não consigo perceber a mim mesmo, também não sou capaz de aceitar o outro. Se eu não consigo perceber as outras pessoas, também não posso acompanhá-las. Do contrário, corro o risco de lhe dar

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bons conselhos ou fazer tudo aquilo que me aconselharam fazer em uma situação semelhante. Isto pode não ser apropriado para a outra pessoa se ela for diferente de mim. Para perceber o outro, eu necessito desenvolver minha capacidade de aceitação e percepção. É possível exercitá-la em qualquer passeio no parque. Eu tento, por exemplo, ver conscientemente. Paro em frente a uma árvore e tomo o tempo necessário para contemplar uma única folha. Eu não preciso emitir um julgamento, eu apenas quero ver. Ou então eu paro para ouvir e tento perceber os diversos ruídos: o canto dos pássaros, o sussurro do vento, o ruído do trânsito. Dessa maneira, eu posso aperfeiçoar todos os meus sentidos: o que vejo, ouço, cheiro, degusto e sinto? Auto-percepção é a capacidade de admitir meus próprios sentimentos. Como eu me porto quando estou triste ou desanimado; quando estou feliz e tranquilo, quando me sinto só e tenho medo? Eu preciso reconhecer como reajo aos meus próprios sentimentos. Eu posso perceber minha dor e tristeza? Posso me alegrar? Em qual situação posso rir ou chorar? Eu percebo as pessoas ao meu redor? Será que eu sei como estão minha família, meus amigos e vizinhos? Como eu posso mais precisamente perceber os outros sem projetar neles os meus próprios sentimentos e emoções? Na primeira unidade deste curso, os participantes devem conhecer-se e aceitar-se mutuamente. Que experiências tiveram com doentes graves e moribundos? Com isso devem aperceber-se dos modelos que guiam sua percepção. A percepção é determinada sobretudo por modelos. Percepção é algo como reconhecer, perceber algo que já vivi anteriormente e carrego comigo. Estes modelos de comportamento me ajudam a ordenar coisas desconhecidas, mas também são perigosos. Modelos de percepção podem levar a projeções. Isto quer dizer que em vez de perceber os outros e seus sentimentos eu tomo como verdadeiro aquilo que eles me trouxeram a tona, isto é, os meus sentimentos. O primeiro passo para recusar esta projeção consiste em que eu tenha consciência disso. Observe por um momento as duas figuras. O que você vê?

Figura 1

figura 2

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O que você viu primeiro na figura 1: o vaso ou os dois rostos? E na figura 2, o que você viu primeiro: o rosto de uma elegante senhorita com a metade do rosto encoberto, ou uma senhora idosa com um nariz torto? 1 Isto é só um bom exemplo de como uma mesma figura pode ser interpretada de diversas maneiras. Nossa capacidade de percepção está atualmente prejudicada pela avalanche de estímulos que recebemos. O ruído perpétuo do trânsito, os meios de comunicação, a música muito alta e a grande quantidade de imagens fazem com que as coisas pouco vistosas passem desapercebidas – já não percebemos mais os detalhes.

O índio e o grilo Um índio estava visitando um homem branco, numa cidade populosa e com muito ruído de carros. Tudo era novo e tentador para ele. Os dois caminhavam estrada afora. Num determinado momento, o índio bate no ombro do amigo e diz em voz baixa: “Você também está ouvindo” Ao que o amigo responde: “Tudo que eu escuto é a buzina dos carros e o barulho dos ônibus”. O índio então disse: “Eu ouço aqui por perto um grilo cantando”. “Você deve estar enganado, aqui não existem grilos. E mesmo se existissem, neste barulho não seria possível ouvir”. O índio caminhou alguns passos e parou diante do muro de uma casa. A folhagem cobria o muro. Ele afastou as folhas e lá realmente havia um grilo. O branco disse: “Índios ouvem melhor que os brancos”. O índio retrucou: “Você está enganado, eu vou lhe provar”. Ele jogou uma moeda de cinqüenta centavos sobre a calçada. Ela tilintou sobre o asfalto e as pessoas que passavam a vários metros perceberam o ruído e se voltaram para ver. “Você viu?”, disse o índio. “O barulho que a moeda fez não era mais alto do que o grilo e, assim mesmo, muitos brancos ouviram”. O segredo está aí. Todos ouvem bem e estão atentos, de acordo com o que estão acostumados a ouvir. 2

A história que segue mostra o quanto a minha percepção é definida a partir do que eu já conheço, portanto, a partir dos meus modelos:

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As figuras foram extraídas de: ANTONS, Klaus. Praxis der Gruppendynamik. Übungen und Techniken. Göttingen: Hogrefe, 1976. p. 48-50. 2 Extraído de: FEIGE, Joachim; SPENNHOFF, Renate (org.), Wege entdecken, Biblische Texte, Gebet und Betrachtungen. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1990. p. 146.

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Uma lenda de um bosque da Suécia Num belo dia de verão, por volta do meio dia, havia se instalado um grande silêncio no bosque. As aves descansavam e escondiam sua cabeça por debaixo das asas. Tudo estava calmo e descansava. Então o tentilhão 3 esticou sua cabeça para frente e perguntou: “O que é a vida?”

Todos ficaram surpresos com esta pergunta. Uma roseira estava desabrochando um belo botão de rosas. Cuidadosamente, empurrava uma pétala atrás da outra para fora. Então, falou: “A vida é um desenvolvimento”. Ali próximo também estava uma borboleta. Alegre, ela voava de uma flor para a outra, sentindo o perfume das mesmas. Ao parar, falou: “A vida é pura alegria e um belo brilhar do sol”. Por debaixo da roseira uma formiga se deslocava, carregando um pedaço de palha dez vezes maior do que ela própria. A formiga então falou: “A vida nada mais é do que trabalho e fadiga”. Uma abelha retornava de modo radiante de uma flor cheia de néctar e ouvindo aqueles conceitos disse: “A vida é um constante alternar entre trabalho e diversão”. Em meio ao dialogo, a toupeira esticou a sua cabeça para fora da terra e falou: “A vida é uma luta no escuro”. Um chopim, que nada mais sabe e que só vive debochando e usando os outros, disse: “Que sábio este diálogo! Quase dá para acreditar que vocês são sensatos e inteligentes”... E certamente teria ocorrido uma grande briga se, naquele momento, uma fina chuva não tivesse começado a cair, dizendo: “A vida é feita de lágrimas, nada mais do que lágrimas”. E então se deslocou para o mar. Lá, de modo agitado, lançou-se com toda a força contra as pedras e ao mar, afirmando: “A vida é uma constante e inútil luta por liberdade”. Acima de todos estes que dialogavam e de modo majestoso, uma águia voava e exultava: “A vida é uma constante ambição de subir às alturas”. Não muito distante dali estava um salgueiro que já havia se inclinado com a tempestade. Ele falou: “A vida é um inclinar-se para uma força maior”. Então veio a noite. Uma grande coruja voou silenciosamente por entre os galhos das árvores e gritou: “A vida é aproveitar a oportunidade enquanto os outros dormem”. Certamente se fez então um grande silêncio no bosque. 4 Você conhece bem os seus padrões de percepção? Há aspectos de sua vida que você recorda constantemente ou que lhe incomodam muito? O que lhe causa alegria? Tente identificar seus próprios modelos de percepção. Lembre-se de que isto exige muito treinamento. A partir de quando uma pessoa toma como verdadeira a possibilidade da morte? Quando os outros dizem que “alguém está diante da morte”? De certo modo, desde o dia do nosso nascimento começamos a morrer. Experimente descrever com suas próprias palavras quando você designa uma pessoa como paciente terminal? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 3

Pássaro de pequeno porte da Europa, de coloração viva e de canto afável. Extraído de: Landesvorstand der Kath. Landjugend e.v. Werkbrief für die Landjugend. Munique: Kath.Landjugend, 1977. 4

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Emil A. Herzig5 descreveu o conceito de morte da seguinte forma:

Quando uma pessoa é considerada “paciente terminal”? Falamos de pessoas terminais quando alguém é atingido por uma grave doença ou por um trágico acidente. Em poucos casos, o estado dos pacientes pode ser claramente definido e diagnosticado. Na maioria das vezes, o estado do paciente terminal depende de fatores distintos. Além de seu estado físico, têm influência sobre ele: a) A atitude consciente ou inconsciente do paciente terminal para com o sofrimento e a morte (seus medos, sua disposição, sua vontade de viver); b) A atitude consciente ou inconsciente dos familiares (sua disposição de deixar partir o moribundo, seu próprio posicionamento frente ao sofrimento e o morrer); c) O ambiente à sua volta (agitação, desconfiança, isolamento). Estas influências são difíceis de serem definidas, mas são de grande significado. Com isto, o estado de um paciente terminal jamais pode ser definido com clareza objetiva. Seu estado localiza-se entre os pólos: diagnóstico claro e definido

diagnóstico vago

inequivocamente irreversível

persistentemente duvidoso

com visível rapidez

gradualmente e quase invisível. Diminuição da força vital

Portanto, entendemos por paciente terminal: • não somente aquele paciente definido pela medicina como terminal; mas todo paciente que, subjetivamente, sente-se no fim da vida, mesmo que a medicina ainda lhe conceda possibilidades; • não somente aquele que se encontra em agonia de morte; mas também aquele paciente portador de uma doença crônica e irreversível e que, por meio de cuidados intensivos, é acompanhado em sua caminhada em direção à morte.

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HERZIG, Emil. Betreung Sterbender, Beiträge zur Begleitung Sterbender im Krankenhaus. In: EBERT, Andreas; GODZIK, Peter (org.). Verlass mich nicht, wenn ich schwach werde. Hamburg: EBVerlag Rissen, 1993. p.25-26.

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Unidade II – Acompanhar

Na história de Emaús (Lucas 24,13-35), lemos: “Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles”. Faz muito bem quando, numa situação difícil, alguém sinaliza: “Eu estou contigo, eu te acompanho no teu caminho”. As pessoas necessitam de atenção, serem levadas a sério, especialmente em momentos de luto e sofrimento. Nós muitas vezes temos medo que as pessoas possam se afastar se as “importunarmos” com o nosso sofrimento. Por isso, preferimos esconder a tristeza e o sofrimento. Ao mesmo tempo, esperamos que aquele que percebe o nosso sofrimento não se assuste ou tenha medo, nem que se sinta exigido ou simplesmente se afaste, mas que suporte e caminhe conosco. “Quando me faltarem as forças, não me desampares” - é o título deste livro. Este pedido do Salmo 71 está contido na oração de uma pessoa idosa. Dirige-se primeiramente a Deus. A presença de Deus, porém, geralmente é intermediada pela proximidade de uma outra pessoa. Em sua luta com a morte no Jardim Getsêmani, Jesus ansiava pela proximidade de seus discípulos, esperando que o acompanhassem em sua vigília e em seu sofrimento. O medo da solidão não é motivo de vergonha. Nada pode fortificar mais a fé do que a certeza de que Deus está, de fato, presente, do que a experiência de poder contar com a solidariedade de alguém num momento de necessidade.

Muitas pessoas ainda crianças passaram pela experiência de serem abandonadas pelos pais. Outros, ao longo de suas vidas, sofrem perdas e passam por separações. Houve tempos em que pacientes terminais praticamente eram “depositados” nos hospitais para lá morrerem. O Deus da Bíblia, porém, diz: “Não é bom que o homem esteja só ...” Esta frase não se refere apenas à união conjugal. Ela é uma afirmação bíblica fundamental sobre o ser humano. O Deus da Bíblia é um Deus da comunhão, que deseja relacionamento, proximidade e amor. Javé, o Deus do Antigo Testamento, é um Deus que caminha junto: “Eu serei contigo”, diz Ele a Moisés e a muitos dos seus profetas. Criados à imagem de Deus, fomos criados para a comunhão, para o caminhar juntos. Por isso, não existe dor maior do que ficar sozinho. Acompanhar alguém no caminho da morte significa resgatar a dignidade de uma pessoa criada à imagem de Deus. Madre Teresa de Calcutá e suas irmãs, nas casas para doentes terminais, sentiam como tarefa maior de suas vidas possibilitar que, pelo menos no leito da morte, pessoas pudessem se sentir amadas. Geralmente este acompanhamento dá-se sem palavras. Palavras mal formuladas, simplesmente porque o acompanhante não suporta o silêncio nem consegue apenas estar presente, podem tornar-se oportunidades perdidas. No Antigo Testamento, encontramos a história de Jó que perdeu tudo e que acaba só e doente em meio ao pó. Seus amigos vêm para consolá-lo: “Ouvindo, pois, três amigos de Jó todo este mal que lhe sobreviera, chegaram, (...) combinaram ir juntamente condoer-se dele e consolá-lo. Levantando eles de longe os olhos e não o reconhecendo, ergueram a voz e choraram; e cada um, rasgando o seu manto, lançava pó ao ar sobre a cabeça. Sentaram-se com ele na terra, sete dias e sete

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noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, pois viam que a dor era muito grande” (Jó 2.11-13).

Enquanto os amigos permanecem em silêncio, eles realmente trazem consolo. Quando começam a falar e a procurar explicações para a desgraça de Jó, eles o abandonam. Existe um tempo para falar e um tempo para calar. Isto vale também para o acompanhamento poimênico e, especialmente, para o acompanhamento a doentes terminais. Neste curso vamos ensaiar este “caminhar junto” e tentar dar pequenos passos. Iniciaremos com questões simples, como algumas regras para o diálogo no grupo, que ajudarão no processo de desenvolvimento grupal. Estas regras querem propiciar que cada um/a e participe do grupo com responsabilidade e autonomia. Esta autonomia é condição para o acompanhamento ativo de doentes. As regras abaixo foram inspiradas nas regras da “Interação Centrada num Tema” 6.

Interação Centrada num Tema (TZI) é um modo de proceder que se baseia em experiências humanas fundamentais e cujo interesse reside no aqui e no agora. Ela tem como objetivo manter os elementos emocionais e cognitivos num relacionamento dinâmico. O “eu” (o indivíduo), o “nós” (o grupo) e o “objeto” (o tema) formam um

TEMA

EU

NÓS

modelo de interação que, por sua vez, está inserido no contexto maior de tempo e espaço, além de outras contingências históricas, sociais e institucionais. 6

“Themenzentrierte Interaktion” (TZI) segundo a sua fundadora, a psicóloga Ruth Cohn.

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Regras de diálogo em grupo 1. Defina você mesmo quando você quer falar ou calar e o que você quer dizer. Nos encontros, procure dar o que você mesmo gostaria de receber. 2. Procure falar sempre como “eu”, evitando o uso de “nós” ou “a gente”. 3. Se mais membros do grupo quiserem falar ao mesmo tempo, é recomendável, antes, estabelecer de comum acordo a ordem da palavra.

4. Se você não consegue prestar atenção, se está entediado, aborrecido ou, por algum motivo, não conseguir se concentrar, interrompa o diálogo. Interferências têm prioridade! 5. Evite interpretar o que outros expressam. Fale de suas próprias emoções e de suas reações à atitude dos outros.

O caminho sobre a ponte O desenho abaixo mostra o caminhar de um grupo sobre uma ponte que atravessa um abismo. Vale a pena observar juntos este desenho. Cada um pode se perguntar: Com quem eu me identifico? Gosto de conduzir ou prefiro ser conduzido? Como eu chamaria a postura e a posição das quatro pessoas retratadas?

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Podemos também representar este desenho num trabalho de grupo, de forma que cada um possa experimentar as diferentes posições. Logo em seguida, compartilhar no grupo grande em que posição cada um se sentiu melhor ou quando houve dificuldade.

Poimênica no discipulado de Jesus - A estrutura do curso segundo Lucas 24, 13-35 Para poder acompanhar a caminhada de nosso curso, é importante ter em mente o caminho que queremos percorrer, assim como estudamos um mapa antes de iniciar uma viagem. A estrutura a seguir resume o que nos aguarda em nosso curso.

1. Perceber Conhecer-se mutuamente, trocar experiências, reconhecer modelos de percepção; aprender a reconhecer quando uma pessoa é um paciente terminal.

2. Acompanhar

Sentir como o acompanhar faz bem, observar o caminho à nossa frente, entender o caminho do doente e acompanhá-lo na sua jornada.

3. Ouvir

Aprender a ouvir um ao outro, observar as necessidades do doente terminal, aprender a audição ativa.

4. Compreender

Tentar compreender melhor um ao outro, prestar atenção naquilo que não se fala, entender a “linguagem” do doente terminal; aprender a sentir e a ver com os olhos e o coração do outro.

5. Prosseguir

Como está o desenvolvimento do grupo? Como está nossa disposição em continuar no acompanhamento a doentes terminais? Perceber crises, avaliar de forma realista as próprias forças, preocupar-se consigo mesmo.

6. Permanecer

Exercitar a proximidade, permanecer junto do doente terminal, cuidar, consolar, apoiar, estar presente.

7. Soltar

Despedir-se, desprender-se, soltar, perceber despedidas na vida e na morte e ensaiá-las, ritualizar a despedida.

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8. Levantar

Levantar-se, seguir o caminho, observar mudanças, exercitar a esperança, permitir o luto, admitir transformações.

Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados7 (I) Lothar Carlos Hoch

Talvez cause alguma surpresa o fato de se falar sobre acompanhamento a moribundos e enlutados num livro que se propõe a abordar a temática do sepultamento cristão. Por isso é necessário, desde logo, estabelecer uma relação entre a assistência pastoral prestada por ocasião de um enterro e o assessoramento oferecido antes e depois desse ato. Na verdade, para que o ato de sepultamento eclesiástico tenha um real sentido, é fundamental que ele tenha um antes e um depois. O rito do enterro eclesiástico é uma modalidade pública e ritualizada da presença da igreja no momento da morte. Ela é importante, mas não pode jamais ser a única forma de ela solidarizar-se com uma família numa situação tão crucial. Infelizmente, contudo, esse é o caso em muitos lugares. Estou ciente de que, pelas circunstâncias que envolvem muitos casos de falecimento, é impossível oferecer um acompanhamento pastoral e comunitário a alguém antes da morte. Mas sempre que as circunstâncias o permitirem, é essencial que o moribundo e seus familiares experimentem a presença e o apoio da comunidade cristã. Lutero considerava a consolação mútua dos irmãos e irmãs em momentos de sofrimento e tristeza um dos ministérios mais importantes da igreja. O ritual do sepultamento eclesiástico adquire mais sentido e atinge melhor o seu alvo quando for precedido de um contato poimênico com a pessoa falecida e/ou com os seus familiares. Da mesma forma, ele precisa ter uma continuidade nos momentos em que o luto e o sentimento de perda por parte dos familiares se tornar mais agudo. O ato de sepultamento dirigido pelo pastor com a presença da comunidade, além de ter um sentido importante como oportunidade de pregação da palavra de Deus, representa também um comprometimento público que se assume frente aos enlutados. O ritual apenas inaugura o apoio e a solidariedade que se deve estar disposto a prestar depois. Esse apoio posterior pode ser até mais importante do que tudo o que se vier a fazer no dia do enterro. I – Acompanhamento a moribundos 1. Considerações sócio-culturais. Em gerações passadas, pelo menos em nossa sociedade ocidental, se tabuizava o nascimento enquanto se observava um relacionamento mais natural com a morte. Hoje está ocorrendo o inverso: fala-se com mais realismo sobre o nascimento e, de maneira crescente, se tabuíza a morte. Ainda me recordo dos tempos de infância. Ninguém falava abertamente comigo sobre a forma como as crianças são concebidas e como elas nascem. Um véu de mistério, 7

HOCH, Lothar Carlos. Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados. In: Ofícios - Proclamar Libertação – Suplemento 2. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988. p. 58-73.

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alimentado pela história da cegonha, encobria essa realidade. As crianças eram afastadas do convívio familiar quando um bebê estava por nascer. Em compensação, quando alguém estava doente e viesse a falecer, as crianças acompanhavam de perto todas as etapas desse processo: enquanto doente, visitavam-no livremente em seu quarto e, depois de falecido, participavam do velório que tinha lugar em casa, eram estimuladas a tocar no falecido, acompanhavam o cortejo fúnebre e os atos de encomendação e enterro. Hoje, fala-se com maior franqueza com as crianças sobre concepção, gravidez e parto. Há muito se encara, salvo exceções, as questões que dizem respeito à natalidade com relativa naturalidade. Por outro lado, a realidade da morte está, de forma crescente, sendo exorcizada da vivência cotidiana tanto de crianças como de adultos. “Afora o formalismo dos ritos funerários, é cada vez menos evidente e sincera a percepção do que significa adoecer, envelhecer, agonizar e morrer. Perderam-se a dignidade, a significação e a força desses momentos decisivos, desses processos progressivos e irredutíveis, desses acontecimentos fortes, marcantes e necessários na evolução do ser humano para a eternidade, a plenitude e o absoluto” (D’ASSUMPÇÃO, Evaldo et alii. Morte e suicídio. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 17). O tratamento hospitalar retira o paciente do convívio dos seus familiares e restringe o contato entre estes a um mínimo tolerável. Assim como o hospital se ocupa da pessoa enquanto doente, assim a funerária se encarrega dela depois de falecida. Morrer em casa no convívio da família, dos vizinhos e amigos e ali ser lavado, vestido e velado está se transformando numa rara exceção. O círculo mais achegado da pessoa falecida, especialmente entre a classe que dispõe de alguns recursos, prefere pagar para que outros assumam uma responsabilidade que, desde os tempos mais remotos, se considerou um direito e um dever sagrado seu. Está a crescer o número de pessoas que jamais viram alguém morrer. Enquanto isso o comércio com a morte prospera. No fundo, o comércio com a morte é o comércio com o medo da morte. Aumenta o emprego de cosméticos para amenizar os traços que a morte imprime aos rostos de muitas pessoas falecidas. O objetivo é poupar os diretamente envolvidos de se confrontarem com a realidade da morte em toda sua extensão e nudez. O paradoxal é que quanto mais se tenta afastar a realidade da morte da vida cotidiana e expulsá-la para a periferia dos quartos de hospitais e dos necrotérios, tanto mais poder ela adquire sobre as pessoas. Quanto menos se encara a morte de maneira direta, tanto mais ela nos atormenta de forma indireta. “Somente sabem realmente viver aquelas pessoas que aceitam naturalmente a morte. E somente saberão morrer aquelas pessoas que souberam viver. Vida e morte são duas faces de uma mesma moeda, que é a existência. Não se pode falar de uma, esquecendo-se da outra” (D’ASSUMPÇÃO, Op. cit. p. 11). 2. A pessoa diante da morte. A nossa cultura ocidental, como vimos, tende a não encarar de frente a realidade da morte. Isso tem conseqüências sobre a maneira como as pessoas individualmente se relacionam com sua própria morte. Cresce o número de pessoas que fogem do confronto com a sua própria transitoriedade e com o seu próprio fim. Quando o pensamento na sua própria morte as assalta, esforçam-se para jogá-lo para bem longe e a distrair-se com outro pensamento ou com alguma atividade qualquer. Esse fato se refletirá sobre a maneira como o moribundo vive os estágios finais de sua vida, sobre os quais falarei mais adiante. Apesar de toda a repressão social e individual da morte surgem momentos em que ocuparse com a própria morte torna-se inevitável. Uma doença súbita, a necessidade de uma exame médico mais aprofundado, uma cirurgia delicada, longas semanas de internamento num hospital são momentos que nos constrangem a encararmos a nossa própria morte como uma possibilidade real.

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O que as pessoas temem quando são forçadas a encarar a possibilidade de morrerem em breve? Quem pretende acompanhar uma pessoa que efetivamente esteja morrendo ou que apenas receia que esteja à beira da morte precisa ter a sensibilidade de atentar para os mais diferentes sentimentos e se preparar para enfrentar todo tipo de reações. Eis algumas das atitudes mais freqüentes: • há pessoas que não temem a morte como tal mas as sensações de dor ou de angústia que julgam estarem presentes naquele momento; • outras temem o desconhecido implícito na morte. Estas lembram que a morte é um portão pelo qual muitos entraram, mas pelo qual ninguém retornou para dizer o que existe do outro lado; • muitas pessoas temem a morte pelo fato de ela impedir que se realizem determinados planos e sonhos que acalentaram ao longo de toda vida. É como se tivesse que morrer sem terem vivido; • outros, ao morrer, sentem profundamente por terem que deixar para trás certas pessoas a quem se sentem especialmente ligados ou mesmo realizações pela quais muito batalharam ao longo da sua vida; • outros, por sua vez, temem serem enterrados vivos e a angústia de, num determinado momento, acordarem e de se sentirem sufocados. Trata-se geralmente de manifestações de claustrofobia; • ainda outros, devido a um determinado conceito de Deus ou a um forte sentimento de culpa, temem o juízo final e o momento de terem de prestar contas diante de um Senhor severo e castigador; A grosso modo é possível distinguir dois tipos de medo: o medo relacionado ao ato de morrer e o medo do que possa eventualmente vir depois da morte. Esta distinção pode ajudar algumas pessoas a entenderem e a trabalharem melhor o seu medo, geralmente muito vago, da morte. Por outro lado, é necessário lembrar que o medo não é a única atitude possível diante da morte. Há inúmeras pessoas que encaram a morte de uma forma positiva ou com bastante serenidade. Cito algumas destas posturas: • há moribundos que esperam a morte com ansiedade como um momento que lhes trará alívio e descanso de longos e difíceis tempos de sofrimento e de velhice; • outros enfrentam a morte com naturalidade, dentro da perspectiva de que tudo precisa um dia chegar ao fim; • entre cristãos, há muitos que consideram a morte como lucro (Fp 1.21), pois é o momento de entrada para o gozo eterno, de chegar mais perto de Cristo ou de se reencontrar com familiares e amigos que os precederam na morte; • entre espíritas, a morte é considerada como o momento da desencarnação da alma. Como esta, a seu ver, não morre, a morte perde a característica de ser um ato derradeiro e se transforma num momento de expectativa no sentido de saber onde e em quem ela voltará a se encarnar para começar um novo ciclo de vida. Quem lida poimenicamente com moribundos não pode saber de antemão o tipo de atitude que irá enfrentar. É necessário que se predisponha interiormente a estar aberto para qualquer uma das atitudes aqui mencionadas e ainda outras não mencionadas. É necessário lembrar igualmente algumas das possíveis atitudes de pessoas gravemente enfermas. Convém não perder de vista que também essas merecem a atenção do/a pastor/a e da comunidade cristã. Freqüentemente os familiares sofrem tanto ou até mais do que o próprio moribundo. As posturas vão desde um profundo choque e de um sentimento de perda irreparável até uma atitude mal disfarçada de alívio; desde uma disposição para falar abertamente com o familiar que está à morte e de fazer todo o possível para lhe aliviar a dor e a solidão até uma atitude de incapacidade total de lidar com a situação e de

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se solidarizar com ele. Quantas vezes se ouvem pessoas que acompanharam de perto o sofrimento de alguém gravemente enfermo exclamar: “Eu não conseguia mais ver essa pessoa sofrer desse jeito!” Mais tarde retomarei esse assunto. 3. O drama do paciente terminal. São inegáveis os progressos que a medicina moderna fez nos últimos anos no sentido de socorrer pessoas gravemente enfermas. Esses avanços se observam na rapidez e na eficiência com que se é capaz de prolongar cada vez mais a vida de pacientes para os quais, pela natureza de sua enfermidade, não há mais esperanças de cura – os chamados pacientes terminais. De um lado nos cabe sermos gratos a Deus pelos progressos da medicina e pelo empenho crescente que médicos, enfermeiros e outros especialistas da saúde estão fazendo para salvar vidas humanas. Por outro lado, os avanços técnicos e científicos na área da saúde trouxeram consigo o perigo duma crescente desumanização no atendimento às pessoas. A dificuldade já começa pelo fato de a pessoa doente ser removida do ambiente familiar e ser levada para um quarto estranho de hospital. A partir daí, dependendo da gravidade do caso, ela passa a perder totalmente o controle das ações. Dificilmente se concede a ela o direito de opinar. Outros agem e decidem por ela .

Estou consciente de que, em casos graves, não se pode esperar que o médico entre num longo diálogo com o paciente. É necessário, nesse caso, que ele aja com rapidez, cabendo ao paciente submeter-se à sua competência. Mas quantas vezes acontece que o paciente fica longas horas e intermináveis dias num leito de hospital, rodeado de toda sorte de aparelhos sob o comando de uma equipe especializada em controlar a temperatura, a pressão, as batidas cardíacas, mas sem ninguém que dispense atenção à suas ansiedades interiores de natureza psicológica, emocional ou espiritual. Os agentes da saúde estão melhor treinados para manusear os aparelhos do que para lidar com necessidades e sentimentos humanos. Tem-se em vista unilateralmente a cura física. Trata-se a doença e não o doente.

Imagino que muitas pessoas em seus últimos dias de vida trocariam com gosto uma parcela do atendimento científico e mecânico por um pouco mais de calor humano e pela oportunidade de externar certas dúvidas e certos anseios que se acumulam em seu interior. Falta à nossa medicina uma preocupação mais voltada ao conjunto das necessidades da pessoa. Em se tratando de pacientes terminais, as necessidades que transcendem a dimensão física aumentam sensivelmente. E é nessas horas, justamente, quando os recursos que podem curar o corpo atingem o seu limite, que os profissionais da saúde, muitas vezes, se sentem mais limitados e despreparados. Um psicólogo certa vez fez uma experiência intrigante em uma unidade de terapia intensiva de um hospital norte-americano. Ele se propôs a cronometrar o tempo que decorria entre o momento do paciente chamar a enfermeira (assinalada pelo acender de um pequena luz vermelha sobre a porta do quarto) e o momento de esta atender ao chamado. Depois de alguns dias de observação, o psicólogo percebeu que as enfermeiras atendiam mais rapidamente o chamado de pacientes em melhor estado de saúde e que levavam mais tempo para atender ao chamado dos pacientes que estavam mais próximos da morte. Trata-se de uma reação inconsciente de evitar o contato com a morte. Tal reação não é peculiar apenas das enfermeiras, mas da maioria das pessoas. A reação inconsciente das enfermeiras acima descrita é apenas uma das formas de demonstrar que o moribundo, junto com as agruras da morte, ainda está exposto à nossa incapacidade de nos relacionar naturalmente com ele. Na verdade, o moribundo tende a sentir-se profundamente só. Não estaria aí uma das funções primordiais da poimênica

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junto a moribundos: ser um veículo da presença solidária de Deus que cria comunhão e conforto em meio à angústia e à solidão? Por uma questão de justiça é necessário compreender que não é fácil para os profissionais da saúde, principalmente aos médicos e às enfermeiras, aceitarem o cessar da vida de pessoas entregues aos seus cuidados. Cada pessoa que morre os lembra das suas limitações e da sua incapacidade de vencerem a batalha contra a morte. Convém lembrar também que a sociedade e até mesmo a própria igreja atribuem cada vez mais a eles a tarefa de lidar com a morte, não raro, devido à sua própria incapacidade de lidar com ela. Muitos desses agentes da saúde são deixados a sós com o peso dessa responsabilidade. É necessário lembrar igualmente que a maneira como se assiste a um moribundo em nossa sociedade e, não raro também na igreja, tem algo a ver com a situação econômica em que este se encontra, respectivamente com a classe social a que ele pertence. “A estrutura classista da sociedade provoca, por conseqüência, a estrutura classista da medicina e dos recursos da saúde, que defende de uma maneira muito mais eficaz a vida dos possuidores do que a vida dos trabalhadores e suas famílias” (D’Assumpção, p. 61). A poimênica precisa ter em mente esse fato e, sem esquecer os melhor situados, cuidar para não privilegiar mais uma vez na morte os que já foram privilegiados em vida. 4. As fases psicológicas do processo de morrer. Elisabeth Kübler-Ross, uma médica e psicóloga suíça que atua nos U.S.A., juntamente com uma equipe de pastores e estudantes de teologia, teve a idéia de dialogar com pacientes em fase terminal e registrar o seu comportamento diante da morte. Ela o fez mediante a autorização dos próprios doentes. O seu livro “Sobre a morte e o morrer” alcançou reconhecimento internacional em pouco tempo. As suas observações ajudam a entender pacientes que passam por uma fase mais ou menos longa de sofrimento antes de morrerem e que têm conhecimento da gravidade de sua doença. Elas não se aplicam a moribundos que não sabem que têm pouco tempo de vida e, como é lógico, também se aplica a pessoas que morrem subitamente. a) Fase da negação – Quando uma pessoa recebe a notícia de que está acometida de uma doença grave, ela freqüentemente reage dizendo: “Não, não pode ser verdade. Eu não!” A negação da possibilidade da morte é a atitude inicial mais comum. Essa negação pode chegar ao ponto de a pessoa achar que se trata de um engano no diagnóstico e, não raro, troca de médico para se certificar de que sua doença é realmente grave. Kübler-Ross acrescenta, contudo, que essa reação inicial “não significa que o mesmo paciente não queria ou não se sinta feliz e aliviado em poder sentar-se mais tarde e conversar com alguém sobre a sua morte próxima” (p. 50). Trata-se de uma necessidade de, por assim dizer, rejeitar inicialmente uma realidade para, depois, ir digerindo-a aos poucos, na medida em que for se fortalecendo interiormente para aceitá-la. b) Fase da revolta – Quando não mais for possível negar os fatos, explodem os sentimentos de inconformidade, de angústia, de tristeza e de raiva. “Por que justamente eu?” Às vezes a revolta se dirige ao próprio Deus. “Por que Deus, que dizem ser bom e misericordioso, permite que isso aconteça comigo?” Nessa fase não convém que a pessoa que acompanha o moribundo seja afoito em fazer apologias de Deus ou procure achar explicações plausíveis. O que o paciente precisa é de alguém que o ouça e o aceite em sua inconformidade e em seu sentimento de revolta. Não lhe dar oportunidade para externar esses sentimentos só aumentará sua revolta e sua solidão. c) Fase da barganha – A barganha é uma atitude do paciente de pretender negociar com Deus e de procurar fazer um acordo com ele. Trata-se de uma tentativa de estabelecer um comprometimento mútuo: “Se tu, ó Deus, restabeleceres minha

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saúde, eu me comprometo a levar uma vida mais consagrada a ti e ao próximo.” É essa a postura que leva milhares de pessoas doentes a fazerem promessas a Deus que posteriormente procuram cumprir em dias de romarias a determinados santuários. No fundo, trata-se de uma tentativa de manter acesa a esperança de cura. d) Fase de depressão - Quando a pessoa percebe que a doença avança e que não há mais como negá-la, passa a predominar um profundo sentimento de perda. Em se tratando de pessoas mais jovens, - mas não só elas – passam a se preocupar com o futuro dos filhos, com a continuidade do trabalho que vinham desenvolvendo e com demais questões pendentes. A possibilidade de que tudo possa chegar em breve a um fim é, agora, muito mais real. Pode se instalar tristeza e depressão. Nessa fase o paciente tende a ser mais aberto para o diálogo e para externar sentimentos. Aqui é importante que se ofereça proximidade física e espiritual, bem como a certeza de que ele não está só. e) Fase da aceitação – O moribundo percorreu um penoso caminho de altos e baixos, de luta e resistência, de negação e de revolta, de negociação e de preparação para o pior. Agora se instala uma fase de entrega. Não há mais forças nem se vê mais grande sentido em continuar lutando. O corpo já está frágil, o espírito cansado. O moribundo dorme bastante. Já não lhe interessam mais tanto os acontecimentos à sua volta. A comunicação com ele se dá, muitas vezes, mais num nível não-verbal do que com muitas palavras. Aqui gestos falam mais lato do que palavras. Os estágios acima descritos não precisam ocorrer sempre, nem se sucedem necessariamente na ordem exposta. Às vezes predomina um estado de espírito, às vezes outro, outras vezes os estágios se confundem. Também a duração de cada estágio ou fase é variável de pessoa para pessoa. Segundo Kübler-Ross, a única coisa que persiste em todos os estágios com maior ou menor intensidade é a esperança. É literalmente verdade que a esperança é a última que morre. O diálogo poimênico não deve alimentar em demasia essa esperança do moribundo, nem tampouco questioná-la. A esperança é fundamental para que o moribundo consiga carregar a sua cruz. Além do mais, não é o nosso Deus um Deus de esperanças? Não é ele o fundamento de toda esperança? A poimênica cristã se alimenta da esperança que crê “contra a esperança” (Rm 4.18) e vive da certeza do salmista que diz: “Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele fará” (Salmo 37.5). 5. Considerações complementares. Uma atitude poimênica importante é a disposição de partilhar do sofrimento da pessoa que está à beira da morte e, se possível, dos seus familiares. Não falo primordialmente do sofrimento físico, mas do sofrimento que resulta das perguntas cruciais de natureza emocional e espiritual que a morte impõe. Muitas pessoas morrem não só da doença de que estão acometidos mas também do abandono a que estão sujeitas como moribundos, ou seja, como pessoas de quem poucos ousam se aproximar. Convém informar-se de antemão com o médico ou a enfermeira responsável sobre o estado de saúde do paciente. Uma vez em contato com este, é importante prestar atenção especial ao grau de consciência que ele tem da gravidade da sua doença. Há moribundos que não estão inteirados (ou não querem inteirar-se) do seu real estado de saúde. Outros mostram-se muito inseguros a esse respeito e, vez por outra, lançam uma pergunta ou um olhar inquiridor para a pastora, tentando decifrar o que esta sabe ou pensa a respeito.

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A simples visita da pastora, em muitos casos, por si só já é motivo de grande ansiedade por parte do doente. Pois para muitos deles, especialmente em comunidade onde a pastora não costuma visitar os membros com freqüência, a sua presença é um presságio de que se está prestes a morrer. Alguns vêem na pastora e no pastor uma ave de mau agouro. Tanto mais se ela ou ele vem com a intenção de celebrar a Santa Ceia com o doente. Sempre que possível convém incluir os familiares no processo de acompanhamento de um moribundo. Estes, muitas vezes, precisam de ajuda para encontrarem uma forma de se sentirem úteis e solidários e, desta forma, diminuírem a sua própria ansiedade. Podem, no entanto, surgir ocasiões em que um contato a sós com o moribundo seja indicado, especialmente quando ele mesmo faz alguma indicação de desejá-lo. Como vimos acima, o moribundo pode passar por diferentes estágios no seu processo de morrer. Antes de visitá-lo não se saberá em que estágio ou estado de espírito se encontra. Por isso, convém não ir ao seu encontro com muitas idéias ou propósitos estabelecidos de antemão. Planos prévios podem dar maior segurança ao que realiza a visita. Mas podem impedir que este consiga ouvir a real necessidade do paciente. É possível que à pastora caberá a tarefa de ouvir o seu desabafo inconformado ou a sua lamentação sobre o estado de saúde que não dá sinais de melhora. É possível que a situação seja propícia à leitura de um texto bíblico ou à oração. Pode ser que a simples presença silenciosa e solidária seja a atitude mais indicada. Certa vez um paciente me disse: “Sabe, pastor, quando se está num hospital, se passam coisas na cabeça da gente que nunca se pensou antes”. Se isso vale para doentes comuns, tanto mais para moribundos. A meu ver, cabe à pastora ser uma parceira, a quem o doente possa confidenciar essas “coisas” que lhe vêm à cabeça e sobre as quais ele não tenha com quem falar. Assim, por exemplo, ele poderá estar se perguntando o que tem feito ao longo de sua vida. O tempo disponível longe do corre-corre da vida quotidiana e a possibilidade de vir a morrer favorecem um tal balanço de vida. Outro moribundo, na tentativa desesperada de entender o que está se passando, estabelecerá uma relação entre a doença que está sofrendo e os erros que cometeu ao longo da sua vida. É freqüente que se considere a doença e a morte como salário do pecado. Nesse caso, convém estar atento a possíveis sentimentos de culpa implícitos. O mais importante em tudo isso é ter a sensibilidade de ouvir e de permitir que o doente consiga dizer o que pretende, sem ser atropelado pela necessidade prematura da pastora em lhe trazer consolo. “Ouvi atentamente as minhas razões e isso já me será a vossa consolação”, afirma Jó, alguém indiscutivelmente experimentado no sofrimento (Jó 21.2). II – Considerações sobre a verdade junto ao leito de morte O acompanhamento a moribundos pode nos colocar diante de uma situação ética difícil, qual seja, a de decidir se é ou não recomendável falar com a pessoa sobre a gravidade de sua doença, mais precisamente, dizer-lhe ou não a verdade sobre sua real situação de saúde. Estamos aqui diante de uma das questões mais delicadas de todo o ministério pastoral. Ser confrontado com a notícia da própria morte, próxima ou iminente, significa tocar no ponto mais vulnerável da alma humana. Se o ato de ser mensageiro de uma má notícia a outrem, seja ele um familiar ou conhecido nosso, já é uma tarefa espinhosa, quanto mais a de dialogar sobre a possibilidade de morte do interlocutor diretamente atingido que está diante de nós. Um diálogo dessa natureza suscita uma avalanche de sentimentos e emoções imprescindíveis e, não raro, também naquele que se dispõe a acompanhá-lo.

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É necessário ter consciência de que o ato de encarar de frente a realidade da morte é, cada vez, uma situação única que coloca frente a frente duas pessoas igualmente únicas na sua maneira de ser, de pensar e de sentir. Torna-se por isso impossível fazer recomendações universais e aplicáveis em qualquer circunstância. Tudo o que vou dizer a seguir não passa de uma tentativa de aproximação e um assunto que não tolera respostas fáceis nem soluções padronizadas. Falar com alguém sobre a proximidade da sua morte pressupõe um profundo respeito à pessoa humana e à maneira como essa pessoa encara a vida e a morte. É um erro pensar que a morte seja um momento que está além do limiar dessa vida. É bem verdade que o morrer é a última cena no palco da vida. Nem por isso deixa de ser um momento que se vive. Por isso, considero o acompanhamento pastoral a moribundos como uma atitude de sustentação à vida, como presença solidária num momento decisivo da vida.

A pergunta pela verdade junto ao leito de morte é uma questão que divide as opiniões das pessoas. Há, de um lado, aquelas que entendem que, sob hipótese alguma, cabe ao pastor comunicar a uma pessoa que ela está morrendo. Elas entendem que essa tarefa cabe ao médico e a ninguém mais, pois somente esse tem condições de atestar um tal quadro clínico. Por outro lado, há os que julgam ser responsabilidade inalienável do pastor, como guia espiritual, em qualquer circunstância dizer franca e abertamente à pessoa o que se passa com ela. Pessoalmente entendo que o paciente tem o direito de saber a verdade sobre seu estado de saúde. Ele deve, ou deveria ter tido, esse direito em qualquer questão que lhe dizia respeito, ao longo de sua vida. Por que não haveria de tê-lo também na hora da morte? Por outro lado, o paciente também tem igualmente o direito de não querer saber a verdade sobre o seu real estado de saúde. Tem também o direito de escolher a pessoa com a qual deseja, se é que deseja, falar a respeito desse assunto. Cabe ao pastor respeitar o paciente em qualquer circunstância. Considero o paciente como critério último para qualquer decisão que o pastor venha a tomar. À luz do que foi dito, entendo que seja perigoso manter posições rígidas e inflexíveis, formadas de antemão, a respeito desse assunto. Essas podem impedir que se examine com critérios as circunstâncias especiais de cada caso. Faço depender minha decisão pessoal de algumas premissas ou considerações norteadoras, as quais pretendo compartilhar a seguir: a) Avaliar onde o paciente se encontra no processo de tomada de consciência do seu estado de saúde. Pesquisadores como Kübler-Ross mostraram que confrontar-se com a própria morte é um processo que percorrer certas fases, como vimos acima. Há pacientes que precisam de um certo tempo para conseguirem se predispor interiormente para ouvirem a verdade. Seria uma mensagem, para a qual ele dá sinais de não, ou ainda não, estar em condições de ouvir. Dizer a verdade a um paciente terminal exige muita sensibilidade para descobrir o momento oportuno de fazê-lo. É igualmente importante tentar avaliar corretamente se a pessoa tem, no momento, a estrutura pessoal necessária para ser confrontada com a verdade. b) Caso o pastor tenha chegado à conclusão de que é desejo do paciente falar com ele a respeito desse assunto (respeitados os ponto “c” e “d” abaixo mencionados), cabe-lhe descobrir a forma adequada de fazê-lo. Ele precisará sentir e decidir se é conveniente dizer-lhe toda a verdade no decorrer de um mesmo diálogo, ou se é indicado servi-la em doses menores, em encontros sucessivos. Nesse último caso, convém não demonstrar que ele sabe mais do que está dizendo nesse momento. O pastor poderá dizer que de fato, confirmando a suspeita do paciente, o seu estado de saúde inspira

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cuidados. Pode sentir com o paciente se este deseja que ele colha mais informações junto ao médico. No encontro seguinte e nos sucessivos vai desvendando paulatinamente toda a verdade. Há pacientes, contudo, que já estão há tanto tempo sendo corroídos interiormente pela suspeita e pela dúvida que desejam saber tudo de vez. Já estão interiormente preparados para o pior e preferem a verdade sem rodeios. c) O médico é a pessoa-chave que precisa estar envolvida nesse processo. O pastor não é médico. A ele não cabe fazer diagnósticos sobre o estado de saúde do paciente, nem se aventurar em áreas onde não tem competência. Se o pastor entende que o paciente deseja falar com ele sobre o seu real estado de saúde, deve antes dialogar com o médico para se informar sobre o estado global de saúde do paciente e para se assegurar com ele da conveniência de tocar nesse assunto. É possível que o próprio médico deseje dialogar sobre essa questão com o paciente. Nesse caso, o pastor poderá entrar em contato com o paciente posteriormente. Pode acontecer que o médico prefira que o pastor seja o mensageiro da má notícia (há médicos que tem a liberdade de admitir a dificuldade de lidar com a morte e de dialogar sobre ela com seus pacientes). Também é possível que o médico e pastor, juntos, dialoguem com o paciente sobre o seu estado de saúde. Em todo caso, qualquer atitude do pastor deve estar afinada com a do médico. Assim se evitará que o médico e pastor entrem em conflito ou acabem dando informações desencontradas ao paciente. O bom relacionamento entre médico e pastor é essencial para o trato da questão em pauta. d) Outro elo de relação importante é a família do paciente. Geralmente a família é a primeira a ser informada do estado de saúde do paciente. Esta não raro tem dificuldade de lidar com tal notícia e passa a não saber como se relacionar com o moribundo. Isso tende a aumentar a solidão deste. O pastor tem um papel importante a desempenhar junto aos familiares, seja consolando-os, seja procurando junto com eles uma forma de se relacionarem adequadamente com o paciente. Recentemente falei com uma senhora que, com grande tristeza, me contou que perdeu seu marido há quase 20 anos e que, mesmo tendo-o acompanhado por longos e sofridos meses, jamais deu chance para que seu esposo pudesse tocar no tema morte com ela. Ela se esforçou o tempo todo em transmitir-lhe a impressão de que tudo estava bem com ele. Hoje, ela lamenta o fato: “Fui-lhe companheira fiel ao logo de toda a vida, mas deixei de sê-la no momento derradeiro”. Por outro lado, sei de uma família, cuja mãe estava com câncer e onde o pai e os filhos decidiram, juntos, dialogar com ela sobre a doença e a morte iminente. Esse gesto aproximou muito toda a família, possibilitou que se consolassem mutuamente e que deixassem de sofrer cada um isoladamente. Esse gesto permitiu que as decisões que precisavam ser tomadas, no que diz respeito ao futuro do marido e dos filhos e dos bens materiais, pudessem ser tomadas em conjunto. No seu todo esse fato contribuiu para que o processo de luto, após o falecimento da mãe, pudesse transcorrer de forma mais natural e sadia, sem os freqüentes sentimentos de culpa. O aconselhamento pastoral pode contribuir para que o diálogo entre o moribundo e os familiares não seja interrompido, mas intensificado justamente num momento em que a comunicação é mais importante que nunca. e) Um problema que freqüentemente assola os familiares e amigos ou mesmo os funcionários do hospital é a dúvida se o paciente sabe ou não a verdade sobre seu estado de saúde. Essa incerteza faz com que ninguém saiba ao certo como se relacionar com ele. Muitas pessoas passam a ter um cuidado exagerado de não cometer o descuido de revelar algo. Muitos pacientes passam a notar que o tratamento que os outros lhe dispensam não é natural e, a partir disso, passam a desconfiar de que lhe estão ocultando algo. Há pacientes que, para pôr os outros mais à vontade, passam a fazer de conta que de nada sabem. Esse jogo de esconde-esconde recíproco não faz bem a ninguém. Segundo Kübler-Ross, a maioria dos pacientes acaba descobrindo, de um

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modo ou de outro, o que se passa com eles e, geralmente, dão graças a Deus quando finalmente encontram alguém com quem possam falar a respeito. Isso dispensa o uso de máscaras e abre a possibilidade a que se rompa o círculo da angústia e da solidão. Às vezes, o próprio paciente, geralmente para alívio de uns e para desespero de outros, toma a iniciativa de tocar no assunto. Observa-se, então, que poucos estão em condições de lidar com tal situação. Os menos preparados passam a contradizer o paciente, dizendo que ele está absolutamente enganado. Há pacientes que optam, por isso, em falar com o seu pastor a respeito. Esperam que este esteja em condições de encarar o fato. Mas, não raro, também este é incapaz de suportar a verdade sem subterfúgios e escapismos. Na medida, porém, em que os pastores se propuserem a encarar as suas próprias dificuldades e temores em relação à morte com honestidade e franqueza, eles estarão em condições de ajudar outros em tais momentos. Uma premissa importante para um acompanhamento eficaz de uma pessoa à beira da morte é a existência de um relacionamento entre ele e a pessoa do pastor. Falar a alguém sobre a iminência de sua morte requer que haja esse relacionamento anterior ou, pelo menos, a firme disposição de acompanhá-la daí em diante com muito carinho. Constitui-se numa enorme falta de sensibilidade pastoral dizer a uma pessoa que ela está prestes a morrer e, depois, deixá-la sozinha com esta verdade. Digo isso porque sei do perigo do pastor em se sentir motivado ou mesmo impelido por familiares a tocar nesse assunto com o moribundo e, posteriormente, por excesso de trabalho ou por resistência interna, deixar de visitá-lo. Quem não é capaz de dar os passos posteriores no acompanhamento a um moribundo, é preferível que não dê o primeiro. Há também aqueles pastores que sentem a necessidade de dizer ao paciente que ele está à beira da morte para, em última hora, ainda levá-lo à conversão. Pessoalmente tenho dificuldade com uma tal postura, pois me parece que se pretende tirar proveito da situação angustiosa de alguém para satisfação de uma necessidade pessoal do pastor.

Quero concluir dizendo que também o dizer a verdade tem o seu critério definido pelo amor, mais precisamente pelo amor de Jesus Cristo. Como está escrito: Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo” (Ef 4.15). E onde nós fracassarmos com o nosso consolo, saibamos que “como alguém a quem sua mãe consola”, assim o Senhor mesmo os consolará (Isaías 66.13).

As fases do morrer segundo Elisabeth Kübler-Ross Apresentar um esquema de fases para o processo do morrer pode ser problemático. Pode dar a falsa impressão de que a morte ocorre sempre da mesma forma, culminando, sem exceção, na fase da aceitação. Isto não é o caso. Portanto, os voluntários no acompanhamento a pacientes terminais devem evitar o mal-entendido de que a não aceitação pacífica da morte possa ser o resultado de um acompanhamento fracassado. Elisabeth Kübler-Ross também não afirma que a fase da aceitação sempre é alcançada. Sobre a contingência das fases por ela observadas, Kübler-Ross escreve: “Se tomarmos tempo para sentarmos à cama dos moribundos, eles nos ensinam à respeito das fases do morrer. Eles nos mostram como percorrem os estágios da raiva, do desespero, do “por que justamente eu?”, questionam Deus e, por um tempo, o rejeitam. Eles negociam com Deus e então passam pelas piores depressões. Se nestas fases eles experimentam o acompanhamento carinhoso de uma pessoa, talvez alcancem a fase da aceitação. Mas tudo isto ainda não tem nada a ver com as fases do morrer propriamente ditas. Nós as chamamos “fases do morrer” por

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falta de nomenclatura melhor. Quando se perde um amigo ou uma amiga, ou quando se perde o emprego, ou se existe a necessidade de abandonar a casa onde se morou por cinqüenta anos para ingressar num asilo, ou quando se perde o periquito ou as lentes de contato, pessoas podem passar pelas mesmas fases. E este é o motivo por que temos que passar pelo sofrimento: o sofrimento é a raiz do crescimento.” 8

Situações difíceis no acompanhamento de pacientes terminais Abaixo estão descritas algumas situações típicas para o relacionamento com pacientes terminais. Reflita sobre a situação e faça alguns apontamentos sobre as seguintes perguntas:

Por que o paciente age desta maneira? Na sua opinião, em que “fase” do processo de morrer ele se encontra?

Como você iria agir nesta situação? Como iria se sentir, o que iria fazer, o que não iria fazer?

Como você imagina a reação do paciente à sua atitude?

a) Você visita um doente em sua residência. Há dois dias ele recebeu a notícia do médico que ele tem câncer. Ele está deitado no sofá da sala, chorando. Ao entrar na sala, a esposa diz a você: “Alguma coisa tem que ser feita. Ele chora o tempo todo!” b) Você está mesmo coando um chá para a senhora NN. Em três meses ela teve dois enfartes. Vocês estão conversando sobre os filhos quando ela pergunta abruptamente: “Será que ajuda se eu pedir a Deus que tudo fique bem? Você acredita em Deus?” c) Um paciente terminal de 58 anos, com um tumor maligno, nunca havia feito perguntas sobre sua doença. De repente, ele pergunta: “Será que vou morrer?” d) Há um ano, a senhora WW teve que se submeter a uma mastectomia para a retirada de um carcinoma. Pela filha, você soube que o prognóstico é muito ruim. Em virtude das metástases ela está sendo submetida à radioterapia. Ela diz: “Mais duas radioterapias e estarei curada!” e) A senhora YY, paciente de 76 anos com carcinoma não-operável nos brônquios, deve ser internada no hospital, pois a família não consegue mais assegurar um acompanhamento a contento. Desde que ela sabe destes planos, está deitada apática em sua cama. Há dias não fala com ninguém. Quando você a visita e lhe diz: “Sinto que a senhora está muito triste”, ela vira para a parede sem lhe responder. f) Um jovem paciente com câncer tem um prognóstico bastante negativo. Após meia hora de visita, quando você está se despedindo, ele implora: “Por favor, ajude-me! Faça alguma coisa! Você tem que me ajudar!”

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KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Über den Tod und das Leben danac. Melsbach: Die Silberschnur, 1986. p. 27-28.

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Por tua mão me guia - HPD 174 1. Por tua mão me guia, meu Salvador, agora e eternamente, por teu amor! Não quero andar no escuro sem tua luz: Eu quero andar contigo, Senhor Jesus!

2. Em tua paz abriga meu coração; conforta-o na tristeza, na solidão! Entrego a minha vida a ti, Senhor. Tu és minha esperança, meu Redentor!

3. Se bem que eu nada sinta do teu poder — que a luz da tua face não possa ver: Eu sei que tu me guias, meu Bom Pastor, ao teu eterno Reino de graça e amor.

Julie von Hausmann, 1826-1901

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Unidade III – Ouvir Na história dos discípulos de Emaús, antes de falar, Jesus permanece um longo tempo apenas ouvindo. Ele ouve de tal forma que os discípulos entristecidos abrem os seus corações, verbalizando o luto. Esta “audição ativa” exige atenção, concentração e presença total junto ao interlocutor.

Sugestões para um diálogo bem sucedido 9 1. Procure adaptar-se completamente ao seu interlocutor. Ouça de forma compenetrada e ativa. Esforce-se por entender a pessoa que procura sua ajuda em seu jeito de sentir e viver. Seja ponderado e econômico em suas colocações. Lembre-se que não é você que precisa falar, mas seu interlocutor. Perguntas para o controle: eu ouvi – ou estive envolvido numa disputa de palavras? Falei demais? Fiz perguntas demasiadas? 1. 2. Fale com tranqüilidade, ponderando e procurando as palavras. Desta forma você estará criando um clima de tranqüilidade para o diálogo, transmitindo ao seu interlocutor a certeza de que você dispõe de tempo para ele. Não tenha medo de momentos de silêncio. Através deles seu interlocutor irá perceber que, de fato, você está interessado em compreendê-lo. Muitas vezes, o silêncio é parte importante do diálogo.

Perguntas para o controle: falei de forma precipitada? Interrompi momentos de silêncio no diálogo? Por quê? 3. Preste atenção naquilo que se esconde atrás das palavras. Não se fixe nas informações objetivas de seu interlocutor. Atrás desta objetividade ele pode estar escondendo problemas pessoais, os quais tem dificuldades de verbalizar. Procure sentir o estado emocional de seu interlocutor. Compartilhe com ele suas impressões e diga-lhe como você se sente.

Perguntas para o controle: prestei atenção nos sentimentos de meu interlocutor? Eu os acolhi e os expressei com minhas palavras? 4. Permita que seu interlocutor expresse seus sentimentos negativos e sombrios. Fará bem ao seu interlocutor poder expressar luto, medo, decepção, etc, sem ter receio de irritálo. Não procure defender pessoas contra as quais seu interlocutor tem mágoas, nem tente suavizar sua agressividade ou frustração. Mostre, isto sim, compreensão para a sua situação. Isto não significa que você concorde com o que é dito. Pergunta para o controle: permiti que o meu interlocutor expressasse seus sentimentos negativos?

5. Mesmo com o seu acompanhamento empático, seu interlocutor não conseguirá verbalizar tudo que lhe aflige. Portanto, preste atenção também no que não é dito, nos

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Extraído de: EBERT, Andreas; GODZIK, Peter. Op.cit. p.48-50.

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gestos, na mímica, no clima da conversa. Abstenha-se, porém, de interpretações precipitadas. Procure expressar suas impressões com cuidado. Pergunta para o controle: procurei ter uma percepção integral de meu interlocutor, prestando atenção à comunicação verbal e não-verbal?

6. Permita que seu interlocutor seja diferente de você. Não faça julgamentos morais mesmo que você não concorde com o que ele expressa. Abstenha-se de querer ensinar, converter ou influenciar seu interlocutor. Perguntas para o controle: apresentei meu ponto de vista de forma impertinente? Tentei pressionar ou dirigir meu interlocutor numa determinada direção? 7. Seja cauteloso com conselhos. Afinal, você não poderá solucionar os problemas de uma outra pessoa. Esforce-se em criar condições para que ele possa reconhecer, verbalizar e solucionar os seus problemas de forma responsável. Pergunta para o controle: consegui motivar meu interlocutor a vencer os seus problemas ou a suportar sua situação? 8. Procure transmitir proximidade e calor humano ao seu interlocutor. Não tente, porém, ter pena, nem demonstre falsa simpatia. Permaneça sempre numa atitude de autenticidade.

A audição ativa Paulo Afonso Butzke

A virtude mais importante do visitador é sua capacidade de ouvir. Trata-se da audição ativa, que realmente ouve o que o seu interlocutor está querendo transmitir. Ele ouve as palavras escondidas entre as palavras; ele ouve os sentimentos escondidos nas palavras pronunciadas. A audição ativa pode ser comparada a um tatear cuidadoso e sensível, tentando compreender a situação existencial do interlocutor. Audição ativa só é possível a partir da Empatia (Carl Rogers): "sentir" + "em". A atitude empática procura colocar-se "dentro" do mundo, da situação e dos sentimentos do interlocutor. Ela procura ver o mundo com os olhos do interlocutor. Uma pequena história ilustra esta atitude: "Em um Kibbuz havia fugido o burrinho Salomão. Todos os moradores do Kibbuz estavam procurando há horas e não sabiam mais o que fazer. De repente, surgiu um velhinho, já um pouco esclerosado, também chamado Salomão, com o burrinho numa corda. Todos se admiraram: mas como você conseguiu encontrá-lo? Com um sorriso maroto, o velhinho conta: - isto foi muito fácil! Eu fiquei pensando: Salomão, se você fosse um burrinho, para onde você iria? O resto foi simples. Eu fui lá, e busquei o burrinho Salomão" (Alfred Benjamin) Empatia, no entanto, não significa simplesmente “identificação”. Não se trata do visitador "dissolver-se" no mundo e na situação do interlocutor. Se isto ocorresse, ele já não poderia mais ajudá-lo, pois perderia sua objetividade. O visitador necessita, por isso, permanecer em uma atitude de autenticidade, preservando uma distância objetiva da situação do interlocutor. Em qualquer momento do diálogo, o visitador deve ter a capacidade de recorrer ao nível da metacomunicação, isto é, poder "olhar a comunicação de cima" e analisá-la.

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Ao lado de empatia e autenticidade, a atitude de aceitação incondicional do interlocutor também é condição para o desenvolvimento da audição ativa. Trata-se de estabelecer um relacionamento e um diálogo livre de preconceitos, não julgando nem moralizando a situação, as idéias ou os sentimentos - positivos ou negativos - emitidos pelo interlocutor. A capacidade da audição ativa precisa ser treinada e desenvolvida. Antes de tudo, o visitador deve aprender a ouvir a si mesmo! Precisa prestar atenção nos sentimentos que o invadem, nos pensamentos que vão e vêm e, especialmente, prestar atenção nos seus sonhos. Em geral, vivemos apenas de uma fachada superficial (o "eu" consciente) e reprimimos o diálogo com as profundezas de nosso ser (o inconsciente). Esta superficialidade com que nos relacionamos conosco mesmos, transferimos para as relações interpessoais.

Os quatro níveis de uma mensagem 10 O diálogo entre duas pessoas pode ser demonstrado com um gráfico relativamente simples:

Emissor

Mensage m

Receptor

Ou seja: uma pessoa deseja comunicar algo – ela é chamada de emissor; o que ela deseja comunicar é chamado de mensagem; a pessoa a quem esta mensagem é endereçada é chamada de receptor. Segundo o psicólogo Schulz von Thun, cada mensagem tem quatro níveis, quatro lados diferentes.

Via de regra, cada mensagem tem o seu nível objetivo com o qual o emissor deseja comunicar uma informação ao receptor. Quando uma paciente diz a uma voluntária da visitação “eu liguei cinco vezes para você, mas nunca havia alguém em casa”, então, nesta mensagem encontramos a informação acerca de cinco tentativas frustradas de estabelecer contato.

Ao lado deste nível objetivo, a mensagem pode ter mais três níveis. A paciente acima, ao dizer a frase, com o tom de voz revela algo acerca de si mesma. Ela o faz consciente ou inconscientemente. Ela revela à voluntária, eventualmente, que está frustrada, triste, 10

As colocações a seguir baseiam-se em: SCHULZ VON THUN, Friedemann. Miteinander reden. V. 1. Reinbeck: Rowolt, 1981. p. 44-68.

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desgostosa ou irritada, que sente-se solitária e que precisa de contato social. Schulz von Thun chama este nível de nível da auto-revelação.

É provável que a frase da paciente também contenha uma exigência, uma expectativa ou um apelo dirigido à voluntária. Trata-se do nível do apelo, no qual ela, na verdade, quer dizer: “Por favor, cuide mais de mim”; ou: “Diga-me como posso te encontrar quando precisar falar contigo”. O quarto nível é o nível do relacionamento. A paciente pode estar tentando comunicar à voluntária: “Você é muito importante para mim, eu preciso muito sua companhia”; ou: “Você me decepcionou, não posso mais confiar em você”.

Nível Objetivo “Não foi possível estabelecer contato telefônico”

Nível da Auto-Revelação “Eu estou triste, frustrada, irritada, sinto-me solitária”

Mensagem “Eu liguei cinco vezes para você, mas nunca havia alguém em casa!”

Nível do Apelo “Por favor cuide mais de mim! Diga-me como posso te encontrar quando preciso falar contigo!”

Nível do Relacionamento “Você é muito importante para mim, preciso de tua companhia. “Você me decepcionou, não posso mais confiar em você!”

Os quatro níveis de uma mensagem demonstram que uma única mensagem pode conter diversas afirmações. Para o diálogo de ajuda é imprescindível procurar perceber em qual nível o emissor está transmitindo sua mensagem. Ele está querendo apenas comunicar uma informação objetiva ou deseja falar de si? Ele está me dirigindo um apelo ou deseja comunicar algo sobre nosso relacionamento?

Nossos quatro ouvidos Por princípio, o receptor tem a possibilidade de ouvir uma mensagem em todos os quatro níveis e determinar em qual nível o emissor deseja se comunicar. Assim, o receptor tem, na verdade, quatro ouvidos:

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Ouvido da Auto-

Ouvido Objetivo

Revelação

Ouvido do Relacionamento

Ouvido do Apelo

Muitos receptores têm a tendência de privilegiar seu ouvido objetivo. Ouvem preferencialmente o lado objetivo da mensagem. Geralmente são homens ou pessoas com formação acadêmica. Geralmente têm dificuldades com sentimentos e emoções. Privilegiar o ouvido objetivo pode conduzir a conflitos se a mensagem enviada pelo emissor queria comunicar algo acerca do relacionamento ou desejava comunicar algo a respeito de si mesmo (auto-revelação). Uma resposta objetiva à paciente que se lastimava de ter telefonado cinco vezes sem ter sido atendida, poderia ser: “Geralmente estou em casa entre as 19h e 22h. Se a senhora ligar neste horário, aumentam suas chances de ser atendida”. Esta resposta demonstra que o interlocutor da paciente não utilizou o ouvido da autorevelação, permanecendo surdo aos sentimentos contidos na mensagem. Caso tivesse percebido o sentimento, poderia ter ido ao encontro da paciente, verbalizando o mesmo: “A senhora deve ter ficado muito decepcionada por não ter conseguido o contato”. Esta forma de “espelhar” os sentimentos, comum na terapia centrada no cliente (Carl Rogers), no entanto, não pode ser utilizada em qualquer conversa. Se alguém perguntar “que horas são” - comunicandose, portanto, no nível objetivo - e você ouvir a mensagem com o ouvido da auto-revelação e reagir espelhando algum possível sentimento - “você está se sentindo completamente desorientado” – apenas deixará seu interlocutor perplexo. Com o ouvido do apelo, o receptor pode decifrar desejos ou expectativas veladas do emissor e reagir aos mesmos. No exemplo dos telefonemas, seria possível articular o desejo percebido: “A senhora gostaria de me encontrar mais facilmente”. Esta colocação poderia vir acompanhada por alguma sugestão de como seria possível corresponder a este desejo. Quem, no entanto, tem o ouvido do apelo exacerbadamente aguçado, poderá estar reagindo a apelos que sequer foram formulados. Pessoas que sempre se desculpam ou se defendem, têm a tendência de privilegiar o ouvido do apelo. O ouvido do relacionamento serve especialmente para perceber se a comunicação entre emissor e receptor acontece em harmonia ou se um problema de relacionamento está perturbando a comunicação. Uma reação adequada no exemplo dos telefonemas poderia ser: “Eu vejo como o contato comigo é importante para a senhora (o que me alegra); eu sinto muito

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que a senhora não conseguiu me encontrar”. Pessoas que privilegiam em demasia o ouvido do relacionamento, porém, tendem a levar tudo para o lado pessoal, geralmente sentindo-se diminuídas ou atacadas.

Para uma compreensão adequada e equilibrada, portanto, cabe, em primeiro lugar, perceber em qual nível o emissor deseja comunicar sua mensagem. Paralelamente, é importante a análise crítica a respeito do ouvido que tendemos a privilegiar ou do ouvido no qual somos surdos. A hipersensibilidade e a insensibilidade podem distorcer a mensagem e tumultuar a comunicação. Neste sentido, o auto-conhecimento é a chave para uma boa comunicação.

Descobrindo os diferentes níveis de uma mensagem 11 Procure anotar as diferentes mensagens que poderiam estar contidas nas seguintes frases:

Paciente: “A janela está aberta de novo”

Nível objetivo: Nível da auto-revelação: Nível do apelo: Nível do relacionamento:

Parente: “Já faz alguns dias que minha mãe não come mais”.

Nível objetivo: Nível da auto-revelação: Nível do apelo: Nível do relacionamento:

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Extraído de: MÜLLER, Monika; HEINEMANN, Wolfgang. Handreichung für Multiplikatoren. Bonn: Alpha, 1996. p.125-126.

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Acompanhante: “Não faz bem a gente ficar o dia todo se preocupando”

Nível objetivo: Nível da auto-revelação: Nível do apelo: Nível do relacionamento:

Os quatro níveis de uma mensagem no ouvido do receptor12 Ouça as seguintes afirmações. Procure perceber qual a mensagem que você ouve. Com qual dos seus quatro ouvidos você ouve a mensagem? Reflita sobre como você reagiria.

1 – Parente de paciente terminal para o/a voluntário/a:

“O mais difícil é que não se consegue mais sair de casa. Sempre, sempre sou obrigado a ficar em casa – dia e noite. Você nem sabe o que isto significa.”

Que mensagem você ouve? Com que ouvido você ouve esta mensagem? Como você reagiria a esta afirmação?

2 – Paciente aidético de 35 anos para a/o voluntária/o:

“É deprimente. Eu me sinto tão isolado. As poucas pessoas que ainda vêm me visitar, geralmente nem me dão a mão. Na verdade, já estou morto.”

12

Extraído de: MÜLLER, Monika; HEINEMANN, Wolfgang. Op.cit. p.130-131.

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Que mensagem você ouve? Com que ouvido você ouve esta mensagem? Como você reagiria a esta afirmação?

3 – Senhora de 76 anos para a /o voluntária/o:

“Eu nem sei o que você quer comigo. Você nem pode me ajudar. Aliás, me ajudar ninguém pode. Seria melhor que todos me deixassem em paz.”

Que mensagem você ouve? Com que ouvido você ouve esta mensagem? Como você reagiria a esta afirmação?

Os desejos de um paciente terminal O relacionamento com pessoas moribundas revela que a proximidade da morte não diminui a força de desejos e aspirações. Se, antes, o desejo dominante era por uma vida digna, agora, o desejo maior é por uma morte digna. O autor Johann Christoph Student 13 demonstrou que é possível agrupar os desejos de um moribundo em torno das quatro dimensões da vida: a dimensão física, a dimensão, psíquica, a dimensão social e a dimensão espiritual.

Segundo Student, pessoas que estão próximas do fim de suas vidas, geralmente expressam o desejo de morrer em casa, ao lado de seus entes queridos. Este desejo revela a dimensão social do morrer. O moribundo deseja sentir o amor e a ajuda daqueles a quem ama. Ele necessita sentir o amor de familiares, amigos, vizinhos. Este desejo revela também a necessidade de saber que, na hora derradeira, ele estará amparado por pessoas fortes o bastante para acompanhá-lo no caminho do morte. A dimensão física e corporal do morrer Student vê expressa no desejo de morrer, se possível, sem sofrimento e dor, sem desfigurações corporais e sem perda de consciência.

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In: Pflegen bis zuletzt. Munique: Christophorus-Hospiz-Verein 1989. p. 55-56.

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Já a dimensão psíquica do morrer revela-se para Student na esperança do moribundo de desenvolver forças suficientes para poder aceitar a realidade de sua morte iminente. Por outro lado, revela-se também na verbalização da esperança de recuperar a saúde – mesmo que por milagre. Para Student, a dimensão espiritual do morrer revela-se no desejo de estar preparado para a morte. Mostra-se, igualmente, no desejo de viver de forma mais consciente os últimos meses ou dias. Não por último, esta a dimensão espiritual leva ao desejo da vida ter tido sentido e da morte não ser o fim definitivo da existência.

Cabe ao/à acompanhante, ao/à parceiro/a, à/ao voluntária/o aceitar estes desejos do moribundo sem medi-los em suas normas pessoais. Se for capaz disso, não apenas trará alívio ao moribundo mas também proporcionará crescimento e desenvolvimento pessoal a si próprio.

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Unidade IV – Compreender Um dos exemplos bíblicos mais felizes para explicar a diferença entre ouvir e compreender é o texto de Lc 24.13-35 onde Jesus caminhou com os discípulos até Emaús. Ele permitiu que eles lhe contassem aquilo que ele mesmo já sabia, mas era importante que os discípulos pudessem falar daquilo que sentiam diante daqueles acontecimentos. Jesus ouviu pacientemente e ainda os estimulava a falar, sem corrigir, julgar ou interromper. A empatia foi tão grande que o convidaram para permanecer com eles. Saber ouvir é um dom que todo cuidador precisa exercitar. Sabe-se que na Igreja Antiga (também hoje) existiam pessoas com o poder de ver o que se passava no coração de uma pessoa sem ter de ouvir uma só palavra. Muitas vezes desejaríamos ter este dom extraordinário. Ouvir com dedicação também é a uma bela e eficaz ferramenta para compreender nosso interlocutor. Compreender o outro é algo complexo, porque necessita atenção também às entrelinhas do diálogo. Observar a tonalidade de voz, a forma de olhar, a expressão corporal, os momentos de silêncio, etc. Muito importante é estar atento ao outro, porque existe sempre o perigo de trazer para o diálogo os próprios pensamentos, sentimentos e assim interpretar precipitadamente o outro. É exercitando que vamos nos dando conta do que é meu (minha carga simbólica) e o que é do outro. Compreender necessita de franqueza e sensibilidade para comigo e para com o próximo. Vejamos um exemplo:

Carta de um estudante desconhecido 14 “Por favor, ouve o que eu não digo! Não deixes que eu te faça de bobo! Não te deixes enganar pelo meu rosto, pois eu carrego mil máscaras – máscaras, das quais temo me desfazer. E nenhuma delas sou eu. Fingir é uma arte, e fingir é a minha segunda natureza. Mas, pelo amor de Deus, não te deixes enganar.

Dou a impressão de ser afável e querido, de ser um sujeito radiante e feliz tanto interna como externamente. Dou a impressão que sei tomar as decisões necessárias e que não preciso da ajuda de ninguém. Mas não acredites em mim! O meu exterior pode parecer seguro, mas não passa de uma máscara. Por detrás dela não existe nada disso. Por detrás dela estou eu, assim como verdadeiramente sou: perturbado, desnorteado, cheio de medo e solitário. Procuro, porém, ocultar tudo isso, pois não quero que alguém o perceba. Entro em pânico só em pensar nas minhas fraquezas e tenho medo de me expor aos outros. Justamente por isso é que, como um louco, invento máscaras, por trás das quais consigo me esconder. Trata-se, sem dúvida, de uma fachada astuta e esperta que me serve como disfarce para evitar que alguém perceba quem realmente sou. Contudo, se finalmente alguém viesse a descobrir quem realmente sou, estaria salvo. Estou consciente disso. E se essa descoberta viesse acompanhada 14

A “carta de um estudante desconhecido” foi extraída de uma palestra do Professor Dr. Tobias Brocher acerca do medo, proferida no Dia da Igreja Evangélica em Frankfurt em 1975. A palestra na íntegra encontra-se em: In: Deutscher Evangelischer Kirchentag Frankfurt 1975. Dokumente. Stuttgart: #,1975. p. 145-146.

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de aceitação, de compreensão e de amor, então isso me daria segurança, segurança que não consigo dar a mim mesmo: a segurança e a consciência de que tenho algum valor. Mas eu não posso dizer isso para ti. Não tenho coragem. Tenho medo. Temo que não consigas me ver com olhos de aceitação e de amor. Temo que não me dês importância e venhas a rir de mim – e isso seria o meu fim! Tenho medo de que ter que concordar que sou um nada, que tu o percebas e que venhas a me rejeitar. É por isso que desempenho meu papel com unhas e dentes: para o público, sou um ator perfeito; em meu íntimo, porém, não passo de uma criança insegura. Eis porque me expresso de forma vulgar e o que digo é totalmente superficial. Conto-te uma porção de coisas sem significância alguma, e nada te conto do que é verdadeiro, daquilo que em mim grita por socorro. Por isso, não deixes que minha conversa fiada te engane. Ouve atentamente e procura detectar o que eu não digo – o que eu gostaria de dizer, o que eu digo por motivos de sobrevivência e o que eu não posso dizer. Odeio os jogos de esconde-esconde. Estou sendo sincero! Detesto este teatro superficial, no qual não passo de ator. É pura falsidade. Meu sonho é poder ser realmente verdadeiro e natural, é poder ser eu mesmo. Para tanto, preciso da tua ajuda. Tu precisas me estender a tua mão, ainda que isso seja a última coisa que eu deseje e de que necessite. Toda vez que és verdadeiro para comigo e me encorajas, e sempre que tentas me compreender, porque realmente te preocupas comigo, meu coração se vê dotado de asas – asas pequenas, sem dúvida, mas asas! Tua amizade, tua compaixão e tua capacidade de me compreender me enchem de ânimo para continuar vivendo. Quero que saibas o quão importante és para mim e como tu me podes transformar na pessoa que eu realmente sou – se é que realmente queres me ajudar. Meu desejo, meu sonho é que tu o queiras. Só tu podes deitar por terra a parede que oculta e encoberta todos os meus medos e inquietações. Só tu podes retirar de mim as máscaras e me libertar deste meu mundo de sombras, dos meus medos e inseguranças, da minha solidão. Por favor, não me ignores, não me rejeites! Não será fácil para ti. Sentir-se completamente convicto de que não se tem nenhum valor desemboca na necessidade de se erigir muros protetores em torno de si. Quanto mais te aproximas de mim, tanto mais te rejeito. Acabo erguendo muros contra aquilo que mais necessito. Minha esperança é que o amor proteja mais que qualquer muralha. Que possas derrubar essas muralhas com mãos firmes e cheias de cuidado, pois a criança dentro de mim é muito vulnerável! Quem sou eu, perguntas tu? Eu sou alguém que tu conheces muito bem. Sou todo aquele que tu encontras – todo homem e toda mulher que cruzam o teu caminho.”

O que é que esta carta desencadeia em você? Você se reconhece nas palavras deste desconhecido? O que você lhe responderia? Que tal lhe escrever uma resposta? Margot Bickel resumiu em um poema o desejo de compreender e de ser compreendida:

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Desejo para ti e para mim olhos que conseguem discernir as luzes e os sinais em nossa escuridão

ouvidos que conseguem captar os clamores e as verdades em meio aos nossos atordoamentos

para ti e para mim desejo uma alma que acolha e absorva tudo isso

e uma linguagem que a partir de sua honestidade nos liberte de nossa mudez e nos permita expressar o que nos mantém prisioneiros 15

15

In: Geh deinen Weg, Textos de Margot Bickel para as ilustrações de Hermann Steigert, Freiburg: Herder, 1983.

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O capelão hospitalar Hans-Christoph Piper pesquisou minuciosamente a forma de se expressar dos pacientes terminais. Tendo em vista que sua dissertação contém observações muito importantes sobre o tema em estudo, reproduzimos a mesma aqui em sua íntegra.

A linguagem de um paciente terminal16 “O que é linguagem?

Recentemente, uma paciente pediu à assistente social do hospital, que a visitava, para pegar sua carteira na gaveta da mesa-de-cabeceira e contar o dinheiro que nela se encontrava, inclusive as moedas. A paciente estava preocupada com a pequena importância e conjeturava em como poderia arranjar dinheiro. “Mas o que tenho será suficiente até quinta-feira”, disse ela. A assistente social ficou um tanto surpresa com esta conversa, pois a paciente não tinha como e nem precisava gastar esse dinheiro ali dentro do hospital. Por que será que ela estava tão inquieta em relação ao dinheiro? – A paciente veio a falecer na quinta-feira. Este acontecimento causa duas possíveis reações. Podemos declarar a paciente de “mentalmente perturbada” e dizer que ela “está fantasiando”. Tais interpretações são, em regra, sinais de nossa resistência contra alguma coisa que nós não entendemos. Ou nós perguntamos: O que existe de especial na linguagem? O que, enfim, é a linguagem? Neste caso, o que queremos é compreender. Diante do número significativo de particularidades lingüísticas, como as relatadas nas conversas com pessoas em crise, a última reação torna-se mais aceitável, compreensível para nós. Ainda que eu próprio não seja um filólogo ou lingüista, desejo, antes de tudo, manifestar-me sobre a pergunta colocada de forma genérica: “O que, enfim, é a linguagem?” A frase “Mas que dia sombrio é esse hoje!” pode expressar três coisas. Em primeiro lugar, ela descreve um fato objetivo: o tempo está sombrio, nebuloso; o céu está encoberto; está frio e chuvoso. E foi esta justamente a previsão do tempo transmitida pela televisão na noite anterior. Muitas vezes, porém, o autor desta frase também poderá estar expressando um tipo de “condição meteorológica interior”. Ele se sente triste, deprimido e não tem a devida disposição para enfrentar o dia. E esta frase ainda pode conter em si um terceiro significado; afinal, ela está sendo dita para alguém, e o emitente quer muito que o ouvinte preste atenção no que diz. Ele quer que este permaneça um pouquinho ao seu lado, o ouça e o ajude a enxotar a névoa que se encontra dentro dele. Esta tríplice função da linguagem: transmissão de um fato objetivo, expressão de um estado emocional bem pessoal e, finalmente, o apelo ao ouvinte, já foi descrita por Platão. Filólogos ou lingüistas retomaram esse assunto e advertiram para que não se restrinja a linguagem apenas à transmissão de fatos concretos. Reside aí um angustiante e conflitante problema da comunicação do nosso tempo. Nietzsche o descreveu assim: “Aqui, a linguagem está doente por toda a parte, de modo que já não mais 16

Extraído de: Christophorus-Hospiz-Verein (org.). Pflegen bis zuletzt. Munique, Christophorus-HospizVerein e.V., s.d. p. 106-114.

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consegue cumprir a sua função primária, a razão de sua existência: a de possibilitar aos que sofrem comunicar aos outros as mais simples ameaças que estão colocando sua vida em risco.” Nosso problema consiste em termos restringido a linguagem a um plano meramente material e racional, ou seja: atrelamos a linguagem apenas às coisas! Só que isso significa abdicar dos simbolismos, das peculiaridades casuais tão inerentes à linguagem, de modo que acabamos nos distanciando do plano emocional em que se encontra nosso interlocutor, nosso parceiro de diálogo (e de nós próprios!). Em termos psicológicos, o sentido desse distanciamento é a repulsa, o rechaço, a rejeição do “apelo” feito a nós. Isso, porém, causa, provoca a demolição radical do relacionamento. Nosso parceiro de diálogo se sente incompreendido e não consegue digerir, trabalhar o que o aflige neste momento. No campo médico, este problema se aguça no tocante à diagnose. Uma paciente com câncer queixou-se amargamente comigo, dizendo que a médica, que dela tratava, não conversava com ela. Contei à médica sobre a queixa que ouvira. Ela me disse que falara abertamente com a paciente e que lhe comunicara o diagnóstico e o resultado dos exames laboratoriais. Retornei ao quarto daquela mulher. “Sim,, sim”, disse-me ela, “a doutora realmente conversou comigo. Mas foi tudo muito rápido. Nem lhe pude fazer algumas perguntas. Nem tive tempo para assimilar tudo o que ela me disse.” É bem provável que a conversa entre a médica e a paciente tenha permanecido no plano racional, na esfera da linguagem objetiva, científica. A médica não se envolveu, ou não quis se envolver com a realidade, com o plano emocional da sua paciente e, conseqüentemente, “não ouviu” o seu apelo. A queixa mais ouvida nos hospitais é esta: “Aqui ninguém tem tempo para mim. Eu sou apenas um número, nada mais!” O segredo, o mistério da linguagem, ou a restrição, o enfraquecimento de sua finalidade primária resume-se no seguinte para nós: somos obrigados a fazer uso da objetividade, da exatidão, do que não deixa dúvidas (isso implica em não permitir a existência de outras possibilidades de comunicação). Em resumo: o trato cientificamente responsável em relação à doença tem um preço muito alto e praticamente impagável, que é o preço que leva médicos a manter distância de seus pacientes e a evitar o envolvimento pessoal e amoroso, de evitar “o compreender-um-ao-outro”. É justamente neste ponto que nos rendemos ao engano, ao equívoco de que o essencial, o verdadeiro consiste só naquilo que podemos comprovar na prática, no que podemos mensurar, no que podemos analisar objetivamente, sendo que o subjetivo, o plano emocional é visto como algo simplório, secundário, sim, como algo incômodo e perturbador, o que também se revela na forma de nos expressarmos verbalmente ao dizermos que isso é apenas (!) subjetivo (no sentido de algo imaginado, inverossímil). A realidade, porém, é bem outra. Os estudiosos da comunicação diferenciam entre as formas “digital” e “analógica” da comunicação. A primeira se refere ao plano racional. Ela pode ser armazenada num computador. A forma “analógica” da comunicação é a “linguagem-mãe” no sentido mais profundo, é a linguagem dos sentimentos, dos símbolos e imagens, e quase sempre se manifesta em atitudes como rir, chorar, gemer, ou em gestos não-verbais (por exemplo: movimento desdenhoso da mão). Em termos da psicologia do desenvolvimento, essa forma de comunicação é primária. Para compreendê-la, aliás, é indispensável considerar que a forma “analógica” da comunicação determina o sentido ou conteúdo da forma “digital”. A frase “Está chovendo” tem sentido bem diverso quando proferida num verão chuvoso em plena temporada de férias na praia ou no sertão nordestino. O estado de espírito das pessoas, seu plano emocional, determina o sentido, o significado da frase. Por isso também não podemos eliminar o medo com argumentos racionais (= plano racional) – ainda que os argumentos sejam os mais convincentes. Isso pode ser observado tanto na clínica como na política (movimento

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pacifista!). Pelo contrário: diálogos deste tipo, que se desenvolvem em planos diferentes, de formas que os interlocutores não conseguem se entender, só aumentam o medo. O paciente percebe nitidamente que o médico ou a enfermeira se esquivam de seu apelo, rejeitam seu apelo por sentirem medo. A pessoa em crise procura desabafar, e já que sua crise se manifesta em seu plano emocional, ela dificilmente falará sobre o seu estado com argumentos racionais, objetivos. Esta linguagem restringida ao plano racional não basta para ajudá-la em sua necessidade.

Histórias

Após a abordagem desta questão, desejo, no que segue, analisar melhor a linguagem do plano emocional. Com base no que foi exposto até agora, podemos concluir o seguinte: ela não é uma linguagem dos conceitos, dos juízos, das deduções lógicas; não é uma linguagem que procura solucionar o problema pela via da abstração. É, muito antes, a linguagem das histórias, das imagens e parábolas, dos símbolos e metáforas. Uma paciente interrompe inesperadamente a conversa e, sem nenhum nexo com o que estávamos conversando, conta esta história: “Há muito tempo aconteceu o seguinte: para poder dormir melhor à noite, tomei um comprimido. À meia-hora da madrugada alguém bate à porta da varanda. Lá estavam minha vizinha, seu marido, mais outra vizinha e seu marido e a professora que alugou um quarto em minha casa. Cinco pessoas! A professora não conseguira entrar, pois havia esquecido a chave. Ela telefonou e tocou a campainha, mas eu nada ouvi por causa do comprimido. Então ela chamou os vizinhos da frente e a outra vizinha, e eles me acordaram. Essa história é subitamente lembrada pela paciente de sessenta e seis anos e muito doente durante a visita de um capelão. Qual o porquê dessa história? Por que ela a conta justamente agora? Aliás, a própria paciente se faz esta pergunta, pois ela continua: “Por que estou contando isso agora?” Então lhe ocorre uma explicação: individualmente, nenhum deles teve coragem – por isso pediram ajuda aos outros. Só que isto não é resposta para a pergunta: por que estou contando isso agora? Talvez possamos chegar perto de uma resposta se tentarmos, por assim dizer, penetrar na história, se nos identificarmos com esta senhora. Afinal, lá acontecera algo apavorante. Foi como num pesadelo: pessoas querem entrar na minha casa. Elas batem à porta, tocam a campainha, gritam e até telefonam. É noite. Eu não os escuto. As pessoas certamente ficam com medo. O que terá acontecido com esta mulher? Sem dúvida, alguma coisa aconteceu com ela! O medo (que elas não verbalizam) de que algo deve ter acontecido é tão grande que elas não se arriscam em tomar providência sozinhas. Elas pedem ajuda. Um acontecimento tremendamente dramático! Pessoalmente, a mulher nada percebe – o que é o verdadeiro lado dramático nesta história -, não percebe nada... mais, assim talvez gostaríamos de continuar, e com isto certamente detectamos o sentido desta história!. A mulher se lembrou de uma história do seu passado, com a qual ela consegue dar vazão ao seu plano emocional atual. Um plano emocional que ela ainda tem grandes dificuldades em compreender objetivamente, o que se mostra no fato de ela própria não entender o porquê de ter contado

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esta história justamente agora, e que relação existe entre a história e a situação em que se encontra no momento. É bastante freqüente que histórias do passado, que ouvimos de pessoas em crises muito especiais, têm um sentido relacionado com sua atual situação. Quase sempre são histórias de guerra, cativeiro, prisão, fuga, da morte de familiares falecidos há mais tempo ou de um acontecimento apavorante como o narrado acima. O ouvinte, não raro, fica entediado ou até irritado com estas histórias, porque não consegue ver nelas sentido algum. Mas é muito importante perguntar-se em tais situações: o que é que o paciente está dizendo sobre si próprio para mim neste exato momento – e por que justamente para mim?

Sonhos

O próximo exemplo, relatado para nós por uma irmã ainda em formação, leva-nos um passo adiante. Ela cuida de uma senhora cancerosa de oitenta e quatro anos. Já perto do meio-dia, ela entra no quarto para medir sua temperatura e seu pulso. Ao entrar, a mulher abre seus olhos. A irmã a cumprimenta e lhe explica porque está ali. “Sim, faze o que é preciso”, responde a mulher, olha para a irmã e segura a mão que a irmã lhe estende. “Irmã, está tudo tão frio e escuro!” A irmã se surpreende, pois o dia está quente e claro. “Está frio e escuro?” devolve ela. “Sim, irmã, está muito frio e escuro, muito frio e escuro. O frio se apodera de mim. Meus pés e minhas mãos já estão congelados. E a escuridão – a senhora não a percebe, irmã? Está tão frio e tão escuro, frio e escuro!” A irmã segura as mãos da mulher. Elas estão quentes. Ela pergunta: “A senhora tem medo do frio e da escuridão?” “Medo?” responde a mulher, “por que deveria ter medo? Não, não tenho medo. A mamãe está comigo, a mamãe de sapatos pretos; e ela está vestida com uma capa preta. Não, enquanto a mamãe de sapatos pretos estiver aqui, não preciso sentir medo.” A irmã aguarda mais um pouco para saber se a mulher deseja continuar falando. Em seguida, cumpre sua tarefa: dá-lhe de beber e se despede. Ao retornar ao quarto no dia seguinte, a paciente acabara de acordar. E ela, com uma expressão feliz e quase que tomada de entusiasmo, conta: “Irmã, irmã, eu tive um sonho tão lindo, tão maravilhoso!” Ela procura pela mão da irmã. “Imagina só, eu sonhei com o meu enterro. Sonhei que minha sepultura estava aberta e que todos os meus familiares estavam ali, e eu podia ver todos eles: meus filhos, meus netos e minha

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bisneta, e eles também me viam. Todos eles são bons para mim, tão bons! E eu os amo tanto! Jamais os esquecerei. Jamais, jamais, jamais! A irmã aperta sua mão. “Que sonho lindo!” A senhora idosa continua: “Sim, e a mamãe também está aqui. Ela acabou de chegar, a mamãe de sapatos pretos. Ela apareceu sem fazer barulho. Como ela é querida... A mamãe de sapatos pretos está comigo...” A irmã, surpresa e confusa, fica em silêncio. A mulher ainda balbucia algumas vezes: “Mamãe, mamãe!”, e: “Mamãe de sapatos pretos!” Ela, então, se cala e dá a impressão de que está longe, distante... A irmã pergunta se ela ainda precisa de alguma coisa. A seu pedido, umedece-lhe os lábios e se despede, prometendo-lhe retornar em breve. A mulher faleceu dois dias depois. O leitor deste relato não poderá deixar de externar sua admiração para com a irmã ainda em formação. Ainda que se sentisse muito insegura diante do que a paciente lhe contou – como ela mesma relatou -, e ainda que não tivesse nenhuma certeza de que tinha agido corretamente e de forma apropriada, salta à vista e causa admiração o jeito tão apropriado como ela se relaciona com a mulher, como ela permanece firme junto dela e como lhe dá segurança por meio de sua presença e de sua compreensão. Para comprovar isso, basta observar o número de vezes que menciona ter segurado ou tocado a mão da paciente. Ao nos ocuparmos com as mais impressionantes palavras da paciente, constatamos três categorias na “linguagem do plano emocional”. Em primeiro lugar, defrontamo-nos com um plano emocional “sensorial”. A paciente sente que tudo se torna escuro e frio. Isso não tem nada a ver com a temperatura que se pode medir com o termômetro ou com a luminosidade que se pode constatar a olho nu naquele quarto. “O frio se apodera de mim”, afirma a paciente, totalmente convicta do que sentia. É fácil de imaginar o que teria acontecido se a irmã, em sua irritação, tivesse tentado provar à mulher que ela estava enganada, dizendo-lhe, por exemplo: “Mas que conversa é essa? Faz calor e o sol bate diretamente em sua cama. Suas mãos também estão bem quentes. Como é que a senhora pode dizer que está frio e escuro!” O relacionamento certamente teria sido interrompido e a paciente se sentiria desencorajada em continuar falando. A irmã pressente que a mulher está tratando de algo muito ameaçador. Por isso, pergunta se ela tem medo do frio e do escuro. A continuação do diálogo mostra que o mesmo se torna ameaçador, assustador para a irmã. O que a mulher lhe vai contando, deixa-a ansiosa, amedrontada – o que não é o caso para a paciente! Ela nega seu medo, reportando-se novamente à “mamãe de sapatos pretos” que teria entrado em seu quarto. Deparamo-nos aqui com mais uma “camada, esfera da linguagem”, que, segundo a teoria de C. G. Jung, poderíamos chamar de “arquétipa”. A paciente não está se referindo neste momento à sua própria mãe, que lhe aparece na hora de sua morte, mas “à” mãe. E nós compreendemos isso sem a necessidade de muitas explicações. Logo essa mãe envolverá a moribunda com seu manto preto. Mas nós também compreendemos o quão penoso deve ter siso para a irmã defrontar-se com as palavras desta mulher e, pela segunda vez, registramos nossa admiração sobre como soube ela administrar a situação.

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O mesmo vale em relação ao sonho que a paciente lhe contou na manhã seguinte. Também aqui se está fora da esfera do plano racional. Aqui nos encontramos na esfera da linguagem dos sonhos, na qual se manifesta o plano emocional da subjetividade. Neste tocante – ainda que pavorosa e sinistra – esta linguagem é totalmente compreensível tanto para a paciente como para a irmã. Tal intimidade com esta “linguagem do plano emocional”, como a verificamos no relato da irmã, não é, contudo, algo corriqueiro, comum. Pude experimentar como esse diálogo, que levei ao conhecimento de um grupo de capelães, suscitou confusão, ceticismo, resistência e até agressividade. No encontro, caíram palavras como: fantasia, espiritismo. Mas também é totalmente imaginável que enfermeiras, irmãs, médicos e familiares se assustem ao ouvir tais coisas de um paciente. Talvez digam, então: “Enlouqueceu!”, e, dependendo da gravidade, acabem solicitando que se aplique um tranqüilizante no paciente! Esta linguagem provoca insegurança. Ela é bem diferente da linguagem que “normalmente” usamos em nossas conversas, bem diferente da linguagem usada em nossa formação nos bancos escolares e em nossa formação profissional, bem diferente da linguagem científica e daquela usada pelos que nos repassam informações pelos meios de comunicação. Ela é, precisamente, a linguagem das crianças, dos poetas e dos salmos bíblicos. A linguagem, com a qual fazemos contas e calculamos perdas e lucros, que não admite erros, que é abstrata e lógica, esta linguagem não permite a existência da incerteza e da dubiedade, não permite que expressemos o inexprimível (porque tal nunca antes foi experimentado, analisado, testado, colocado em prática). Temor e esperança, dúvida e fé, pressentimento e incerteza: a vida com seus altos e baixos, a vida que surge e desaparece, a vida vivenciando crises – a vida não pode, não consegue se transmitir, se expressar, se manifestar, se fazer valer nesta linguagem. Esta é a razão porque moribundos, tantas vezes, morrem de forma tão solitária. Eles não são compreendidos, porque nós ainda não somos capazes de compreender a linguagem em sua dimensionalidade plena, que toca, simultaneamente, as bordas do céu acima de nós e as bordas do abismo mais profundo abaixo de nós.

Símbolos

Menciono dois símbolos muito corriqueiros e bastante usados por pessoas que vivenciam uma crise muito significativa. Com o primeiro, já nos defrontamos no início desta minha dissertação: uma mulher teme que seu dinheiro não seja suficiente para cobrir suas despesas. Este temor se faz presente em múltiplas outras situações: medo da inflação, da possibilidade de o internamento hospitalar custar muito caro, de deixar de receber a aposentadoria, de que parentes e conhecidos saquem dinheiro da poupança, de que a propriedade seja vendida, de que o dinheiro da carteira tenha sumido enquanto se encontrava na mesinha-de-cabeceira etc... Normalmente, tais conversas deixam todos que estão em volta irritados. Tenta-se convencer o paciente de que não precisa se preocupar, o que é em vão. Podemos nos aproximar da compreensão do conteúdo dessa conversa tão esquisita se nos lembrarmos de que existe um conto, no qual um burro deixa cair moedas de ouro quando se lhe puxa a cauda. Dinheiro e ouro (amarelo castanho!) são símbolos anais. E nós sabemos quão difícil é o processo de aprendizado

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para as crianças entregarem seu “ouro”, seu tesouro (o que está entesourado, armazenado dentro delas). Nessa fase são exercitados simultaneamente o entregar-se e o conseguir soltar alguma coisa. Aqui se torna compreensível o porquê de pessoas, que se encontram diante do “dever” de não apenas soltar alguma “coisa”, mas de soltar a si próprias, lançarem inconscientemente mão deste símbolo para expressar o que se passa em seu plano emocional. O outro símbolo que igualmente é muito freqüente junto a moribundos é o motivo da viagem. Pessoas que estão completamente inteiradas de seu estado podem, repentinamente, surpreender os que estão à sua volta com a notícia de que estão planejando uma viagem. Algumas vezes até mandam trazer prospectos ou pedem para que façam suas malas, pois a hora da partida está chegando. Quase sempre a viagem os levará para além-mar, para lugares onde o sol é abundante e se pode descansar sob as árvores sempre verdes, ou para lugares onde a natureza continua intacta. Espera-se poder passar longas “férias” ali onde há silêncio e tranqüilidade, muitas vezes na companhia de parentes próximos. Às vezes até são mencionadas datas bem determinadas para a partida. E estas geralmente coincidem com a data do falecimento. Uma mulher, que estava à morte, até quis levar a capelã, que a visitava, junto em sua viagem. “Que bom que a senhora chegou”, disse ela. “Já está em cima da hora; o navio já está de partida e eu quero que a senhora me acompanhe.” Ela segura a mão da capelã e a puxa para bem junto de si. “A senhora conhece madrepérola?” A capelã diz que sim. “A senhora também gosta tanto dela?” E quando a capelã responde afirmativamente, a mulher continua: “Oh, que bom que a senhora também goste tanto de madrepérola. A senhora também sabe que estão cada vez mais escassas por aqui? A gente nem as encontra mais. É por isso que vou fazer esta viagem. Nem sei se o navio vai para o Japão ou para a China, mas isso nem interessa. O importante é que consigamos encontrar madrepérolas.” A capelã permanece em silêncio absoluto e não se atreve a interromper a mulher. Pouco depois, ela continua: “Não é lindo como o navio desliza calma e suavemente por sobre a água? É um bom capitão, esse que está no comando. A água está tão azul como o céu!... Será que ainda falta muito para chegarmos? A viagem é muito longa! Tenho tanta saudade da madrepérola... Eu a estou vendo; ela brilha – veja a senhora como ela brilha – oh, ali está ela...” Então ela recita este verso: “Senhor, nos alumia por tua excelsa luz! Sê mesmo o nosso guia que à salvação conduz!” Ela fecha os olhos. A boca está bem aberta. Não mais se ouve sua respiração. Este relato tem uma continuação que nos deixa boquiabertos e que não deve ser omitida. A capelã se dirige à enfermeira-chefe e lhe diz: “Eu penso que ela faleceu.”

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A enfermeira levanta-se de um pulo, arrasta a capelã consigo, atira-se sobre a paciente e inicia uma respiração boca a boca. Ela chama um médico – a reanimação é um sucesso. Depois disso, a paciente ficou totalmente transtornada. Ela se de defendia, batia com as mãos em volta de si e gritava. Durante os dias em que ainda viveu, rejeitou todo e qualquer contato, também o contato com a capelã. A enfermeira justificou a reanimação com estas palavras: “Em meu setor não se morre enquanto estou de serviço.” Mas depois que a capelã lhe contou a história de dois dias atrás, a enfermeira ficou profundamente chocada, entrou em crise e repensou sua posição em relação à morte e ao morrer. Este exemplo impressionante já mostra que é muito tênue a parede entre a linguagem simbólica e a ação simbólica. Um paciente pediu ao capelão que lhe tirasse seu relógio de pulso. Mas ele não tinha mais nenhum relógio no pulso, e os familiares presentes tentavam lhe explicar isso. O capelão teve grande dificuldade em lhes esclarecer o que o paciente estava expressando com seu desejo: o meu tempo terminou! Uma paciente, ao término de longo diálogo, mostrou para a capelã uma rosa que estava sobre a mesa do seu quarto. “Veja como é linda! Só é pena que ela nunca mais tenha recebido água fresca.” A capelã se prontificou a resolver o problema. A paciente acompanhou atentamente o que fazia a capelã e até lhe dava orientações. A capelã perguntou-lhe se ela não queria mais a rosa perto de si ali sobre a mesa. A paciente pediu que colocasse a rosa o mais perto possível de seus olhos e disse: “A senhora nem pode imaginar o quanto significa isso que a senhora fez por mim!” Provavelmente esta atitude tinha para ela um significado bem mais “profundo”, alguma relação com a sua atual situação. Martin Buber disse que “não é o significado singular da palavra, mas seu significado ambíguo que constitui a linguagem viva”. Isso ainda será mostrado por um exemplo, em que a metáfora “ir para casa” se encontra no centro da questão.

Metáforas

Uma capelã visitava uma paciente com idade aproximada de cinqüenta anos que dava a impressão de estar sofrendo muito. Ela saúda a paciente e se apresenta. Então a paciente diz: “Sim – bom-dia – meu tempo está chegando ao fim!” Ela estende a mão para a visitante e convida-a a sentar-se. “Sim, meu tempo está chegando ao fim!” A capelã procura se aproximar cautelosamente do real significado daquela expressão. “Senhora L., a senhora experimentou alguma coisa que a deixa tão desesperançosa?” “Sim, eu não tenho nenhuma esperança.” A mulher fala baixinho, fazendo pausas, durante as quais se esforça para respirar. “Eu devo ir para casa! E isso, em breve! É tudo muito rápido, muito rápido!” A capelã procura compreender:

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“Senhora L., a senhora está para deixar o hospital; seu tratamento aqui terminou – e isso deixa a senhora desesperançosa?” “Sim”, responde a paciente, “isto é minha sentença de morte!” A capelã fica assustada. Percebemos em suas palavras seguintes como ela tenta dar conta da própria insegurança e, ao mesmo tempo, acompanhar o que se passa na paciente: “Senhora L., não posso lhe dizer se é realmente assim. Não posso dizer se a compreendi corretamente. Eu senti que a senhora está profundamente chocada com a idéia de que sua vida talvez esteja se aproximando do fim.” A paciente segura sua mão: “Sim, eu estou cheia de medo em meu coração – meu câncer começou há quatro anos. Meu marido e eu sempre de novo temos conversado sobre a morte, e chorado... muitas vezes desejei a morte – e agora sinto que ela se aproxima rápido demais! E ela continua: “Eu ainda não consegui digerir tudo isso. Eu ainda não estou pronta!” A capelã pergunta: “Isso significa que a senhora ainda não está preparada para partir? A senhora ainda não botou tudo em ordem?” “Sim”, diz a mulher, “ainda não botei tudo em ordem. Lá em casa ainda tem muito trabalho esperando por mim.” “Trabalho...”, medita ela, “trabalho não é bem o termo. Meus papéis e outras coisas já estão em ordem... Mas lá em casa, lá estão meu marido, meus filhos, nossos amigos – tudo o que é importante em minha vida! E saber que minha vida está chegando ao fim – eu tenho medo!” A capelã desconfia do que “trabalho” esteja significando para ela e do que a moribunda sente medo: “Rever tudo o que tem enriquecido a sua vida até o momento – e o saber que logo depois terá que se despedir de tudo – isso deve ser muito duro, deve doer muito.”A mulher se sente compreendida. “Sim, isso dói! Aqui, tudo isto está bem longe de mim!” Ela respira com dificuldade e segura firmemente ambas as mãos da capelã. Ela parece estar travando uma dura batalha consigo mesma, a cor de seu rosto se torna ainda mais amarelada. A paciente, em alguns momentos, dá sinais de que quer falar, mas não consegue. Por fim, a capelã não o suporta mais. Então, ela simplesmente abraça a mulher e espera. Aquela luta muda dura uns quinze minutos. Aos poucos, então, sente-se um relaxamento. A mulher respira com mais facilidade. Finalmente, algo como um sorriso repousa sobre sua face: “Sim... para casa...” Isto soa bem diferente do “Eu devo ir para casa” do início do diálogo. A capelã está surpresa. “Senhora L., parece que agora transparece um pouquinho de saudade em sua voz.” “Sim”, diz a paciente, e depois de breve tempo: “Há pouco, a despedida doía muito... e agora... eu quero ir para casa, morrer!” E quase implorando, ela acrescenta: “A senhora consegue entender – por favor – a senhora consegue entender isso?”

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A capelã procura entender: “Para casa... isso significa proteção, calor, fim de todas as dores e do sofrimento?” “Sim”, responde a mulher, “tudo isso e muito mais. Para casa – onde eu poderei me sentir inteira novamente...” Em seguida, a mulher despede a capelã e pede que ela volte em breve. Este diálogo mostra exemplarmente como o horizonte se alarga e um determinado local se transforma em metáfora religiosa. Primeiro, a idéia “ter que ir para casa” tem o significado de uma sentença de morte. Ela significa que não existe mais socorro e salvação. Em seguida, “em casa” a faz lembrar de seus familiares e de tudo do que terá que se despedir em breve. Somase, então, uma batalha longa, penosa e muda. Só podemos imaginar o que se passou no íntimo desta mulher. Sem dúvida, porém, foi decisivo que alguém estava com ela neste momento, assegurando-lhe sua presença inclusive pelo contato corporal. E mais uma vez só podemos imaginar que não foi sem importância para ela que esta pessoa agüentasse ao seu lado em nome da Igreja, em nome de Deus. E então acontece o inesperado: “para casa” ganha um novo significado. A linguagem transcende, passa além do que está diante dos olhos. Se antes a idéia de ir para casa a enchera de medo e pânico, agora ela relaciona isso à esperança. “Para casa” – este é o lugar onde ela “poderá se sentir inteira novamente”. Já Heinrich von Laufenberg o expressou assim em seu hino: “Quem me dera poder em casa estar e do conforto do mundo não mais precisar!” Ouvimos esse desejo de finalmente estar em casa, no sentido acima, da boca de muitos moribundos. É constante o lamento de teólogos de que hoje se morre sem fé e sem religião. Correto, os ritos tradicionais, tão usuais junto a moribundos no passado, praticamente não são mais desejados, e as antigas orações de acompanhamento a moribundos só raramente são usadas. Mas quando prestamos atenção no que dizem os próprios moribundos, então percebemos que a dimensão religiosa, que se acreditava irremediavelmente perdida, só estava soterrada e pode emergir inesperadamente das profundezas. Para mim, tais encontros são sempre um novo desafio. Eles me confrontam com minha linguagem empobrecida, abstrata e insensível. Por outro lado, eles me abrem caminho para a linguagem da Bíblia, para a linguagem de Jesus com sua inesgotável abundância de ilustrações, parábolas e metáforas.” Como podemos ajudar uma outra pessoa a compreender melhor a si mesma? O psicólogo americano Carl Rogers acentua a importância de uma atitude “centrada no cliente” durante o diálogo. Dispensando uma atenção amorosa para com o interlocutor e verbalizando seus sentimentos, depois que os consegui identificar e me ter identificado com eles, possibilito-lhe compreender-se melhor a si mesmo. Nesse sentido, sirvo-lhe como uma espécie de espelho, no qual a outra pessoa pode se reconhecer com mais clareza. É por isso que também chamamos este verbalizar de “espelhar”. Ele poderá ser treinado como se treina o papel de uma peça teatral. Mas, cuidado! O “espelhar”, o “refletir”, como o entende Carl Rogers, é muito mais que um método. Trata-se, na verdade, de uma postura interior, do esforço para criar um espaço, no qual o meu interlocutor pode desabafar e sentir que não está sendo julgado.

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A verbalização dos sentimentos17 No ato de verbalizar sentimentos, ajudamos o interlocutor a conhecer melhor e a valorizar os seus sentimentos. Fazemos isso traduzindo suas manifestações indiretas de sentimento em manifestações diretas e colocando-o a par das mesmas. Por intermédio dessa atitude, mostramos-lhe que é correto, sadio e normal ter sentimentos, e que ele pode manifestar os mesmos a nós. Diferente do ato de parafrasear, nós não repetimos todo o conteúdo daquilo que o interlocutor manifestou, mas “espelhamos, refletimos” principalmente o conteúdo emocional que percebemos por detrás do que foi dito. Quando, por exemplo, um paciente reclama: “Quando toco a campainha, eles nunca aparecem, e também sempre sou o último a receber a comida, e então ela já está fria!”, é quase certo que, de suas palavras, podemos deduzir que ele se sente infeliz e ignorado. Se vocês lhe compartilharem o tipo de sentimento que colheram de suas palavras, então seus próprios sentimentos se tornarão mais claros para ele, o que o motivará a pensar adiante. Neste caso, vocês poderiam, por exemplo, responder assim: “Você parece sentir que eu me preocupo pouco com você.” Essa resposta e um diálogo nesse sentido o ajudarão a expressar suas necessidades de forma mais precisa, pois vocês lhe estão mostrando que aceitam seus sentimentos. O ato de verbalizar sentimentos também pode desembocar em medo. Pois o interlocutor poderá estar sendo confrontado com sentimentos, dos quais ele nem se tinha dado conta até então. Se o interlocutor reagir muitas vezes de forma defensiva enquanto vocês verbalizam os seus sentimentos, então é melhor ouvir objetivamente e parafrasear, sem “espelhar, refletir” diretamente os sentimentos. Para o ato de verbalizar os sentimentos é necessário que se crie antes uma atmosfera de descontração e de aceitação.

Exercício – respostas significativas 18 Procure formular respostas significativas para as perguntas de pacientes. Lembre sempre de se colocar no lugar das pessoas doentes e ver o impacto que tal resposta exerce sobre você mesmo. Anote suas respostas.

a) “O tempo não está muito animador.” b) “Então, de repente, um sentimento de grande vazio me invade.” c) “Eu não posso falar sobre isto com a minha família.” 17

HERZIG, Emil A. (org.), Sterben und Tod. Ein Unterrichtsmittel zur Begleitung Sterbender. Basiléia: Hoffmann-La Röche & Co,1982. folhas 16.2. 18

Extraído de: KOCH, Uwe; SCHMELING, Christoph. Betreuung von Schwer- und Todkranken. Ausbldungskurs für Ärzte und Krankenpflegepersonal. München: Urban und Fischer, 1982. p. 173.

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d) “Naturalmente que isto no começo foi um choque.” e) “Disto cada um tem que dar conta sozinho, cada um de nós.” f) g) h) i) j) k) l) m)

“A comida não tem mais o mesmo gosto como antes.” “É sempre comigo que acontecem estas coisas.” “Porque não posso simplesmente sair daqui e estar curado?” “Para você é fácil falar, você não está doente.” “Antes eu tinha medo de morrer, mas isto já passou.” “Quando me sinto mal, faço minha oração e, logo, tudo fica melhor.” “Se eu contar isto ao meu marido, ele não suportará.” “Ninguém mais pode me ajudar.”

n) “Quando penso na morte, o medo toma conta de mim.”

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Unidade V – Prosseguir

Quando Jesus havia chegado com os discípulos a Emaús, ele dá a entender que deseja seguir adiante. Com isto, ele demonstra respeito à autonomia deles. Ele lhes dá a chance de decidirem acerca de quanta distância ou proximidade desejam ou necessitam. Ele não os prende a si, mas ensaia liberá-los. Este ensaio é importante em qualquer relacionamento de ajuda. Ele permite ao paciente, por um lado, afastar-se momentaneamente de um relacionamento quando assim o desejar ou necessitar. Por outro, preserva o voluntário ou terapeuta da tentação de querer tornarse insubstituível. Em todas as profissões sociais e em todo relacionamento de ajuda existe o perigo de se utilizar inconscientemente a pessoa assistida para elevar a própria auto-estima. É importante que pessoas engajadas na assistência periodicamente examinem os motivos que determinam seu engajamento. Neste processo, a participação num grupo de supervisão ou intervisão fraterna será imprescindível. Os textos abaixo desafiam a um engajamento integral – e, ao mesmo tempo, desafiam a viver permanentemente na disposição de abrir mão de relacionamentos de ajuda, liberando as pessoas assistidas a seguirem seu próprio caminho.

Uma antiga fábula 19 Um pássaro estava deitado de costas com as perninhas espichadas para o céu. Um outro pássaro que por ali passava, estranhando a cena, perguntou: “o que fazes deitado aí deste jeito? Por que estás com as pernas nesta posição?” O pássaro respondeu: “estou segurando o céu com as minhas pernas. Se eu soltar ou afrouxar as pernas, o céu vai desabar!” Mal ele tinha dito isto e uma folha de uma árvore próxima caiu suavemente do seu lado. O pássaro levou um susto tamanho que de súbito levantou e voou embora. O céu, porém, permaneceu onde sempre esteve.

Condições e conseqüências da assistência a doentes e idosos na família20 Em grande medida, a assistência a doentes e idosos é domiciliar e realizada por familiares. Apenas quando o quadro clínico se deteriora ou quando o paciente chega à fase terminal, optase, preferencialmente, pela internação hospitalar. Famílias nesta situação estão colocadas diante de tarefas e desafios que, em geral, ultrapassam suas capacidades físicas e psicológicas. Especialmente às mulheres (filhas, noras, esposas, mães) são delegadas as tarefas da assistência 19 20

ZINK, Jörg. Wie wir beten können. 7. ed. Stuttgart: Kreuz Verlag, 1975. p. 36. Extraído de: EBERT, Andreas; GODZIK, Peter. Op.cit. p. 79-86.

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aos doentes e idosos, tarefas que elas assumem em regra sem preparo profissional e sem remuneração. Um voluntariado, que deseja acompanhar pacientes terminais, necessita desenvolver muita sensibilidade para a situação de suas famílias. Abaixo, refletimos acerca de importantes aspectos da assistência a doentes e idosos na família.

Doença e morte numa sociedade hedonista

A sociedade atual cultua o belo, o jovem, a saúde, a vitalidade. O ideal de vida plena pressupõe a conquista e a manutenção destes fatores. O que destoa do ideal hedonista é suprimido, encoberto e até negado. Doentes, idosos e seus familiares, porém, estão continuamente confrontados com o “outro lado” da vida, da qual fazem parte a dor, o sofrimento, a morte. Nesta situação, experimentam isolamento e marginalização social. Negação e aceitação de limitações

Não somente a sociedade nega o envelhecimento, a doença, o sofrimento e a morte. Com igual ou maior veemência, o próprio paciente irá lutar contra estas realidades. Esta luta torna-se ainda mais renhida se o paciente ou o idoso, em conseqüência da doença ou do envelhecimento, passar a depender parcial ou totalmente da assistência de outros. Esta inconformidade natural, porém, torna ainda mais difícil a tarefa de familiares. Pacientes que acabam aceitando sua condição, facilitam a tarefa da assistência. Mesmo neste caso, porém, é preciso assegurar ao paciente o direito de lamentar, chorar e rebelar. Limitações são impostas também a familiares que assumem a tarefa de assistir o familiar enfermo. À medida que a enfermidade torna-se mais grave, cresce o grau de engajamento de forças e tempo. A estes familiares, igualmente, deve ser dada a possibilidade de lamentar as limitações que o acompanhamento ao enfermo impõe à sua vida. Limitações psico-sociais de doentes e idosos

Idosos e pacientes gravemente enfermos passam por uma redução irreversível de seus contatos sociais. Seu espaço vital reduz-se na mesma proporção que o círculo de pessoas com as quais tem contato. Assim, passam a ter somente a si mesmos como referência psico-social. Não raro, isolamento e solidão acabam provocando o egocentrismo. Este pode ser compreendido como única possibilidade de buscar atenção e carinho. O egocentrismo exige paciência e discernimento de familiares e assistentes. Somente assim será possível manter um relacionamento equilibrado com o egocêntrico, buscando compreendê-lo sem dar-lhe excessiva liberdade. Limitações de familiares que assistem doentes e idosos

A assistência a doentes e idosos em casa pode causar enormes transtornos para a vida de uma família. Logicamente, muito depende do tamanho da casa e da quantidade de

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cômodos à disposição. Quanto menor a moradia, maior a confrontação com doença, sofrimento e morte. Igualmente, o doente ou o idoso não poderá isolar-se e proteger-se. Em geral, tudo na moradia vai indicar a vida em torno da enfermidade: odores, sons, utensílios, medicação etc. A reorganização da vida familiar dá-se também em vista do alto investimento de tempo na assistência ao enfermo. Quem assume a tarefa de acompanhar o enfermo ou o idoso já não é mais senhor de seu tempo. Tudo estará voltado às necessidades e ao ritmo do paciente ou idoso. Por conseguinte, quem assiste o enfermo corre o risco de, igualmente, passar a sofrer de isolamento psico-social. Não raro, a frustração daí decorrente também influi negativamente no relacionamento entre o familiar assistente e enfermo. Ao lado do cerceamento do tempo observa-se que a assistência a enfermos e idosos também representa grande esforço físico. O despreparo técnico e a falta de adaptação da casa - por exemplo, a cama do enfermo - dificulta o trabalho ainda mais. Nas fases mais agudas da enfermidade, a assistência torna-se diuturna. A falta de regeneração física nestes casos pode conduzir a doenças. Ao lado do desgaste físico observa-se também grande desgaste emocional. A constante exposição à doença, ao sofrimento e à morte, igualmente, pode levar a distúrbios psíquicos como a depressão. Não por último, a assistência domiciliar a um doente sempre significa custos financeiros. Estes nem sempre estão cobertos por planos de saúde públicos ou privados. O relacionamento familiar

A qualidade da assistência realizada por familiares depende em grande medida da qualidade dos relacionamentos antes da irrupção da enfermidade. O relacionamento com o cônjuge, com os filhos, os pais, os amigos é posto à prova no momento da enfermidade grave. Conflitos latentes ou mal resolvidos podem dificultar e até inviabilizar a assistência familiar. Em foco não está somente o relacionamento do enfermo com seus familiares, mas também – e principalmente – dos familiares entre si. Ciúmes, inveja, cobranças, jogos de poder etc. podem tornar-se característica do cotidiano familiar.

Sugestões para o aperfeiçoamento da assistência a doentes e moribundos na família 21 Sugerimos alguns passos concretos, capazes de melhorar a situação e as condições atuais da assistência a doentes e moribundos:

21

Formar e desenvolver parcerias vivas e construtivas entre cônjuges, pais e filhos e irmãos.

Criar e apoiar redes sociais semelhantes a uma vizinhança viva ou uma família ampliada.

Extraído de: EBERT, Andreas; GODZIK, Peter. Op.cit. p. 86-87.

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A assistência a idosos, a doentes e a pacientes terminais não deveria mais ser vista como tarefa particular de familiares atingidos, mas tarefa coletiva e pública. O mesmo vale para o financiamento dos custos da assistência.

Dificuldades estruturais para uma assistência familiar devem ser encaradas de forma objetiva e não consideradas como falhas pessoais. As exigências do atual mercado de trabalho, por exemplo, podem dificultar a assistência domiciliar de um ente familiar.

Familiares ativos na assistência domiciliar de familiares devem ter a oportunidade de disporem parte de seu tempo para outras ocupações. Cabe à sociedade organizar a substituição do familiar ou organizar oportunidades de internamento temporário.

Oportunidades de treinamento e apoio profissional para uma assistência domiciliar adequada devem ser implementadas. Necessária também é a disponibilização de acompanhamento psico-social para que o estresse emocional provocado pela assistência possa ser trabalhado.

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Unidade VI – Permanecer A decisão de permanecer perseverante numa situação de estresse físico e emocional exige ânimo, força e clareza. Quando Jesus, no Jardim do Getsêmani, pede que seus discípulos vigiem com ele, acabam evadindo-se pelo sono. Na história de Emaús, os discípulos pedem: “Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina”. E Jesus, que mesmo tinha feito menção de ir adiante, permanece com eles. O hóspede parte o pão. E na comunhão de mesa eles o reconhecem. Neste momento eles conseguem estabelecer as conexões, seu luto é transformado em paz, certeza e alegria. Acompanhar uma pessoa por um longo período e permanecer com ele exige uma decisão clara que continuamente deve ser renovada.

Cantos de Taizé. São Paulo: Loyola, s.d. N.o 12

A Pessoa Idosa e sua Morte22 Manfred Seitz I. O que ainda podemos fazer?

Fala-se muitas vezes que, em nossos dias, a morte está sendo reprimida. Ao mesmo tempo, um crescente número de publicações volta a colocá-la em pauta. Mesmo assim existe a possibilidade de que tudo permaneça como está, isto é, no verbal. Deixando-se de lado a nossa própria morte, quando morre alguém chegado a nós é que vamos notar se a morte é reprimida ou trabalhada. O critério mais simples e mais confiável, praticamente a prova para tanto, é dar assistência a moribundos. A princípio é indiferente se uma criança, um adulto ou uma pessoa idosa vem a falecer. Sempre estamos diante de uma tarefa que nos abala, que parece ir além de nossas forças e que nos pergunta por nosso posicionamento diante da morte. Ela evidencia quem nós 22

SEITZ, Manfred. Prática da Fé. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1990. p. 111-115.

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somos e o que nos dá sustentação. É por isso que o preparo para a assistência, assim como a preparação para a morte, inicia bem mais cedo: em meio à vida.

II. Para isso é necessário – e agora temos a possibilidade de realizar parcialmente tal preparo – que esclareçamos três questões: 1. O posicionamento da pessoa idosa diante da morte é resultado da história de sua vida. É certo que toda faixa etária tem uma relação direta com a morte, já que ela pode ocorrer a qualquer momento. Contudo, o confronto com ela deve ocorrer sob as condições de cada faixa etária em particular. Na fase da velhice, em muitas pessoas surgem, como fatores determinantes, uma menor expectativa de vida, experiências de vulnerabilidade e as limitações impostas por razões físicas, assim como sentimentos de solidão e falta de sentido. Apesar disso, apenas em escala limitada a morte é sentida como amiga, eventualmente como redenção de males que se tornam insuportáveis. Nos diversos posicionamentos se tornam evidentes, em cada caso, vestígios de proximidade ou distanciamento biográfico diante da morte. Também aqui se pode reconhecer a velhice como conseqüência de fases anteriores da vida, pode-se perceber seu caráter sintético. Muitas vezes os moribundos dão alguns indícios disso. Então é necessário que se os compreenda e que não se os deixe sós, incompreendidos. 2. Morrer não é apenas uma experiência de solidão, mas também de comunhão. Põe o indivíduo em destaque; é, no entanto, um acontecimento que tem caráter social. Em todo caso, tange e requer a comunhão. Assim como o moribundo é dependente dos efeitos emocionais resultantes do preparo para morte que realizou anteriormente, da mesma forma agora ele também é totalmente dependente das pessoas com quem se relaciona e do modo como elas se posicionam diante dele e de sua morte. Elas são chamadas a caminharem com ele a última etapa do caminho e, por assim dizer, a vivenciarem cada um de seus segmentos. Desde que não se fechem ou se distanciem através da fuga, elas realmente morrem junto, e de uma maneira misteriosa, se tornam sábias, isto é, preparadas, ao serem exortadas a refletir a respeito de sua própria morte através do falecimento de um outro. 3. O serviço de que se é incumbido muitas vezes não é feito por causa de um cristianismo não-explícito. Atualmente a maioria das pessoas se afastou da fé cristã ou vive um cristianismo de segunda mão. A isso está relacionado o fato de que, além de degredar a morte para a esfera privada, não se transmite mais nenhuma experiência cristã sobre o trato com moribundos. No hospital moderno, o serviço a eles é omitido por um curioso jogo de empurra-empurra: os familiares ou os enfermeiros acreditam na competência do médico. Este, no entanto, formou-se em terapia médica. Por isso remete à competência do pastor. Este, todavia, vem de fora, se vier, e vem então só em ocasiões determinadas, precisando afastar-se outra vez. Por isso, espera que pelo menos os enfermeiros ou os familiares façam o que ele não pode fazer. A tarefa de assistir a moribundos confronta-se hoje com este círculo. Ele só pode ser rompido caso for abordado através de um diálogo entre estes grupos de relação. Nele, a pergunta a respeito de que elementos especificamente cristãos deveriam integrar o auxílio a moribundos seria a de todos os participantes, desde que estes tivessem uma relação com a fé cristã. III.

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O que podemos fazer? Nós – isto é, cada um de nós, desde que um moribundo seja tornado seu próximo, desde que pertença a uma casa, um asilo ou comunidade terapêutica em cujo meio uma pessoa se prepara para morrer. Nós – isto somos nós como pessoas que, através do Batismo, foram chamadas para serem sacerdotes e curas d’alma. Nós – isto são aqueles que, numa hora destas, são submetidos a uma prova para verificar se reprimiram não apenas a morte, mas também a fé. Muitas vezes ambas as coisas andam juntas. Com a melhor consciência e capacidade, nós podemos e devemos prestar agora junto a um moribundo o serviço sacerdotal ao qual ele tem direito como filho de Deus. Como ele expressa este serviço? 1. Deixamos o moribundo sentir nossa proximidade. Isto não é natural. No fundo, não temos tempo – nem em casa, nem no hospital – para deixar uma pessoa morrer com calma. A isso se acrescenta o fato de que o sofrimento de uma pessoa afasta ou afeta as outras ( e de modo mais perceptível aquelas que não conseguem aceitar a si mesmas). Por isso as pessoas de relacionamento mais próximo muitas vezes se afastam ou transferem para a pessoa gravemente doente sua revolta contra a situação dela. O sentimento de que as pessoas se afastam dela ou mostram má vontade em relação a ela aumenta imensuravelmente o abalo psíquico em que ela se encontra. Por isso, ao lado de tarefas assistenciais e terapêuticas necessárias, deixamos o moribundo sentir discretamente a nossa proximidade. Algumas palavras, um gesto de comunhão, repetidos em intervalos apropriados, são suficientes. Quando Jesus assumiu a sua morte no Jardim das Oliveiras, pediu a seus discípulos que sua última solidão fosse carregada pela comunhão dos que estavam vigilantes e oravam. Se nossa proximidade precisa se transformar em vigília noturna, então devemos pensar nesta história. 2. Não fugimos de uma conversa sobre a gravidade da situação. Eventualmente, a proximidade a um moribundo coloca-nos diante de uma pergunta difícil: devemos dizer a verdade a uma pessoa gravemente doente, que, pelos critérios humanos, está diante do evento da morte? Esta pergunta faz parte dos problemas da vida a que de forma alguma se pode responder com segurança. Ela pressupõe que a pessoa gravemente doente não conhece a sua situação. Mas isso é discutível! Pelo menos a experiência clínica e poimênica mostra que muitos doentes, que estão à beira da morte, têm consciência de sua situação, mas escondem isso de seus familiares. Talvez nem devamos perguntar da forma como sempre acontece – pois não temos a tarefa de transmitir diagnósticos. A “verdade”, nessas conversas, não está disponível. Ela cresce à medida que a pessoa se aproxima de seu fim. Para encontrá-la, por via de regra, se faz necessário um caminho mais longo, que dê condições de relacionar as palavras escolhidas com a pessoa e sua capacidade de compreensão. Se ela, correspondendo ao significado grego de “verdade”, foi cuidadosamente “desvendada”, aí consolação, perdão e oração substituem o diálogo. 3. Envolvemo-la com os recursos oferecidos pela Igreja. A impotência e dependência na qual agora se encontra a pessoa moribunda toma conta também dos que estão ao redor. O perigo de que nós tenhamos a atitude dos discípulos em relação a Jesus antes de sua morte, isto é, “durmamos”, é extremamente grande agora. Para dentro desta pobreza e deste silenciar, a Igreja dá-nos os recursos e auxilia-nos em nossa fraqueza. Obviamente não os usamos sem reflexão e escolha, e sempre os relacionamos à pessoa. Mas na verdade isso acontece por si. a) A palavra bíblica avulsa. Assim diz o Senhor: “Não temas, pois eu te remi; chamei-te pelo teu nome; tu és meu.” “Verdadeiramente, ele carregou nossa enfermidade e tomou sobre si nossas dores.” “Jesus Cristo diz: “No mundo vocês têm medo, mas

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consolem-se, eu venci o mundo.” Estas e outras palavras bíblicas 23 são ditas ao moribundo, vagarosa, perceptível e expressamente e em tom não muito alto. b) Determinadas estrofes de hinos. Algumas provaram ser especialmente valiosas nessas horas derradeiras: “No termo desta vida” (HPD 53,5); “Confia teu caminho” (HPD 217); “Jesus é minha vida” (HPD 300) 24. Como em nossa sociedade [e em nossa Igreja] nos deparamos com um número sempre menor de pessoas que aprendem dos hinos da Igreja, diminui a possibilidade de serem confrontadas com eles nas horas derradeiras. No entanto, caso tiverem interiorizado tais palavras dos hinos, estas as acompanharão muitas vezes até a inconsciência. c) O Pai Nosso. Como último elemento remanescente da fé, ele atinge também aos que estão completamente afastados da fé. Dizemo-lo devagar ou falamo-lo no ouvido, petição após petição, como nas palavras avulsas. d) O uso do hinário. Não pensamos agora nos hinos, mas na seção “Na presença da morte” [EKG, edição bávara, p. 685-691] que foi incluída no apêndice da maioria dos hinários. Lá encontramos versículos, orações e hinos, bem como uma instrução para lidar de modo poimênico com moribundos. 25 e) Vigiar e orar. A assistência muitas vezes se transforma em vigília, no limite da vida. Ela é o lugar da leitura contínua. Para este fim são indicados salmos escolhidos, a história da paixão de Cristo, os discursos de despedida do Evangelho de João e trechos de Paulo. 26 Sempre fazemos uma pausa após a leitura de trechos maiores. A leitura espiritual também ocorre para a proteção dos que participam da vigília. f) A Confissão. Raras vezes os moribundos ainda querem se livrar de algo. Ou temos a impressão de que isso é raro, só porque não somos suficientemente sensíveis para tais manifestações muitas vezes veladas? Quando as percebemos, ajudamos para que aquilo que oprime seja expresso e depois anunciamos o perdão. Isso pode acontecer com a simples frase: “Por ordem de nosso Senhor Jesus Cristo, eu te declaro liberto, livre e absolvido de todos os teus pecados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Paz seja contigo!”. O sigilo confessional não pode ser rompido. g) A Santa Ceia. Se a pessoa gravemente doente e moribunda expressa o desejo de receber a Santa Ceia, avisamos o/a pastor/a mais próximo/a. A celebração da Santa Ceia junto ao leito de morte pode transformar-se em uma hora abençoada e inesquecível para todas as pessoas da casa. 4. Quando o fim se aproximar, prestamos ao moribundo o último serviço. Agora passou a hora das palavras que podiam ser apreendidas. Existe um agir da comunidade que vá além da palavra? Pensamos aqui na imposição de mãos, através da qual, num profundo gesto de solicitude, se expressa: “Isto é para ti.” Em termos práticos, a imposição das mãos tem seu lugar na bênção de despedida ou do adeus. Numa forma um tanto abreviada ela reza: “Abençoe-te Deus, o Pai, que te criou à sua imagem; abençoe-te Deus, o Filho, que te redimiu com seu sofrimento e morte; abençoe-te Deus, o Espírito Santo, que te chamou para a vida e santificou. Deus, o Pai e o Filho e o Espírito (+) te acompanhe com os seus anjos ao reino no qual seus eleitos o louvam eternamente. Nosso Senhor Jesus Cristo esteja contigo para te proteger. O Espírito Santo esteja em ti

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Veja lista de versículos bíblicos na p. 63. Veja sugestão de hinos na p. 65 25 Veja os auxílios na p. 61. 26 Veja lista de versículos bíblicos na p. 63. 24

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para te consolar. Assim diz Deus, o Senhor sobre a vida e a morte: ‘Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu!’. Amém.” Como se realiza a bênção da despedida? Nós a anunciamos aos circunstantes. Aproximamo-nos do moribundo e colocamos a mão, de maneira perceptível, sobre sua cabeça. Proferimos a bênção e, durante a última frase, fazemos o sinal da cruz no moribundo. 5. Encomendamos a ele e a nós à misericórdia de Deus. Quando os cristãos assistem moribundos, o que eles podem fazer transforma-se em culto. Paulo escreveu na carta aos Filipenses: “Cristo deve ser engrandecido ... quer pela vida, quer pela morte” (Fl 1. 20). Isto também pode acontecer nas situações mais dramáticas. Nesse culto durante o falecimento, principalmente quando ocorreu a morte, também há espaço para a dor, a lamentação, o choro, a comoção. Não precisamos reprimir esses sentimentos. Por isso, numa oração breve e, se possível, livre, encomendamos o falecido e a nós mesmos à graça de Deus, na qual nossos mortos estão guardados e nós, como vivos, estamos preservados. IV.

A conversa com pessoas moribundas e o serviço a elas podem causar-nos medo. Contudo, não deveríamos fugir disso, pois, através da escuridão da morte, enxergamos a lua da vida eterna. As experiências que a partir daí já fazem parte de nossa vida, através de palavras da Escritura, da pregação e das testemunhas da fé, fazem crescer em nós paz e certeza, que se transferem para o moribundo, podendo ajudar-lhe a superar o medo da morte. Também aqui damos o que temos recebido. Serviço poimênico a moribundos pode exercer aquele que está disposto a transformar a distância diante da morte em proximidade a ela, aquele que carrega consigo um pequeno tesouro de palavras bíblicas e algumas estrofes de hinos que resistem nesta situação, e aquele que possui a intrepidez da fé para invocar a Deus em oração.

A função terapêutica dos ritos crepusculares 27 Aconselhamento pastoral junto aos que andam no vale da sombra da morte. Lothar Carlos Hoch 1 – Notas introdutórias

Uma palavra acerca do título. O uso da expressão “ritos crepusculares” tem para mim um significado especial. Num recente encontro sobre teologia índia, em Cochabamba, Bolívia, tive uma experiência de espiritualidade que permanece muito viva em minha memória. Quando o sol se punha por detrás da Cordilheira dos Andes, nós nos reuníamos 27

HOCH, Lothar Carlos. A função terapêutica dos ritos crepusculares - Aconselhamento pastoral junto aos que andam no vale da sombra da morte. In: Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 38, n.o 1, p. 63-73, 1998.

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a céu aberto e de pés descalços para uma celebração vespertina. Inicialmente a comunidade foi convidada a se voltar para o nascente para lembrar que, com o nascer do sol, a cada novo dia, o dom da vida se renova sobre a face da terra. Com a sua luz e o seu calor o sol simboliza a presença vivificante de Deus em nossa vida. Voltar-se para o nascente é um gesto de acolhimento. Em seguida fomos convidados a nos voltar para o poente a fim de nos lembrar que o ciclo da vida tem um início e um fim. Voltar-se para o poente é um gesto de entrega. O declínio do sol não é um prejuízo, mas condição para o seu novo nascimento.

Ambos os gestos – tanto o de voltar-se para o nascente como o de voltar-se para o poente – são necessários, pois são complementares. E ao meditar sobre isso, eu me dava conta de que em nossa cultura somos mais dados a ritualizar os inícios do que os fins, e agradeci a Deus pelo fato de a sabedoria indígena ter preservado a unidade desses dois pólos. Este texto quer ser um convite a voltarmos nossa atenção para o pólo mais negligenciado de nossa vida, que é o crepúsculo, e refletirmos sobre o sentido de redescobrir a importância de celebrar a presença de Deus também no ocaso de nossa vida. A Igreja de Jesus Cristo tem uma riqueza de símbolos litúrgicos que vale a pena resgatar.

A segunda nota introdutória é, na verdade, uma ressalva. Sinto necessidade de esclarecer aos/às leitores/as que para mim o ato de falar sobre o tema da morte se constitui num empreendimento deveras delicado. Os pontos de vista que exponho aqui evidentemente me parecem plausíveis neste momento de minha vida. Não posso garantir, todavia, que no momento de minha morte – caso eu tiver a oportunidade de viver esse momento conscientemente, a plausibilidade se manterá de pé. Uma é a nossa teoria a respeito da morte, outra será a nossa experiência concreta quando nossa hora chegar. Isso não significa que não possamos nos preparar para a morte, mas sim que precisamos ter consciência de que o nosso falar sobre a morte é apenas teórico. Conheci uma pessoa de fé que pensava estar bem preparada para a morte. Quando esta chegou, chegou diferente. E ela se decepcionou consigo mesma e se recriminou por não ter tido a serenidade que achava que devia ter diante da morte. Pensava que uma pessoa de fé não tem o direito de vacilar diante da morte. No entanto, o próprio Cristo não vacilou diante dela? Por isso, ter fé é ter a certeza de que também na hora da incerteza e da fragilidade Deus estará comigo. Ele não irá me julgar segundo o tamanho da minha fé, mas segundo a grandeza da sua graça.

2 – A importância de ritos e símbolos

Falar sobre o resgate de ritos da tradição cristã exige que se diga uma palavra sobre o significado do conceito “rito”e sua relação com a tradição. Mesmo sabendo que existem ritos para as mais diferentes situações de vida e que os mesmos podem ter tanto um caráter sagrado como profano, quero entender rito aqui no sentido do antropólogo Victor Turner como “um comportamento formal prescrito para ocasiões não subordinadas aos meios tecnológicos”cuja finalidade consiste em “transmitir mensagens referentes às realidades últimas que vinculam os membros entre si”. No caso concreto, falo de mensagens e de valores da tradição cristã que outrora tiveram uma função terapêutica no acompanhamento a pessoas doentes e moribundas e que, por razões que aqui não podem ser analisadas, o protestantismo em boa medida perdeu.

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Estudiosos como Erik Erikson afirmam que a ritualização é crucial para uma cultura, pois a sua decadência ou perversão desencadeia uma crise de sentido e de valores. “O mito e o rito são as ações simbólicas que expressam os valores, asseguram sua transmissão autorizada e assim possibilitam às sociedades sobreviver. Se o processo ritual falha na cultura ou na Igreja seguese a desintegração social. “Pessoalmente estou convencido de que foi graças à preservação dos seus mitos, ritos e festas que o povo judeu conseguiu preservar a sua identidade e até mesmo a própria sobrevivência como grupo étnico ao longo dos séculos de sua dispersão. Da mesma forma acredito que a preservação ou o resgate da cultura indígena passe pela preservação e o resgate dos mitos, ritos e símbolos. Quando nesta exposição falo de ritos, estou me referindo a gestos litúrgico-pastorais, nos quais prevalece a linguagem dos símbolos. Desde tempos imemoriais “o homem se serve de linguagem simbólica, expressando e realizando com sinais e gestos corporais a comunhão religiosa com o Invisível”. Através de sinais (gestos, palavras, etc) o homem manifesta realidades invisíveis. Temos coisas perceptíveis de alguma coisa não perceptível. O símbolo é este ajuntamento, sinal visível, perceptível, com um significado mais profundo, que é sua significação. Nesse sentido, o símbolo tem a propriedade de revelar e ao mesmo tempo ocultar o transcendente. A palavra está presente no rito simbólico para dar sentido ao mesmo.

3 – A categoria da experiência

Antes de falar dos ritos terapêuticos de assistência a doentes e moribundos, preciso referir-me ainda á categoria da experiência como uma premissa teológica importante para a compreensão do alcance do tema. Nós estamos acostumados a fazer teologia e a falar sobre a fé cristã em ternos bastante racionalistas. Também nossa maneira de pregar e até mesmo de exercer o aconselhamento pastoral segue padrões racionais. Não se trata aqui de abolir a razão como instrumento do fazer teológico e de exercício do ministério pastoral. Trata-se, isso sim, de lembrar que a nossa fé e nossa teologia têm uma camada mais profunda que armazena e reflete não só o que se aprende com a cabeça, mas também o que se capta pela experiência, seja uma experiência de vida, seja a experiência de um relacionamento pessoal significativo. A presença silenciosa e solidária de um irmão ou de uma irmã na fé na hora da dor e da fragilidade, às vezes, fala mais do que muitas palavras, por mais corretas que venham a ser sob o ponto de vista lógico. Acontece que a palavra de Deus não nos atinge apenas através do ouvido, mas também através da pele. A biografia de Lutero demonstra cabalmente que, ao lado do estudo das Escrituras, o fato que mais lhe abriu o coração para a compreensão do mistério do amor de Deus foi o relacionamento poimênico com o seu confessor, Johannes Staupitz. A experiência de ser aceito tal como era em nível de um relacionamento pessoal foi decisiva para entender o real significado da mensagem da justificação por graça, na sua relação com Deus. É com base nesse fato que Lutero pôde dizer mais tarde que “a gente se torna um teólogo através da vida e até mesmo através da morte e da experiência da condenação, e não através do raciocínio, da leitura e da especulação”. Nesse mesmo sentido deve ser entendida a passagem do artigo XX da Confissão de Augsburgo, que diz: “Mesmo que essa doutrina (a saber, que nós obtemos graça e somos justificados diante de Deus através da fé em Cristo e não através das obras) seja desprezada pelos soberbos, as consciências fracas e atemorizadas, pela via da experiência, a consideram do maior conforto e consolo.”

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Como se vê, a reforma valoriza sobremaneira a categoria da experiência como um meio privilegiado de mediação da graça de Deus para pessoas que sofrem. E com relação a nós, teólogos e teólogas, não é diferente. Quer o saibamos, quer não, a experiência da graça e a experiência do juízo de Deus que vamos tendo ao longo de nossa vida são parte constitutiva de nossa posição teológica. A seguir se examinará como alguns dos ritos da Igreja antiga podem se constituir em mediações da presença de Deus na vida de pessoas que “andam pelo vale da sombra da morte” (SI 23.4).

4 – O rito da bênção e da imposição de mãos

Na tradição luterana preservou-se o gesto da bênção quando do final do culto e de alguns ofícios, como o casamento e o enterro. Além disso, invoca-se a bênção sobre o batizando ou sobre os seus pais. Também na celebração da Santa Ceia profere-se a bênção sobre os elementos eucarísticos. A imposição de mãos é utilizada por ocasião da confirmação e da ordenação. O rito da bênção e da imposição de mãos durante o acompanhamento a pessoas enfermas ou moribundas é pouco usado. O mesmo se observa nas demais igrejas do protestantismo histórico. Isso é lamentável na medida em que se trata de práticas antigas e de comprovada eficácia terapêutica na tradição judaico-cristã. Além disso, estão profundamente arraigadas na cultura popular brasileira. Em muitos lares brasileiros os filhos não saem de casa sem pedir a bênção do pai ou mãe e cada vez que se encontram com seu padrinho ou sua madrinha solicitam-lhes a bênção. No Nordeste brasileiro, mas não só ali, os romeiros se põem a caminho durante dias para pedirem a bênção do seu “Padim Cícero”. No contexto protestante onde cresci e na minha formação teológica tais gestos simbólicos permaneceram quase que totalmente ausentes. Qual foi minha surpresa quando, um belo dia, logo no início de minha atuação pastoral no oeste catarinense, uma mulher enferma bateu à porta de minha casa e, após certificar-se de que aí residia o pastor evangélico, pôs-se de joelhos diante de mim e pediu que eu a abençoasse mediante imposição de mãos. A minha perplexidade foi grande. Mas, como não me restava outra alternativa, impus as mãos sobre a cabeça da mulher e balbuciei uma tímida oração pela sua saúde. Foi ali que me dei conta de que eu havia sido formado apenas para o ministério da palavra, sem ter aprendido a lidar com gestos litúrgicos e com ritos simbólicos. A Bíblia está repleta de passagens que falam da imposição de mãos. No Antigo Testamento, Jacó abençoa seus netos, os filhos de José, colocando a mão direita sobre sua cabeça enquanto pronuncia a bênção (Gn 48.14-16); de Josué se diz que estava cheio do espírito de sabedoria “porque Moises lhe havia imposto as mãos” (O gesto simboliza a comunicação do poder e da autoridade, do espírito). No Novo Testamento, o gesto de impor as mãos tem significados distintos. Pode expressar uma atitude de bênção, como no caso narrado em MC 10.13-16, onde Jesus, tomando as crianças nos braços e “impondo-lhes as mãos, as abençoava”. Pode estar ligado à invocação do Espírito Santo (At.8.17) ou a um gesto ligado à idéia de cura. Assim, Jairo pede insistentemente a Jesus com as palavras: “Minha filhinha está à morte; vem, impõe as mãos sobre ela, para que seja salva, e viverá “(Mc 5.23)”. Em Lc 4.40, a estreita ligação entre o ministério de cura de Jesus e a imposição de mãos é expressa assim: “Ao pôr do sol, todos os que tinham enfermos de diferente moléstias, lhos traziam; e ele os curava, impondo as mãos sobre cada um. “Não causa surpresa,

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portanto, que Jesus incumba seus discípulos de continuarem o ministério de cura através da imposição de mãos (Mc 16.18). O rito da imposição de mãos tem uma função terapêutico-pastoral muito especial junto a pessoa enfermas e moribundas, podendo também ser estendido a seus respectivos familiares. Em sentido humano, as mãos são o instrumento mais expressivo da linguagem corporal que Deus nos deu. Elas são “como um prolongamento do mais íntimo do ser humano”. O toque e a imposição de mãos são um gesto de carinho, através do qual se expressam proximidade e participação solidária no sofrimento e na dor do outro. Em sentido teológico, a imposição de mãos é simultaneamente ato de súplica e ato de transmissão de poder. Através do gesto de súplica e de oração pelo enfermo, o pastor e a pastora querem expressar que o poder em questão não procede deles, mas do próprio Deus. Através do ato da imposição de mãos propriamente dito, o pastor e pastora se tornam instrumentos de mediação da graça, do consolo e do poder de Deus, que prometeu nos assistir na nossa fraqueza. Através de nossas mãos, Deus mesmo se faz presente de forma visível e palpável junto à pessoa enferma. É a sua poderosa mão, o seu braço estendido que opera essas coisas. Nas igrejas históricas fazem-se necessárias tanto a discussão teológica quanto a elaboração, em forma escrita, de subsídios práticos que sirvam de orientação àqueles e àquelas que pretendem fazer uso de recursos terapêutico-pastorais junto a pessoas enfermas e moribundas. Nossas igrejas não podem continuar ignorando essa temática nem permitir que obreiros/as tenham que improvisar por conta própria novas formas litúrgicas para tais ocasiões.

5 – O rito da unção dos enfermos

Dentre as práticas terapêuticas da Igreja antiga o rito da unção com óleo é o que permanece mais distante de nossa prática pastora protestante hodierna. Não conheço estudos sobre o assunto, mas imagino que entre nós a Santa Ceia com doentes tenha assumido uma função substitutiva e, relação àquela prática. Na tradição da Igreja Católica Romana a unção não só foi preservada, como elevada á categoria sacramental, sob o nome de “Sacramento dos Santos Óleos“. O antigo nome “Extrema-Unção” foi substituído por “Unção dos Enfermos”, para indicar que seu uso não deve permanecer restrito a enfermos graves, como uma espécie de “rito de despedida da vida terrena”, mas que pode ser celebrado em função do restabelecimento da pessoa enferma. A Bíblia dá testemunho inequívoco da unção de doentes. O Salmo 23,uma das passagens bíblicas mais usadas junto ao leito de pessoas enfermas, caracteriza o Senhor como o Bom Pastor que “ unge minha cabeça com óleo “ (v.5). No Novo Testamento, após terem sido enviadas dois a dois por Jesus, é dito que os discípulos “ expeliam muitos demônios e curavam numerosos enfermos, ungindo-os com óleo “ (Mc. 6.13). Em Tg 5.13-15, lemos: “Está alguém entre vós sofrendo? Faça oração. Está alguém alegre? Cante louvores. Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da Igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, serlhe-ão perdoados.” Na Igreja antiga a prática da unção com óleo era muito difundida. Ela costumava ser associada à oração pelos enfermos, conforme o testemunho de Tg 5.14, ou à imposição de mãos. Atribuía-

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se à unção dos enfermos tanto um poder curativo como de remissão de pecados e até mesmo de exorcismo. Os pais da Igreja praticavam a unção dos enfermos “sem fazer alusão alguma ao fato de sua situação comportar ou não perigo de morte “. Ou seja, a Igreja antiga não restringia o seu uso à situação de morte iminente, mas a usava amplamente com uma finalidade curativa, ou, nas palavras de Tiago, praticava-se a unção do enfermo na fé de que “o Senhor o levantará “ (v.25).

Neste ponto torna-se necessário prestar algumas informações de natureza prática. Em alguns meios protestantes está se reintroduzindo a prática da unção de enfermos. Em vista disso, estão surgindo publicações e recomendações sobre o assunto. A seguir, baseio-me nas instruções elaboradas pela Comissão de Liturgia da federação das Igrejas EvangélicoLuteranas da Alemanha, de 1990. Seguem algumas instruções: a) A pessoa enferma e seus familiares precisam ser previamente consultados e preparados. b) O ritual da unção de enfermos pode ser combinado com o da benção ou da imposição de mãos. c) No sentido de preservar o caráter comunitário da celebração, é recomendável que, na medida do possível, se convidem os familiares da pessoa enferma e/ou se integrem membros do presbitério da comunidade. d) A unção é feita pelo pastor ou pela pastora na testa e nas mãos do enfermo para indicar que ela abrange a pessoa toda, como um ser que pensa e age. Para isso, utiliza-se o dedo indicador ou o dedo polegar da mão direita, fazendo-se o sinal da cruz. e) Para a unção usa-se óleo de oliva puro. O óleo é acondicionado num pequeno recipiente de prata ou de vidro. f) O ritual da unção inicia com saudação, leitura bíblica e oração. g) A unção propriamente dita é precedida das seguintes palavras: “Senhor, nós te pedimos, dá que este óleo se torne um sinal do teu poder que consola e cura os que sofrem.“ No momento da unção o/a pastor/a profere as palavras : “N.N., eu te abençôo e te unjo com óleo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele te levante e te restabeleça pelo poder do seu amor. Paz seja contigo. Amém.” Ao pronunciar as palavras finais, a pastora estende a mão direita sobre a pessoa doente e a abençoa. h) Em se tratando de pessoa gravemente enferma, a pastora profere as seguintes palavras: “N.N., nesta hora de incerteza e sofrimento eu te unjo com óleo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Que o Senhor seja misericordioso contigo e te conceda a vida eterna. Paz seja contigo. Amém.“ i) Segue a oração do Pai-Nosso. Nesse momento, as pessoas presentes podem dar-se as mãos num círculo que inclui a pessoa enferma. Chama a atenção o fato de que os ritos terapêuticos dos quais estamos tratando aqui implicam uma proximidade física maior entre o pastor e o doente, respectivamente seus familiares, do que em outras situações de assistência pastoral.

Existem pastores e pastoras que temem que o contato físico possa causar constrangimento para a pessoa enferma ou para seus familiares. Cabe tranqüilizar tais colegas, pois a experiência mostra que a grande maioria das pessoas enfermas experimenta o toque físico como algo muito confortante. Para muitas delas ele se torna um símbolo da presença palpável do próprio Deus, do Verbo que se faz carne. O fato de o rito criar um espaço ordenado de proximidade física na

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verdade, trata-se duma proximidade ritual que justamente evita o constrangimento que o toque físico poderia suscitar em circunstâncias normais.

6 – A Santa Ceia para doentes

A Santa Ceia para doente é o único rito litúrgico que foi acolhido no Manual de Ofícios da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Por essa razão, tem sido amplamente usado no acompanhamento pastoral a pessoas doentes e moribundas. No Novo Testamento não se encontram provas evidentes de que a Santa Ceia tenha sido celebrada na assistência pessoal a doentes e moribundos. A celebração eucarística sempre tem um caráter comunitário. Isso não impede que se entenda a “comunhão no partir do pão e nas orações” (At.2.42) como um ato que também tenha ocorrido nas horas de sofrimento e de morte. No Manual de Ofícios a celebração da Santa Ceia está estreitamente vinculada á confissão de pecados. Esta vinculação pode ser importante nos casos em que a pessoa enferma sentir necessidade de confessar sua condição de pecadora diante de Deus e de outras pessoas. Não raro a doença leva a pessoa a refletir sobre a sua vida, podendo chegar à conclusão de que não a viveu de modo responsável. Em alguns casos a pessoa enferma, em vista do seu fim iminente, faz um balanço tão crítico de sua vida que chega ao ponto de desesperar. Isso leva William Watty a afirmar que “a pior coisa que pode acontecer a um ser humano não é que sua vida tenha um fim, mas que nunca teve um começo. Não que vamos morrer, mas que nunca vivemos. “Nesses casos, a combinação entre confissão e Santa Ceia, desde que precedida de um acompanhamento pessoal adequado, pode ser fonte de grande alívio e consolo para o moribundo. Há casos em que uma pessoa não consegue morrer sem antes ter desabafado o que estava preso em seu coração ou ter se reconciliado com alguém. Também aqui a celebração da Santa Ceia, precedida da confissão, pode ser importante. Não obstante, deve ser dito que não existe uma vinculação necessária ou obrigatória entre a confissão e a Santa Ceia com doentes. Infelizmente a Santa Ceia com doentes tem sido mal-entendida em nossas comunidades como uma espécie de extrema-unção. Ou seja, quando o pastor ou a pastora visita uma pessoa enferma e se propõe a celebrar com ela a Eucaristia, há quem tire a conclusão de que aquela pessoa está à beira da morte. Eis por que deve-se ter o cuidado de averiguar, de caso a caso, se a pessoa enferma realmente deseja a celebração da Santa Ceia. Melhor do que atacar a questão de maneira individual é trabalhar a temática com a comunidade toda, no sentido de quebrar a associação que se faz entre a Santa Ceia com doentes e a extremaunção. Isso pode ser viabilizado na medida em que se introduzir a prática de estender a mesa eucarística até aquelas pessoas idosas, doentes, portadoras de deficiência e outras que não têm meios de se locomover até a igreja para participar dos cultos. É possível utilizar-se o pão e o vinho já consagrado durante o culto, levando-os até a sua casa. Assim procedendo, se expressará de forma concreta a continuidade do vínculo comunitário também com pessoas impedidas de freqüentar o culto. Estas se sentirão lembradas e incluídas na comunhão de mesa com os demais irmãos e as demais irmãs. Pessoas enfermas em hospitais ou pessoas idosas em ancionatos podem ser igualmente lembradas. Trata-se de uma forma de atualização da prática de “partir o pão de casa em casa” vigente na comunidade primitiva.

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Para tal iniciativa se firmar no âmbito da comunidade, colaboradores voluntários podem ser motivados e preparados para auxiliarem nesse ministério. Com o passar do tempo surgirá uma rede de comunhão eucarística que, com certeza, se constituirá numa bênção para toda a comunidade. Assim não só se afastará o mal-entendido acima referido de que a celebração da Santa Ceia com doentes é indício de morte iminente, como também se fortalecerão os laços de comunhão e de presença solidária junto a membros que sofrem ou que estão isolados da vida da comunidade.

7 – Considerações finais

A Santa Ceia, a confissão, a oração com imposição de mãos e a unção de enfermos são meios eficazes de testemunho e de vivência comunitária do evangelho em situações cruciais da vida do povo de Deus. Todos esses ritos foram utilizados ao longo da história da Igreja. São meios da graça, dos quais as igrejas não podem abdicar. No entanto, fica a pergunta: são ritos milagrosos de cura? Podem ser, na medida em que são presença encarnada do evangelho de Jesus Cristo entre nós. E sabemos que este evangelho, seja através da palavra, seja através dos ritos simbólicos, ainda hoje perdoa pecados, consola os abatidos, restabelece os enfermos e gera comunhão fraterna entre os membros do corpo de Cristo. No entanto, devemos ter cuidado para não entender mal a nossa tarefa pastoral. Nós não temos o domínio sobre os meios da graça. É o próprio Deus, através do Espírito Santo, que age por meio deles. Para nós o modo da sua ação permanece um mistério. Também o efeito da sua ação nos permanece oculto. Pois:

há pessoas enfermas e moribundas que experimentam os ritos simbólicos como fonte de cura física e espiritual, à semelhança daquele um dentre os dez leprosos que, “ vendo que fora curado, voltou, dando glória a Deus em alta voz “(Lc 17.14);

há pessoas que, mesmo sabendo que vão morrer em breve, se sentem grandemente confortadas pela certeza de que, através do símbolo, o próprio Deus se faz presente junto ao seu leito. Ainda recentemente conheci uma senhora que, na hora da Santa Ceia, quando lhe foi alçado o cálice até os lábios, o segurou com toda a força, confiante de que ali o próprio Deus estava ao alcance de suas mãos. Horas depois, numa atitude de entrega, ela pôde descansar em paz;

há pessoas que buscam a face de Deus e derramam diante dele as suas angústias e aflições, mas a resposta de Deus não é aquela que tinham esperado. Foi o caso do apóstolo Paulo, que por três vezes pediu que Deus o livrasse do espinho que lhe havia sido posto na carne. Mas o Senhor lhe respondeu: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Co.12.9). Ou seja, às vezes a resposta de Deus não consiste no milagre da cura, mas no milagre de nos suprir com a força necessária para carregarmos a cruz que está diante de nós;

por último, há pessoas que oram incessantemente a Deus e buscam o consolo dos ritos oferecidos pela Igreja, mas permanecem sem resposta alguma. Morrem com a sensação de terem sido abandonadas por Deus, como o próprio Filho de Deus ao expirar na cruz.

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Eis a razão por que devemos ser humildes no difícil ministério de acompanhar pessoas no crepúsculo de sua existência. Nem sempre está em nossas mãos a capacidade de ajudar, muito menos o poder de desvendar o mistério da morte e da cruz. Esperamos que Deus nos conceda a graça de, mesmo assim, nos usar como instrumentos do seu Espírito Santo a serviço dos que sofrem.

Preparo espiritual para a morte – auxílios litúrgicos •

Se possível, acendemos uma vela como expressão de nossa fé no Cristo ressurreto. Ele é nossa luz e esperança diante da escuridão da morte.

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém

Ouçamos o consolo da Palavra de Deus: 1 O SENHOR é o meu pastor; nada me faltará. 2 Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; 3 refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome. 4 Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. 5 Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. 6 Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do SENHOR para todo o sempre. (Salmo 23)

Oremos:

Senhor, nosso Deus, Pai amoroso. Buscamos tua face nesta hora difícil. Recursos humanos já não podem ajudar nosso/a querido/a NN. Tu és nosso único amparo. Acompanha NN com a tua graça. Que no poder de Cristo ele/a possa vencer. Aquieta nossos corações com a certeza de que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que te amam. Senhor, tem misericórdia de nosso/a querido/a NN e conceda a ele/a tua comunhão em teu reino eterno. Amém. Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dá hoje. E perdoanos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal. Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém.

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HINO 298 (recitado ou cantado)

1. Jesus Cristo é meu Senhor, / minha paz e meu abrigo, meu bendito Salvador, / meu pastor, ao qual eu sigo: Eis que não me assustarão / morte, trevas e aflição.

2. Vive o Redentor Jesus, / eu também terei a vida; junto a ele, em sua luz, / eu encontrarei guarida. Nunca ele há de abandonar / o que nele confiar.

3. Vinculado a ele estou / pelos laços da esperança; minha fé se alicerçou / nele, em firme confiança. Nem a morte e seu poder / dele podem me averter.

4. Eu verei meu Salvador, / que por mim venceu a morte, e do céu o resplendor / há de ser a minha sorte. Hei de em seu amor arder, / junto a ele hei de viver. (Com as mãos impostas sobre a fronte do agonizante, será pronunciada a benção:)

Abençoe-te Deus, o Pai, que te criou à sua imagem; Abençoe-te Deus, o Filho, que te redimiu com seu sofrimento e morte; Abençoe-te Deus, o Espírito Santo, que te chamou para a vida e santificou. Deus, o Pai e o Filho e o Espírito (+) te acompanhe com os seus anjos ao reino no qual seus eleitos o louvam eternamente. Nosso Senhor Jesus Cristo esteja contigo para te proteger. O Espírito Santo esteja em ti para te consolar. Assim diz Deus, o Senhor sobre a vida e a morte: “Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu.” Amém

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Sugestões de textos bíblicos Salmo 31 1 Das profundezas clamo a ti, SENHOR. 2 Escuta, Senhor, a minha voz; estejam alertas os teus ouvidos às minhas súplicas. 3 Se observares, SENHOR, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá? 4 Contigo, porém, está o perdão, para que te temam. 5 Aguardo o SENHOR, a minha alma o aguarda; eu espero na sua palavra. 6 A minha alma anseia pelo Senhor mais do que os guardas pelo romper da manhã. Mais do que os guardas pelo romper da manhã, 7 espere Israel no SENHOR, pois no SENHOR há misericórdia; nele, copiosa redenção. 8 É ele quem redime a Israel de todas as suas iniqüidades.

“Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu” (Isaías 43.1) “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor. Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (Romanos 14.8-9) “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Romanos 14.8) “Nas tuas mãos, entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus da verdade” (Salmo 31.5) “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma” (Mateus 11.28) “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão” (Jo 5.24-25) “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Marcos 9.24) “Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras.

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Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida. O vencedor herdará estas coisas, e eu lhe serei Deus, e ele me será filho” (Apocalipse 21.3-4) “Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre” (Salmo 73.23-26) “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é o que vos chama, o qual também o fará” (1 Tessalonicenses 5.23-24) “Ora, o Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar. A ele seja o domínio, pelos séculos dos séculos. Amém!” (1 Pedro 5.10-11) “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus para vós outros que sois guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelarse no último tempo” (1 Pedro 1.3-5) “Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? (...) Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 8.31-32; 37-39)

“O último inimigo a ser destruído é a morte. (...)Pois assim também é a ressurreição dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual” (1 Co 15.26;42-44) “O homem, nascido de mulher, vive breve tempo, cheio de inquietação. Nasce como a flor e murcha; foge como a sombra e não permanece” (Jó 14.1-2) “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir” (Hebreus 13.14)

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Sugestões de hinos

HINO 44 1. Na cruz eu quero te saudar, / Cordeiro do meu Deus, sem par, com coração ardente. / Da cruz tu pendes, a sofrer, por mim, Senhor, hás de morrer, / calado e obediente. Mas pela fé eu posso ver / em todo o teu cruel sofrer de Deus a majestade! / Cordeiro, digno de louvor, serás chamado Rei, Senhor, / por toda a eternidade.

2. Seguir-te quero em morte e dor, / tu, que és da Salvação Senhor, nada há de separar-nos. / À nossa frente queres ir e assim segura via abrir / aos crentes teus, amados. Por seres obediente assim, / tudo é possível para mim, já que por mim morreste. / Não temo a morte, e, no sofrer, por toda a vida hei de saber / que tu, Senhor, venceste.

Valentin Ernst Löscher, 1673-1749

HINO 204 1. Sempre quero estar contigo, / sempre a ti, Jesus, servir; não me afasto, em ti me abrigo, / teu caminho hei de seguir. És da minha vida a vida, / da minh’alma és o vigor. Eu sou vide a ti unida; / a videira és tu, Senhor.

2. Onde há vida mais ditosa / do que junto a ti, Senhor, que me dás, com mão bondosa, / bênção mil, por teu favor? E por quem sou confortado, / meu Jesus, se não por ti? Pois somente a ti foi dado / o poder no céu e aqui.

3. Onde se acha tal bondade / com a que Jesus mostrou,

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que da morte e da maldade / por seu sangue me livrou? Como eu não me entregaria / ao que a vida deu por mim? Como não me empenharia / em segui-lo até o fim?

4. Sim, Jesus, em ti somente / fico em alegria e dor; já na terra e eternamente / eu me entrego a ti, Senhor. Crente, aguardo o teu chamado, / sempre pronto a obedecer; para a morte é preparado / o que em ti permanecer.

Philipp Spitta, 1801-1859

HINO 301 3. Se a morte me colher, Jesus é meu viver. É meu Senhor amado, refúgio inabalado. Minha alma e minha mente entrego-lhe contente.

HINO 222 1. Quem no mundo há de magoar-me? / Cristo é meu, eu sou seu, quem o há de roubar-me? / Meu Senhor venceu o inferno. Pela cruz, meu Jesus / deu-me o céu eterno.

2. Nada eu trouxe para a vida. / Só no amor do Senhor encontrei guarida. / Alma, vida, corpo e mente: Nada é meu, quem m’os deu / foi meu Deus clemente.

3. Tu me dás toda alegria, / meu Senhor, Bom Pastor, quem ao céu me guia. / Eu sou teu: por mim morreste. Redentor, por amor / salvação me deste.

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4. Eu sou teu, Senhor clemente, / minha luz és, Jesus! Peço-te insistente: / Dá que eu seja ao céu erguido onde, ó Rei, viverei / sempre a ti unido.

Paul Gerhardt, 1607-1676 Outras sugestões: HPD 69; HPD 174; HPD 221

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Unidade VII – Soltar

No momento em que os discípulos, no caminho de Emaús, reconhecem Jesus, ele desaparece. Ele não se deixa prender. Quando Maria Madalena procura segurá-lo, ele pede para ela: “Não me toques!” A despedida faz parte da vida. Cada despedida é uma pequena morte que exige de nós a capacidade de entregar e de soltar.

Não sabemos em que condição psicológica Jesus morreu. Os Evangelhos contêm diferentes versões dos últimos momentos de Jesus. Segundo Marcos e Mateus, Jesus morreu com um grito forte após ter chamado: “Meu Deus, porque me abandonaste?” Conforme Lucas, Jesus havia dito: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!” Segundo João, as últimas palavras de Jesus foram: “Está consumado!” Uma revolta desesperada ou silenciosa submissão? Não sabemos! E isto é bom. Pois como seguidores de Jesus não temos uma receita pronta de como um cristão deve morrer. Se com um grito ou em silenciosa resignação, não é o decisivo. Decisivo é que “alguém nos segure em suas mãos quando caímos” (Rainer Maria Rilke). Todas as grandes religiões e especialmente as correntes místicas observam que a capacidade de soltar é o maior objetivo da vida. As clássicas disciplinas espirituais, oração, jejum, caridade são experiências do soltar, portanto, um ensaio para a morte. Os cristãos entendem a sua vida como um caminho de peregrinação por uma terra estranha: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir” (Hebreus 13.4). Aquele que acompanha um doente terminal reflete, ao mesmo tempo, sobre sua transitoriedade e se prepara para a sua própria morte.

Soltar “Não vos lembreis das coisas passadas, nem as antigas. Eis que faço coisa nova, que está saindo à luz; por ventura, não o percebeis?” (Isaías 43, 18).

O último e profundo expirar no morrer é também um último soltar do corpo, com o qual nos identificamos por toda a vida e um último soltar deste mundo, no qual vivemos. Mas também para os familiares e amigos significa um soltar, para que o doente terminal possa ir para onde ele é chamado.Também este momento é importante, para que eles possam continuar a viver. Quem se prende a um morto, permanecerá tolhido em sua própria vida. Por toda a vida podemos ensaiar este soltar, a começar por pequenas oportunidades no dia-adia. Quanta coisa está ao nosso redor que não é necessária para viver? Não nos prendemos a coisas como títulos e honrarias, no reconhecimento das pessoas e em tantos bens materiais?

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Pela morte de nossos próximos nós podemos aprender a soltar, porque nós não temos como segurá-los. Eles se vão e nos deixam uma lição de como se despedir. Em cada noite, antes de dormir, podemos ensaiar este soltar: Entregar o controle de nossa vida, deitar cheio de confiança e nos sentir protegidos na mão de Deus. Deixar inclusive esta imagem de Deus como algo que foge de nossa capacidade de definição. Soltar na confiança de que encontraremos algo novo. Quem está preso ao passado, não está preparado para o futuro.

Aprender a morrer – aprender a viver “Durante toda nossa vida aprendemos a viver – e o que talvez nos admire: aprendemos também a morrer”. Esta frase do filósofo romano Sêneca expressa uma sabedoria encontrada em muitas culturas e religiões: aprendemos a morrer quando aprendemos a viver – aprendemos a viver quando aprendemos a morrer. Também para a cultura judaico-cristã encontramos a verdadeira sabedoria de vida somente quando incluímos a realidade da morte em nossos planos. O Salmo 90 pede: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio.” Não é por acaso que o salmista dirige-se a Deus pedindo por esta sabedoria. Em geral, os seres humanos evitam a confrontação com a realidade da morte e preferem não falar sobre ela. Esta atitude defensiva é compreensível: como incluir em nossos planos de vida justamente aquilo que põe fim a tudo? Como preparar-se para um acontecimento que irrompe inesperadamente em nossa vida? Como aprender a morrer se não podemos treinar o morrer na prática? A resposta a esta intrigante pergunta está dada no paradoxo já citado: aprendemos a morrer quando aprendemos a viver – aprendemos a viver quando aprendemos a morrer. O teólogo Jörg Zink apresenta algumas regras 28 que podem nos auxiliar a viver preparando-nos para a morte:

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Aprender a utilizar os dias e as horas de nossa vida, conscientizando-nos, assim, acerca dos limites do tempo à nossa disposição.

Viver cada dia intensamente. Dar ao diálogo, aos planos, à alegria, às brincadeiras, à reflexão e ao sono sua importância devida. Permitir que cada momento revele sua beleza ou seu pesar. Viver desta forma também o último dia – com confiança.

Se possível, não fazer nada cuja repetição não desejaríamos.

A cada anoitecer pôr fim a qualquer conflito e não carregar questões não resolvidas por dias ou semanas. Pois, o que deixamos de fazer ao longo de anos, não iremos recuperar em poucas horas.

Perdoar a outros e pedir perdão pela própria culpa. Fazê-lo não como se fosse algo excepcional, mas exercício diário. Confiar que o perdão recebido de Deus e dos outros é válido – e ser grato por isso.

Pouco a pouco, moderar e diminuir a importância excessiva dada à própria vida e às próprias realizações. Moderar-se até que não haja mais ninguém para o qual se possa olhar para baixo. Sorrir a respeito do resistente orgulho próprio.

ZINK, Jörg, Die Mitte ist der Anfang des Tages. Stuttgart: Kreuz Verlag, 1986. p. 39-40.

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Desistir completamente de comparar-se com outros. O que se pode comparar não é digno de esforço ou medo.

Com serenidade desistir do apego à influência, a coisas, ao dinheiro. No final, o importante nestas coisas será somente minha capacidade de entregá-las.

Exercitar-se em fazer retrospectiva dos dias, semanas e anos já vividos. Procurar realizála sem melancolia ou tristeza, mas com sobriedade e gratidão. O treino na arte da retrospectiva será imprescindível quando a última hora chegar, a hora do balanço derradeiro. Silenciar, jejuar e orar são exercícios do soltar. Muitas pessoas anseiam hoje reaprender um silenciar frutífero. No texto que segue, o monge beneditino Anselm Grün 29 revela sua experiência monástica com o silêncio: •

Silenciar – um exercício espiritual Silenciar não é apenas um calar passivo, uma postura de recolhimento interior voltada a controlar atitudes indesejáveis. Trata-se, antes de tudo, de um agir positivo, um ato de desprender-se. Silenciar como agir ativo, portanto, não consiste em calar ou reprimir os pensamentos, mas, continuamente, desprender-se de seu falar e pensar. A capacidade de silenciar mostra-se na disposição de soltar e desprender-se. Por vezes, mesmo silenciando exteriormente, pode-se resistir a este desprender-se do qual trata o verdadeiro silenciar. Pode-se procurar refúgio no silêncio para se tornar inatingível, ou para fugir das lutas da vida, ou para proteger a imagem idealizada que se faz de si mesmo. Assim, o silenciar torna-se num agarrar-se obstinado em si mesmo. Muitos silenciam por orgulho interior, para não se expor com suas palavras. Não conseguem desprender-se de si mesmos e da auto-imagem de perfeição. Quando, porém, consigo soltar-me, não me agarrando mais na imagem que desejo que outros tenham de mim, então posso entregar-me totalmente a Deus. Este soltar-se é a essência do silenciar. Soltar-se, desprender-se, não significa reprimir pensamentos e sentimentos que surgem, para que possa ter paz interior. Eu observo os pensamentos e sentimentos mas não os aprofundo. O pensamento, o sentimento está aí, mas não me ocupo com ele. Se em instantes ele novamente está aí, não me irrito, apenas o solto novamente. Os pensamentos, os sentimentos vão e vêm, mas não permito que eles me ocupem. Também não tenho medo deles, não me sinto pressionado em livrar-me deles – lido serenamente com eles, deixando-os ir e vir, até que venham cada vez menos, até que, aos poucos, torno-me livre deles. Este é o método. Mas o que devo soltar, do que devo me desprender? A princípio tratase de desprender-se de tensões internas. Pensamentos e sentimentos, em si, não são maus e não existe motivo para sempre livrar-se deles. No entanto, eles podem provocar tensões e nos ocupar de tal forma que nos dominam. Enquanto estes pensamentos nos mantêm em tensão, não há possibilidade de lidar com eles de maneira produtiva. Por isso, antes de tudo, é necessário dissolver a tensão. Tensões internas geralmente também se manifestam corporalmente. Basta observar como sentamos, andamos, trabalhamos para

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O texto a seguir é um resumo de: GRÜN, Anselm. Der Anspruch des Schweigens. Münsterschwarzach, 1984.

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descobrir nossas tensões internas. Ombros retesados, expressão facial tensa, respiração difícil. Existem vários métodos que nos auxiliam a dissolver esta tensão. O primeiro método inicia com o próprio corpo. Procuramos relaxar os músculos de nosso corpo, especialmente os músculos dos ombros, das costas, do rosto e do pescoço. Nossas tensões internas tendem a fixar-se nestes pontos. Procuramos identificar estes pontos tensos e para lá dirigir nossa respiração – provocando, assim, o relaxamento. Expirando, soltando o ar, nós relaxamos as costas e os ombros tensos. Este soltar, porém, só fará sentido se ao relaxar corporalmente, passamos também a soltar as tensões interiores, mesmo não podendo identificá-las exatamente. Assim que passamos a soltar a musculatura, passamos também a dissolver tensões internas. Porém, se alguém deseja utilizar-se deste método de relaxamento corporal como técnica para dissolver tensões internas, terá que adotar uma atitude de desprendimento interior. Não é possível tratar apenas dos sintomas, esquecendo-se das causas. O segundo método ocupa-se com as causas da tensão. Ele analisa minhas expectativas e desejos exagerados, a tensão gerada por necessidades não satisfeitas e por preocupações exacerbadas. Inicio, pois, com o problema existencial que gera a tensão e procuro soltar expectativas exageradas e preocupações desmedidas. Isto, porém, não se consegue apenas querendo. Cerrando os dentes, não consigo nada. Preciso abrir mão. Abrir mão destas expectativas exageradas e preocupações desmedidas. Não me torno mais pobre se abro mão. Desprendendo-me e entregando partes de mim, na verdade, torno-me mais rico, pois recebo paz e tranqüilidade. Desprender-se em Deus tem a ver com amor. Eu aceito que Deus me ama – e confio nisto. Eu solto minhas seguranças com as quais procurava garantir-me perante Deus – e permito que ele se aproxime de mim. É necessário que continuamente nos desprendamos de nosso passado a fim de permanecermos abertos ao futuro. Quem permanece preso à sua infância, jamais irá crescer. Não consegue largar a saia de sua mãe, como se diz popularmente. Soltar o passado significa soltar posturas internas. Não posso permanecer eternamente preso a pessoas, pais, colegas de escola ou amigos. Não posso permanecer ligado a lugares, ao local do nascimento, ou a locais que se tornaram familiares. Seguidamente devemos soltar hábitos e aquilo que se tornou usual – para permanecer acessível para o novo. Um aspecto importante no exercício de desprender-se do passado consiste em libertar-se de amarguras. Há pessoas que sempre carregam consigo as feridas do passado, não permitindo que sarem. Sentem-se magoadas por terem sido iludidas por pessoas ou por não terem recebido atenção, amor e carinho em sua educação. Elas necessitam destas lembranças dolorosas para manter sua amargura. Não conseguem perdoar pessoas que as machucaram, não conseguem perdoar a Deus por não tê-las poupado deste passado. Especialmente aqui é decisivo soltar as amarguras. Pois elas nos impedem o acesso a Deus. Este soltar implica num abrir-se para Deus. Tenho que me soltar para que Deus possa realizar algo em mim. Portanto, é fundamental que eu deixe de agarrar-me a mim mesmo. É preciso abrir mão, desistir da auto-afirmação, desprender-me de mim mesmo para que Deus tenha acesso a mim e possa agir em mim. Em todas as religiões existe o exercício de meditar sobre a própria morte. São Bento exige em sua regra monástica que o monge diariamente lembre de sua morte (RB 4,55). Ao monge é exigida a morte interior para que a verdadeira vida possa encontrar espaço. Se imaginarmos permanecer três dias na sepultura – o que deixaríamos lá? Tudo o que é morto, todo o peso sem sentido: bens que arrastamos junto conosco; opiniões que sustentamos; papéis que interpretamos; máscaras que usamos; tudo isto permaneceria na sepultura. E poderíamos ressurgir da sepultura como pessoas novas. Os critérios de uma

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vida autêntica seriam reorientados na sepultura. O exercício imaginativo de estar deitado na sepultura, pois, não é algo que diminua nossa força vital. Ao contrário, ele é uma ajuda para que a verdadeira vida possa se desenvolver em nós. Tudo o que não é autêntico e verdadeiro, o que atrapalha a vida genuína, deve ser abandonado. A morte quer nos capacitar para a vida. Não se trata de fuga das lutas do cotidiano, mas ajuda para a conquista da verdadeira vida, para experimentar a ressurreição de Cristo em meio às tarefas do dia-a-dia. O objetivo do silêncio interior, pois, é abrir-se para experimentar a Deus de tal forma que seu Espírito inunde nosso viver, pensar e agir. O silêncio deseja nos tornar transparentes para o Espírito de sorte que Deus dirija nossa vida. Então, não mais seremos nós que determinamos nosso viver a partir de nossa mesquinhez egoísta – mas sim o Espírito de Deus, ao qual silenciosamente nos entregamos e confiamos. Como aquietar-se de tal modo a acalmar nossos insistentes sentimentos e pensamentos, chegando a alcançar a profundidade de nosso ser? Como encontrar a paz interior, de sorte a tornar-se sensível para a voz de Deus? Métodos de meditação e contemplação nos ajudam a encontrar a quietude interior, preparando-nos para ouvir a Deus. No texto a seguir, o monge trapista Richard Rohr 30 sugere um exercício que pode ser praticado por alguns minutos cada dia. A prática regular do mesmo pode criar em nós um valioso espaço de silêncio, preparando-nos para a oração contemplativa.

Exercício preparatório para a contemplação “Imagine um rio ou uma corrente de água. Você está sentado à beira deste rio. No rio navegam barcos e navios. Enquanto a corrente de água passa diante de seu olho interior, peço que dê a cada um destes barcos e navios um nome. Um dos barcos, por exemplo, poderia chamar-se “meu medo diante do futuro”. Um navio poderia chamar-se “a rejeição que sinto de meu marido”. Outro barco poderia ter o nome “isto eu não sei fazer”. Assim, cada julgamento que você faz é um pequeno barco. Tome tempo para dar um nome a cada um destes barcos – e depois, deixe-os seguir adiante. Para algumas pessoas, este é um exercício muito difícil. Pois estamos acostumados a logo pular dentro do barco. Assim que ocupamos um barco, identificando-nos, ele ganha energia. Trata-se, pois, de um exercício de desprender-se, de não-ocupar, de soltar. Para cada idéia ou imagem que nos ocorre neste exercício, dizemos: “Não! - isto não sou eu”, “disto eu não preciso”. Continuamente temos que nos dizer isto. Alguns destes barcos, que já se acostumaram a serem ocupados por nós, pensam que desta vez não os vimos – e voltam, subindo a correnteza. O barco diz: “Mas ele sempre se irritava com sua esposa - porque não desta vez?” Algumas pessoas sentirão o desejo de torpedear o seu barco. Por favor, não odeie os seus barcos, não os condene. Este também é um exercício de não-violência. Você não deve odiar sua alma. Trata-se de reconhecer as coisas e dizer: “Disto eu não necessito”. Mas, faça isto cordialmente. Quando aprendemos a tratar nossa própria alma com ternura e amor, também saberemos levar esta sabedoria amorosa ao mundo que nos rodeia.

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Extraído de Richard Rohr. Von der Freiheit loszulassen. München, 1990. p.80-82.

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Temos que aprender a aceitar tudo. E, mesmo assim, não ficar preso a nada. É um exercício do soltar. Pensamentos positivos são tão ruins quanto os negativos, sentimentos positivos são tão ruins quanto os negativos – quando permanecemos presos a eles. Autoimagens positivas são tão viciosas quanto as negativas – se permanecemos acorrentados a elas. Espiritualidade autêntica diz: não estou preso a nenhuma imagem. Se você conseguir praticar este exercício por algum tempo, você irá perceber a que está preso. Num primeiro momento, isto é humilhante. Percebemos o quanto somos sujeitos a nossos sentimentos e pensamentos. Muitas pessoas, porém, irão perceber em pouco tempo que o rio está se acalmando. Algumas até sentirão o desejo de despir suas roupas e se banhar neste rio da vida.” O jejum é uma prática milenar que está sendo redescoberta. Cada vez mais pessoas compreendem a interligação de corpo, alma e espírito. Doenças psíquicas podem ter causas físicas – e vice versa. O jejum não promove apenas maior leveza corporal. Ele também tem efeitos curativos para a alma e o espírito. Uma das maiores autoridades neste tema, sem dúvida, é o médico alemão Otto Buchinger. No texto a seguir, apresentamos citações de uma de suas principais obras sobre o “jejum curativo” – “Heilfasten”.

O Jejum 31 “A prática do jejum tem a idade dos povos da terra. E, desde os primórdios da história, encontramos sempre duas formas de jejuar: o jejum terapêutico e o jejum religioso ou cultual. Na essência, ambos são a mesma coisa. O jejum religioso e o terapêutico sobrepunhamse para os antigos, pois sua medicina era teúrgica e seus reis, sacerdotes, profetas, iniciados e adeptos desde sempre experimentaram que o jejum rigoroso não só libertava o corpo de doenças, mas, de igual modo, a partir dos componentes teúrgicos, libertava o ‘homem interior’ de laços indesejados e escravizantes. Além disso, o fato de a cura do corpo e da ‘cura da alma’ serem interdependentes e mutuamente condicionantes tornou-se realidade óbvia tanto para o homem simples ligado à natureza quanto para o moderno psicoterapeuta. Também é certo que a doença mais antiga é conseqüência de dieta errada num sentido amplo, assim como o jejum é a mais antiga das curas. Igualmente é patrimônio comum a todos os povos que o ser humano cava sua sepultura com os dentes, assim como também a moderação é considerada uma virtude singular. Sócrates chamava de bárbaros aqueles que tomavam mais que duas refeições diárias. A moderação conserva, o jejum cura. Se a falta de moderação provocou doença, então, somente o jejum pode curar.

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Extraído de: BUCHINGER, Otto. Das Heilfasten und seine Hilfsmethoden als biologischer Weg. 22.a edição. Stuttgart: Hippokrates, 1992. p. 13, 15-16, 29-30.

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Sobre a psicologia do jejum

Quem jejua, percebe mudanças em sua constituição emocional e no funcionamento de sua psique. A capacidade de assimilação aumenta. A fantasia e a imaginação são mais vivas. A concentração está inalterada. Os sentidos estão mais aguçados. Além disto, percebem-se outras alterações dignas de nota:

Verifica-se uma espécie de relaxamento da tensão emocional, a percepção está mais clara, a sensibilidade estimulada. Inicialmente, a reflexão analítica é mais lenta, a intuição, porém, aprofundada e facilitada. No início do jejum, pode ser verificada uma tendência à depressão. Logo depois, verifica-se uma modificação para uma tendência maníaca: observa-se facilidade no raciocínio, aumento de produtividade mental. Junto com a sensibilidade mais aguçada verifica-se, eventualmente, também a dissolução de fixações neuróticas. Nota-se a cristalização do centro da existência, chegando-se ao encontro do verdadeiro eu. Descobre-se o eixo central da existência, o meta-centro, a pátria interior. Fazem parte da psicologia do jejum também alguns aspectos negativos e perigosos, que devem preocupar o médico.

A tendência maníaca observada, associada à facilidade mental de realizar associações e o aumento da auto-consciência pode, eventualmente, também apresentar exageros, manias de grandeza, falta de consideração, sede de poder e, às vezes, até hipersensibilidade, especialmente em pessoas que apresentavam, inicialmente, certa falta de estima sendo que, depois do jejum, procuravam compensar exacerbadamente seus complexos de inferioridade. O tempo do jejum, pois, não é isento de tentações e perigos. É impressionante observar como a psicologia do jejum se espelha até na conhecida narrativa do jejum de Jesus (Mateus 4). Percebe-se como desperta o sentimento de poder e seu abuso, e como as forças mágicas despertadas pressionam tentadoras para a ação. E como depois da luta interior, finalmente, surgem as forças da harmonia e do equilíbrio. ‘Com isto o deixou o diabo, e eis que vieram anjos e o serviram’ (Mateus 4.11). Para a psicologia do jejum também é importante uma citação do Missal Romano da Igreja Católica com 1700 anos de idade, no qual é dito numa tradução livre: ‘Através do jejum físico você reprime as paixões, eleva o espírito e confere em abundância virtudes e recompensa...’” “‘Sujeitai a terra’, diz a Sagrada Escritura. A forma mais elevada da terra, porém, é o nosso corpo. Quem jejua, em certo sentido, torna-se senhor de seu corpo. Adquire poder sobre o terreno. Forças de anjos o servem.”

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Oração por serenidade de Jörg Zink 32 (1.7.5) “Entrego-me a ti, Senhor, e peço: Acaba com toda inquietude.

Entrego-te minha vontade. Creio não poder mais responsabilizar-me por aquilo que faço e que acontece através de mim. Conduze-me e mostra-me tua vontade.

Entrego-te meus pensamentos. Creio não ser mais capaz de compreender-me a mim mesmo, a própria vida ou as pessoas. Ensina-me a pensar teus pensamentos.

Entrego-te os meus planos. Creio que minha vida não adquire sentido por aquilo que alcanço através de meus planos. Confio-me inteiramente aos teus planos, pois tu me conheces.

Entrego-te minhas preocupações pelas outras pessoas. Creio que minhas preocupações não podem ajudar. A verdadeira ajuda vem de ti somente. Por que, então, devo preocupar-me?

Entrego-te o meu medo de fracassar. Creio que não preciso ser uma pessoa bem sucedida

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Extraído de ZINK, Jörg. Wie wir beten können. Stuttgart: Kreuz Verlag, 1975. p. 207

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para ser uma pessoa abençoada segundo tua vontade.

Entrego-te todas as perguntas não respondidas, toda inquietação comigo mesmo, todas esperanças obstinadas. Eu desisto de lançar-me contra portas trancadas e espero por ti. Tu haverás de abri-las.

Entrego-me a ti. Pertenço-te, Senhor. Tu me seguras em tua bondosa mão. Agradeço-te por isso. Amém.”

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Unidade VIII – Levantar A superação da paralisia e do luto expressa-se numa nova vitalidade. Os discípulos de Emaús levantam e têm a energia para correr de volta todo o caminho para Jerusalém – eles têm pressa em compartilhar a experiência que fizeram com o ressuscitado.

Quando tivemos que soltar uma pessoa, então, em algum momento, é preciso encerrar o luto, levantar e retornar à vida. A esperança cristã acerca da ressurreição afirma que também para o falecido inicia uma nova vida. Cristo, o ressurreto, nos precede no caminho para esta nova vida.

Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados33 (II) Lothar Carlos Hoch

III – Acompanhamento a enlutados 1 - Orientação geral

O fato de os membros, mesmo os mais afastados, continuarem procurando o pastor para que este celebre um rito fúnebre não isenta a igreja da responsabilidade de ir além desta forma ritualizada de se fazer presente nesta hora. O ritual do sepultamento é apenas um breve momento. Ele tem uma função importante, porém limitada no processo global do luto e do sofrimento que a morte desencadeia. Os subsídios seguintes pretendem servir de ajuda para um assessoramento mais profundo e fraterno a pessoas enlutadas. Iniciei falando do ritual fúnebre porque, mesmo sendo um momento breve, é uma peça importante no processo de luto e da superação do sofrimento causado pela morte de um ente querido. Além de se constituir numa boa oportunidade de pregação, ele “canaliza a emoção do luto para uma forma socialmente reconhecida” (JOSUTTIS, Manfred. Prática do Evangelho entre Política e Religião. 2.a edição. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 203). A celebração ritual dá oportunidade a que o sofrimento e o luto sejam manifestados mais livremente do que em outras ocasiões. Ora, tendo uma função catártica, terá também uma função poimênica. Uma visita do pastor à família enlutada, horas antes do enterro, tem uma função poimênica importante. Uma vez porque ajuda o pastor a preparar melhor a sua alocução de enterro, dando-lhe subsídios importantes para dirigir a palavra de maneira adequada à situação específica em que se encontra a família enlutada. Por outra, esta visita pode se 33

HOCH, Lothar Carlos. Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados. In: Ofícios - Proclamar Libertação – Suplemento 2. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988. p. 73-82.

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transformar em uma primeira e valiosa oportunidade para o desabafo de um ou outro membro da família. É necessário que o pastor esteja preparado para essa hipótese e reserve tempo suficiente para isso. Ao falar sobre os dados biográficos, sobre a doença do/a falecido/a e sobre textos bíblicos ou hinos a serem usados no enterro, a família pode se envolver emocionalmente e sentir o desejo de ter no pastor alguém que a ouça, a entenda e se solidarize com ela na dor. O pastor, no entanto, levado pela pressa e pela preocupação central de recolher subsídios para a sua alocução fúnebre, corre o risco de dar um trato por demais técnico aos fatos e, assim, desperdiçar uma oportunidade valiosa de um relacionamento poimênico significativo. À pastora mais atenta não passarão desapercebidos certos detalhes que se evidenciam na visita e no ritual fúnebre. Refiro-me, por exemplo, à maneira de os familiares se relacionarem uns com os outros, aos eventuais conflitos, aos sentimentos de culpa, às dificuldades financeiras, às preocupações em relação ao futuro do/a viúvo/a (especialmente em se tratando de pessoa idosa). Merecem atenção especial as circunstâncias que envolveram a morte. Esta pode ter sido causada por negligência humana ou por fatores estruturais como, por exemplo, insalubridade no emprego, falta de segurança no trabalho, violência policial, etc. É evidente que todas essas questões não poderão ser abordadas adequadamente naquelas poucas horas que antecedem o ritual fúnebre. Muitas vezes esse nem é o momento propício para fazê-lo. A convivência com a família enlutada, mesmo que breve, oferecerá pistas e indicações sobre questões que poderão ser retomadas posteriormente. É nesse sentido que destaquei inicialmente o fato de o ritual fúnebre apenas inaugurar o assessoramento pastoral propriamente dito que deverá se seguir depois, em momento mais oportuno. 2 – Fases do luto

Assim como estudos especializados mostraram que um moribundo tende a atravessar certas fases no seu processo de morrer, assim também se conseguiu detectar certas fases pelas quais passa uma pessoa enlutada. Fala-se, por isso, de um processo de luto, ou seja, pode-se distinguir manifestações diferentes de luto em momentos diferentes de uma caminhada, respeitadas as características individuais de uma pessoa. As minhas considerações sobre o assunto baseiam-se fundamentalmente nos estudos de Y. Spiegel e R. Lindner 34.

a) Fase de choque: Muitas vezes a morte colhe as pessoas de surpresa. E mesmo já sendo esperada, quando chega, continua tendo um forte impacto. O choque resulta do confronto direto com a realidade nua e crua da morte. Essa primeira reação de choque pode se manifestar em forma de um grito desesperado ou em forma de uma sensação gélida que passa por todo o corpo (alguns chegam efetivamente a sentir frio). Outras pessoas contam que sentiram a notícia da morte de alguém querido como se tivessem levado uma paulada na cabeça e como se estivessem sendo anestesiadas e fossem incapazes de manifestar algum tipo de sentimento. Finalmente outras têm a sensação de que o que estão vendo o ouvindo não pode ser verdade. Numa reação espontânea, quando confrontadas com o corpo do falecido, sentem um forte impulso de querer trazê-lo de volta à vida. 34

SPIEGEL, Yorick. Der Prozess des Trauerns. München-Mainz: Kaiser-Grünewald, 1973; BECHER,Werner; LINDNER, Reinhold. Begleitung Sterbender. Stuttgart: Kreuz Verlag, 1975.

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b) Fase controlada: Depois da fase do choque inicial, segue uma fase mais controlada, uma espécie de fase intermediária. A pessoa enlutada é desviada e distraída por diversos acontecimentos e fatos que sucedem ao seu redor. Ela tem que pensar numa série de questões que dizem respeito ao enterro. Precisa tomar outras decisões. Há pessoas à sua volta. A cerimônia do enterro tem lugar. É, pois, uma fase de agitação. Os sentimentos são confusos, embora predominante o sentimento de tristeza e de perda. Mas os outros estão aí e o enlutado não chega a se dar conta exatamente do que a morte da pessoa significa para ela. Esta fase termina quando o ritual fúnebre se encerra e quando as pessoas se dispersam. c) Fase do vazio existencial. Esta é a fase mais importante, mais prolongada e dramática do processo de luto. Ela inicia quando cessa a agitação, os familiares e amigos se foram e quando retorna a rotina do dia-a-dia. Só que o dia-a-dia agora não é mais o mesmo. O sentimento de perda se instala de forma tão forte que parece impossível pensar em outra coisa. Onde quer que se vá, e não importa o que se faça, a pessoa falecida está presente. Só agora parece que o enlutado se dá conta do que aconteceu de fato. É a fase na qual ele adquire a consciência real da perda e se apercebe do que o/a falecido/a significava para ele. Noites de solidão e de lágrimas se sucedem. Uma freqüente idealização da pessoa falecida faz com que a sensação de perda se torne ainda maior. Neste fase muitos enlutados sentem um grande vazio existencial, sendo possível que lhes sobrevenha o sentimento de perda do sentido da vida. São freqüentes os sentimentos de depressão, especialmente entre aqueles que têm uma tendência para isso. Entre pessoas de fé, não raro se manifesta a sensação de terem sido esquecidas e abandonadas por Deus. Palavras bíblicas que outrora lhes traziam consolo, agora parecem vazias e destituídas de sentido. Alguns cristãos sentem a necessidade de manifestar seu inconformismo e seu protesto contra Deus, que permitiu essa desgraça.

Esta é a fase em que o enlutado mais precisa de apoio de familiares, amigos, vizinhos e da solidariedade e do consolo de irmãos e irmãs na fé. Ele precisa sentir que têm pessoas que estão ao seu lado. Nem tanto para lhe darem conselhos, mas para ter com quem compartilhar a sua tristeza ou mesmo o seu protesto. Ele precisa recapitular certas coisas da vida que teve em comum com a pessoa falecida e contar repetidamente certos episódios que para ele estão carregados de emoção. Outros enlutados preferem recolher em si mesmos e curtir sozinhos a sua tristeza e desolação. Eles dão a impressão de não quererem visitas. Não se deve confundir, todavia, o desejo de não falar com o desejo de não receber visitas. Às vezes o enlutado prefere não falar, mas no fundo ele se alegra ao notar que outros o procuram, nem que seja para silenciar com ele. d) Fase da readaptação: Esta fase vai surgindo aos poucos, na medida em que o enlutado consegue reorganizar a sua vida, reencontrar alegria no trabalho e tomar iniciativas no sentido de ir ao encontro de pessoas e mesmo tomar decisões (p.ex. presentear outros com as roupas do/a falecido/a, promover mudanças profissionais ou investir em algo novo, modificar certas coisas na sua própria casa, etc). Nota-se que o enlutado iniciou um processo de ordenamento do caos interior e que optou pela vida. Só agora que o enlutado se libertou mais interiormente do falecido, ele consegue deixá-lo repousar em paz e ver com mais objetividade o relacionamento que houve entre eles, tanto as facetas positivas como as negativas. Aos poucos o enlutado vai adquirindo a liberdade para, em as circunstâncias o permitindo, entrar em novas ligações afetivas ou de transferir sua afetividade para outros objetos. Trata-se, enfim, de uma readaptação à vida assim como ela é, sem a existência da pessoa falecida.

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O falar em fases do luto não deve ser entendido como a pretensão de querer estabelecer um curso “padrão” que o processo de luto precise percorrer. Cada situação de luto é especial e única. Há muitos fatores que determinam a forma do luto, desde aspectos culturais até características da personalidade e, não por último, o tipo de relacionamento que houve entre a pessoa falecida e o enlutado. Portanto, quando se fala em quatro fases do luto não se pretende dizer que toda pessoa enlutada precise necessariamente passar por esse processo na forma e na ordem acima descritas. Algumas pessoas pedem experimentar quase simultaneamente os sentimentos mencionados. Outras podem, num determinado dia, ter a sensação de estarem superando a fase aguda do luto e, pouco depois, recair num momento de grande tristeza e angústia. Mesmo assim, o falar em fases do processo de luto se constitui numa ajuda para quem lida com pessoas enlutadas, pois, conhecendo-se melhor as formas que o prantear pode assumir, é possível relacionar-se com essa pessoa de forma mais adequada e de modo a que ela se sinta melhor compreendida. Conhecendo-se as fases, poder-se-á evitar que se diga ou se faça certas coisas num momento inoportuno. Há um momento certo para todas as coisas debaixo do céu: um tempo para chorar com os que choram, um tempo de silenciar e um tempo de falar, um tempo de abraçar e um tempo de afastar-se do abraço (Eclesiastes 3.1ss). 3 – Questões complementares

O acompanhamento a pessoas enlutadas requer que se tenha presente ainda algumas outras questões que abordamos a seguir. Para que o processo de luto possa ter um desenvolvimento sadio é fundamental que não seja bloqueado, atrapalhado ou reprimido. O pranto precisa ter o espaço necessário para se expressar. O luto que encontra um ambiente de compreensão suficiente para se externar, liberta e desintoxica o interior da pessoa e possibilita um novo começo. Luto reprimido pode ser causa de doenças e de transtornos psíquicos futuros. Infelizmente a nossa sociedade ocidental, tecnizada e racional, é marcada por uma grande “incapacidade de prantear” (Mitscherlich). O problema ainda se torna mais agudo em contextos onde o prantear é sinônimo de fraqueza e infantilidade. Quanto mais as pessoas ascendem na escala social, tanto mais discreta e sofisticada parece tornar-se a forma de manifestar o luto, por exemplo, por ocasião de um ato fúnebre. Óculos escuros e maquilagem abundante servem para manter a postura e encobrir os verdadeiros sentimentos. Entre as classes populares e rurais a manifestação do luto geralmente é mais espontânea e por isso mais salutar. Mas também na igreja a livre expressão do luto sofre restrições. Em alguns círculos o pranto e a lamentação são considerados expressão de pouca fé. A fé nesse caso funciona como um fator inibidor do luto, mesmo que a Escritura fale abundantemente de pessoas tementes a Deus que expressam livremente diante dele as suas lamentações e até mesmo o seu protesto. Às vezes a própria incapacidade pessoal do pastor em expressar seus sentimentos pode se constituir num fator que o impede de se aproximar de pessoas enlutadas, pois receia perder a “postura pastoral” e não conter suas emoções. A intensidade e a forma de expressar o luto também depende da natureza do relacionamento que existia entre a pessoa falecida e os enlutados. Em se tratando de uma pessoa idosa ou de alguém que vinha sofrendo a longo tempo, geralmente, já houve a

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oportunidade de pratear antecipadamente a possível perda. O luto posterior à morte, nesse caso, costuma ser mais ameno. Por outro lado, mortes súbitas ou a morte de pessoas que viviam numa relação conflituosa com seus familiares geralmente tornam o processo do luto mais difícil. Elas se constituem em terreno fértil para o desenvolvimento de sentimento de culpa ou de desavenças familiares, até porque muitas questões ficaram pendentes. Pode acontecer então que o enlutado se auto-acuse exageradamente por eventuais palavras ofensivas que tenha pronunciado ou pensado, ou se culpe por não ter feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar a morte. Nesse caso, o luto poderá se caracterizar por atos de penitência, tais como gastar somas exorbitantes com o esquife, com flores e com o túmulo ou fazer visitas quase diárias ao cemitério. São tentativas de satisfazer post mortem certos desejos do falecido para compensar eventuais omissões anteriores à sua morte. Psicologicamente, ao lado da necessidade de auto-expiação de culpa, manifesta-se nessa forma de prantear uma espécie de medo de que o falecido pudesse se vingar do enlutado. Esse se empenha ao máximo para lhe agradar e, assim, o pacificar. É inegável que a morte de uma pessoa potencia a sua presença entre os enlutados. Em certos casos, a morte faz com que alguém passe a estar mais presente entre os familiares do que estava enquanto vivia! Há, por outro lado, circunstâncias que favorecem um processo de luto particularmente doloroso como, por exemplo, a perda de diversos familiares simultaneamente ou num curto espaço de tempo, morte por suicídio, morte de criança, uma relação de extrema dependência da pessoa falecida. Esses casos merecem uma atenção especial por parte da pastora e da comunidade. Dependendo da gravidade do quadro, é recomendável que se intermedie o auxílio de pessoas especializadas no assunto (psicoterapia). Resta-me fazer três observações conclusivas: a) A poimênica tem na fé cristã, na Bíblia e na oração uma fonte inestimável e inesgotável de recursos para ajudar pessoas enlutadas. Quem abre a Bíblia com o auxílio de uma chave bíblica se surpreenderá com o elevado número de passagens que tematizam conceitos como “sofrimento”, “lágrimas”, “pranto”, “lamentação”, etc. É importante que a pastora ou outra pessoa que, em nome da comunidade cristã, se acerca de um enlutado, seja capaz de transmitir o conforto que esses textos bíblicos oferecem, não de uma forma mecânica, mas efetivamente imbuída do espírito que está contido nessas palavras.

A fé cristã e a poimênica vivem da esperança de que, em Cristo, cruz e sofrimento não terão a última palavra. O cristão que sofre e faz com o olhar fito naquele que, sofrendo, superou o sofrimento e com isso mudou o significado do luto e do pranto humanos. Tudo está na perspectiva da esperança na promessa daquele que diz: “Eu enxugarei dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram” (Apocalipse 21.4). b) Quando a morte é conseqüência da idade avançada, de doença incurável, enfim, de circunstâncias inerentes às limitações da natureza humana, cabe à poimênica junto a enlutados uma postura de consolo. Há casos, contudo, em que a morte tem causas estruturais ou resulta de situações de flagrante injustiça sofrida pela vítima. Penso, por exemplo, na falta de atendimento médico adequado por parte de órgãos públicos ou particulares, nas condições desumanas de trabalho e segurança, nas mortes que resultam de violência sofrida. Nesses casos a poimênica precisa ir além do mero consolo aos enlutados, - ainda que esse continue sendo importante. Ela precisa assumir também a forma de denúncia, na maneira e no momento adequados. Só assim se evitará o risco de conferir à poimênica uma função estabilizadora de estruturas injustas. A poimênica

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seria desvirtuada, se ela se limitasse a contribuir para que os enlutados se conformem com o seu destino ou se os firmasse na convicção de que a morte injusta é vontade de Deus. A poimênica pode contribuir para que o sofrimento dos enlutados se transforme numa semente salutar de inconformismo que une o povo de Deus na luta pela superação de situações que geram a morte e o luto. c) A pastora não precisa e não deve pretender assumir sozinha o ministério da visitação e do acompanhamento a enlutados. Além de sobrecarregá-la, essa atitude representaria um desprezo do potencial terapêutico da própria comunidade cristã. Pessoas que pessoalmente passaram pela experiência de luto aprendem a compreender e a acompanhar outras pessoas enlutadas. Muitas vezes elas estão dispostas a isso, desde que se lhes dê uma verdadeira oportunidade de fazê-lo. Cabe à pastora ficar atenta aos dons e à disposição dos membros em desenvolver uma pastoral de enlutados dentro da comunidade.

Uma das formas de despertar a participação da comunidade é a organização de encontros para treinamento de visitadores/as. Paralelamente a isso pode-se organizar uma escala de visitação a famílias enlutadas. Outra forma de implementar uma pastoral de enlutados é a organização de grupos regulares ou de retiros de pessoas enlutadas na comunidade, onde elas possam compartilhar e se amparar mutuamente na dor. O fundamental é que tudo o que se faz nessa direção não seja entendido como uma ajuda que a comunidade oferece à pastora. O ministério é de toda a comunidade. Por isso, o que ela faz não é ajudar a pastora. Antes, pelo contrário, é a pastora que ajuda a comunidade a desempenhar fielmente o seu ministério.

Onde estão os mortos? Onde estão os mortos? Eis uma pergunta difícil e embaraçosa! Não importa se são adultos que perguntam, ou se são crianças. Ideal é respondê-la com figuras e imagens. Heidi e Jörk Zink 35 responderam esta pergunta a uma criança: “Certo dia, nossa filha nos perguntou: onde, afinal, estão os mortos? Ela havia visto quando o esquife do avô foi baixado à sepultura. ‘Onde está o vovô? Não é frio na sepultura? Ele vai molhar quando chover? Não é apertado demais – e escuro?’ Procuramos responder de maneira bem simples: Enquanto estamos aqui na terra, precisamos de nosso corpo. Quando vamos para a outra vida, não precisamos mais dele. O corpo é como uma vestimenta. Ela é importante quando está frio e quando há vento. Ela pode ser quente e bonita. À noite, quando vamos dormir, tiramos a vestimenta e a penduramos num cabide ou numa cadeira. Quando alguém morre, ele despe o seu corpo – como uma vestimenta. A vestimenta nós colocamos na terra. Ela não é mais necessária. E a pessoa recebe de Deus uma vestimenta nova, muito mais bonita que aquela que ela havia usado aqui na terra. Lá na sepultura, portanto, não está deitado o vovô. Ele está em outro lugar, para onde não podemos acompanhá-lo. Mesmo assim, sempre de novo, vamos à sua sepultura e a enfeitamos com flores porque ainda o amamos e lembramos dele. E agradecemos a Deus que não somente o deitamos na sepultura, mas pudemos deitá-lo em suas mãos amorosas.” 35

ZINK. Heidi; ZINK, Jörg. Wie Sonne und Mond einander rufen. Gespräche und Gebete mit Kindern. Mit Bildern von Hans Deininger. Stuttgart: Kreuz Verlag, 1982. p. 56-57.

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Um Sermão sobre a Preparação para a Morte36 Martim Lutero, 1519

1. Como a morte é uma despedida deste mundo e de todos os seus afazeres, é necessário que o ser humano disponha com clareza sobre seus bens temporais, assim como devem ficar ou assim como pretende ordená-los. Ele deve fazer isso para que, depois de sua morte, não permaneça motivo para rixa, discórdia ou algum outro mal-entendido entre seus parentes. Trata-se de uma despedida corporal ou exterior deste mundo, em que o ser humano abandona e se despede de seus bens. 2. Em segundo lugar, devemos despedir-nos também espiritualmente. Isto é: unicamente por causa de Deus, devemos perdoar amavelmente todas as pessoas, por mais que nos tenham ofendido. Por outro lado, unicamente por causa de Deus, devemos também desejar o perdão de todas as pessoas, muitas das quais sem dúvida ofendemos, ao menos com mau exemplo ou com menos boas obras do que lhes devíamos segundo o mandamento do amor fraternal cristão. Devemos fazer isso para que a alma não fique apegada a algum afazer na terra. 3. Quando nos despedimos de todas na terra, então devemos voltar-nos para Deus somente, pois é para lá que se dirige e é para lá que nos conduz o caminho da morte. Aí inicia a porta estreita, o caminho apertado para a vida, por onde cada um deve se aventurar com bom ânimo, pois o caminho é, por certo, muito estreito, mas não é longo. Ocorre neste caso o mesmo que acontece quando uma criança nasce, com perigo e temores, da pequena moradia do ventre de sua mãe para dentro deste vasto céu e desta vasta terra, isto é, vem a este mundo. Da mesma forma o ser humano sai desta vida pela porta estreita da morte. Embora o céu e o mundo em que vivemos agora sejam considerados grandes e vastos, tudo é muito mais apertado e menor em comparação com o céu que nos aguarda do que o ventre materno o é em comparação com este céu. É por isso que a morte dos queridos santos é chamada, em latim, de natale, dia do nascimento. No entanto, a estreiteza da passagem para a morte faz com que esta vida nos pareça ampla e aquela, estreita. Por esta razão devemos crer nisso e aprender do nascimento corporal de uma criança. Assim Cristo diz: “Quando uma mulher está para dar à luz, sente medo. Mas depois de dar à luz, já não se lembra do medo, porque, através dela, um ser humano nasceu ao mundo.” [Jo 16.21]. O mesmo vale para a morte: devemos livrar-nos do medo e saber que, depois, haverá muito espaço e alegria. 4. Tais arranjos e preparativos para essa viagem consistem, em primeiro lugar, em providenciar uma confissão sincera (principalmente dos pecados maiores e dos que, no momento, conseguimos lembrar com o máximo esforço) e os santos sacramentos cristãos do santo e verdadeiro Corpo de Cristo e da extrema unção, em desejar estes sacramentos com devoção e em recebê-los com muita confiança, na medida em que é possível obtê-los. (...) 13. (...) Na cruz. Aí [Cristo] preparou a si mesmo para nós como uma tríplice imagem a ser apresentada à nossa fé contra as três imagens com as quais o espírito maligno e nossa natureza nos atribulam para arrancar-nos da fé. Ele é a imagem viva e imortal contra a morte, que ele sofreu, mas que venceu em sua vida através de sua ressurreição dos mortos. Ele é a imagem da graça de Deus contra o pecado, que tomou sobre si e venceu através de 36

In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, Volume I. São Leopoldo/Porto Alegre, Ed. Sinodal/Ed.Concórdia, 1987. p. 385-398.

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sua insuperável obediência. Ele é a imagem celestial, aquele que, abandonado por Deus como um condenado, venceu o inferno através de seu amor todo-poderoso, testemunhando assim, que é o Filho mais querido e que tornou isso propriedade de todos nós, se assim o cremos. (...) 18. Nenhum cristão deve, no fim de sua vida, [recear] ... que está sozinho ao morrer. Deve ter a certeza de que, conforme indica o sacramento, muitos olhos estão fitos nele. Primeiro, os olhos do próprio Deus e de Cristo, porque crê na sua palavra e se apega ao seu sacramento. Depois, os queridos anjos, os santos e todos os cristãos, pois não há dúvida de que, como indica o Sacramento do Altar, todos acorrem, como um só corpo, para socorrer seu membro, ajudam-no a vencer a morte, o pecado e o inferno e carregam todos junto com ele. Aí se realiza com seriedade e poder a obra do amor e da comunhão dos santos. E o cristão também deve pô-la diante de seus olhos e não duvidar dela. Disso deve extrair coragem para morrer. Pois quem duvida disso mais uma vez não crê no venerabilissimo Sacramento do Corpo de Cristo, no qual são mostrados, prometidos e afiançados comunhão, ajuda, amor, consolo e apoio de todos os santos em todas as necessidades. Pois se crês nos sinais e nas palavras de Deus, ele olha para ti, como diz em Sl 31[32].8: “sempre terei os olhos sobre ti, para que não sucumbas”. Assim como Deus olha por ti, também o fazem todos os anjos, todos os santos, todas as criaturas, e se permaneceres na fé, todos te sustentam em suas mãos. Quando tua alma se vai, eles estão presentes e a recebem; não podes sucumbir.” (...) 20. Vê, pois: o que mais deve o teu Deus fazer por ti, para que aceites a morte de bom grado, não a temas e a venças? Ele te mostra e te dá, em Cristo, a imagem da vida, da graça e da salvação, para que não te horrorizes diante da imagem da morte, do pecado e do inferno. Além disso, coloca sobre o seu amado Filho a tua morte, o teu pecado, o teu inferno, vencendo-os e tornando-os inofensivos para ti. Mais ainda: expõe seu Filho à tribulação que te causam morte, pecado e inferno, te ensina a perseverar em tal situação e torna esta tribulação inofensiva e, além disso, suportável. Ele te dá um signo certo de tudo isso, para que nunca duvides disso, a saber, os santos sacramentos. Ordena a seus anjos, a todos os santos, a todas as criaturas que, com ele, olhem por ti, cuidem de tua alma e a recebam. Ordena que deves pedir isso dele e estar certo de que serás atendido. (...)

1.8.4 - A morte e o morrer na Bíblia 37 Gottfried Brakemeier

I – Preliminares

Toda teologia que silenciar com respeito à morte fica em débito com o essencial da mensagem cristã. Pois a notícia da Páscoa é o suporte de todo o Evangelho. “Tragada foi a morte pela vitória” (1 Co 15.54). E: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1 Pe 1.3). Em tais palavras a primeira cristandade expressava seu júbilo. E realmente, sem a superação da morte não há 37

Gottfried Brakemeier. A morte e o morrer na Bíblia (Subsídios para o rito do sepultamento). In: Ofícios. Proclamar Libertação – Suplemento 2. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988. p. 46-57 (Os apontamentos acerca do rito de sepultamento foram suprimidos).

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esperança verdadeira. Sem a libertação da morte, todas as demais libertações permanecem parciais, ambíguas, fadadas a reverterem novamente em escravidão. É verdade? Ora, a morte é o problema dos problemas, a causa última das agressões e frustrações humanas. Há quem queira insinuar ser a morte nada mais do que um fenômeno muito natural. Seria uma lei da natureza a ser encarada sem a costumeira dramatização. Sob a perspectiva científica, de fato, o morrer se resume num mero processo químico. É o colapso de um organismo, comparável ao estrago de uma máquina. Não há nenhum segredo nisto. Tudo é explicável, tudo muito natural. E, todavia, essa tese não “funciona”. É insatisfatória, superficial. Não resolve o problema. Pois em verdade, ninguém quer morrer. Nem mesmo o suicida o quer. Se prefere a morte, é porque a vida se lhe deteriorou ao ponto de supostamente não mais lhe oferecer perspectivas. Mas, no fundo, também ele quer viver. Muitas tentativas de suicídio não passam de um insistente grito de socorro. A morte sempre causa pavor. Ninguém sabe o que vem depois, ninguém consegue imaginar o que é estar morto. Temos medo, inclusive do morrer, isto é, do processo que precede a morte e nela desemboca. Pode ser um período de grave doença, de muito sofrimento e dor em que inexoravelmente somos reduzidos a nada, a lixo, a um cadáver fedorento. O que a morte faz conosco é brutal. É revoltante. Não há nada pior. E ninguém pode fugir. Essa perspectiva lança suas sombras sobre toda a vida e a prejudica: 1. A morte fere o orgulho humano. O que resta de nós no fim da vida é um “saco de vermes”. Como se ajusta isto à nossa dignidade? Além disto, o morrer nos lança à mercê de outras pessoas. Faz-nos vergonhosamente dependentes. Toda nossa glória se dissolve em nada. A morte nos ofende. É por que o sepultamento religioso se reveste de tão alta importância: atesta que a pessoa não é enterrada “como um cachorro”. Resguarda a dignidade humana mesmo na situação de tão flagrante humilhação. 2. A morte questiona o sentido da vida. Qual é o valor da vida, se hoje somos e amanhã já não seremos mais? Que é o ser humano, se tudo o que realizou um dia será esquecido e já não mais existe? Em vista da morte, a vida passa a ser lúgubre interlúdio sem maior importância. Periga tornar-se absurda. É o que expressam muito bem os termos de uma canção brasileira, dizendo: “A vida é essa: Mal se começa, Com esperanças de melhor sorte, Vem logo a morte, sem coração, Provar que a vida é uma ilusão”

3. A morte corta impiedosamente as relações humanas. Não só a minha própria morte é dolorosa. Também o é a morte de pessoas amadas, ligadas a mim, pertencentes a uma comunhão. A morte do filho, da esposa, do pai – isto é motivo de profunda tristeza, a não ser em caso de apatia total. Quanto mais amamos as pessoas, tanto mais sofremos sob a sua morte. Somos jogados por ela no abandono, talvez também em sentimentos de culpa, em profunda crise. Não raro, a morte de pessoas amadas é sentida como verdadeiro crime.

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4. A morte exige de nós a entrega de nós mesmos, portanto um ato de total desprendimento. A isto, porém, resistimos. Dele temos medo. Consideramo-nos donos da vida. Julgamos ser ela nossa propriedade. Mas a morte nos “desapropria” de modo radical. Tira o que é supostamente nosso. É sentida como roubo. Caracteriza-se o problema da morte pelo fato de não ser delegável. Todos devem trabalhálo, todos enfrentá-lo. Aliás, não se trata de um assunto meramente individual. Pois a maneira de eu encaminhar a morte terá incisivas conseqüências para outros. A morte é problema individual e social. As posturas assumidas inevitavelmente repercutem no todo do convívio humano, razão para dedicar-lhe maior atenção do que normalmente acontece. O que observamos é profundamente contraditório: 5. Tentativas humanas de enfrentar a morte: a) Prevalece em ampla escala a tentativa de suprimir o pensamento da morte. Todos sabem que deverão morrer, mas procura-se ignorá-lo enquanto possível. Evita-se o contato com a morte e procura-se mantê-la à distância, banindo os moribundos ao abandono nos hospitais, fugindo do sofrimento dos doentes e excluindo o tema “morte” da agenda diária. As conseqüências são catastróficas. Consistem no despreparo das pessoas para o morrer, redundando em desespero na hora do desengano. Torna-se inclusive crítico o processo do envelhecimento. Falta solidariedade aos moribundos. Sobretudo, porém, é prejudicial a aprendizagem daquela sabedoria que resulta do conhecimento da necessidade de morrer e que faz as pessoas distinguirem entre as coisas importantes e as fúteis da vida. A supressão da morte favorece uma vida em perigosas ficções. b) Verifica-se uma notória incapacidade de aceitar a morte. Dela é fruto a supressão, da qual antes falamos. Mas esta é possível apenas até certo ponto. A realidade da morte se impõe de modo irreversível. Toda doença é sinal dela, assim como o são as demais ameaças a que vivemos expostos. Basta mencionar o trânsito, a violência nas cidades, os conflitos nacionais e internacionais, bem como a destruição do meio-ambiente e as vicissitudes climáticas. Existe uma consciência muito clara da morte. Mas a incapacidade de aceitá-la conduz a um desesperado apego à vida e a uma busca de garantias da mesma. O que temos em nosso mundo é uma brutal luta por sobrevivência em que os fortes monopolizam os meios de vida, ou seja, os recursos da medicina, os alimentos, a tecnologia e outros. Excessivo apego à vida paradoxalmente colabora com a morte. c) É porque, de outro lado, se instalou um estranho conformismo com a morte, aliás, desde que não seja a minha. Notícias de terríveis catástrofes, massacres, assassinatos nos chegam todos os dias, mas não mais nos abalam. Que haja vítimas na luta pela sobrevivência aparentemente é tido como algo natural. Se assim não fosse, como poderíamos conformar-nos em nosso país com a fome, com o alto índice de mortalidade infantil, com a morte de milhares de brasileiros, dia após dia em razão de pobreza e miséria? Somente o conformismo explica um outro enigma: como se justifica que somas astronômicas são investidas em alta tecnologia medicinal em benefício de apenas pouquíssimas pessoas, enquanto com uma fração daquele dinheiro populações inteiras poderiam ser curadas de moléstias endêmicas? d) Mas não é apenas a sobrevivência física que o ser humano quer ver assegurada. Ele quer qualidade de vida, quer consumir e aproveitar. Mais ainda, ele quer poder de mando, quer ser “chefe”, dono de si e de outros. Isto o ameaça de

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tornar-se assassino. Nada melhor do que o sabor da vitória. Provém daí a atração de filmes de violência. Permitem ao espectador a identificação com o vencedor. É por que também as armas exercem tamanho fascínio. Alimentam a sensação de poder e superioridade. A morte é temida, mas a violência festeja triunfos.

O quadro, portanto, é paradoxal. Em sua fuga da morte, as pessoas dela se tornam cúmplices. Em seu apego à vida, não sabem repartir. Pois o repartir de quaisquer bens sempre equivale a um repartir da vida. O medo da morte, porém, não o permite. Produz antes a concentração dos recursos. A morte mata já bem antes do fim da vida. Sua perspectiva faz as pessoas cruéis, tira-lhes o bom senso e as lança no desespero. É um mundo desesperado em que vivemos, com todas as características da loucura que o desespero tem. (...) II – Aspectos bíblicos

As afirmações bíblicas sobre a morte e o morrer não são propriamente uniformes. As vozes são diversas e devem ser distinguidas. Ainda assim, cristaliza-se uma linha surpreendentemente convergente. Devemos limitar-nos a algumas breves colocações: 1. A morte na visão do Antigo testamento

É comum de todo o Antigo Testamento apregoar a vida como o supremo bem. É por que “tudo quanto o homem tem, dará pela sua vida” (Jô 2.4). Vida é prometida aos que buscam a Deus (Am 5.4). Vida longa é sinal de graça (Sl 21.4), vida é por excelência a dádiva do Deus da vida (Sl 36.9). Se, porém, a vida está em tão alta conceituação, a morte necessariamente aparece como algo negativo. Não podem harmonizar uma com a outra. Qualquer valorização da morte obrigatoriamente vem em detrimento do valor da vida. O Antigo Testamento não se vê em condições de aí fazer qualquer concessão. Conseqüentemente, vida é sinônimo de bênção, morte de maldição (Dt 30.19). Na base desta premissa comum, observam-se, ainda assim, algumas concepções peculiares, dignas de registro: a) De certa forma, o morrer faz parte da vida. É seu fim natural, assim como o é a colheita depois de um longo processo de maturação. Morrer velho e farto de vida (Gn 35.29; Jó 42.17; etc), isto não tem nada de espantoso. É o desfecho orgânico da vida. Não a morte na velhice, mas sim, a morte prematura horroriza. É sinal de juízo, é morte má. Afirmase, pois, que a vida – uma concepção que o próprio Antigo Testamento não conseguiu sustentar. Na verdade, não só a morte prematura, também a morte na velhice confronta com sérios problemas. E, todavia, há um elemento muito correto nesta concepção a que voltaremos abaixo. b) Quão fortemente estavam distintas as esferas da vida e da morte no Antigo Testamento pode-se depreender do fato de que tudo o que se relacionava com a morte era considerado impuro, distante de Deus. A morte não tinha nada de sagrado ou místico. Muito pelo contrário, quem morria estava fora da relação com Deus. Diz o cântico do Ezequias: “A sepultura não te pode louvar nem a morte glorificar-te” (Is 38.18; cf. Sl 88.10; etc). Antigo Testamento, em suas porções mais antigas, ainda desconhece a fé na ressurreição. As pessoas, depois de terem morrido, desceriam ao SHEOL, um lugar

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sinistro, tenebroso, sem alegria e vida. A morte exclui do mundo dos vivos, exclui por isso também da comunidade cultual e da esfera dos benefícios de Deus (c. Sl 6.6; 88.4; etc). Reside aí um dos principais motivos da amargura dos moribundos. Passam para a esfera do impuro, do rejeitado por Deus. Vida e morte são alternativas radicais, sem nenhuma possibilidade de reconciliação. c) Mas não só no fim da vida a morte se apresenta horrorosa. Era sentida como poder agressivo, ameaçando todas as fases da vida. Doenças e situações emergenciais préanunciam a morte. São suas manifestações precursoras (cf. Ex 10.17; 2 Sm 22.5s; etc). Cura e libertação são sinônimos de salvação e morte, pelo que os oradores agradecem a Deus (Sl 56.13; 103.3s; etc). Especialmente lá, onde Deus se retira das pessoas e as joga ao abandono, tem início a morte, mesmo que a pessoa ainda viva por algum tempo. Ilustra-o o exemplo de Saul (1 Sm 15s). Portanto, o poder da morte se faz sentir em meio à vida. d) Essa observação, aliás, é válida ainda em outro sentido. Também em Israel houve quem sentisse o quanto a realidade da morte é capaz de aniquilar o sentido da vida humana. Morrem os homens assim como morrem os animais. Por isso o autor de Eclesiastes conclui ser tudo vaidade (Ec 3.19). Pensamentos semelhantes encontramos em Is 40.6s; Sl 103.14 ou no Sl 90.3s: O ser humano é como flor do campo que hoje floresce e amanhã murcha. Deus reduz os homens a pó e lhes estabelece o número dos anos que acabam como um breve pensamento. A morte, pois, relativiza a vida e lhe diminui o valor. Ainda que outros não concordassem com o autor de Eclesiastes no que respeita a vaidade de todas as coisas importa, ainda assim, saber “contar os nossos dias para que alcancemos um coração sábio” (Sl 90.12). A morte imprime seus caracteres na vida humana e cruelmente destrói as ilusões. e) Bem à margem do Antigo Testamento, em suas partes mais recentes, aparece finalmente a fé na ressurreição dos mortos. O movimento apocalíptico, tão significativo para o Novo Testamento e o próprio Jesus, pela primeira vez articula uma esperança para além da morte em termos expressos. Encontramo-la em Daniel e no bloco apocalíptico dos capítulos 24 a 27, inserido posteriormente no livro do profeta Isaías (cf. Dn 12.1s; Is 26.19). Não precisamos demorar-nos na pergunta pela origem dessa esperança. Certamente deverão ser apontadas influências externas bem como situações históricas específicas. Mas isto não é o essencial. Decisiva é a observação que a própria fé no Deus de Israel, se pensada de maneira conseqüente, exigia a afirmação da ressurreição. Jamais a morte tinha sido entendida como poder paralelo a Deus, independente dele. Deus mesmo a impunha como castigo ou como simples limite da vida. Se, porém, Deus é o Senhor da morte assim como ele o é da vida, como então pode terminar a comunhão com ele quando a pessoa morre? Israel, em sua história, aprendeu serem os laços da comunhão com Deus mais resistentes do que o poder aniquilador da morte. Dessa certeza dão testemunho comovente uma série de textos, ainda que não falem expressamente em ressurreição (cf. Sl 16.9s; 73; 139.7s; Jó 19.25ss). A fé na ressurreição dos mortos, portanto, não é mera idéia introduzida em Israel como novidade, mas sim é uma implicação legítima da confiança no poder e na fidelidade de Deus. Esta convicção muda o aspecto da vida e da morte, como o Novo Testamento bem o evidencia.

Em retrospecto ao Antigo Testamento, pois, constatamos uma variedade de perspectivas, complexas em si e não isentas de certa ambivalência. O Novo Testamento aprofunda a visão da morte e, em assimilação crítica dos elementos vétero-testamentários, proclama a derrota deste mortal inimigo do ser humano. Como acontece isto?

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2. A morte na visão do Novo Testamento O que o Novo Testamento tem a dizer com respeito à morte (e à vida) pode muito bem ser desdobrado a partir da palavra de Jesus: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á” (Mc 8.35). Esta palavra evidentemente tem seu lugar vivencial numa situação histórica concreta, que é a da perseguição aos discípulos de Jesus. Seu sentido, porém, é abrangente e praticamente resume o enigma da morte bem como sua solução. Vejamos: a) Jesus, e, por conseguinte, a fé cristã, não nega ser o anseio humano por vida algo muito legítimo. Vida é por excelência o dom de Deus (Rm 8.23). Nisto são unânimes o Novo e o Antigo Testamento. É o que Jesus traz: Vida em abundância (Jo 10.10), vida eterna (Jo 5.24). Conseqüentemente, a morte é o grande inimigo (1Co 15.26), o adversário do ser humano e do próprio Deus, com cuja realidade não há como conformar-se. b) Desgraçadamente, porém, o ser humano, em sua busca por vida, torna-se colaborador da morte, vítima e réu da mesma. Não reconhece a vida como dádiva, pela qual compete pedir e agradecer. Antes dela se apodera como que de um roubo (cf. Fl 2.6s) e procura potenciá-la apoiando-a em coisas vãs, em flagrante desrespeito à vontade de Deus em culto a deuses auto-fabricados (cf. Rm 1.18ss). Tornam-se pecadores todos ao quererem, a qualquer custo, salvar a sua vida, matando inclusive a vida de outros. Atraem assim o juízo de Deus sobre si, caem em maldição e, conseqüentemente, perdem a vida que tanto pretendem salvar. Promessa de vida tem apenas quem sabe respeitá-la como dom gratuito de Deus e quem, sempre do novo, a recebe. c) É por isso que o apóstolo Paulo pode dizer ser a morte o salário do pecado (Rm 6.23). Já o Antigo Testamento afirmara que Deus castiga o pecado com a morte má ou prematura. Mas o Novo Testamento amplia a afirmação e a aplica à morte em geral. De que morte se trata? Ora, é a morte-maldição (E.Jüngel), é a aniquilação da pessoa, é sua tão temida redução ao nada. Esta é o salário do pecado. Não o é o morrer como tal. Pois existe um morrer que não desemboca na aniquilação e morte, mas sim em vida eterna. É a morte pavorosa, a morte perdição, a morte sem perspectivas que é o castigo do pecado e nele tem a sua origem (cf. Rm 5.12s). Enquanto isso, o fim físico do ser humano não é castigo. É simplesmente decorrência e implicação do fato de sermos criaturas. O morrer deixará de ser maldição no momento em que Deus perdoar os pecados e despertar a esperança por vida para além dos limites da morte. Então, mas somente então, o morrer voltará a ser algo natural. d) Para salvar a sua vida, pois, é necessário saber entregá-la e dela se desprender. A vida é dom de Deus. Mas ela permanece sendo dom unicamente se formos capazes de também devolvê-la. Devemos devolver este presente às mãos de Deus e o podemos “por causa de Jesus Cristo e do Evangelho”. Em Cristo temos a promessa de vermos face a face (1 Co 13.12) e da definitiva comunhão com nosso Senhor (Fl 1.23).

Portanto, defrontamo-nos com uma dialética muito profunda: Para fugir da morte é preciso saber morrer e não ficar preso a esta vida. Isto significa que a morte permanece sendo o inimigo a combater. Doença, assassínio, desespero, fome, opressão, ódio – tudo isto destrói o precioso dom de Deus que é a vida. Existe um radical compromisso de preservar a vida, de mordomia boa e fiel. Isto inclui a preservação do meio-ambiente, o zelo por paz e justiça, a necessidade do trabalho. Por ser dom de Deus, a vida é santa. Cai sob o juízo quem a destruir. Paradoxalmente, porém, o objetivo será alcançado somente, se o ser humano for capaz de humilhar-se diante de Deus, devolvendo-lhe o que é dele, sendo, portanto, fundamental a fé. Conseqüentemente devem ser adequadamente

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conjugadas as oposições à morte e a aprendizagem do morrer. Nesta dialética consiste o mistério de morte e vida. É exatamente isto o que a morte do próprio Jesus ensina. Jesus não queria morrer. Experimentou a morte em toda a sua brutalidade e maldição. Em Getsêmani luta com seu destino (cf. Mc 14.32s). Está sendo tomado de pavor e angústia, pedindo a Deus: “Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice.” E na cruz ele grita: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mc 15.34). Jesus se opôs à morte, tanto à sua própria quanto à de outros. Simultaneamente, porém, Jesus sabe dar a sua vida. Deu-a “em nosso favor” (Rm 5.8). Não foge da morte, não se prende à sua vida. Devolve-a às mãos de Deus dizendo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). “Pelo que Deus também o exaltou sobremaneira...” (Fl 2.9), ressuscitando-o dos mortos, dando-lhe nova vida, vencendo a morte. Sem dúvida alguma, a morte continua sendo realidade. Sua maldição é experimentada por todas as pessoas de uma ou de outra forma. E, no entanto, já está vencida. “Perdeu a morte o seu poder ...” (HPD 58). Pela graça de Deus um morrer “natural”, cheio de esperança se tornou possível. É um dos aspectos centrais do Evangelho. (...)

A esperança cristã nos horizontes da atualidade38 Gottfried Brakemeier De acordo com o livro dos Atos, o apóstolo Paulo, ao falar em ressurreição dos mortos no Areópago de Atenas, não colheu senão ironia e rejeição da parte de seus ouvintes (At 17.32). Já naquela época, a posição cristã frente à morte não era nenhuma evidência. Muito menos o é hoje, em meio ao pluralismo religioso da pós-modernidade. Seria errôneo, porém, deixar a questão a critério das opções particulares. A privatização da fé é enganosa por ignorar – propositalmente ou não – os incisivos efeitos sociais que a religião produz. As atitudes frente à morte implicam determinadas conceituações da vida. São relevantes em termos éticos, e isto é razão para falar a respeito e exigir a prestação de contas. Salvo melhor juízo, parecem-me ser duas as tendências predominantes na atualidade, além da que é defendida pela fé cristã: 4.1. Uma é a do imanentismo. Compreende a morte como ponto final. Morreu, acabou-se. Dizem as estatísticas que o número de pessoas comungando nessa convicção está em ascensão. Ela parece ter os argumentos científicos a seu favor. Alicerça-se nos conhecimentos biológicos, desprezando outros enfoques. Com efeito, não há prova que corroborasse a hipótese de uma vida após a morte. Conseqüentemente, esta posição costuma entender-se como a única honesta, denunciando a esperança pós-mortal como refúgio escapista num mundo ilusório, resquício de épocas mitológicas passadas. Não haveria outra saída a não ser a conformidade com o fim, a acontecer preferencialmente como um lento apagar-se, assim como a vela se consome e finalmente se extingue. 4.1.1. Assim sendo, tudo o que resta ao ser humano são os anos de vida entre o nascer e o morrer. Toda felicidade, todos os sonhos, toda beatitude deve caber neste espaço. Logo, o que importa é aprender a ars vivendi, ou seja, a arte de esgotar as potencialidades da vida, de 38

Extraído de: BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. São Leopoldo, Editora Sinodal, 2002. p. 179-190. Sugerimos a leitura de todo o livro.

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aproveitar as chances, de auto-realizar-se. Pergunta-se se o individualismo, considerado típico da pós-modernidade, não tem aí uma de suas principais vertentes. A sociedade que propaga a exploração das ofertas desta vida como meta máxima acaba produzindo desesperada corrida atrás dos bens de consumo. Seduz a cometer verdadeiras loucuras, inclusive as ecológicas. Pois depredação ambiental é uma forma de consumismo inescrupuloso. 4.1.2. Simultaneamente está sendo fomentado um processo de dessolidarização das pessoas. Se “minha“ vida passa a ter a prioridade absoluta e receber a qualidade de “oportunidade imperdível” , respectivamente de “última chance “, a dos outros se torna secundária. Renunciar, então, fica difícil. Instalam-se o conflito social, a luta por privilégios, a monopolização dos “ meios de vida “. Vale perguntar até que ponto as causas da injustiça social devem ser procuradas também numa relação deturpada da sociedade com a morte. De qualquer maneira, a concepção da morte como ponto final tem por correlato a ânsia por garantir o sucesso desta vida. Teremos aí uma proposta “ sustentável “? 4.1.3. A limitação da vida à biografia das pessoas produz mais outros prejuízos. Já dizia Blaise Pascal que “os homens, não tendo podido liberta-se da morte, decidiram, para ser felizes, não pensar nela.” O remédio, pois, consiste na supressão da noção do morrer. É uma tendência muito forte na medicina. Em sua luta a favor da vida, ela excomungou a morte. Mesmo diante de pacientes terminais costuma-se falar em cura, recuperação e medidas terapêuticas. A morte é fenômeno que não deve existir, não se permitindo à pessoa que morra sem terem sido aplicados todos os sofisticados recursos da técnica médica – desde que seja assegurado o financiamento. Os moribundos são iludidos com promessas falazes, na intenção de evitar que tomem consciência de seu real estado e de manter o pensamento da morte à distância. Eis a razão da emergência do reclamo pelo “direito de morrer“. Óbito é considerado derrota da medicina. Se esta, porém, já não respeita e, portanto, também não aceita a morte, torna-se temível. Impõe às pessoas a obrigação de viver a qualquer preço, prorrogando, muitas vezes, não a vida e, sim, a agonia. 4.1.4. A supressão da consciência da finitude vai ao encontro de expectativas da atualidade. É uma maneira de camuflar a perplexidade decorrente da conceituação da morte como uma espécie de “buraco negro”. Os ritos fúnebres, nesses casos, transformam-se em simples remoção do defunto. Muda também o conceito de vida, sujeita agora ao imperativo de evidenciar o sentido sem nenhum referencial transcendente. Isto, porém, é cruel, suscetível de acabar em amargas frustrações. A perspectiva da finitude, se preconizada em termos definitivos, derrama fel nas tentativas de saborear os prazeres e de descobrir a razão das coisas. O imanentismo é desumano. Ilude, sugerindo ser possível conquistar a “vida eterna“ por forças próprias. O horizonte da morte corrompe a vida e lhe estraga a alegria. Todos os bens desta terra revelam-se ineficazes, quando se trata de satisfazer o ardente desejo de vida arraigado nas pessoas. Não é à toa que Agostinho alertou ser inquieto o coração humano, enquanto não repousar em Deus. Eis por que a morte como ponto final continua exercendo terrível tirania. A concepção imanentista não é suficientemente realista no que diz respeito ao impacto destrutivo que a morte “natural” exerce sobre as pessoas. Frente à morte, precisamos de outra verdade do que a trivialidade que diz que devemos morrer. 4.1.5. Mas não há apenas prejuízos práticos a lamentar, se a morte for apregoada como fim absoluto. A fé cristã não pode deixar de enxergar nessa concepção um “reducionismo antropológico” inadmissível, pois a negação de qualquer transcendência permanece presa à esfera que a Bíblia caracteriza com o termo “carne“. Ora, o testemunho bíblico é unânime em afirmar que a “carne“ não ressuscita, ou seja, ela não tem futuro escatológico. A concepção da

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morte como ponto final é documentação de um biologismo que perdeu de vista outras dimensões constitutivas do ser humano, a exemplo da relação com Deus. Vale lembrar que o Novo Testamento não fala de um bios eterno, mas sim de uma tzoe eterna. Vida não se resume ao bios, nem se esgota na soma dos processos químicos do organismo. Transcende a si mesma, tornando-se tzoe, que tem sua meta num “ corpo espiritual “ e numa plenitude inalcançável ao bios. 4.2. Outra posição é assumida pelo reencarnacionismo. Entende a morte em analogia a pontos de reticência. Estes insinuam continuação, ainda que em outra modalidade. Na verdade, a morte está sendo declarada inexistente. É este o caso sempre que se postula uma imortalidade natural do ser humano como o faz a tese da reencarnação. A morte passa a ser o mero despir do corpo que, no fundo, não afeta a pessoa. A difusão do espiritismo, do ideário da New Age e outras correntes neognósticas, bem como de tradicionais religiões orientais no Brasil e em outras partes do mundo, mostra as grandes simpatias de que esse credo goza, justamente na camada da população intelectual. Reveste-se de plumas modernas. Parece solucionar algumas questões básicas da existência humana, a exemplo da do pavoroso saldo deficitário de justiça, se a vida for uma só. Quem penaliza as pessoas que escaparam impunes de seus crimes ? Reencarnação promete justiça e diminui o medo da morte. Oferece, aparentemente, uma “segunda chance” a quem desperdiçou sua vida. Nisto reside também um elemento atrativo. O reencarnacionismo apregoa a possibilidade da revisão dos erros responsáveis pela falência de uma biografia. É ampla a bibliografia sobre o assunto. Basta lembrar algumas características para evidenciar o que está em jogo: 4.2.1. A idéia da reencarnação é muito antiga. Encontra-se em diversas religiões, filosofias e culturas, a exemplo de hinduísmo, budismo, cabala, antroposofia e outras. Nem sempre foi entendida da mesma forma. Podia ser vista como sanção para uma vida entregue às paixões e aos baixos instintos. Neste caso, a coação à reencarnação equivale à experiência do inferno, algo temível, portanto, sinônimo de negação da redenção almejada. A perspectiva muda quando a reencarnação passa a ser associada à idéia da maturação do ser humano, para a qual uma vida não seria suficiente. Oportunizaria o progresso moral, o desenvolvimento da alma, a ascensão do ser humano às esferas espirituais. O espiritismo kardecista não assumiu a idéia de reencarnação regressivas. Conhece apenas as progressivas. Deste modo, revela ser um filho do otimismo iluminista do século XIX. Mas quem garante essa via de mão única, ou seja, o permanente aperfeiçoamento do ser humano? Não poderá haver queda do ser humano, transformando a idéia da reencarnação em verdadeiro pesadelo? 4.2.2. A pergunta se impõe em razão da doutrina do espiritismo, por exemplo. Pretende dar resposta à pergunta pelo sofrimento neste mundo. Quem é responsável por ele? Conforme o espiritismo, é a própria pessoa sofredora, pois sofrimento nesta vida denuncia dívidas acumuladas numa vida anterior. É a lei do “carma“ que o explica e que restabelece a justiça. Diz que cada qual deve pagar pelos delitos cometidos, que recebe de acordo com os seus atos, que colhe o que semeou. Perdão não existe. É “olho por olho, dente por dente” (cf. Mt. 5.38s). Prevalece a “lei do talião”, segundo a qual toda pessoa é responsável pela sua própria sorte. Diz Allan Kardec: “A salvação não se obtém por graça, nem pelo sangue derramado por Jesus no madeiro“, mas “salvação é um ponto de esforço individual que cada um emprega, na medida de suas forças.“ Em outros termos, esta vida é “sem graça“. Embora seja impossível colocar todas as doutrinas reencarnacionistas num só denominador comum, para todas a salvação depende das próprias energias da pessoa. È auto-salvação, o que se opõe diametralmente à fé cristã. Tornou-se um projeto puramente humano, devendo

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renunciar a qualquer auxílio externo. Em última instância, o reencarnacionismo pode até abrir mão de Deus. Não necessita dele. Pois a retribuição é “automática“, “mecânica“. É uma lei cósmica. Seja lembrado que a exclusão de Deus, juntamente com a eliminação da experiência da gratuidade que a acompanha, priva a existência humana de elementos constitutivos de seu ser. A saúde humana fica prejudicada sem a experiência do amor, da bondade, da gratuidade. A gratidão vai tornar-se rara e, com isto, também a alegria por ela proporcionada. Ademais, não é desta maneira que se resolve o problema do sofrimento humano. A tese do sofrimento sempre merecido peca por imperdoável simplismo. “Os infelizes só têm que culpar-se a si mesmos; ao passo que a riqueza e abundância do Primeiro Mundo é sinal de superioridade moral, de eleição”. Até mesmo onde são apregoadas as virtudes da caridade, elas caem sob a suspeita de beneficiar não a pessoa carente, e sim, a praticante no caminho do aperfeiçoamento. É o caso do espiritismo kardecista. Apregoa que amar e fazer o bem é “a lei máxima para galgar os degraus da evolução na hierarquia espiritual por esforço próprio para tornar-se um espírito superior”. Amor ao próximo, sob as condições do “carma”, não pode servir senão ao narcisismo. Fará boas obras, mas com intuito egoísta. Não está interessado em transformação da realidade. Procura, isto sim, a autopromoção. Dessa forma, porém, o reencarnacionismo permite leviana legitimação do repugnante quadro de injustiças e de brutalidades reinantes entre os povos e fornece carta branca para a apatia. Como julgar chacinas e genocídios? Teriam sido todas as vítimas elas próprias culpadas? O mundo do espiritismo, da gnose e da reencarnação é um mundo sem misericórdia, cruel, até mesmo cínico, centrado no ego do indivíduo. Reside nisto, sob o ponto de vista cristão, o seu maior defeito. 4.2.3. O reencarnacionismo separa radicalmente corpo e alma, ou espírito. O corpo passa a ser indiferente para a identidade do ser humano. Não lhe diz respeito. É visto como uma espécie de roupa que se pode trocar sem afetar a personalidade. Tal visão não resiste à verificação empírica. A mão, a fisionomia, as impressões digitais, o cérebro, todos os órgãos do corpo humano trazem as características inconfundíveis da individualidade. O corpo faz parte da pessoa e é inseparável dela. E por isso a reencarnação deve ser considerada hipótese antropologicamente insustentável. Supérfluo dizer que, também sob esta perspectiva, a tese da reencarnação não encontra respaldo bíblico. O renascimento de que se fala em Jo 3.3s é de outra natureza do que a reencarnação. Na tradição judaico-cristã, o corpo é por demais precioso para poder ser reduzido a utensílio descartável. Para ela, é inconcebível a existência humana acorporal. Esperança pós-mortal articula-se necessariamente como ressurreição do corpo. 4.2.4. Haveria mais outros aspectos a discutir. A reencarnação não representa real esperança. Possui uma concepção cíclica de história que crê no eterno retorno do igual. Desconhece novidade, pois, no fundo, tudo permanece como está – também numa nova encarnação, com a implacável lei do “carma”a se cumprir. Ela exige a progressão moral, a amortização de dívidas, colocando a vida humana sob pesada lei. Esperança cristã e reencarnação representam, pois, dois mundos distintos, excludentes. São duas opções de fé, ou seja, duas maneiras de ver e de experimentar a realidade. Onde estará a verdade? 4.3. Examinando retrospectivamente as duas posições acima, devemos constatar que nenhuma delas respeita a ambigüidade biológica da morte. A primeira afirma tão-somente a naturalidade do morrer e anula a naturalidade da inconformidade com ele. A segunda faz o contrário. Elimina a finitude, ou seja, a naturalidade do fim físico das pessoas. A fé cristã não pode arranjar-se nem

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com uma nem com outra. Afirma a ressurreição dos mortos. Na Primeira Carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo lhe dedica longa apologia. A fé cristã em sua integralidade está em jogo. Ressurreição significa compreender a morte em analogia a dois pontos. Não se está apagando o ponto final, mas acrescenta-se-lhe mais um, dando a entender que ao fim segue novo início. Dois pontos indicam: vai seguir nova frase, separada da anterior e, todavia, estreitamente conectada com ela. A morte é assim. É um fim com a promessa de um reinício. Daí decorre: 4.3.1. A gravidade da morte não admite diminuição. Ela significa uma ruptura radical, a mais profunda crise da pessoa, o fim do humano como tal. É a barreira divisora entre o criador e a criatura, sinal da absoluta dependência desta, conscientização de sua finitude. Convém respeitar este limite e, portanto, aprender que nada é definitivamente nosso. A morte é um dos horizontes imprescindíveis quando se define “propriedade particular”. É sábio quem não se fixa nas coisas desta vida e quem a tempo se exercita na arte de largar e desprender-se. A perspectiva da morte exige realismo, não fuga nem obstinação. Sua negação, seja qual for a modalidade, promove a soberbia e embala o ser humano em perigosa ilusão. 4.3.2. Ainda assim, a morte não é a realidade última. É fenômeno desta vida, não da futura. Nessa qualidade, possui também funções benéficas. Pode libertar de dor, desespero, de existência arruinada. Sua eliminação iria inviabilizar a criação de Deus e imobilizar definitivamente as criaturas no tempo e espaço. No fundo, a morte torna-se terrível e temível somente quando passa a ser todo-poderosa, destino último, perspectiva exclusiva de tudo o que existe. Pois a “monarquia” da morte obrigaria a sujeitar-se a um regime de absoluta negatividade. É exatamente isto o que a fé não consegue. Quem descobriu as maravilhas da criação certamente não vai ser cego frente à realidade da morte, mas vai enxergar também o ministério de Deus em meio a ela. Deus é o horizonte último do universo. Ele é o alfa e o ômega (Ap. 1.8), o primeiro e o último. Isto implica a degradação da morte a fenômeno “penúltimo”. Nega-se-lhe o totalitarismo. Ressurreição é nova criação, antecipada na ressurreição de Jesus dentre os mortos. Com ele, Jesus de Nazaré iniciou a “nova era”, em que a morte foi destronada. Seria errôneo qualificar o discurso sobre a ressurreição dos mortos como especulação metafísica. Está em jogo, isto sim, uma determinada concepção de “realidade”. A teologia sustenta que dela faz parte uma dimensão “transcendente”. Opõe-se a uma concepção de imanência fechada, restrita ao que a metodologia científica é capaz de apurar. Isto significaria mutilar a realidade e aplicar-lhe bitolas. As coisas mais importantes da vida fogem à verificação empírica e precisam ser cridas. Que é que determina o universo em última instância? A “lei da morte” ou a “lei da vida”? De quem será a vitória última na história? O reino de Deus e o reino da morte são mutuamente excludentes. A pergunta é em qual dos dois o ser humano crê. Não se confrontam, neste caso, a fé e a ciência. Aqui se confrontam dois credos: um crê na morte e, portanto, no absurdo e na ausência de sentido; o outro crê em Deus, na força salvadora de seu amor e, portanto, na ressurreição dos mortos e na renovação de todas as coisas. As conseqüências da opção entre essas duas posições decidem literalmente sobre a vida e morte. 5.0. Conclusões 5.1. O acima exposto mostrou que a insistência cristã numa esperança para além da morte não decorre de pressupostos vinculados a uma cosmovisão mítica, liquidada pela ciência. Ainda que também a religiosidade cristã nem sempre resistisse à tentação de soltar a fantasia, a fé cristã não tem nenhum interesse especulativo nem pretende simplesmente restaurar o sonho do paraíso perdido. Percepção de realidade está em jogo, prejudicada tanto pela conceituação da morte como algo absoluto quanto pela sua negação. Resulta daí que a ressurreição deve ser

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afirmada também por razões antropológicas. A abertura para o “transcendente”, respectivamente o “infinito”, é típica do ser humano e é marca constitutiva de sua identidade. É em Deus que confluem os justos anseios humanos e se cumpre seu destino. Sob essa perspectiva, a esperança contra a morte faz parte de uma visão holística da condição humana e se opõe aos reducionismos. Se a teologia deve repensar a escatologia sob o impacto da ciência, esta deve repensar o conceito de transcendência sob o impacto de suas flagrantes limitações.

5.2. No que se refere à seqüência dos acontecimentos escatológicos, a Bíblia não oferece roteiro seguro. Fica devendo resposta a diversas perguntas. Há passagens indicando que a ressurreição terá lugar imediatamente após a morte (Lc 23.43; Fp 1.23). Conforme outras, ela acontecerá no final dos tempos, por ocasião da volta de Jesus Cristo (l Ts 4.13s; Mc 13.24s). Juntamente com o livro de Daniel (12.2.), o Apocalipse de João (20.4,12) apregoa uma dupla ressurreição, uma para a vida eterna, outra para o juízo (cf. também Jo 5.29). Enquanto isso, outros testemunhos insinuam ser a ressurreição reservada para “os que são de Cristo” (1 Co. 15.23). A passagem para a vida eterna está atrelada ao juízo. O momento exato do mesmo, porém, não está fixo (Mt 25.31s; 2 Co 5.10; Ap 20.1s). O Novo Testamento compartilha a indefinição nesses assuntos com o judaísmo da época. Ele documenta, a seu modo, o desinteresse especulativo da fé. Deus fará justiça, mas não compete ao ser humano saber o como. O novo mundo de Deus se subtrai à exploração e ao mapeamento pelo ser humano. Importante é saber que a morte tem em Deus sua barreira. Já não consegue devorar o ser humano por inteiro. É incapaz de impedir o vislumbre da perfeição, resposta definitiva às inquietudes humanas, a paz na comunhão com Deus (Jo 16.22; 1 Co 13.10s). 5.3. Essa esperança, porém, não é direito adquirido. Não é posse humana nem evidência lógica. Requer um ato de confiança, de desprendimento, sim, até de “risco”. A morte desmascara toda atitude fáustica, de conquista e de auto-afirmação humana como vã e ilusória. Uma das dificuldades para abraçar a fé na ressurreição talvez esteja justamente na humildade humana que requer: é preciso saber entregar o espírito nas mãos de Deus (cf. Lc 23.46) para recebê-lo de novo. Não há garantia antropológica da ressurreição. Existe somente uma certeza teológica, ou seja, existe uma promessa, à qual a pessoa é chamada a se apegar. Também a vida futura só poderá ser recebida por graça e fé. Conseqüentemente, justificação por graça e fé e ressurreição dos mortos formam um só pensamento coerente, aliás, representativo não só para o apóstolo Paulo e, sim, para todo o testemunho neotestamentário. A justificação do ímpio, ocorrida em Jesus Cristo, tem sua réplica escatológica na ressurreição dos mortos (cf. G1 5.5). Quem nega esta, nega também aquela, e mais: nega todo o evangelho (cf. 1 Co 15.12s). Sem a perspectiva da ressurreição, é vã a fé cristã e nula qualquer fé humana. 5.4. A morte submete essa fé à sua mais dura prova. É impressionante o realismo com que a Bíblia fala da morte e a encara. Não oculta a miséria da agonia. Sabe de crimes hediondos. O pior deles foi o assassinato de Jesus. Os relatos bíblicos não colocam rosas na cruz. Mostram o morrer de Jesus em toda a sua brutalidade. Mas o crucificado, mesmo sofrendo sob o abandono do próprio Deus, não deixa de clamar a ele. Cumpre o primeiro mandamento. A vitória sobre a morte tem a esperança por premissa. Sem ela, toda pastoral não vai passar de “ técnica “, ou seja, de um modo de manejar um objeto. A superação do luto necessita evidentemente de solidariedade humana. Muito mais, porém, necessita da solidariedade do próprio Deus. É mais poderosa do que tudo de que a solidariedade humana é capaz. Somente a esperança liberta as pessoas do jugo da morte e as ajuda a vencer a crise, tanto de sua própria morte quanto da de pessoas achegadas. 5.5. A ambigüidade biológica da morte, da qual falamos no início, é acolhida pela teologia cristã e convertida na dialética de “resistência e submissão“. A morte é traiçoeira.

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Mantém as pessoas em suas garras sempre que essa dialética for dissolvida. A pura resistência é fictícia e acabará em desengano. Enquanto isso, a conformidade colabora ativamente. É preciso aprender a dosagem exata de resistência e submissão. A ars vivendi exige a ars moriendi. O amor a esta vida deve ter e tem limites. Da mesma forma, porém, é indigno da vida futura quem não valorizar o dom da vida aqui. Novamente o recurso a Jesus é instrutivo. Em Getsêmani Jesus pede: “Pai, se possível, passa de mim este cálice.” Ele não quer morrer. Mas acrescenta à sua oração: “Porém, não como eu, e sim, como tu queres “. A resistência à morte não deve impossibilitar a devolução, assim como a submissão não deve conformar-se com o império de violência e destruição. O mundo sucumbe em razão de um pavoroso déficit de esperança. A Igreja tem a tarefa de amenizar ou até superar esse déficit mediante a mensagem que lhe foi confiada e que tem a Páscoa por conteúdo.

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