O Bem Viver na Criação
Cledes Markus Renate Gierus Organizadoras
O Bem Viver na Criação
OI OS EDITORA
2013
© Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura – 2013 ISAEC/DAI/COMIN – Departamento de Assuntos Indígenas Conselho de Missão entre Indígenas Rua Amadeo Rossi, 467 – Cx. Postal 14 93001-970 São Leopoldo/RS Tel./Fax: (51) 3590.1440 cominsecretaria@est.edu.br www.comin.org.br
Editoração: Oikos Revisão: Erny Mugge Capa: Juliana Nascimento Imagem da capa: Tano Roberto Kanamari, Aldeia Flexal, Itamarati/AM Arte final: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Rotermund S. A. Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau Caixa Postal 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 / 8114.9642 contato@oikoseditora.com.br www.oikoseditora.com.br
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O bem viver na criação. / Organizado por Cledes Markus e Renate Gierus. – São Leopoldo: Oikos, 2013. 168 p.; 16 x 23cm. ISBN 978-85-7843-313-0 1. Teologia bíblica. 2. Bem viver – Comportamento. 3. Povo indígena – Vivência – Relação com a natureza. 4. Espiritualidade – Cuidado da vida. 5. Religião. I. Markus, Cledes. II. Gierus, Renate. CDU 22.08 Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário Apresentação ....................................................................................... 7 I Bem Viver na perspectiva bíblico-teológica Bem Viver na criação: viver bem com o outro, com a natureza e com o Criador .................................................................................. 11 Lúcio Paiva Flores Um Bem-Viver-Bem-Querer-Bem na espiritualidade judaico-cristã: reflexões bíblico-teológicas no caminho .............................................. 19 Ivoni Richter Reimer Bem Viver na criação de Deus ............................................................. 39 Carlos Gilberto Bock II Bem Viver na perspectiva indígena A partilha ........................................................................................... 53 Eva Canoé (povo Canoé) Viver a cultura .................................................................................... 59 Saravi Maca Deni (povo Deni) A reciprocidade .................................................................................. 62 Bruno Ferreira (povo Kaingang) Viver com a natureza .......................................................................... 68 Francisco Rokán dos Santos (povo Kaingang) Vivência em comunidade .................................................................... 74 Martina Lopes Amantino (povo Kaingang) Revitalizar a terra ............................................................................... 77 Lourenço Amantino (povo Kaingang) Viver e compartilhar ........................................................................... 80 Rosalina Kasu Fej Aires de Paula (povo Kaingang)
III Reflexões conceituais sobre o Bem Viver Bem Viver na criação, alternativa de esperança e compromisso ............ 85 Hans Alfred Trein Economia e Bem Viver ....................................................................... 99 Renate Gierus Reconciliação com a criação: concepções de terra a partir do texto da Vinha de Nabote (1 Reis 21,1-29) ......................................... 113 Cledes Markus Tecendo relações além da aldeia: o artesanato indígena em cidades da Região Sul ....................................................................... 130 Alexandra Carvalho P. de Palazuelos José Manuel P. Palazuelos Ballivián Bem Viver: uma categoria analítica necessária para compreender a vida? .. 153 Luis Paulo Arena Alves Paulo Peixoto de Albuquerque
Apresentação A Criação geme pela dor de sua exploração. Ela geme pela impossibilidade de manter puras as suas águas e limpos os seus ares. A Criação geme, grita e clama por compaixão, por transformação de mentes. Os povos indígenas clamam por suas terras, para viver sua cultura, para criar as gerações vindouras em sua sabedoria ancestral. Esta sabedoria ensina a repartir, a observar a natureza, a aprender dos animais e das plantas, a alimentar-se e a curar-se através dos frutos da terra. A sabedoria milenar dos povos indígenas ensina a Bem Viver na Criação. O conceito do Bem Viver brota do fundo da terra, nasce do ventre da convivência e da comunhão. Os povos andinos dizem sumak kawsay ou suma qamaña. Em Quéchua e Aymara, respectivamente, expressam a vida em plenitude, incluindo toda a Criação. Em terras brasileiras, o Bem Viver vai sendo revisitado. Este livro quer ser expressão dos povos Kaingang, Terena, Canoé e Deni sobre este conceito. Nele também se expressam homens e mulheres não indígenas, que contribuem com suas reflexões. A ideia deste livro nasceu a partir de um seminário promovido pelo COMIN, Conselho de Missão entre Indígenas, em parceria com Faculdades EST, Fundação Luterana de Diaconia – FLD e IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, no mês de maio de 2012, que tratou do tema “Bem Viver na Criação”, o mesmo título como deste livro. Incentivado por participantes do evento, o COMIN encaminhou o processo de publicação dos textos e falas apresentados, acrescentando outros artigos que fazem referência ao tema. O livro está organizado em três blocos temáticos. A primeira parte do livro é o conteúdo apresentado pela assessoria do seminário, numa perspectiva bíblico-teológica. São as reflexões da teóloga Dra. Ivoni Richter Reimer e dos teólogos Dr. Carlos Gilberto Bock e Ms. Lucio Paiva Flores do povo Terena. A segunda parte apresenta o tema do Bem Viver na pers-
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pectiva indígena. São as falas de representantes dos povos Kaingang, Deni e Canoé, compartilhadas durante o seminário. A autoria das falas são de Eva Canoé, Saravi Maca Deni, Bruno Ferreira, Franscisco Rokán dos Santos, Martina Lopes Amantino, Lourenço Amantino e Rosalina Kasu Fey Aires de Paula. A terceira parte são textos que refletem vozes para além deste momento de formação, vozes que procuram unir-se à tarefa de sistematizar o conceito Bem Viver. São reflexões de Hans Alfred Trein, Renate Gierus, Cledes Markus, Alexandra Carvalho P. de Palazuelos, José Manuel P. Palazuelos Ballivián, Luis Paulo Arena Alves e Paulo Peixoto de Albuquerque. Todas estas contribuições são motivações para achegarmo-nos com compaixão à terra-mãe, à Criação. De longe e de perto, a terra e toda a natureza precisam de uma presença cuidadora, solidária e justa para alcançar a plenitude de vida, o sumak kawsay.
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I. Bem Viver na perspectiva bíblico-teológica
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Bem Viver na criação: Viver bem com o outro, com a natureza e com o Criador Lúcio Paiva Flores 1
Em primeiro lugar quero registrar aqui o meu agradecimento a todos e todas por esta oportunidade que eu tenho de estar aqui com vocês mais uma vez. Eu me recordo aqui do nosso Congresso Nacional em Brasília que tem os dois pratos, um virado para cima e o outro virado para baixo; aquele para baixo é onde fica o Senado, é para os senadores se reunirem sobre tantas coisas que são importantes para o país, mas isso acontece entre eles. O outro prato está para cima, para os deputados receberem os anseios da população brasileira. Então esse é o nosso primeiro desafio aqui; creio que todos estamos aqui debaixo daquele prato para baixo. Como no Senado lá, a gente está aqui para refletir e, para fazer isso, nós precisamos deixar tanta coisa, esquecer uma série de coisas. Creio que todos vocês têm muitas atividades; a vida é intensa. É muito difícil pararmos para refletir sobre um tema que é muito interessante e ao mesmo tempo muito desafiador. Talvez nós hoje sejamos os poucos que queremos falar sobre o Bem Viver, por que o mundo não quer falar sobre esse tema; o Brasil, o governo brasileiro não quer. Nós temos aqui o desafio de meditar um pouco sobre ele. Estou novamente morando em Manaus, agora atuando na implementação do curso de formação de líderes indígenas que começou recentemen-
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Indígena do povo Terena. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Assessor Técnico da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
te no Centro Amazônico de Formação Indígena (CAFI). Estou também assessorando o Projeto GATI (Gestão Ambiental em Terras Indígenas) tendo como base Manaus. Além disso, atuo em áreas indígenas de Rondônia e Acre, além do Amazonas. Vocês certamente já têm muitas informações e eu também tenho tantas outras; talvez o nosso mundo seja tão diferente e, por isso, eu disse que a gente deve se concentrar aqui. Não pretendo usar muito tempo por que ele é limitado. É importante informar que atualmente nós estamos num processo de discussão muito amplo com setores do Governo Brasileiro, como na área ambiental, de biodiversidade, de direitos e de recursos financeiros para a proteção da Amazônia. São espaços importantes de discussão que precisam ser bem orientados e aproveitados, apesar dos muitos embates, como no caso da construção do projeto de Gestão Ambiental para as terras indígenas, que foi uma construção conjunta que exigiu grande esforço de diálogo e aprendizado. Depois de muitas reuniões, às vezes tensas, eu encontro aqui um clima muito bom, com relações pessoais muito próximas, muito familiares, o que me traz muito otimismo em relação aos resultados que podemos alcançar. Por isso, antes de iniciar minha apresentação quero trazer a esse grupo meu agradecimento, muito especialmente ao COMIN, que tem valorizado muito meu trabalho. Tenho aprendido muito com vocês durante os anos de convivência, desde os tempos do GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) em Cuiabá. O tema sobre o qual vamos tratar aqui, o Bem Viver, é muito desafiador. É um tema crescente em toda a América Latina, principalmente nos Andes, onde já é discutido há mais tempo, estando inclusive incorporado em legislações nacionais, como em Bolívia e Equador. A minha abordagem, então, vem a partir da vivência entre os povos indígenas do Brasil. Esse conceito está circulando nos meios acadêmicos e não pretendo atuar nesse campo porque creio que os companheiros aqui da mesa vão falar sobre esse tema numa abordagem mais teórica, tratada em nível de governos, de pensadores e da academia. Eu quero falar aqui a partir daquilo que a gente vive: o que é o Bem Viver para nós? É viver com alguém na comunidade? Na aldeia? O que nós entendemos por este tema a
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partir da nossa vivência? Nós indígenas não estamos desconectados do tempo, nós praticamos o “Bem Viver” talvez com outros nomes, muitos nomes, que estão presentes no nosso meio. Bem Viver não é apenas um conceito, não é uma utopia; é um estilo, uma forma, é jeito de viver; essa forma diferenciada de viver está fundamentada em três pilares: viver bem com o outro, com a natureza e com o Criador. Essa é a base de como entendemos o Bem Viver. Apresento um mapa das terras indígenas do Brasil. Aqui aparecem as grandes, algumas são bem pequenas e não muito visíveis; as maiores estão na Amazônia. Essas reflexões que estou trazendo estão emanando desses povos, dessas terras, desses habitantes que estão espalhados por esse país e, muito especificamente, dos povos da Amazônia, com os quais eu tenho uma vivência maior. Nesse momento o Brasil vive o discurso do crescimento e desenvolvimento. É o que está na mídia e nos discursos governamentais; é o PIB, o dólar, o euro, a crise da União Europeia, da Grécia, é o crescimento da China. Tudo isso parece ser o tema do momento, todos querem entender um pouco dessas coisas. Aqui na América Latina é o IIRSA – Iniciativa de Infra-Estrutura Sul-Americana e, no Brasil, o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. O Brasil fala de recorde de produção, taxa de juros, pré-sal, mudança climática; fala-se ainda de REED+ e que nós indígenas estamos vendendo as florestas e até o ar. Os que têm acompanhado essas discussões sabem que as grandes empresas estão chegando e anunciando que vão comprar os estoques de carbono que estão nas nossas terras, que vão pagar para que se evite o desmatamento; esse mercado voluntário e totalmente informal indica que vai remunerar os que preservam a floresta, ou seja, querem pagar um pouco pelo ar que eles poluem lá e nós despoluímos aqui. Essa corrida por algum mecanismo de despoluição ou redução de emissão de gases tóxicos traz um novo termo: a economia verde. Esses são novos mecanismos que vão continuar gerando a desigualdade, vão fomentar o consumo, o individualismo e a competição em lugar da solidariedade. Nossas instituições são formadoras de competidores, o discurso é ser vencedor, portanto, gerar vencedores!
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O capitalismo produz a riqueza e as desigualdades e, atualmente o Bem Viver vai na contramão desse período histórico; o momento atual não é o melhor para se falar de Bem Viver, sem poluir e sem destruir. Para o mercado, para o mundo, para as pessoas, para a sociedade e para a mídia Bem Viver é crescer e consumir sem se preocupar com o futuro. Atualmente alguns vivem bem e a maioria vive mal; a terra-sem-males está cada vez mais distante, muito distante e talvez alguns vão dizer até inatingível; não vamos chegar nessa terra-sem-males, ou ela já nem existe mais. O acúmulo de riquezas, o mercado e a ganância não produzem o Bem Viver; eles escravizam, tornam o indivíduo e o tempo escravos do sistema. Todos vivemos o momento do consumo; o sistema nos engole e somos escravos das horas, das propagandas, do mercado em que são quase todos iguais; você vai ao shopping, em qualquer lugar, e as mercadorias estão colocadas da mesma forma, nos supermercados também, as marcas são as mesmas; você vai às compras e já sabe onde estão. Lembro de uma expressão que utilizei no Fórum de Sustentabilidade em Manaus: “a curto prazo deve ser contida a voracidade do mercado”; eles estranharam porque ali estava o empresariado que gera a ganância e promove o consumo através dos novos produtos, novos desafios, novas tecnologias; isso está acontecendo e, quem não estiver nesse sistema, vai ser engolido. Esse é o momento que nós estamos atravessando! É esse o crescimento que queremos? Um crescimento a qualquer custo, com desmatamento, com degradação ambiental, com desintegração social, com rodovias, com Belo Monte? O movimento indígena e os povos indígenas já fizeram várias tentativas de ter uma agenda com a Presidência da República. Vários segmentos já foram recebidos. Nós ainda não tivemos essa oportunidade, certamente porque vamos falar sobre as agressões que o Estado Brasileiro vem impondo aos povos indígenas e ao meio ambiente. Estamos diante desses desafios; o que esperar do governo, da sociedade, das igrejas, das aldeias e da floresta? E da economia verde? Esse foi um dos temas fortes da Rio+20 que aconteceu no Rio de Janeiro; sabemos que os avanços concretos nessas reuniões são tímidos;
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muitos países não assumem grandes compromissos com a saúde ambiental do planeta porque isso pode prejudicar seus mercados. Tivemos uma grande reunião, com governos de muitos países, mas com reduzido poder de decisão em nível global; os chefes de Estado que podem decidir enviam apenas seus técnicos e observadores. Da sociedade vai surgir uma reação quando ela questionar o modelo, o que pode não ser tão rápido por que ela está na esteira do consumo; ninguém quer parar com tudo para declarar que o mais importante é viver bem, consumindo menos e utilizando menos do que está disponível no mercado. Podem se esperar boas experiências vindas das aldeias e das florestas quando nos ouvirem, se nos ouvirem; talvez não vá ser tão rápido, vai demorar muito. O mercado fala mais alto e essa é a grande crise que nós estamos vivendo neste momento. A mãe terra está pagando um alto preço porque não está colocada no seu lugar, que é mais do que o lugar de viver, mais do que dominação, mais do que poder; no conceito de mercado que nós vivemos quem tem muita terra é quem tem poder, é quem tem dinheiro, é quem pode escravizar, é quem pode dominar. Lá na comunidade indígena ela não representa essa ameaça porque a terra é de todos. É o lugar sagrado de vida, é o espaço que nos acolhe. Eu vivo atualmente em um lugar privilegiado, tenho boa relação com vários povos e comunidades. Sinto-me realizado com isso, convivo com líderes e caciques de vários povos; trago aqui algumas das falas deles: “queremos que nos deixem viver bem, não falem em tratores, gado ou negócios; a floresta nos dá tudo, deixem a gente viver em paz” (cacique das margens do Rio Juruena). O outro diz: “o viver bem acontece na terra e na espiritualidade, sem essa relação não acontece o viver bem”. E ainda: “viver bem é a partilha com seu povo e com outros, é ter respeito com os anciãos e sabedoria para se relacionar com a mãe terra”. Em Manaus vários indígenas se reuniram para um almoço. Estavam ali por motivos diversos e nosso cardápio foi jaraqui (pequeno peixe, comum na Amazônia) e farinha; estávamos num contexto muito diferente das nossas comunidades, mas ali estava a partilha. Essa experiência foi uma
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reação à vida isolada da cidade, é a vivência da aldeia reproduzida na cidade; é a certeza de que o que temos hoje alguém foi buscar; amanhã alguém vai pescar e trazer o peixe para todos, alguém vai trazer a farinha e vai trazer para todos. Nas aldeias ainda há muito espaço para a solidariedade, pouca coisa é pessoal; os filhos são da comunidade, a comida é comunitária, assim como o rio, a terra, a casa; cada um traz a sua farinha, sua fruta, seu beiju, sua caça, sua pesca e todos fazemos desse bem alguma coisa comunitária. É viver a magia da solidariedade em meio ao modelo de competição e do individualismo. É a harmonia com a mãe natureza. É usufruir da mãe natureza sem esquecer das gerações futuras; esse é um conceito de sustentabilidade. O que fazemos hoje não pode visar a individualidade ou essa geração, apenas nosso povo, nossa parte na história, mas o viver hoje pensando no amanhã. Esse é um alerta que historicamente os povos indígenas têm trazido para as diferentes gerações: se destruímos hoje não é apenas para agora, para essa geração, mas para o futuro, para os filhos, netos, para a humanidade de amanhã. Respeitar os princípios dos conhecimentos tradicionais e ancestrais, ter uma relação profunda com a natureza, estar livre, inclusive da ganância, essa é uma etapa de crescimento do Bem Viver. Para isso o mundo precisa crescer menos. Reduzir o crescimento vai gerar espaço para a abundância de recursos naturais, vai permitir que nossos territórios estejam livres das ameaças de desmatamento, de invasões e da poluição. Bem Viver é estar praticando e valorizando a cultura, os rituais e os mitos. O ritual nas comunidades indígenas é um pilar do bem-estar, é lá que se aprende com o outro e também com a natureza como conviver em harmonia. É uma filosofia de vida incompatível com o capitalismo, é a desmercantilização da vida, é um pouco daquilo que o Paulo Suess trabalha: “Como nós podemos desmercantilizar a vida?” Essa é uma batalha atual no Brasil. O que se faz é lutar por direitos, contra os PACs, pela preservação do meio ambiente, contra os impactos das grandes obras, pela demarcação dos territórios, contra o código florestal, contra o desemprego, pela saúde, educação e inclusão. Os povos indígenas estão organizados para essa batalha atra-
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vés das suas diversas instituições. Em nível nacional a atuação é através da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Nesse ano o Acampamento Terra Livre, que ocorre anualmente em Brasília, realizou-se no Rio de Janeiro por ocasião da Rio+20. Reunimos cerca de 1.200 indígenas, num grande fórum. Mostramos ao mundo nossa situação no Brasil, onde há um claro desrespeito aos direitos indígenas, desrespeito à legislação brasileira, sobretudo neste governo. Bem Viver: temos clareza do quanto isso é difícil e do quanto ele é novidade. Em alguns países o Bem Viver já é um tema mais avançado. Os próprios indígenas têm textos escritos sobre o assunto. Aqui nós temos a vivência, não temos nada sistematizado. Estamos começando a refletir sobre o tema. Talvez este seja um dos primeiros eventos que acontece para discuti-lo. Creio que todos nós ganhamos com isso; é muito importante que a gente faça parte desse grupo aqui e saia com alguns desafios. Há muitos mestres indígenas que eu admiro. Quando vou para uma reunião onde está o Davi Yanomami ou o Raoni sempre levo papel e lápis por que sempre vai sair uma joia preciosa deles. São nossos sábios, são dos nossos dias, para citar apenas dois. Essas preciosidades estão também aqui no nosso meio. Quero mencionar uma palavra sábia que saiu do Bruno Ferreira. Ele disse assim: “Como cantar com o cosmos destruído?” Cosmos destruído, isso remete um pouco lá para o Salmo: “como cantar em terra estranha, nossas harpas estão penduradas nas árvores”. Ele menciona o confinamento a que os indígenas estão submetidos em pequenas terras, onde não há um ambiente para ser saudável. E isso ocorre na maior parte do Brasil; também a questão do agrotóxico foi mencionada e que traz um desastre para a natureza. Mencionei também a utilização dos aviões, que jogam toneladas e toneladas de veneno todos os dias na terra; isso vai para o rio, vai para o peixe, vai para nossa saúde e todos somos afetados. A Eva Canoé menciona também que Bem Viver é pensar no bem coletivo; não há um Bem Viver individual, no isolamento do apartamento no último andar, sem ver ninguém; isso apenas evita o contato com outras pessoas, talvez porque elas nos fazem viver mal. Bem Viver está também numa estreita relação com a forma de como fazemos educação; o que ensinamos aos nossos filhos hoje pode ser trans-
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formador para a sociedade de amanhã; no filme que vimos um indígena disse que educação não é obrigação, é o convívio harmonioso com os filhos e, sendo assim, nunca se esquece dos ensinamentos. Nós ouvimos algumas vezes que fases da vida foram tão ruins que devem ser esquecidas; imaginem se a educação foi uma dessas fases; por outro lado, se foi um prazer, sem nenhuma obrigação, não há porque esquecer. O ser humano precisa de um hábitat sadio e de um meio ambiente sadio. Numa natureza aniquilada é muito difícil promover o Bem Viver, a menos que ele esteja no âmago do nosso ser. Minha esposa é de um povo indígena que tem como prática o banho comunitário no rio. Ali se dá o momento de diálogo, de reflexão e fortalecimento dos laços sociais; cada um pega pequenas pedras e vai esfregando pelo corpo enquanto conversa. Nós vivemos numa cidade grande onde não há esse rio nem a comunidade, no entanto, ela tem a pedra trazida do rio e no quintal da casa enche uma bacia d’água e repete o ritual da aldeia; é um ato de resistência e de afirmação. Através dessa ação ela está dizendo que mesmo em terra estranha e em lugares diferentes e adversos, ela vive bem relembrando os rituais da sua terra e do seu povo. Eu vejo que nós estamos diante de muitos desafios que precisam ser superados; lembro ainda de uma joia preciosa que veio de Jesus. Foi quando lhe perguntaram onde estava o Reino e ele respondeu: “Dentro de vocês”. Daqui a pouco vamos desfazer esse grupo e cada um volta para seu hábitat; meu anseio profundo é que não deixemos o sonho de Bem Viver nessa sala ou nesses bons momentos que passamos aqui. Bem Viver está dentro de nós e vai dentro de nós qualquer que seja o nosso destino. Sigamos semeando essa boa semente.
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Um Bem-Viver-Bem-Querer-Bem na espiritualidade judaico-cristã: reflexões bíblico-teológicas no caminho Ivoni Richter Reimer 1
A temática na vida: estranhamentos e impactos Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade e a honra de ser convidada para participar desse evento realizado pelo Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN) e pela Faculdades EST, em São Leopoldo. Por isto mesmo, preciso dizer duas coisas que considero importantes para nosso trabalho e nossa convivência nesses dias: a) é a primeira vez que participo de um evento que reúne tantas etnias indígenas, brancas e negras que representam várias e distintas instituições em diversos níveis, tendo todas um mesmo objetivo, qual seja, refletir, compartilhar e aprofundar percepções, vivências e conhecimentos acerca do Bem Viver; b) este termo “Bem Viver” me era estranho e agora estou aprendendo que ele provém de culturas indígenas e representa um rico e complexo mundo de memórias, imaginários e conflitos. É assim que estou chegando aqui... Buscando aproximações para adentrar a temática, percebi que a palavra Bem Viver tem a ver com a vida, com sonhos, saudades, denúncias a partir das realidades multifacetárias de povos e etnias indígenas no Brasil e na América Latina. Mesmo com a sensação de estranhamento diante dessa novidade, e me perguntando “o que esperam de mim”, percebi que um diálogo profundo pode ser realizado a partir das distintas e semelhantes tradições oriundas de nossas experiências de vida e espiritualidade. Antes
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Doutora em Teologia/Filosofia, pós-doutora em Ciências Humanas, professora na PUC Goiás, pesquisadora do CNPq, pastora luterana, assessora de cursos, pastorais e movimentos. Email: ivonirr@gmail.com.
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de adentrar especificamente algumas vertentes do “grande rio” da espiritualidade judaico-cristã, gostaria de tecer ainda um comentário a partir da acolhida feita neste primeiro dia de trabalho e dos meus primeiros impactos e impressões. Chegando aqui, na abertura dos trabalhos, alguém colocou que, adentrando essa temática, não há como não ficar impactado(a), tocado(a) e incomodado(a) profundamente com as questões a ela relacionadas. Como fazer para manter o ânimo e a esperança crítica em meio a situações de desencantamento? Diante de tantas atrocidades, injustiça, violência, abismos socioeconômicos, corrupções de tudo que é lado, preconceitos e discriminações, pergunta-se: Será que ainda tem(os) jeito? Em seguida, a indígena Rosalina entoou uma canção que fez lágrimas brotarem de meus olhos, porque cantava “a mata é nossa”, “os brancos vieram e destruíram [...]”. É que eu sou branca, de família pequeno-agricultora das barrancas do rio Uruguai, em Palmitos/SC, onde nasci e fui criada. E aí eu me senti parte da realidade que a canção denuncia, mesmo não tendo feito, eu mesma, aquilo que é denunciado, mas trata-se, em parte, de meus ancestrais; nesse sentido, como também em outras situações históricas, é preciso confessar a culpa histórico-social e rever posturas em processos de reconciliação. Por outro lado, hoje de manhã, perguntou-me o colega pastor, que era meu professor de Teologia, aqui em São Leopoldo, Dr. Edson Streck, se nós (eu e meu marido) não pensamos em voltar para o sul. É que sempre trabalhamos longe daqui, primeiro na Alemanha, depois em Niterói/RJ e agora em Goiânia/GO. Até pensamos em voltar pro sul, mas se fosse pra voltar, o que a gente faria? Eu gostaria mesmo era de voltar lá pras barrancas do rio Uruguai, viver dos frutos da terra, porque eu nasci e me criei lá, brincando e pescando nas águas dos rios que ainda eram limpos, sem venenos, plantando, semeando e colhendo os frutos da terra, assim como vocês. Faria parte de meu sonho voltar para lá, sem brigas, conflitos, sem ter que dizer “isso é meu”, “isso é nosso”, porque percebi mais uma vez que uma das mais profundas confissões de fé cristã é afirmar que “a terra é de Deus” e que ele nos empresta ela para viver. E se eu pudesse fazer isso, seria um sonho, não simplesmente utopia, mas uma heterotopia, no sentido de criar lugares outros ali onde a gente está, junto com gente de vocês, cujos ances-
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trais também viviam naquelas terras. Se a gente então pudesse construir uma vida em conjunto, marcando a história do passado que é sua, mas que também é minha, numa terra que poderia ser nossa, hoje, então talvez pudéssemos ser felizes e colocar sinais de Bem Viver. Com essas primeiras impressões e impactos neste dia, adentro territórios de fronteira, conflitos e busca de diálogo. Para tal, recorro a aspectos que considero centrais com base nas minhas tradições de fé, herdadas em processos milenares de migrações, ensinos e aprendizagens, debates, projetos e realizações.
Bem Viver no cuidado da vida Uma das primeiras associações que afloram em se tratando do Bem Viver é o questionamento se isso seria igual a viver bem. E logo se avolumam mais questões: o que, afinal, seria viver bem? quanto se precisa para isso? há diferença nas necessidades, e quem definiria isso? Sei que não teremos respostas para tais questões, mas elas ajudam a pensar, colocar sinais e orientar na caminhada. Algo significativo, para mim, é uma relação que posso fazer entre o Bem Viver e o cuidado da vida, com a vida. Ora, se a gente se (pre)ocupa com uma vida digna e busca construir, ali onde estamos, relações de Bem Viver, então isto está relacionado com a construção de nossos valores, com a nossa educação, com a questão do sentido que a vida tem para nós. Esta construção de valores em prol do cuidado da vida tem por fundamento um tripé ou quadripé de relações de cuidado: eu comigo mesma, com o(a) outro(a), com o ambiente e com Deus. Nessas relações se expressa (ou não) o que chamo de vivência de fé, de espiritualidade. É o nosso jeito de viver que mostra aquilo que a gente crê e os sonhos que a gente tem e quer alimentar, ou ajuda a destruir. Cuidar da vida em contextos complexos e ambíguos de crises globais no campo das relações humanas e ambientais precisa questionar o que as religiões, as nossas religiões têm a dizer, a oferecer; o que elas têm a contribuir, como podem intervir, ou também prejudicar. Qual é o testemunho que nos vem do passado e qual é o nosso testemunho no presente? Qual é a
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base sobre a qual estão construídas nossa fé e espiritualidade, que podem (ou não) dialogar com outras expressões religiosas, mesmo em conflito, e justamente por estarem em conflito? Ter fé, dizer que se crê, ser um bom ou uma boa crente, testemunhar, enfeitar o seu espaço sagrado, celebrar, etc. faz parte da experiência religiosa de todas as culturas; contudo, se “logo depois” e “ali fora” não podemos viver esta fé e se constata que vigoram destruição, brigas, desigualdades, corrupções e violência... como e o que fazer? Esta é, portanto, uma questão crucial: como vivemos a nossa fé em meio às situações de injustiças e violências em nossos contextos.
Bem Viver é um Bem-Querer-Fazer-Bem Com tanta problemática e desafios levantados, gostaria de ampliar o Bem Viver que engloba um Bem-Querer, um Querer-Viver-Bem, um FazerBem e Querer-Bem... Tudo implica relações de vida, e estas parecem não ser relações fáceis, simples, unidirecionais, mas muito complexas e às vezes muito difíceis de se viver. Proponho-me, aqui, a dar algumas pinceladas que podem alimentar as reflexões e o debate na construção de nossa caminhada, de conhecimento e compartilhar de nossas experiências. Dentro dos meus referenciais de fé cristã, encontro várias tradições bíblicas e teológicas. Aqui, posso destacar apenas algumas:
Tradições narrativas da criação, ou: sobre origens e recomeços Com base em Gênesis 1-2, Salmo 104, Cantares, Romanos 8 e Apocalipse 21-22, gostaria de recordar alguns aspectos basilares que estão presentes também em outras culturas no que se refere a narrativas acerca das origens: a divindade é criadora, cria tudo, todas as coisas, e o faz a partir da palavra, do sopro, do canto divinos. No caso de Gn 1, entre os estudiosos há um consenso de que a narrativa foi formulada em meio às experiências de uma parte do povo de Israel no contexto do exílio na Babilônia (587 e 539 a.C.). Quem aqui se expressa é a antiga elite de Judá e Jerusalém, que foi deportada pelo exército babilônico de Nabucodonosor (597 e 586 a.C.) e que agora está assentada “às
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margens dos rios da Babilônia” (Sl 137,1), com saudade de sua terra e sua gente. Em uma situação totalmente nova, essa gente precisa articular a sua fé no novo contexto histórico e diante de novos desafios teológicos. Nas palavras de Milton Schwantes (1989, p. 28), trata-se de “ex-sacerdotes e excantores do templo de Jerusalém que deram forma final à poesia [narrativa]”, o que também confere um sentido litúrgico ao texto de Gn 1.2 No caso da religião judaico-cristã, tudo o que é criado por Deus, em meio ao caos, é por ele admirado: ele observa, vê profundamente, se alegra e diz: “Isto é bom, é muito bom; tudo é muito bom!” (Gn 1,10.12.18.21.25.31). Com base nesses relatos, a vida é boa, e ela deve ser boa e bela, ser desfrutada com alegria e prazer. Ela nos é dada, é dádiva, é gratuidade, mas ela também é dom que pede por cuidado, que pede para ser preservada. Neste sentido, os relatos igualmente mostram que Deus também ordena (no sentido de colocar-em-ordem) que devemos cuidar e cultivar tudo o que ele criou (Gn 1,28; 2,15). A narrativa de Gn 1 não apenas descreve acerca das origens, mas também prescreve como deve ser. Com isso, pode-se entender que ela é expressão da vivência religiosa e testemunho da fé de Israel que testifica que o cosmos, a criação e a humanidade surgiram por vontade de Deus. Por assim ser, ela também prescreve e ordena simbolicamente a ordem real (presente) do cosmos e da criação/humanidade. Alguns desses elementos prescritivos são: a necessidade de haver tempos de trabalho e de pausa; a noção de haver uma comunhão da criação, no sentido de cada elo integrar o todo; o ser humano (homem e mulher) é imagem e semelhança de Deus e, como tal, deve observar o mandato de Deus de cultivar e cuidar da sua criação numa imitatio dei. A partir desta perspectiva, somos colocados(as) numa relação de reciprocidade, de responsabilidade neste conjunto da vida criada. Não só recebemos e desfrutamos das coisas boas ou muito boas que Deus criou e mantém, mas também somos chamados(as) a cuidar, a preservar toda esta criação. Não somos chamados(as) a viver a “ditadura do indivíduo” que
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Acerca dos embates e debates cosmogônicos que subjazem às origens da narrativa de Gn 1, ver Reimer (2001, 2010) e Ribeiro (2002).
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está imperando nesse mundo globalizado no qual vivemos, mas somos conclamados(as) a rever todas as questões com base na reciprocidade e mutualidade. Destaque-se, aqui, que a dupla narrativa de Gn 1-2 contém alguns elementos importantes na constituição de uma comunhão da criação: o ser humano é criado do pó da terra-mãe (adamah) e o gênero humano é chamado adam. Nessa conexão telúrica, não somos chamados(as) para dominar e submeter tudo, mas o mandato que recebemos de Deus é de cuidar e cultivar (2,15). Este mandato, contudo e a partir de Gn 1,28, foi interpretado e vivido de maneira diferente na história da interpretação dessa narrativa bíblica, na história da Igreja e das doutrinas, no sentido de “dominar e sujeitar” com a (cons)ciência da superioridade humana em relação aos demais elos da criação. Basta lembrar que nas histórias de colonização também os cristãos foram adentrando, dominando e ocupando terras e corpos, submetendo tudo. No entanto, estudos mais recentes em todas as partes do mundo mostram que esse mandato pode ser entendido de outra forma, que podemos entender estas narrativas e tradições de maneira diferente, sendo que não há mais motivos e razões para continuar vivendo as “coisas velhas”. De acordo com isso, o mandato indica e ordena que as atividades dos humanos consistem de trabalho e cuidado (cultivar e guardar). Esta tarefa implica, por um lado, a transformação do ambiente natural em ambiente cultural, e nisso talvez resida uma das genuínas tarefas criadoras do ser humano: ser co-criador(a) com Deus. Por outro lado, a tarefa do ser humano implica também o “guardar”, isto é, não destruir a natureza criada por Deus, mas mantê-la em suas bases de sustentação e no seu próprio ciclo de vida. De acordo com o relato da criação e também como nos apresenta o Sl 104, nós somos criaturas em meio a outras criaturas: nós somos parte da criação, um elo muito importante, como todos os outros. Com esta percepção podemos interagir com cientistas de outras áreas de conhecimento que elaboram, por exemplo, teorias da interdependência.3 Em perspectiva teológica, é importante resgatar essa espiritualidade integral e integradora, que pode ser chamada ecológica ou ecofeminista, a fim de vivermos dentro des-
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A esse respeito, ver Capra (2000), Boff (2009), Reimer (2010) e Richter Reimer (2006, 2010a).
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se mundo que ainda é de Deus e que nos é dado para bem vivermos em conjunto, convivermos. Ao lado de Gn 1-2, portanto, há salmos que apresentam o “lado orante” da criação de Deus. Eles comunicam uma hierofania, uma manifestação de Deus em fenômenos da natureza, na atuação junto ao templo, na liturgia, na oração, no louvor e na lamentação. Assim, por exemplo, o auge do Sl 104 está na afirmação de que Deus é doador e mantenedor da vida. Nessa dinâmica, a ruah (espírito) de Deus é entendida como o princípio vital de todo o cosmos: “Envias a tua ruah, eles são criados e, assim, renovas a face da terra” (Sl 104,30). Nesta manifestação feminina de Deus-ruah, é importante destacar a beleza da linguagem do Sl 104 que expressa uma espiritualidade profunda e comprometida: a divindade voa nas asas dos ventos; ela lança os fundamentos da terra; aves, plantas, animais, frutos e gente convivem em paz; é preciso trabalhar para ter pão e vinho que alegra o coração, que dá força e beleza; a sabedoria divina inunda a terra e o mar... por milhares de anos e, é por isso, que a gente canta e louva essa força divina que nos dá a sua obra e nos chama para dela cuidar... Cântico para a pausa: “Envia teu Espírito, Senhor, e renova a face da terra.” Expressando essa “enlevação ecológica”, o Sl 104, contudo, não o faz desconectado das realidades históricas, marcadas por conflitos entre pobres/justos e opressores/ímpios (v. 35). Dentro dessas contradições históricas, a esperança humana é celebrada no Deus “que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que nele há e mantém para sempre a sua fidelidade, que faz justiça aos oprimidos e dá pão aos que têm fome [...], guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva” (Sl 146,6-7.9). Também no Sl 33 celebra-se Deus como criador que tem cuidado por toda a criação e, como tal, frustra os planos de inimigos (33,10). A história textual interpretativa de Gn 1-2, contudo, também mostra um longo processo que culminou inclusive em construções arquetípicas negativas acerca da sexualidade, do trabalho e da relação exploratória do ambiente. Algo bem diferente acontece em outro livro das mesmas escrituras sagradas. Trata-se de Cantares, também conhecido como Cântico dos Cânticos. Parece-me que esta é uma primeira releitura de Gn 1-2 dentro do
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próprio cânone. Aqui, fala-se da criação ou recriação numa perspectiva em que o corpo e a sexualidade não são vividos em estruturas e relações de culpa e culpabilização, mas são vivenciados com alegria e prazer, onde se respeita amorosamente a outra e o outro e onde, então, pode-se amar, se alegrar, relacionando-se com o(a) outro(a), sabendo que ele(a) é tão criatura quanto eu. Cantares apresenta, pois, uma perspectiva e visão de criação, onde as pessoas não são expulsas do paraíso, mas onde elas podem viver numa terra-sem-males de forma livre, respeitosa, em reciprocidade e responsabilidade. Nesta mesma direção e em tempos de profundas crises globais, também textos do Apocalipse 21-22, que se encontram nessa mesma tradição da (re)criação das narrativas de origem, anunciam a necessidade de um novo céu e de uma nova terra dentro daquele mundo marcado por dominação e exploração por parte da religião, da política, da economia do/no mundo romano. No contexto, são muito significativas e centrais as afirmações acerca da árvore da vida e seus frutos: marcando diferença com a “árvore do bem e do mal”; a árvore da vida não serve de tentação e proibição para as pessoas, mas dela se afirma que dará frutos durante doze meses, durante o ano todo, e todos os povos poderão dela desfrutar. Além disso, marcando a necessidade terapêutica da (re)criação, as folhas dessa árvore serão usadas como erva medicinal para a cura de doenças e das dores de todos os povos. Aqui, portanto, encontramos imagens ressignificadas de (re)criação inclusiva e libertadora para toda a criação. Olhando a Bíblia como um “grande rio”, também encontramos tradições legais, principalmente no Antigo Testamento, mas que são retomadas no Novo Testamento. O texto de Dt 6, por exemplo, é parte constitutiva da tradição dos(as) ancestrais, quando pedagogicamente explica a função e o sentido dos mandamentos para um Bem Viver familiar-societário: as gerações vindouras devem ser lembradas de que Deus libertou seu povo da escravidão no Egito e que, cumprindo suas ordenanças, preservarão a liberdade em justiça! Disto se depreende que é preciso recordar processos de opressão e libertação, a fim de não voltar a ser escravo(a) e não escravizar outras pessoas. Portanto, um dos braços desse “grande rio” deságua numa tradição importante do Novo Testamento, que se encontra nas letras do apóstolo Paulo, em Gl 5: foi para a liberdade que Jesus Cristo nos libertou
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e, portanto, sua morte e ressurreição objetivam preservar a liberdade e alimentar processos de libertação. Neste processo de “novo êxodo”, o apóstolo reconhece que as diferenças socioculturais e econômicas entre homens e mulheres, ricos e pobres e pessoas de outras etnias estão definitivamente superadas (Gl 3,26-28) e que, como novas criaturas, cada pessoa cristã é chamada a construir novas relações no “corpo de Cristo” (Rm 6; 1Co 12,12ss.). Deste mesmo “grande rio” fazem parte as tradições proféticas, que visam construir, garantir e proteger a boa e digna vida das pessoas, principalmente das minorias qualitativas que são nomeadas como pobres, viúvas, órfãos. Poderíamos, aqui, elencar uma série de profetas e textos que demonstram que essas minorias qualitativas chegam a esse estado e condições de pobreza, miséria e doença por causa de sistemas de exploração e dominação, portanto, sistemas que criam riqueza para poucos e pobreza e miséria para muita gente.4 Destaco aqui que também essas tradições proféticas, que buscavam assegurar um Bem Viver para a maioria do povo por meio da denúncia e do anúncio, igualmente podem ser revisitadas por meio do Novo Testamento, a partir do movimento de Jesus. O evangelho Lucas é radical em apresentar Jesus dizendo “não” à ganância e ao acúmulo, porque isso faz mal para a vida de (outras) pessoas. Necessário se faz a partilha, a comunhão e a celebração da paz que vem da justiça! Também as tradições sapienciais fazem parte deste “grande rio” ancestral, e nelas estão registradas sabedorias importantes e antigas. Mencionemos, por exemplo, o livro de Eclesiastes nos seguintes aspectos para a construção do Bem Viver: o bom proveito da terra para todos; é preciso ter tempo para tudo, sem se cansar e estressar; não ter inveja e ganância; não explorar a terra e o trabalho; cumprir aquilo que se promete; amar a vida; não se agarrar ao dinheiro, ao acúmulo; ter sabedoria e discernimento; não fazer guerra, vingança e violência; é preciso trabalhar para colher, lembrarse do criador, comer e beber, amar, alegrar-se e desfrutar de todo o bem... No movimento de Jesus esta sabedoria profética é afirmada numa dinâmica contracultural de não acúmulo e desaceleração (Lc 12).
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A respeito do alcance profético e sua crítica acerca das relações assimétricas de poder e riqueza, ver Reimer e Richter Reimer (2011) e Richter Reimer (2010a).
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Temos, portanto, em tantas tradições antigas judaico-cristãs muitos elementos e aspectos para repensarmos e (re)construirmos experiências e espiritualidades de Bem Viver: a amorosa reciprocidade, a sexualidade vivida sem culpa e obrigação, o que aponta para o respeito e o cuidado; o processo do êxodo, da libertação, do não deixar-se escravizar novamente; o reconhecimento de que é preciso trabalhar para viver e não viver para trabalhar; no todo e em resumo, é vital preservar a liberdade, a festa, a partilha, vencer conflitos e construir comunhão entre todos os elos da criação.
Bem Viver no colo da terra-mãe... Uma das partes que considero importante nas tradições judaico-cristãs é a concepção de que a terra é um corpo vivo. Do ponto de vista religioso e cultural, reconhecemos que culturas indígenas e afrodescendentes em nosso contexto têm a consciência de reconhecer a terra como pacha-mama, terrasem-males. Isto é relevante também para diálogos religiosos, apesar de geralmente esquecermos que também nós, cristãos, temos por herança semelhante concepção: somos corpo-terra, adamah/adam e à terra retornaremos. Gosto e me faz bem lembrar que, no tempo de Jesus, havia a noção de que a terra é corpo, visão que perdemos e buscamos recuperar. Como corpo, a terra tem útero e, portanto, evoca um imaginário acerca das realidades vividas por milhares de mulheres no decorrer dos séculos. Assim, conta-nos Plínio, o velho, que nos primeiros trabalhos de mineração, na exploração de prata e ouro no entorno do mar Mediterrâneo, acusava-se os homens que faziam esse trabalho de “revolver o útero da terra”.5 Neste contexto, é formulada pela primeira vez a noção de crime contra a terra: de acordo com isso, o primeiro homem a cometer um crime contra a mãe terra foi aquele que revirou o seu útero para encontrar ouro; o segundo que cometeu crime contra a mãe terra, foi quem usou (e usa) adornos de ouro, gerando novas e maiores demandas que resultam em maiores e insustentáveis explorações do útero da mãe terra. As demandas são cada vez mais complexas, também e principalmente em nosso tempo; depende de nós dizermos “não”, a exemplo de Jesus.
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Sobre esta literatura e comentários, ver Richter Reimer (2010a, p. 49).
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O evangelho Mateus, narrando sobre o anúncio da Paixão de Jesus, formula, indicando para a ressurreição: “O Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” (Mt 12,40). Faz bem ver que também esta tradição judaica, que contempla e afirma a terra como corpo, foi preservada no movimento de Jesus, especialmente nas comunidades de Mateus. A terra como um corpo, que tem coração e acolhe a pessoa morta para possibilitar nova vida, é uma imagem forte para a terra-mãe, presente em várias culturas.6 A partir desta narrativa de Mateus, podemos perceber que o Bem Viver e o Bem Morrer andam de mãos dadas. Por isso, a “morte vivida”7, a morte que se celebra e a memória da pessoa morta que continua viva e presente – como Milton Schwantes, que aqui está presente! – é importante nessa dinâmica sobre as origens, sobre a criação e sobre nossa responsabilidade nesse processo de Bem-ViverBem-Querer-Bem.
...e cuidar do útero da vida Se, nessa tradição do movimento de Jesus, a terra tem coração para recriar, para o apóstolo Paulo, a criação toda é um grande útero em trabalho de parto: “a criação toda sofre e geme em trabalho de parto até hoje” (Rm 8,23)8. Encontrando-se em cativeiro da sujeição por sistemas e estruturas de corrupção, ganância, exploração e por causa da falta de cuidado, a própria criação, juntamente com o Espírito e todas as pessoas que creem (que têm as primícias do Espírito), encontra-se em estrondoso e enorme trabalho de parto.9 Numa situação de trabalho de parto não há espaço para resignação e apatia. A imagem que o apóstolo Paulo utiliza é dinâmica, forte e revolucionária. “Gritar em trabalho de parto” é participar ativa e decisivamente do processo de dar à luz, de trazer à luz, de fazer o novo nascer e acontecer! A imagem deste trabalho e deste grito, utilizada pelo apóstolo, não é algo que se faz nas alcovas, nem é um gemer escondido,
Lembro, por exemplo, do mito da mani-oca, que resumidamente lembra a origem da mandioca no lugar onde a índia Mani havia sido enterrada. 7 Acerca deste conceito e da importância da prática funerária, ver Richter Reimer (2010b). 8 Interpretação e referências, ver Richter Reimer (2010a). 9 Este trabalho de parto é descrito com os termos gregos systenádzo e synodíno, demonstrando a grande força que o corpo todo faz e, nisso, solta gritos enormes. A este respeito, ver Richter Reimer (2010a, p. 52ss.). 6
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silenciado, mas é grito que mistura dor e alegria, porque o novo já desponta, e mesmo que ainda não possa ser visto, já é sentido. E é preciso fazer força! Esta é uma imagem da esperança cristã: gritar em trabalho de parto não é ação de quem se esconde, resigna e silencia; ao contrário, é demonstração da esperança de participar e pegar nos braços aquilo que já vem! Além disso, é trabalho conjunto – de toda a criação, inclusive da ruah divina. Desta forma, penso que Rm 8, como parte da tradição da “grande mãe”, pode e deve ser relido e contribuir para ressignificar nossa vida em suas múltiplas relações: comigo, com o próximo, com a divindade, com a criação. Esta esperança que já dá pra sentir, esta novidade de Bem-ViverBem-Querer-Bem não vai cair pronta do céu, não será dada nem vendida pelo mercado, pelos donos do mundo, políticos, corruptos. Isto é obra de Deus e de toda pessoa que crê e que está disposta a “fazer força” para o novo nascer!
Rever e reconstruir tradições, valores e formações Gostaria de lembrar que essas tradições não são novas, e por isso também falei a respeito de minhas inquietações quando vim para cá para falar acerca de concepções e experiências do Bem Viver. Ora, eu participei da Eco 92, no aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, quando trabalhava como pastora em Niterói; montamos as tendas das religiões, num sinal maravilhoso da possibilidade de vivência ecumênica no cuidado da criação, de um bem viver em conjunto. Logo depois, em 1993, teólogos afirmavam a interdependência e o lento processo de desintegração das relações de interconexão existentes, bem como a catástrofe inevitável, caso não houvesse uma urgente mudança de mentalidade e de atuação nas intervenções nefastas do ser humano nos recursos naturais. Constatou-se que seres humanos – ou sua maioria – não são aptos nem capazes de conviver amorosamente com a natureza e que a maioria dos crimes jurídico-legais e religiosos advém do fato de que relações que deveriam ser de cuidado são violadas, e consistem em abusos, violações de direitos humanos e ambientais, resultando em injustiça, sofrimento e exploração. Portanto, temos como herança tradições relevantes para o cuidado das relações humanas e ambientais, mas continuamos nos deparando com o agravamento das formas de violência, criminalidade e as reações às mesmas.
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É por isso que este tema e experiência do Bem Viver são significativos e questionadores, e desafiam também no sentido de resgatar e rever tradições, construção de valores e processos de formação. Nesse processo é importante resgatar a concepção e a dimensão de que somos corpos em relação – terra, gente, cosmos, criação, divindade, e isto é um trabalho profundamente teológico: somos nascidos(as) da terra, da palavra e do sopro divinos; somos membros do corpo de Cristo por meio da fé manifesta no batismo que deve ser vivido cada dia; nascer e morrer “em Cristo” é conversão e renascimento diários, a fim de vivermos como nova criatura. Essa vivência diária da fé acontece no kairós “tempo oportuno” de mudança e salvação, a fim de que a vida possa ser sustentável para muitas gerações. Este kairós é profético, porque anda na contramão da vida acelerada, do desenvolvimento pautado em crescimento, riqueza e consumo insustentáveis, e visa conter ou desacelerar o processo da falta de cuidado e do excesso de violência existentes nas relações humanas e ambientais. Esse kairós do Bem Viver liberta para uma espiritualidade em que Deus está próximo de nós, dentro da vida em todas as dimensões; ele também liberta da obsessão pelo progresso e desenvolvimento desenfreados (crescimento, acúmulo, exploração) e orienta em direção a um desenvolvimento saudável que resulte em vida e relações dignas, boas, simples e sustentáveis para toda a criação. A isto podemos chamar de ‘economia de Deus’, ou seja, o jeito de Deus administrar a sua casa que é o mundo e tudo o que nele existe. Nessa “economia de Deus” somos chamados(as) a ser seus mordomos(as) para cuidar, sarar e preservar o “jardim da vida”, sabendo que a economia e a justiça de Deus se pautam no bem-estar de todas as pessoas e que conclamam por relações de solidariedade, partilha e comunhão, a fim de que a vida não morra por causa do mercado! Ao contrário: a espiritualidade do cuidado da vida num processo de construção de bem viver é capaz de perceber as inter-relações da vida humana com as suas dimensões políticas, econômicas, sociais, ecológicas e terapêuticas. Neste sentido, faz-se necessário cuidar também da gente para refazer as forças e viver de acordo com o Reino de Deus que é justiça e paz nas relações humanas, com o ambiente e com Deus.
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Alguns elementos éticos para a construção do Bem Viver A partir das reflexões anteriores cabe destacar que, para a construção da vivência dos sinais do Reino de Deus na nossa vida, podemos nos orientar por alguns elementos elaborados em textos do Novo Testamento e que acolhem tradições proféticas, sapienciais e legais do Antigo Testamento. Seguem algumas bases éticas que orientam no sentido de que: a) relações comunitário-sociais não devem privilegiar o status de riqueza e poder geralmente adquirido por meio de mecanismos de corrupção, exploração, dominação e injustiça (Tg 2; Mt 20,20-28; Mc 11,15ss.); b) por amor e misericórdia, cada pessoa pode servir de suporte para a outra, respeitando as diferenças e construindo relações de justiça e igualdade necessárias para garantir a dignidade de toda a vida, em liberdade (At 2; 4; Mt 20,26-27; Rm 15,1-7; Gl 3,26-28); c) pelo batismo somos chamados(as) e capacitados(as) a viver como “nova criatura”, tendo por fundamento e compromisso a inserção no Corpo de Cristo (Rm 6; 2Co 5,17), porque as coisas “velhas” já passaram e se fizeram novas, no sentido de rupturas e inversões de valores; d) a acolhida e inclusão de pessoas na construção de novas relações se estendem a todos os elos da criação (“leis ambientais”: Êx 23,10-11 – terra, pobres e animais) que passam a ser sujeitos de direito (Lc 12); e) o conceito de justiça inclui e pressupõe relações de cuidado com o ambiente e relações de reciprocidade e mutualidade na práxis por libertação (Rm 8). Estas orientações éticas basilares permitem concluir que viver este Bem-Viver-Bem-Querer-Bem é característica de uma espiritualidade que está comprometida com o Reino de Deus e participa das bem-aventuranças, na sua forma ativa (humildes, mansos, pobres, que choram) e passiva (que têm misericórdia, que fazem a paz, perseguidos por causa da justiça). A partir de tradições judaico-cristãs podemos dizer que o Bem Viver é dádiva e promessa, e também realização e compromisso que passam pela opção e pela responsabilidade das pessoas de fé.
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Reflexões no caminho, junto com irmãos(ãs) e cunhados(as) indígenas Na participação no final desta caminhada de trabalho acerca do Bem Viver, retomo algumas questões do ponto de vista bíblico-teológico, porque compreendo que a teologia tem tudo a ver com a vida da gente ali onde estamos, no dia a dia da nossa existência e na vivência de nossa fé. Revisitar textos, tradições e interpretações faz parte, para mim, do nosso ser cristão. Neste sentido, crer e seguir a Jesus na caminhada de Bem Viver requer compromisso com a proposta ético-profética de Jesus naquilo que Ele propôs e vivenciou no caminho de construção de Reino de Deus. A partir das coisas que vi, ouvi e vivenciei nesses dois dias, coloco para nós algumas reflexões a mais, agrupadas em dois tópicos:
Reaprender e trocar saberes e vivências Algo que ouvimos muito nesses dias, de diversas pessoas e grupos, é a concepção de que a terra é um corpo vivo. Vimos que isso também está presente em antigas tradições judaico-cristãs, sendo que todos os seres são ou se encontram em relações de interdependência. A partir disso, projeto algumas ideias, reflexões e desafios: • É necessário reaprender e trocar saberes na vivência de nossa espiritualidade/fé em postura de contemplação e cuidado. Como é a nossa fé, também em contato com outras pessoas e tradições religiosas, ali onde vivemos, trabalhamos e nos relacionamos com outras pessoas? Esta fé, pelo que entendi das falas, dos testemunhos, das gestualidades e das canções, é desafiada para ser uma vivência de coerência e coesão, uma unidade entre contemplar e cuidar. Trata-se da relação entre contemplação e reverência diante do Sagrado que é simultaneamente “tremendo e fascinante” e se faz presente em todos os elos da sua criação. Por outro lado é também toda a dimensão do cuidado de uns para com outros(as), com todas as coisas e também para com Deus. Insisto em questionar: como vivenciamos nossa fé na relação com outras expressões religiosas?
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• É possível perceber, em todos os elementos da criação, a presença, a atuação, a graça, a gratuidade e as orientações de Deus também como espírito-ruah que recria. Deus não só criou o mundo e então o abandonou, mas permanece conosco – como alguém dizia na plenária – recriando, mantendo, apoiando, dando força, para que a gente, na comunhão, possa ajudar, fazendo nosso trabalho de cuidadores(as) desta criação; • Um elemento importante nesses dias foi reconhecer e confessar que a terra é de Deus. Isto tem consequências para nossa vida, pois quem reconhece e aceita isso, quem tem ciência e consciência disso não pode mais continuar considerando a terra como um “bem imóvel” para exploração e acúmulo, como um bem de especulação imobiliária, mas precisa rever e reconsiderar que a terra nos é emprestada – como afirmado aqui – a todos(as), para nela e dela viver e dela cuidar no dia a dia. Gostaria de frisar essa relação cotidiana, porque mulheres indígenas, nesse encontro, insistiram em suas falas o quanto é importante que elas e suas famílias, suas crianças tenham o que comer, onde morar e o que vestir hoje, porque “não somos donas do amanhã”. Este Bem Viver se faz hoje, em comunhão e partilha. Por isso, o desafio é reaprender a orar e viver a oração: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Este cotidiano, muitas vezes negado ou não alcançado, coloca como desafio “desmercadolizar” a terra, isto é, tirar a terra das relações de mercado, e trabalhar no sentido de resistirmos contra a concepção, legislação e realidade existentes de que a terra é mercadoria, aliás, mercadoria muito cara. Na palavra dos povos indígenas, precisamos insistir que a terra é “terra preservada”; • Devemos, contudo, de maneira autocrítica também avançar no sentido de superar nossas explicações para nossa história e nossas experiências. No geral, elas são culpabilizadoras e vitimizadoras, no sentido de culpar (quase sempre) um outro por nossa situação ser assim como é e de vitimizar a nós mesmos(as) por estar numa situação como a que estamos. Penso que a gente precisa superar esse tipo de explicações, assim como já o fazemos em outras áreas de atuação, como, por exemplo, nas hermenêuticas feministas, sem, contudo, perder de vista a memória crítico-libertadora da (re)construção de nossas histórias. Não se trata de negar as violências, os massacres e as vítimas do passado e do presente, mas não podemos continuar nos conten-
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tando com isso; penso ser necessário também olhar para dentro de nossas relações, hoje, no sentido do que nós estamos fazendo, na casa, no grupo, para fora do grupo, quais são os conflitos de gênero, de etnia, de classes, de idade, etc. nas aldeias, nos campos, nas cidades? Estamos construindo relações de reciprocidade e de respeito? Como se dá o trabalho com conflitos existentes entre etnias e povos? São desafios para continuar pensando. Como vamos ou queremos conviver, índios e brancos, num mesmo lugar, por exemplo? Esta é minha inquietação e o meu desafio para nós; como nós vamos resolver isso? Todas(os) queremos viver bem, mas também é preciso aprender a Bem Viver em meio a conflitos, buscando conviver! Para refletir mais: na análise do passado e na reconstrução do presente, há que se equilibrar melhor entre a história de massacre/vítimas e a história da resistência/protagonismos de quem sofre(u) violência. Além disso, é preciso prestar muita atenção nos mecanismos de controle e de conflitos internos, dentro do grupo, do povo, da família, do movimento, porque não há relação sem exercício de poder, de controle, de mediação... Portanto, não há relação sem conflito. Como se constroem as relações de poder? Quem define, decide e fala? Quem ordena e faz calar? Quem, quando e onde pode falar? Como se resolve conflitos internos, entre grupos/povos e os conflitos externos? Como funciona a reciprocidade neste sentido? Como se articula a convivência e partilha entre diferentes?
Rever e reconstruir nossas tradições e nossos valores Tudo o que vimos e ouvimos nesses dias, e com base e compromisso na nossa inserção no Corpo de Cristo por meio do batismo, pela fé, somos questionados(as): como viver o ser “nova criatura” (Rm 6; 2Co 5,17), para a qual as coisas “velhas” já passaram e se fizeram novas (ruptura, inversão de valores e lugares)? Também em relação a isso, teço aqui algumas reflexões: • Em todos os lugares e sociedades é necessário assumir a tarefa de organizar as formas de uso da terra e de convivência pacífica na terra, entre povos, etnias e classes, de modo a preservar a vida, as diversidades e as múltiplas memórias ancestrais de diversos lugares e etnias, principalmente em lugares de conflito e de construção de outros modos de vida; • podemos fazer a diferença em nível individual e comunitário-social, de forma a irradiar este jeito de ser para dentro de outros lugares, instituições e estruturas/sistemas. Trata-se, por exemplo, daquilo que constatáva-
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mos pela manhã: a necessidade de aprender a dizer “não” em nível pessoal e comunitário-político-social, bem como de rever as nossas prioridades. O que é realmente preciso para bem viver, viver bem comigo mesma, com o outro(a), com Deus e com o ambiente? • em muitos lugares ao redor do mundo e também aqui, percebe-se a necessidade de manter e ampliar redes desses “diferentes viveres” (investir em tempo e gente), aprofundar a conscientização no grupo e ampliar o apoio a outros movimentos, para evitar a endogenia; • temos condições de construir relações de poderes compartilhados (etnias, classe, gênero, idade, ambiente), no sentido de contribuir para uma cultura de paz e integridade da criação (não violência, exploração, opressão, vingança, ódio...); para esta cultura da paz, a reconciliação e a cura das feridas são imprescindíveis; perdoar não é igual a esquecer, mas sempre é possível recomeçar; • é preciso investir forças e saberes para vencer medos e vergonhas diante do(a) outro(a), também entre nós. Nas falas e apresentações, um indígena disse que, quando criança, morria de vergonha dos brancos. Isto evocou em mim a lembrança que também eu, quando criança, morria de medo dos “bugres” (linguagem na minha terra natal para designar pessoas Kaingang) que passavam na estrada para vender seus produtos, apanhar cipó nos matos, colher frutos nas barrancas da estrada. Esta vergonha e este medo são fruto do estranhamento e do imaginário que é tecido acerca do diferente, com uma série de preconceitos e pontos de vista que são apenas a vista a partir de um ponto. Para podermos dialogar é preciso retrabalhar esses nossos imaginários e as “histórias” que se contava, a fim de vencer os nossos muitos medos e vergonhas e começarmos a tecer uma nova história; • para isto é preciso também rever conceitos como cultura e tradição, atribuindo-lhes sentidos mais dinâmicos, sujeitos a adaptação, transformação e assimilação (hibridização) em vários contextos e tempos; • em tudo, é corajoso manter os olhos fixos no horizonte utópico (utopia é um “sem-lugar” que nos faz mover, ir adiante e perseverar), mas construindo “outros lugares” (heterotopia) já agora, nesse lugar onde a gente vive e que parece não ter espaço e lugar para os nossos sonhos, desejos e necessidades de mudança, de fazer algo diferente; chamamos isso de heterotopia
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para caracterizar as pequenas realizações diferentes no sentido de criar um lugar que abrigue nossos sonhos; em linguagem teológica, trata-se dos sinais do Reino de Deus; • percebe-se o desafio de se orientar sempre pelo amor que também perdoa, pela misericórdia/compaixão que vê as dores das pessoas e do mundo, sofre com elas, mas não resigna diante disso, mas se coloca à luta para transformar; por isso, outro valor imprescindível é a esperança, no sentido de não desistir, mas ir até o fim da vida trabalhando em prol da justiça e da paz. Nesse sentido, cada pessoa é convidada por Jesus Cristo a ser suporte/apoio/ sustentação para a outra, numa diaconia que respeita as diferenças na construção de relações de justiça e igualdade necessárias para garantir a dignidade de toda a vida, em todas as suas dimensões, em liberdade (Mc 6,34; 8,2; At 2 e 4; Mt 9,35-38; 20,26-27; Rm 15,1-8; Gl 3,26-28; 5); • frente às atrocidades e às “profecias de fim de mundo”, importa também resistir com responsabilidade e criatividade à fatalidade da destruição: tomando Ap 21-22 como referência, entendo que Deus, em Cristo e no poder dinâmico de sua ruah divina, promete novo céu e nova terra, onde, em comunhão, lágrimas serão – e já são – enxugadas; não mais haverá luto e dor por causa de violências; a fonte da água da vida não será sugada por plantas mercadológicas para ganhar dinheiro, mas em torno dessa fonte crescerão árvores que abrigarão aves e animais, darão sustento a todos os seres vivos durante o ano todo, e as suas folhas serão usadas para a cura dos povos; violência, vingança e ódio não mais serão praticados, e Deus habitará conosco e será louvado por nós, todos os seres (Ap 21-22). Só me resta dizer e desejar profundamente que Deus nos anime, ajude e ampare, a fim de que nossos passos e caminhadas sejam muito frutíferos nesse processo de construção e vivência de Bem-Viver-Bem-Querer-Bem!
Referências BOFF, Leonardo. A Opção-Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2009. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2000.
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REIMER, Haroldo. “Em um princípio...”: sobre a linguagem mítica em Gn 1,12,4a. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 11, n. 5, p. 743-764, 2001. ______. Bíblia e ecologia. São Paulo: Reflexão, 2010. ______; RICHTER REIMER, Ivoni. Cuidado com as pessoas empobrecidas na tradição bíblica. Estudos da Religião, São Bernardo do Campo, v. 25, p. 181-197, 2011. RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Vento tempestuoso: um ensaio sobre a tradução e a interpretação de Gn 1,2 à luz de Jr 4. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 12, n. 4, p. 573598, 2002. RICHTER REIMER, Ivoni. Terra e água na espiritualidade do movimento de Jesus: contribuições para um mundo globalizado. Goiânia: Ed. da PUC Goiás; São Leopoldo: Oikos, 2010a. _____. Perigo de morte e “morte vivida” no movimento de Jesus: teologia e imaginário gravados na arte das catacumbas. Ciberteologia – Revista de Teologia e Cultura. São Paulo, n. 29, p. 31-44, 2010b. ______. Criação e Bíblia. In: BEOZZO, José O. et al. (Orgs.). Ecologia: Cuidar da Vida e da Integridade da Criação. Curso de Verão – Ano XX. São Paulo: Paulus, 2006. p. 115-150. SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1989.
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Bem Viver na criação de Deus Carlos Gilberto Bock 1
Situando o autor e o texto Antes de iniciar o meu texto quero destacar o lugar de onde escrevo, que reflete os conceitos e as opiniões que expresso, e os limites da minha abordagem. Desde meados de 2008 trabalho como secretário executivo da Fundação Luterana de Diaconia (FLD)2, que mantém uma relação de parceria com o Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN). Tenho, assim, o privilégio de acompanhar o significativo trabalho que o COMIN desenvolve com diferentes povos indígenas. No acompanhamento deste trabalho aprendi a conhecer e respeitar a alteridade cultural e religiosa que caracteriza os diversos povos indígenas no nosso país e no continente latino-americano. Minha relação com os povos indígenas, assim, é mais de interesse, que propriamente de acompanhamento direto. A defesa dos direitos indígenas é uma das causas que recebe o apoio da FLD, através de pequenos projetos e, especialmente, no acompanhamento ao trabalho desenvolvido pelo COMIN. O enfoque teológico que apresento neste texto, num primeiro momento, é mais sistemático. Ao valorizar a importante contribuição dos povos indígenas com o conceito Bem Viver, procuro identificar a relação do mesmo com princípios fundamentais da fé cristã. Tais princípios, contudo, nem sempre ganharam a devida expressão na vida das igrejas cristãs. A atual reflexão,
Teólogo. Secretário Executivo da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e professor assistente da Faculdades EST. 2 A Fundação Luterana de Diaconia (FLD) é uma instituição de direito privado, criada por decisão do Conselho da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), e constituída no dia 17 de julho de 2000. Ela herdou o histórico do Serviço de Projetos de Desenvolvimento (SPD), criado em 1966. A FLD mobiliza recursos e apoia projetos sociais e diaconais de grupos sociais e comunidades, em âmbito nacional, e desenvolve parcerias para a implementação de projetos de justiça econômica e justiça socioambiental. 1
assim, aponta para o desafio de se buscar traduzir tais conceitos e princípios em experiências concretas, na vida cotidiana das comunidades cristãs, e sua respectiva expressão na sociedade mais ampla. A segunda parte do texto procura identificar algumas experiências que estão em curso.
Situando o conceito de Bem Viver O conceito de Bem Viver deriva-se dos povos andinos, em especial dos povos indígenas Quéchua (que hoje vivem no Equador, e cuja expressão na sua língua materna é Sumak Kawsay) e dos povos indígenas Aimará (que hoje vivem na Bolívia, e cuja expressão na sua língua nativa é Suma Qamaña). Sumak Kawsay literalmente significa viver em plenitude. Há duas compreensões que são centrais no conceito de Bem Viver para os povos andinos, a saber, o sentido de pertença à natureza e o sentido de pertença à comunidade. Trata-se a rigor de uma cosmovisão, que tem como seu fundamento espiritual e religioso o entendimento de que toda a vida é sagrada e impregnada com o transcendente, e que se expressa num sistema social que promove o equilíbrio, a reciprocidade e a convivência de forma colaborativa entre os membros da comunidade e na relação com a natureza. Seu uso mais recorrente no atual momento, também da teologia, indica, de um lado, a valorização de uma sabedoria e vivência indígena ancestral, e de outro, a crise do atual sistema socioeconômico que gera a crescente exploração da natureza e a exclusão de países, povos e pessoas. Num contexto de crise global (econômico-financeira, ambiental ou climática) quais são as alternativas e respostas possíveis do ponto de vista sistêmico? Neste cenário, penso que os povos indígenas, inclusive as comunidades andinas, com a sabedoria do Sumak Kawsay podem trazer importantes contribuições, também como crítica ao sistema capitalista e ao modo de produção e de consumo das nossas sociedades. Assim, não obstante a sua importante contribuição, há que se tomar certo cuidado para não se fazer uma apropriação indevida deste conceito, ao deslocá-lo do seu próprio contexto e cultura. Como conceito, ele também precisa ser interpretado e traduzido para os diferentes contextos de vida.
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Diferentes dimensões do Bem Viver na cosmovisão indígena3 Bem viver, territorialidade e meio ambiente A relação com a terra e com o meio ambiente é estruturante na cosmovisão e no modo de viver indígena. Bem Viver é a terra livre, são as águas puras e as florestas sagradas. A preservação das florestas é fundamental para o Bem Viver indígena. Todos os seres têm vida. Por isso, o Bem Viver deve ser para todos os seres. Bem Viver e cultura Viver bem é preservar a cultura dos antepassados. Saber compartilhar faz parte do Bem Viver. Bem Viver e economia O modo de produção indígena respeita a mata. Bem Viver é ter o suficiente para o momento presente. O que sobra é compartilhado. Não há acúmulo. O trabalho é o esforço para ter o suficiente. O importante é o ter o suficiente para viver (alimento e saúde). Bem Viver e vida em comunidade Bem Viver inclui a todos e todas (de que adianta se eu vivo bem e o outro não). Bem Viver é ter respeito e compromisso com o outro.
Reafirmando alguns princípios da fé cristã no diálogo com o conceito Bem Viver A natureza também é parte da boa criação de Deus Confessamos que Deus é o criador de tudo o que há, inclusive da natureza. Confessamos também que tudo o que Deus criou é bom. Na 3
O texto original foi apresentado no seminário organizado pelo COMIN, sob o título Bem Viver na criação de Deus, nos dias 21 e 22 de maio de 2012, em São Leopoldo. A atual versão já inclui o resultado do diálogo com representantes indígenas presentes naquele seminário. O texto que segue neste item é uma edição de diferentes frases, a partir de depoimentos orais, apresentados por diferentes participantes indígenas, representando comunidades que são acompanhadas pelo COMIN, e que foram convidados a compartilhar a sua visão sobre o tema.
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base desta confissão há uma clara distinção entre Deus e criatura, que não se confundem. Com isso, declaramos que as coisas criadas, natureza e pessoas não podem ser elevadas à condição divina. Em parte esta compreensão levou a comunidade cristã a se diferenciar da visão predominante em algumas religiões naturais, segundo as quais o destino humano é determinado pelos deuses ou pelas forças da natureza. A comunidade cristã afirma que há somente um Deus, criador de tudo que há. Contudo, na história da tradição cristã, não raro esta compreensão que distingue Deus da sua criação, expressou-se na forma de uma separação absoluta, sobretudo na relação entre Deus e a natureza. Ora, tal separação entre Deus e a natureza é um claro equívoco teológico que precisa ser criticado e superado. A atividade criadora de Deus na criação é permanente Confessamos que a criação, também a natureza, foi originalmente criada por Deus. O ato criador de Deus, contudo, não se deu somente na origem de tudo que há, mas permanece ao longo da história da criação. Ou seja, Deus não cria uma única vez e se afasta. Confessamos também que Deus se faz presente na criação através do seu Espírito. O Espírito de Deus perpassa todas as coisas vivas e criadas, como energia que move, como força que inspira, como sopro que dá vida. Nesta concepção, Deus é simultaneamente transcendente e imanente. A encarnação de Jesus Cristo, como Filho de Deus, é a expressão mais definitiva desta unidade entre o transcendente e o imanente. A fé cristã faz uma distinção entre matéria e espírito, mas não separa o espírito da matéria. A espiritualidade cristã é vivida no mundo concreto, como força transformadora para promover o amor, a paz, a justiça, para preservar a vida humana e a natureza. Toda separação entre vida espiritual e vida material ou vida mundana é um equívoco teológico que precisa ser criticado e superado. O ser humano recebeu a responsabilidade de cuidar e zelar da boa criação de Deus Confessamos que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e como tal recebeu um mandato diferenciado na relação com a criação. Mesmo sendo parte da natureza, o ser humano recebeu a capacidade de se relacionar com ela e dela retirar a fonte de seu sustento. Contudo, o ser humano, na fase histórica mais recente, afirma claramente a sua supre-
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macia e seu domínio sobre a natureza, e inclusive contra a natureza. Tal postura, de forma contínua, coloca em risco a sua própria sustentabilidade e sobrevivência, e, por isso, precisa ser denunciada e superada. Há que se reafirmar que o ser humano é parte da natureza e dela depende. Seu governo sobre ela é para dela cuidar e não para dominá-la de forma inconsequente e egoísta. O domínio sobre a criação, de forma indiscriminada e irresponsável, é pecado e deve ser denunciado. O ser humano é justificado por graça, mediante a fé Confessamos que o ser humano carece de sentido, que está além do seu valor próprio, das relações que estabelece e das coisas que conquista. Este sentido último da sua existência, o ser humano encontra, através da fé, no amor de Deus, que supera todo o entendimento. Este amor é alcançado mesmo sem merecimento. E através deste amor de Deus, a pessoa é libertada do seu egoísmo, também para viver uma vida comunitária, que zela e cuida do bem-estar das outras pessoas e da vida social. O ser humano encurvado em si (homo incurvatus in se), que tem uma postura ensimesmada, precisa ser constantemente desafiado a incluir o outro na sua própria perspectiva. Por isso, confessamos que somos simultaneamente justos e pecadores. Somos justos porque fomos amados primeiro e temos a promessa da vida eterna com Deus independente de qualquer mérito. E somos pecadores porque, em nossa condição humana, permanecemos reféns de nossos próprios interesses e limites e, por isso, constantemente desafiados a superá-los. A vida cristã se expressa na comunidade, no corpo de Cristo Na comunidade cristã, confessamos que somos parte de corpo de Cristo. Temos valor individual, temos capacidades próprias, que estão a serviço de uma coletividade e de uma causa maior que nós mesmos. Somos seres relacionais. Neste corpo nos relacionamos com os semelhantes e com os diferentes, com os fortes e com os fracos, com homens e mulheres, com crianças e com pessoas idosas. O corpo de Cristo, por sua vez, se relaciona com outras comunidades de fé, como parte da mesma família humana, que busca construir relações de paz e de justiça.
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O corpo de Cristo está a serviço do mundo A comunidade cristã, como corpo de Cristo, está a serviço do bemestar da criação. Este serviço acontece, seja de forma individual no exercício da profissão e nas relações familiares e interpessoais, seja de forma comunitária no exercício da diaconia, sobretudo com as pessoas e grupos mais vulneráveis. Este serviço se dá também na sociedade, nas mais diferentes formas e expressões, como sinais concretos com vistas à melhoria da vida social, econômica, cultural e ambiental. A diaconia como serviço ao mundo é parte inerente da vida cristã. Por isso, confessamos também que a fé sem obras é morta, ou seja, a fé que não se expressa de forma concreta e relacional em verdade é nula ou sem efeito.
Alguns exemplos concretos de cuidado da boa criação de Deus, a partir da comunidade cristã, em diálogo com a perspectiva do Bem Viver a) Em maio de 2012, a conferência virtual Verde e Justo, da Federação Luterana Mundial (FLM), reuniu numa conferência virtual, 400 pessoas de diferentes países e continentes, num diálogo comprometido sobre a relação entre a fé cristã, a crítica ao modelo de produção e de consumo predominantes, e o compromisso com atitudes de cuidado do meio ambiente e de consumo consciente, em consonância com a sustentabilidade da criação4. b) Desde setembro de 2011, o caderno Criatitude. Jovens pelo cuidado com a criação engajou jovens da IECLB, no compartilhar de reflexões e práticas de atitudes conscientes e responsáveis de consumo, e no apoio a iniciativas concretas de cuidado da criação5. Através desta iniciativa, mais de 30 lideranças jovens da IECLB e de igrejas luteranas latino-americanas, partiJustiça ambiental e justiça climática são temas relevantes na agenda da FLM, também do ponto de vista da reflexão teológica. Em 2010 a FLM publicou o livreto Deus, Criação e Mudanças Climáticas. Subsídios para reflexão e debate. A versão em português foi traduzida pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), e está disponível em: <http:// www.luteranos.com.br/portal/site/conteudo.php?idConteudo=75>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. Informações complementares sobre a conferência virtual Verde e Justo estão disponíveis em: <http://www.lutheranworld.org/lwf/index.php/virtual-conference-prompts-greater-involvement-in-ecological-justice.html>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. 5 Disponível em: <http://fld.com.br/index.php/fld/publicacao/criatitude_jovens_pelo_ cuidado_com_a_criacaeo/>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. 4
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ciparam da Cúpula dos Povos, evento paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +20), realizado no Rio de Janeiro, de 15 a 23 de junho de 2012. Os jovens luteranos do Brasil e da América Latina se juntaram a milhares de outros jovens, na defesa de um novo modelo de desenvolvimento que seja mais sustentável6. c) Além dos jovens, cristãos adultos do Brasil, da América Latina e do mundo estiveram igualmente reunidos na Cúpula dos Povos, mais especificamente no Espaço Religiões por Direitos. Este era um espaço ecumênico e inter-religioso, no qual representantes de igrejas, de organismos ecumênicos, de centros de formação, de ONGs compartilharam suas experiências e suas reflexões com representantes de outras religiões sobre temáticas bem concretas, como por exemplo: soberania e segurança alimentar, justiça ambiental e mudanças climáticas, justiça econômica e inclusão social, etnodesenvolvimento e povos indígenas, água e responsabilidade ambiental, desenvolvimento sustentável e consumo consciente7. d) Milhares de pessoas cristãs têm se engajado, desde o princípio, na organização e realização dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM) que, desde 2001, preconizam que outro mundo é possível. Neste amplo espaço multilateral, que reúne uma diversidade de atores em torno de múltiplas temáticas, também se conformou a presença cristã através da Coalizão Ecumênica, espaço que reúne representantes de conselhos, de federações de igrejas, de igrejas e organismos ecumênicos. Desde 2005, em sintonia com o FSM passou-se a promover o Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), como um espaço de reflexão sobre a produção teológica em matriz libertadora, e em sintonia com os grandes temas da agenda socioeconômica, ambiental, etnocultural e religiosa internacional. Nas primeiras edições o FMTL precedeu a realização do FSM, em Porto Alegre, Belém e Nairóbi, e, na última edição em Dakar, foi realizado como uma oferta dentro do próprio FSM8. Informações adicionais sobre a participação da juventude luterana na Cúpula dos Povos estão disponíveis em: <http://criatitudejeieclb.blogspot.com.br/> e em <http://fld.com.br/ index.php/fld/noticia/criatitude_na_cupula_dos_povos_jovens_desafiam_para_pensamento _coletivo_no_/>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. 7 Informações adicionais em: < http://religioespordireitos.blogspot.com.br/>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. 8 Para informações adicionais, veja FACHIN, Patricia. Entrevista – Roberto Zwetsch. FMTL: Uma comunidade teológica mundial. In: IHU Online. Publicada em 23 de Ago. 2010. Disponí6
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e) O cenário de mudanças climáticas aumentou a incidência e a intensidade das catástrofes e das situações de emergências, em todas as regiões do nosso planeta, também no Brasil. Tal cenário exige a profunda revisão e mudança dos padrões de produção e de consumo, que estão na base da crise ambiental que vivemos. Mas tal cenário também exige a qualificação da resposta preventiva às catástrofes e de mitigação dos efeitos das emergências. Temos testemunhado, em diferentes contextos, a importância da ajuda humanitária a comunidades que vivem em situações de risco e/ou que sofreram as consequências de desastres. A FLD, como braço social da IECLB, desde 2011 incluiu a ajuda humanitária como uma de suas dimensões de atuação. Como parte deste mandato, em novembro de 2011 realizou um seminário com representantes sinodais, a partir do qual se construiu uma proposta de mecanismo de resposta de emergência da IECLB, que ainda está em fase de implementação. Este mecanismo prevê diferentes níveis de resposta (local, sinodal e nacional) e deverá trabalhar fortemente na capacitação de pessoas para a prevenção de desastres e no atendimento psicossocial às vítimas de desastres9. f) Em consonância com o projeto do COMIN junto à Rede Sinodal de Educação, que prevê a educação para a inclusão, o diálogo intercultural e inter-religioso, a FLD estabeleceu uma parceria com vistas à Educação para a solidariedade. Tal proposta visa ampliar, articular e integrar as diferentes iniciativas de educação que fomentem a prática da solidariedade na comunidade escolar e nas suas respectivas sociedades. Tal iniciativa também visa ampliar a solidariedade com as diferentes iniciativas e projetos sociais e ambientais, com vistas a ampliar a sua sustentabilidade. O postulado de fundo é que o ser humano é gregário e com aptidão à colaboração. O seu desejo inato à solidariedade precisa ser estimulado e educado. O pri-
vel em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view= article&id=3773&secao=357. Acesso em: 11 de Maio 2012. A riqueza da produção teológica do FMTL pode ser acessada, por exemplo, nas publicações de coletâneas das diferentes edições do fórum. SUSIN, Luiz Carlos (org.). Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006. SUSIN, Luiz Carlos e SANTOS, Joe Marçal Gonçalves dos. Nosso planeta, nossa vida: ecologia e teologia. São Paulo: Paulinas, 2011. 9 Para informações adicionais, veja: <http://fld.com.br/index.php/fld/emergencias/. Acesso em: 1 de Ago. 2012.
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meiro seminário sobre a educação para a solidariedade foi realizado em agosto de 201210. g) A FLD mantém um Fundo de Projetos, através do qual apoia pequenos projetos de diferentes áreas temáticas. Uma das áreas prioritárias da FLD é a temática da justiça econômica, através da qual são apoiados pequenos projetos de geração de trabalho e renda, e que trabalham com a perspectiva da economia solidária. Tais projetos objetivam melhorar o nível de organização e de gestão da entidade proponente (seja associação ou cooperativa), qualificar os produtos e aumentar a renda das pessoas envolvidas. Há boas experiências de pequenos projetos que fazem uma importante diferença na vida de pequenas organizações e das pessoas nelas envolvidas. Um dos desafios é aumentar o número de pessoas que consomem produtos da economia solidária, ou seja, difundir este modelo de produção e de consumo. Por isso, a FLD desenvolveu uma iniciativa que visa ampliar o apoio a propostas de comércio justo e de economia solidária. Através desta iniciativa, a FLD se propõe a divulgar e intermediar produtos da economia solidária junto a comunidades e instituições luteranas. Através desta proposta visa também ajudar a refletir sobre novos modelos de produção e de consumo11.
Considerações finais Na essência, o que está em questão no atual diálogo sobre o Bem Viver é a crítica ao modelo de desenvolvimento que predomina nas nossas sociedades. Assim, este diálogo está em sintonia com a busca de modelos de desenvolvimento que sejam ambientalmente mais sustentáveis e mais inclusivos do ponto de vista social, econômico e cultural. Tais modelos de-
A Rede Sinodal de Educação compõe-se atualmente de 59 instituições, em 6 estados brasileiros, com principal concentração no Sul. São 42 instituições no Rio Grande do Sul, 10 em Santa Catarina, 4 no Paraná e uma em cada um dos estados: São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso. No país são 36.000 alunos. Informações adicionais em: <http:// www.redesinodal.com.br/novo/index.php>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. Uma breve síntese sobre a fundamentação da proposta de Educação para a Solidariedade está disponível no Jornal O Caminho, Agosto 2012, Ano XXIII, Número 8, p. 18 http://www.jornalocaminho.com.br/ virtual/. Acesso em: 13 de Ago. 2012. 11 Informações adicionais em: <http://fld.com.br/index.php/fld/comercio/>. Acesso em: 1 de Ago. 2012. 10
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verão levar em conta alguns princípios fundamentais, entre os quais: a) defesa da terra e do território; b) defesa da mata e da biodiversidade; c) preservação das águas e dos peixes; d) preservação das sementes crioulas; e) preservação das culturas nativas; f) preservação da culinária e das receitas tradicionais; g) modelo de vida comunitário, com ênfase na partilha, na hospitalidade e na solidariedade (sem grandes desigualdades); h) viver sem acúmulos e sem desperdícios; i) valorizar o passado e a tradição e mostrar contentamento com o momento presente12.
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Para uma visão ampliada sobre modelo de desenvolvimento que promova o direito à soberania e à segurança alimentar, veja Vida Sem Fome, disponível em: <http://fld.com.br/index.php/ fld/publicacao/vida_sem_fome/>. Acesso em: 1 de Ago. 2012.
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II. Bem Viver na perspectiva indĂgena
A partilha Eva Canoé 1
Boa tarde! É uma alegria muito grande estar participando pela primeira vez de um seminário como este do COMIN. Em Rondônia eu participo de vários seminários, por fazer parte da educação, por atuar no movimento e por defender os direitos dos povos indígenas. Eu vim aqui falar sobre o Bem Viver. Antes de vir para cá, nós tivemos um encontro ecumênico em Porto Velho, do dia 18 ao dia 20 de abril, onde nós também fizemos uma reflexão sobre o Bem Viver entre as diferentes religiões. Para iniciar, eu quero falar um pouco sobre a história do meu povo, que não é diferente da história de outros povos indígenas em nível de Brasil. O povo Canoé é um povo que quase foi extinto. A nossa terra tradicional fica no sul de Rondônia. E nós somos 40 pessoas. O meu povo foi tirado da sua terra e levado para outra terra tradicional, chamada Guaporé, que fica nas proximidades de Guajará-Mirim. O sul de Rondônia teve todo um processo histórico muito triste. Durante a colonização a maioria dos homens Canoé foi assassinada. Sobraram muitas mulheres. Inclusive eu sou de uma geração só de mulheres, porque a minha mãe ficou viúva muito cedo e a minha avó também. Teve uma luta muito grande e, nesse contexto histórico da migração de meu povo, os Canoé perderam a terra tradicional e a língua materna, porque cada um seguiu um caminho diferente. A minha avó foi obrigada a se separar do meu avô, porque eles não podiam ficar juntos. A minha mãe foi criada longe do pai dela e todas as outras famílias também ficaram em lugares diferentes.
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Educadora e liderança do Povo Canoé da Terra Indígena Canta Galo, do município GuajaráMirim/RO.
Hoje, o povo Canoé vive em várias terras diferentes em Guajará-Mirim. Na minha família somos nove irmãos, sendo sete mulheres. Todas as sete mulheres, por não termos homens do povo Canoé para novamente constituir o nosso povo, somos casadas com homens de outra etnia. Eu nasci na Terra Indígena do Rio Pacaás Novos. Mas fui criada em Terra de Sagarana, onde eu cresci, constituí família e construí toda uma história. Nesta minha história, desde menina, percebi que era proibido falar a língua materna. A minha avó sofreu todo este processo, todo esse preconceito. Isso foi tão forte para minha avó que, durante muitos anos, ela se recusava a falar sobre a história do povo dela. Ela negava. Tanto é que ela queria que todas nós, netas dela, quando mocinhas, casássemos com um não indígena, para que também pudéssemos tornar-nos “civilizadas”. Só que eu nasci e acredito que vim com a missão de assumir a minha identidade. Desde menina eu sempre fui um pouco rebelde, rebelde no bom sentido, de não aceitar as coisas. Nunca neguei minha identidade de indígena. Enquanto minha avó negava, eu, ainda menina, assumi essa identidade. Conforme eu fui crescendo, fui observando que o meu povo foi massacrado, foi perseguido, foi violentado e coloquei em mim que teria que fazer algo. Já que eu não podia fazer pelo meu povo, porque minha avó vivia em um lugar diferente, eu em outra terra, decidi que ia fazer um trabalho ao lado de outros povos. Continuo fazendo esse trabalho até hoje, que é defender a língua materna. Aprendi a língua materna do povo do meu marido. Ele é do povo Oro Win, de Pacaás Novos. Eu aprendi a língua do povo dele, eu aprendi a cultura do povo dele. Um aspecto da cultura do meu povo original e que está dentro de mim, que é essência em mim, que é algo muito importante para mim, é a partilha. A minha mãe me repassou este valor, apesar de ter vivido e sido criada longe da terra indígena tradicional e longe do povo dela. Minha mãe hoje é uma senhora de 66 anos e mora na terra dos Sagarano. A gente não sai da casa dela com a mão vazia. Isto para mim é uma coisa muito magnífica. Porque, apesar de todo histórico que eles viveram, a partilha é uma coisa que permaneceu na minha mãe e nas minhas irmãs. A gente ainda vive esta partilha e, para mim, isso faz parte da minha vida. Partilhar o pouco que se tem com aqueles que não têm. Essa partilha, esta coisa desse Bem Viver eu aprendi com a minha mãe e isso eu continuo fazendo até hoje.
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Hoje, é claro, com todo esse processo histórico de colonização, de violação dos direitos dos povos indígenas, nós tivemos muitas perdas. Perdas com as línguas maternas, com as terras e com os modos tradicionais. Mas, por outro lado, eu acredito que nenhum povo esquece definitivamente sua origem, mesmo que a gente passe anos e anos longe, sem praticar. Porém, a essência da nossa história, da nossa origem, que faz parte da nossa cultura, permanece viva dentro de nós. Além disso, hoje os povos indígenas estão diante da tecnologia, por exemplo, hoje existe luz para todos. A gente pode analisar isso e dizer que, por um lado, é um mal viver. Porque, se antes havia a partilha, hoje a geladeira chegou e pode mudar esse hábito. Mas, digo com toda a certeza que, na minha comunidade, a gente ainda consegue viver a partilha, a gente ainda consegue ter o Bem Viver. A minha comunidade é Canta Galo e fica a 48 horas via fluvial do município de Guajará-Mirim. Para chegar lá só mesmo de barco. Lá vivem oito povos diferentes. Lá a gente ainda consegue viver a partilha. Eu vejo que a realidade dos parentes Kaingang, dos Guarani e dos outros é bem diferente da nossa realidade. Lá, do nosso lado, nós ainda temos nossas terras, ainda temos as nossas florestas. É claro que lá em Rondônia todos sabem que nós temos um grande problema, que é a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, e mais uma que ainda está em projeto. Mas a gente consegue viver a partilha, a gente ainda tem essa riqueza. Olhando para a realidade do povo do sul, eu posso dizer que nós, apesar de tudo o que enfrentamos, ainda vivemos num paraíso. Porque o meu povo ainda consegue, juntamente com outros povos, ter o peixe, ter a caça e estamos ainda longe de toda essa violência que chegou mais perto dos povos daqui do sul, entre os quais os Kaingang e os Guarani. Eu falo isso porque acompanho a luta dos povos da Rondônia, que é a luta pela terra, e, para mim, ela é muito importante. Eu falo isso porque, como indígena, eu não acredito que nosso povo não tinha civilização. Até porque, quando o Brasil foi invadido, todos os povos indígenas que aqui estavam, tinham sua própria história, tinham sua organização, tinham o seu jeito de viver e, principalmente, em harmonia com a natureza. A gente vivia no Bem Viver. A gente vivia na simplicidade, mas vivia bem. Os povos
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indígenas sempre trabalharam com a agricultura, mas, em nenhum momento, destruíram a natureza. Em todo viver e em toda cultura dos povos indígenas, a mata estava aí, sendo preservada. Hoje, o Brasil só não é totalmente uma selva de pedras, porque existem as terras indígenas demarcadas na região amazônica. Existem as florestas do Brasil, que são as terras indígenas. Para nós, essas florestas, essas terras demarcadas fazem parte, estão ligadas com o Bem Viver dos povos indígenas. Na minha concepção de mulher indígena, de educadora, eu vejo que nós conseguimos viver o Bem Viver. Apesar de tudo que nós vivenciamos, de todos os constantes impactos, de todas as violências diárias nós conseguimos viver o Bem Viver de um modo específico. Nós ainda conseguimos viver a partilha, nós pensamos no outro e nós conseguimos, como povos diferentes, viver em harmonia. Exemplo é o caso da terra onde eu vivo, com oito povos diferentes, cada um com uma língua diferente, de um jeito diferente de se organizar, mas nós conseguimos viver em paz até hoje. Isso é uma coisa bem real, em que se vive o Bem Viver apesar de tudo que nós temos hoje, que é prejudicial à vida dos povos indígenas. Falar do Bem Viver é algo muito complexo, porque existem muitos modos do Bem Viver. Nós temos que diferenciar bem, pois o Bem Viver é algo que é bom para todos, para os povos e para a natureza também. O Bem Viver é bem diferente de viver bem à custa dos outros. Na sociedade envolvente, na sociedade não indígena, existem muitas pessoas que dizem: “eu quero viver bem”; mas querem viver bem às custas dos outros, não pensam no seu próximo. Veja o exemplo que aconteceu com aquela parente. Suas colegas não indígenas todos os dias iam de carro para o trabalho, mas ninguém nunca ofereceu carona para ela. Já o colega indígena ofereceu carona para ela. Outro exemplo: eu vivo em GuajaráMirim. O meu marido é o único indígena de lá que tem habilitação. Nós temos um carro da associação. Quando ele sai de carro não consegue passar por um indígena sem dar carona. Os funcionários da FUNAI passam na rua, veem vários indígenas caminhando debaixo de sol e chuva e nem sequer param o carro. A FUNAI tem os carros para prestar serviço aos povos indígenas, mas não o faz. Os funcionários da FUNAI são não indígenas. O
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meu marido, que é indígena dá carona e deixa esses parentes no lugar onde necessitam ir. Então, é assim que nós sabemos compartilhar. Nós ainda nos preocupamos com o outro. Isso é parte do Bem Viver, isso é viver bem, é pensar em si e pensar no outro. Outra questão que me chama atenção é que hoje, com a tecnologia avançada, os povos indígenas adquiriram costumes como os dos não indígenas. Adquiriram o costume de ter televisão, de ter geladeira, de ter bicicleta, de ter carro e todas essas coisas. Acredito que faz parte do Bem Viver uma família que tem uma televisão abrir sua casa para aquela que não tem. E assim as pessoas vão lá assistir televisão na casa daquela que tem. É o caso de um professor jovem, um colega meu. É um casal, mas eles não têm filhos. Só ele tinha televisão na comunidade e, todas as noites, a casa dele ficava lotada com crianças, com pessoas adultas. Isso chamou atenção de um missionário do CIMI, um grande colega nosso, que a Jandira conhece. É o Dr. Gil, ele é um francês, um missionário francês. O Gil ficou observando que todos os dias, na casa daquele parente, estava cheio de parentes assistindo televisão. Então, Gil se aproximou do professor e disse assim: Cacamí (Cacamí é o nome dele na língua materna), “você não cansa do movimento de todas as noites? Você dá aula de manhã e de tarde, você não gostaria de ter um momento só para você e sua esposa e assistir televisão?” Ele olhou assim e disse: “é, mas as pessoas que vêm aqui na minha casa são pessoas mais velhas do que eu, são pessoas idosas e elas estão vindo aqui na minha casa para assistir televisão e eu não posso mandar elas embora.” A gente percebe o respeito que ele, como jovem, tem com os mais velhos. Em nenhum momento ele pensou nele, ele também nem pensou em dizer que queria ficar sozinho, “vão para casa e deixem minha televisão aqui só para mim”. Isso eu também vejo como um exemplo de Bem Viver, de saber partilhar. Isso ainda está muito vivo entre os povos indígenas, mesmo entre os parentes aqui presentes, que têm uma vivência bem diferente da nossa realidade. Nós povos indígenas ainda praticamos o Bem Viver. E o Bem Viver para nós está ligado com a terra, com a natureza, com todo o meio ambiente e com as pessoas a nossa volta. Temos muitos exemplos e muitos jeitos
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de viver esse Bem Viver. Nós indígenas e não indígenas somos convidados a fazer parte da construção desse Bem Viver. Eu acredito que, apesar de todo esse capitalismo, de todo esse progresso que o Brasil precisa para tornar-se um país de primeiro mundo, eu acredito que é possível nós, pessoas humanas solidárias, sermos capazes de juntas construir um Bem Viver onde cada qual possa viver respeitando um ao outro e de acordo com as necessidades. Eu trouxe para cá algumas fotos que para mim fazem parte do Bem Viver. São fotos da minha comunidade. É o dia a dia da minha comunidade, fotos do movimento indígena e que estão ligadas ao Bem Viver. Eu trouxe uma música, que é do povo do meu marido, que se chama Tâmara. É um canto de taboca e eu quero finalizar minha fala, mostrando estas fotos para vocês. Elas resumem o que significa o Bem Viver na atualidade para os povos indígenas. Obrigada.
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Viver a cultura Saravi Maca Deni 1
Boa tarde aos parentes, boa tarde a todos. Amigo e Amiga! Quero contar histórias do povo Deni do Rio Xeruã. Nós somos um povo indígena que luta pela terra. A luta é pela sobrevivência com esta terra. Com ela, sempre de novo queremos recomeçar. Sou do povo Deni com Kanamari, são dois povos da região do Rio Xeruã. Nós também nunca esquecemos de nossa cultura. Na nossa história, sempre sofremos com os não indígenas. Os primeiros entraram como seringueiros. Quando eu era criança, eu ficava com vergonha deles. Eu sempre ouvia sobre eles. A mamãe contava histórias. O vovô também contava que eles eram maus. Por isso eu não ia com eles. Quando cresci também sofria porque os não indígenas tomavam tudo, até mesmo a terra. Eles também destruíam os peixes, os animais, a madeira. Mas eu tinha que lutar pelo que era nosso, pela nossa terra. Quando me formei, comecei a andar com o pessoal do CIMI. Participei de reuniões. Comecei a viajar para a Europa. Sempre lutando pela terra. E hoje nós estamos vivendo dentro da nossa terra do povo Deni do rio Xeruã. Estamos lá e temos de novo os bichos, os animais, os peixes, a mata. Lutei muito com o meu povo! Levei 20 anos para recuperar a nossa terra. Foi muita luta no município de Itamarati. Nós sofríamos, brigávamos com as autoridades. Eu dizia: “Esta terra não é terra de vocês. Essa é a nossa terra. Nós somos a origem da terra. Nossos bisavôs viviam nessa terra”. Nós lutamos com muitos vereadores do município e outras autoridades do Estado.
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Liderança indígena do povo Deni do Rio Xeruã do Amazonas/AM.
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Fomos para Manaus e colocamos placas nos igarapés e nos rios. Enchemos de placas dizendo que o território era nosso! E o pessoal, todo mundo bateu palmas e dizia que era dos indígenas. E eu também dizia que o indígena vai ganhar. Por isso nós estamos lá até hoje. Hoje nós estamos vivendo na terra e até hoje nunca esquecemos a nossa cultura. Nossa cultura também é ensinada na escola. Quando o Pastor Walter Sass chegou lá nós não tínhamos escola. Também não sabíamos ler nem escrever. Nós só tínhamos a própria língua. Mas o pastor do COMIN chegou lá e deu aula para nós. Ele sempre diz: “assim, nunca esquecem a cultura”. Eu sempre penso comigo: “não, nunca esquecemos não, nossa cultura sempre continua”. Na escola a aula é na nossa língua materna e em português. Hoje tem professor indígena e tem agente de saúde indígena. A terra precisa sobreviver. Para isso não podemos desmatar. A terra e o mato têm espírito e sempre nos alertam. O passarinho e o animal sempre avisam se acontece algo. Tudo no mato está pronto para nos avisar. E nós sabemos o que vai acontecer e o que não vai acontecer. Sabemos se o verão vai ser forte, se vai ser fraco ou se vai ter muito inverno. Nós sempre vivemos isso. A nossa comunidade também divide tudo. Na caça, na coleta cada um ganha um pedaço. Não se esquece de nenhuma pessoa. Também não se compra, se divide. Tem que ser sempre assim. Igual para todos. Não existe um ganhar um pedaço maior e outro ganhar menos, mas tudo é igual. Nós sempre viveremos assim na cultura Deni. O contato com o não indígena é difícil. Nos primeiros tempos nós sofríamos muito quando íamos para a cidade. O pessoal dava bebida forte e nós bebíamos. Os indígenas caiam na lama e o pessoal os chutava. Mas isso foi mudando. A outra história difícil é do pastor de igreja batista. Quando eu era novo, o pessoal da batista chegou para fazer oração. Eles me batizaram e eu nem sabia. O pastor disse assim: “povo indígena, vocês não podem comer o peixe de couro, nem a caça. Vocês só podem comer o peixe de escama”. O pessoal ficou morrendo de fome durante cinco dias, o povo querendo comer o peixe, mas não podiam. Eu não aguentei mais, estava com muita
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fome e disse: “eu vou aproveitar e vou comer”. Todo mundo aproveitou e comeu de novo. Depois de um tempão, eu cheguei em Manaus. Foi a primeira vez que eu cheguei em Manaus. Aí eu vi o pastor e ele me perguntou: “Saravi, como está, irmão? Como está tua crença?” Eu disse: “Rapaz, eu deixei de crer!”. E ele disse: “Mas isto é um pecado!”. Eu disse: “Não é não, pois foi Deus quem deixou este peixe para nós comermos. E tu estavas proibindo a nossa alimentação!”. Hoje eu sou o líder tuxaua, representante do povo indígena Kanamari e do povo Deni. E nós vivemos tudo isso aí que eu contei. Hoje o peixe está lá, o pirarucu pesa 200 kg. Outros animais que estão lá é o peixe-boi e o tracajá. Hoje nós estamos preservando nossa terra. Demarcamos a terra. Lutamos até o registro e a FUNAI demarcou. Hoje, lá tem novamente o peixe, o tracajá, o peixe-boi, o pirarucu. A nossa cultura continua sempre, não a esquecemos. Hoje nós estamos lá dentro vivendo da nossa terra. É isso, muito obrigado.
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A reciprocidade Bruno Ferreira 1
O foco da minha caminhada é a educação. Desde 1991 tenho trabalhado com a educação indígena, especialmente com o povo Kaingang. Venho me dedicando às políticas públicas no estado Rio Grande do Sul e também ampliando para todo o Brasil. Neste setor encontramos muitas dificuldades, devido à grande diversidade étnica e cultural do país. Mas, enfim, eu tenho contribuído para estas construções. Eu queria agradecer ao COMIN por ter me convidado e ter proporcionado meu ingresso no curso de pós-graduação aqui na EST e COMIN. Foi um curso muito bom! Eu aprendi muito e por isso quero agradecer ao COMIN. Quero agradecer a todos que estão aqui. Considero difícil falar do tema chamado Bem Viver. Ele é um bom tema e um bom pensamento no contexto brasileiro em que se vive. O desafio é ver como eu posso contribuir para a reflexão a partir do contexto Kaingang em que vivo. O povo Kaingang vive num contexto muito complexo. É difícil falar do Bem Viver a partir da história de um povo que tem uma caminhada e uma significação tão específica. É difícil falar do tema a partir de um povo que vive num contexto de exploração das mais variadas formas. Mas enfim, me arriscarei a fazer isso. Os Kaingang historicamente ocuparam um vasto território2, basicamente as florestas de pinheirais distribuídos na região Sul (Paraná, Santa Catarina e planalto riograndense), no oeste paulista e uma parte de Missiones na Argentina. Os primeiros contatos amistosos de alguns grupos Kain-
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Mestrando em Educação na UFRGS. Historiador e Educador Kaingang. Os Kaingang continuam ocupando esse seu território original de outras formas, como locais de trânsito para venda de seus artesanatos.
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gang com grupos representantes dos colonizadores aconteceram por volta de 1812. Isto foi na região de Guarapuava (PR), onde uma frente de exploração militar portuguesa avançava pelo território Kaingang. Mais tarde esta frente de exploração atingiria a região dos campos de Palmas nos meados da década de 1830, e pouco depois, Campo-Erê e os Campos Novos e, finalmente, nos meados de 1840, o norte do Rio Grande do Sul, campos de Nonoai, campos de Guarita e campos de Erechim. Neste período também os territórios do povo Xokleng na região de Lages (SC) começaram a ser ocupados, provocando muitos confrontos (lutas) entre indígenas e colonizadores. Tratarei aqui de algumas das concepções dos Kaingang sobre a maneira de ver as relações com o mundo. A forma como a sociedade ocidental trata o mundo, a terra e o território é diferente como os povos indígenas os tratam. Uma das concepções mais importantes para os Kaingang é a reciprocidade. Quero partir da relação com a terra e do território para então pensar o que é Bem Viver para estas comunidades indígenas. O tema tem que ser refletido para dentro de um mundo destruído. Como vamos viver as nossas concepções de mundo em local destruído? Os Kaingang, a partir do século XIX, perdem grande parte de seus territórios, e começam a fazer algumas escolhas para sobreviverem. Isso significa fazer opções por modos de vida ocidentais. Neste contexto, o seu modo de vida, que tem referenciais em seu mundo e em sua cosmovisão, fica comprometido. É importante dizer que, para todas as comunidades indígenas, ou para a maioria delas, o seu território tem uma importância social. A terra está ligada à reprodução social e a todos os aspectos da vida desses povos. Se pensarmos na terra como um bem, devemos pensá-la como um bem cultural e não como um bem material e nem como um bem privado. Temos que pensar a terra num contexto coletivo e mais amplo. A terra não é simplesmente um espaço onde você reproduz sistematicamente lucro, riquezas materiais. Mas é um espaço onde você reproduz e ressignifica toda a cultura, a língua, as crenças. Neste caso ela se torna um bem coletivo.
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No século XIX, com a lei de terra de 1850, esse nosso bem chamado território começa a ser destruído. Com esta lei começam a surgir os grandes latifúndios em nossos territórios. Assim, até hoje temos a realidade de grandes propriedades espalhadas pelo sul do Brasil entremeadas pelas comunidades indígenas com pequenas frações de terras. Neste contexto as comunidades indígenas tentam sobreviver enquanto cultura. A pergunta é: de que maneira estas comunidades sobrevivem neste contexto? Os Kaingang sofrem muito com esta realidade. Eu lembrava o meu avô, quando o parente Deni falava, mostrando um peixe de 250 kg. Na Terra Indígena de Guarita, nós pescávamos muito, matávamos peixe com flecha, porque tinha muito peixe. E hoje não se encontra mais nada, talvez alguns lambarizinhos. É o único peixe que ainda tem por lá. Dessa forma fica meio complicado pensar em Bem Viver para o povo de Guarita. Outra situação de menos vida em nossas terras Kaingang é o uso de agrotóxicos. Para a terra produzir é necessário usar agrotóxico direto. É usado secante para secar o mato, secante para botar na soja, secante para botar no milho. Então, isso é muito agrotóxico e a terra fica sem sentido para a gente, enquanto dono dela. Nós tínhamos um sentido para a terra e ela tinha um sentido para nós. Ela tinha valor para nós. Hoje, o valor da terra está na grande produção de soja. Este contexto que estou apresentando é para nos dar conta, para perceber que quando tratamos do assunto Bem Viver nós não podemos passar a imagem de que tudo está bem, sem estar bem. Não posso enganar a mim mesmo. Eu posso até ter uma vida tranquila, mas sei que ali na minha frente as coisas não estão tranquilas. Este é o nosso desafio! Eu posso até me sentir bem enquanto estou aqui, no meio do grupo, fazendo uso da palavra, mas então devo pensar no que está acontecendo lá fora e analisar como acontece o Bem Viver. Hoje, por exemplo, o Bem Viver na comunidade é você ter luz elétrica. Alguns podem dizer que luz elétrica não é Bem Viver, mas que é ganhar uma conta todo mês. Neste caso, não é luz para todos, mas é conta para todos. Analisando estes projetos chamados sociais percebe-se que se paga um preço, um valor social muito alto. Não estou dizendo que isso é ruim.
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Eu estou dizendo que tem um outro lado desse negócio, que a gente não está percebendo. Apresento o exemplo de minha mãe, que foi a última a ganhar a energia elétrica na nossa aldeia. O meu pai até hoje tem o seu rádio a pilha. Ele não coloca o rádio na tomada porque ele tem medo que queime. Ele compra e usa pilha no rádio, mesmo que seja mais caro do que pagar energia. Mas ele faz isto. E isso me prova que meu pai vive bem. Ele não quer ter energia para ouvir a música dele. Mesmo que eles tenham energia na casa, ele quer um jeito de viver diferente. Dentro da nossa casa é uma loucura. Eu observo a minha mãe e o meu pai. Minha mãe tem energia na casa e o meu pai tem rádio a pilha. Quando falta energia é um caso sério. Daí ela não faz janta, porque não tem luz. Aí ela lembra da vela. Depois que colocaram luz elétrica lá na terra da Guarita, num mês as lojas de eletrodomésticos foram invadidas por indígenas. Eles compraram freezer, televisão, geladeira, batedeira, forno elétrico e todas essas coisas movidas a energia. Com isso, se esqueceram de assar o bolo na cinza. Agora vai para o forno elétrico. Com o uso da parabólica a conta de luz foi lá em cima, não conseguiram pagar e aí cortaram. Começaram a fazer os “gatos” e agora, lá na comunidade está cheio de “gatos”. O que eu quero dizer com isso é que os Kaingang não estavam preparados pra enfrentar um mundo desse jeito. É necessário que se faça uma reflexão ampla sobre tudo isso porque envolve muita coisa. Assim, a questão não é só a energia elétrica em si, mas envolve muitas outras coisas. A partir da energia vem o governo e abaixa o imposto dos produtos que consomem menos energia para incentivar a compra. Comprando se gasta mais energia e as empresas que vendem energia ganham mais. E pior do que isso, será preciso construir mais barragens e continuar destruindo nossos territórios indígenas. Esse sistema não tem volta e, quando você se dá conta, tem toda uma concepção diferente de perceber o mundo. E essa concepção indígena fica meio vaga e a gente tenta literalmente sobreviver nesse sistema, neste mundo.
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De uma forma ou outra se vai ter que pagar esta dívida da destruição do mundo. Enfim, para você pensar hoje na Terra Indígena de Guarita e no Bem Viver, a partir dessa relação com a natureza, tudo é muito vago. Quando se fala de indígena se pensa: “Ah, o indígena é aquele que vive na natureza”. No sul (do Brasil) está muito difícil viver da natureza, não dá mais para viver da natureza, você não tem mais a natureza para viver dela. É preciso reconstruir ela, mas como você vai reconstruí-la? A busca por reconstrução não é pouca, é muito trabalhoso. Mas é importante dizer que os Kaingang sempre foram de fazer trocas. Uma economia de reciprocidade, apesar de todos os males, ainda está muito presente. Embora o freezer tenha atrapalhado, não se deixou de fazer as trocas. Então é preciso achar novas formas de viver da reciprocidade. Essas tecnologias não devem nos barrar em nossas formas de viver. Devemos manter aqueles hábitos de viver em reciprocidade que tínhamos. Assim por exemplo, quando se carneava um porco ou fazia uma caça, todo mundo ganhava uma parte. Depois, em troca, quando o vizinho carneava, também todo mundo tinha a sua parte de carne. Agora como manter esse sistema de troca? Penso que a reciprocidade entre os Kaingang ainda é forte. Outro exemplo, na casa de um Kaingang, pelas quatro horas da tarde sempre vai ter alguma coisa para te oferecer. Não é porque você está com fome, mas faz parte do hábito, faz parte da relação com o outro. Faz parte da reciprocidade. No caso dos não indígenas, eles pensam em acumular bens e esquecem de viver. Muitas vezes o discurso não é a prática. Só que dificilmente os Kaingang que estão presentes aqui no seminário conseguem produzir para acumular. Ao olhar o outro de fora para dentro, pode até imaginar que isso acontece. Do olhar do Kaingang isso não acontece. Numa sociedade onde você tem a reciprocidade como o regulador dessas relações não vai se produzir acúmulo. Na economia interna de uma comunidade indígena dificilmente encontramos um número elevado de bens exclusivos. Na maioria são bens de troca ou de circulação. A reciprocidade acontece em todos os níveis, também nos rituais. Assim, nos rituais o cunhado é mais importante que o irmão. Os Kaingang têm uma relação de
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parentesco muito próximo. O grupo local, concebido como coletivo Kaingang é, antes de tudo, um grupo de parentes. No contexto das aldeias, as pessoas trocam bens e por meio do casamento exogâmico entre os que pertencem à metade kamë e os que pertencem à metade kanhru dão origem às pessoas, as quais terão uma vida muito próxima de seus cunhados. Esta proximidade acontece até na sua morte e após a sua morte, quando vão se compor novamente na aldeia dos mortos (mundo dos mortos). Esta reciprocidade, portanto, é vivida pelos Kaingang em todos os momentos da vida. E este é um aspecto fundamental da vida e da cultura do povo Kaingang e que pode indicar para o Bem Viver.
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Viver com a natureza Francisco Rokán dos Santos 1
Para falar do Bem Viver ou viver bem, eu trouxe junto a minha esposa, Lurdes, e minha filha Beatriz. Elas estão junto conosco, nos acompanhando. Eu sou um desses pais indígenas que gosto de levar os filhos comigo para conhecer esse caminho. Assim eles vão começando a ver como são as lutas, como são as caminhadas, como é o viver. Sou uma dessas lideranças. Ontem, quando nossos parentes e nossos parceiros falavam do Bem Viver eu escutava e refletia. Meu estudo é na minha mente. Então ontem à noite, quando fui abrir meu computador dentro de mim, dormindo, refleti sobre o que eu ia colocar hoje para este povo que está aqui, para esses parceiros e companheiros. Comecei a analisar como o povo indígena Kaingang vive aqui no nosso estado do Rio Grande do Sul. Cheguei à conclusão que o nosso estado do Rio Grande do Sul não é como outros estados dos nossos parceiros indígenas. Há estados onde hoje os indígenas ainda têm suas grandes florestas, têm os seus grandes rios, têm os peixes. Nosso estado, nessa parte está perdendo, porque nós aqui, os indígenas Kaingang do sul, não temos floresta. Eu tenho caminhado muito, eu caminho bastante de bicicleta. Todos os anos eu faço essa caminhada do Sepé Tiaraju, junto com os companheiros e parentes Guarani. Eu faço 300 e poucos km de bicicleta, atravessando essas fronteiras de Rio Pardo até São Gabriel. Eu analiso muito minha caminhada. Fico pensando: poxa, quando eu tinha cinco ou seis anos, eu ainda cheguei a conhecer a floresta e me
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Artesão, liderança Kaingang da Aldeia Foxá do município de Lajeado, envolvido com as causas do povo Kaingang do Rio Grande do Sul.
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criei no modo do Bem Viver com meu pai, com minha mãe e com meus irmãos. Hoje eu me sinto chocado, eu estou chocado dentro de mim. Cheguei a conhecer as matas. Cheguei a conhecer frutas que nós coletamos com a minha mãe. E com meu pai cheguei a conhecer a caça. Meu pai foi um desses indígenas que nunca usou arma de fogo. Ele sempre caçou com suas próprias armas, que são as flechas. Eu sempre tive o prazer de ir junto com ele. Via-o atirando em caças grandes, pássaros grandes. A nossa carne de galinha eram pássaros grandes da própria mata, da própria natureza. Nossas caças eram o porco do mato, a anta, e outros animais grandes. Hoje eu fico triste quando atravesso essas fronteiras, quando eu começo a ver coisas que não me agradam. Hoje meu estado está completamente poluído, não só os rios, mas a nossa mãe terra. Ela está morrendo. Nós tentamos fazê-la viver de novo, fazê-la respirar de novo, mas o próprio fazendeiro, o próprio granjeiro, os grandes colonos estão matando a terra com veneno. Hoje, quando saio atravessando essas fronteiras, vejo as plantações de soja transgênica. Eu só vejo plantações de sementes transgênicas, elas estão matando a nós mesmos. Às vezes nós não sabemos do que estamos morrendo, mas nós estamos morrendo das próprias sementes transgênicas. Quando eu vi no vídeo sobre as sementes Guarani eu lembrei que nós também usávamos sementes crioulas. Essas são sementes que nos dão a vida, nos dão sustento, fazem bem para a saúde. Eu olho para os dois lados do Bem Viver. Eu vejo aqui o nosso mato. É só plantação de eucalipto, de acácia e de pinos. Nosso estado está cheio disso, acabou o nosso mato nativo. Acabou o mato que dava o Bem Viver para a gente, aquele mato que dava uma saúde boa, uma sombra boa, uma sombra não poluída. Aquele outro mato, que não é nativo, está acabando com a própria humanidade. Existem várias formas do Bem Viver. Bem Viver, por exemplo, na minha comunidade Kaingang é ter um pouco do nosso mato, dos peixes, dos rios. Eu digo que nós indígenas aqui do estado, nós ainda tentamos preservar o pouco que sobra. Defendemos o pouco que temos para manter
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a nossa cultura. Se não tem mato, eu não tenho minha cultura. Se eu não tenho terra, eu não tenho meus rituais. Se eu não tenho o mato, eu não tenho minha fonte de água boa que eu tomo. Então, eu tenho que defender a floresta para ter o Bem Viver para as futuras gerações. Muitas vezes eu digo que o que vale hoje em dia é o dinheiro. É o dinheiro que manda. Dizem que tem fiscalização para defender as matas, para defender os pássaros, para defender os rios. Mas quando cai o dinheiro, daí liberam tudo. Aí acaba tudo e no lugar do mato nativo, plantam eucalipto, pinus e acácia. Às vezes eu digo: poxa, quem será que vai me ajudar a defender esta floresta? Há três anos eu faço essa caminhada de bicicleta, de que falei antes. Às vezes chego num município e começo a palestrar, às vezes tem algum vereador ou algum prefeito que ouve a minha palestra e me atende. Isto me alegra porque eles estão tentando acabar com a plantação de eucalipto e começar a plantação de árvores nativas. Então aquele município ajudou a defender a floresta, ele colocou isto em sua mente. E se nós não fizermos isso, nós todos vamos morrer. O veneno vai nos matar. Não vamos chegar a 30 anos e já estamos mortos; não vamos chegar aos 40 anos e já vamos estar velhinhos. O ar é que traz o veneno até nós, o vento é que traz a complicação para a nossa saúde. Eu também pensei assim: “poxa, eu estou vivendo bem”, mas, por outro lado, tem alguém que está vivendo mal. Porque não só nós humanos temos vida, mas todas as coisas têm a sua vida. A árvore tem a sua vida, ela respira também. Muitas vezes, quando vou buscar um remédio para o meu filho, para a minha mulher ou para alguém que está doente, então eu digo: “não é só chegar na árvore, tirar sua casca, fazer o chá e tomar”. Não, eu não posso fazer isso. Primeiro eu vou falar com a árvore, por que se eu vou tirar a casca dela, eu posso machucá-la. É a mesma coisa que eu tirar um couro, um pedaço de mim. Eu vou ficar doído. Então eu falo primeiro para a árvore, para ela me ajudar a tirar a casca. Eu digo: “eu estou tirando a sua casca, eu estou te machucando, mas me ajuda a dar a vida para o meu filho, me ajuda a dar a vida para minha esposa”. Então eu começo a fazer o remédio para tomar.
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Todos os seres têm vida, os pássaros têm vida, os animais têm vida, os peixes têm vida. Quando eu atravesso estas fronteiras, às vezes eu digo: “poxa, para onde será que foram aqueles pássaros? Para onde foram aqueles bichos que andavam aqui neste mato?” Nem frutas mais os pássaros têm para comer. Os pássaros quase nem se aproximam das acácias negras, pois elas soltam uma resina tóxica que os passarinhos têm até medo de se aproximar. E as nossas fontes de água? A acácia e o eucalipto chupam a umidade da terra. As raízes da acácia e do eucalipto chupam toda a umidade. Ali onde chega a raiz, a mãe terra, magrinha, fica seca e depois não nasce mais nenhuma planta ali, mesmo depois que aquelas árvores são colhidas. Numa dessas viagens de bicicleta que fiz, eu cheguei numa sombra para descansar. Ali passava um fazendeiro e conversei com ele. Ele me disse: “índio, este rio que passa aqui nessa minha região era um rio muito bonito, onde se pegava peixe desse tamanho. Hoje eu fico a noite inteira e não pego mais nada. Pego só uns peixinhos pequenininhos assim”. E ele continuou falado: “Este rio dava para atravessar de barco, hoje ele está muito baixo. Tem pouca água e eu não sei o que tem que ele não cresce mais”. Este fazendeiro não sabe que ele mesmo está acabando com a vida do rio. Ele planta acácias nas cabeceiras dos rios e nas cabeceiras das fontes. Esta acácia chupa toda a umidade e a água do rio vai baixando. Para mim como indígena Kaingang a fonte é como o nosso coração. Nós temos um corpo onde bate o nosso coração. Isto faz a gente viver. Nós temos muitas veias no nosso corpo onde circula o sangue até o nosso coração. Agora se uma veia trancar a circulação do corpo, o coração já não possui a mesma força. Ele vai batendo devagar, seca uma veia e mais outra até que termina a circulação e morre. A fonte da água é a mesma coisa. Ela tem várias veias que se juntam ali e soltam a água para cima. Agora, se as cabeceiras das fontes forem preenchidas de eucalipto e de acácias, esta fonte seca porque estas árvores começam a chupar a umidade da terra. Se secar aquela fonte lá com aquelas plantações, daí toda aquela veia que vem da fonte vai secando e ela vai morrer.
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Então, Bem Viver para mim é pensar no melhor em conjunto. Esse é meu olhar para o mundo. Esta é a visão que eu tenho sobre o Bem Viver de todos, tanto dos bichinhos, como das árvores, dos animais e dos peixes. Hoje eu penso em ter um viver melhor para todos. Porque o Bem Viver do indígena, eu o tenho comigo. Eu sempre digo que nós somos indígenas. Eu tenho minha filha, tenho a minha esposa, tenho mais filhos e o Bem Viver é eu ter saúde, ter comida adequada para os meus filhos, ter roupa para vestir, um calçado, uma blusinha. O meu viver não é como o olhar de não indígena, porque o não indígena tem outro modo de enxergar. Ele tem outro modo de visualizar, outro modo de visão. O não indígena diz: “amanhã ou ano que vem eu quero construir um prédio ou um condomínio nesta cidade, eu quero comprar um helicóptero, eu quero ter um carrão do melhor”. Esse é o visualizar do não indígena. Ele tem aquela disputa: se o vizinho já compra um carro bonito, amanhã ele também vai lá e busca outro. Ele sempre está disputando. Nós indígenas não disputamos. Lá na minha comunidade eu faço palestras para minha família e minha comunidade. Eu convido as mulheres, as crianças e jovens e falo para nós termos a visão indígena, para nós continuarmos na nossa rotina de viver e pensar. Nós, muitas vezes, perdemos a nossa cultura, perdemos os nossos rituais porque nós queremos pegar outra visão. Se nós pegamos uma visão diferente, então a gente perde mesmo a nossa cultura. Têm indígenas aqui do meu estado, que eu conheço, que vivem em aldeias grandes e que têm um carrão. Isso é assim, porque eles pegaram uma visão do não indígena. O parente Guarani falava ali no vídeo. Ele disse: “nós somos os Guarani, nós acreditamos que temos uma cultura viva ainda”. Eu conheço os parente Guarani e eles têm uma visão de indígena mesmo, um modo de ser indígena, que é sua cultura, que são suas comidas típicas, que são os seus rituais. Por isso eles não têm esse problema, porque sua cultura é viva mesmo. Eles têm os pajés. É o que nós, Kaingang, estamos tentando resgatar aqui na nossa aldeia. Eu quero dizer para vocês parceiros que estão aqui, para vocês pastores que estão aqui: eu tenho um olhar de Deus também, uma visão de
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Deus, um Bem Viver para todos. Deus quer que o Bem Viver seja para todos, não só para os indígenas, não só para os não indígenas, mas para tudo quanto é vida que Deus criou em cima desse nosso mundo. Deus quer que todos nós vivamos bem, as árvores, as aves, os animais. Isso é o Bem Viver que Deus deixou para nós. Se nós cuidarmos do que Deus deixou, nós estamos bem, se não cuidarmos, nós estamos perdidos. Meu muito obrigado.
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Vivência em comunidade Martina Lopes Amantino1
Bom dia a todos e todas. Eu quero dar a minha palavra a respeito do tema Bem Viver. Ontem e hoje deu para entendermos uma parte do tema, a partir de nossos colegas, que deram suas palavras de amor. Eu quero dizer para todos que o indígena tem amor. Embora ele tenha muitos problemas que envolvem seus caminhos, ele vive bem. Ele não mistura o espiritual com o material. Se hoje ele tem algum alimento (como feijão ou o que for) para toda a família, o dia é bom. A vivência indígena é repassada de geração em geração. Observando os nossos irmãos Guarani e outros indígenas, percebi que eles também têm essa vivência. Nós já nascemos nos nossos costumes. Desde crianças, os pais ensinam e educam os seus filhos dentro da cultura. Eles ensinam a criança qual o seu dever, ensinam a respeitar as pessoas mais velhas e as crianças mais novas. Eu lembro muito bem, quando eu era criança a minha mãe dizia: “você tem que respeitar os seus maninhos, não bater neles, não machucar. Você tem que cuidar, para que eles te respeitem também. Senão, eles não vão te respeitar”. Os nossos avós já nos ensinavam como devemos tratar e cuidar dos nossos velhos. Eles diziam: “Você também tem que respeitar os mais velhos. Todos os que são mais velhos, são teus avós. Os que são mais novos, são teus tios e tuas tias”. É isso o que eles nos ensinavam quando nós éramos crianças. Então, isso é muito importante!
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Monitora/professora bilíngue kaingang-português. Liderança na organização e mobilização do povo Kaingang. Residente em Linha Encruzilhada, Constantina/RS.
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Eu falo sobre a importância do respeito com meus filhos e falava com meus alunos na época em que eu dava aula – sou professora aposentada. Foi desta maneira que eu tive que levar o assunto para a sala de aula, ensinando os alunos e as alunas como se deve respeitar. Assim é a nossa vivência. Eu fico pensando assim: “Por que não há um asilo para indígenas mais velhos? Por que não há uma creche para as crianças indígenas?” Pois é, a família indígena é que cuida dos velhinhos (kófa). Assim, também é responsabilidade da família cuidar das crianças. As crianças podem ser cuidadas pelas tias, pelas avós que são como mães da criança. Assim é a nossa cultura. E tudo é muito importante! Toda a nossa maneira de viver é importante e é orientada desde que nascemos. Eu sinto que nós vivemos bem, porque nós não nos preocupamos com os problemas materiais. Nós nos preocupamos com a vivência em família e em comunidade. E eu quero acentuar para vocês que a vivência indígena é muito importante. Os indígenas não se preocupam com o dia de amanhã, contanto que eles tenham hoje para alimentar sua família e a pessoa que chega. Nós não nos preocupamos, mas sentimos dentro de nossos corações um grande amor. Minha opinião é que o indígena vive assim no amor, na união e na paz. Contanto que hoje se tenha saúde e algo para se alimentar está tudo bem. Nós não nos preocupamos com as coisas materiais. Se conseguimos resolver os problemas amanhã, está bom. Se conseguirmos resolver hoje, também está bom. O indígena sabe esperar. Nós estamos lutando há quatro anos por demarcação de terra. Lutamos com paciência. Esperamos por este fato que vai acontecer. Achei muito importante essa palavra Bem Viver. Eu sinto assim, não quero dizer que todos sintam o mesmo, mas se encaixa com o que eu sinto. Quando vem alguém na nossa casa, a coisa mais importante é oferecer algum alimento para a pessoa. Isto porque para o indígena, o alimento é quase a coisa mais importante. Em primeiro lugar está a saúde. Para os indígenas a coisa mais triste é quando tem alguém doente. Mas aí já fazem os seus remédios, para que tudo fique bem. Para os indígenas a maior ofensa é quando se oferece alguma coisa e a pessoa rejeita. As pessoas ficam sentidas: “poxa, fulano não aceitou o meu convite para o alimento”!
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Na minha casa somos assim, ficamos felizes em receber visitas e poder oferecer uma comida para elas. Minha família também é assim e eu dou graças por isso. A maior alegria é receber visitas, seja qual for a pessoa. Reunir-nos é uma alegria. Cada um dos vizinhos já traz o seu alimento, traz uma carne, o que tiver. Eles trazem tudo para a minha casa, a fim de festejar com a visita que chegou. Para o indígena tudo é Bem Viver. Os indígenas veem a vida além dos problemas. No seu dia a dia eles são espirituais. Eles sabem esperar. E a vivência com a família e a comunidade é o mais importante! Era isso o que eu queria dizer para os colegas. Obrigada.
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Revitalizar a terra Lourenço Amantino 1
Colegas aqui presentes, o tema já diz: Bem Viver, viver melhor. Eu estive analisando e anotando as colocações de ontem. Eu alcancei no meu entendimento que o Bem Viver do indígena não está completo. Nós que somos indígenas, não estamos completos. Aí você pode perguntar: como nós não estamos completos? Em primeiro lugar está a nossa terra, a nossa mãe terra é o primeiro lugar para nós vivermos bem. Mas, como não está completo? É porque em cima da terra já está limpo, já foi desmatado pelo não indígena. Acabaram com as nossas matas, com os animais, com os peixes. E nós indígenas, décadas atrás vivíamos através da pesca, através de raízes e alimentos do mato. Hoje não vivemos mais assim. Hoje, muitas vezes encontramos nosso alimento perto da lavoura. E aí temos medo de pegar aquele alimento, porque a gente pensa: “mas será que esse alimento não está contaminado, não está intoxicado?” Então, eu alcancei este entendimento, que nós não estamos completos. Hoje o tema é Bem Viver, é viver melhor, mas ainda não estamos completos. Anos atrás, quando Pedro Álvares Cabral chegou no Brasil, quem vivia aqui éramos nós os indígenas. Naquela vez, era tão gostoso na aldeia e o nosso viver era bem melhor, era mais sagrado. Hoje não temos mais essa alegria de ter um alimento limpo, de ter uma caça. Não temos a alegria de ver muitos animais como tatu, paca, quati, mico. Eles não existem mais. Esses bichos do mato eram o nosso alimento. Eu lembro que o meu pai caçava esses bichos e nós os preparávamos e os comíamos. Hoje, para encontrá-los, não é fácil. Por isso, eu acho
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Liderança indígena Kaingang. Reside em Linha Encruzilhada, Constantina/RS.
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que nós não estamos completos, porque não vivemos melhor. Isso é o que eu penso, é o meu conhecimento. O próprio não indígena está destruindo a natureza. A bíblia diz que o próprio ser humano vai destruindo cada vez mais. Os grandes cientistas tentam melhorar a qualidade de vida, mas eu acho difícil. Eu acho que não tem mais volta. A natureza está perdendo a sua qualidade. Para mim é tão importante o tema viver melhor, viver bem. Eu vou analisando: eu estou lutando lá no meu pedaço de terra, para eu tomá-la de volta, para revitalizar o que ainda resta lá. É um restinho. Como diz o gaúcho, é a rapa. A rapa nós estamos querendo revitalizar. Hoje tem pouco material para manter a nossa cultura, para fazer a flecha e a lança. Muitas vezes nós não temos material de artesanato e não temos medicamento tradicional. O remédio do mato não existe mais ou é pouco. E o pouco que tem está contaminado, está envenenado com o agrotóxico que o agricultor solta ali. Não existe mais peixe por causa da poluição e do veneno. Os rios estão secando, porque o próprio não indígena está fazendo com que eles desapareçam. Analisando todas as populações indígenas, entendo que ainda não estamos completos, estamos tentando revitalizar o pouco que resta. Hoje estamos reunidos para tratar toda esta questão do viver melhor, viver bem. Gostei muito do tema. Eu sei que o tema é bonito – viver melhor. Mas eu sei também que a nossa luta é tão grande, nossa luta é tão sofrida. Nós indígenas estamos oprimidos, estamos lutando por aquilo que era nosso. Muitas vezes somos tratados como invasores, porque estamos lutando para morar na nossa terra. Eu penso que os invasores são os não indígenas, que vieram na ocasião da conquista e ainda continuam invadindo a terra. Perdoem se minhas palavras são ofensivas, mas é por causa da discussão do tema. Hoje estou sofrendo por querer a terra que foi nossa e por tentar resgatá-la. Hoje tenho que lutar pela justiça. Muitas vezes tenho que processar para resgatar o que era nosso. Naquela época os que não eram indígenas vieram e tomaram todo o nosso território. Eles não precisaram fazer reivindicação, o governo deu nossa terra para eles. Hoje, para adquirirmos um pedacinho da nossa terra, temos que sofrer, temos que enfrentar muitas vezes a chuva debaixo de barracas. As crianças sofrem ali.
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Talvez alguns pensem que nós estamos vivendo bem, mas acho que não estamos completos. Para viver bem precisamos revitalizar o que perdemos. Foi dito que o nosso costume é tão bonito, é tão bom e que há unidade entre familiares e parentes. O nosso costume é do Bem Viver. No entanto, hoje não estamos vivendo bem, pois estamos em um país que se diz democrático, mas que eu digo que não é democrático. Hoje nós temos que brigar pelas coisas que tínhamos antes como indígenas. Eu sou o cacique do Acampamento Novo Xingu. Eu represento uma comunidade, eles estão me esperando. A comunidade está aguardando para resolver e apressar a demarcação da nossa terra. A gente também sofre como líder, o povo nos cobra: “Como está a nossa terra? Como está a demarcação? Vai sair logo?” O sofrimento também está dentro de uma comunidade! Falta demarcar a terra e falta revitalizar o pouco que se tem! Mas o tema é bonito, apesar de que ainda falta revitalizar o pouco que se tem. Hoje eu já disse que não tem mais animais do mato como a onça, o mico, o macaco, o tucano, a coruja. Esses animais que estão aqui no centro, os bichinhos do artesanato Guarani, representam nossos animais. Mas eles não existem mais. Essa é a nossa vivência hoje, sem esses animais. Muitas vezes a gente fica triste pensando: “antigamente o modo de viver era melhor”! Eu me lembro, quando eu tinha oito anos, eu morava em Palmas, no Paraná. Tudo era mata por lá. O meu pai andava nesta mata e fazia a sua própria armadilha para ter caça para nós comermos. Hoje, onde era minha terra, minha aldeia, já não tem mais mato, tudo ficou limpo. Está difícil até de encontrar um macaco. Eu analiso que o próprio não indígena está destruindo tudo. Eu analiso isto biblicamente. Eu sou evangélico. E a gente vai indo nesta luta até onde Deus quiser, até onde Jesus quer, porque o nosso Deus está aí também para suprir as nossas necessidades. Eu creio que Deus vai abençoar a nossa reunião, que ele não deixa faltar pão para o seu povo, porque todos que estão aqui, são povo de Deus, somos filhos de Deus. Então, eu creio que ele não vai deixar faltar o alimento em nossa mesa. Era isso o que eu tenho a falar. Eu agradeço pela oportunidade.
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Viver e compartilhar Rosalina Kasu Fej Aires de Paula 1
Bom dia a todos os que estão presentes. Nesta minha exposição quero ressaltar algumas afirmações que já foram feitas anteriormente pelos parentes Kaingang. A professora Martina falou que o indígena não mistura as coisas. Ele não leva para o trabalho os assuntos da casa ou da comunidade. Mesmo que esteja passando por dificuldades, ele não as leva para o seu trabalho, ele não mistura as coisas. Ela disse que o povo Kaingang sabe esperar materialmente e espiritualmente. Ela também falou que os Kaingang dividem tudo. Eles não ficam com as coisas só para si, mas dividem tudo o que tem, seja isto comida, roupa e tudo mais. Eu concordo com esta fala da professora Martina. Nós Kaingang gostamos de compartilhar tudo! Eu penso que nós, Kaingang, vivemos bem, porque nós, desde o começo, não somos pessoas da ganância. O indígena já está contente se ele tem hoje para comer com seus filhos. Ele não acumula as coisas. Se eu tenho hoje um alimento bom para comer com os meus filhos, eu estou contente. Ontem, o professor Bruno falou muito do freezer. Eu tenho meu freezer, eu tenho minha geladeira, só que eu não sei guardar. Se chegar alguém eu tiro e reparto com as pessoas que chegaram. Além disso, eu não tenho coragem de deixar a comida lá guardada, porque se ficar um tempo lá, ela não fica melhor e não tem mais nutrientes. Já não é bom comprarmos essas carnes lá no mercado, porque não sabemos quanto tempo ficaram lá. E, ao trazermos para casa, ela ainda vai ficar mais um tempo guardada, então a carne não fica mais gostosa.
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Educadora indígena Kaingang da Terra Indígena Por Fi Ga de São Leopoldo/RS.
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Nós Kaingang não reservamos nada. Nós gostamos de repartir, compartilhar e comer juntos. A Martina falou que na casa dela também é assim. Sempre está cheia de pessoas para comer juntos. Nós Kaingang somos assim, não acumulamos nada. O tema Bem Viver para o povo Kaingang, para o povo indígena é assim. Repartir! Compartilhar! Comer juntos! Agora, Bem Viver com o quê? É muito bonito e muito fácil dizer: “Bem Viver”. O tema Bem Viver para nós é uma coisa, para outra pessoa talvez não seja assim. Para nós Kaingang este tema sempre está presente. Bem Viver com a natureza, Bem Viver com os animais, com os rios, com a mata. O Francisco tem dito isso também. Bem Viver com as plantas, com os pássaros, com o rio. Mas a natureza está se perdendo, o rio está se perdendo com os lixos. Nós não estamos preservando. E o que vamos fazer diante disso? Só vamos falar aqui e ficar nisso? Acho que não! Penso que temos que fazer alguma coisa. Mas o que nós vamos fazer? O que o povo Kaingang vai fazer? Nós podemos ser poucos, mas como diz aquele ditado, todos juntos resolvemos alguma coisa. Para nós Kaingang o Bem Viver se faz presente todos os dias, com os nossos filhos. Estar ao lado deles, ensinando-os a preservar a nossa cultura, ensinando-os a fazer artesanato. Nós que vivemos nas grandes cidades ainda mantemos muito a nossa cultura, passamos para os nossos filhos o que deve e o que não deve ser feito. Respeitamos muito os mais velhos. A professora Martina disse que antigamente nossos pais, quando chegavam pessoas de visita, eles não nos deixavam passar na frente das visitas, pois era uma ofensa para eles. Nós tínhamos que respeitar a visita. Nós ensinamos nossos filhos a fazer artesanato porque aqui na cidade vivemos muito dele. Isso porque nós temos pouca terra. Ao ensinar a fazer artesanato, estamos ensinando uma atividade para os nossos filhos com a qual podem viver. E na cidade vivemos muito do artesanato. Eu acho que nós, o povo Kaingang, vivemos bem com a nossa família. Vivemos bem com a natureza, com o que a natureza dá para nós, com o que ela oferece para nós. Mas se não preservarmos e cuidarmos da natureza, já não se terá quase mais nada. Mas como vamos fazer para preservar? Eu não sei. Ficam essas dúvidas do que fazer para mudar isso, pois a mino-
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ria pensa diferente. Nem todos têm o mesmo pensamento dos cuidados. O que adianta dizer: “eu vivo bem”, se o outro não vive bem? Eu, como Kaingang, sinto que vivemos bem. Nestes termos isso está muito presente no meio do povo Kaingang, para nós está muito presente, Bem Viver com os nossos filhos, Bem Viver com a sociedade, respeitando uns aos outros. Bem Viver com as plantas, com os animais, com os rios e com toda a natureza. Será que todos nós vivemos bem? O que fazer? Como fazer para mudar isso? Será que fica só na conversa? O Francisco falou dos peixes, já se tinha mais, mas nós mesmos destruímos, então, o que fazer? Não adianta a minoria pensar e os outros não pensar. Fica a minha pergunta: o que fazer? Agradeço aos colegas que se fizeram presentes nesta manhã para estar refletindo um pouco sobre as nossas palavras. Era isso, muito obrigada!
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III. ReflexĂľes conceituais sobre o Bem Viver
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Bem Viver na criação, alternativa de esperança e compromisso Hans Alfred Trein 1
Introdução Nos dias de hoje, presumivelmente estamos diante de uma encruzilhada do desenvolvimento. Quanto tempo a terra ainda aguenta o dogma neoliberal do crescimento econômico? Desenha-se um cenário de mudança fundamental do olhar sobre a economia, quando se considera as possibilidades de catástrofes climáticas e a crise global nos mercados financeiros. Essa mudança de perspectiva ainda está longe de chegar aos responsáveis por economia e política, pois estes não são atingidos por suas consequências fatais. Entretanto, espera-se que o clamor por socorro e ajuda do Estado vindo de banqueiros que acreditavam piamente no mercado, a falta de confiança na economia e pelo menos os enunciados de governantes, de que a catástrofe climática é um dos mais importantes desafios, sejam o início de uma forma de pensar fundamentalmente nova. Muito mais esperança ainda vem dos movimentos sociais que eclodem em vários pontos do planeta: na Argentina, no Chile e na Bolívia, a primavera em alguns países árabes, os indignados na Puerta Del Sol em Madrid e até mesmo ocupando Wall Street, como “rebeldia no coração do sistema”. Parece que estamos entrando em um novo tempo de ascenso social e político. Nesse processo procuramos contribuir humildemente com o seminário “Economia para Bem Viver”2, cujas reflexões em forma de palestras e discussões se compartilham neste artigo. Foi uma realização conjunta
Mestre em Teologia pelo IEPG – Faculdades EST/RS. Coordenador do Programa de Mobilizações de Recursos do COMIN. 2 Realizou-se na Casa Betânia do Mosteiro da Transfiguração em Santa Rosa nos dias 11 e 12 de outubro de 2011. 1
do Conselho de Missão entre Indígenas e sua parceria com o Decanato Sulzbach-Rosenberg da Igreja Evangélica Luterana da Baviera, do Sínodo Noroeste Rio-Grandense da IECLB e de sua parceria com o Distrito Eclesiástico de Misiones, da Igreja Evangélica do Rio de La Plata e da Igreja Evangélica Luterana Unida. O seminário fez parte das celebrações dos 50 anos de missão entre indígenas da IECLB durante a visita da delegação do decanato bávaro, do programa de formação do Sínodo Noroeste e de seu programa de intercâmbio com o distrito argentino e aconteceu sob o tema anual da IECLB “Paz na Criação de Deus”. Em alguns momentos de crise ou de encruzilhada é necessário repetir perguntas fundamentais, para as quais normalmente achamos que as respostas são óbvias e já estão dadas, há muito tempo, por exemplo: para que serve a economia? O trabalho, a produção, o consumo... para que servem? O progresso e os avanços tecnológicos... para que servem? O inédito volume de informação e conhecimento em circulação... para que serve? Como entram a natureza e os seus recursos nesse quefazer. Não seria para que a vida mineral, vegetal, animal, humana possam acontecer e reproduzir-se de maneira agradável e prazerosa nessa incrível criação de Deus e para que as carências e adversidades, naturais da condição de criaturas finitas, sejam administradas com a menor dor e sofrimento possíveis? Essa última pergunta traz à baila, para que serve a religião, a espiritualidade, ou ainda melhor: que espiritualidade está por trás das respostas que damos às outras perguntas anteriores? Poderíamos ainda agregar outras: Que noção de direito humano está por trás do que é ou fundamenta o que deveria ser? Qual a nossa relação construída culturalmente com o tempo? A perspectiva de finitude de matérias-primas e energias fósseis que estão além da capacidade de regeneração do planeta, atualmente impõe de maneira inédita a pergunta pela sustentabilidade. Queremos continuar existindo como humanidade no planeta terra? O tema do seminário, “Economia para Bem Viver” procurou conjugar dois conceitos de contextos muito diferentes: de um lado, está o conceito “Wirtschaft”, uma palavra que tem sua história de significados no contexto da língua alemã; de outro lado, está o conceito “Bem Viver” que aqui nos vem de pensadores indígenas andinos e que está sendo recebido e refletido também entre os povos indígenas do Brasil. A pergunta fundamental
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de ambos é: como organizar a produção, o consumo, para que haja vida boa para toda a criação e essa seja sustentável? Quando um alemão diz “Ich geh in die Wirtschaft”, isso pode significar duas coisas: ir para uma “economia” tocada por um ecônomo, uma hospedaria ou estalagem para encontrar-se com os amigos, tomar uma cervejinha no fim do dia, jogar conversa fora, o famoso “happy hour”, a hora alegre, enfim, um lugar para viver bem. Só mais recentemente impôs-se outro significado: vou assumir um cargo na diretoria de uma empresa, ou entrar no ramo dos investimentos financeiros. A “Wirtschaft” é dirigida por um “Wirt”, um hospedeiro, ou seja, é uma economia que trata as pessoas que a procuram como hóspedes. De um lado, o “Wirt” fará de tudo para que os hóspedes se sintam bem em sua economia, que sejam atendidos em seus desejos e que saiam satisfeitos e com a sensação de que pagaram o que foi justo, para que tenham gosto em retornar outras vezes. De outro lado, as pessoas que participam nessa economia hospedeira, se comportarão como hóspedes, observando as regras de um comportamento social e ambiental adequado à sua condição. Não tratarão a economia na perspectiva de terra arrasada, nem de “depois de mim o dilúvio”, pois tendo experimentado aconchego e prazer nessa economia, um dia quererão voltar. Aplicando isso ao nosso contexto, o significado mais antigo sugere conceber o mundo como uma grande hospedaria, onde os seus gestores em política e economia fazem questão de que os hóspedes se sintam bem, tenham boa comida, possam alegrar-se, desfrutar boas companhias, desafiarse mentalmente, enlevar-se espiritualmente, cultivar sua cultura, onde se valoriza a suficiência e a convivência em segurança e paz social. O significado atual sugere o mundo como um campo de batalha, onde há vencedores e vencidos, onde há ganhos e perdas, onde quem não cresce, desaparece, onde na melhor hipótese impera o antropocentrismo, e o restante da natureza é concebido externo à humanidade, como matéria-prima disponível a ser explorada até a exaustão. A economia na Bíblia propõe algo mais próximo à hospedaria quando diz que não temos morada permanente aqui. O Bem Viver no contexto dos indígenas andinos se apresenta como um novo ancestral horizonte. Inunda Abya Yala com a inspiração e raiz mi-
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lenar de um novo tradicional modelo de vida e sociedade. Sumak Kawsay (na língua Aymara) e Suma Qamaña (na língua Quechua) – o Bem Viver – não é apenas uma utopia, é a reconstrução da harmonia e da reciprocidade entre a Pacha Mama – Mãe Terra, os seres humanos e todas as formas de vida. É um projeto de futuro que exige mudanças radicais, rupturas com o atual modelo neoliberal e neocolonizador. Diante da profunda crise civilizacional – que alguns, como o teólogo Leonardo Boff, estão chamando de terminal, pelo menos para a espécie humana – o Bem Viver indígena é uma inspiração, um horizonte de lutas. O Bem Viver é um horizonte em construção, um conceito político que se constitui como alternativo ao atual modelo capitalista neoliberal. O texto a seguir, conjuga ideias de leituras prévias (Dávalos, Koch, Boff) e posteriores (Ghandi, Freire), de palestras (Genz, Zieske, Santiago Franco, Dorvalino Cardoso, de Misiones) e de reflexões durante o seminário, aproveitando a diversidade que nos compõe, cristãos luteranos do sul brasileiro, de Misiones, do sul da Alemanha, dos povos Kaingang e Guarani. Trará impulsos para refletir sobre a espiritualidade da economia, breves impulsos que nos vêm das espiritualidades indígenas e da teologia bíblica, concluindo com breves impulsos do que é necessário mudar.
Espiritualidade da economia Fundamentalmente a “espiritualidade da economia” pode ser entendida de forma egoísta e de interesse próprio, associado à mão invisível do mercado que, através de competição e concorrência tudo coordena para o bem comum, como dizia Adam Smith (1723-1790). Quando se trata da espiritualidade dessa economia, é necessário perguntar pela contribuição da teologia que ajudou a naturalizar o livre mercado como uma ordem econômica natural. A metáfora para essa economia é um avião no ar que, se não voar para frente, despenca. Lembra também o slogan “cresça ou desapareça” que se popularizou. Isso é uma verdade na estruturação e no direcionamento atual da economia. Exatamente por isso é necessário abandonar a reflexão que gira apenas no interior dos mecanismos de funcionamento atual e perguntar, a partir de fora, se não há alternativas de estrutura e direcionamento da economia.
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Estranhamente vivemos tempos que já se julgavam superados, desde que, em 1972, o Club of Rome declarava “The Limits of Growth” (Os limites do crescimento). O dogma do crescimento ilimitado da economia persiste contra o entendimento mais efêmero, de que ele simplesmente não pode ser aplicado ao nosso planeta com seus recursos limitados. “Todo aquele que acredita que o crescimento exponencial pode continuar para sempre num mundo finito ou é um louco ou um economista3.” Trata-se de uma crendice irracional e inconsequente, uma ilusão fatal. Pablo Dávalos4 vai até mais longe, quando afirma que crescimento econômico a rigor não existe – o que nos lembra da máxima de que na natureza nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. [Isto é,] se forem contabilizados todos os insumos que são necessários para o crescimento econômico, incluindo os custos externos negativos e os custos de oportunidade, o crescimento econômico sempre será negativo. A produção de um bem ou serviço qualquer que incorpore os custos externos e os custos de oportunidade (para falar na mesma lógica neoclássica agora imperante) tornaria impossíveis os mecanismos de mercado, porque os preços seriam exorbitantes5.
Da mesma forma, também o teólogo Hans-Gerhard Koch constata que, ao lado do que ele chama de economia do dinheiro, existem outras economias que a economia de mercado não criou e pelas quais nada paga: a economia da natureza, do cuidado, da cidadania, do voluntariado6. Se todas essas economias fossem contabilizadas com seus reais custos na economia de mercado, os preços finais seriam impagáveis. Essa fragmentação de economias tem outra fragmentação em seu pano de fundo: aquela entre humanidade e natureza. Trata-se da ideia cartesiana
Kenneth Ewart Boulding apud ZIESKE, Veronika. Es ist genug! für alle da. Santa Rosa, COMIN, 11 out. 2011. Palestra ministrada no seminário “Economia e Bem Viver”. p. 2. 4 Pablo Dávalos é economista equatoriano e professor da Pontificia Universidad Católica del Equador. Foi vice-ministro de Economia do Equador. Hoje é coordenador do grupo de trabalho Movimentos Indígenas na América Latina do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais – CLACSO e professor titular da Cátedra Florestan Fernandes: Povos Indígenas, Globalização e Estado Plurinacional, do CLACSO. 5 DÁVALOS, Pablo. Sumak Kawsay: uma forma alternativa de resistência e mobilização. Entrevista disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view= article&id=3436&secao=340>. Acesso em: 30 out. 2012. 6 KOCH, Hans-Gerhard. Gastrecht für alle. Für eine Wirtschaft, die diesen Namen verdient. Nürnberg, MABASE, 2009. 3
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do ser humano como senhor da natureza apoiada por sua interpretação teológica equivocada de coroa da criação. Ou seja, é uma ruptura radical: o ser humano é sujeito e todo o restante da natureza é objeto a ser explorado. O resultado desastroso dessa ruptura radical e seu consequente uso da terra, equivalente a um estupro da natureza, foi lamentado pelos líderes e professores Kaiowá referentes à sua experiência no Mato Grosso do Sul, em carta de 17 de março de 2007: O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida7.
Mais adiante, na mesma carta, falam de sua autocompreensão como povo Guarani Kaiowá: O criador do mundo criou o povo Guarani para ter alguém que admirasse todo o esplendor da natureza. O nosso povo foi destinado em sua origem como humanidade a viver, usufruir e cuidar deste lugar, de modo recíproco e mútuo. Por isso, nós somos a flor da terra, como falamos em nossa língua: Yvy Poty.
Como é fácil de perceber, esse linguajar indígena permite entrever uma outra concepção fundamental sobre a relação entre humanos e natureza. A terra é um ser vivo. Tem corpo, veias, respira, chora. A partir dessa concepção fundamental o espírito econômico passa a ser completamente diferente do que aquele que se impôs ao ocidente. A noção de propriedade se inverte: não são os humanos donos da terra, mas a terra é dona dos humanos. Alexandre Acosta, da aldeia de Cantagalo (RS), entre outras coisas, falou: Esta terra que pisamos é um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma árvore,
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FREIRE, José Ribamar Bessa. Corta essa de suicídio. Disponível em: <http:// www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004>. Acesso em: 30 out. 2012. Sílvia Genz, 2a vice-presidente da IECLB, o expressou em sua fala no seminário sobre “Paz na Criação de Deus”, com a frase: “o mundo está com febre” e enfatizou a responsabilidade humana como sendo de cultivar e guardar a criação, tendo, entretanto, atenção para o ritmo diferente da natureza.
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ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós8.
A terra também é um Guarani. A terra também é gente. Não apenas os humanos são formados do humus, portanto pertencem à terra, mas a terra participa da humanidade como um ser vivo de relação. A natureza não é apenas um armazém de recursos, mas parte integrante da sociedade. A terra é uma pessoa, tem alma9. Construir uma economia a partir dessa concepção fundamental dar-se-á dentro de outro espírito de respeito e consideração. Aqui não há ruptura radical, alienação que permita uma economia de terra arrasada. A espiritualidade da economia definirá a sua ética. O capitalismo só foi possível por causa da ruptura radical entre humanidade e natureza. E o processo de fragmentação e de objetização avança também para dentro das relações humanas. Na economia de mercado tudo passa a ter valor de compra e venda, inclusive os humanos. Os mercados são eficientes porque não são éticos. Guiam sua eficiência pela lógica de custo e benefício de recursos escassos10. E quando a escassez não existe, ela deve ser criada artificialmente, o que explica porque tem de haver crises periódicas. Além disso, é necessário pensar ainda sobre como a atual economia enxerga o homo oeconomicus, o indivíduo, a probreza e o tempo. Dávalos descreve os elementos acima dentro da perspectiva do projeto burguês de sociedade de Estado. O homo oeconomicus moderno é o consumidor por excelência. Ser ou não ser consumidor implica em ser ou não ser cidadão. Quem não consome, não existe, respectivamente, está invisibilizado. Pagou, tem e é alguém! Não pagou, não tem, então não interessa! O capitalismo, sob pena de colocar-se em risco, não pode tolerar a manutenção, em seu mundo, do que não é mercadoria. O trabalho que conta, só pode existir como mercadoria, quando não ainda como trabalho escravo, forçado. O Bem Viver indígena está fora dessa lógica mercantil. Como ima-
FREIRE, 2012. Uma expressão até agora inédita do direito da terra como entidade jurídica está inscrita nas constituições nacionais de Ecuador e Bolívia. A terra/natureza como sujeito de direitos. 10 Atualmente 925 milhões passam fome. Contudo, os alimentos produzidos são matematicamente suficientes para alimentar 12 bilhões de pessoas. ZIESKE, 2011, p. 1. 8 9
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ginamos que esta seja natural, temos dificuldade de imaginar o Bem Viver indígena; ele passa à categoria de romantismo anacrônico. Mas, o problema está em nossa naturalização da lógica mercantil e não na proposta do Bem Viver! Pois, no sistema mercantil não pode haver vida feliz, se não tiver havido algum pagamento por ela. Mais adiante, Dávalos define pobreza: A pobreza é um fenômeno político que se expressa e se manifesta como um fenômeno econômico. Ela evidencia a forma pela qual a burguesia administra politicamente a escassez11.
Se entendermos a pobreza como uma relativa falta de poder, mudam-se assim também as soluções. A humanidade dispõe atualmente de todos os instrumentos, das tecnologias e inclusive das instituições para resolver o problema da pobreza. Enquanto a falta de dinheiro clama pelo crescimento econômico, a falta de poder pede por mais direitos de participação e liberdade de decisão. Se quiser tornar-se visível, precisa tornar-se participante do mercado. E aí também adquirirá cidadania. Além disso, A noção de indivíduo é uma construção política da burguesia. Os indivíduos sempre estiveram condicionados por relações de família, de comunidade, de sociedade. Seu senso de individualidade sempre esteve na perspectiva de pertença a uma comunidade determinada. Os indivíduos sempre buscam referentes de sua identidade nos demais. O indivíduo só e atomizado do discurso liberal nunca existiu na história. O indivíduo separado de sua comunidade é uma criação da burguesia12.
Da mesma forma, tempo linear é uma criação da modernidade ocidental e capitalista. As diferentes culturas construíram diferentes noções de tempo. Árabes e africanos costumam dizer que eles têm o tempo enquanto os europeus têm os relógios. Trata-se da clássica diferença entre kairós e chronos, o tempo oportuno e o tempo medido. Para a nossa compreensão aqui distinguimos basicamente entre o tempo linear e o tempo cíclico, circular. Na modernidade capitalista, fraturou-se essa relação em que o presente estende vasos comunicantes com seu próprio passado e com a forma de construir seu futuro. Essa fragmentação é a chave para a valorização do capital.
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DÁVALOS, 2012. DÁVALOS, 2012.
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Somente no tempo linear as taxas de juro e a acumulação financeira têm sentido e coerência. As taxas de juros antecipam no tempo uma produção futura. A especulação financeira antecipa a produção no tempo em um nível em que fratura essa própria produção. O tempo não pertence aos seres humanos. O tempo faz parte da acumulação do capital. Os seres humanos se resignam ao tempo do capital e sacrificam suas opções pessoais e seu tempo, porque este não lhes pertence13.
Por isso, basta! É urgente redescobrir uma nova espiritualidade para a economia, sem deixar-se iludir pela assim chamada “economia verde”, pois nela se procura apenas integrar elementos ecológicos na mesma economia vigente que tudo mercantiliza. Há o suficiente para todos14 vai bem mais longe do que um mero reformismo. Há o suficiente no mundo para todas as necessidades humanas, não há o suficiente para a cobiça humana. Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome15.
Numa espantosa inversão, Santiago Franco, Guarani Mbyá, chegou a ter pena dos não indígenas e de suas prisões e aporias: “Eu estou bem, nós indígenas estamos bem, temos o que comer, quem está mal são vocês, os brancos, vocês estão sofrendo”. As tradições indígenas fascinam, pois nos indicam os dilemas em que estamos metidos na prevalecente civilização ocidental. O Bem Viver indígena com suas construções culturais diferentes aponta para outra civilização, permite exatamente isto: uma nova visão da natureza, sem ignorar os avanços tecnológicos, nem os avanços em produtividade, mas projetando-os ao interior de um novo contrato com a natureza, em que a sociedade não se separa desta, nem a considera como algo externo ou como uma ameaça ou como o Outro radical, senão como parte de sua própria dinâmica, como fundamento e condição de possibilidade de sua existência no futuro16.
DÁVALOS, 2012. Em suas falas, tanto Santiago Guarani, como Dorvalino Kaingang enfatizaram essa diferença na forma de lidar com o tempo. Em todas essas ênfases havia uma negação implícita: tempo não é dinheiro! Não é saudável para a vida, tornar-se escravo do tempo (chronos), acumular tempo, correr atrás do tempo. O tempo (kairós) traz felicidade. 14 Esse foi o tema de Pão para o Mundo para o triênio 2008-2010. Esse também foi o título da palestra de Veronika Zieske no seminário, utilizando o duplo sentido da palavra “Basta”: Isto, que eu tenho é suficiente. Eu não preciso mais. Eu tenho o que é necessário para um bem viver. Agora basta! Estou farto disso! Assim não pode ficar! Algo precisa mudar. 15 GHANDI, Mahatma. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/autor/mahatma_gandhi/. Acesso em: 31 out. 2012. 16 DÁVALOS, 2012. 13
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Encerro esta parte com um trecho da Declaração de Lima, de 20 de novembro de 2010, onde se lê: Os povos indígenas e comunidades somos portadores de sabedorias ancestrais que têm conseguido manter o planeta a salvo durante milhares de anos; nossos conhecimentos e práticas ancestrais de reciprocidade e complementaridade com a Mãe Terra constituíram os valores que têm permitido uma vida em harmonia à qual hoje chamamos de Bem Viver – Viver Bem... Conclamamos à unidade continental e mundial dos povos indígenas e movimentos sociais a mobilizar-se em defesa da Mãe Terra, pela construção de estados plurinacionais e implementação do Bem Viver em nível global, como alternativa para superar a crise climática, alimentar e econômica. Voltar ao equilíbrio com a Mãe Terra para salvar a vida no planeta é nosso caminho17.
Impulsos bíblicos Aqui vou me limitar a listar alguns tópicos a título de impulsos para refletir adiante: • A Bíblia propõe uma economia da suficiência. A coroa da criação não é o ser humano, mas sim o dia livre de trabalho, o shabbat. Portanto, o auge da criação divina, a finalidade mesma de toda a criação não é o seu ritmo frenético de produção e consumo, mas precisamente o contrário: o descanso, o desfrute da boa criação. No fundo o respeito ao dia livre como coroa da criação é um ato de fé no Criador. O trabalho criativo tem o seu lugar, mas só tem sentido a partir do descanso, do ócio e da festa. • Uma referência reiteradamente lembrada é que no êxodo pelo deserto Deus alimenta seu povo com maná; quem muito recolhe, à noite não tem mais do que aquele que somente recolheu o que ele neste dia necessitava. E quem acumulou por medo de que talvez no dia seguinte pudesse não haver mais, teve que constatar que o maná, no dia seguinte, fedia e apodrecia. Aqui Deus concede claramente ao seu povo o ensino do suficiente: justo é para ele, se cada pessoa tem o suficiente para um dia. • A economia bíblica da suficiência não é ingênua com relação à essência humana. Sabe perfeitamente que durante o processo econômico há
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Apud DÁVALOS, 2012.
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vários fatores que resultam em diferenças e acúmulos de um lado, assim como carências e dependências de outro. Por isso, advoga reformas, como o ano sabático (Êxodo 23.10), o regular perdão de dívidas (Deuteronômio 15) e o ano do jubileu (Levítico 25), nos quais a relação de propriedade deve ser periodicamente regrada e corrigida. A intenção era evitar a perpetuação das diferenças econômicas e da acumulação de riqueza que fatalmente implicam em diferenciações na dignidade humana e, por conseguinte, na desfiguração da imagem e semelhança a Deus. • Em Mateus 20, na parábola dos trabalhadores da vinha, aqueles que trabalharam apenas uma hora ao fim da tarde também recebem o salário de um dia, pois precisam sobreviver. Quem imagina ter, baseado em seu desempenho, direito a um ganho maior, ao final recebe apenas o que foi acertado para poder bem viver num dia. A atual economia e ideologia do trabalho chama de promotora da preguiça a teologia do suficiente. • Também Jesus não vê a riqueza como algo neutral: ele enfatiza que não podemos servir a Deus e às riquezas (Mateus 6.24), e adverte: guardaivos da avareza, porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui (Lucas 12.15). Ele deixa claro que, estar sob o domínio da cobiça, conduz à perda do domínio próprio – em linguagem bíblica – perda da alma. “O que aproveita ao ser humano, se ele ganhar o mundo inteiro e vier a causar dano a sua alma”, ou seja, a si mesmo (Lc 9.25). • A Bíblia não conhece a concepção de desenvolvimento, apenas a de justiça. Não se encontra nos textos bíblicos uma palavra que possa ser traduzida pela noção de desenvolvimento, assim como ela se estabeleceu no ocidente. • Uma frase de Dorvalino, Kaingang de São Leopoldo, nos desafia a revitalizar em nossa fé também a revelação de Deus em sua criação, que por séculos foi solapada por uma teologia que equiparava o mundo com o pecado. Ele disse: “se eu leio a língua da natureza, não preciso ler a Bíblia”. Enfatizou em especial a linguagem dos pássaros. Frei Carlos Mesters, um dos expoentes da leitura popular da Bíblia, sempre dizia que a criação é o primeiro livro que Deus escreveu; a Bíblia é o segundo livro, que serve para interpretar o primeiro que entrou em desordem.
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Concluindo... É necessária a desconstrução das ideias dominantes sobre a economia, o crescimento econômico, a pobreza, o indívíduo, o tempo linear, dentre outras. A pobreza não é um fenômeno econômico, mas sim um fenômeno político e que expressa a necessidade do capitalismo de estabelecer relações de poder e dominação a partir do controle estratégico da escassez. É necessário também abandonar a ideia do crescimento econômico, pois strictu sensu ele não existe. Da mesma forma, é necessário despedir-se da ideia de desenvolvimento porque implica em violência, imposição e subordinação. Assim como Paulo Freire já argumentava, que não se pode conscientizar ninguém, também não é possível desenvolver pessoas ou culturas, pois cada grupo humano vai construindo a sua própria cosmovisão e tem o direito de ser respeitado dentro dela. Se nela não houver a noção de desenvolvimento ou de tempo linear, sempre será uma violência impor noções e práticas consideradas desenvolvidas. Uma postura ética da suficiência precisa substituir a ideologia do crescimento. É urgente tomar consciência dos limites. Com os conhecimentos científicos de hoje é possível demonstrar que está havendo um consumo mais rápido e intenso dos recursos naturais do que a terra está em condições de regenerar. Por isso, é necessário pensar individualmente, comunitariamente, socialmente em mudanças no estilo de vida: do que eu realmente preciso? Quanto trabalho é bom para mim? Quanto consumo eu realmente preciso? O quanto eu necessito do carro? O que para mim faz parte de um bem viver? Não é o aumento do Produto Interno Bruto um medidor adequado para medir a satisfação de vida, mas talvez o Índice de Desenvolvimento Humano e o Índice de Felicidade Humana. Do ponto de vista indígena há que acrescentar ainda os índices dos outros sujeitos da natureza, a terra, os minerais, as plantas, os animais... Uma economia do amor precisa ser contraposta à economia do medo e da ameaça18, de competição e concorrência que busca maximizar lucros e pratica chantagem e corrupção para alcançá-los. O interesse próprio gera
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práticas análogas do mesmo espírito numa bola de neve incontrolável. A motivação para o trabalho não deve ser mais o interesse próprio, mas o amor. O que se precisa incentivar não é o egoísmo do interesse próprio, mas o serviço à sociedade humana integrada com a natureza. Cada pessoa está qualificada a contribuir com dons e capacidades. A noção de buscar uma profissão segundo a sua vocação (noção de Lutero sobre o Beruf vinculado à Berufung) é um ideal a ser perseguido. Finalmente, uma palavra do zeloso irmão em Cristo e amigo, Dom Pedro Casaldáliga, desde seu ministério profético e visionário no Araguaia: O conceito de Bem Viver vai na direção oposta de um modelo de desenvolvimento que considera a terra e a natureza como produtos de consumo... É um sistema de vida que se contrapõe ao capitalismo, porque este último constituiu-se num modelo de morte e exploração... Jesus de Nazaré, profeta da maior utopia, promulgou com sua vida, com sua morte e com sua vitória sobre a morte o Sumak Kawsay do Reino de Deus. Ele é pessoalmente um paradigma perene e universal do Bem Viver e do Bem Conviver19.
Referências BOFF, Leonardo. A crise terminal do capitalismo. Disponível em: <http:// leonardoboff.wordpress.com/2011/06/22/crise-terminal-do-capitalismo/>. Acesso em: 30 out. 2012. CASALDÁLIGA, Pedro. Qué Diós, qué humanidad? Disponível em: <http:// latinoamericana.org/digital/2012AgendaLatino-americanaBrasil.pdf>. Acesso em: 30 out. 2012. DÁVALOS, Pablo. Sumak Kawsay: uma forma alternativa de resistência e mobilização. Entrevista disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_content&view=article&id=3436&secao=340>. Acesso em: 30 out. 2012.
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CASALDÁLIGA, Pedro. Qué Diós, qué humanidad? Disponível em: <http:// latinoamericana.org/digital/2012AgendaLatino-americanaBrasil.pdf>. Acesso em: 30 out. 2012. (Traduzido pelo autor do original espanhol: “El concepto del Buen Vivir va en la dirección opuesta a un modelo de desarrollo que considera la tierra y la naturaleza como productos de consumo... Es un sistema de vida que se contrapone al capitalismo, porque este último se ha constituido en un modelo de muerte y explotación... Jesús de Nazaret, profeta de la mayor Utopía, promulgó, con su vida y con su muerte y su victoria sobre la muerte, el Sumak Kawsay del Reino de Dios. Él es personalmente un paradigma, perenne y universal, del Buen Vivir, del Buen Convivir”).
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FREIRE, José Ribamar Bessa. Corta essa de suicídio. Disponível em: <http:// www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004>. Acesso em: 30 out. 2012. KOCH, Hans-Gerhard. Gastrecht für alle. Für eine Wirtschaft, die diesen Namen verdient. Nürnberg, MABASE, 2009. MELO, Tarso de. Ser índio em tempos de mercadoria. Disponível em: <http:// www.viomundo.com.br/falatorio/tarso-de-melo-ser-indio-em-tempos-demercadoria.html> Acesso em: 01 nov. 2012. ZIESKE, Veronika. Es ist genug! für alle da. Santa Rosa, COMIN, 11 out. 2011. Palestra ministrada no seminário “Economia e Bem Viver”. Mimeo, 14 p.
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Economia e Bem Viver Renate Gierus 1
Introdução Compartilho com vocês um texto que foi apresentado em sala de aula na UNISINOS2, para estudantes do curso de Economia e Administração. O professor Erno Wallauer fez contato com o COMIN (Conselho de Missão entre Indígenas) no início de 2012, propondo falar sobre o tema Bem Viver, observando aspectos específicos para os cursos mencionados. As reações em relação ao conceito do Bem Viver foram as mais diversas: incredulidade de algumas pessoas, abertura por parte de outras, colocações de que não há viabilidade para esta proposta, pois o mundo não é assim. O Bem Viver é e não é algo inédito. Ele é inédito para dentro de um mundo socializado com base no “estou vivendo bem”, mundo que privilegia o olhar para si, para o seu bem-estar. O Bem Viver vai além desta perspectiva, tornando-a plural, inclusiva, comunitária. Para os povos indígenas que vivem a partir de sua sabedoria milenar, ele não é inédito, pois simplesmente faz parte do seu modo de ser. No momento em que povos indígenas compartilham de sua sabedoria milenar, que foi invisibilizada, destruída, não valorizada; enquanto nos aproximamos da natureza com o respeito que lhe é devido, pois abriga, cria e recria seres vivos – alguns não menos milenares em sua existência – alcançamos uma compreensão de que o cosmos transpira conhecimento. Ele é, somente aos poucos, apreendido e incorporado, pois, até então, o conhecimento normalmente tem sido isolado, fragmentado, disciplinarizado.
Doutora em Teologia pelo IEPG – Faculdades EST/RS. Coordenadora Pastoral e Programática do COMIN. 2 UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo/RS. 1
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E aí está novamente o inédito: incorporar o Bem Viver para a nossa vida, também tão individualizada e fragmentada, e vivê-la como comunidade, viver partilha. Desta experiência uma grande parcela dos seres humanos se afastou completamente em nome do desenvolvimento para o consumo e para o descartável, um desenvolvimento que vê exclusivamente no crescimento econômico de exploração e expoliação sua chave interpretativa de boa vida.
Apontando direções Propus que o tema fosse tratado em forma de diálogo. Que pudéssemos trocar ideias e pensamentos, em uma construção conjunta de conhecimento. Perguntas e observações que houvessem, seriam bem-vindas, também durante a exposição do tema. A intenção não era fazer uma palestra no sentido de colocações unilaterais, mas de estabelecer um canal de comunicação e troca de saberes. Iniciei perguntando: Quantas pessoas nós somos neste auditório? Mais ou menos umas 100, certo? Vocês veem alguma diferença entre vocês e os/as outros/as ao vosso redor? Não? Se este é o caso, a armadilha da homogeneidade pode interromper os passos a uma visão mais ampla das próprias histórias de vida aqui representadas. Se sim, há diferenças, então já segue a outra pergunta: há respeito para com esta(s) diferença(s)? Olhando com mais detalhes, é possível dar-se conta de que cada ser humano é único e inconfundível. Cor da pele, sexo, identidade de gênero, contexto cultural, opção religiosa são alguns dos indicadores que mostram a diversidade somente neste auditório. Cada pessoa foi gestada para dentro de uma família, de uma comunidade, agrupando-se conforme seus interesses, baseados na sua visão de mundo. Muitos de vocês aqui fazem o mesmo curso de graduação. Isso une vocês a um determinado grupo, que possui determinadas metas. Nem por isso, todos são iguais. Todos/as vocês fazem um curso de graduação na UNISINOS. Isso é o que une todos/as vocês. Nem por isso, todos são iguais. Quando se fala de povos indígenas e de conceitos oriundos dali, precisamos ter sensibilidade ao diferente, ver que há outras maneiras de pen-
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sar, de saber, de viver. O nosso olhar precisa criar outra perspectiva. Precisa ampliar-se. Desta forma, podemos entrar em diálogo com os nossos hábitos, com os nossos costumes, com as nossas leis, com as nossas atividades. A realidade é marcada por diferentes formas de ser e viver. Porém, nem sempre nos damos conta desta diversidade. Para percebê-la, é preciso abrir bem os olhos e mover-se em todas as direções. Nem sempre esta atitude é assumida, pois ela desacomoda e questiona hábitos adquiridos ao longo da vida. O tema Economia e Bem Viver necessita de olhos e ouvidos atentos a uma fala que nasceu entre os povos indígenas da Bolívia, mas que já circula, se recria e reinventa em terras indígenas brasileiras. Falo aqui especificamente do conceito Bem Viver.
Qual é o centro? Visão antropocêntrica e visão cosmocêntrica O Bem Viver não se restringe a uma determinada área da vida ou disciplina acadêmica. Já aqui, de início, uma visão ampla e uma mente aberta ajudam a compreendê-lo melhor. O Bem Viver fala da vida mesma, na sua dinâmica, uma dinâmica que parte de uma cosmovisão que as pessoas não indígenas muitas vezes incompreendem, por não se darem conta ou aceitarem o diferente. A palavra economia vem do grego , onde significa casa e , costume, lei. Gerir e administrar também são traduções usuais para este segundo vocábulo. A palavra economia traz, em sua origem, a dinâmica da vida, pois os costumes de uma casa, ou a administração doméstica, necessitam muito jogo de cintura para encontrar um equilíbrio ou consenso. Se ampliarmos a visão da casa para uma associação, uma universidade, um governo, uma sociedade, esta dinâmica também será ampliada. No entanto, a maneira não indígena de ver o mundo faz essa dinamicidade implodir, criando contextos homogêneos infelizmente muito reais no dia a dia, mas que não combinam com a diversidade que nos cerca. Além disso, é uma homogeneidade antropocêntrica: tudo gira ao redor do ser humano e todos os seres humanos são iguais. Este é um pressuposto
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profundamente arraigado na área econômica, para me restringir a ela neste momento. Assim também podemos afirmar que a economia de mercado é antropocêntrica. A economia indígena, os costumes da casa indígena, são cosmocêntricos, o que nos acerca mais ao conceito do Bem Viver. Na realidade é a sua base, o seu ponto de partida. E seu ponto de chegada. Quero trazer alguns exemplos de propostas diferenciadas, que afetam não somente conceitos, padrões e jargões econômicos, mas também reintegram a dinâmica da vida neles, permitindo a pluralidade. Começo por apresentar um vídeo sobre o povo Guarani. Este vídeo é uma realização do Projeto Microbacias 23, seu título é Mbya Reko (Vida Guarani) e retrata, através de depoimentos, a luta deste povo para preservar sua memória e seu modo de vida4. São tematizadas a arte, a cultura, a educação, o ambiente e a espiritualidade. As gravações foram feitas nas aldeias de Imaruí, Biguaçu, Palhoça e São Francisco do Sul, em Santa Catarina. Uma das falas no vídeo é: “fazíamos artesanato para nosso uso, não para vender, vendemos por necessidade”. A outra fala que quero destacar é: “não queremos riqueza, queremos viver bem”. O fazer para seu uso e não querer riqueza são parte de uma economia diferenciada. Outra lógica de organização social é apresentada aqui. Por que ela é incompreendida? Ou ela encontra eco em algum sistema econômico/administrativo vigente? À medida que o tema do Bem Viver aparece e vai sendo explicitado, nota-se que o mesmo não cabe dentro de certas estruturas dadas. Para algumas pessoas, as palavras e, mais que isso, as propostas e posturas apresentadas são desconexas da realidade. Soam românticas e não tem futuro. Falam de cosmovisões que não cabem em mentalidades cartesianas e em espaços econômicos do lucro. Por outro lado, cabe perguntar se a atual maneira de viver é viável. Os objetivos do Projeto Microbacias 2 são contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população rural de Santa Catarina, através da preservação, recuperação e conservação dos recursos naturais, do aumento da renda, das condições de moradia e estimulando uma maior organização e participação no planejamento, gestão e execução das ações. Entre as pessoas beneficiadas estão os povos indígenas residentes na área da microbacia. Cf. http:// www.microbacias.sc.gov.br/prtProjeto.jsp. Acessado em: 31 jul. 2012. 4 Cf. a notícia no PROJETO Microbacias 2 http://www.microbacias.sc.gov.br/ visualizarNoticia.do?entity.noticiaPK.cdNoticia=6310. Acessado em: 21 jun. 2012. 3
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A água que se bebe, a comida que se come, o ar que se respira, perderam seu potencial criativo e transformador. Estão contaminados, homogeneizados, poluídos, enfermos, artificializados. Se este é o caminho, em breve o sofrimento atual não poderá mais ser superado e relações não poderão mais ser restabelecidas. Quero trazer outras falas. A que segue é extraída da Carta do Povo Jaminawá do estado do Acre: “Nosso caminhar armado de esperanças, não é contra o não indígena, é contra a raça do dinheiro. Não é contra a cor da pele, é contra a cor do poder. Não é contra a língua estrangeira, é contra a linguagem da exploração de nossos direitos e de nossas vidas.”5 Um dos colegas do COMIN, que trabalhou por vários anos em Eirunepé/AM, escreve: “Os Kulina que vivem conforme a sua tradição não deixam ninguém passar fome, mas sempre dividem com os outros o que têm, dividem comida, e dividem também as suas ferramentas, canoas ou motores.”6 Dividir é uma palavra-chave no Bem Viver. Dividir é um cálculo matemático que permite alimentar pessoas, provê-las de instrumentos básicos para seu trabalho e locomoção, faz pensar no outro, no diferente de mim, faz ir ao seu encontro. Dividir não exclui, oportuniza. Com isso, introduzo o momento de falar sobre reciprocidade, parte da visão de mundo Kaingang, e sobre o manako, parte da cosmovisão Kulina.
Reciprocidade e manako Segundo Bruno Ferreira, historiador Kaingang, A reciprocidade é uma das características mais importantes dos Kaingang. Não se trata de uma simples atitude moral, mas sim de um princípio regulador da vida comunitária. A economia de reciprocidade engloba elementos culturais, sociais e políticos, está presente na grande maioria dos gestos cotidianos, perpassando desde as formas de produção ao consumo e socialização dos bens. Entre os Kaingang, a vivência da reciprocidade está diretamente ligada às metades clânicas. A cooperação e as práticas econômicas e rituais conjuntas marcam a relação entre os clãs.
A carta é datada de 03 de abril de 2012. Cf. a íntegra em http://www.cimi.org.br/site/pt-br/ ?system=news&action=read&id=6178. Acessado em: 22 jun. 2012. 6 Cf. TISS, Frank. Diálogo inter-religioso..., p. 18. 5
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Aquilo que, na cultura ocidental é considerado ajuda mútua ou solidariedade, na sociedade Kaingang é uma regra social imperativa, não uma escolha do indivíduo. Isso implica na impossibilidade – não desestruturação – de acumulação de bens e recursos por uns em prejuízo dos outros. Não há como gerar-se uma desigualdade a ponto de distinguir ricos e pobres.7
Quero me estender um pouco mais neste exemplo. A reciprocidade não é só ajuda, como bem destaca Bruno Ferreira. Ela é uma regra social imperativa. Na economia de mercado temos a ajuda: ela normalmente funciona de forma a que a pessoa dá do que lhe sobra. Ela faz caridade. Ou uma empresa que atua a partir da responsabilidade social, apoiando tal ou tal projeto, também está enquadrada nestes moldes. Mas tudo isso é simplesmente um dar aquilo que não é mais necessário, é dar, mantendo o padrão de vida existente. Nada disso muda as estruturas econômicas vigentes, são apenas excedentes que são reutilizados, sendo ainda propagandeados como ajuda à pessoa pobre ou como cuidado ao meio ambiente. Cada pessoa ou empresa continua com o que tem, não dando nada de si, não mudando sua relação com o entorno. A reciprocidade não permite acumulação de bens. Esta é uma afirmação vital no conceito geral do Bem Viver, mas também no conceito específico da reciprocidade. Aqui o dar implica em não ter ninguém com fome ou sede na comunidade. Todos/as são contemplados/as com algo. É importante frisar que não é uma pessoa que dá e várias recebem, modelo este proveniente da economia de mercado, centralizando o poder do dar em uma só pessoa, que se utiliza disso também para sua autopromoção ou promoção da empresa. O dar na reciprocidade implica em que todos/as dão e todos/as recebem, em um movimento de trocas contínuo. Na economia de mercado, as pessoas dão uma vez, talvez duas, e já se consideram satisfeitas, sentindo que a tarefa está cumprida. Na reciprocidade a tarefa somente está cumprida quando todos os dias possibilitam que toda a comunidade tenha o suficiente para viver.
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Cf. FERREIRA, Bruno. Concepção. Disponível em: <http://www.comin.org.br/news/ publicacoes/1330545172.pdf>. Acessado em: 21 jun. 2012.
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Esta é outra questão: ter o suficiente para viver. No dar e receber contínuo, o suficiente basta. Não é necessário mais do que o suficiente. Isto geraria um acúmulo de bens, contrário à proposta da reciprocidade. Na economia de mercado, o suficiente gera uma procura por mais, tentando satisfazer desejos inculcados nas pessoas por propagandas consumistas. A lógica ali é: quanto mais eu tenho, mais eu quero ter; não só quero, necessito ter, pois meu vizinho tem, minha mãe tem, meu companheiro de estudo ou trabalho tem. Centrei-me na questão da reciprocidade, em um aspecto mais econômico. A reciprocidade, porém, como também diz Bruno Ferreira, é um princípio regulador da vida comunitária. Ela se expressa na relação com a natureza, nas marcas clânicas da organização social do povo Kaingang, marcas não inventadas ao acaso, mas observadas a partir da relação com a natureza.8 Passo, agora, ao conceito Kulina de manako. Para os Kulina, o manako expressa o que a reciprocidade significa para os Kaingang. Destaco um texto de Frank Tiss: Manako significa um princípio de vida que sempre procura um equilíbrio entre o receber e o dar, entre o ter e o não ter, entre o fazer e o não fazer etc., sendo que esses movimentos de ir e vir nunca param. Quem, por exemplo, é solicitado a fazer alguma coisa dentro do normal, praticamente não pode negar. Ser chamado de avarento é uma grande vergonha. E a pessoa a quem algo é oferecido deve aceitá-lo, para não arriscar ofender a pessoa que oferece. Porém, ao aceitar a dádiva, já se confirma que, em algum momento futuro, irá se retribuir com algo. O acúmulo de bens muito além daquilo que se precisa para si também é considerado uma forma de avareza. Por isso prestígio não tem quem possui muito, mas quem dá muito. Esse princípio do manako vai muito além da troca e da partilha de bens materiais. Toda a vida é regulamentada por ele, inclusive as questões de direito, religião e moral. Quando crianças brincam de “pega-pega”, com certeza, depois de um tempo, uma delas vai gritar manako, e, no mesmo momento, os perseguidos tornam-se os perseguidores, e vice-versa. A escolha do cônjugue, a convivência de homem e mulher, a divisão de tarefas na comunidade, até uma reunião são determinadas pelo manako: todos os que participam ouvindo deveriam, no decorrer de uma discussão, também falar. Manako acontece entre pessoas, famílias e grupos. Esse dar, receber e retribuir gera uma forte rede social, que ajuda a manter a união e o equilíbrio entre as partes.9 Cf. mais detalhes sobre as marcas clânicas e a reciprocidade na relação entre as metades clânicas em POVO Kaingang: vida e sabedoria, Semana dos Povos Indígenas 2012, p. 6 e 25. 9 Cf. TISS, Frank, Diálogo inter-religioso..., p. 28. 8
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União e equilíbrio são resultados do manako, da reciprocidade. Estes valores mostram uma sociedade pautada em outros processos e estruturas. Tendo estes valores por base, os mesmos sempre de novo alavancam atitudes de inclusão, de respeito, retroalimentando o dar e o receber. Cria-se um ciclo, um ciclo que transforma e que consegue lidar também com conflitos de forma diferenciada. A união e o equilíbrio são melhor vividos em comunidade. O que mais experimentamos, porém, é o crescimento econômico individual. Quando o crescimento econômico é propiciado, seja pelo governo de um país ou por uma empresa do setor privado, a um indivíduo, este não pensa somente no seu crescimento pessoal, mas também em como ele pode ocorrer em prejuízo de outras pessoas. Não somos egoístas somente para guardar pessoalmente os bens, os prestígios, o poder e as influências que adquirimos, mas o fazemos, tentando impedir, dificultar e impossibilitar o mesmo para a outra pessoa. Isso ocorre pela mentalidade generalizada de que o ser humano está no centro da atividade econômica. E, entre os seres humanos, uns se acham mais no centro do que outros. A regra é crescer, desenvolver-se e progredir, não importa como. Se desviamos o olhar para além da humanidade, esta regra também alcança a natureza. Se ela é depredada, se a água dos rios é envenenada, se a floresta é desmatada, nada importa. Importa que o indivíduo seja feliz com a sua riqueza, poder e influência. Este modelo econômico, porém, tem seus limites. Com muito vagar nos estamos dando conta disso. Certos hábitos de consumo, de acúmulo de bens, de uma divisão social entre poucas pessoas ricas e muitas pessoas pobres precisam deixar de existir e ser mudados. É hora de abrir nossas mentes para o diferente, para o que outros povos nos têm a dizer. A sustentabilidade10 do planeta e da vida sobre ele depende desses passos de mudança. 10
A sustentabilidade aqui é entendida como uma visão ampla de sustentar. Ela não se restringe à área econômica, mas não deixa de considerá-la. Sustentabilidade descreve o que é necessário para manter a vida sobre a terra, não somente de um determinado povo ou de um determinado ser vivo ou ambiente. Sustentabilidade traz implícito o significado das relações sustentáveis, da interdependência entre seres humanos e natureza, da cosmovisão de partilha e não de acúmulo de qualquer tipo. Não significa um desenvolvimento econômico verde, nem um crescimento econômico de fundo capitalista, neoliberal e patriarcal, nem o uso desenfreado de recursos, quaisquer que sejam, para introduzir uma fachada sustentável, mas que peca por não mudar estruturas dominantes e homogêneas.
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Diz Raúl Fornet Betancourt, filósofo: Estamos, pois, no marco histórico no qual uma cultura substitui a intensidade da vida do cosmos e a referência ‘cosmológica’ como primeira relação fundante pela lógica da expansão produtiva no espaço – domínio do mundo reduzido a mercado – e a atividade do ser humano num processo de produção calculada e finalizada pelo valor do dinheiro ou pelo interesse para aumentar a riqueza.11
O autor nos diz isso no contexto de sua reflexão a respeito da sustentabilidade. Ele pergunta se este conceito é “uma perspectiva interculturalmente sustentável”. Sua afirmação coloca claramente que há um reducionismo, ou seja, reduzimos a vida a uma única maneira de ser vivida: a do mercado, a da produção calculada, a do valor do dinheiro, a do aumento da riqueza. Os povos indígenas não vivem assim. E, por isso, eles são discriminados, sua cultura é considerada primitiva e inferior, o preconceito em relação a eles é senso comum.
Postulados para o Bem Viver Uma economia que propõe o Bem Viver pode lançar raízes e tornálas profundas com a adesão de cada um/a de nós a ela. Neste momento, quero explicitar os postulados do Bem Viver, a fim de aprofundar este conceito. Estes postulados estão propostos na Constituição da Bolívia e tratam das seguintes características, [...] que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional [...] Priorizar a vida [...]. Obter acordos consensuados [...]. Respeitar e aceitar as diferenças [...]. Viver em complementaridade [...]. Equilíbrio com a natureza [...]. Defender a identidade [...]. Priorizar direitos cósmicos [...]. Saber comer [...]. Saber beber [...]. Saber dançar [...]. Saber trabalhar [...]. Retomar o Abya Yala [...]. Reincorporar a agricultura [...]. Saber se comunicar [...]. Controle social [...]. Trabalhar em reciprocidade [...]. Não roubar e não mentir [...]. Proteger as sementes [...]. Respeitar a mulher [...]. Viver bem e NÃO melhor [...]. Recuperar recursos [...]. Exercer a soberania [...]. Aproveitar a água [...]. Escutar os anciãos [...]12.
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Cf. FORNET-BETANCOURT, Raúl, É a sustentabilidade..., p. 35. Cf. a íntegra destes postulados em BOLÍVIA. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/29688bolivia-25-postulados-para-entender-o-viver-bem. Acessado em: 25 jun. 2012.
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Todos estes postulados tem a ver com a economia. Ao mesmo tempo que o Bem Viver engloba a vida como um todo, este todo da vida aparece nos seus microespaços também. Não se pode pautar o Bem Viver em uma Constituição, se no dia a dia ele não é parte da experiência e vivência do povo. Não se pode pensar o Bem Viver em uma macroeconomia, se a atividade econômica cotidiana está desmembrada, individualizada, presa a antigas maneiras de pensar e organizar-se socialmente. Ainda há alguns comentários a serem feitos: “O viver bem dá prioridade à natureza mais que ao ser humano”.13 Esta maneira de ver e modo de ser é radicalmente diferente, e ela impacta. O impacto é tão mais forte, quanto mais a visão antropocêntrica permanecer assim como está: como o centro por excelência. A visão centrada no ser humano é extremamente presente no dia a dia, literalmente encarnada e incorporada em atitudes, gestos e palavras, evidenciadas principalmente em falas atuais sobre sustentabilidade e em época de Rio +2014. Se a Rio +20 não ultrapassar o patamar antropocêntrico, dificilmente serão alcançados objetivos sustentáveis para todos os seres vivos do cosmos. Pois, “[o] mais importante não é o ser humano [...] mas a vida.”15 Quando se menciona as diferenças, “[n]ão se postula a tolerância, mas o respeito [...]”16 a elas. Respeitar vai mais além do que tolerar. Tolerar ainda carrega em si o sentido de superioridade de algumas pessoas sobre outras, de algumas culturas sobre outras, de algumas regiões geográficas ou geopolíticas sobre outras, de alguns seres vivos sobre outros. Não há um sério envolvimento com o que é diferente, propiciando crescimento, mudanças e transformações. Há somente o espaço da minha atenção ou, mais grave, da indiferença geral. Tolerar pode ser um primeiro passo em direção ao respeito, mas não pode ficar parado aí. O respeito precisa ser alcançado, para que se alcance harmonia e se estabeleça o Bem Viver.
Cf. idem, p. 1. Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Esta Conferência ocorreu no Rio de Janeiro/RJ, nos dias 13-22.06.12. 15 Cf. BOLÍVIA, p. 1. 16 Cf. idem, p. 2. 13 14
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Ainda em relação às diferenças, estas ultrapassam também “o conceito da diversidade [...] porque quando se fala de diversidade só se fala de pessoas”17. Se lembrarmos o texto bíblico da criação em Gênesis18, testemunharemos Deus várias vezes olhando para as criaturas e dizendo que tudo era bom. Estas criaturas eram: o céu, a terra, a luz, os vegetais, as plantas, as sementes, as árvores, as frutas, as estrelas, as aves, os seres vivos nas águas, todo tipo de animais, os seres humanos. As semelhanças e diferenças entre as criaturas foram criadas para viverem lado a lado, interdependentes no planeta, e não em constante confronto. “Um dos principais objetivos do viver bem é retomar a unidade de todos os povos.”19 Esta unidade está baseada na identidade, na revitalização da identidade dos povos. A identidade se baseia na resistência e na resiliência a tantos séculos de repressão, opressão, invisibilização, mortes e explorações. Os valores surgidos destes movimentos de resistência e liberdade são a base da unidade dos povos. “O viver bem não é ‘viver melhor’, como propugna o capitalismo”20. Assim como colocado na introdução deste texto, o Bem Viver é inédito, pois quer ir além do “estou vivendo bem”, “estou vivendo melhor”. Ele quer romper paradigmas, ultrapassar fronteiras, propor novos caminhos, extrapolar limites, inverter conhecimentos, construindo-os desde outras perspectivas. A visão centrada em si e unilateral recebe o enfoque do e para o bem comum. E o trabalho? Dentro da economia de mercado, o trabalho é um grande negócio. A força de cada trabalhador/a é vendida a preços por vezes exorbitantemente ínfimos, em muitos casos sem preço nenhum, transformando-se em trabalho escravo. Ou pessoas se tornam escravas do trabalho. A mentalidade, de qualquer forma, em relação ao afã diário, é de obrigatoriedade para a sobrevivência, é visto, sentido e propagandeado como uma carga, um peso. O conceito de trabalho é eminentemente econômico e visa
Cf. BOLÍVIA, p. 2. Me refiro ao capítulo um de Gênesis. 19 Cf. BOLÍVIA, p. 2 20 Cf. idem, p. 3. 17 18
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lucro. Não é o que preconiza o Bem Viver: “viver bem é considerar o trabalho como festa. [... O trabalho] é uma forma de crescimento [...].”21 Eis um novo e grande desafio que se coloca aos hábitos já tão marcados em uma sociedade do capital. Também este carece de mudanças. E uma mudança de hábitos necessita ser radical, na raiz, não na superficialidade, somente enfeitando estruturas, mantendo-as internamente com o mesmo estilo consumista e de mercado. O Bem Viver está ligado à casa-planeta em que vivemos, tem a ver com novos costumes e leis, com novas economias que precisam começar a ser colocadas em prática, a fim de gerar vida. Qual é o projeto social, econômico e político que se quer gestar e administrar? Esta é uma pergunta que precisa ser respondida com ações concretas aqui e agora! O mundo não é um mercado. O Brasil não é um mercado. O Brasil é um país multiétnico e pluricultural, onde diferentes precisam aprender a se respeitar e a conviver. Esta visão precisa fazer parte de um estudo de economia, administração de empresas e outros cursos que, direta ou indiretamente, lidam com o ser humano. Todas as áreas acadêmicas, a sociedade em geral, governos, as diversas instituições, documentos e leis precisam implementar conceitos e práticas na perspectiva cósmica do bem comum. Não somos iguais um ao outro, viemos de lugares diferentes, cada um tem uma concepção de vida. É a vida que precisa ser reafirmada e incluída no cotidiano.
Conclusão Ao falarmos aqui do Bem Viver, buscamos reafirmar, junto e com os povos indígenas, uma outra lógica: a lógica que vê o ser humano interdependente com a natureza, os animais, as plantas, os seres vivos. O ser humano é uma unidade de corpo físico, corpo emocional e corpo espiritual. Não existe um ser humano que não viva nesta integridade. Se vivemos a fragmentação é porque a cultura ocidental, mercantilista, desenvolvimentista, economi-
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Cf. id. ibid, p. 2.
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cista, consumista construiu o ser humano reduzido a esta visão. Mas há muito mais por detrás deste horizonte e que pode tornar-se real, palpável, concreto, como já o é entre os povos indígenas. A nova lógica precisa estar imersa no cosmos, precisa partir dele e chegar nele. É a visão cosmocêntrica, onde a prioridade é o meio ambiente e não o ser humano. O cosmos não pode ser reduzido ao mercado, nem nossas vidas e a das florestas, a mercadorias. Somos mais que isso. Somos seres humanos dependentes e gestados pela terra, pela água, pelo fogo, pelo vento, pelas relações que veem no diferente uma razão para crescer, para abrir suas mentes, para permitir novas ideias e atitudes. Vamos economizar, ou seja, administrar com cuidado a riqueza do cosmos. Vamos fazer isso em uma relação de reciprocidade, na qual vale mais quem dá, do que quem guarda, quem divide, do que quem acumula. Pensar no bem de todos é a chave interpretativa.
Referências A BÍBLIA Sagrada. Tradução na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. BOLÍVIA. 25 postulados para entender o ‘Viver Bem’. In: http:// www.ihu.unisinos.br/noticias/29688-bolivia-25-postulados-para-entender-o-viverbem. 4p. CARTA do Povo Jaminawá do Estado do Acre. In: http://www.cimi.org.br/site/ pt-br/?system=news&action=read&id=6178. FERREIRA, Bruno. Concepção. In: http://www.comin.org.br/news/publicacoes/ 1330545172.pdf. FORNET-BETANCOURT, Raúl. É a sustentabilidade uma perspectiva interculturalmente sustentável? Elementos para a crítica de um conceito bem intencionado, porém insuficiente. In: CAMARGO, César da Silva; CECCHETTI, Elcio; OLIVEIRA, Lílian Blanck de (orgs.). Terra e alteridade. Pesquisas e Práticas Pedagógicas em Ensino Religioso. São Leopoldo: Oikos; Nova Harmonia, 2007. p. 32-46. MARKUS, Cledes (org.). Povo Kaingang: vida e sabedoria. Semana dos Povos Indígenas 2012. São Leopoldo: Oikos, IECLB, COMIN, ISAEC, 2012. 27p.
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PROJETO Microbacias 2. Aldeia Tekohá Marangatú. In: http:// www.microbacias.sc.gov.br/visualizarNoticia.do?entity.noticiaPK.cdNoticia=6310. TISS, Frank. Diálogo inter-religioso e autoconsciência étnica entre os Kulina. In: Um só Deus criador – Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas. Cadernos do COMIN, v. 11. São Leopoldo: EST, Oikos, COMIN, 2012. p. 9-33.
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Reconciliação com a criação: Concepções de terra a partir da Vinha de Nabote (1 Reis 21,1-29)
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Cledes Markus 2
Um jardim, uma praça, um espaço de paz e justiça, 1de vida digna e fraterna, com respeito diante de Deus, cooperação entre as pessoas e cuidados para com a natureza: assim a Bíblia nos mostra logo no começo, na história da criação, a vontade de Deus. Mulheres e homens, crianças e adultos, pessoas idosas em companhia de Deus vivem fraternas relações entre si e com a natureza. Esta bonita descrição, contida em Gênesis e profetizada em Zacarias 8,4-5 é esperança para o nosso mundo. O jardim e toda a criação estão sendo maltratados e subjugados. Esta realidade exige um compromisso evangélico e aponta para a necessidade de uma reconciliação. Na nossa esperança podemos desejar, através do poder do Espírito Santo, que promove a reconciliação, um tempo novo e bom em que o jardim será novamente um espaço de paz, justiça e convivência fraterna. Assim, este texto quer contribuir na reflexão sobre reconciliação com a criação. A partir da narrativa da vinha de Nabote de 1 Reis 21,119, serão apontados elementos que auxiliem na reflexão e na prática deste processo.
Texto original foi publicado no site da IECLB como parte do subsídio para o tema do ano da IECLB, de 2008, “Pelo poder do Espírito, proclamamos a reconciliação”. 2 Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB/SC. Especialista em Antropologia pela Pontificia Universidad Católica del Peru – PUC/Lima/Peru. Especialista em Ensino Religioso pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação – IEPG/EST/RS. Bacharel em Teologia pela Faculdades EST/RS. Docente da Faculdades EST. Coordenadora do Programa de Formação do DAI/COMIN da ISAEC. 1
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1. Contexto histórico O contexto histórico é o Reino do Norte e o poder está nas mãos da dinastia de Amri (884-841 a.C.). Este foi um período de fortalecimento de Israel através da política externa de alianças e da política interna de reforço do Estado. No plano externo, através da aliança com Tiro e Sidônia, consolidada pelo casamento de Acabe e Jezabel. A política interna esteve marcada pela construção de Samaria como nova capital de Israel (1Rs 16,24). Estas políticas trouxeram desenvolvimento econômico para Israel, mas com ele também um grande desequilíbrio social que tendia a colocar as pessoas mais fragilizadas à mercê das que tinham mais posses. Os camponeses estavam cada vez mais fragilizados, enquanto os latifundiários cresciam em número e em posses. Portanto, houve uma separação evidente entre os beneficiários da política da Casa de Amri e os excluídos pelo sistema (LÓPEZ, 2002). Neste contexto é que se inseriu a atuação do profeta Elias. Segundo a tradição bíblica, Elias, o tesbita da cidade de Tesbi em Gallad (1Rs 17,1), exerceu a sua atividade durante os reinados de Acabe e Ocozias (874-852 a.C.). Deste modo, a ascensão e o descenso da dinastia fundada por Amri (884-841 a.C.), pai de Acabe, forneceu o pano de fundo no qual surgiram as tradições de Elias (LÓPEZ, 2002, p. 64). Importante salientar que Tesbi ficava ao leste do Jordão e havia sido colonizada por israelitas e, com isso, a fé Javista herdada dos patriarcas estava muito viva, o que explica o profundo conhecimento do profeta em relação às tradições de seu povo, incluindo as concepções em relação à terra.
2. Aproximação ao texto A narrativa Nabote, um Jezreelita, possuía uma vinha ao lado do palácio que Acabe, rei de Samaria, tinha em Jezreel. O rei Acabe queria comprar esta vinha e transformá-la em um jardim. Acabe calculou o valor de compra e venda da terra e ofereceu um ótimo negócio para Nabote. Procurou-o e lhe ofereceu, em troca desta vinha, outra vinha melhor ou então uma quantia
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razoável em dinheiro. Esta oferta, na perspectiva do mercado, pareceu bem adequada. Ninguém sairia perdendo. Nabote, no entanto, teve uma reação de indignação diante desta oferta. Ele afirmou que Deus o livre e guarde de dar a herança de seus pais nesta negociação. A concepção da terra como herança dos seus pais tem um significado muito importante. Isto fez Nabote reagir com indignação diante da proposta de compra e venda. Desgostoso, Acabe voltou para casa e ficou sem comer. Sua mulher Jezabel percebeu o aborrecimento do rei. Ao saber que Nabote não tinha vendido a vinha ao rei, ela ficou indignada e prometeu consegui-lo de qualquer forma. Preparou uma conspiração para matar Nabote. Ordenou que dois homens malignos dissessem falso testemunho contra ele. Em consequência, Nabote foi apedrejado até à morte. Acabe foi comunicado da morte de Nabote e tomou posse da vinha. Entrementes, o profeta Elias recebeu a palavra de Deus para denunciar Acabe e Jezabel da morte de Nabote e da posse inadequada da sua herança. Até aqui a narrativa. Concepções diferenciadas da terra Neste texto, portanto, encontramos duas concepções distintas de terra. Acabe considerou a terra como mercadoria, como um bem negociável: “Cede-me tua vinha, para que eu a transforme num jardim do palácio, já que ela está situada junto ao meu palácio; em troca te darei uma vinha melhor, ou se preferires, pagarei em dinheiro o seu valor” (v. 2). Para Nabote, a terra era herança inalienável: “Javé me livre de ceder-te a herança dos meus pais” (v. 3). Nesta concepção não pode dispor e vender a terra. Ela foi mantida em confiança de geração para geração. Nabote percebeu a si próprio e a terra numa relação de aliança. Nesta relação há uma história de fidelidade que não começou com ele e não acabará com ele. Na narrativa, portanto, encontramos compreensão diferenciada de terra. Uma é a de Nabote, que representa a perspectiva das pessoas do povo de Jezreel, e a outra a de Acabe, que representa a visão da monarquia.
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Concepção de terra pela monarquia A concepção de terra pela monarquia é a de propriedade particular que pode ser negociada ou tomada. Segundo Dobberahn3 esta concepção pode ter influências da tradição Cananéia, que favorecia a compreensão de que o solo pode ser propriedade privada e com isso permitia, sem restrições, compra, venda e especulações com os terrenos. No aviso crítico de 1 Samuel 8,10-18, ecoa esta concepção: os reis se julgam senhores da terra; proprietários dos campos, das vinhas e dos olivais; donos dos animais e dos rebanhos; e, além disso, senhores sobre a vida das pessoas ligadas à terra. Esta visão mercantilista da terra, portanto, é encontrada em 1 Reis 21,2 em que o rei Acabe tentou negociar a herança inalienável de Nabote. As leis foram manipuladas para tal e, por fim, a morte do camponês foi forjada para efetuar a tomada da terra. Bases da concepção de terra por Nabote4 A concepção de terra ligada ao mundo israelita é o conceito da “herança” (HAHALAH), que engloba aspectos importantes: a terra é vista como criação, propriedade e dom de Javé, dada para habitação dos povos (das tribos/clãs), distribuída equitativamente para ser herança inalienável. Esta concepção coincide com a visão de Nabote. Para o entendimento desta concepção, abordar-se-á cada um dos aspectos implicados. A terra como Criação de Deus Uma das afirmações teológicas que perpassa a história de Israel é a de que terra é obra da criação de Deus, que a fez boa e formosa. Ela reconhece a presença de seu criador e percebe que sua existência depende dele, já que precisa de chuva, do orvalho e da fertilidade para poder ser mãe e produzir muitos e saborosos frutos. Portanto, Deus cuida da terra e continuará olhando por ela continuamente (Dt 11,10-12).
DOBBERAHN, F. E. Trabalho e direito fundiário. In: Estudos Bíblicos n. 11, Petrópolis, Vozes,1986, p.70. 4 ALFARO, Juan I. A terra prometida: Sacramento da libertação do Êxodo. In: Estudos Bíblicos n. 13, Petrópolis, Vozes, 1987. 3
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Segundo Alfaro, a terra tem uma íntima relação com a humanidade e com todos os demais habitantes. A pessoa e os demais seres, como as aves e os animais são criados a partir da terra (Gn 2,19) e, por isso, estão intimamente relacionados e se necessitam mutuamente. A terra como criação de Deus é sagrada e um tesouro que precisa ser respeitado, e, portanto, não é lícito prejudicá-la (Dt 20,19). Esta prescrição aponta também para uma preocupação ecológica, pois a destruição da terra traz como consequência a destruição de todos os seus habitantes (2Rs 3,24-25). A terra como dom 5 A doutrina de que a terra é dom de Deus é uma das mais repetidas entre o povo de Israel. Por suas tradições, este povo sabe que a terra é dada pelo doador de bons dons e ser dotado de terra é “sola gratia”. Este dom é seguido de outras dádivas anexas que incluem ricas fontes, rios e chuva; todo o tipo de metais, toda espécie de frutas (Dt 6,10-12; Sl 65). Estas dádivas se convertem em fonte de abundância, saciedade, segurança, liberdade, paz e dignidade. A terra como dom deve ser cuidada, amada e adornada, pois ela tem o caráter sagrado (1 Reis 17,8-16). Deus faz sentir sua presença e revela seu amor em todo o universo. A afirmação teológica de que toda a terra vem da mão de Javé e é dada a toda humanidade, contém a concepção de dom comunitário. Este princípio deve iluminar o relacionamento de todos os povos com ela. Neste sentido, este dom é visto como sinal da aliança de Deus com o seu povo; um presente da mão de Javé para a base existencial do seu povo (Êx 20,12). Da mesma forma, através do dom da terra, Deus libertou Israel de seus opressores, garantindo dignidade de vida (Êx 3,7s). Esta concepção teológica traz consequências diretas na relação do povo com a terra, acentuando a responsabilidade social e a dimensão comunitária nesta relação.
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BRUEGGEMANN, Walter. A terra na Bíblia: dom, promessa e desafio. São Paulo, Paulinas, 1986, p. 74.
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A terra é de Javé Outra afirmação associada à concepção da terra como herança é a de que ela é dádiva de Javé e está designada como herança para todo o povo (Sl 24,1-2). As pessoas são chamadas a cuidar, respeitar, proteger e passá-la para os seus descendentes. Esta concepção traz implicações nas relações que se estabelecem entre o povo e a terra: ela não poderá ser vendida (Lev 25,23) e se alguém por circunstâncias diversas for obrigado a vender sua terra, terá direito de resgatá-la. Esta prescrição impede a formação de latifúndios; consequentemente, evita o surgimento de desigualdades sociais. Outra implicação em relação a isso é o cultivo da terra. Anualmente, a cada colheita, as pessoas necessitadas tinham o direito de ir aos campos colher os últimos cereais, cachos de uvas e azeitonas. Os peregrinos podiam alimentar-se do que encontravam na beira do caminho. Ademais, a cada sete anos – ano sabático – a terra devia descansar solenemente, sem cultivo nenhum. Isto significava que a terra, em si mesma, tinha o direito de repousar. Ela era portadora de direitos peculiares, divinamente garantidos. A motivação desta prescrição ultrapassava os benefícios da terra, atingindo beneficiários secundários que eram as pessoas necessitadas do povo e os animais, pois tudo aquilo que a terra produzia por si mesma lhes era reservado (Ex 23,10-12; Lev 25,1-7). Esta prescrição aponta para o respeito pela terra e o ciclo da natureza no seu aspecto ecológico; apresenta o respeito para com os habitantes da terra, no seu aspecto social, em que todos igualmente podem participar da colheita dos frutos; indica também o respeito para com Deus, reconhecendo-O como criador da terra. O ano sabático também previa a prática da libertação de escravos, o perdão de dívidas e o resgate de propriedades confiscadas por dívidas. Com isso, a terra estava envolvida em uma dimensão social de erradicação da pobreza e restauração da justiça. A terra como dimensão da história da família A terra como herança tem que ser entendida como dimensão da história da família. Segundo Alfaro, “a terra da família era algo sagrado que
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ligava permanentemente uma pessoa com seus antepassados; recebia-se destes para passá-la àqueles, já que era sempre a “herança dos pais” (ALFARO, 1987, p. 17). A terra é herança, o que significa que é mantida em confiança de geração para geração e afirma a existência de redes permanentes e elásticas de significado e de relacionamento dentro das quais alguém é colocado, e que são fundamentais para o molde da sociedade. Neste sentido vamos encontrar diversas prescrições sobre essa herança. Em Nm 26,53s encontramos a distribuição equitativa da terra promovida por Javé entre as tribos, conforme a necessidade de cada família/clã/ tribo em função de seu número. Esta lei procurava preservar a justa distribuição da terra, impedindo que a sua acumulação criasse latifúndios. Em Dt 19,14 encontramos as leis que exigem o respeito à propriedade recebida como herança. Em Nm 36,7-9 a lei de preservação da propriedade no seio de cada tribo/clã, declara a herança inalienável. Denúncia e anúncio do profeta Em Israel, os reis não são livres para controlar a terra como eles querem. A terra precisa ser entendida de maneira peculiar. Esta peculiaridade de Israel inclui um componente adicional que é o profeta. É o profeta que vai afirmar constantemente as dimensões de governo e de manejo da terra. O texto aponta para duas concepções de terra em conflito: a do Estado, que é a da propriedade privada, e a de Nabote, que é pré-estatal e se refere à terra como herança. O profeta precisa garantir que a terra seja discernida como dom e como herança. O profeta é suscitado por Javé, sua autoridade deriva de Javé. Mas ele também é um entre os irmãos israelitas que participa da vida, da fé e da história de Israel com Javé. O profeta é alguém comprometido com a terra como dom e com a concepção pré-estatal. Ele é designado para articular essa consciência contra todas as seduções do poder e de segurança. Assim, no v. 17, o aparecimento de Elias, porta-voz de Javé, defensor de Nabote, e opositor deste tipo de realeza, denuncia o confisco régio, através da corrupção, manipulação e morte. O discurso de Elias é inconfundível. Primeiro há a acusação: “Assim diz o Senhor: mataste e também tomaste posse” (v. 19). O delito é contra a pessoa e contra a herança e, em
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consequência, contra Deus, que assim o organizou. Semelhantemente é acusada a concepção proprietária da terra, que é igualmente opressão da terra. Isto não fica sem punição. O profeta, ao anunciar o fim da arrogância, apresenta Javé como interventor ativo de seu povo e personifica não só uma palavra vigorosa, mas também uma história radicalmente alternativa.
3. Reflexões sobre o texto Um processo de reconciliação com a criação traz em si a necessidade de se assumir novas relações com a terra e a criação. Neste processo é importante rever as concepções de terra e criação que fundamentam nossas ações e relações. Também é importante perguntar pelos sonhos de Deus para estas relações. No texto da vinha de Nabote existem concepções e relações diversas no que se refere à terra e à criação. O que determina que culturas construam formas diferenciadas de concepções e relações com a terra, é a sua cosmovisão, é a sua forma global de perceber, interpretar e agir no mundo. Algumas culturas concebem a terra como um organismo vivo e lhe conferem um caráter social, mantendo uma estreita e afetiva ligação com ela e, através dela, com todos os seres que nela coabitam. Outras culturas transformam-na em um bem, uma posse, uma propriedade particular, um meio de produção, estabelecendo domínio sobre ela e sobre todos os demais seres que a habitam. A diversidade de relações, portanto, produz uma diversidade de práticas sustentáveis ou não. Desta forma, não se pode generalizar e dizer que toda a humanidade é responsável pela destruição ecológica. Os próprios organismos da ONU têm reconhecido que existem culturas e povos, como por exemplo, os indígenas, que, quando respeitados em suas tradições, têm sido guardiões da integridade da terra, da água e de toda criação. E, tal qual Nabote em sua relação com a terra, podem inspirar concepções para uma nova relação com a terra.
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Concepção indígena da terra A partir da cosmologia indígena é possível perceber que, para estas culturas, a terra é um organismo vivo fazendo parte da rede de conexões existente no cosmos. A terra está dotada de agência e intencionalidade e participa das relações de reciprocidade que se estabelecem com os demais componentes deste cosmos. As relações com a terra, portanto, são relações sociais. Na carta que o Cacique Seatle do povo Suquamish escreveu para o presidente dos Estados Unidos, percebe-se a mesma indignação de Nabote, quando foi interpelado com uma proposta de compra de sua terra indígena. O cacique menciona na carta: O Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a nossa terra... Como podes comprar ou vender o céu e o calor da terra? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo. Cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo... Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia – são nossos irmãos.... O sangue dos nossos ancestrais corre nesta terra e a voz do pai de meu pai ecoa nela. Cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro. Ele trata a terra como coisas que podem ser compradas, saqueadas e vendidas. Fica esquecido do direito dos seus filhos à herança. Sua voracidade arruinará a terra. De uma coisa sabemos: A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à terra.6
Esta fala permite entrever a cosmologia indígena, em que prevalece a visão integrada do universo que forma um todo, envolvido numa rede de relações e interações entre os seres e as forças que o compõem. Os seres humanos, as espécies minerais, animais e vegetais, os ancestrais, as divindades, as forças e energias, tudo está conectado formando uma comunidade e uma complementaridade. É expressivo quando o cacique afirma que “somos parte da terra e ela é parte de nós [...] todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família”.
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FONAPER. Capacitação para um novo Milênio: Ensino religioso e o fenômeno religioso nas tradições religiosas de Matriz Indígena. Caderno 5.
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Outras falas indígenas também apontam para esta concepção da terra como um ser vivo. Para o povo Guarani a terra tem alma, corpo, veias, respira, chora. Alexandre Acosta, líder Guarani da aldeia de Cantagalo (RS), comenta: Esta terra que pisamos é um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós7.
Outro aspecto importante do modo indígena de perceber o mundo e a natureza é que toda criação, todos os seres, todas as forças, todo o tempo e todas as atividades estão impregnadas e refletem um caráter sagrado. As narrativas indígenas mostram isso. Rosalina Kasu Fey, do povo Kaingang, relata: A água para o povo Kaingang é sagrada e tem segredo. Ela tem muita importância para todos nós. Quando adoecemos, os nossos pais nos levam para o Kujá antes de amanhecer... Nós Kaingang, acreditamos que tudo o que é da natureza tem o seu espírito. Por isso, devemos respeitar cada ser da natureza, assim como a água.8
A terra como mãe Uma das concepções mais evidentes dos povos indígenas em relação à terra é a de mãe. Esta ideia está associada à característica da fecundidade e dos cuidados maternais. A terra é provedora da vida e de tudo o que é necessário para que a vida se mantenha. Os Quéchua chamam-na de “Pacha mama” isto é, terra-mãe. Pedro Salles, liderança do povo Kaingang, do Rio Grande do Sul explica: A terra para o Kaingang significa uma mãe. A terra é aquela que dá alimento e água, igual à mãe que oferece alimento de seu corpo para o seu filho, enquanto que o branco pensa que a terra é um instrumento de riqueza. Por
FREIRE, José Ribamar Bessa. Corta essa de suicídio. Disponível em: <http:// www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004>. Acessado em: 20 mar. 2012. 8 MARKUS, Cledes (Org.). Povo Kaingang: vida e sabedoria. Semana dos Povos Indígenas 2012. São Leopoldo: Oikos, IECLB, COMIN, ISAEC, 2012, p. 10. 7
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isso ele não reconhece seu irmão, seu semelhante e discrimina cada vez mais aquele mais fraco, que não tem condições de enfrentá-lo, de concorrer com ele...9
Para Lúcio Flores, do povo Terena “a terra é importante e sagrada, nela dançamos e cantamos as nossas tradições. Nós amamos a terra porque é nossa mãe.” A expressão “nós amamos a terra” pode indicar um tesouro precioso que está dentro dessa relação. Essa declaração de amor, que foi proferida num memorável encontro de espiritualidade indígena, em Cuiabá/MT, dá pistas para entender a profunda interdependência existente entre o índio e a terra e vice-versa; terra aqui não é só solo, muito menos o símbolo de riqueza, o bem de elevado valor comercial, mas o espaço de vida, cheio de vidas e gerando vidas... A terra é a nossa mãe e deve ser tratada assim, com todo respeito. Para nós a terra não alimenta apenas o corpo, mas a fé, e é dela que somos impulsionados para a vida”10. Para o povo Xokleng a terra também é considerada como mãe. O professor Nanblá afirma que “os Xokleng têm uma relação muito forte com a terra. É como uma ligação umbilical”11. Na concepção deste povo, existe uma profunda interdependência entre o indígena e a terra, comparada a uma ligação umbilical, e por isso é referenciada como mãe. Ela cuida dos indígenas e dos seres de todas as espécies, alimenta-os e lhes dá a vida. Os povos indígenas, portanto, a partir da concepção da terra como mãe, se consideram filhos e filhas da Terra numa estreita ligação umbilical para com ela. Na cosmologia indígena, portanto, as relações e interações entre os habitantes do cosmos, tem um aspecto eminentemente social. Viveiros de Castro menciona: Se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude básica das culturas indígenas, diríamos que as relações entre uma sociedade e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas12.
CIMI. Por uma terra sem males: Semana dos Povos Indígenas 2002. Brasília: Sapiens Comunicação, 2002. 10 FLORES, 2003. p. 14. 11 MARKUS, 2006. p. 50. 12 CASTRO, Eduardo Viveiros de. A natureza em pessoa: sobre outras práticas de conhecimento. Palestra do Encontro “Visões do Rio Babel. Conversas sobre o futuro da bacia do Rio Negro”. Instituto Socioambiental e Fundação Vitória Amazônica: Manaus, 22 a 25 de maio de 2007. p. 7. 9
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Segundo ele, o saber indígena está fundamentado em uma teoria associada à imagem de um universo comandado pelas categorias da agência e da intencionalidade, isto é, todos os componentes do cosmos têm voz ativa, são sujeitos e agentes. Neste sentido, a natureza não é “natural”, isto é, passiva, objetiva, neutra e muda – os humanos não têm o monopólio da posição de agente e sujeito, não são o único foco da voz ativa no discurso cosmológico.13 A espécie humana, portanto, não é um caso à parte dentro da “criação”, pois, todas as espécies de seres são dotadas e constituídas com sabedoria, racionalidade, emoções e espiritualidade. Desta forma, no pensamento das sociedades indígenas existe a equivalência entre as pessoas humanas e os demais seres do universo. Também existe a possibilidade de comunicação entre os diversos seres e forças do cosmos. Segundo o teólogo Leonardo Boff, esta visão engloba interação e comunhão: Pelo cuidado não vemos a natureza e tudo que nela existe como objetos. A relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Experimentamos os seres como sujeitos, como valores, como símbolos que remetem a uma realidade fontal. A natureza não é muda. Fala e evoca. Emite mensagens de grandeza, beleza, perplexidade e força. O ser humano pode escutar e interpretar esses sinais. Coloca-se ao pé das coisas, junto delas e a elas sente-se unido. Não existe, co-existe com todos os outros. A relação não é de domínio sobre, mas de con-vivência. Não é pura intervenção, mas inter-ação e comunhão.14
A sinfonia reconciliada da Criação Em diversas tradições culturais, como a de Nabote e dos indígenas, o planeta é visto como um organismo vivo em que tudo está interligado, e em que todos os seres têm agência e tem o sopro da vida divina. Em outras tradições culturais, no entanto, é transmitido que os humanos são os únicos seres com voz ativa no planeta e como tal são os donos do mundo e podem explorá-lo como bem entendem. Isto os levou a olhar a terra como objeto a
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CASTRO, 2007, p. 7. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 95.
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ser explorado para enriquecer e não como dom que dá vida e sustenta. Esta mentalidade criou um abismo entre as pessoas e o resto da criação. O resultado desastroso dessa prática foi lamentado pelos líderes e professores Kaiowá quando falam da sua experiência no Mato Grosso do Sul, em carta de 17 de março de 2007: O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida15.
Lideranças Guarani do Rio Grande do Sul também alertam: “Aquele que zela pelo leito das selvas também está falando que dessa forma já não é mais possível prosseguir, tudo já está se extinguindo.”16 Os povos indígenas ressaltam a sabedoria existente em cada vida e alertam para a necessidade de ouvir estas diversas vozes em seu clamor. Vemos isso nas palavras do cacique Félix Karaí Guarani: Entretanto, quase ninguém se apercebe de que é necessário render respeito também às matas, às árvores... As árvores, que são seres dotados de alma, estão nos alertando, através de seus murmúrios de tristeza, de que não devem continuar sendo cortadas. Consequentemente já não produzem mais frutos perfeitos, já não mais florescem formosamente.17
O que cabe, portanto, é questionar qual é o conhecimento que foi sendo construído em relação ao universo. Paradigmas precisam ser desconstruídos. É necessária uma mudança fundamental nos pensamentos, percepções e valores. Esta será uma forma de proporcionar novos olhares para a terra e para toda a criação. Somente se o ser humano ocupar seu lugar no meio das outras criaturas é que poderá contribuir para engrandecer a sinfonia do universo.
FREIRE, José Ribamar Bessa. Cor ta essa de suicídio. Disponível em: <http:// www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004>. Acessado em: 20 mar. 2013. 16 GARLET, Ivori José (coord.). Discussões sobre a situação de saúde dos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: COMIN, 1998. p. 8. 17 GARLET, Ivori José (coord.). Discussões sobre a situação de saúde dos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: COMIN, 1998, p. 8. 15
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O povo Xokleng conta que aprenderam alguns elementos curativos de sua medicina com os animais. Por exemplo, o poder curador de certa planta foi adquirido quando os antigos observaram os macacos que se machucavam: a mãe macaca ia buscar a folha de determinada árvore e a colocava no machucado e, ao mesmo tempo, abraçava o filhote fazendo-lhe carinho. Assim, quando uma criança Xokleng se machuca, eles seguem as instruções das macacas. Aplicam a folha daquela árvore no machucado e fazem carinho na criança. E ela fica curada. Eles testemunham que aprendem também com outros elementos da criação. Na história da vinha de Nabote o profeta Elias denunciou o delito contra a terra, contra as pessoas e contra Deus e o veredicto foi o anúncio do castigo. No texto, Acabe arrependeu-se e, por isso, não foi castigado com a morte. Deus viu seu arrependimento e compadeceu-se dele. Mas o seu delito trouxe consequências para os seus descendentes que sofrem o castigo (29). Assim, os atos de Acabe trazem consequências para as gerações futuras. De igual modo, a sede consumista, a falta de cuidados e os maus tratos para com a natureza, o agir inconsequente e egoísta das pessoas, traz prejuízos enormes para toda a criação. E, por isso, requer de todos(as) nós arrependimento e atitudes de reconciliação. No processo de reconciliação há a necessidade do reconhecimento de que a terra e a criação pertencem a Deus, e que Ele as deu de herança a todos os povos. Não podem ser propriedade de uma parte da sociedade. São dádivas de Deus para o bem-estar de todos. Isto significa que todos têm o direito de viver na terra e de serem sustentados por ela. Apropriar-se da terra ou de qualquer outro ser da criação é roubo! A radicalidade que se encontra nesta concepção é semelhante à do Evangelho do Reino, que transforma e liberta radicalmente. A afirmação teológica da terra e da criação serem dádivas de Deus deve servir de orientação para a ação das pessoas comprometidas com o Reino de Deus. A luta pelos direitos e dignidade de todo o universo deve ter consequências nas estruturas jurídicas das nações. Neste contexto, já temos o exemplo da Bolívia e do Equador, que incluíram em suas constituições diversos itens que preveem o Bem Viver e o direito de toda a criação.
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No processo de reconciliação é necessário rever a missão de ser zelador e cooperador com a criação. Esta missão encontra no cotidiano o espaço privilegiado para atitudes, condutas e cuidados para com a criação. Por exemplo: ser críticos e conscientes do que é consumido e restringir o uso de energia e água, diminuir a produção de lixo, reciclar o máximo possível e repensar quais os produtos que realmente são necessários para o bem-estar. Além disso, ser seletivo com os alimentos, rejeitar os que ameaçam a integridade da terra e a saúde e escolher os que são produzidos dentro de padrões de justiça, de sustentabilidade ecológica e de cuidados com quem vai consumir. No texto da vinha de Nabote, a terra é concebida como herança e tem uma função social. Da mesma forma o processo da reconciliação com a criação inclui esta dimensão: considerar as irmãs e os irmãos mais vulneráveis em seus direitos de qualidade e dignidade de vida; empenhar-se pelos direitos humanos da diversidade cultural e biológica; contribuir para eliminar discriminações em todas as suas formas, como aquelas baseadas em etnia, cultura, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social. Enfim, defender, sem discriminação, o direito de todas as pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual. Um aspecto relevante, intrínseco na concepção da tradição do povo de Nabote em relação à terra, é que não só as pessoas e a comunidade são consideradas e têm direitos, mas todos os seres vivos são respeitados e têm direitos. A terra tem o direito de descansar, os animais têm o direito a segurança alimentar, as árvores não podem ser cortadas indistintamente. De igual modo, no processo de reconciliação, todos os seres vivos merecem respeito e consideração. Assim, é fundamental empenhar-se e impedir abusos e crueldades; denunciar desmatamentos e cortes ilegais de árvores; proteger a diversidade de plantas medicinais e utilitárias das diversas culturas; empenhar-se em reflorestamentos de árvores nativas; cultivar hortas medicinais; plantar e enfeitar ruas, praças e jardins com flores, propiciando assim, lugares agradáveis de viver e conviver. A terra como herança levou Nabote a pensar na dimensão da história da família, em seus antepassados e na geração vindoura. A reconciliação com a criação é processo que precisa ser levado adiante. Este ministério
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deve ser legado como herança a filhas e filhos. Enfim, o grande desafio é empenhar-se na formação que integre atitudes de respeito, cuidados e vinculação afetiva com a terra e a tudo e todos que nela coabitam. Não apenas herdamos a terra dos nossos antepassados, mas a tomamos emprestada de filhas e filhos, netas e netos.
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Tecendo relações além da aldeia: o artesanato indígena em cidades da Região Sul Alexandra Carvalho P. de Palazuelos 1 José Manuel P. Palazuelos Ballivián 2
Introdução O presente artigo busca destacar a comercialização do artesanato indígena realizada diretamente pelas famílias artesãs além das fronteiras da aldeia, defendendo que este comportamento faz parte do modo de ser indígena e, portanto, importante na afirmação cultural e autorrealização pessoal e do grupo. Porém, frente a esse comportamento – da presença de minorias étnicas (autóctones) nos centros urbanos – observa-se também a reação de um forte preconceito e rejeição por parte da sociedade não indígena e de certas estruturas. Esta situação desafia para a necessidade de conhecer e compreender melhor algumas especificidades e particularidades desses povos que, historicamente, mostram-se diferentes no seu modo de ser, de estar e de relacionar-se no mundo. Por isso, conceitos como: território, mobilidade e relações através do artesanato são analisados desde uma perspectiva indígena. Finalmente, assinalam-se alguns aspectos que podem orientar para a construção de um processo de reconhecimento e inclusão diferenciada desses coletivos e que podem servir de desafios para uma transformação pessoal, de reconciliação, que permitam o rompimento de dicotomias que dividem os seres em superiores e inferiores, e de uma interculturalidade mais efetiva de aprendizagem mútua em favor do Bem Viver de todos.
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Discente do Curso de Sociologia – Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Mestre em Agroecossistemas pela UFSC. Assessor do Conselho de Missão entre Indígenas – COMIN/ISAEC-DAI.
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1. A presença indígena que contrasta 1.1 Famílias artesãs nos centros urbanos É um fato que, tanto no Brasil como em muitos outros lugares da América Latina, os povos indígenas remanescentes apresentam toda uma relação histórica com a atividade artesanal. Na atualidade, em várias cidades da Região Sul do Brasil, principal ou mais intensamente nas épocas festivas perto do Natal, da Páscoa, e das férias de verão nas praias e balneários, e inclusive em eventos como feiras, exposições e festas regionais, é comum encontrar famílias indígenas artesãs pertencentes principalmente aos povos das etnias Kaingang e Guarani. São grupos familiares compostos por adultos, idosos, jovens e crianças que perambulam pelas ruas do centro, bairros e vilas comercializando uma diversidade de artesanatos elaborados por eles mesmos, uns trazidos do lugar de origem e outros elaborados durante a sua estadia temporária nessa cidade. Comumente as famílias ficam acampadas em terrenos baldios, perto das rodoviárias ou à beira de estrada, dentro da faixa de domínio público; e quando é o caso, acampam também em espaços indicados e cedidos pela prefeitura do município. Normalmente as famílias artesãs constroem barracas rústicas de taquara e lona preta e, dependendo das condições, tentam sempre garantir a prática do fogo no chão (fogo de lenha) para a preparação do mate ou chimarrão e consumo dos seus alimentos. É comum a dificuldade que têm de dispor de água potável e de banheiros; somam-se a isso a insegurança e outros perigos da cidade a que estão expostos. Atualmente são poucos os municípios que disponibilizam de algum espaço fixo para seu acampamento e principalmente de condições de apoio que garantam a comercialização satisfatória dentro da perspectiva das famílias artesãs. Alguns indígenas se queixam que os (poucos) lugares destinados para acampar estão localizados muito distante dos centros de comercialização e de maior fluxo de gente, obrigando-os a caminhar longas distâncias ou a realizar gastos com ônibus urbano, o que tem desanimado a permanência nesses lugares.
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1.2 Por que vêm na cidade se já têm sua própria terra? Este é um questionamento comum de se ouvir de muitas pessoas que desconhecem a história e realidade atual dos povos indígenas. Ainda que pela Constituição Federal de 1988 o Brasil se reconheça como um país multiétnico e pluricultural, e que a discriminação étnica passou a ser considerada crime, paradoxalmente perguntas como esta continuam sendo levantadas por uma grande maioria de cidadãos não indígenas, muitos deles descendentes de imigrantes europeus que foram assentados na região Sul a partir dos séculos XVII e XVIII (portugueses) e entre os séculos XIX e XX (alemães e italianos, principalmente). Hoje, em pleno século XXI, grande parte dos artesãos indígenas, que saem de suas terras para comercializar o artesanato nos diversos centros urbanos da região sul, são confrontados negativamente com posturas críticas, de reprovação e, inclusive, de rejeição deliberada, direta ou dissimuladamente, provenientes tanto de cidadãos comuns e do comércio formal quanto de algumas estruturas governamentais que administram os municípios visitados. Nesse sentido, se levanta a seguinte questão: estariam estes grupos – os artesãos indígenas – sofrendo um tratamento social desigual nas cidades, que desrespeita as suas diferenças étnico-culturais e, portanto, os exclui do exercício de sua cidadania, ficando à margem das políticas públicas de inclusão? [...] desigualdade social e discriminação se articulam no que se convencionou denominar “exclusão social”: impossibilidade de acesso aos bens materiais e culturais produzidos pela sociedade, e de participação na gestão coletiva do espaço público – pressuposto da democracia. Por esse motivo, já se disse que, na prática, o Brasil não é uma sociedade regida por direitos, mas por privilégios. Os privilégios, por sua vez, assentam-se em discriminações e preconceitos de todo tipo: socioeconômico, étnico e cultural. Em outras palavras, dominação, exploração e exclusão interagem; a discriminação é resultado e instrumento desse complexo de relações (BRASIL, 1997, p. 19)3.
E mais especificamente, na Região Sul do Brasil, Souza afirma que: [...] A presença de indígenas circulando por cidades (como Porto Alegre, Caxias do Sul, São Leopoldo, Santa Maria, Pelotas e em outras tantas) ou acampando na beira das rodovias é percebida como algo recente e oportu-
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BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual / SEF – Brasília: MEC/SEF, 1997. 164p. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/ pdf/ livro101.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2012.
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nista, como se os índios estivessem chegando agora no Rio Grande do Sul, como se saídos de florestas distantes apenas atraídos pelos benefícios assistenciais e pela proteção tutelar do indigenismo promovido pelo Estado Nacional brasileiro. [...] Essas distorções ideológicas traduzem os preconceitos culturais enraizados na nossa estrutura de classes sociais, estereótipos incorporados nas instituições gaúchas ao longo dos séculos de nossa história. O projeto nacional idealizado pelas elites políticas do Império brasileiro foi executado através de ações afirmativas dirigidas aos imigrantes europeus, que foram favorecidos na obtenção do direito privado sobre lotes de terra, que receberam incentivos (equipamentos e financiamentos) do governo para se estabelecerem no Novo Mundo. Imigrantes europeus foram privilegiados por sua suposta maior capacidade de trabalho e por sua iniciativa individual. Açorianos, alemães, italianos e outros europeus foram considerados como “gente de melhor qualidade”, trazidos para substituir índios e negros africanos considerados inaptos para promover um projeto de nação (SOUZA, 2009)4.
Importante então, antes de assumir uma conduta de negação do outro, pelo fato de percebê-lo diferente do que é comumente aceitável, se perguntar qual o nível de consciência que se tem sobre as outras culturas, sobre a sua história de vida, os princípios éticos e religiosos que os regem; e isto relacionado com a busca de um conhecimento mais profundo, de uma sensibilidade mais humana e de um senso de justiça que nos possibilite fazer uma autocrítica do atual sistema em que vivemos, de dominantes e dominados. 1.3 Toda história tem duas faces, porém se desconhece uma delas Há muitos séculos a existência indígena está presente na Região Sul e também em outras mais do Brasil e do continente. Tradicionalmente as etnias Kaingang, Guarani, Xokleng, Charrua e Minuano ocuparam um espaço geográfico que abarcava uma ampla extensão territorial, ultrapassando inclusive as atuais fronteiras estaduais e nacionais. Revisando tanto a história escrita quanto a memória viva dos anciões indígenas verifica-se que, para satisfazer as suas necessidades básicas e ga-
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SOUZA, J. O. C. de. Um salto do passado para o futuro: as comunidades indígenas e os direitos originários no Rio Grande do Sul. In: RS índio: cartografias sobre a produção do conhecimento. SILVA, Gilberto Ferreira da; PENNA, Rejane; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Orgs.). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
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rantir a reprodução física e sociocultural, esses povos dependeram sempre do exercício de atividades como caçadores, coletores e pescadores, assim como também da prática complementar de uma agricultura rudimentar baseada no sistema de coivara5. Esse fato é relevante, pois evidencia uma relação vital com a terra, florestas, lagos, campos e rios existentes nos seus territórios. Todavia, surpreende ainda mais saber que essa relação de interdependência com a natureza, além de ser material, é igualmente espiritual. Sabemos também que, de formas diferentes e por diversos motivos, as migrações populacionais sempre fizeram parte da história da humanidade. No transcorrer dos séculos os seres humanos têm se movimentado, de forma livre ou forçada, de uma região para outra e entre os continentes. Este é o caso concreto dos imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, alemães, etc., que se dirigiram rumo ao “Novo Mundo”, posteriormente conhecido como continente americano e do qual hoje o Brasil faz parte. Alguns dados de interesse estimam que, desde a metade do século XIX até princípios do XX, a população de europeus que migrou para América e para as colônias africanas e asiáticas foi de 50 a 70 milhões de pessoas6. Mas, enquanto a população do velho mundo aumentava progressivamente nas Américas, a população indígena teve uma queda brusca. Trata-se do Sistema tradicional de cultivo de roça utilizado por muitos povos indígenas na preparação da terra para o plantio. Consiste na abertura de clareiras na mata através da derrubada manual e queima controlada dos restos vegetais aproveitando-se as cinzas como adubo e a própria fertilidade acumulada pela floresta. 6 Estimativa baseada na análise da seguinte bibliografia: ADAS, Melhem. Panorama Geográfico Brasileiro: contradições, impasses e desafios socioespaciais. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2001; ARROTEIRA, Jorge Carvalho. Aspectos da emigração portuguesa. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. N. 94 (30), 1 de agosto de 2001. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/sn-94-30.htm>. Acesso em: 13 dez. 2012; BAENINGER, Rosana; PATARRA, Neide Lopes. Mobilidade espacial da população no Mercosul: metrópoles e fronteiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 60, suppl. 60, São Paulo, Feb. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092006000100005& script=sci_arttext>. Acesso em: 16 dez. 2013; BUENO, Chris. Migração: mudando a cara do mundo. Disponível em: <http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/4269/migra-o-mudando-a-cara-do-mundo.html>. Acesso em: 16 dez. 2012; LOURENÇO, Silvia. Emigração no século XIX. Disponível em: < http://neh.no.sapo.pt/documentos/ emigracao_no_seculo_xix.htm >. Acesso em: 13 dez. 2013; SOUZA, Iraci Garbim de. A Imigração italiana, séculos XIX-XX, em Nova Veneza-GO: contribuições para a cultura. Revista Visão Acadêmica. Universidade Estadual de Goiás. Novembro de 2012. Cidade de Goiás. Disponível em: <http://www.coracoralina.ueg.br/visao_academica/revista/2012_novembro/ a_imigracao_italiana.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2013. 5
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maior desastre (genocídio) demográfico da história da humanidade ocorrido em que dezenas de milhões de indígenas morreram. Ainda que as estimativas sejam variáveis e até divergentes, calcula-se que, depois de um século e meio da chegada europeia, restavam tão somente 6% da população indígena. As estimativas mais baixas falam de um total de mortos de aproximadamente 80% da população até o final do século XVI7. Na chegada ao continente americano, o encontro do imigrante com os povos de cultura diferente, que já habitavam estas terras, significou num empecilho para a colonização e rearranjo da “nova” geografia que se pretendia estabelecer. Também foi uma oportunidade de exploração de mãode-obra escrava para a extração dos recursos naturais que eram destinados para os mercados europeu e das demais colônias que estavam sendo formadas. Resultado disso foi o extermínio em massa das populações que ali residiam e resistiram, seja pela utilização das armas (a pólvora e a espada contra o arco e a flecha), ou pelas epidemias trazidas do velho mundo, seja também pelo sacrifício através do trabalho forçado ou pelo suicídio que muitos povos cometiam como última saída para não serem cativos. Já os submissos capturados – e “sem alma” – foram sistematicamente reduzidos e catequizados. É evidente que não houve uma preocupação dos colonizadores em conhecer a cultura ou a visão de mundo dessas comunidades nativas. Exploraram os conhecimentos indígenas que melhor lhes conviessem para sobreviver nesses ambientes totalmente novos e diferentes da Europa. A ideia da superioridade de uma sociedade que se via como “civilizada” (eurocêntrica) acima das outras – vistas como “primitivas”, justificou a intervenção e apropriação de muitos territórios e a subjugação desses povos chamados também de nativos, autóctones, ameríndios ou aborígenes. Nessa história, e mais regionalmente na Região Sul, frentes de expansão de levas de imigrantes alemães aconteceram a partir de 1824. Em 1846 a província do Rio Grande do Sul oficializava a política dos aldeamentos (já iniciada pelos jesuítas com as reduções no século XVII) através da qual se promoveu tentativas de confinar grandes grupos heterogêneos
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Dados do genocídio indígena nas Américas: disponível em: <http://cobourgeast.kprdsb.ca/ Teachers/DSmith/downloads/FOV1-000702D7/Population%20history%20of%20indigenous %20peoples%20of%20the%20Americas.docx>. Acesso em: 09 jan. 2013.
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em territórios limitados, administrados pelo Estado, ficando nas mãos dos jesuítas o propósito de catequese e de outras subordinações. Esses aldeamentos eram denominamos Toldos, sendo que muitos deles vieram a tornar-se as terras indígenas hoje conhecidas, como é o caso do antigo Toldo Guarita. Desde então, são muitas as gerações de indígenas que passaram por vários processos negativos de intervenção sobre os seus sistemas tradicionais de vida; principalmente, pela imposição do aldeamento – sendo forçados a viver “juntados” num sistema de confinamento em espaços delimitados por lógicas e interesses que desrespeitaram as suas necessidades socioculturais e ambientais; também pelo processo de integração à “civilização” – uma assimilação compulsória – que desconsiderou as autonomias, línguas, crenças e modos próprios de se organizar; e inclusive, pela modificação dos ambientes que lhes foram impostos – tendo sofrido ações de desmatamento e exploração de madeira e que, com o avanço das cidades, do comércio e da fronteira agrícola, continuam a pressionar as aldeias através do cerco que os modelos produtivistas do agronegócio realizam e pelo assédio que as lideranças indígenas recebem de fora para o arrendamento de suas terras. Portanto, as transformações políticas, sociais, ambientais e territoriais que afetaram a vida dos povos indígenas são percebidas nas limitações atuais, tanto na disponibilidade quantitativa de acesso livre aos espaços antes ocupados, quanto na condição ou qualidade ambiental de que originalmente dispunham. Isto significou também mudanças nos graus de autonomia e autossuficiência que conseguiam para garantir a manutenção e reprodução do seu modo de vida, o que também interferiu no exercício das dinâmicas tradicionais de contato e da construção de relações promovidas entre parentes. Hoje, dentro de uma composição geográfica diferente, aumentaram também as necessidades de contato, forçado ou não, estabelecendo-se graus diferentes de relações de influência e de dependência entre indígenas e sociedade envolvente, de uns mais do que de outros. No caso específico da atividade do artesanato, esta levou muitas famílias artesãs a estabelecer relações mais frequentes com as sociedades não indígenas e seus ambientes, estrutu-
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ras e espaços de domínio. Se antes o artesanato era produzido para satisfazer as necessidades próprias do dia a dia, na atualidade a sua comercialização tornou-se muito importante para os indígenas Kaingang e Guarani, principalmente em lugares e espaços que concentram a população consumidora e onde circulam as mercadorias, recursos econômicos e serviços. Vemos então que a presença de indígenas nas cidades nada mais é do que uma das tantas formas de adaptabilidade ao novo ambiente natural, social, econômico e político que se apresenta hoje para estes povos na Região Sul. Porém, a maior parte da sociedade nacional não compreende este fenômeno, achando que porque uma vez foram aldeados (confinados) e restringidos em espaços demarcados por outros, hoje não precisariam praticar mais a sua mobilidade socioespacial tradicional nem exercer a sua liberdade de ir e vir dentro dos territórios, tendo que aceitar submissamente a imposição de um modo de vida sedentário. Se para os indígenas o direito de se movimentar livremente historicamente lhes foi reprimido pelo novo sistema criado, e que se tornou novamente legítimo somente a partir da Constituição Federal de 1988, para os outros – os imigrantes que chegaram e os seus descendentes – sempre tiveram a liberdade de ir e vir, inclusive através da promoção para a ocupação de outros territórios do Estado-nação: Muitos colonos gaúchos e catarinenses estão ajudando na conquista de uma nova fronteira agrícola: a região de Dourados, responsável por 50% da produção de soja de Mato Grosso do Sul. Rondônia, nossa última fronteira, recebeu, nos últimos três anos, cerca de 200.000 migrantes. Só 10% de sua população economicamente ativa nasceu ali (Jornal da Tarde, de 16/05/81).
2. Compreendendo especificidades para respeitar diferenças Partimos da compreensão de que a construção da própria identidade é uma das liberdades fundamentais que toda pessoa e grupo devem possuir e lhes estar garantido. Para isso, é fundamental partir do reconhecimento que existem princípios e valores diferentes em cada povo ou sociedade, os quais orientam e definem as formas e modos próprios de ser, de viver e estar em relação com o mundo.
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2.1 A territorialidade como espaço dinâmico e de pertencimento Na cosmovisão ou visão de mundo dos povos indígenas, a terra é vista como um patrimônio comum que possui uma força integradora de vida, contrariamente ao conceito de propriedade privada que serve de mercadoria e que, como diz Rousseau8, “[...] introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte [...]”. Tanto hoje como no passado, o comportamento territorial dos autóctones platinos tem sido mal compreendido, porque as pré-compreensões do espaço geométrico e euclidiano introduzidas desde a Europa moderna fundamentaram apenas a “consolidação” da conquista pela posse da terra enquanto propriedade privativa e individual. Os diretos originários coletivos foram anulados, os territórios indígenas transformados em “terra arrasada”. Falta de perspectiva antropológica e operações de velamento são razões que fizeram conquistadores e colonizadores subestimarem o fenômeno sumariamente descrito como “nomadismo” dos povos originários. Os povos autóctones platinos viviam, assim como quase todos os nativos das Terras Baixas sul-americanas, em regime de circulação sazonal entre aldeias e acampamentos. Conforme a época do ano, havia o deslocamento dos núcleos domésticos de produção por todo o vasto território tribal, independentemente da existência de aldeias e assentamentos “mais” permanentes ao estilo do que passaram a praticar os colonizadores (SOUZA, 2009).
A forma tradicional de ocupação espacial dos povos indígenas, que mostra ser dinâmica e descentralizada, não pode ser mensurada através da noção capitalista de apropriação do espaço enquanto propriedade privada. Por exemplo, o povo Guarani não se considera dono da terra nem daquilo que vive nela. A terra é entendida como uma dádiva divina, tendo recebido do Deus Nhanderú o direito ao usufruto dela, devendo este ser feito sempre de forma respeitosa, equilibrada e limitada, pois ela, a terra, está sendo vigiada pelos deuses e os outros Guarani9. Segundo Gomide (2011)10, para os povos tradicionais, o território se define enquanto espaço identitário do grupo ou como pertencimento ao mesmo, através de uma apropriação simbólica: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. Introduções e Notas de Paul Arbousse Bastide e Lourival Gomes Machado. 4. ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1987. Volumes I e II. (Os pensadores). 9 Adaptado de: Economia da reciprocidade. Povo Guarani – Grande Povo. Disponível em: < www.guarani-campaign.eu/landen/portugal/economia.htm>.Acesso em: 12 mar. 2011. 10 GOMIDE, M. L. C. Território no mundo A’uwe Xavante. Revista franco-brasileira de geografia. Número 11, 2011. Disponível em: <http://confins.revues.org/6888>. Acesso em: 12 nov. 2012. 8
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Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo, habitamo-lo, impregnamos-no dele. Além disto, os viventes não são os únicos a ocupar o território, a presença dos mortos marca-o mais do que nunca com o signo do sagrado. Enfim o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser. Esquecer este princípio espiritual e não material é se sujeitar a não compreender a violência trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o mundo de hoje: perder seu território é desaparecer (BONNEMAISON & CAMBREZY, 1996, p.14, apud HAESBAERT, p. 73).11
Assim, territorialidade indígena é o exercício de uma dinâmica própria de mobilidade, aplicada no tempo e no espaço, e regida por razões indissociáveis tanto materiais (físico-funcional-econômico) quanto imateriais (simbólico-social-espiritual), e que define a particularidade sociocultural do grupo numa constante construção de um espaço de vida e realização. Isto significa que o sentido de território extrapola os limites físicos da aldeia ou terra (imposto pela demarcação) em que hoje os indígenas vivem fisicamente de maneira mais permanente e vai mais além da exclusividade de uso e ocupação permanentes. Portanto, não é da natureza das sociedades indígenas estabelecer a fixação da terra ou limites territoriais precisos para o exercício de sua sociabilidade. Essa amplitude e flexibilidade territorial, chamada pelos Guarani de Tekoa Guassú, estaria hoje sobreposta pelas fronteiras estaduais e nacionais criadas pelas sociedades não indígenas em todo o continente. São lógicas espaciais diferentes que também trazem conflitos, pois para os povos indígenas os limites impostos pelas cercas de arame farpado e os títulos de propriedade não determinam a legitimidade do limite como território, e sim, a dinâmica de relações de pertença e de afinidade que se constroem ao longo do tempo e que as fazem serem mais fluídas. 2.2 A vida em movimento – caminhar: um modo de realização A cultura não acontece somente no espaço do aldeamento ou terra demarcada, pois essas fronteiras lhes foram impostas. Assim, o suporte da sobrevivência física e cultural depende e se faz dentro do exercício de uma territorialidade.
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HAESBAERT, Rogério, apud GOMIDE (2012). O Mito da desterritorilização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
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O Nosso modo de ser e de viver no tempo-espaço – Ore ava reko e ore rekoha – mostra que, para os povos Guarani, Kaiowá, Mbya e Ñandeva, o comportamento é um modo de existência indispensável, e que significa estar em boa relação com os seres visíveis e invisíveis. Dentro do modo de ser – aguyjé –, a busca da terra sem mal – yvy marãeý – é um preceito mítico alicerçado na crença de alcançar uma Terra Prometida e Sem Mal, e que depende da forma em que se vive o costume, o modo de ser ou a cultura – o nhande rekó ou mbya rekó. A mobilidade dispersiva dos Mbya em busca da terra sem mal, originada por uma inspiração profética e sustentada ao longo do tempo através da visão de mundo própria dos Guarani, representa a sua maior força de resistência etnocultural diante dos vários modelos de política indigenista que contribuíram com a desestruturação social e cultural desse povo, através da perda de valores tradicionais (CAVALIN, 2009)12.
Nessa caminhada – o oguatá –, “a mobilidade é um comportamento próprio que também lhes permite contato com parentes, trocas culturais com a sociedade envolvente ou outras tekoas, ações de ordem política, xamânica e comércio de seus artesanatos entre outros” (SILVA, 2012)13. [...] As aldeias fazem parte de um circuito de integração territorial, porque as famílias indígenas vivem em constante mobilidade entre elas, constituindo uma rede de laços sociais que permitem a articulação interaldeã e, por consequência, a mobilização étnica. A mobilidade dos grupos indígenas desdobra-se no espaço pela criação de acampamentos – provisórios ou mais permanentes. [...] Os acampamentos fazem parte de uma estratégia tradicional e milenar das famílias indígenas, que circulavam no espaço segundo a maturação e a disponibilidade dos recursos naturais (caça, pesca e coleta) e em função das estações do ano. [...] Os acampamentos transformaram-se numa das mais importantes formas de sobrevivência depois do Período Colonial, porque as comunidades indígenas tornaram-se mais móveis para escapar ao cerco civilizado e fugir do processo oficial de confinamento em áreas reduzidas, onde eram aglutinadas arbitrariamente todas as comunidades indígenas outrora dispersas no território que se fez ocupar por imigrantes (SOUZA, 2009).
CAVALIN, M. O. O movimento dos guarani/mbya à terra sem mal – uma contribuição geográfica. 12 Encontros de Geógrafos de América Latina. EGAL: Montevidéu, 2009. 13 SILVA, C. S. G. Arte e territorialidade dos Mbya-Guarani da Tekoa Irapuá Caçapava do Sul – RS. II Fórum Internacional da Temática Indígena. UFPEL: Pelotas, 2012. 12
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Desta maneira, sendo os acampamentos uma forma tradicional de ocupação indígena que expressa o seu modo de compreender e exercer a sua territorialidade, hoje esta conduta continua facilitando e garantindo a mobilidade entre os tekoás, sendo também uma oportunidade para a geração de renda através da venda do artesanato. A visitação – o po’u – é uma atividade social constantemente vivida e que obedece a normas próprias da cultura. Através dela se atualizam as informações sobre os parentes e acontecimentos, se estabelecem alianças de casamento, cerimoniais, se compartilham e se trocam objetos, sementes, entre outros. Este comportamento fortalece a unidade do povo Guarani porque promove a prática da reciprocidade – mborayvu – (amor pelos outros) que é um princípio básico ou fundamental a ser vivido. Quanto mais visitas (relações estabelecidas) tiver, maior é o prestígio social que se ganha, pois com isso se demonstra a capacidade de repartir abundância e compartilhar com os outros a riqueza. Esta forma de buscar pessoas fora do local de residência para constituir vínculos de casamento aponta para um aspecto mais geral sobre a produção e reprodução social. Embora cada grupo local busque viver de forma política economicamente independente, do ponto de vista simbólico e social, sua constituição depende da relação com o outro [...]. Observa-se, portanto, um tipo de organização socioespacial em que as comunidades parecem atomizadas em um amplo espaço ocupado por outros grupos da sociedade englobante. Porém, encontram-se interligados por uma rede invisível, pautada nos seus princípios de sociabilidade que conferem um sentido de unidade maior, de identidade étnica [...] (ASSIS, 2009).14
Portanto, a visitação também faz parte do processo de construção da pessoa e da reprodução sociocultural através das relações que se estabelecem entre comuns. Para os juruá15, talvez seja uma espécie de exercício ou forma própria de fazer “educação itinerante”. A circulação de artesãos indígenas nas cidades nada mais é do que uma das formas de adaptação frente às transformações sociais, ambientais,
ASSIS, V. S. de. Os kuérys e as redes de sociabilidade Mbyá-Guaranis. In: Povos Indígenas. KERN, Arno A.; SANTOS, Cristina dos; GOLIN, Tau (dirs.). Passo Fundo: Méritos, 2009, v. 5 (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul). 15 Termo criado pelos Guarani Mbya a partir do contato com os colonizadores e utilizado para se referir aos brancos ou não indígenas. Os Kaingang utilizam o termo fog. 14
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econômicas e políticas que ocorreram. Além disso, é continuidade de uma prática cultural que busca satisfazer antigas e novas necessidades (materiais e imateriais) de maneira original e com certo grau de autonomia, reivindicando o seu direito de exercer livremente a sua territorialidade e interculturalidade dentro de uma concepção própria de ser, de estar e de relacionarse – uma adaptação a outras sazonalidades hoje existentes. 2.3 Uma outra maneira de fazer economia na prática indígena As sociedades modernas vivem em torno da predominância ou hegemonia do sistema econômico capitalista dirigido pelos interesses do livre mercado e o consumismo desenfreado. O paradigma do neoliberalismo, apoiado na ideia do progresso e do crescimento ilimitado, nos impõe sistemas de produção, comercialização e consumo baseados em processos industriais, exploração do trabalho e alienação ao fenômeno da globalização que integra certas coisas excluindo outras. Contrariamente, os artesãos indígenas realizam as suas atividades baseados em processos manuais, de cooperação familiar e de grupo, produção em pequena escala, com identidade cultural do produto e adaptação ambiental pela origem da matéria-prima e sua fácil degradação ambiental, destacando assim o estabelecimento de relações de reciprocidade tanto com a natureza quanto com as pessoas. Quando questionamos porque os artesãos indígenas não melhoram as suas vidas, poucos compreendem que, contrariamente ao modelo econômico pautado no individualismo e na acumulação, nas sociedades indígenas, por serem estas coletivas, normalmente não existe lugar para o acúmulo de riqueza nem para a concentração do poder; as pessoas tomam somente aquilo de que precisam. A riqueza somente se torna com valor quando ela é compartilhada ou socializada dentro do grupo, portanto, a pessoa ou comunidade ganha mais prestígio quanto mais compartilha com os outros. Nesse princípio cultural está contido o ensinamento para a sociedade ocidental refletir sobre os dois caminhos que se tem na busca da satisfação das necessidades: o de produzir muito (porque assim preciso) ou de desejar pouco (o suficiente). A reciprocidade – o dar e o receber (e retribuir) – faz parte do modo de ser Guarani – nhande rekó. Este princípio se explica também a partir do
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jopói que, etimologicamente, significa “mãos abertas em reciprocidade” – a mão que se abre para dar é a mão que se abre para receber. Na economia Guarani o princípio da solidariedade com o próximo não necessariamente se manifesta de forma coletiva, em que todos trabalham juntos e todos são donos de tudo. O que existe é uma obrigação moral de ajudar sempre que o outro precisar e de receber ajuda da mesma maneira, participando com alegria e disposição.16 É uma constante busca e cuidado pelo Bem Viver comunitário – teko porá –. Por isso, a generosidade é uma das virtudes mais importantes do povo Guarani e, por exemplo, caso uma pessoa está sendo egoísta ao acumular bens e não os compartilhando, esta acaba sendo criticada e marginalizada do grupo. Em relação ao poraró – que também é uma prática interna de relações comunitárias orientadas pelos princípios da reciprocidade, da partilha e circulação de bens materiais e imateriais –, tradicionalmente aplicado para atualizar os laços de parentesco dentro dos coletivos indígenas, hoje este foi adaptado ao contexto de contato com os não indígenas – os juruás – nos espaços da cidade, entendendo-se que a realização do “esperar com a mão” ou “esperar um troquinho” está dentro da lógica tradicional da partilha ou doação daquilo que por uns foi acumulado e está em relativa abundância. Aqui, vale destacar o importante avanço legal realizado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através da aprovação do Decreto nº 17.581, de 22 de dezembro de 2011, que reconhece, no âmbito do Município de Porto Alegre, as práticas do poraró 17 e das apresentações dos grupos musicais Mbya Guarani realizadas em espaços públicos, como sendo expressões legítimas da cultura indígena, conforme usos, costumes, organização social, línguas, religiosidade e tradições. Desta forma, não são mais consideradas atos de mendicância ou de exploração infantil. Na prática da economia indígena, ainda que dependente do mercado, não necessariamente se submete ou segue a lógica capitalista e do lucro,
Adaptado de: Economia da reciprocidade. Povo Guarani – Grande Povo. Disponível em: <www.guarani-campaign.eu/landen/portugal/economia.htm>. Acesso em: 12 nov. 2011. 17 § 1º Entende-se por “poraró” a presença de mulheres Mbyá-Guarani sentadas em panos no chão, nos espaços públicos, acompanhadas ou não de suas crianças, onde comercializam bens de seu patrimônio material e imaterial e recebem doações de não indígenas. Disponível em: <http://dopaonlineupload.procempa.com.br/dopaonlineupload/407_ce_30738_1.pdf>. 16
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tanto assim que ela própria, em sua maioria, é exercida dentro do âmbito conhecido como “economia informal”. Destaca-se a prática do brique – a troca, intercâmbio, escambo18 ou permuta de produtos e serviços que, independente da posse de dinheiro ou de salário, permite a satisfação de necessidades entre as pessoas – artesãos e consumidores – reconhecendo-se as capacidades próprias de produzir e partilhar aquilo que, por si mesmo, foi acumulado. Com isso, é valorizado o trabalho das pessoas que podem estar desempregadas, mas não impossibilitadas de produzir com as próprias mãos (autoemprego). Por exemplo, possibilita a troca de um cesto indígena por um pão caseiro elaborado por uma dona de casa; ou também, a troca de um balaio indígena por um par de calçados seminovos do filho que cresceu rapidamente. Estas práticas podem chegar a ser muito significativas e impactantes socialmente, mais do que somente uma análise de rentabilidade ou viabilidade econômica, pois elas possibilitam que indivíduos e grupos satisfaçam suas necessidades mesmo tendo sido excluídos do sistema “legal” de mercado por não produzirem, comercializarem nem consumirem dentro das regras formalmente estabelecidas – ter dinheiro. Esta forma descentralizada de vender o artesanato mostra ser também uma maneira de combater a pobreza ao alcançar os outros grupos excluídos e ao desconcentrar o poder do mercado. Cabe mencionar que, nesse processo de comercialização, o benefício material não é o único fim a alcançar, até porque não são muitos os casos de relativo lucro econômico. A autorrealização das famílias de artesãos, como pessoas e como grupo, está também na satisfação do êxito pelo exercício de sua territorialidade, do seu alcance geográfico e dos contatos intra e interculturais estabelecidos e que, nesse jeito de ser indígena, a construção de relações somente é possível através das experiências em liberdade. 2.4 Tecendo relações através do artesanato A atividade do artesanato promove relações em vários sentidos. Além do que se produz interessa destacar a forma como é produzido. Por exem-
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Escambo: troca de produto por produto, realizada sem a utilização de dinheiro ou moeda oficial de um lugar.
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plo, quando se ingressa na mata para a coleta de matéria-prima, os artesãos estabelecem um tipo de relação com a mata ou floresta e seus elementos. Culturalmente, acredita-se que não existe uma separação entre humanos e natureza, coexistindo-se num mundo composto por humanos e outros seres não humanos (plantas, animais, rios, montanhas, etc.), todos carregados de espírito e cada qual com uma percepção própria de si e sobre o outro. A comunicação entre eles se estabelece através do contato e intervenção divina dos seus deuses-donos. É uma relação social de reciprocidade com o natural e sobrenatural, e que para receber as dádivas solicitadas da natureza é necessário passar pelo ritual do pedido ou permissão por meio das oferendas, rezas ou cantos-orações destinados aos seus donos sobrenaturais. Esta visão de sacralidade da vida impede que se destrua ou retire da natureza mais do que o essencial, ou que se plante além do necessário e se comercialize excedentes. As relações também se estendem para dentro da família e do grupo, através das formas coletivas de coletar, preparar e transformar a matériaprima. São espaços e momentos de convívio, diálogo e aprendizagem que integra mulheres, homens, anciões, adultos, jovens e crianças – gêneros e gerações que, ao redor do fogo e do chimarrão, ou embaixo da sombra de uma boa árvore, conversam na língua materna, partilham saberes, analisam problemas, se aconselham e reforçam estratégias, igualmente se alegram, riem, compartilham tristezas e se animam uns com os outros. Muitos inclusive afirmam que “ser índio é também saber trançar o artesanato e falar a língua”. Nessa constante aprendizagem, formação e fortalecimento dos laços afetivos, o acompanhamento das crianças e dos anciões, tanto dentro como fora da aldeia, se faz importante para esse transitar entre um mundo conhecido e outros por conhecer. Posteriormente, quando saem da aldeia rumo às cidades, outras práticas e relações se estabelecem, esta vez com os fregueses ou consumidores juruá/fóg. Aqui, uma vez mais o artesanato exerce seu papel de expressão identitária, pois é no contato comparativo com o outro que também surge a necessidade de se diferenciar e se reafirmar culturalmente, sendo que a memória se alimenta com a vida e o reviver de lembranças, e ainda que hoje as condições estejam mudadas, são os princípios e (res)significados que per-
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sistem. Se a memória ontem era marcada pela satisfação vivida na época da coleta do pinhão19 na floresta, da sapecada20 da erva-mate ou pelo uso do pãri 21 para pescar no rio, hoje a história se constrói também com as lembranças da satisfação experimentada nas cidades e do retorno após a comercialização do artesanato nas épocas sazonais da Páscoa, do Natal e do verão.
3. Formalizando a inclusão do outro 3.1 Direitos mais justos precisam de relações diferentes A luta contra o desemprego não pode mais ficar subordinada às iniciativas de caráter estatal-nacional, pois se trata de um fenômeno local-municipal e global-internacional. Esta problemática atinge também as comunidades indígenas que precisam sobreviver, o que leva muitos Kaingang e Guarani aqui no Rio Grande do Sul, a trabalhar na colheita da maçã, no despendoamento de milho ou nos frigoríficos de aves e suínos. Por isso, desconsiderar um sistema produtivo artesanal e que funciona e se mantêm sob princípios de autonomia e protagonismo dentro da cultura é também negar alternativas originais que estes povos mantêm com dignidade, e ainda, num contexto que tem sido desfavorável para a sua continuidade. Os descompassos no diálogo entre as políticas públicas e o modo de ser indígena iniciam a partir do fato das políticas públicas partirem de pressupostos e conceitos da sociedade ocidental. Então, como resolver este conflito de princípios e de modos de vida diferentes que acaba provocando preconceito e discriminação/exclusão por parte dos que hoje administram o poder sobre minorias com culturas diferentes?
A araucária (araucaria angustifolia), árvore nativa e símbolo da região meridional do Brasil, a ponto de ser chamada comumente de pinheiro do Brasil, sempre esteve na base alimentar dos habitantes desta região. O povo indígena consumia o pinhão na sapecada (sementes de pinhão cobertas com as folhas – grimpas – da araucária e colocadas no fogo para assar. 20 Consiste em sapecar ou passar os galhos da erva-mate (Ilex paraguariensis) num fogo intenso a fim de retirar a umidade e evitar o enegrecimento e deterioração das folhas em contato com o ar. 21 Armadilha tipo funil de colocar nas corredeiras dos rios, feita de taquara, utilizada para a pesca. 19
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Atualmente o destino da cultura depende de fatores não determinados unicamente pelas decisões e costumes internos da comunidade, mas influenciados pela realidade do entorno e do contexto no qual estão inseridos. Outros sistemas não controláveis, estatais e privados, concentraram poderes e determinaram novas normas e condições. Não é possível separar ou isolar uma cultura da outra no mundo de hoje (talvez nunca foi), assim como não se deve submetê-la a um único padrão cultural hegemônico e majoritariamente praticado em tempos de globalização. Existe uma grande diferença entre ações assistencialistas e aquelas que verdadeiramente respeitam o modo de ser diferente e dão condições para exercer a sua liberdade, viver de seu jeito e expressar a sua cultura. Querer conservar uma cultura em museus e bibliotecas, sendo ela viva, manifestando sua identidade e resistência, é uma forma de ignorar a existência dos povos indígenas e negar a necessidade de um convívio respeitando os seus direitos. Um verdadeiro diálogo intercultural só pode acontecer se os interlocutores tiverem autonomia para se posicionar e se seus dizeres forem levados em consideração no diálogo em andamento. Só haverá um diálogo intercultural se houver efetivamente uma troca, uma abertura para a compreensão do que o outro diz, propiciando uma reflexão conjunta e a procura de um consenso sobre a questão em pauta que leve à aceitação e mesmo à adoção de práticas sociais diferenciadas (ARRUDA, 2012)22.
Nesta perspectiva, não podemos permitir que uma sociedade autoritária controle e defina qual deve ser a representação e identidade mais certa que os indígenas devem mostrar, pois os estereótipos forjados pelo discurso colonizador dão aos indígenas feições distorcidas. Assim, sabendo-se que os povos indígenas têm o direito de definir e elaborar as prioridades e as estratégias de sobrevivência e reprodução, a questão é vencer uma postura colonialista disfarçada ou camuflada, de visão deturpada sobre a presença de indígenas nas cidades e substituí-las pela promoção de novas condições que respeitem os princípios originários.
22
ARRUDA, R. S. V. Os dilemas da relação intercultural: limites da autonomia indígena para o estabelecimento de um verdadeiro diálogo. In: DANTAS, Sylvia Duarte (org.). Diálogos interculturais: reflexões interdisciplinares e intervenções psicossociais. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012.
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Desta maneira, durante a permanência dos artesãos indígenas nas cidades, devem-se estabelecer condições que respeitem o seu modo de ser e suas diferenças sem criar desigualdades, injustiça ou submissão. Isto não significa integrá-los às opções que o sistema oficial normalmente pode oferecer, como por exemplo, a locação para indígenas num camelódromo público ou o direcionamento das crianças indígenas para uma creche enquanto os pais comercializam, mas sim de propiciar e criar alternativas mais justas de acordo com o seu modo de ser culturalmente e seu direito consuetudinário. A comercialização do artesanato, dentro das lógicas próprias dos povos indígenas, deve ser vista e assumida como um patrimônio cultural vivo da humanidade, e também como um exemplo de ensinamentos pelas suas práticas e princípios. Essa atitude certamente passa por mudanças na legislação, criação de novas políticas e sua adequação às especificidades de cada povo. 3.2 A legislação, assim como a cultura, é dinâmica [...] o Estado, ao regulamentar uma terra indígena, deve reconhecer não só o direito à terra mas também ao território e resolver esse impasse (GALLOIS, 2004, p. 41).23 Pois, o impacto advindo do contato com a sociedade nacional reflete-se na organização do espaço e na maneira como os próprios povos indígenas exercem suas territorialidades (GOMIDE, 2011).
A existência de territórios étnico-culturais no interior dos Estados nacionais é hoje uma realidade jurídica que não pode ser contestada. Ao analisarmos os avanços macro, numa dimensão internacional, encontramos como importantes referenciais o acordo 169 da OIT24, do qual o Brasil é signatário, e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, os quais devem orientar as mudanças e adequações necessárias na legislação específica do país, estado e município.
GALLOIS, Dominique. Apud GOMIDE, 2011.Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In: O desafio das sobreposições terras indígenas & unidades de conservação da natureza, ISA, 2004. 24 Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT / Organização Internacional do Trabalho. Brasilia: OIT, 2011. 23
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A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tribais, adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho em l989, constitui o primeiro instrumento internacional vinculante que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais. Nela consta que os territórios dos povos indígenas e das populações tribais são a totalidade do hábitat das regiões que esses povos ocupam ou utilizam de alguma forma. Mais recentemente, no Brasil, o Decreto 6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, passa a se valer do termo territórios tradicionais, conceituando-os como os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária. Igualmente, a Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 13 de setembro de 2007, aprovou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas25. Com 46 artigos, a Declaração apenas estabelece os padrões mínimos de respeito aos direitos dos povos indígenas do mundo todo, que inclui a propriedade e a proteção de suas terras e territórios, acesso aos recursos naturais, preservação dos seus conhecimentos tradicionais e o principal de todos os direitos, o direito de autodeterminação, assim como disposto no artigo terceiro: “Os povos autóctones têm o direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, eles determinam livremente o status político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. 3.3 Diálogos interculturais para um convívio de paz Reconhecendo que o Estado comporta hoje distintas territorialidades justapostas em seu território nacional, frutos de racionalidades e lógicas territoriais diferentes, os processos de construção de diálogos interculturais mais justos devem partir da consideração das peculiaridades históricas, culturais e sociais. A interculturalidade pressupõe interagir com igualdade entre diferentes, compartilhar e complementar-se – é conhecer o outro e se dar a conhecer, é a capacidade de praticar a alteridade.
25
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. UNIC/ Rio/ 023 Mar. 2008. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/ DRIPS_pt.pdf>
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Conforme Fleuri (2001)26, “a relação intercultural indica uma situação em que pessoas de culturas diferentes interagem, ou uma atividade que requer tal interação”, afirmando que a ênfase está na relação intencional entre sujeitos de diferentes culturas. Na perspectiva intercultural, o diálogo deve permitir que cada um seja aceito como legítimo em sua forma de viver, o que implica reconhecer que o sujeito da relação tem um corpo (sôma), uma alma (psychê), uma comunidade (polis) e um mundo (aiôn) de experiência que, conjuntamente, permite a construção de um determinado espírito, uma noologia, que sustentará e orientará as percepções, as crenças e as ações (SILVA & NORNBERG, 2009, p. 125)27.
A identidade também se constrói na relação estabelecida com os outros, os comuns e os diferentes. Esse reconhecimento deve ser entendido como um fato social caracterizado pelas próprias maneiras de ser, fazer, pensar, agir, sentir e de relacionar-se dentro de uma especificidade cultural coletiva que, de certa forma, deve influenciar e dar-se a conhecer pelo outro para promover o respeito mútuo. O diálogo intercultural exige o reconhecimento e respeito à diversidade e o aprender a olhar e escutar o outro para além do etnocentrismo. Isto significa passar de um processo de integração assimilacionista para um outro de inclusão com autonomia; também de uma interpretação dicotômica para uma compreensão da dualidade em complementaridade, buscando uma reconciliação que produza relações de alteridade plena. O pressuposto do direito à alteridade parte da concepção que, como bem menciona Boaventura de Sousa Santos28 (1999): “temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Este é o desafio, construir novas linguagens e práticas, relações com mais compreensão e colaboração entre os diferentes, uma aprendizagem de convivência na diversidade e dentro de uma concepção mais universal de cidadania.
FLEURI, R. M. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educativos. In: SILVA, G. F.; NORNBERG, M. (2009). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. ENDIPE – Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 67-81. 27 SILVA, G. F.; NORNBERG, M. Proposições para o diálogo intercultural: movimentos necessários. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; PENNA, Rejane; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Orgs.). RS índio: cartografias sobre a produção do conhecimento [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. 28 SANTOS, B. de S. A Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença – Oficina do CES nº 135 – Ano 1999. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/135/135.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2013. 26
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4. Perspectivas para um Bem Viver de todos As mudanças do mundo exterior devem começar em nosso interior, ou seja, do pensamento para a prática de atitudes que promovam relações mais justas; passar de um estágio de tolerância e coexistência para outro do respeito e convivência; buscando caminhos e soluções para libertar os povos indígenas desse histórico confinamento territorial, econômico, político, cultural e espiritual de mais de 500 anos. Descolonizar as mentes e as estruturas significa mudança de rumo, transformação de estereótipos preconcebidos e relativização de verdades absolutas. Significa também ser influenciado pelo outro, aprender com o outro. Um território de alteridade é aquele que se estrutura no espaço onde os sujeitos referenciam-se numa relação recíproca de igualdade. Já no território da centralidade, as referências espaciais são dispostas em um sistema hierárquico, sistema esse que detêm o poder de delimitar as fronteiras sociais de referência dos sujeitos. A realidade ainda evidencia a existência de sociedades com distintas visões de mundo, o que lamentavelmente para uma grande parte tem provocado crises, conflitos e choques culturais. Por isso, nada mais justo dizer que precisamos lutar por um mundo onde caibam outros mundos, mais generoso e inclusivo, reconhecedor da alteridade como relação vital de complementaridades e interdependências para o Bem Viver de todos.
Referências ARRUDA, R. S. V. Os dilemas da relação intercultural: limites da autonomia indígena para o estabelecimento de um verdadeiro diálogo. In: DANTAS, Sylvia Duarte (org.). Diálogos Interculturais: reflexões interdisciplinares e intervenções psicossociais. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012. ASSIS, V. S. de. Os kuérys e as redes de sociabilidade Mbyá-Guaranis. In: GOLIN, T.; BOEIRA, N. (Coords.); KERN, A. A.; SANTOS, M. C. dos (dir. vol.). Povos Indígenas. Passo Fundo: Méritos, 2009, v. 5 (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul). BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual / Secretaria de Educação Fundamental. –
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Brasília: MEC/SEF, 1997. 164p. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/ arquivos/pdf/livro101.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2012. CAVALIN, M. O. O movimento dos guarani/mbya à terra sem mal – uma contribuição geográfica. 12 Encontros de Geógrafos de América Latina. EGAL: Montevidéu, 2009. GOMIDE, M. L. C. Território no mundo A’uwe Xavante. Revista franco-brasileira de geografia. Número 11, 2011. Disponível em: <http://confins.revues.org/6888>. Acesso em: 12 nov. 2012. POVO Guarani – Grande Povo. Disponível em: <www.guarani-campaign.eu/landen/portugal/economia.htm>. Acesso em: 12 nov. 2011. ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. Trad. Lourdes S. Machado. Introduções e Notas de Paul Arbousse Bastide e Lourival G. Machado. 4. ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1987. Volumes I e II. (Os pensadores). SANTOS, B. de S. A Construção Multicultural da Igualdade e da Diferença. Oficina do CES nº 135. Ano 1999. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/135/135.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2012. SILVA C. S. G. Arte e territorialidade dos Mbya-Guarani da Tekoa Irapuá Caçapava do Sul – RS. II Fórum Internacional da Temática Indígena. UFPEL: Pelotas, 2012. SILVA, G. F.; NORNBERG, M. Proposições para o diálogo intercultural: movimentos necessários. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; PENNA, Rejane; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Orgs.). RS índio: cartografias sobre a produção do conhecimento [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. SOUZA, J. O. C. de. Um salto do passado para o futuro: as comunidades indígenas e os direitos originários no Rio Grande do Sul. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; PENNA, Rejane; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Orgs.). RS índio: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
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Bem Viver: uma categoria analítica necessária para compreender a vida? Luis Paulo Arena Alves 1 Paulo Peixoto de Albuquerque 2
Introdução O presente artigo constitui-se em uma reflexão sobre a prática do Bem Viver. Para isso, o referencial teórico utilizado orientou-se por compreender as dimensões conceituais inter-relacionadas a este, através das quais tornou-se importante aprofundar os conceitos de inclusão e cidadania. Na leitura sobre estes diferentes aspectos fez-se necessário relacioná-los na atualidade com a práxis educativa desenvolvida pelas Organizações Não Governamentais – ONGs, que desenvolvem suas ações em espaços sociais periféricos não formais de intervenção, como uma ferramenta importante, frente aos problemas causados pela pobreza, exclusão e pelas desigualdades sociais. Apontaremos também aspectos relevantes não só para o desenvolvimento da prática mas também para a construção do conhecimento acerca desta temática e como um instrumento importante para a atuação dos profissionais na área da educação com vistas ao desenvolvimento integral como processo contínuo de compreensão crítica, estabelecendo correlações de causa e efeito, formulação de juízos com vistas ao desenvolvimento social, como caminho para o alcance do Bem Viver para a cidadania. Assistente Social, assessor de projetos sociais da organização internacional Kindernothilfe e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 2 Sociólogo, doutor pela Université Catholique de Louvan-la-Neuve (Bélgica), professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, pesquisador sobre processos de mudança e ações de cooperação para pensar o desenvolvimento local e sustentável. 1
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1. Bem Viver: uma categoria analítica? Toda reflexão depende de certas suposições referentes à natureza da realidade. Se aceitamos isso, as suposições funcionam como hipóteses; se isto é esquecido funciona como crença. Ambas traduzem um modo de pensar a realidade a partir de paradigmas (e, isto sim, é perigoso), pois um paradigma que se torna normativo se converte em marco de referência e filtro conceitual que condiciona o modo pelo qual vemos as coisas. Este artigo pretende abordar o Bem Viver como categoria para compreender a vida. O trabalho que apresentamos é resultado da reflexão que resultou da pesquisa de mestrado intitulada – Na práxis educativa das ONG’s: que BEM VIVER e cidadania? O enfoque proposto sinaliza uma apreensão da realidade que não pode ser confundida com as análises abrangentes e/ou jornalísticas que reduzem a compreensão do Bem Viver a uma “realidade” condicionada pelo normativo e regulada pelo aparato do mercado, vinculado a um pragmatismo adequado ao consenso da representação socioeconômica. Entendemos que o ser humano compreende a realidade a partir de constructos simbólicos (conceitos) mediados pela linguagem e que uma mudança dos conceitos implica também em uma mudança de compreensão de mundo. Dito de outro modo, a nomeação renovada sobre questões do Bem Viver aponta para uma topologia, para modos de pensar e agir imbuídos de determinada orientação que se deparam abruptamente com “anomalias” ou problemas da experiência que não podem ser abrangidos pelos símbolos existentes. Neste momento evidencia-se a necessidade de uma reavaliação dos “paradigmas” prevalecentes sobre a realidade que comanda as atividades. Trata-se de mostrar que, transformado dessa maneira, a categoria Bem Viver pode designar a figura contemporânea do fazer político. Em nosso país uma série de situações-limites tem se apresentado, seja na violência urbana, seja na violência simbólica dos telejornais que apresentam a mentira como se fossem verdades que refazem, a seu modo, tanto a realidade como a simbologia que a representa.
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Os discursos sobre o Bem Viver são importantes porque traduzem não só a visão dos indivíduos, mas também introduzem outros elementos que subvertem as imagens existentes sobre o justo, o necessário e o ético. Podem ser experiências locais, frágeis, mas essenciais porque nelas há indícios que afirmam os direitos do pensamento contra o cálculo egoísta. Por isso, entendemos que o Bem Viver na contemporaneidade aponta para uma nova dimensão da cultura política: a auto-organização dos indivíduos e dos grupos sociais, para um pensamento operante e coletivo que não pretende ocupar o Estado, mas constrangê-lo a fazer isso ou aquilo. Não é uma atividade de poder, é uma ação coletiva capaz de mudar a cidadania. É uma subjetividade que se projeta como participante, porque seu interesse não está necessariamente no controle do Estado. O Bem Viver, como categoria analítica para compreender a vida, apresenta de forma direta, não a busca do poder, mas o sentido de agir sobre o poder; não na dimensão jurídica, mas no universo cultural e subjetivo. Nesse sentido, a pesquisa realizada apontou que o Bem Viver se apresenta como universal e desinteressado, isto é, diz respeito a todas e a todos e remete nosso pensar a compreendermos na atualidade a relação deste com os conceitos de: • Inclusão, tendo por princípio o reconhecimento do sujeito como ser integral; • Crítica, como exercício problematizador do atual modelo societário, a fim de que se perceba a importância das pessoas terem acesso a todos os recursos dentro de uma sociedade; • Diversidade, como um princípio comum a todos onde a diferença seja um potencial que atualize os diversos modos de condição humana, levando à prática do Bem Viver. Estas considerações iniciais se fazem necessárias porque, como categoria analítica, Bem Viver precisa ser entendido como prática inclusiva, como um dispositivo de transformação social ao qual confluem desejos de superação e resistência à institucionalização da exclusão e da pobreza (instituído), caracterizando-se numa perspectiva integradora e de uma aprendizagem multidimensional da construção coletiva pelos agentes do proces-
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so educativo, tendo como fim a formação de sujeitos ativos e conscientes da realidade em que estão inseridos (instituinte). A sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica. O problema está justamente nessa inclusão (MARTINS, 2009, p. 32).
Desta forma, para compreender a realidade é fundamental que se possa pensar e/ou reapresentar os fenômenos que já estão naturalizados, como por exemplo os processos educacionais. Ao reapresentar o conceito de Bem Viver neste artigo não estamos afirmando que Bem Viver representa o elo entre uma realidade que se apresenta e uma realidade representada, como se observa nos outros sentidos da palavra, significando sempre substituir, agir em nome de, estar presente no lugar de. A reapresentação do termo aparece aqui num contexto preciso em relação aos fenômenos da educação e que afetam o objeto representado, o que implica uma relação específica e singular. Por esta razão diz-se que a elaboração ou aparecimento de uma nova representação pode ter eco ou impacto afetivo importante, porque fazemnos rever as coisas da vida com uma intensidade diferente. 1.1 As balizas... Nossa hipótese de trabalho é a seguinte: Uma reapresentação ou representação de um conceito é uma afirmação muito imprecisa no domínio da vida social, mas parte de um processo formativo (educativo) que funciona como atos particulares de transformação das representações daquele que apreende. Nossa estratégia metodológica é a de identificar quais são as ações que levam verdadeiramente a uma prática do Bem Viver. Assim, é necessário verificar como sujeitos sociais constroem e se apropriam do conhecimento circulante como forma de compreender e transformar efetivamente a realidade que os cerca.
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Neste sentido, foi necessário estabelecer algumas balizas que atuam como elementos comuns de diferentes objetos ou de diferentes situações vivenciadas pelas pessoas. A ética é a primeira baliza que atua como princípio integrador e que fundamenta todas as ações, principalmente quando a prática educativa precisa tratar com a situação paradoxal de considerar sujeitos, grupos, organizações e suas respectivas redes (singularidades), ao mesmo tempo em que propõe ações de caráter universal que necessariamente não consideram as necessidades individuais como pessoas específicas. A inclusão se apresenta como segunda baliza porque deriva de uma ação que confere sentido e tem incidência de fato no conviver dos indivíduos. A terceira baliza é a cidadania. Ela se apresenta como a condição necessária, mas não suficiente, para a existência de um desejo de produção de uma mudança3. A quarta baliza é a crítica. Vivemos num contexto de crise de modelos econômicos e de esgotamento do modelo de integração social na sociedade moderna através da precarização do trabalho. Isso resulta em uma nova experiência vivenciada pelas famílias que veem os filhos indo em busca de melhores condições de vida em lugares que nem sempre cumprem a promessa de vida melhor. Neste contexto é importante, então, ter consciência das injustiças e dos direitos para assim se vislumbrar estratégias que permitam mudar o rumo da história. A quinta baliza tem a ver com a emancipação, pois, como bem pontua Boaventura de Souza Santos (2010), existe uma relação complexa entre cidadania e subjetividade, que fica ainda maior quando falamos em emancipação.
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Condição necessária, mas não suficiente, porque cidadania só pode ser concebida quando uma sociedade tem seus direitos e deveres reconhecidos num sentido mais amplo e na qual o ator principal, que é o cidadão, está consciente, isto é, sabe onde vive: num cenário de conflitos de interesses.
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Tudo isso, porque Bem Viver significa um processo que transforma sujeitos sociais em proprietários de direitos e deveres, que vai além da redução jurídica que transforma sujeitos sociais em unidades iguais no interior de administrações (públicas e privadas), submetidas a estratégias de reprodução da força de trabalho pelas vias do consumo.4 O Bem Viver como processo transformador e coletivo envolve pensamentos, emoções (conscientes e inconscientes) que formam nossas concepções, geram atitudes, gestos éticos e políticos de modo a corresponsabilizar todo aquele indivíduo que esteja empenhado em desenvolver alternativas de lutas com o objetivo de construir projetos respaldados em valores que buscam uma vida melhor para todos. 1.2 Nas balizas: a atualização do pensar indígena Para reconstruir a noção de Bem Viver devemos compreender que existe uma integração permanente entre nós e os outros. Esta compreensão é reiterada por Acosta (2009). Para ele o Bem Viver não está associado ao bem-estar ocidental e, para entender esse conceito, é necessário resgatar a cosmovisão dos povos indígenas. Para compreendermos essa terminologia temos que ter presente a importância que os povos indígenas dão ao fato de partilhar os mesmos espaços e buscar coletivamente seus objetivos. Mamani (2010) parte do princípio de que o Bem Viver é um processo que está emergindo hoje a partir de tudo que estamos vivendo no mundo “moderno”. É um conhecimento ancestral indígena, dos povos originários, que provém de um dos paradigmas mais antigos que é o “paradigma comunitário da cultura e da vida para o Bem Viver”. É sustentado em uma forma de viver com respeito, harmonia e equilíbrio, compreendendo a vida como inter-relacionada com tudo. A visão ocidental do capital como “valor fundamental” gerou profundos abismos entre ricos e pobres. Frente a esta realidade surge, então,
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Santos complementa ainda que “a cidadania não é, por isso, monolítica; é constituída por diferentes tipos de direitos e instituições; é produto de histórias sociais diferenciadas protagonizadas por grupos sociais diferentes” (SANTOS, 2010, p. 245).
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como resposta, o paradigma comunitário e não individualista, constituído dentro dos princípios com que pretendem reconstruir a harmonia e o equilíbrio da vida. Na busca por aproximar os conceitos e, ao mesmo tempo, inter-relacioná-los, requer reconhecer que o conceito de Bem Viver se relaciona com o conceito de cidadania explicitado anteriormente por Boaventura. Desta forma, o Bem Viver implica um questionamento substancial das ideias contemporâneas de desenvolvimento, em especial seu apego ao desenvolvimento econômico e sua incapacidade para resolver os problemas da pobreza e os impactos sociais causados por eles. Três aspectos importantes devem ser considerados na abordagem do Bem Viver: o plano de ideias, o discurso e as práticas. É pelas ideias que se encontram os questionamentos sobre as bases conceituais do desenvolvimento como forma para entendermos as questões essenciais sobre a concepção de mundo em que vivemos. O discurso possibilita avaliar como este se materializa na prática, refletindo, por exemplo, sobre o crescimento econômico, o consumo e a qualidade de vida. No campo das práticas estão situadas as ações e as formas alternativas de promover o desenvolvimento que considerem formas não convencionais ditadas pelo mercado. O grande desafio é juntar neste processo estratégias e ações concretas que se traduzam em posturas coerentes para chegarmos ao Bem Viver. Mamani (2010) faz uma reflexão extremamente interessante sobre o paradigma ocidental dos povos indígenas. Conforme ele, o paradigma individual “ocidental” vigente determina as relações sociais jurídicas e da vida e está levando a sociedade a sua própria desintegração. Para este paradigma o mais importante é a acumulação do capital e, por isso, estamos vivendo uma crise sem precedentes, pois a lógica de mercado é a da exploração extrema, do consumo e, em consequência, da depredação dos recursos naturais e da própria vida. O paradigma originário dos povos indígenas concebe a vida na sua forma comunitária, não só como relação social, mas como uma profunda relação com a vida. Este paradigma da cultura da vida emerge da visão de que tudo está unido e integrado e existe uma interdependência entre tudo e
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todos. É uma resposta para viabilizar a resolução dos problemas sociais internos, se não para resolver os problemas globais5 da vida. Conforme Acosta (2009), promover novas formas de desenvolvimento implica revitalizar a discussão política que fica obscura pela visão economicista. É necessário resgatar os verdadeiros pontos de sustentabilidade, ou seja, a importância da construção coletiva como um novo pacto de convivência social, sendo essencial construir espaços para superar as práticas neoliberais. O Bem Viver (...) busca una vida armónica. Es decir equilibrada entre todos los indivíduos y las coletividades, con la sociedad y con la naturaleza (...) y con función de otros seres humanos, sin pretender dominar la naturaleza” (ACOSTA, 2009, p. 05).
Neste mesmo sentido, complementa ainda Acosta: El mercado por si solo no es la solución, tampoco lo es lo Estado. El subordinar el Estado al mercado, conduce a subordinar la sociedad a las relaciones mercantiles y al egolatrismo individualista (2009, p. 05).
É importante perceber que a economia atual concebe a vida de forma individualista, competitiva e orientada para o capital. O capitalismo, por sua vez, degrada a vida, os bosques, contamina rios, causando o desaparecimento de muitas espécies através da exploração processada de diferentes formas. Para ele, os animais, as plantas, as montanhas, os rios, constituemse como um recurso. Portanto, para o capitalismo o mais importante é o capital. Já para os povos originários, que visam o sistema comunitário a vida é o mais importante. No paradigma dos povos indígenas a comunidade é compreendida como unidade e estrutura da vida, sendo o ser humano uma parte desta unidade; animais, insetos, plantas, montanhas, ar, água, sol também fazem parte desta comunidade. Todos são importantes para o equi-
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Latouche afirma que a Terra está reduzida na sua capacidade de regeneração, pois não consegue acompanhar a demanda, ou seja, os recursos naturais são transformados em uma velocidade impressionante em mais resíduos que a natureza possa se recuperar. Complementa ainda que “cada americano consome aproximadamente 90 toneladas de materiais naturais diversos, um alemão 80, um italiano 50 (ou seja, 137 kl por dia). Em outras palavras, a humanidade já consome quase 30% além da capacidade de regeneração da biosfera. Se todos vivêssemos como nós franceses, seriam precisos três planetas contra seis para acompanhar nossos vizinhos americanos” (2009, p. 28-29).
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líbrio e a harmonia da vida e o desaparecimento de uma espécie é a degradação da vida. Portanto, Bem Viver é respeitar toda forma de existência, cuidando e respeitando a vida. Cabe aqui fazer uma relação com o que Boaventura de Souza Santos (2006) afirma a respeito da proposta da racionalidade cosmopolita: temos de seguir uma trajetória inversa, ou seja, expandir o presente para contrair o futuro, pois somente desta forma é possível criar o espaço/tempo necessário para conhecer e valorizar a experiência social vigente no mundo de hoje. Somente desta forma poderemos evitar o grande desperdício das experiências vivenciadas no cotidiano. Parafrasenado Santos (2006, p. 786), “para expandir um outro presente possível faz-se necessário repensar as alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas”. Daí a importância das ações desenvolvidas pelos movimentos sociais e pelas Organizações Não Governamentais, assim como suas contribuições, em especial na dimensão educativa e sobre a importância que a práxis exerce neste contexto.
2. No fazer das ONG’s uma práxis educativa: a busca do Bem Viver Na busca da compreensão e articulação dos diferentes significados das considerações abordadas é importante refletir sobre o conceito de educação não formal e sua relação com os conceitos de cidadania e de Bem Viver. Para Gohn (2010), articular os processos educativos num sentido amplo de formação dos cidadãos, pode ser um sonho ou uma utopia, porém, é necessário fazê-lo na sociedade atual. A autora define que a educação formal opera nos espaços escolares como instituições regulamentadas por lei e com base em diretrizes estabelecidas nacionalmente. Conforme ela, a educação informal tem como base de referência a família, os amigos, os vizinhos, caracterizando estes como agentes educadores. Já a educação não formal é aquela que se aprende fora da escola, onde ocorrem processos interativos que são construídos coletivamente e que não são herdados, mas sim adquiridos.
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Nesta perspectiva, com base no conceito ampliado de educação trazido por Gohn, sistematizou-se o seguinte quadro para melhor visualizarmos tais definições: Quadro 01 – Conceito ampliado de educação6 Campos do desenvolvimento Educação Formal Educação Informal Educação Não Formal Espaços
Na escola
Amigos, família, Se aprende em espaços igreja, bairro, clube, e ações coletivas e etc. Está ligada aos cotidianas valores culturais
Quem desenvolve?
Professores
Pais, amigos, É o outro, aquele com família, comunidade quem estamos interagindo. Aqui temos o educador como mediador do processo
Onde educa?
Escola – Espaços representados por lei
Espaços demarcados, Locais rua, bairro, interacionais e comunidade, igreja, intencionais etc.
Com base nestes referenciais é possível perceber que a educação não formal tem uma intencionalidade e busca capacitar as pessoas para se tornarem cidadãos “do” e “no” mundo. Tem como finalidade última a abertura do conhecimento sobre o mundo reconhecendo nossa inserção e nossas relações. Um modo de educar é constituído como resultado do processo voltado para os interesses e as necessidades dos que participam. A construção das relações sociais baseadas em princípios de igualdade e justiça social, quando presentes num dado grupo social, fortalece o exercício da cidadania (GOHN, 2010, p. 19).
Cabe um rápido comentário sobre esta última prática. É importante fazer uma relação deste conceito com o de Freire em que o “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (1996, p. 21). Neste mesmo sentido, Freire
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Quadro sistematizado a partir do conceito ampliado de educação definido por Gohn (2010).
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complementa que somente “a práxis, porém, é reflexão e ação das pessoas sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido” (FREIRE, 1987, p. 38). Mészáros (2008) vai na mesma direção, quando defende que a educação deve ser continuada. Ele sustenta que é importante romper com a lógica do capital. Para ele, educar é um processo de conscientização, pois atualmente estamos vivenciando o que alguns chamam de “novo analfabetismo” porque se explicam determinadas situações, mas muitas vezes não se entende o real significado. O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2008, p. 65).
No entanto, esta reflexão somente é possível se a teoria estiver relacionada com a práxis educativa baseada no respeito, na solidariedade, na união e considerar que possam se estabelecer novas formas de convivência humana. Nessa perspectiva deve-se considerar os sujeitos em seu processo histórico e envolvendo-o ativamente. Qualquer que seja o caminho metodológico construído ou reconstruído é de suma importância atentar para o papel dos agentes mediadores no processo: os educadores, os mediadores, assessores, facilitadores, monitores, referências, apoios ou qualquer outra denominação que se dê para os indivíduos que trabalham com grupos organizados ou não. Eles são fundamentais na marcação de referenciais no ato de aprendizagem, eles carregam visões de mundo, projetos societários, ideologias, propostas, conhecimentos acumulados, etc. (GOHN, 2010, p. 47).
Conforme Gohn, existem: (...) formas educacionais fora da realidade escolar, fora da educação formal propriamente dita. Há produção de saberes e aprendizagens extra-curriculares, distintos do conhecimento prescrito às escolas, e fazem parte da formação dos indivíduos (GOHN, 2011, p. 10).
Na busca do caminho de análise, articulação e encaminhamento, Albuquerque (2001) afirma que temos que pensar e discutir sobre os direitos humanos, sendo indissociável de um projeto coletivo a promoção em todas as formas de relação humana e em todos os níveis das relações sociais.
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O agir coletivo remete-nos a uma responsabilidade individual na promoção de espaços sociais, através dos quais as pessoas podem se apropriar do seu destino como uma saída para reconstruir sua existência. Portanto, educar para o Bem Viver é criar caminhos possíveis entre este mundo (instituído) e o que queremos construir (instituinte), compreendido como uma contradição aberta e permanente entre a criação e a reprodução social, entre coletivo e estrutural, percebendo a práxis educativa como uma ferramenta que possibilitará a mediação deste processo, permitindo aos sujeitos serem protagonistas de sua trajetória a partir dos valores culturais exercitados nesta caminhada, tendo a educação como instrumento para pensar outra forma de relações. Nesse sentido, o Bem Viver é identificado na sua dimensão social e apresenta-se como equilíbrio e reciprocidade. Por sua vez, necessita estar presente entre os seres humanos para abrir caminhos para a solidariedade. É importante estarmos dispostos a receber e a dar em reciprocidade. Trata-se de uma meta que abrange a todos, respeitando a diversidade que se apresenta em cada sociedade, tendo como fim último a solidariedade. O Bem Viver está relacionado à harmonia com todos os sujeitos (família, comunidade e sociedade), com a natureza e, respectivamente, com os ecossistemas, sendo esta uma forma para ser feliz. Essa concepção, por sua vez, distancia-se da competição, da acumulação, do individualismo. Es decir que “permite asumir decisiones y responsabilidades en forma comunitaria entre todos los actores sobre asuntos educativos en espacios territoriales específicos como son el barrio, la zona, y la comunidad rural (o urbana)”. “Comunitaria” implica también que la comunidad interviene em la educación; no solamente el maestro es el actor principal de la educación, sino toda la comunidad, entendiendo que la educación inicial empieza en la família (MAMANI, 2010, p. 43).
Na perspectiva educativa a práxis necessita ter presente que [l]a educación no se inicia ni termina en las aulas, es permanente: la vida es dinámica, por lo tanto también la enseñanza y el aprendizaje lo son, permanentemente vamos aprendiendo y enseñando, no podemos decir un día que ya no queda nada que aprender o que ya lo sabemos todo, nunca dejamos de aprender y por ello proyectar la educación fuera de las aulas es vital (MAMANI, 2010, p. 43).
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Do ponto de vista educativo é importante que a educação seja vista como um movimento circular, pois “el niño también le enseña al maestro; le enseña su alegría, su inocencia, su actuar sin temor, sin estructuras, una educación de ida y de vuelta, donde ante todo, compartimos la vida” (MAMANI, 2010, p. 43). A educação vista sob este aspecto nestes espaços não formais de intervenção irá proporcionar que “la enseñanza, aprendizaje y evaluación comunitaria nos devolverá la sensibilidad con los seres humanos y la vida y la responsabilidad respecto a todo lo que nos rodea” (MAMANI, 2010, p. 43). Ricken (2008), utilizando-se das definições de Aristóteles sobre o Bem Viver situa suas interpelações sustentando que existe uma classificação que diferencia os “bens externos” e os “bens da alma”. Para Aristóteles, na medida em que os bens externos (adquiridos através do dinheiro) extrapolam o objetivo da vida (causando o individualismo, a exploração, o acúmulo) estes passam a ser prejudiciais e caracterizam-se como inúteis. Por outro lado, a concepção de bens da alma são importantes para o coletivo e para termos uma vida melhor, pois implicam em sensatez, justiça, postura, moral, etc. e, neste sentido, estão na perspectiva do Bem Viver. Assim, o Bem Viver considera a cultura como ponto fundamental para conhecer e reconhecer os saberes, aproveitando as diversidades para “romper” a cultura “dominante”. Neste sentido, a inter-relação entre o saber e a cultura são pontos fundamentais tendo no diálogo a forma de relação entre estes. Cabe frisar que o desafio está em procurar estas respostas para estruturar e fortalecer a educação não formal desenvolvida nos Movimentos Sociais e nas Organizações Não Governamentais, tornando-se imprescindível aprofundar e desenvolver saberes que orientem a práxis educativa nestes distintos espaços.
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3. Considerações finais A compreensão da categoria analítica do Bem Viver no ambiente de atuação das ONG’s permitiu identificar não só o caráter das novas formas de atuação pedagógica, mas também permitiu encontrar outros significados que se contrapõem à lógica de mercado que rege o mundo. Neste sentido, entendemos Bem Viver como um processo que é mais que uma variação sobre um velho tema da manipulação e/ou da instrumentalização positivo analítica. Neste contexto, para falarmos em nova perspectiva, é importante considerar as diferentes características do Bem Viver: 1. Um conjunto de ações que se constrói sobre a base de um sistema de representações cujos valores, princípios e práticas concorrem para que a tomada de decisões seja o resultado de uma regulação social; 2. O conjunto de interações e operações dos sujeitos sociais com o meio ambiente, que modificam seus processos de conhecimento sobre a realidade no sentido de garantir o alcance de um objetivo definido; 3. Um processo de reflexão sobre a realidade dos atores sociais que modifica o presente em função de uma referência ao futuro desejado; não é conteudista, formal, vertical, normativo ou autoritário porque garante o respeito às opiniões e aos diferentes papéis que cada qual tem na sociedade; 4. Um processo de explicitação de intencionalidades que se dá na consciência dos atores sociais (e não de um ator social específico) e que traduz a vontade de intervir em processos sociais inconclusos; 5. Um processo de condução de um conjunto de ações para uma dada situação cujo contexto é preponderantemente de incertezas que se elabora em função de finalidades e princípios que levam em conta as diversas possibilidades da ação e escolha daquela mais adequada conforme a situação; 6. Um processo inconcluso que se modifica durante o desenrolar das ações em função das informações, reações, eventualidades, acontecimentos, aparecimento ou desaparecimento inesperado de obstáculos e se enriquece em experiência e em capacidade de responder à adversidade.
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Ao concluirmos é importante reconhecer que não existe uma solução simples, única, uma fórmula mágica ou milagrosa no processo de construção do Bem Viver. Depende muito de todos nós, sujeitos envolvidos neste processo. E, a partir do momento em que identificamos estas questões, elas necessitam fazer parte do nosso compromisso ético e político para pensar em propostas a fim de programar estratégias, aprendendo com os “erros” e “acertos”, mas, acima de tudo, tendo presente a importância de ver o ser humano como sujeito integral e parte importante desta sociedade cósmica.
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MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008. RICKEN, Friedo. Bem Viver em comunidade: a vida boa segundo Platão e Aristótetes. São Paulo: Loyola, 2008. SANTOS, Boaventura de Souza. Conhecimento prudente para uma vida descente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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