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Marcelo Jung
from Proclamar Libertação 45 - 2020-2021
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
PRÉDICA: HEBREUS 5.5-10
JEREMIAS 31.31-34 JOÃO 12.20-33
5º DOMINGO NA QUARESMA
21 MAR 2021
Marcelo Jung
Identificação com Cristo: anúncio e convite
1 Introdução
Estamos no tempo da Quaresma. Vale a pena lembrar sua origem no catecumenato da igreja primitiva, quando era um tempo de preparo dos novos fiéis para receber o batismo, que acontecia na celebração da Páscoa. Mais tarde, tornou-se também um tempo especial para os fiéis já batizados, como tempo de preparo para a celebração da Páscoa, marcado pela busca da palavra de Deus, pelo arrependimento, pela renovação da fé e consagração da vida, pela identificação com Jesus Cristo. É sob as luzes desse tempo que somos convidados e convidadas a fazer a leitura e o preparo do texto de Hebreus 5.5-10. Numa primeira leitura do texto já é perceptível que o tema principal de que trata é a nova relação com Deus, que é possível por meio de Jesus Cristo. Na tradição judaica, o sacerdócio tinha a função de mediar o relacionamento de Deus com o seu povo e do povo com Deus. O sumo sacerdote tinha como função principal chegar-se ao Santo dos Santos (no tabernáculo durante a peregrinação pelo deserto e depois no templo em Jerusalém) uma vez ao ano para oferecer o sacrifício no Dia da Expiação. Esse era um sacrifício especial, pois era oferecido para o perdão dos pecados dos sacerdotes, para que, pela expiação, fossem purificados e pudessem oferecer sacrifícios para o perdão dos pecados do povo. Ou seja, em termos espaciais, o sumo sacerdote era o único que podia adentrar no véu do Santo dos Santos e chegar-se à presença de Deus para oferecer sacrifício em favor dos demais sacerdotes e do povo como um todo. Hebreus apresenta Jesus Cristo como o supremo sumo sacerdote. Jesus Cristo é o sumo sacerdote que: não penetrou pelo véu no Santo dos Santos, mas penetrou nos céus e está na presença de Deus (4.14), e não apenas uma vez por ano, mas permanentemente e para sempre; não apenas representa o povo, mas se compadece / se identifica com o seu povo (4.16); além de ser escolhido para o sacerdócio, é o próprio Filho de Deus (5.5); não exerce o sacerdócio comparado ao levítico / araônico – com base na Lei –, mas comparado ao sacerdócio de Melquisedeque (7.1ss) – com base no relacionamento pessoal. Jesus Cristo é aquele que supera a antiga relação com Deus e estabelece uma nova relação com ele. A conexão com os textos previstos para a leitura bíblica se dá pela promessa de novidade no relacionamento com Deus – pessoal – na profecia de Jeremias (Jr 31.31-34), e pelo custo pago por Jesus Cristo – o sacrifício – para que fosse possível esse novo relacionamento com Deus (Jo 10.20-33).
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2 Exegese
Numa visão geral, o texto selecionado para a pregação é a primeira parte do trecho em que o autor de Hebreus descreve Jesus Cristo como o supremo sumo sacerdote, o supremo tabernáculo e o supremo sacrifício (4.14 – 10.18). Jesus Cristo é a superação e o aperfeiçoamento da antiga aliança. Numa visão mais específica, Hebreus 5.5-10 elenca duas caraterísticas desse grande sumo sacerdote que penetrou os céus (4.14). Por isso será proveitoso observar o texto iniciando em 4.14. O tema principal do trecho é: Jesus Cristo é o sumo sacerdote que supera o sumo sacerdote / sacerdócio humano. Superior aos demais sumos sacerdotes e ao sacerdócio em si, Jesus Cristo penetrou os céus (v. 14), e não o véu que separava o Santo dos Santos no tabernáculo e depois no templo; ele não é um simples humano, mas é o Filho de Deus (v. 14), foi gerado pelo próprio Deus (v. 5), é claro, não se pode esquecer que encarnou – possui natureza divina e humana. Ele foi instituído na função de sumo sacerdote segundo a ordem de Melquiseque (v. 6,10). A expressão grega que é traduzida por ordem carrega o sentido de comparação, contrastante entre entidades semelhantes (LOUW; NIDA, 2013, p. 523) e é aqui usada para destacar a diferença entre o sacerdócio de Arão (v. 4) e o sacerdócio de Melquisedeque (v. 6,10), ambos sumos sacerdotes encarregados de intermediar o relacionamento entre Deus e os seres humanos. O autor de Hebreus afirma com ênfase e clareza que se tem alguém que pode intermediar o relacionamento dos seres humanos com Deus, esse é somente Jesus Cristo. Na apresentação de Jesus como supremo sumo sacerdote, Hebreus, neste trecho, destaca duas de suas características: Primeira característica (4.15-16): Jesus Cristo se identifica conosco. A descrição não é de difícil compreensão. Hebreus afirma que Jesus Cristo é o sumo sacerdote que se compadece de nossas fraquezas – uma tradução possível é: ele entende bem como nos sentimos em nossas fraquezas; ele compreende o que se passa em nosso coração em nossas fraquezas (LOUW; NIDA, 2013, p. 265). Fraquezas tanto pode descrever um estado de timidez, resultante da falta de confiança (LOUW; NIDA, 2013, p. 285) como um estado de incapacidade para fazer ou vivenciar algo (LOUW; NIDA, 2013, p. 604). O primeiro sentido parece encaixar melhor no contexto, visto que a comunidade para a qual Hebreus foi escrita vivia sob perseguição, a qual estava levando muitos a abandonarem a fé; e também por causa do convite no v. 16, acheguemo-nos, portanto, confiadamente, ou seja, com um estado de confiança ousada experimentada em circunstâncias assustadoras (LOUW; NIDA, 2013, p. 275). Como prova de que Jesus Cristo pode realmente se identificar conosco e nos compreender nas fraquezas, o autor de Hebreus lembra que ele foi tentado em todas as coisas, à nossa semelhança. A expressão foi ele tentado, descreve tanto o ter experimentado situações em que foi colocado à prova, em que foi, pela experiência verificado seu caráter (LOUW; NIDA, 2013, p. 297), como a experiência de ter sido tentado, de ter recebido uma carga que o convidava e induzia a pecar
(LOUW; NIDA, 2013, p. 689). O advérbio todas as coisas indica totalidade, ou seja, não há nada na experiência humana em termos de provação e tentação que Jesus Cristo não tenha experimentado. A única experiência humana que ele não experimentou foi a prática do pecado (mas vale lembrar que tomou sobre si toda a consequência de todo o pecado para que pudéssemos ser feitos justiça de Deus – 2 Coríntios 5.21). Disso decorre o convite: acheguemo-nos, portanto, confiadamente (lit. com confiança ousada), junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna. É significativo que duas vezes é mencionada a graça e junto dela a misericórdia. Nenhuma pessoa cristã precisa enfrentar adversidades e tentações sozinha. Antes, pode recorrer a Jesus Cristo e encontrar nele o socorro – literalmente a ajuda em que Cristo provê aquilo de que se está necessitado para enfrentar a situação (LOUW; NIDA, 2013, p. 408). Segunda característica (5.7-10): Jesus Cristo chama a nos identificar com ele. O trecho continua descrevendo Jesus Cristo como supremo sumo sacerdote. Outra dimensão da existência humana com a qual ele se identificou com a humanidade pela sua experiência foi a angústia diante da morte. Sim, é verdade que Jesus venceu a morte; a morte não pode contê-lo sob seu poder. Mas isso não significa que Jesus não sentiu o que sentimos diante da morte. A descrição do v. 7 se refere ao que Jesus viveu no Getsêmani na noite em que foi traído e preso (Mt 26.36-46). Suas orações e súplicas carregam o sentido de urgência e necessidade (LOUW; NIDA, 2013, p. 365); seu clamor é custoso, envolve força e choro. É bastante evidente que o Pai tinha poder para salvá-lo e que se alguém merecia ser ouvido e atendido pelo Pai era Jesus, por causa da sua piedade – lit. reverente respeito (LOUW; NIDA, 2013, p. 474) –, e pelo fato de ser Filho. O v. 8 inicia com um marcador de concessão, traduzido (em ARA) por embora. Sua função é marcar um contraste inesperado. Quando se espera que Jesus Cristo fosse livrado da morte por sua natureza filial e pelo seu relacionamento com o Pai, Hebreus afirma que ele aprendeu pela experiência do que sofreu a obediência. A palavra que é traduzida pelo verbo sofreu tem a mesma raiz da palavra paixão. Nessa construção percebe-se que o destaque está na obediência de Jesus, uma obediência que abriu mão de sua segurança e de sua vontade para fazer a vontade do Pai – por três vezes ele pediu: Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! E três vezes ele afirmou: Todavia, não seja como eu quero, e sim, com tu queres (Mt 26.39,42,44); três vezes ele se submeteu ao caminho da paixão. Essa experiência do relacionamento com o Pai se faz um chamado a toda pessoa salva. O chamado a aprender a obediência está na identificação entre Jesus Cristo e os que são salvos por ele, os que lhe obedecem (v. 9) e na exortação (após longa argumentação sobre a situação dos destinatários da carta) em 6.11-12: para que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas. Nenhuma pessoa cristã deveria buscar viver outra vida que não a vida de obediência a Deus. O alvo da vida cristã é identificar-se com Jesus (Hb 13.19-21).
3 Meditação
O tempo de Quaresma e o texto selecionado para a pregação lembram uma realidade não muito atraente da vida cristã: a vida cristã não está livre de problemas externos nem de conflitos internos; a vida cristã não acontece sem luta. Os problemas externos alcançam a vida das pessoas cristãs porque neste mundo os discípulos e discípulas de Jesus não estão em casa (mundo aqui não é a criação em si, mas o sistema de vida regido pelo pecado). O mundo foi oposição para o Senhor Jesus e do mesmo modo foi, é e será oposição para as discípulas e discípulos de Jesus. Em semelhança ao Senhor Jesus, a vida cristã leva a marca da cruz e é ameaçada por perseguição, tribulação, tentações. A boa notícia é que Jesus anuncia que se identifica conosco e quer nos socorrer. Ele conhece perfeitamente o que é ser provado e tentado em todas as situações que um ser humano pode ser provado e tentado. E ele tem poder para nos socorrer, porque venceu toda tribulação e toda tentação. Em toda tribulação e tentação, Jesus Cristo “se coloca em nossa pele” e nos oferece a sua vitória por auxílio. E os problemas internos acompanham as pessoas cristãs nesta vida porque os discípulos e discípulas de Jesus vivem no Espírito, mas também, simultaneamente, na carne. Carne não no sentido material e corporal (porque isso não é um problema), mas no sentido daquela inclinação para o pecado; aquela inclinação de colocar a si mesmo e a si mesma no centro da vida e ocupar o lugar que é de Deus; aquela inclinação de colocar a si mesmo e a si mesma no controle da vida e buscar a sua vontade, os seus planos, os seus desejos e rejeitar a vontade, os planos e os desejos de Deus. A boa notícia é que Jesus convida a nos identificarmos com ele pela obediência. Ele convida seus discípulos e discípulas a buscar o reino de Deus em primeiro lugar, a negar a si mesmos e perder a própria vida em favor da causa de Deus, a fazer a vontade de Deus em lugar da própria vontade. Tendo, ele mesmo, passado por esse caminho, se faz prova de que é o caminho que leva à vida. Em toda tentação que convida e induz ao abandono da vontade de Deus, Jesus Cristo convida a “nos colocar na pele dele” e experimentar vitória pela obediência. A lembrança dessa dupla identificação, de Jesus conosco e de nós com Jesus, é importante e necessária para nossos dias. Vivemos tempos em se quer e se busca um Jesus que se identifique conosco: que entenda, ame e acolha todas as pessoas, que seja favorável às nossas causas, que incluía todas as pessoas no seu reino, que manifeste pura misericórdia e compaixão em todas as situações. Mas se rejeita o identificar-se com Jesus: o Jesus que aponta para a vontade de Deus e contraria estilos de vida, condena ideologias, não concorda com projetos e causas humanas. As pessoas querem um Jesus que as acolha, mas não um Jesus que, acolhendo, também mostra o que está fora dos seus planos e convida a negar a si mesmo, convida ao arrependimento e à mudança em conformidade com a vontade de Deus. Além da oposição à vontade de Deus, que faz parte do mundo caído, em nosso tempo temos a intensificação da oposição contra aquilo que é característico dos discípulos e discípulas de Jesus: o negar a si mesmo por causa de Jesus. Em nosso mundo/tempo, o maior pecado é o negar a si mesmo e se identificar com
Jesus Cristo no Getsêmani. E o resultado disso é que muitas pessoas que usam o nome de cristãos têm (querem e buscam) um Jesus configurado, um Jesus personalizado. Eu quero um Jesus que se adapta a mim, me acolhe como sou, concorda comigo, não julga o meu pecado e não me transforma pela obediência. Aliás, é ele que tem que obedecer a mim. No tempo de Quaresma, lembrar a dupla identificação com Jesus – que ele se identifica conosco em nossa fraqueza e nos socorre, e que ele nos chama a nos identificar com ele pela obediência ao Pai e nos dá, por ela, vida nova –, é uma boa palavra de juízo e graça. É uma boa palavra de juízo porque nos dá a oportunidade de nos questionar e verificar se também nós não temos quisto e buscado um Jesus configurado; um Jesus domesticado a fazer nossas vontades; um Jesus feito à nossa imagem e semelhança. Se percebemos isso em nós mesmos, o Senhor nos chama ao arrependimento. E é uma boa palavra de graça porque nos anuncia que também nessa tentação Jesus nos compreende e nos socorre. Ele também foi tentado no Getsêmani e venceu ao se colocar sob a vontade do Pai. E pela obediência à vontade de Deus, Jesus Cristo nos liberta de nosso egoísmo que quer personalizá-lo conforme a nossa imagem e semelhança – o que nos faz perdê-lo e perder a nós mesmos. Pela obediência à vontade de Deus, Jesus Cristo nos liberta da escravidão de ideologias que formatam Jesus conforme as suas causas – o que nos fazem perdê-lo e fazem de nós massa de manobra em suas mãos. Pela obediência à vontade de Deus, Jesus nos liberta de ganhar o mundo inteiro e perder a alma. Se experimentamos isso em nossa vida, louvado seja o Senhor!
4 Imagens para a prédica
Pode-se usar a imagem de um alvo. Num primeiro momento, lembrar que somos o alvo do amor de Deus. Deus nos ama ao ponto de dar seu filho por nós para morrer em nosso favor e nos dar a salvação; Jesus nos ama ao ponto de se identificar conosco em nossas fraquezas e nos socorrer. Num segundo momento, a salvação nos dá um alvo: imitar Jesus na obediência a Deus – a ponto de abrir mão de nossa vontade pela vontade dele; de abrir mão de nossos desejos, planos e sonhos pelos desejos, planos e sonhos dele. A vida vem de Jesus Cristo e a vida leva a Jesus Cristo. Deus, pela obediência de Jesus, nos deu a salvação e, pela salvação, Jesus nos leva à obediência a Deus.
5 Subsídios litúrgicos
Liturgia de entrada Hino HPD 1, 43 (Livro de Canto da IECLB, 410). É um hino próprio do tempo de Paixão. Descreve o que Jesus Cristo fez por nós, sua identificação conosco, que o levou ao sofrimento e à morte em nosso lugar. As últimas estrofes nos querem lembrar a resposta de quem recebe pela fé o tremendo amor de Jesus. Só pode entregar-se a ele em amor.
Liturgia da palavra Hino HPD 1, 54 (Livro de Canto da IECLB, não incluído). É um hino próprio do tempo de Paixão. Lembra a contemplação dos sofrimentos de Cristo por nós. Contemplação que também pode acontecer pelo ouvir o texto bíblico e a pregação da palavra de Deus. Liturgia de saída Hino HPD 1, 46 (Livro de Canto da IECLB, 448). É um hino próprio do tempo de Paixão. Manifesta gratidão pelo que Jesus Cristo fez por nós e nos roga para nos manter fiéis, que nos capacita a viver uma vida digna do que ele fez por nós.
Bibliografia
BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1999. BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo NTLH. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2012. LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico grego-português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. PETERSON, Eugene H. A Mensagem: Bíblia em linguagem contemporânea. 5. ed.
São Paulo: Vida, 2014.