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Carlos A. Dreher

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Eloir Enio Weber

Eloir Enio Weber

1º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

(TRINDADE)

30 MAIO 2021

PRÉDICA: ISAÍAS 6.1-131

JOÃO 3.1-17 ROMANOS 8.12-17

Carlos A. Dreher

1 Introdução Semente santa

Os três textos indicados para este domingo já foram abordados nessa constelação, embora variando a indicação para a pregação, em Proclamar Libertação 36, 39 e 42. Isaías 6 também já foi abordado em PL VI e XII; João 13.1-17 já foi comentado também em PL 28, 39 e 41; Romanos 8.12-17 já recebeu atenção em PL V e 36. Com uma exceção – a de João 3.1-17, indicada uma vez para o 2º Domingo na Quaresma, os comentários sempre se referiram ao domingo da Santíssima Trindade. Nas três vezes em que foi comentado, o texto de Isaías 6 compreendeu os v. 1-13. O recorte proposto, que termina no v. 8, causa certa estranheza, uma vez que a perícope realmente só termina no v. 13. Os v. 10-13 conformam a parte mais dura de todo o texto, anunciando um castigo terrível. Terá sido esta a razão para um novo recorte: evitar a dureza da palavra de Deus? Prefiro considerar aqui Isaías 6.1-13. Quanto à relação entre os três textos, assumo o que Erni Drehmer nos deixou registrado em seu auxílio homilético para o Domingo da Trindade em PL 36:

– Todos falam de transformação: em Isaías, o processo dá-se pelo gesto simbólico da brasa, que purifica os lábios do profeta e prepara-o para a missão; em João, a transformação dá-se por intermédio do ensino a respeito da ação do Espírito Santo na vida de Nicodemos; em Romanos, a transformação dá-se pela ação do Espírito. – Os três falam de ação, não de passividade. Em Isaías, a resposta do profeta é a disposição à ação (“eis-me aqui, envia-me a mim”); em João, a ação vem antes, já que Nicodemos se coloca a caminho e busca Jesus para dirimir suas dúvidas; em Romanos, há o imperativo que leva a atitudes que são consequência da ação do Espírito Santo, que transforma vidas de pessoas que deixam de orientar suas ações pelos desejos humanos e permitem ser orientados pela vontade de Deus.

No que diz respeito ao tema do domingo, temos em Isaías 6 a pessoa de Deus Pai, numa impressionante teofania e no comissionamento do profeta; João 3 nos apresenta Jesus, o Filho, ensinando acerca do Espírito Santo; e, finalmente,

em Romanos 8, Paulo nos apresenta a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo. Pai, Filho, Espírito Santo, eis aí a Trindade.

2 Estudando o texto de Isaías 6.1-13

A passagem apresenta uma estrutura em três partes: v. 1-5 compreendem a visão que Isaías tem de Javé dos Exércitos, no interior do templo; v. 6-8 apresentam a purificação e o envio do profeta; v. 9-13 ocupam-se da tarefa dada a Isaías. V. 1-5 – Começam por nos situar no tempo. Estamos no ano da morte do rei Uzias (v. 1a), o que nos coloca em 736 a. C., numa época de tranquilidade para Judá. Os assírios ainda estão distantes e não representam qualquer ameaça. Também somos situados no espaço. Estamos no interior do templo de Jerusalém (v. 1b), provavelmente por ocasião de um culto. Isaías talvez esteja fazendo alguma oferta no interior do santuário. Isaías vê Javé assentado sobre um alto e sublime trono, com as abas de suas vestes enchendo o templo. Cito Milton Schwantes de PL VI:

Na visão dos vv. 1-5 ocorre como que uma transformação de templo e culto. Ora, sabemos que a arca da aliança era tida no AT, por vezes, como trono de Deus. Sabemos que seres como serafins pousavam sobre a arca e que tais seres ornamentavam as paredes do templo. Sabemos que o cântico dos serafins (v. 3) era também um refrão litúrgico do culto (Sl 99.3,5,9). Sabemos que algumas oferendas eram feitas dentro do templo, de sorte que nele havia fumaça (v. 4). Sabemos também que a espevitadeira (v. 6) pertencia ao instrumentário sacerdotal. Pode-se, pois, dizer que a visão de Isaías é um tipo de transfiguração; coisas e acontecimentos do templo tornam-se transparentes em uma dimensão bem nova. (p. 203)

Importante salientar que o refrão litúrgico “Santo, Santo, Santo” se refere a Javé Zebaote, o “Senhor dos exércitos”, uma antiga alusão à liderança e à condução do exército das tribos no período anterior à monarquia por parte de YHWH (Javé). Não se trata, pois, de uma antecipação da doutrina da Trindade, embora o refrão seja utilizado para essa ocasião. Serafins são seres alados com corpo de serpente e cabeça humana. Têm três pares de asas: um par para voar, outro para cobrir o rosto na presença de YHWH, e um último para cobrir a genitália, aqui eufemisticamente chamada de “pés”. O termo serafim é derivado do verbo saraf, cujo significado é “queimar”, o que indica uma possível relação com as serpentes abrasadoras de Números 21. Talvez esteja já aqui uma antecipação da purificação de Isaías, cujos lábios são tocados por uma brasa retirada do incensório. Os serafins, enquanto seres mitológicos, parecem fazer parte da corte celestial de YHWH. Outra referência a essa corte encontra-se em 1 Reis 22.19ss, da qual sai um espírito que se oferece para enganar o rei Acabe. Essa ideia do espírito enganador também parece estar presente aqui, na missão que Isaías irá receber. O v. 5 encerra essa primeira parte do texto com o grito horrorizado de Isaías: Ai de mim! Estou perdido! Porque sou um homem de lábios impuros, habi-

to no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos! Isaías teme a morte! Sua condição de pecador – de ser um homem de lábios impuros – não suporta estar na presença da santidade de Deus. Curioso é que não é o pecado em si que mata o pecador, mas é a santidade que é aniquiladora! V. 6-8 – Esses versículos nos apresentam a cena da purificação de Isaías. Um dos serafins, com uma tenaz, toma uma brasa viva de cima do altar e voa em direção a Isaías. Toca-lhe os lábios com a brasa e lhe anuncia que seu pecado lhe foi tirado. A purificação dá-se com fogo! É com o fogo que se derrete o metal para retirar dele qualquer impureza. Essa parece ser a ideia que está por trás da purificação. Mais tarde, essa ideia será substituída pela purificação com água: lava-se com água o pecado do pecador. Purificado pelo fogo do altar, Isaías pode manter-se de pé diante de Deus e participar de seu conselho, colocando-se à disposição do Senhor. A quem enviarei, e quem há de ir por nós?, é a pergunta de YHWH. Eis-me aqui. Envia-me a mim – exclama Isaías. Não há como não notar mais uma vez a semelhança com a passagem de 1 Reis 22.19ss. Também lá ocorre a pergunta “Quem irá...”. E também lá alguém do conselho divino – naquele caso um espírito – se prontifica. V. 9-13 – Esses versículos apresentam o envio de Isaías e detalham sua tarefa. Novamente percebe-se semelhança com 1 Reis 22. Lá, o espírito é enviado para enganar o rei Acabe. O espírito dispõe-se a ser um “espírito mentiroso” na boca dos profetas do rei, a fim de enganar a esse. Aqui, a tarefa de Isaías é falar de maneira que “eles” não entendam, convidá-“los” a ver de maneira que não percebam. O v. 10 acirra ainda mais a mensagem: o profeta deve tornar insensível o coração “deste povo”, endurecer seus ouvidos, fechar-lhe os olhos, para que não vejam, não ouçam e não entendam com o coração, pois, do contrário, “este povo” pode se arrepender, converter-se e ser salvo! É terrível: Deus não quer (!) que “este povo” seja salvo! O grito de Isaías ecoa lancinante: Até quando, Senhor? A tarefa apavora o profeta! É demais! Tem que ter um fim! E terá: quando as cidades estiverem desoladas, sem habitantes, e a terra seja de todo assolada! O termo hebraico utilizado para “habitantes”, yoshebim, não poucas vezes é utilizado para “governantes”. São aqueles que estão “sentados (sobre tronos)”. Essa hipótese nos permite entender quem são as pessoas que perfazem “este povo” que deve ter um coração insensível, ouvidos endurecidos e olhos fechados, para que não se arrependam, se convertam e sejam salvos. São as pessoas que detêm o poder e que, com ele, oprimem os camponeses e os trabalhadores das cidades. São o “espinheiro” que se impõe às árvores que produzem fruto (Jz 9). A hipótese se confirma com a afirmação final da perícope: Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda fica o toco (cf. Is 11!), assim a santa semente é o seu toco.

3 Pensando na prédica

Embora tenha apresentado acima alguns traços de aproximação entre os três textos propostos para este domingo e sua associação com a Trindade, não vejo como reuni-los na pregação. O evangelho e a epístola abrandam demais a dura mensagem de Isaías 6. Opto por refletir sobre a pregação de apenas Isaías 6. O texto apresenta uma variedade de temas. Quase todos permitiriam um sermão inteiro: – a teofania; – a purificação do pecador, que não subsiste diante da santidade de Deus; – a vocação do profeta; – a dura missão do vocacionado; – o extermínio dos maus e a salvação da semente santa. Tento ater-me, ainda que brevemente em alguns casos, a todos esses temas. 1) A teofania: no Antigo Testamento temos diversas passagens que descrevem a aparição de Deus em meio a seu povo. Lembro algumas: os três homens que visitam Abraão, lhe prometem um filho e anunciam a destruição de Sodoma e Gomorra e a salvação de Ló (Gn 18); Deus se manifesta no monte Sinai com relâmpagos e trovões e entrega a Moisés as tábuas com os dez mandamentos (Êx 19 – 20); Elias encontra Deus na brisa leve, no monte Horebe, e não no vendaval, no terremoto e no fogo. Recebe a ordem de voltar e prosseguir em sua missão (1Rs 19). Em nenhuma das vezes a teofania é apenas algo espetaculoso. A ela sempre se segue um comissionamento: de Abraão, de Moisés, de Elias e, aqui, de Isaías. 2) O tema da purificação do pecador, que não subsiste diante da santidade de Deus, apresenta dois aspectos: a) O sagrado é perigoso para o ser humano imperfeito. Na verdade, não é o pecado que mata, mas a santidade. Ela é aniquiladora. b) A purificação se dá pelo fogo. Semelhante também é em Isaías 1.25: [...] purificar-te-ei como com potassa das tuas escórias e tirarei de ti todo o metal impuro. Ao tocar os lábios de Isaías com a brasa tirada do altar, o serafim o purifica. 3)A vocação de Isaías dá-se na resposta à pergunta de YHWH: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Sem saber a tarefa que o aguarda, Isaías prontamente responde: Eis-me aqui, envia-me a mim. Ele se prontifica. Nem sequer é chamado. Isso lembra a disponibilidade ingênua de candidatas e candidatos ao ministério na igreja, que apenas imaginam tarefas bonitas e agradáveis na sua futura missão. Porém, que fazer depois quando há situações conflitivas a enfrentar, quando palavras desagradáveis precisam ser anunciadas para pessoas ou instituições que cometem erros pesados? 4) Essa pode ser a dura missão do vocacionado. Escrevo em tempos de pandemia do coronavírus – queira Deus que, por ocasião da pregação sobre este texto, ela já tenha passado –, e me assusto com o descaso de nossas autoridades

em relação às quase cem mil mortes já ocorridas em consequência da contaminação. Como levantar a voz nessa situação sem temer represálias da parte de defensores incondicionais das autoridades?

5) Essa dura missão, porém, levanta a esperança da eliminação das estruturas de poder injustas, para que a “semente santa” possa restar e respirar aliviada. A última questão que fica é identificar essa “semente santa”. Está na comunidade? Ou em parte dela? Está entre as pessoas pobres e deserdadas da sociedade? Está entre aquelas que sofrem as consequências de pandemias e desmandos? Na verdade, a “semente santa” está em muitos lugares. Importa identificá-la e ajudá-la a viver uma nova esperança, purificada com as brasas do altar. Identifiquei uma variedade de temas. De fato, é impossível querer abordá-los todos em uma única prédica. Há que fazer escolhas. Caberá a cada pregador e pregadora fazê-las. Talvez seja interessante trabalhar os temas restantes em reuniões de estudos bíblicos. Como não proponho um tema específico, mas escolhas, também não proponho subsídios litúrgicos, pois dependerão da opção tomada pela pregadora ou pelo pregador.

Bibliografia

No início deste estudo mencionei vários auxílios homiléticos publicados em diversos volumes de Proclamar Libertação. Ative-me principalmente aos auxílios de Erni Drehmer, em PL 36, e de Milton Schwantes, em PL VI. Recomendo, porém, a leitura dos demais, especialmente o de Hans Trein, em PL 42.

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